c. Stanislávski
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costas, os seus pés podem ser mais eloquentes que uma tirada; que
cada vez que o actoÍ é apercebido sob a personagem a fábula dra-
mâtica é interrompida; e que ao sublinhar uma palavra, destroem-
-lhe o efeito.
Sabem ainda que cada cena de uma peça tem o seu movimento
próprio, subordinado ao movimento geral da obra, e que um ar de
conjunto não deve ser entravado por nada, nem pelo esperar pelo
ponto, nem por uma preocupação com os efeitos pessoais.
Enfim, vivem as suas personagens sob os nossos olhos, apre-
sentam-nos docilmente todos os aspectos, sejam materiais, sejam
morais. O estilo nobre, esse flagelo eterno de todas as artes, que es-
teve sempre em luta com a verdade e a vida, desapareceu das suas
preocupações e o teatro de costumes, as comédias de carácter, as
peças sociais do nosso tempo encontram neles os seus intérpretes
indispensáveis.
Este ensinamento gelado do Conservatóiio, aplicado indiferen-
temente a gerações inteiras de jovens em vistá de um único teatro
que não utilizará um em dez, faz um número incalculável de víti-mas. A escola falsifica e nivela os temperamentos, deixa coÍïer ao
acaso, no molde dos seus heróis clássicos, todos os jovens talentos
de que o teatro moderno teria uma necessidade tão premente.
(4. Antoine, <<Causerie sur la mise en scène>>, Revue de Paris,l de Abril de 1903, Paris, pp.603-4 e 609-1 1.)
55 - STANISLAVSKI: A FORMAÇAO DO ACTOR (1926)
(Colocam-se aqui os textos de Stanislavski apesar de a sua data
de publicação ter sido mais tardia, porque em Stanislavski a prática
,
37r
precedeu largamente e teoria, e fbi devido a essa prátice gue, desdeo início do século, ele exerceu enorme influência - incluindo sobreaqueles que, como Meyerhold ou Thirov, se vão definir contra ele.)
Constantin Stanislavski (1863-1938), actor e encenador russo,
.f'oi o fundador do Teatro Artístico de Moscovo (em t89B) e os seus
princípios inscrevem-se na corrente naturalista. Se não teve conhe-cimento do trabalho de Antoine em Paris, em contrapartida apre-ciava muito o dos Meininger. A sua contribuição fundamental den-tro do quadro do movimento naturalista foi o de redefinir a noçãode realismo colocando a tónica sobre o <realismo interior>, e de se
ligar ao problema da formação do actor. Como é que o actor podeproduzir o verdadeiro, o vivido, numa situação de teatro que é poressência artfficíal? A resposta de Stanislavski apoia-se num con-junto de técnicas interiores e exteriores, constitutivas de uma psico-
física do actor que se costuma chamar de <o Sistema> de Stanis-lavski. Os dois livros fundamentais de Stanislavsti, A Formação doActor e A Constituição da Personagem, deveriam inscrever-senuma vasta obra-súmula, nunca acabada, que teria traçado o cami-nho completo da educação do actor.
A influência de Stanislavski foi imensa. Nas escolas do actornos países de Leste, é o Sistema que serye de base. Nos EstadosUnidos, o Actor's Studio retomou os elementos principais da téc-
nica interior, projectando-lhe uma perspectiva particular viinda dapsicanólise. Grotowski, na Polónia, partiu das questões essenciaispropostas por Stanislavski para procurar novas respostas... As pro-postas de Stanislavski não deixaram, na Europa e nos Estados Uni-dos, de habitar o trabalho do actor contemporâneo.
l. Viver o papel
<<Porque o que pode acontecer de melhor a um actor, é ser com-pletamente absorvido pelo seu papel. Então, involuntariamente, ele
I
l"I
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põe-se a viver a sua personagem, sem mesmo saber o qüe sente, sem
pensar no que faz, guiado pela sua intuição e pelo seu subconsciente,
e tudo se passa de modo automático. Salvini dizia que um grande
actor deve ser habitado por sentimentos. Que ele deve <<sentir>> a sua
personagem e viver as suas emoções, não apenas uma ou duas vezes
enquanto ensaia o seu papel, mas de uma maneira mais ou menos
intensa cada vez que representa, seja à primeira ou à milésima vez.
Infelizmente, é uma coisa que não depende dele. O nosso consciente
não pode peneffar no domínio do subconsciente. Mesmo se aí che-
gasse, o subconsciente, tomando-se então consciente, desapareceria.
,.É uma aposta. Só o subconsciente nos pode proporcionar ainspiração de que temos necessidade para criar. Mas não é senão
graças ao consciente, parece, que por princípio o suprime, que po-demos usar o inconsciente.
<<Felizmente há uma saída. Basta empregar um meio indirecto.Há no espírito humano alguns elementos acessíveis que dependem
da consciência e da vontade e que, por sua vez, são capazes de agirsobre os processos psicológicos involuntários.
<Isto exige um trabalho de criação extremamente complicado,que se efectua em parte sob o controlo do consciente, mas que,numa proporção mais vasta, é subconsciente e involuntiário.
<<Existe uma técnica especial que permite utilizar o subcons-
ciente no trabalho de criação. Trata-se de deixar ànatureza o cuidadode tudo o que é, no sentido mais vasto da palavra, subconsciente, e
de nos limitarmos ao que está ao nosso alcance. Quando a intuiçãoe o subconsciente apaÍecem no nosso trabalho, devemos saber não
os contrariar.
<<Não se pode criar constantemente com ajuda do subcons-
ciente ou da inspiração. Não existe um génio assim. É por isso que
deveis aprender antes de mais a criar conscientemente e com muitaacuidade, porque é o melhor meio de abrir caminho ao desabrochar
do inconsciente e, por ele, da inspiração. Quantos mais momentos
de criação conscientes tiverdes na vossa interpretação, tanto mais
hipóteses tereis de encontrar a inspiração.
<<Pouco importa que a vossa interpretação seja boa ou má>,
escrevia Stchepkine' ao seu aluno Choumski, <<o importante é que
seja verdadeira.>> Para que a vossa interpretação seja verdadeira,
deve ser acurada, l6gica, coerente; deveis pensaÍ, lutar, sentir e agir
em comunicação com a vossa personagem.
<Assim que captardes todos estes processos internos, e os
adaptardes à vida espiritual e física da personagem que encarnais,
então viveis o vosso papel. É o que mais conta no vosso trabalho de
criação. Assim que o actor vive a sua personagem, não apenas abre
caminho à inspiração, mas chega assim a realizar um dos seus ob-
jectivos principais. Não se trata de exprimir unicamente a vida exte-
rior da personagem. É preciso ainda adaptar-lhe as suas próprias
qualidades humanas, derramar-lhe toda a sua alma. O objectivo fun-
damental da nossa afie é ciar a vida profunda de um espírito hu-
mano e exprimi-la sob uma forma artística.
uÉ por isso que começamos sempre pelo aspecto interior do
papel e procuramos criar a sua vida espiritual servindo-nos desse
procedimento intemo que consiste em viver o papel. E deveis vivô-
-lo experimentando realmente os sentimentos que com ele se rela-
cionam de cada vez que o recriais.
<<Das raízes profundas do inconsciente sobem os sentimentos
que nem sempre podemos analisar e que só se revelam quando o ac-
tor se encontra em plena posse da sua naÍrÍeza consciente. É deste
modo que a expressão do inconsciente depende do consciente. Mas
se violais as leis da vida orgânica natural e se deixais de agir de
uma maneira equilibrada, então o subconsciente, que é extrema-
mente sensível, alarma-se e retira-se. Para evitar isso, estudai pri-
meiro o vosso papel conscientemente e depois representai-o com
I Cél"bt" actoÍ russo do séc. xx. (N.F.)
174
fïdelidade. Nesta preparação interior do papel o realismo é essen.
cial, porque arrasta o subconsciente e arrisca-se a despoletar a inspi.ração.>
<Segundo o que acabais de referir, creio compreender que de-vemos assimilar uma técnica psicológica que consiste em viver opapel e isso deve-nos levar ao nosso objectivo principal, que é criara vida de um espírito humano>>, diz Paul Choustovl.
<<É exacto, respondeu Tortsov. Mas devo acrescentar que onosso objectivo não é apenas criar a vida de um espírito humano,mas também 'exprimi-la sob uma forma estética e artística'. O actortem a obrigação de viver a sua personagem interiormente e depoisdar dessa experiência uma manifestação exterior. Notai bem que, na
nossa escola, damos uma importância particular à influência do es-
pírito sobre o corpo. Afim de exprimir todos os matizes de uma vidaem grande parte subconsciente, é absolutamente necessário possuire dominar um aparelho físico e vocal de uma extrema sensibilidadee cuidadosamente educado. Deveis ser capazes de reproduzir ins-tantânea e exactamente os sentimentos mais delicados e mais subtis.
É po, isso que exigimos de vós um trabalho muito mais intenso doque o dos outros actores. Deveis exercitar ao mesmo tempo o vosso
aparelho psíquico, que vos permitirá criar a vida interior da vossapersonagem e o vosso aparelho físico, que exprimirá os seus senti-mentos com precisão.
<<A expressão exterior de um papel é ela própria grandemente
influenciada pelo subconsciente. De facto, nenhuma técnica arti-ficial pode rivalizar com as maravilhas que opera anatureza.
<Indiquei-vos hoje, em grandes linhas, o que para nós é essencial.
Acreditamos firmemente e por experiência que só o nosso método, fa-zendo apelo a uma aÍte que se refere inteiramente a uma experiência
1 A Tormação d,o actor apresenta-se sob a forma de um diálogo entre o professor
- Tortsov - e o seu aluno - choustov. De facto ambos encamam o próprio Staniilavski, oprincipiante - que colocava as questões - e o da maturidade - que propuúa as respostas. (N.F.)
I
li
humana vivida, é capaz de reproduzir os matizes subtis e as profunde-
zas da vida. Só sob esta forma a arte do teatro é capaz de empolgar os
espectadores e, ao mesmo tempo, de os fazer compreender e experi-
mentar profundamente o que se passa em cena, enriquecendo assim a
sua vida interior e deixando-lhes impressões que o tempo não apagarâ.
<Além disso, e isto é de uma importância capital, as leis natu-
rais sobre as quais repousa o nosso sistema, impedir-vos-ão, no fu-turo, de vos perderdes. Se quereis tornar-vos actor, deveis então
obrigatoriamente começar pelo estudo desta base.>>
2. O ose> mágico
<<Imaginai que deveis representar uma cena de um conto de
Tchekhov em que um rendeiro, um pouco inocente, indo à pesca
desenrosca um parafuso de um carril para lastrar a sua linha.
É julgado e condenado severamente. Este incidente puramente fictício
irá tocar profundamente alguns, mas paÍa a maioria não será mais
do que uma <<história divertidu. Nunca suspeitarão do drama legal
e social que se esconde por detrás desse riso. Mas o actor que deve
representar uma das personagens desta cena não pode rir. Tem que
reencontÍar o estado de espÍrito do autor e, o que é mais importante
ainda, reviver o acontecimento que lhe inspirou a sua história.
Como o faríeis?
. <<O Director esperou. Ficámos todos silenciosos e pensativos.
<<Nos momentos de dúvida, quando os vossos pensamentos, os vos-
sos sentimentos e a vossa imaginação ficam mudos, lembrai-vos do
se. O próprio autor não procedeu de outra maneira. E disse para si
próprio:
<<Que aconteceria se um rendeiro ingénuo, indo à pesca, pe-
gasse num parafuso de um carril?> Fazei a mesma coisa, e acres-
centai: <<o que é que eu faria se tivesse que julgar este caso?>>
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<Eu condenaria o criminoso>>, respondi, sem hesitar.<Por que motivo? Por ter querido lastrar a sua linha?><<Por ter roubado um parafuso.>>
<Claro que não se deve roubar, concedeu_me Tortsov. Mas po_deis punir severamente um homem por um crime de que ele estáperfeitamente inconsciente?>>
.,É preciso fazê-lo compreender que o seu gesto poderia tercausado um acidente terrível>, repliquei.
<<Por causa de um simples parafuso? Nunca ireis conseguirfazê,-lo acreditar nisso!>> disse o Director.
<<Ele está a fingir. Na realidade, compreende perfeitamente oque fez>, digo eu.
<<Se aquele que deve representaÍ o papel do rendeiro tiver ta_lento, provar-vos-á pela sua interpretação que não tem qualquerconsciência da sua culpabilidade>>, diz o Director.
A discussão continuou, e ele apresentou todos os aÍgumentospossíveis a favor do acusado. No fim conseguiu abalar-me. Assimque se apercebeu disso, diz-me:
<<Provavelmente vós tivestes a mesma reacção que o própriojuiz' se tivésseis que representar esse papel, sentimentos semelhan-tes aproximar-vos-iam da vossa personagem.
<<A fim de completar esta familiaridade entre o actor e a perso_nagem que ele encama, acrescentai alguns pormenores precisos queconcretizarão a acção. As circunstâncias trazidas pelo se provêm defontes próximas dos vossos próprios sentimentos e têm uma po-derosa influência sobre a vida interior do actor. Desde que tenhaisestabelecido este contacto enre a vossa vida e o vosso papel, expe-rimentareis esse impulso interior, este choque. Acrescentai-lhe to-das as espécies de reacções eventuais apoiadas na vossa experiênciade vida, e vereis como vos é fâcil acreditar sinceramente na existên-cia do que sois chamados afazer em cena.
l1
I
l.
<Se trabalhais um papel inteiro desta maneira tereis uiado com
todas as peças uma nova vida.
<Os sentimentos assim acordados exprimir-se-ão pelos pró-
prios actos que teriam sido os dessa personagem imaginária caso se
encontrasse nas circunstâncias da peça.>
<São conscientes ou inconscientes?> perguntei.
<<Procurai vós mesmos. Examinai cuidadosamente cada porïne-
nor da operação, determinai a parte do consciente e a do incons-
ciente e as suas origens. Nunca chegareis a conclusão nenhuma,
porque tudo isso releva do domínio do subconsciente.
<<Para vos convenceÍ, perguntai a um actor, depois de uma
grande representação, o que é que ele sentiu em cena e o que é que
fez. Não poderá responder-vos, porque não tinha consciência do que
vivia e é incapaz de se lembraÍ mesmo das passagens mais impor-
tantes. Tudo o que obtereis dele é que estava à vontade em cena e
que se sentia perfeitamente em contacto com os.outros actores.
À parte isso, será incapaz de vos dizer mais. Surpreendê-lo-eis
muito se lhe descreverdes a sua interpretaçáo.
Daqui podemos concluir que o se é também um estimulante
para o subconsciente criador. Além disso, ajuda-nos a submetermo-
-nos a esse outro princípio fundamental para o nossa arte: acordar
o nosso subconsciente graças a uma técnica consciente.
<Até aqui expliquei as funções do se em relação a dois dos
princípios fundamentais do nosso sistema. Está ainda mais estreita-
mónte ligado a um terceiro. O nosso grande poeta Pushkin fala dele
no seu artigo inacabado sobre o drama.
<<Diz, entre outras coisas:
<A sinceridade das emoções, dos sentimentos que paÍecem verda-
deiros nas circunstâncias propostas, é o que se pede ao drarnaturgo.>>
<<Acrescentarei, pela minha parte, que é exactamente o que se
exige ao actor.
37t1
<Reflecti bem nessa frase e mais tarde dar-vos-ei um exemplomarcante que vos mostrará como o Je nos ajuda a satisfazer estaexigência.>
Pus-me a repetir em todos os tons: <Sinceridade das emoções,sentimentos que paÍecem verdadeiros nas circunstâncias propostas...>>
<<Parai, disse-me o Director. Transformais isso numa banali-dade, sem ter descoberto a significação essencial. se não sois capazde captar um pensamento no seu conjunto, separai_o em diversoselementos e estudai-os um a um.>>
<<O que quer dizer exactamente a expressão: circunstânciaspropostas?> quis saber Paul.
<<Isso quer dizer: o assunto da peça, os factos, os acontecimen_tos, a época, o tempo e lugar da acçáo, as condições de vida, a in_terpretação dos actores e do encenador, arcalização, os cenrírios, osfigurinos, os acessórios, a iluminação, o som... todas as circunstân_cias que um actor tem que ter em conta ao criar o seu papel.
<<se é o ponto de paÍida; as circunstâncias propostas são o desen-volvimento. um não pode existir sem o outro, se eles querem conser-var cada um o seu cafirctet estimulante. No entanto, as suas funçõessão algo diferentes: o se dâ o impulso à imaginação ratente, enquantoas circunstâncias proposlas constituem a propria base do se. Em con-junto ou separadamente, ajudam a provocff um ímpeto interior.>>
<E que quer dizer exactamente a sinceridade das emoções?>pergunta Vaniat com curiosidade.
<<Como a palavra indica, emoções humanas, vivas, verdadeiras,sentimentos que o próprio actor tenha já experimentado.>>
<<Então, continua Vania, o que é: sentimentos que parecem ver_dadeiros?>>
<<Isso designa, não os sentimentos em si, mas qualquer coisaque thes está muito próxima, emoções reproduzidas indirectamentesob o impulso de verdadeiros sentimentos profundos.
, '-No diálogo central entre choustov e Tortsov misturam-se as intervenções de outrosalunos. (N.F.)
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<Na prática, eis aproximadamente o que deveis fazer: comoçai
primeiro por imaginar à vossa maneira as circunstâncias 'propostas'
pela peça, a concepção do encenador e a vossa própria concepção
artística. Toda esta matéria-prima darâ as grandes linhas da vida da
personagem que deveis encaÍnar e das circunstâncias nas quais ela.Ávive. E necessário que acrediteis realmente na eventualidade de uma
vida assim e que isso se tome para vós tão familiar que vos sintais
muito próximos. Se conseguirdes isto, aperceber-vos-eis de que as
'emoções sinceras' ou que os 'sentimentos que parecem verdadeiros'
nascem espontaneamente em vós.>>
3. A memória afectiva
<<O imprevisto é muitas vezes um meio excelente para desenca-
dear o trabalho. Foi o que vos ajudou na primeira vez. Mas hoje o
efeito está gasto, sabíeis antecipadamente o que se ia passar, tudo
era já familiar, os vossos gestos estavam regulados. Nestas condi-
ções, ter-vos-á parecido inútil considerar de novo toda a cena e dei-
xaÍ-vos guiar pelas vossas emoções, não é verdade? Uma forma ex-
terior já pronta é muito tentadora para o actor! Não é de surpreender
que vós, que estais apenas no princípio, o tivésseis sentido imedia-
tamente e que tenhais dado prova, ao mesmo tempo, de uma exce-
lente memória dos factos. Mas no que respeita à vossa memória
afectiva não descobri dela nem um traço.>>
Pedimos-lhe que nos explicasse este novo termo.
. <A melhor explicação que vos posso dar é contar-vos uma his-
tóia.É, assim que Ribotl definia essa forma de memória que foi ele
o primeiro a caracteizat<Dois homens tinham sido surpreendidos pela maré e estavam
cercados sobre um rochedo. Depois de terem sido salvos, pergunta-
ram-lhes quais tinham sido as suas impressões. O primeiro recor-
I Psicólogo francês do século xrx. (N.F.)
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dava-se muito exactamente de cada um dos seus geJtos, os sítios poronde tinham passado, os rochedos que tinham escalado, etc. O outronão tinha nenhuma recordação do lugar; em troca, lembrava-se detodos os sentimentos experimentados: prazer, apreensão, medo, es-
perança, dúvida, e enfrm pânico.<<Foi o que se passou na primeira vez que representastes a cena
do louco. Ainda vos vejo, pregados ao solo, aterrados, tentandoencontrar o bom caminho, com toda a vossa atenção fixada na porta.E adaptados à situação, com que excitamento e com que convicçãovos lançastes a representar!
<<Mas para conseguir o que fez o segundo homem na históriade Ribot, reviver todos os sentimentos que experimentastes no iní-cio e representar naturalmente sem ter que fazer um esforço volun-tário, teria sido necessário que possuísseis uma memória afectivaexcepcional.>>
(...)
<<Mas os impulsos em si mesmos nunca são desejáveis?> per-guntei.
<<Bem pelo contriário, diz Tortsov. Mas estas emoções fortes,directas e apaixonadas, não se manifestam em cena da maneira que
imaginais. Só duram alguns instantes. Sob esta forma são completa-mente desejáveis, porque acentuam a sinceridade dos nossos senti-mentos. Esses ímpetos espontâneos de emoções têm uma força deimpulsão irresistível. >
E para nos acautelar, acrescentou:
<<Infelizmente não os podemos controlar. São eles que nos con-duzem. Não temos então outra escolha senão deixar agir a naítrezae desejar, se eles vierem, que não seja em contradição com o papel.É muito tentador, é claro, introduzir na nossa representação sen-timentos inesperados, inconscientes. É aquilo com que todos sonha-mos e é um dos aspectos mais sedutores da criação artística. Masnão é uma razão para minimizar o papel dos sentimentos ensaiados,
381
provocados pela memória afectiva. Pelo contrário, ligai'vos muito a
eles, porque só eles podem, numa certa medida, desencadear a ins'
piração.
<<Recordai-vos do nosso princípio fundamental: é através dos
fenómenos conscientes que atingimos o subconsciente.
<<Existe um outro motivo paru apreciat estas 'emoções ensaia-
das'. O actor não constrói o seu papel com a primeira coisa que lhe
cai nas mãos. Escolhe cuidadosamente por entre as suas recorda-
ções e selecciona de entre as suas próprias experiências os elemen-
tos mais sedutores. Tece a alma da sua peruonagem com sentimen-
tos que lhe são mais queridos que os da sua vida vulgar. Existirá um
terreno mais fértil pma a inspiração? O artista escolhe o melhor de
si mesmo para levar paÍa cena. As formas podem variar segundo as
necessidades da peça, mas os sentimentos do artista continuarão vi-
vos, insubstituíveis.>
<<Quereis dizer, interveio Gricha, que em qualquer papel, desde
Hamlet até Sucre, no Pássaro Azul, sáo sempre os mesmos velhos
sentimentos que voltam a servir?>>
<<Como queíeis fazer de outra maneira? disse Tortsov' Pensais
que o actor consegue imaginar todas as espécies de novas impres-
sões, ou mesmo inventar um carácter diferente para cada um dos
seus papéis? Quantas almas deveria ter? Como poderia arïancat a
sua para a substituir pela de outro? Onde a encontraria? Pode-se pe-
dir de empréstimo um casaco, jóias, qualquer objecto, mas não se
pode tomar de um outïo os seus sentimenlos. Pode-se compreender
um papel, simpatizar com a personagem e colocarmo-nos nas mes-
mas condições que ela a fim de agir como ela o faria. É assim que
nascerão no actor os sentimentos que serão análogos aos da perso-
nagem, mas que só pertencerão ao actor.
<<Nunca esqueçais que em cena continuais a ser um actor. Não
vos afasteis de vós próprios. A partir do momento em que perderdes
esse contacto com vós próprios, cessnreis de viver realmente o
il
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vosso papel, e em vosso lugar aparecerá uma personagem falsa e
ridiculamente exagerada. Por mais numerosos que sejam os vossospapéis, nunca vos autorizeis uma excepção a esta regra. A infracçãoacabaria por matar a vossa personagem privando-a da alma viva e
real que a deve animar.>>
Gricha não conseguia acreditar nesta obrigação de repÍesentaÍsempre os seus próprios sentimentos. Mas o Director foi formal:
<<Quando estais em cena, interpretai sempre a vossa própriapersonagem, os vossos próprios sentimentos. Descobrireis uma va-riedade infinita de combinações nos diversos objectivos e nas cir-cunstâncias propostas que elaborastes para o vosso papel, e que se
fundiram no cadinho da vossa memória afectiva. É a melhor e aúnica verdadeira fonte de criação interior.,>
4. As acções físicas
O Director continuou hoje a falar-nos do seu sistema. para ilus-trar a sua exposição, estabeleceu uma compaÍação entre o actor e oviajante.
<<Durante uma viagem bastante longa, começou ele, tereisnotado que muitas vezes os vossos próprios sentimentos mudavamao mesmo tempo que o aspecto da paisagem. passa-se o mesmo em
cena. Experimentando as transformações do nosso estado físicodescobrimo-nos constantemente um novo estado de espírito e con-dições diferentes. Vemos de modo diferente os cenários e o que nos
cerca, mesmo o que é apenas imaginário. Tal como o viajante, co-nhecemos outras pessoas e partilhamos a sua vida.
<É a Hnha destas acções físicas que guia o actor de ponta a
ponta na peça. O carreiro está tão bem traçado que ele não se podeperder. No entanto, não é o carreiro que the interessa, são as con-dições interiores e os acontecimentos profundos dessa vida que
encontrou na peça. Aquilo de que elo gosta é da boleza, o Pitorosco
que cerca o seu papel e os sentimentos que estes the fazem nascer,
<Tal como o viajante, o actor pode chegar ao seu destino usando
meios muito diversos: há aquele que vive verdadeiramente o seu
papel fisicamente; aquele que reproduz apenas o aspecto exterior;
o que se camufla por detrás de truques engenhosos como se tentasse
vender a sua mercadoria; aquele que recita o seu papel como um
tolo; aquele que o usa para se valoizar aos olhos dos seus admira-
dores... É o rotto sentido do verdadeiro, que, de acordo com a con-
vicção que tendes nos vossos actos, vos impedirâ de vos perder
numa direcção errada.
<A pergunta que se apresenta agora é a seguinte: como traçaÍ
esse caminho?
<<Pareceria à primeira vista que seria suficiente utilizar as nossas
emoções verdadeiras; mas os sentimentos não formam um material
suficientemente sólido, é por isso que recorremos às acções físicas.
<<Todavia, mais importante que a própria acçáo é a sua verdade
e a sinceridade do actor. Porque onde se encontrem a verdade e a
convicção só podem nascer sentimentos verdadeiros. Podereis ve-
rificá-lo vós mesmos; basta executar a mínima acção acreditando
realmente, para que àpareça logo um sentimento, de uma maneira
completamente natural.
<<Por mais curtos que sejam, esses momentos de simples ver-
dade física adquirem uma grande importância, tanto nos passos
mais frouxos, quanto nos momentos mais dramáticos da peça. Não
é preciso ir muito longe para encontïar um exemplo. O que é que
vos preocupavana segunda parte do vosso exercício? Correstes até à
chaminé e retirastes do fogo um maço de notas. Tentastes reanimar
o idiota, precipitastes-vos para salvar a criança que se afogava.'.
Estes actos físicos simples são o quadro no interior do qual se cons-
truiu natural e logicamente a vida física da vossa personagem.
I
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<Vejamos um outro exemplo: o que faz Lady Macbeth noponto culminante da sua tragédia? Procura simplesmente fazer de-
saparecer das suas mãos uma mancha de sangue.>>
Gricha protestou. <<Quereis-nos fazer acreditar que um grande
escritor como Shakespeare escreveu Macbeth paÍa que a sua he-roína faça o gesto vulgar de lavar as mãos?>>
<<Que decepção, não é verdade! diz o Director com ironia.Pensar que ele se esqueceu da tragédia! Como é que pôde ignorartoda a interpretação dramática do actor, o seu <<patético>, a sua <<ins-
piração>! Como é que se pode abandonar esse tesouro maravilhosoe contentar-se com pequenos actos físicos, pequenas verdades!...
<<Compreendereis mais tarde a sua necessidade. Entendereisque, na vida real, as grandes emoções manifestam-se muitas vezes
por um gesto muito vulgar, completamente simples e natural. Es-panta-vos isto? Com o que é que se preocupa o amigo ou a mulherdo doente que vai morrer? Não fazer barulho à volta dele, seguiras receitas do médico, tirar-lhe a temperatura, dar-lhe de beber.
E todas estas pequenas acções adquirem importância em presença
da morte.
<<Devereis compreender o significado de que se reveste o mí-nimo gesto no interior das <<circunstâncias dadas>, exprimindo umsentimento. É querendo verdadeiramente, fisicamente limpar o san-
gue das suas mãos que Lady Macbeth logrou executar os seus pro-jectos ambiciosos. Não é por acaso se, ao longo de todo o seu mo-nólogo, essa mancha lhe vem à memória, ligada no seu espírito ao
assassínio de Duncan. Este simples gesto comporta um sentido ex-traordinário. Exprime por si só todo o drama interior, que assim
busca uma saída.
<<Porque é que esta relação entre os actos físicos elementares e
a vida afectiva é um elemento tão importante na nossa técnica ar-tística?
ããt
<Se dizeis a um actor que o seu papel é profundemcntc trágico
e cheio de psicologia, ele vai começaÍ imediatamente a lançar'se cm
todo o tipo de contorsões, a torturar o espírito e a forçar os senti-
mentos. Mas dai-lhe um problema estritamente físico para resolver,
em circunstâncias interessantes e sedutoras, e ele resolvê-lo-á sem
se preocupar e sem colocar a si mesmo quèstões inúteis'
<<Abordando assim a vida afectiva, evitareis toda a violência, e
o resultado virá naturalmente dele próprio. Há ainda uma outra ra-
záo prá'tica para proceder assim. Para atingir as grandes dimensões
do trágico, o actor deve forçar a sua natureza criadora ao máximo'
Ora, como poderá aceder-lhe se a sua natureza não responde à sua
vontade? Este estado de intensidade dramática só pode ser provo-
cado com o favor de uma inspiração e nem sempre podereis desen-
cadeâ-lafacilmente. Se tentais fazê-lo por meios artificiais, arriscais
perder-vos e cair no Íeatral,em vez do verdadeito. É o método fácil!
<<Para evitar este erro, apoiai-vos num objecto tangível, sólido,
sobre uma acção física. Quanto mais simples for, tanto mais fácil
vos será capÍâ-la, deixá-la dirigir-vos para o vosso verdadeiro objec-
tivo, longe da tentação da interpretação mecânica.
<Abordai o momento tráryico do papel com os nervos descontraí-
dos, sem crispação nem violência e sobretudo sem pressa. Avançai
progressivamente, com lógica, concretizando correctamente e com
convicção o vosso encadeamento de actos físicos. Assim que tiverdes
aperfeiçoado este meio de chegar aos sentimentos, deixareis de recear
essas passagens trágicas, porque sabereis abordálas com confiança.'
<<A única diferença entre a minha maneira de abordar o drama
ou a comédia depende unicamente da nattxeza das circunstâncias
propostas que regulam os gestos da vossa personagem' Como con-
sequência, se vos exigirem <<o trágico>>, não penseis em experimen-
tar os sentimentos, pensai no que iteis fazer.>>
(S. Stanislavski, La.formatíon de I'acteur, trad. de Elizabeth Janvier, Paris, Olivier Perrin,
1958, 1: pp. 26-28;2: pp. 56-59; 3: pp. 153 e 160-162;4: pp. 138-141')