"O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a ...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA O MÉTODO DE ANÁLISE ATIVA DE K. STANISLÁVSKI COMO BASE PARA A LEITURA DO TEXTO E DA CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO PELO DIRETOR E ATOR Nair Dagostini Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Arlete Orlando Cavaliere São Paulo 2007

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

    PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

    O MTODO DE ANLISE ATIVA DE K. STANISLVSKI COMO BASE

    PARA A LEITURA DO TEXTO E DA CRIAO DO ESPETCULO

    PELO DIRETOR E ATOR

    Nair Dagostini

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Prof. Dr. Arlete Orlando Cavaliere

    So Paulo

    2007

  • DEDICATRIA

    1935-1936

    A mim, ainda me resta viver dois, trs anos, os ltimos. O que eu devo fazer transmitir minha experincia e mtodo para quem quiser receb-los. Peguem, eu darei tudo o que sei.

    Konstantin Stanislvski

    Dedico a tese in memoriam aos meus mestres Tovstongov e Katsman.

    ii

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo minha orientadora, prof. dr. Arlete Orlando Cavaliere pelo estmulo e

    confiana proporcionados durante o processo de realizao desta tese.

    Aos professores integrantes da banca de qualificao, prof. dr. Elena Vssina e prof.

    dr. Maria Silvia Betti, pelas valiosas sugestes, os novos olhares e caminhos

    apontados.

    prof. dr. Elena Vssina, a quem ficarei eternamente grata por ter proporcionado as

    condies para a realizao desta tese, colocando disposio sua biblioteca, seu

    conhecimento e sua generosidade mpar.

    Em especial, aos meus atores-pesquisadores, que, apesar de todos os conflitos,

    estiveram comprometidos at o final com a pesquisa e criao do espetculo: Cristiane

    Werlang, Gustavo Muller, Luana Michelottti, Maria Andra Soares, Michele Zaltron,

    Rafael Sieg.

    equipe artstica do espetculo A Dcil - Risom Cordeiro, Nara Maia, Clber Laguna,

    Nelson Magalhes, Leandro Bartz, Sandra Tartas.

    Ao Celso e ao Jorge, pela amizade e fora incondicionais

    Ao Emlio, pela leitura da adaptao, sugestes, poesias e amizade.

    Luana e Camilo, pela ajuda no italiano e no ingls.

    Klara Gurianova, pela generosidade em ajudar a sanar dvidas da lngua russa, da

    bibliografia e dos autores.

    Iara, pela atenta reviso.

    Irina Mikhailovna, pelas leituras, afeto e amizade.

    Maria Helena Lopes, pela amizade e discusses por telefone nos momentos crticos.

    Martina, pelos desabafos, leituras, opinies e amizade.

    Mrcia, Clber, Adi, Adriane e Camilo, pela acolhida e amizade.

    Michele, pela ajuda, sugestes e amizade.

    Ao Rafael, pela sua incondicional dedicao e disponibilidade na concretizao desta

    tese, pela pacincia e discusses.

    Aos meus ex-colegas do Departamento de Artes Cnicas da UFSM e a todos os meus

    alunos que cooperaram para o amadurecimento destas reflexes ao longo dos anos.

    A Tatiana Golscheva, pelos vdeos, CDs e bibliografia trazidos da Rssia, pela amizade,

    presena e transmisso de canes russas s atrizes.

    iii

  • minha famlia: Adriana e Mauro pela disponibilidade, ajuda e afeto: ao Gil pela

    gua nas flores e reunies do condomnio; Lourdes e Rosa, pelas caminhadas e

    conversas; ao Miguel e Geraldine, pelos momentos ldicos e de descontrao; Ruth,

    pelo afeto e incondicional apoio; minha querida me, pelas oraes e pela espera, e a

    todos os que de alguma forma me apoiaram para a realizao desse trabalho.

    iv

  • RESUMO

    A orientao deste estudo se d na perspectiva de investigar, definir e especificar dentro

    do sistema de K. Stanislvski o mtodo de anlise ativa e o das aes fsicas

    juntamente com os seus elementos constitutivos a partir das suas fontes primrias,

    tericas e prticas, e do seu desenvolvimento por renomados diretores russos, que

    escreveram e aplicaram o mtodo em suas criaes. Obedecendo coerncia dos

    princpios metodolgicos do sistema, esse trabalho contm uma parte terica e outra

    prtica. Na terica, procuramos esclarecer em que consiste o mtodo; especificar o

    processo de conhecimento da vida da obra, a criao do romance da vida das

    personagens por parte do diretor; os elementos necessrios para a leitura da obra atravs

    da ao; o mtodo de anlise ativa e seus elementos estruturais; os elementos do

    sistema para o ator criativo, acompanhado da traduo de estenogramas das aulas-

    ensaios de K. Stanislvski sobre seus ltimos experimentos relativos ao mtodo das

    aes fsicas. A aplicao do mtodo se deu sobre a obra A Dcil, de Dostoivski.

    Nela, primeiramente, foi realizada uma anlise na busca de conhec-la. Em seguida foi

    feita a transposio do texto literrio para o texto teatral, o que resultou na adaptao e

    anlise da ao da mesma, que se constitui no sistema do espetculo, o qual interliga o

    projeto artstico do autor com o do diretor e se concretiza pela ao cnica do ator.

    Palavras-chave: Sistema de Stanislvski/Anlise Ativa, Autor/Diretor/Ator, A Dcil,

    de Dostoivski, Criao teatral.

    v

  • ABSTRACT

    The present study intends to investigate, define and specify the following methods,

    which are part of K. Stanislavski System: the Active Analysis and the Physical Actions

    with its elements. It is taken from the practical and theoretical primaries sources and

    also from its development through renowned Russian directors that have written and

    applied the method in their creations. Obeying the coherence of the methodological

    principles of the system, this work has a theoretical and a practical part. In the

    theoretical one, we look for clarifying in what the method consists; specifying the

    process of knowing the texts life through the directors hands. We also search for the

    necessary elements to read the text through the action; the method of active analysis and

    its structural elements; the elements of the system to the creative actor, followed by

    the translation of the notes from the rehearsal-classes of K. Stanislavski, about his last

    experiments related to the method of Physical Actions. The method was applied in the

    text: A Dcil, of Dostoivski. First of all, this text was analyzed with the purpose of

    being deeper understood. After that, a transposition from the literary to theatrical text

    was done and we had as a result the adaptation of the text and its actions analysis. This

    adaptation constitutes itself the own system and is responsible for connecting the artistic

    project of the author with one of the director and that is materialized through the scenic

    action of the actor.

    Keywords: Stanislavski System/Active Analysis, Author/ Director/ Actor, A Dcil,

    of Dostoievski, Theatrical Creation.

    vi

  • SUMRIO

    DEDICATRIA..............................................................................................................ii

    AGRADECIMENTOS...................................................................................................iii

    RESUMO..........................................................................................................................v

    ABSTRACT....................................................................................................................vi

    O CAMINHO DE UMA VIDA NA ARTE....................................................................1 CAPTULO I O estudo dos princpios de direo cnica na leitura do texto a partir

    do mtodo de anlise ativa..............................................................................................22

    1. Elementos do sistema para a anlise do texto..............................................26

    Superobjetivo...........................................................................................26

    Linha transversal de ao.........................................................................31

    Circunstncias dadas................................................................................33

    2. O trabalho do diretor no processo de conhecimento da vida da obra..............35

    3. Anlise ativa da estrutura da obra....................................................................49 CAPTULO II Elementos do sistema e a ltimas investigaes de K. Stanislvski

    com o mtodo das aes fsicas sobre o papel...............................................................58

    1. A formao do ator criativo.............................................................................58

    Concentrao............................................................................................62

    Imaginao...............................................................................................68

    O se mgico..........................................................................................72

    F e sentido da verdade............................................................................73

    Relao.....................................................................................................78

    Adaptao.................................................................................................82

    Liberdade muscular..................................................................................84

    Tempo-ritmo............................................................................................90

    2. As ltimas experincias de K. Stanislvski no Estdio de pera

    Dramtica.............................................................................................96

    Traduo dos estenogramas das aulas-ensaios sobre o papel de

    Hamlet................................................................................................102

    vii

  • CAPTULO III Aproximao anlise de alguns aspectos da Imagem Artstica na

    Novela Krotkaia (A Dcil), de Fidor M. Dostoievski............................................145

    1. Impresses sobre a Novela A Dcil...............................................................145

    2. A Imagem Artstica da Novela A Dcil.........................................................153

    O Espao Artstico.................................................................................161

    O Tempo Artstico.................................................................................167

    As oscilaes na mentalidade dos heris...............................................173 CAPTULO IV Adaptao e Anlise Ativa de A Dcil, de Fidor M.

    Dostoivski....................................................................................................................176

    1. Adaptao da Novela Krotkaia (A Dcil).................................................176

    2. Anlise Ativa da adaptao da narrativa de A Dcil.....................................203

    3. Anlise Ativa dos grandes acontecimentos da adaptao de A Dcil............204

    4. Anlise Ativa dos acontecimentos seqenciais da adaptao de A Dcil......206 DA AO AO ESPETCULO..................................................................................225 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................237 ANEXOS.......................................................................................................................251

    viii

  • O CAMINHO DE UMA VIDA NA ARTE

    Preservar a herana de Stanislvski isso significa desenvolv-la.1

    O que ser exposto, nesta parte inicial, a trajetria de minha definio

    acadmica e artstica na rea da arte teatral, as influncias recebidas e a atividade como

    professora, pesquisadora e artista das artes cnicas.

    Em 2001, com a defesa da dissertao de mestrado em Filosofia Mmesis de

    Prxis como Eudaimonia: Aristteles e Lukcs, pela Universidade Federal de Santa

    Maria, tambm encerrei a minha atividade acadmica nesta instituio como professora

    do Curso de Artes Cnicas. A deciso de concorrer a uma vaga de doutorado na

    FFLHC/USP poderia erroneamente parecer uma questo de vaidade, j que o ttulo no

    seria incorporado na ascenso da carreira. O que, ento, me levaria a passar pelo

    processo de concretizao de uma tese, que sempre envolve desafios e paixes, mas

    tambm certo desgaste e at sofrimento? Acredito que foi a constatao de no ter

    efetuado o registro de um conhecimento adquirido com grandes mestres da arte teatral

    num pas que deu, no sculo XX, ao Ocidente, o maior legado nessa rea atravs da

    figura incomparvel de Konstantin Serguiievitch Stanislvski -Alexiev (1863-1938).

    Esse conhecimento se refere ao seu sistema, que me serviu de base e me

    guiou ao longo do percurso acadmico-artstico. Essa dvida estava pendente devido ao

    envolvimento total com atividades de ensino, pesquisa e extenso dentro do curso em

    que atuei. Uma parte estava cumprida com a transmisso desse conhecimento via direta,

    nas aulas e orientaes aos alunos, que hoje somam mais de uma centena espalhados

    pelo Brasil.

    Mas, apesar desse conhecimento transmitido estar sendo aplicado e se

    expandindo em diferentes atividades artsticas, pedaggicas e culturais, penso que ainda

    em pequena escala, pois os equvocos e mal-entendidos sobre o sistema ainda

    existem, e, em certa medida, sempre existiro. Constata-se a necessidade de se apossar

    individualmente desse saber atravs da prtica, sobretudo, sendo que a sensibilidade e a

    capacidade de cada um fazem com que a peculiaridade subjetiva sempre esteja presente,

    em detrimento da objetividade do sistema e de suas leis.

    O importante a honestidade e a seriedade com que nos aproximamos e nos

    apoderamos de determinado conhecimento e a nossa atitude diante dele, encarando-o 1 KEDROV, M. N. Stati, retchi (Ensaios e discursos). Moscou: VTO, 1978, p.51.

    1

  • como um valioso patrimnio produzido por nossos antecessores o qual temos a

    obrigao de preservar e de desenvolver para a transformao de nossas potencialidades

    artsticas, culturais e humanas.

    Eugnio Kusnet (1898-1975) deixou para ns, brasileiros, o legado valioso de

    sua experincia pessoal sobre o sistema, como mestre, diretor, ator e escritor. No

    ltimo perodo de sua vida, adquiriu em Moscou, dos discpulos de K. Stanislvski, o

    mtodo de anlise ativa. Com esse olhar renovado sobre o sistema, empenhou-se para

    que muitos dos mal-entendidos produzidos, at por ele mesmo, em sua atividade

    artstico-pedaggica, fossem sanados e, em seus ltimos anos de vida, alm de

    promover a formao de professores, diretores e atores, escreveu o livro Ator e

    Mtodo. Penso que, apesar de j se completarem 30 anos de sua morte, a sua

    constatao ainda possui certa validade:

    Infelizmente, no Brasil nunca tivemos a oportunidade de confirmar esse mtodo no trabalho cotidiano de nosso teatro. [...] os nossos diretores, sempre dispostos a fazer novas experincias, desistiram, por fora de certas circunstncias, at da prpria Anlise Ativa.2

    O impulso que me levou a realizar esse estudo no foi a pretenso de possuir a

    melhor verdade sobre o sistema, por t-lo recebido na fonte direta, mas, como j

    disse, foi a de fazer uma reflexo sobre a minha trajetria artstica e acadmica, com

    base num conhecimento adquirido com grandes mestres, herdeiros da tradio de K.

    Stanislvski, mas que foi assimilado e aplicado por mim dentro de determinadas

    peculiaridades artstico-pessoais.

    Por outro lado, estou ciente da falta de informao e de acesso a muitos escritos

    do mestre publicados nos ltimos anos na Rssia, como tambm de boas tradues

    diretas do russo, que possam desfazer muitos falsos pressupostos reinantes sobre o

    sistema, a fim de ser possvel aprofundar e at contribuir para o seu desenvolvimento

    em muitos aspectos. Penso estar dando uma modesta contribuio relativamente ao

    sistema de K. Stanislvski, sobretudo no que tange a seu ltimo perodo, o mtodo de

    anlise ativa, aos profissionais do teatro no Brasil, a partir do inesgotvel material

    escrito que o mestre nos deixou, como nos dizem Arlete Cavaliere e Elena Vssina3:

    2 KUSNET, E. Ator e Mtodo. So Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Funarte, 2003, p.150. 3 Professoras Doutoras do Departamento de Literatura e Cultura Russa da FFLCH-USP.

    2

  • Stanislvski escreveu muito, e seu famoso sistema, que ele buscou aprofundar e aperfeioar at o final da vida, para a consecuo de um grande projeto integrador, atravs do qual toda a sua experincia, enquanto ator, diretor e pedagogo, pudesse ser registrada, segundo uma perspectiva de conjunto, jamais foi concludo.4

    Feita essa observao, passarei a dar uma perspectiva de minha formao e

    atividade nas Artes Cnicas.

    Conclu o Bacharelado em Direo Teatral e Licenciatura em Arte Dramtica

    na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, em julho de 1978. Como

    diretora, no perodo de formao, destaco duas montagens: Os Fuzis da Senhora

    Carrar, de Bertold Brecht (1898-1956), e Senhorita Jlia, de August Strindberg (1848-

    1912). E, como atriz, tambm destaco a atuao no papel da Me, na pea O Mal-

    Entendido, de Albert Camus (1913-1960), e no de Isadora, no texto dramtico O

    Encontro no Bar, de Brulio Pedroso (1931-1990).

    medida que se aproximava o trmino da faculdade, apareciam os

    questionamentos sobre o que fazer para continuar a desenvolver minha trajetria

    artstica. Essas inquietaes me levaram a encaminhar dois projetos com pedidos de

    solicitao de bolsas de estudos, um junto Embaixada da URSS, na rea de cinema, e

    o outro junto Embaixada da Polnia, na rea de teatro. Em setembro de 1978, fui

    contemplada com as duas bolsas de estudos, uma para o Curso de Artes Dramticas,

    na Universidade Jagiellonica, em Cracvia, e a outra na URSS. Optei por transferir a ida

    Polnia para depois do trmino da bolsa da URSS, que seria, em princpio, de dois

    anos.

    Em 30 de setembro de 1978, cheguei a Moscou, sem saber ao certo onde

    estudaria e em que rea, teatro ou cinema, esta ltima de acordo com minha solicitao.

    L chegando, com o primeiro dia de neve, sem falar minimamente a lngua, me vi entre

    milhares de estudantes estrangeiros. Aps uma noite em Moscou, fui enviada pelo

    Ministrio de Educao da URSS cidade de Leningrado, hoje So Petersburgo. A

    viagem de trem rumo ao desconhecido, com dois estudantes, um rabe e outro indiano,

    sem comunicao verbal, j que no tnhamos uma lngua comum que permitisse

    manter a mnima conversao, a no ser a mimtica, anunciava o que estaria por vir.

    4 CAVALIERE, A; VSSINA, E. A herana de Stanislvski no teatro norte-americano: caminhos e descaminhos. In Crop. Theater Studies -.Guest Editor. Maria Silvia Betti. So Paulo: Humanitas FFLCH/USP . Nmero 7, p. 1-394, 2001, p.308.

    3

  • Na chegada estao, fomos recebidos por responsveis pelos estrangeiros e

    enviados s instituies destinadas a cada um de ns. Conduziram-me ao LGITMiK -

    Instituto Estatal de Teatro, Msica e Cinema de Leningrado, denominado N.K.

    Cherkacov.5 Fui a primeira brasileira a estudar no Instituto, onde ningum falava a

    lngua portuguesa. Tive, ento, a impresso de pertencer a uma tribo totalmente

    desconhecida no mundo. Ao conseguir explicar que entendia o espanhol, trouxeram

    um doutorando cubano para me auxiliar. Nos primeiros trs meses, estive envolvida,

    sobretudo, com a aprendizagem da lngua russa, priorizando a comunicao imediata.

    Vencidos os primeiros obstculos com o idioma e com a adaptao, pois o

    inverno na virada do ano chegou a 43 graus negativos, passei a assistir s aulas de

    direo e interpretao, estas obrigatrias, pois as disciplinas referentes s prticas

    corporais oferecidas na Instituio e de cunho terico eram de minha livre escolha.

    A instituio determinou, diante da anlise de meu currculo, que faria a ps-

    graduao (aspirantura) em Maestria do Ator Dramtico, no curso de Arkadii

    Katsman (1921-1989), e em Direo Dramtica, no curso de Gueorgui Tovstongov

    (1913-1988). Ambos os cursos em nvel de graduao, sendo que o de Maestria do

    Ator Dramtico tinha durao de quatro anos, e o de Direo Dramtica, de cinco.

    Esses cursos s admitiam nova turma aps os alunos ingressantes terem

    concludo o curso. Para o ingresso, os candidatos passavam por uma rigorosa seleo,

    submetendo-se a testes especficos, prticos e tericos. Em Maestria do Ator

    Dramtico, eram admitidos 22 alunos, sendo 11 mulheres e 11 homens; no curso de

    Direo Dramtica esse no era o critrio adotado, e o grupo, alm de ser menor,

    apresentava predominncia de alunos homens.

    Ambos os cursos, atuao e direo, eram muito disputados pela notabilidade de

    seus professores principais, professor Katsman e professor Tovstongov. Todos os

    demais professores assistentes na ctedra de maestria do ator e de direo teatral eram

    subordinados ao pedagogo principal, que tinha a funo de uma espcie de guia, de

    orientador responsvel pela formao profissional dos atores e diretores. Essa forma de

    organizao curricular levava a formao de um coletivo muito forte, guiado pelo

    mestre principal. O que era destacado nesse sistema de ensino, alm da qualidade da

    Instituio, era, sobretudo, o curso com determinado mestre, o que se assemelhava

    5 O LGITMiK em 1993 passou a denominar-se Academia Estatal de Arte Teatral de So Petersburgo SPGATI.

    4

  • muito estrutura dos Estdios criados por K. Stanislvski, principalmente, ao ltimo, o

    Estdio de pera Dramtica.6

    Seguem-se algumas referncias sobre os dois grandes mestres com os quais tive

    o privilgio de estudar.

    Arkadii Katsman formou-se como ator no Instituto LGITMiK, na poca da

    Segunda Guerra Mundial, profisso que exerceu por muitos anos. Mas, ao assumir a

    responsabilidade do curso que levava o seu nome, passou a dedicar-se exclusivamente

    formao dos estudantes desse curso, no papel de principal pedagogo e tambm de

    diretor responsvel pelas montagens dos alunos do curso. Tambm ocupava o cargo de

    principal assistente de Gueorgui Tovstongov no seu curso de Direo Dramtica.

    Nos anos de 1978-79, a turma de atores conclua a sua trajetria de estudos na

    arte do ator com o espetculo, dirigido por Arkadii Katsman, Sonhos de uma noite de

    vero, de Shakespeare (1564-1616). Tive a oportunidade de assistir a uma parte do

    processo da criao desse espetculo, apesar do obstculo do escasso entendimento da

    lngua russa. Com os alunos ingressantes no incio do ano letivo de 1979, dirigiu, como

    trabalho final de formatura, o romance de Dostoivski (1821-1881) Os Irmos

    Karamsov. Nessa montagem s participei de parte do processo de criao, pois sua

    estria ocorreu aps minha volta ao Brasil. A pea tinha como meio principal de

    criao a improvisao de tudes (estudos). Faz-se necessrio acrescentar que Lev

    Dodin (1944- ), internacionalmente reconhecido diretor teatral, era professor assistente

    nos cursos de Katsman e Tovstongov, sendo que, com a morte de Arkadii Katsman,

    assume a ctedra do Curso de Maestria do Ator Dramtico.

    Gueorgui Tovstongov, principal pedagogo do Curso de Direo Dramtica, que

    levava o seu nome, fez sua formao como diretor no GITISa7, ingressante em 1933.

    Teve como pedagogos principais A. D. Popov (1892-1961), A. M. Lobanov (1900-

    1959) e M. O. Knbel (1898-1985), que tambm foi sua professora, mas no no papel

    de orientadora, ou seja, como pedagoga principal. Todos eles eram discpulos e

    seguidores de K. Stanislvski, e, alm de terem sido atores do TAM, haviam participado

    como estudantes nos seus diversos Estdios. Estes se constituam em espaos que 6 O Estdio de pera Dramtica de 1919 a 1926 funcionou na casa de K.S.Stanislvski, primeiramente na rua Karetni Riad e posteriormente na travessa Lentiev. Em 1926, foi convertido em Teatro Estdio Estatal de pera Stanislvski. Em 1928, passou a chamar-se Teatro de pera Stanislvski. Em 1941, esse teatro fundiu-se com o Teatro Musical V.I. Nemirvich-Dnchenko, sendo denominado Teatro Musical dos Artistas do Povo da URSS, K.S. Stanislvski e V.I. Nemirvich-Dnchenko. Desde 1953, intitula-se Estdio de pera Dramtica K. Stanislvski. 7 GITIS - Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou, de nome A.V.Lunatchrski. A partir de 1991 passa a chamar-se RATI Academia Russa de Arte Teatral.

    5

  • funcionavam como laboratrios onde o mestre desenvolveu o seu sistema,

    experimentou e explorou os princpios fundamentais do processo criativo da arte do

    ator com os estudantes.

    Tovstongov chegou a assistir a algumas palestras-aulas de K. Stanislvski no

    Estdio de pera Dramtica e a conferncias no GITISa. Sofreu influncia de

    Nemirvitch-Dntchenko (1858-1943), Vartngov (1884-1924), Tairv (1885-1950),

    Meyerhold (1874-1940) e Brecht, mas considerava-se filho da tradio stanislaviskiana,

    ou seja, discpulo do Teatro de Arte de Moscou, pois aprendeu com seus mestres o uso

    do sistema de Stanislvski e aplicou-o a partir do conhecimento adquirido com esses

    mestres e de sua vasta prtica como pedagogo e diretor, mas de uma maneira muito

    pessoal.

    Como artista, apesar de haver se adequado aos cnones do regime sovitico,

    quanto s instituies, e de ter sido muito respeitado pelo regime, sempre usufruiu de

    muita liberdade em sua arte, a qual apresentava uma irreverncia esttica no-

    conformista. Gueorgui Tovstongov foi o principal diretor do Grande Teatro Dramtico

    Gorki, de Leningrado (BDT), hoje com o nome de Grande Teatro Dramtico Gueorgui

    Tovstongov. Foi considerado um dos mais importantes diretores da encenao

    contempornea, no s em seu pas, mas internacionalmente.

    Os seus espetculos foram mostrados em temporadas pela Europa, Estados

    Unidos, Amrica Latina, pelos pases da sia e do Leste Europeu. Realizou inmeras

    montagens nesse ncleo dos pases socialistas. Para dar uma idia resumida das suas

    grandes montagens, nomeio algumas entre mais de uma centena: As Trs Irms e Tio

    Vnia, de Tchekhov (1860-1904), Baixos Fundos e Os Pequenos Burgueses, de Gorki

    (1868-1936), A Histria de um Cavalo e Ana Karnina, de Lev Tolstoi (1828-1910), O

    Inspetor Geral e Almas Mortas, de Gogol (1809-1852), A tragdia otimista, de V.

    Vichnevski (1900-1951), Henrique IV, de Shakespeare, Humilhados e Ofendidos e O

    Idiota, de Dostoivski. Sobre este espetculo h uma declarao de Eugnio Kusnet,

    que penso ser ilustrativa de sua grandiosidade artstica, quando cita o genial ator I.M.

    Smoktunovski (1925-1994), no papel de prncipe Michkin: At agora, depois de

    muitos anos, ainda considero aquele espetculo o melhor entre todos que vi na minha

    vida.8 Considerado um diretor altamente verstil, transitou por todo tipo de temas,

    gneros e estilos. Foi mestre em criar cenas de grande tenso dramtica.

    8 KUSNET, E. Ator e Mtodo. So Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Funarte, 2003, p.133.

    6

  • Tovstongov dirigiu alguns filmes para televiso e escreveu inmeros artigos e

    obras, sendo as mais conhecidas Zerkalo stseny (O espelho da cena), em dois tomos,

    Bessdy s kollegami (Conversa com os colegas) e Premry (Estrias). O primeiro foi

    traduzido em vrias lnguas, o tomo I, com o nome de A Profisso do Diretor de Cena.

    Como diretor e pedagogo de alto nvel intelectual e artstico, foi responsvel pela

    formao de grandes gnios da cena russa, diretores e atores, muitos ainda em atividade

    e de reconhecimento pblico nacional e internacional. Entre os diretores conhecidos no

    Brasil que foram seus alunos, menciono Lev Dodin e Kama Guinkas (1941- ).

    No curso de direo, Tovstongov fazia-se presente duas vezes por semana,

    pela tarde, j que os ensaios no BDT eram pela manh, sendo que a turma, no restante

    do tempo, ficava sob orientao do principal pedagogo assistente, Arkadii Katsman, e

    de seus respectivos pedagogos assistentes. Na esfera pedaggica do curso de direo,

    Tovstongov e Katsman eram complementares, um no existia sem o outro, vale

    observar as datas de suas mortes, 1988 e 1989, respectivamente. Quando Tovstongov

    chegava s aulas, era-lhe dedicada uma grande reverncia, pois era considerado um

    diretorpedagogo muito exigente, que paralisava a todos. Ao iniciar o trabalho com a

    apresentao de exerccios criativos preparados para o dia, os quais davam a dimenso

    daquilo que estava sendo trabalhado nas aulas, com os assistentes, na aquisio de

    tcnicas referente aos elementos do sistema e apresentao de tudes ou anlise

    ativa dos textos, se instalava uma atmosfera descontrada e apaixonada, com calorosas

    discusses em que diferentes pontos de vista se contrapunham, no s entre alunos, mas

    entre os dois mestres. Dentro da sala de aula havia um clima de liberdade de expresso

    e de igualdade, em que dominavam o esprito tico e o entusiasmo artstico, to

    essenciais no sistema de K. Stanislvski.

    No coletivo de 1979, ingressantes do primeiro ano, nas aulas de maestria do

    ator, trabalhavam com o mtodo das aes fsicas, desenvolvendo os mais variados

    exerccios com objetos imaginrios. Os elementos do sistema eram trabalhados por

    algumas horas diariamente. O trabalho criativo se dava, sobretudo, atravs de

    improvisaes dos tudes, nos quais o aluno tinha que criar uma pequena cena com

    uma estrutura dramtica que contemplasse as etapas exigidas, conforme o mtodo de

    anlise ativa, que ser desenvolvido nos captulos posteriores.

    A matria para a criao do tude devia ser resgatada da prpria vivncia do

    ator, de uma experincia pessoal, de sua memria emocional e de aes com que o

    aluno possusse familiaridade. A imaginao entrava no momento da composio e

    7

  • organizao do material e, sobretudo, na execuo das aes fsicas com objetos

    imaginrios nas circunstncias inventadas pelo aluno, dentro dos acontecimentos que

    compunham o tude. Esses eram elaborados individualmente e submetidos a uma

    criteriosa anlise pelo mestre e professores assistentes. O aluno tinha que criar e

    apresentar, durante o semestre uma quantidade suficiente de tudes, para que os

    melhores fossem aperfeioados e apresentados em mostras no final do semestre. Nesses

    trabalhos, o objetivo principal das apresentaes era avaliar o desenvolvimento do aluno

    em cada etapa de sua formao artstica, pois aquele que no apresentasse as

    condies artsticas, disciplinares e ticas exigidas pelo curso seria eliminado do

    mesmo.

    Toda aula com o mestre seguia um ritual rigoroso, uma espcie de espetculo

    de uns 40 minutos, que se compunha de quatro momentos: zatchin, crnica, composio

    e popytka. O zatchin era um exerccio criativo, espcie de prlogo, que aglutinava uma

    sntese dos elementos tcnicos e tericos que estavam sendo adquiridos na totalidade

    das disciplinas, que envolvia o coletivo, sob a direo de um dos alunos selecionado a

    priori. Nele era avaliado a escolha da linguagem artstica e a sua coerncia com o

    contedo apresentado, que, em geral, se tratava de habilidades de movimentos, gestos,

    aes, palavras e canes, tendo como fio condutor determinada idia. Seguia-se a

    apresentao de uma crnica por um aluno tambm j selecionado, com resoluo

    cnica adequada ao contedo, o qual devia estar ligado a algo que havia tocado o aluno,

    que podia ser no mbito do curso, da rua, da realidade enfim, resultante de suas

    observaes e impresses pessoais. Uma composio plstica a partir de um elemento

    fixo, a qual devia sugerir uma ao transcorrida que no fosse ilustrativa, mas se

    constitusse numa metfora. E, por fim, a apresentao de uma popytka, uma forma

    de etiqueta criativa para apresentar uma bebida, oferecida aos professores (ch, suco,

    gua, etc.).

    No transcorrer da apresentao desses trabalhos, havia uma disciplina

    impecvel, dentro de todos os requisitos necessrios para a apresentao de um

    espetculo. O professor principal, em conjunto com os demais professores, assistentes,

    alunos e aspirantes (alunos de ps-graduao) analisava cada exerccio, tanto na

    forma quanto no contedo e sob o aspecto de sua coerncia e lgica. Tambm eram

    destacados o humor na criao e a originalidade.

    Essas aulas eram sempre assistidas por um pblico que se compunha de

    professores e artistas, visitantes nacionais e estrangeiros e dos aspirantes, em que eu

    8

  • me inclua. A seguir, eram mostrados os tudes individuais, que passavam por anlise,

    discusses e eram retrabalhados nos aspectos considerados problemticos. Quando os

    atores no possuam tudes para apresentar, o mestre ou assistente trabalhava

    exerccios que envolviam os elementos do sistema: ateno, imaginao, irradiao,

    jogos, pesquisa com animais, entre outras habilidades.

    Se no primeiro semestre do ano ingressante a criao dos tudes devia estar

    ligada experincia pessoal do aluno, j no segundo semestre a criao dos tudes

    iniciava-se a partir da literatura sovitica, por estar mais prxima e pertencer ao seu

    universo cultural. Nessa etapa da criao dos tudes, havia a necessidade da relao

    com o partner e o desenvolvimento do conflito entre ambos. Os alunos deviam

    selecionar fragmentos da obra que possibilitassem o desenvolvimento dramtico para a

    construo dos acontecimentos nas circunstncias dadas na obra que contemplassem

    o processo de relao conflituosa e que dessem a idia de totalidade. O texto, quando

    necessrio, devia originar-se das prprias aes do ator dentro das circunstncias da

    obra, prevalecendo o critrio geral da criao, o se, gerado a partir da pergunta O que

    eu faria em tais circunstncias dadas?.

    No segundo ano, o aluno passava a ter conhecimento terico sobre o sistema e

    o mtodo de anlise ativa, com todos os elementos que a compem. Na realidade o

    processo que se dava era uma reflexo sistematizada sobre a prtica que j vinha sendo

    realizada e de certa forma em processo de desenvolvimento que se tornava mais

    complexo pela compreenso e reflexo sobre o ato criativo. Nesse estdio de

    desenvolvimento, o aluno-ator, j com certo domnio prtico da criao, do ncleo

    dramtico, passava a expandir sua capacidade para selecionar e eleger acontecimentos e

    circunstncias na obra literria, a qual servia como base para a criao.

    medida que a experincia do estudante se tornava mais slida e ele j possua

    algum domnio da ao fsica com objetos imaginrios e das tcnicas referentes aos

    elementos, nos semestres subseqentes passava a trabalhar com obras mais complexas

    da literatura clssica russa, sem que fosse abandonado o trabalho do ator sobre si

    mesmo. Nos dois ltimos anos, todo o coletivo tinha que passar pela experincia de

    uma obra clssica de dramaturgia e de uma adaptao literria de um romance.

    Os atores tinham que incluir em seu repertrio um espetculo de variedades,

    composto de nmeros de circo e outras referncias artsticas que exigiam habilidades

    especficas. Todo ator tinha que possuir pelo menos o domnio de um instrumento

    musical. Havia tambm a obrigatoriedade da criao de um espetculo, com enfoque

    9

  • no domnio da palavra em verso, contando com a participao ativa dos professores de

    tcnica vocal e da palavra cnica, disciplinas dadas por diferentes professores. No

    coletivo em que assistimos ao processo de estudos, tivemos a oportunidade de

    acompanhar o processo do espetculo com poesias de Puchkin (1799-1837), que tinha

    como objetivo maior o domnio da ao da palavra em verso.

    O coletivo de 22 alunos era formado desde o momento da seleo com critrios

    artsticos, ticos e disciplinares rigorosos, e isso contribua para que, nos quatro anos de

    formao, sob a orientao do principal professor e dos assistentes, se desenvolvesse

    uma solidez artstica e tica nos atores aptos a enfrentarem a profisso. As demais

    disciplinas, no que tange ao desenvolvimento tcnico psicofsico, como voz, palavra

    cnica, rtmica, dana, luta, esgrima, movimento cnico, estilos, possuam importncia

    fundamental. Na avaliao dessas disciplinas, eram obrigatrias a escolha e a criao

    de tudes a partir de obras que exigissem essas habilidades, como o teatro

    renascentista espanhol, ingls, francs, etc. Essas tcnicas, tanto para o ator quanto

    para o diretor, eram necessrias para atuarem no variado repertrio de obras clssicas,

    modernas e contemporneas, mas tambm eram complementares para o domnio das

    to necessrias leis do controle, da preciso, da deciso e adaptao e da expressividade,

    que garantiriam a qualidade artstica.

    Penso ser de importncia citar as pesquisas de campo que os alunos realizavam

    como processo do trabalho sobre si mesmo e para as suas criaes. Nas frias de vero,

    o coletivo era designado a trabalhar em Kolkhoznyi (sistema de produo coletiva do

    campo) e, durante a permanncia de dois meses no local de trabalho, em que eram

    desempenhadas as mais variadas tarefas junto comunidade, devia transformar essa

    experincia em campo de observao, transposio artstica atravs da concretizao em

    aes fsicas com objetos imaginrios.

    Esse material recebia um tratamento de estruturao por parte dos alunos, que

    lhe davam transposio e expressividade artstica. O resultado da experincia era

    apresentado no incio do ano letivo em forma de performances, tudes coletivos e

    individuais, crnicas, zachins, composies de canes, danas, msicas, etc. Era um

    espetculo constitudo dos mais variados nmeros, originados a partir dessas

    observaes e experincias vividas pelo coletivo junto a essas comunidades.

    Semelhante processo de apropriao fsica e corporal tambm era usado

    quando havia a encenao de textos que remetiam realidade mais prxima, ou

    permitiam uma transposio para a atualidade. Esses laboratrios experimentais eram

    10

  • vivenciados em locais escolhidos que propiciassem a vivncia fsica e psquica

    necessria, exigida para a concepo da encenao de determinado texto. Outra

    experincia que penso ser importante relatar era um trabalho com animais, resultante

    da observao, em que o aluno criava tudes individuais ou com partner. No coletivo

    dos atores houve uma apresentao da mmesis de ces, pois Leningrado era uma cidade

    povoada de ces enormes, em que todos os atores se apresentavam com o seu objeto de

    pesquisa, altamente caracterizados sujeito e objeto, o que se constituiu num espetculo

    inesquecvel.

    No curso de Direo Dramtica, da ctedra do professor G. Tovstongov, as

    exigncias eram gigantescas, pois os futuros diretores, nos primeiros dois anos, eram

    obrigados a adquirir o conhecimento prtico do sistema, no que tange a arte do ator:

    trabalho com aes fsicas com objeto imaginrio, criao de tudes individuais,

    zatchin, crnicas, etc. Era priorizada a especificidade da direo, na apresentao dos

    trabalhos individuais e coletivos, que, em suma, eram os mesmos j descritos para o

    ator, sendo que havia a exigncia de um olhar diferenciado sobre a inveno cnica, a

    capacidade mais aguda para dar a idia de uma expresso artstica individual.

    Trabalhavam em diferentes materiais, alm da experincia individual no resgate

    de memrias, como poesia, notcias de jornal, fatos da realidade, com os quais deviam

    encontrar uma forma de resoluo artstica da idia contida no material. Para a anlise

    e criao da obra, o mtodo utilizado era o da anlise ativa, e o seu domnio constitua

    a prova de fogo para o aluno continuar no curso. O mtodo estava presente em qualquer

    criao, desde o material mais simples at o mais complexo, como a anlise de

    romances e textos da dramaturgia clssica.

    O aluno de direo cnica, aps um ano e meio de curso, iniciava a anlise de

    uma obra completa, que pretendia encenar nessa etapa dos estudos. Esse trabalho de

    anlise da obra, de seus acontecimentos principais, tema, idia e circunstncias

    determinantes era apresentado aos mestres e ao coletivo. Esse material, aps ter sido

    submetido anlise crtica, era aprofundado e muitas vezes totalmente recusado ou

    reelaborado, at que o aluno apresentasse um projeto de anlise coerente com a obra. O

    trabalho criativo com o ator, em fragmentos da obra, tambm era apresentado e passava

    pelo rigoroso processo de questionamento e anlise. Como resultado o estudante-diretor

    devia apresentar um espetculo que se constitusse numa unidade artstica, com todos os

    elementos que lhe so inerentes. Na montagem de concluso do diploma, que era

    realizado no ltimo ano, o aluno podia voltar ao seu pas de origem ou repblica e

    11

  • realizar a montagem em algum teatro local, seguido de defesa do espetculo. Nesse

    coletivo dominava uma total atmosfera de criao em cujo ambiente s se respirava

    arte.

    Passo a listar o contedo terico e prtico recebido durante minha estada no

    curso de Ps-Graduao, de 1978 a 1981:

    A obra de arte como conscincia social; a imagem artstica e sua estrutura;

    princpios especficos da arte teatral; fundamentos ticos da arte teatral; o diretor

    como organizador do processo da criao cnica; teoria da Direo Teatral;

    problemas modernos da Direo Teatral; unidade do Processo de Educao e

    Formao do Ator e Diretor.

    Fundamentos da Direo Teatral: Mtodo da anlise ativa - fundamento da idia

    da regncia do espetculo; Romance da Vida como mtodo de aproximao

    ao pensamento do autor pelo diretor; tema, idia e problema da obra; conflito da

    pea e circunstncias; anlise dos acontecimentos da obra; objetivos,

    superobjetivo e linha transversal de ao da obra e personagens como noo

    bsica fundamental do sistema de K. Stanislvski.

    Problemas da Direo Teatral na concretizao cnica da idia: natureza do

    sentimento do espetculo; resoluo do jogo cnico; atmosfera cnica; tempo e

    ritmo da ao; resoluo musical, cenografia e iluminao do espetculo;

    trabalho com os artistas de cenografia, iluminao, msica e indumentria.

    Aulas sobre Direo do Drama: trabalho prtico como assistente no Curso de

    Direo Teatral com os estudantes, alm do programa estabelecido; trabalho

    com tudes com fundamentos na literatura; criao sobre fragmentos de peas

    dramatrgicas.

    Aulas sobre maestria do ator: fundamentos da maestria do ator; princpios da

    psicotcnica do ator e suas tarefas; elementos e conformidades da ao cnica;

    tarefas do ator em relao ao seu treino; acontecimento como unidade

    fundamental e estrutural do processo da vida; tudes (exerccios de criao

    cnica), como forma de domnio integral e natural da ao cnica; carter de

    metamorfose do ator no processo de criao;

    Aulas prticas de maestria do ator: trabalhos prticos como assistente no Curso

    de Atores Dramticos, com os estudantes, sobre fragmentos de romances e

    dramaturgia na criao de tudes; pesquisa sobre psicotcnica do ator; foram

    12

  • ministradas por mim aulas de treinamento psicofsico com alunos do referido

    curso e aulas abertas de treinamento psicofsico.

    Aulas prticas de movimento cnico, estilo, rtmica, esgrima, acrobacia, luta,

    dana e palavra cnica em horrios livres, extracurriculares. Defesa prtica e

    terica do trabalho: Plasticidade e Expresso do Movimento, pesquisa realizada

    com os atores do Curso de Teatro Dramtico. Participao do elenco da

    montagem Mandrgora, de Maquiavel (1469-1527), espetculo final do diretor

    cubano Armando Crespo, aluno de Sulmov (1913-1994), Leningrado, URSS,

    1980.

    Apresentao do trabalho de Direo sobre a encenao do conto de V.

    Chukchin (1929-1974) Lgrimas de Kuko cumprindo as etapas de estudo e

    aproximao da obra do autor; anlise de direo da encenao; trabalho de

    criao sobre os fragmentos da obra pelo mtodo da anlise ativa para a

    realizao da idia.

    Assisti a todo o processo de criao, desde o incio dos ensaios at a estria,

    dos espetculos Lobos e Ovelhas, de A. N. Ostrovski (1823-1886), e Tragdia

    Otimista, de V. Vichnevski, direo de G. Tovstongov, no Bolshoi Teatro

    Dramtico M. Gorki.

    Realizei pesquisas sobre o cinema novo brasileiro, no setor de cinema do

    LGITMiK, resultando no projeto Ideologia - Viso Artstica Fundamental do

    Cinema Novo Brasileiro, que propunha a inter-relao entre a moderna

    literatura brasileira e o cinema novo brasileiro. Projeto apresentado para

    ingresso em doutorado em Moscou, no Instituto de Literatura Mundial Gorki,

    na especialidade de Literatura Latino-Americana, na ctedra de I. A. Terterian, a

    qual aceitou ser minha orientadora.

    Em dezembro de 1981, fui obrigada a voltar ao Brasil, por no ter conseguido

    naquele momento uma fonte financiadora para bolsa de estudos de doutorado que me

    mantivesse na URSS, mas ainda tinha expectativas de um retorno em breve, o que no

    aconteceu.

    O panorama teatral no Brasil, mais especificamente em Porto Alegre, depois de

    trs anos e meio de ausncia, se apresentava para mim, em termos profissionais, com

    poucas perspectivas, sem falar em termos polticos e emocionais, no entanto era preciso

    comear por alguma parte. O preconceito relacionava-se a fatores diversos: ao pas no

    qual havia adquirido o conhecimento, a minha posio ideolgica e, sobretudo, a K.

    13

  • Stanislvski, que era visto com suspeita, tachado de psicologismo e ultrapassado.

    Todos os cursos em voga na poca faziam questo de anunciar que no seguiam a

    tendncia psicologizante do sistema stanislaviskiano. A sobrevivncia precisava ser

    garantida e, enquanto no surgia algum trabalho, vendia gelatinas para iluminao

    trazidas, algumas centenas, da URSS, como tambm trabalhava temporariamente para

    a Secretaria de Turismo em pesquisas de opinio pbica.

    Por outro lado, dei incio no MEC ao processo de reconhecimento do curso feito

    no exterior, o qual foi se arrastando de universidade em universidade at voltar s

    minhas mos depois de mais de dez anos, sem obter nenhum resultado. O curso nunca

    foi reconhecido e no me trouxe qualquer ascenso na carreira acadmica, nenhuma

    pontuao em concursos pblicos nem vantagem financeira.

    Em maro de 1982, um ex-colega convidou-me para dirigir um espetculo a

    quatro mos, com o texto Yerma, de F. Garcia Lorca (1898-1936). Procurei, na medida

    do possvel, dentro do espao que me era permitido, aplicar os ensinamentos que havia

    recebido, tanto no que tange ao ator quanto ao diretor.

    Na seqncia, passei a trabalhar com amadores ligados a uma entidade de

    classe, o que me obrigou a exercitar e transmitir na prtica os conhecimentos

    adquiridos. Junto ao grupo eram desenvolvidos os elementos do sistema, a

    capacidade de improvisao e o treino corporal. O grupo tinha como objetivo principal

    a comunicao direta e imediata atravs de esquetes, intervenes e performances.

    Diante dessas caractersticas do coletivo e de suas aspiraes em relao ao teatro, foi

    proposta a encenao do texto de Tchekhov O Aniversrio do Banco. Essa montagem,

    totalmente despida de qualquer pretenso cenogrfica, se sustentava, sobretudo, na

    capacidade de improvisao do elenco, era apresentada em comunidades e sofreu

    inmeros desdobramentos.

    Em 1983, Maria Helena Lopes, diretora teatral conhecida nacionalmente, que

    havia sido minha professora na universidade, convidou-me a fazer parte do elenco do

    espetculo Crnica de uma cidade pequena, inspirada na novela de Gabriel Garcia

    Marques (1928- ), Crnica de uma morte anunciada. Maria Helena, que considera

    Eugnio Kusnet e J. Lecoq (19211999) seus mestres e trabalha com a improvisao

    como meio para a criao, me propiciou a oportunidade de poder avaliar e dimensionar

    o conhecimento adquirido sobre o sistema de K. Stanislvski. Apesar de no ter

    continuado no elenco at a apresentao pblica, a participao no processo de criao

    da referida montagem foi altamente enriquecedora, pois vinha afirmar pontos relevantes

    14

  • sobre o jogo cnico e a metamorfose do ator, o que trazia confiana sobre os

    conhecimentos recebidos.

    Fortalecida em minhas convices e conhecimentos, passai a ministrar um curso

    de preparao de atores em que era desenvolvido o mtodo das aes fsicas de K.

    Stanislvski, em Estgios I e II, de agosto de 1983 a dezembro de 1984, em Porto

    Alegre.

    Nesse mesmo perodo, participei como diretora de atores da montagem Antonio

    Chimango, adaptao do poema homnimo de Ramiro Barcelos (1851-1916), com o

    grupo que j vinha desenvolvendo os elementos do sistema, treinamento psicofsico e

    improvisao. Tambm com o mesmo diretor e parte desse grupo, foi realizada a

    montagem de Macbeth, de Shakespeare, na qual participei como diretora de atores

    (1998/9).

    Assumi a organizao de um pequeno grupo de atores, oriundos dos cursos

    ministrados por mim e procedentes das montagens das quais participei, para a

    encenao do espetculo Boca de Luar, (1996/7) inspirado nas crnicas de Carlos

    Drummond de Andrade (1902-1987), na obra de mesmo nome. Na montagem, atuei

    como diretora e dramaturga, nesta na qualidade da adaptao da obra literria para a

    forma teatral.

    Ingressei na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1985, na rea de

    Artes Cnicas, na categoria de professor auxiliar, pois, alm da graduao, s tinha o

    reconhecimento de um curso de especializao em Sociedade, Poltica e Cultura da

    Amrica Latina, oferecido pela UFRGS (1984). O Curso de Artes Cnicas da UFSM,

    na poca, era o de Educao Artstica Licenciatura Plena em Artes Cnicas, extinto em

    1994. Nesse curso, ministrei as disciplinas de Encenao, Tcnicas de Teatro e Dana,

    Laboratrio de Pesquisa Dramtica, Evoluo do Teatro e Dana, Prtica de Ensino,

    Metodologia de Ensino em Artes Cnicas.

    Em 1992, inicia-se o processo de estruturao e elaborao do Curso de

    Bacharelado em Artes Cnicas, opo em Direo e Interpretao Teatral, do qual

    assumi a coordenao. O currculo que entrou em vigor em 1994 foi construdo sobre

    uma base comum para ambas as opes: as disciplinas prticas, como Encenao I a VI,

    para o ator, e at VIII, para o diretor, Tcnicas de Representao I a VI, para o diretor, e

    at VIII, para o ator, Laboratrio I a VIII, para ambos, Expresso Corporal e Vocal I a

    IV, para ambos, Tcnica de Montagem I a IV, para ambos, e as disciplinas tericas

    15

  • sendo iguais para os dois cursos. O mtodo de anlise ativa ocupou o lugar de centro

    unificador do processo de educao e formao do artista como um todo.

    Apesar do corpo docente, em seu conjunto, originar-se de diferentes formaes,

    com alguns professores provenientes do prprio curso, os quais haviam sido meus

    alunos, havia alguns princpios bsicos em comum sobre a arte do ator e do diretor que

    possibilitavam a troca de experincias que enriqueciam a todos. Esse entendimento

    comum nos levava a realizar projetos que envolviam grande parte das disciplinas

    prticas e algumas tericas, em que professores e alunos passavam por uma experincia

    unitria.

    Aqui citarei alguns projetos interdisciplinares, com carter de ensino, pesquisa e

    extenso, os quais envolviam grande parte dos professores, em que foi aplicado o

    mtodo de anlise ativa, na anlise do material textual e no processo de criao. So

    eles:

    A montagem Mokimpot, de Peter Weiss (1916-1982), na qual atuei como

    assistente de direo e no processo de anlise do texto, cuja pesquisa de

    linguagem era sobre o clown e o bufo.

    A criao do espetculo Manantiais, uma saga da cultura gacha, tendo como

    base para a criao contos e lendas de Simes Lopes Neto (1865-1916), Barbosa

    Lessa (1929-2002) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), aglutinava

    professores e alunos do curso de Artes Cnicas na sua pesquisa, criao e

    produo. Na preparao do elenco, foram conjugadas e compartilhadas vrias

    experincias e referncias dos professores, como a do sistema de K.

    Stanislvski, Meyehrold, Laban (1879-1958), Grotowski (19331999), Lecoq,

    Barba (1936- ), em que o mtodo de anlise ativa, atravs da anlise do material

    textual e a tcnica de improvisao, serviu como base no processo de criao.

    Assumi nessa montagem a assistncia de direo e a criao do roteiro, o qual

    possua uma estrutura que entrelaava o real e o fantstico, imagens mticas e

    histricas, presente e passado. Na seleo do material literrio para a criao

    dos acontecimentos pelos atores e na sua estruturao em espetculo, foi

    utilizada a anlise da ao, que se constituiu num slido caminho para a

    organizao do vasto e complexo material produzido pelas improvisaes e

    pesquisa de campo, o qual teve o seu entrelaamento produzido nos mltiplos

    nveis da narrativa do espetculo.

    16

  • A montagem de Os Tambores Silenciosos, romance de Josu Guimares (1921-

    1986), em que, alm de atuar como assistente de direo, coordenei a equipe de

    dramaturgia, na adaptao do texto literrio para o teatral, que passava pelo

    processo de seleo de fragmentos e circunstncias da obra e que se concretizava

    em acontecimentos atravs de improvisaes, para serem estruturados no

    roteiro final.

    A Construo de uma Dramaturgia de Imagens a partir dos Poemas de Sam

    Shepard (1943- ), projeto em que realizei a anlise da ao dos poemas, a

    revelao de seus acontecimentos imersos na palavra potica, as circunstncias,

    a idia, o superobjetivo e a ao transversal. Esses elementos serviam de suporte

    para a criao, por meio da improvisao, na busca de imagens que revelassem o

    contedo atravs do potico, em que a palavra s podia surgir como resultado da

    ao concreta e podia ser usada em sua totalidade, em parte ou estar ausente.

    O projeto de pesquisa e criao do espetculo O Nariz, de Gogol, em que

    realizei a anlise geral da obra e de fragmentos do texto literrio, escolhidos

    pelo aluno, destacando que a anlise, sem perder a viso de totalidade da obra,

    estava na dependncia da escolha de cada fragmento, isto , o desenvolvimento

    dramtico era relativo ao momento do incio e do fim da parte selecionada.

    Essa escolha de fragmentos gerou inmeras anlises e processos de evoluo

    dramtica dos acontecimentos. As criaes individuais, em que todos os alunos

    tinham de dirigir um fragmento e tambm atuar em outros, possibilitaram vasto

    material criativo que passou por um processo de sistematizao e montagem

    resultando no espetculo.

    A participao, como co-orientadora, em projetos que aglutinavam algumas

    disciplinas afins, nos quais se propunha a criao, com base na aquisio de

    tcnicas e estilos especficos do Bufo, do Clown e da Comdia

    DellArte, contedos esses transmitidos pela professora doutora Ins Marocco,

    do departamento de Artes Cnicas, a qual os havia adquirido na Escola Jaques

    Lecoq, me levou a assumir a funo de responsvel pela anlise ativa do

    material textual. Atualmente a referida professora est lotada no Departamento

    de Arte Dramtica da UFRGS e atua na disciplina de Direo Teatral, na qual

    utiliza o mtodo de anlise ativa com seus alunos, adquirido atravs das

    experincias compartilhadas nos projetos.

    17

  • Nas disciplinas de Encenao, o conhecimento do mtodo para a anlise do

    material textual se dava na disciplina de Encenao III, a qual sempre esteve sob minha

    responsabilidade. Essa ordem do contedo, no processo de aquisio do conhecimento

    prtico-terico do mtodo, se dava por entendermos que o aluno j deveria ter passado

    pela experincia com as aes fsicas com objetos imaginrios e a criao do pequeno

    ncleo dramtico atravs de improvisaes. Essas improvisaes eram geradas a partir

    de temas oriundos de material ligado experincia pessoal do aluno, atravs do resgate

    de suas memrias. Esse material, proveniente da prpria vivncia, levava o aluno a

    mergulhar em suas razes e torn-las fonte de criao, na qual dava incio ao processo

    de individualidade artstica.

    Dentro desse processo evolutivo, j no terceiro semestre de encenao o recurso

    aplicado para a transmisso do mtodo sempre foi a utilizao de material literrio,

    essencialmente contos, por entendermos que esse recurso obriga o aluno a criar a partir

    de uma estrutura da ao possibilitada pela anlise e no a partir do texto dramtico,

    que j vem com o dilogo pronto. Esse procedimento, alm de afastar a tendncia

    ilustrativa do texto, fora tanto o diretor quanto o ator a entrarem no ncleo da obra e

    encontrarem solues individuais criativas na construo dos acontecimentos.

    Aps ter transmitido os elementos e princpios fundamentais do mtodo de

    anlise ativa atravs de um texto que eu considerava exemplar, didaticamente falando,

    cada aluno elegia um conto de sua preferncia, devendo justificar sua escolha, suas

    primeiras impresses sobre o mesmo e suas possibilidades cnicas. Esses aspectos

    passavam pela verificao da anlise da ao por mim junto com o coletivo, podendo

    ento iniciar-se o processo de criao. A disciplina tica e Esttica, tambm sob minha

    responsabilidade, que s iniciava nessa etapa dos estudos, tambm ajudava a

    estabelecer, atravs do estudo dos pesquisadores, diretores e diretores-pedagogos, os

    princpios ticos e estticos e os mtodos que regiam as prticas desses produtores da

    tradio teatral do sculo XX. Essas duas disciplinas se complementavam pois

    levavam a dimensionar a importncia da individualidade artstica e as tendncias de

    determinada esttica, como tambm possibilitavam obter a idia de conjunto da criao.

    A fonte de experincia prtica com o mtodo de anlise ativa mais significativa,

    alm da j mencionada, foi como orientadora da dramaturgia e/ou de espetculos,

    atravs da orientao e/ou coordenao de projetos finais de montagem, tanto de alunos

    de direo quanto de atuao. Foi utilizado o mtodo na criao de espetculos a partir

    dos mais diversos textos literrios ou de dramaturgia de autores clssicos, modernos e

    18

  • contemporneos. Citarei somente alguns autores para no me alongar demasiadamente

    em nessa exposio:

    Eurpedes - dramaturgia, Sfocles - dramaturgia, Jean Genet - dramaturgia e

    literatura, Beckett - dramaturgia e literatura, Nelson Rodrigues - dramaturgia, Plnio

    Marques - dramaturgia, Oscar Wilde - dramaturgia e literatura, Pirandello - dramaturgia

    e literatura, Ionesco - dramaturgia, Shakespeare - dramaturgia, Cervantes - dramaturgia

    e literatura, Clarice Lispector - literatura, Hilda Hilst - literatura, Guimares Rosa -

    literatura, Tchekhov - dramaturgia e literatura, Artaud - dramaturgia e literatura, Gogol -

    literatura, Cortazar - literatura, Jean Jarry - dramaturgia, A. Dumas Filho -

    dramaturgia, Ariano Suassuna dramaturgia, Edward Albee - dramaturgia, Kafka -

    literatura, Albert Camus - literatura, Arrabal - dramaturgia, Frederico Garcia Lorca -

    dramaturgia, Luis Fernando Verssimo - literatura, Buechner - dramaturgia, Brecht -

    dramaturgia, Calderon - dramaturgia, Peter Weiss - dramaturgia, Borges - literatura,

    Caio Fernando Abreu - literatura, Jean Cocteau - dramaturgia, Lya Luft - literatura,

    Ligya Fagundes Telles - literatura, Cleber Laguna - literatura e dramaturgia .

    Atualmente os professores, atores e diretores que concluram seus estudos

    universitrios no Departamento de Artes Cnicas da UFSM, entre 1987 a 2001, e de que

    tenho conhecimento, encontram-se atuando em escolas, em grupos de teatro

    independentes, em secretarias de cultura e tambm em universidades do pas como

    professores. Todos passaram pelo processo de conhecimento do mtodo em sua

    trajetria de formao. Uns o assimilaram com maior paixo e domnio do que outros,

    e a importncia que lhe atribuem, em seus trabalhos criativos ou pedaggicos, depende,

    sobretudo, da individualidade artstica e pessoal de cada um, que foge de meu alcance.

    Tenho acompanhado a trajetria de alguns atores e diretores que utilizam o

    sistema, mais especificamente o mtodo de anlise ativa, em seu trabalho criativo, e

    o consideram no s um meio para as suas produes artsticas mas tambm um

    princpio orientador geral de suas prticas artsticas. Tambm tenho conhecimento de

    inmeros alunos, que concluram, ingressaram ou esto ingressando em cursos de ps-

    graduao, em mestrado e doutorado, no pas e no exterior, alguns atuando em

    universidades com concluso de excelentes dissertaes e em processo de finalizao

    de teses de doutoramento. Em muitas dessas dissertaes e teses, os objetos de estudo

    esto ligados diretamente ao sistema de K. Stanislvski, enquanto outros, focalizam

    o ponto de vista dos seus discpulos.

    19

  • por essa formao e experincia aqui explicitadas que me sinto responsvel

    em sistematizar esse conhecimento como uma contribuio para a rea teatral.

    importante salientar que concretizei o projeto dessa tese em duas esferas, uma terica e

    uma prtica, sendo que, na segunda, foi realizada a montagem do espetculo A Dcil, de

    Dostoivski. Essa escolha, de realizar uma montagem, como parte do projeto, foi mais

    um desafio a que me propus, pois, apesar de ter trabalhado com textos de autores

    russos, sobretudo, Tchekhov, os quais somam mais do que dezenas, entre dramaturgia e

    literatura, foi a primeira vez que trabalhei com o nada convencional, mas cnico,

    Dostoivski.

    Entendo que o sistema de K. Stanislvski forma uma totalidade que abrange

    a teoria e a prtica da arte do diretor e do ator, tendo esse aspecto pautado a

    investigao e composio da tese, onde essas duas esferas foram realizadas ao abordar

    os problemas da cincia da arte teatral vinculados criao artstica. A profisso do

    diretor apresenta dois lados fundamentais, que procurei teorizar nos captulos I e II, um

    deles o de encontrar a chave para dar acesso idia da obra atravs da anlise da

    ao, e o outro o de conseguir concretiz-la cenicamente pela ao psicofsica do ator.

    O capitulo I tratar do mtodo da anlise ativa e da sua aplicao pelo diretor na

    leitura do texto, esclarecendo no que consiste esse mtodo. Nele esto expostos os

    processos de conhecimento da vida da obra, a criao do romance da vida das

    personagens. So desenvolvidos os elementos essenciais para a anlise da obra pelo

    diretor, como o superobjetivo, a linha transversal de ao, as circunstncias dadas. Esses so os elementos que possibilitam revelar a ao do texto, por meio da

    valorizao e da seleo de seus acontecimentos conflituosos gerados pelas

    circunstncias dadas. Segue-se a exposio de meu entendimento sobre o mtodo de

    anlise ativa, objeto desse estudo.

    O captulo II se compe de duas partes, sendo que, na primeira, so expostas as

    leis da criao cnica, como exigncia fundamental do sistema, na formao do ator

    criativo, para a utilizao do mtodo. O foco se d sobre os elementos do sistema para

    a arte do ator considerados essenciais, como concentrao, imaginao, o se mgico,

    f e sentido da verdade, relao, adaptao, liberdade muscular, tempo-ritmo. A

    segunda parte deste captulo ser acompanhada da traduo, direta do russo, de

    estenogramas das ltimas aulas-ensaios ministradas por K. Stanislvski sobre o novo

    20

  • mtodo, no Estdio de pera Dramtico, na anlise e criao do papel da pea Hamlet,

    de Shakespeare, juntamente com uma introduo aos mesmos.

    Completada a fundamentao terica e metodolgica sobre o recorte que fiz do

    sistema, na apresentao da anlise ativa e dos elementos do sistema que considero

    fundamentais para a criao por meio do mtodo, realizei, a segunda parte, que a

    prtica e se compes do III e IV captulos e parte final.

    O captulo III composto da anlise literria do texto Krtkaia (A Dcil), de

    Dostoivski, em que, primeiramente, foram abordadas as impresses sobre a novela.

    Nele tambm focalizaram-se alguns aspectos da imagem artstica na novela como:

    composio, personagens, tempo, espao, mentalidade dos heris e arqutipos. Essa

    investigao auxiliou na compreenso da vida da obra, de sua estrutura, das motivaes

    e origem dos conflitos de suas personagens, como tambm na concepo da encenao

    como um todo, na busca das imagens, signos e metforas concretas que possibilitaram

    expressar a idia do espetculo.

    O mtodo de anlise ativa foi aplicado, sobretudo, no captulo IV, por meio da

    adaptao do texto literrio, original, Krotkaia para a encenao do espetculo A Dcil.

    A anlise se d sobre o texto adaptado, seguindo a recomendao do mtodo, ou seja,

    primeiro em seus acontecimentos gerais, seguindo-se a anlise da ao detalhada de

    seus acontecimentos seqenciais. Na parte conclusiva da tese constam os procedimentos

    utilizados no processo de criao e as consideraes finais sobre as potencialidades do

    mtodo e do sistema, como um todo, para a leitura do Material textual e na criao

    do espetculo pelo diretor e ator .

    Devido abrangncia do sistema de K. Stanislvski, elegi os elementos que

    considero fundamentais para o desenvolvimento da tese, portanto, ao longo do texto,

    quando me refiro ao sistema, trata-se do recorte realizado para esse estudo.

    21

  • CAPTULO I

    O ESTUDO DOS PRINCPIOS DE DIREO CNICA NA LEITURA DO

    TEXTO A PARTIR DO MTODO DE ANLISE ATIVA

    O mtodo de anlise ativa se apresenta, para mim, como o mais completo meio de trabalho com o ator, nos dias de hoje; ele representa o coroamento de muitos anos de investigao de Stanislvski no domnio da metodologia.9

    No incio do sculo XX, as inquietaes sobre a especificidade artstica do

    teatro, a sua linguagem, expressaram preocupao de todos aqueles que se dedicaram

    seriamente a essa arte. K. Stanislvski se sobressai entre os artistas, pesquisadores e

    pedagogos que se dedicaram a encontrar uma espcie de gramtica que pudesse dar

    conta da complexidade da arte teatral e que, atravs dela, fosse possvel expressar a

    vida do esprito humano.

    As pesquisas desenvolvidas por ele durante toda a sua vida artstica, como

    diretor, ator e pedagogo, as quais originaram o seu sistema, culminaram no mtodo

    das aes fsicas. Como decorrncia deste, por meio de um processo constante de

    investigao, preocupado em captar o impulso de vida que originou a criao do autor,

    K. Stanislvski nos contempla com o mtodo de anlise ativa. O mtodo constitui-se

    num paradigma do diretor teatral para a anlise da obra do autor, atravs da ao, e

    um meio para o ator recriar, em seu sentido mais profundo, a atualidade da obra, dando

    origem ao espetculo.

    A anlise ativa consiste em um mtodo capaz de acionar o pensamento ativo e

    criativo do diretor e do ator, gerando um processo de conhecimento da estrutura da ao

    dramtica, que se complementa e concretiza na prtica atravs do processo de criao

    do ator, envolvendo todo o seu aparato psicofsico. Esse mtodo de investigao da

    obra, atravs da ao do ator e da sua estruturao pelo diretor, experimentado e

    desenvolvido pelo prprio K. Stanislvski em seus ltimos anos de existncia, continua

    a ser utilizado e em processo de desenvolvimento por seus discpulos diretos e indiretos,

    como tambm adotado por artistas do mundo todo que obtiveram conhecimento do

    mesmo. A eficcia do mtodo e sua flexibilidade tm possibilitado o desvelamento da

    9 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.235, v.1.

    22

  • estrutura da ao em diferentes materiais textuais, respeitando o significado mais

    profundo do texto, possibilitando, assim, uma criao original a partir da

    individualidade do diretor e do ator.

    A anlise ativa se coloca como um meio producente para o diretor conduzir o

    processo criativo atravs da ao, princpio primordial do teatro. A investigao da

    estrutura da ao, que se d na experimentao atravs da criao do ator, pode revelar

    o impulso primeiro que originou a obra, possibilitando, assim, alcanar nveis

    diferenciados entre texto e ao, que transcendem a mera ilustrao da palavra. A maior

    ou menor complexidade de compreenso da ao dependem da relao dialgica que se

    estabelece entre texto e sujeito que compreende e desvela a ao contida nele, por meio

    da vivncia.

    A investigao da ao do texto pelo mtodo de anlise ativa possibilita ao

    diretor introduzir o ator direta e imediatamente na atividade produtiva com seu corpo e

    sua mente, colocando-o como parte fundamental do processo criativo.

    A importncia atribuda ao resgate do sentido primeiro do texto de importncia

    fundamental para a criao teatral, pois nele que est contida a verdade que ainda

    pode nos encantar e revelar algo sobre nossa atualidade, vivenciada no aqui e no agora

    pelo ator. A arte verdadeira se caracteriza por ser portadora e geradora de vida por

    conter um impulso vital sempre renovado em cada sujeito-leitor-espectador. O teatro

    tem esse poder de renovao da vida a cada momento da apresentao de um

    espetculo. O espectador participa, por identificao, desse fenmeno vital, que

    alcanado quando o ator consegue a fuso orgnica do seu ser com a personagem e o

    poeta.

    A meta de K. Stanislvski, durante toda a sua vida, foi compreender e tornar

    consciente esse mistrio da criao, pois, para ele, a verdadeira arte deve ensinar

    como despertar conscientemente em si mesmo a natureza inconsciente, para a criao

    orgnica supra-consciente.10

    O sistema, resultado da investigao e inquietao de toda uma vida,

    complementa-se com a sistematizao do mtodo de anlise ativa, que contm em si o

    mtodo das aes fsicas. Este permanece em aberto como meio e possibilita chegar

    essncia da obra dramtica, ao ncleo que determina o sentido da criao, a ao e

    sua recriao pelo ator. Nesse processo promovido o desenvolvimento psicofsico

    10 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinni v 8 tomakh, 1954-1961. Moi jizn v isksstve (Minha vida na arte). Tomo 1. Moscou: Iskusstvo, 1954, p.406.

    23

  • integral do ator, em seu papel, resultando no espetculo, uma unidade da criao do

    autor, do diretor e do ator.

    Grotowski11 (1933-1998) assinala dois princpios nos quais fundamenta seu respeito por K. Stanislvski.

    O primeiro foi sua auto-reforma permanente, o seu contnuo submeter discusso o trabalho, as suas etapas precedentes.[...] O segundo motivo pelo qual respeito Stanislvski pelo seu esforo em pensar a base daquilo que prtico e concreto. Como tocar o que no tangvel? Quis encontrar as vias concretas sobre o que secreto, misterioso. No os meios, contra os quais lutava e chamava de padres, mas os caminhos.12

    K. Stanislvski, com o mtodo de anlise ativa, concretiza o ideal das buscas

    artsticas e metodolgicas de seu sistema, que sempre foi o de possibilitar a formao

    de um ator que ultrapassasse a mera interpretao de um texto, que participasse

    ativamente do processo de criao, sendo resgatada a sua individualidade como sujeito

    criativo, atravs de sua especificidade artstica.

    Tovstongov13 fala da evoluo constante que sofreu o sistema, o que

    testemunha no a contradio muitas vezes apontada, mas a coerncia de K.

    Stanislvski em seu processo de investigao, que se d na seguinte ordem: o

    pensamento como fator primordial do processo criativo, com o qual chegou ao subtexto;

    o monlogo interior, onde o carter humano se revelava principalmente atravs do

    intelecto. Como despertar no ator os sentimentos no processo de existncia cnica da

    personagem? Desde o incio, a emoo foi sempre algo derivado; o ator que confia na

    inspirao e no subconsciente da criao cai no clich; preciso confiar na evocao

    consciente, deliberada das emoes necessrias; o fator volitivo, a vontade, produz as

    emoes necessrias e leva a resultados corretos que correspondem aos conceitos de

    objetivo e ao total, que ainda hoje mantm validade.

    11 Jerzy Grotowski, polons, diretor e investigador de teatro. Influenciado pela tcnica das aes fsicas de Stanislvski, a biomecnica de Meyerhold e o teatro oriental. Dirigiu o teatro-laboratrio de Wrclaw, definido como teatro pobre e focado na relao ator/espectador. Em 1986 fundou o Centro de Pesquisa e Experimentao Teatral de Pontedera, na Itlia, onde em seu ltimo perodo buscou desenvolver prticas, tcnicas e metodologias criativas ligadas ao seu trabalho, chamado A arte como veculo, no qual investigava os processos ligados aos cantos antigos. 12 JIMENEZ, S. (org.) El Evanagelio de Stanislvski segun sus apostoles, los apcrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. Mxico: Gaceta, 1990, p.492. 13 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.236, v.1.

    24

  • Toda essa evoluo foi confirmada e comprovada por um processo criativo

    realizado nos estdios o qual levou K. Stanislvski a formular as leis da atuao cnica

    constantes de seu sistema. Todas essas verdades do sistema foram amplamente

    reconhecidas atravs da qualidade artstica dos atores e dos espetculos do TAM, nos

    quais, para a sua criao, na primeira etapa era utilizado o chamado ensaio de mesa,

    em que, por meio de uma cuidadosa anlise da idia, das personagens, dos objetivos e

    superobjetivo, compreendiam intelectualmente a obra, para s numa segunda etapa

    passarem para o espao cnico e atuarem. K. Stanislvski, sempre inquieto em relao

    aos resultados artsticos de suas investigaes, percebeu o papel preponderantemente

    ativo do diretor nesse processo da criao, enquanto que ao ator era relegada uma

    posio passiva. Constatado esse perigo, ele percebeu outro, que consistia no

    desenvolvimento no-integral do psicofsico do ator. Diz Tovstongov:

    A Stanislvski preocupou-lhe muito a falta de uma oportunidade para o desenvolvimento harmonioso, completo, de todo o aparato do ator, o psquico e o fsico, durante o processo de criao, tanto que se ps a revisar todo o seu sistema e, pouco antes de sua morte, desenvolveu um novo sistema, mais tarde recebendo o nome de mtodo de anlise ativa. Stanislvski chegou concluso de que somente a reao fsica do ator, a cadeia de suas aes fsicas, a ao fsica na cena estimulam a razo e a vontade, e evocam, em ltima instncia, tal emoo, o sentimento, graas ao qual existe o teatro. Havia descoberto finalmente o estmulo bsico no processo que conduziria o ator do consciente ao subconsciente.14

    Angel Ruggiero15 (1946-1992) tambm fala sobre as aparentes contradies no

    desenvolvimento do sistema, quando K. Stanislvski inverte o conceito crer para agir

    e o transforma em agir para crer, o que o leva a mudar os procedimentos dos ensaios.

    [...] Com relao anlise de mesa, Stanislvski no se contradisse. Simplesmente, descobriu que o momento de faz-lo devia ser outro. No no comeo do trabalho do ator, mas no momento adequado, depois que o ator, em temperatura, tivesse encontrado o essencial de sua personagem e das situaes. ento, que a anlise de mesa cobra importncia, e serve para que o ator aprofunde sua busca e no se paralise. Aqui, longe de encontrar uma contradio,

    14 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.237, v.1. 15 Angel Ruggiero, de origem argentina, exilado na Espanha, se formou com o diretor Raul Serrano em Buenos Aires. Realizou sua vida profissional como professor, ator e diretor em Madri. Vinculado ao teatro independente, foi um dos fundadores do grupo La Quarta Pared.

    25

  • encontramos uma reafirmao do conceito, porm uma modificao do uso no tempo do mesmo.16

    Ele conclui que, com essa mudana, K. Stanislvski mostra-nos a lei do

    desenvolvimento do processo criativo do ator, que a lei do desenvolvimento do objeto

    de sua investigao, a personagem. A importncia do mtodo enquanto atividade

    interativa e criativa do diretor e do ator no processo de criao do espetculo,

    confirmada pelos seus discpulos, que aplicaram o mtodo em suas inmeras criaes e

    no seu processo pedaggico.

    1. ELEMENTOS DO SISTEMA PARA A ANLISE DO TEXTO

    Antes de entrar nos procedimentos da anlise da obra, ser definida e esclarecida

    a terminologia de alguns elementos que a compem, como superobjetivo, linha

    transversal de ao e circunstncias dadas.

    Superobjetivo

    K. Stanislvski, em seu sistema, avaliou que as foras motrizes da vida

    psquica: mente, vontade e sentimento, possuem o poder de mobilizar todas as foras

    internas da criao, ou seja, ativam todos os elementos da ao, que conduzem para o

    cerne da obra, para o objetivo essencial do autor, do diretor e do ator. O objetivo

    principal do diretor e do ator, atravs do espetculo, transmitir todo o material

    espiritual que o autor reflete na obra, as idias, os sentimentos, os sonhos, as alegrias e

    as dores. Esse fim essencial, que levou o autor a escrever a obra, foi chamado de

    superobjetivo, e ele que movimenta todas as foras psquicas, elementos, aes e

    atitudes dos atores em suas personagens.

    Consideramos que o superobjetivo um dos elementos fundamentais do

    sistema para a atitude do diretor diante da anlise da obra, para a concretizao do

    espetculo e para o ator na criao do papel.

    G. Tovstongov considera que:

    A idia mais importante de todas no sistema de Stanislvski a do superobjetivo, tal como ele chamou o sentido principal de uma obra dramtica. No trabalho sobre o espetculo a principal

    16 REVISTA MSCARA. Stanislvski, Esse Desconocido. Ano 3, nmero 15. Mxico, D.F.: 1993, p.75.

    26

  • preocupao de Stanislvski era a de encontrar um verdadeiro e absorvente superobjetivo, que subordinasse a totalidade da montagem.17

    Salienta ainda que K. Stanislvski ampliou o conceito de superobjetivo com o

    de super-superobjetivo, o qual contempla a totalidade da vida do homem-artista, toda

    a atividade do autor, diretor e ator e possibilita ligar a individualidade artstica com os

    problemas de importncia fundamental na contemporaneidade, fazendo que autores

    clssicos tenham voz no mundo atual, unindo os pensamentos e os sentimentos dos

    autores, diretores, atores e do espectador num s impulso.

    K. Stanislvski18 fala desses vitais propsitos do artista e do ser humano, que

    podem ser chamados de objetivos supremos e de linhas supremas da ao. D um

    exemplo real de sua vida, que ilustra a origem do super-superobjetivo e da super-linha

    transversal de ao e como surgiu nele essa idia e necessidade como artista e

    cidado: ao ver uma multido que esperava numa fila durante toda noite, debaixo de

    neve, para comprar ingressos no dia seguinte, arriscando a sade e at a prpria vida, foi

    levado pelo desejo de criar um objetivo to elevado que contemplasse toda a sua vida

    como artista e homem, que correspondesse ao seu objetivo supremo na vida e ao seu

    cumprimento, a linha suprema de ao, os quais foram chamados por ele de super-

    superobjetivo e super-linha transversal de ao.

    O superobjetivo deve conter a idia do autor, que surge do seu contedo mais

    profundo, pressupondo um mergulho no universo espiritual do escritor, em suas idias,

    nos motivos impulsores de sua obra. O superobjetivo do autor a finalidade principal da

    obra. Por isso na sua definio deve estar contemplada a universalidade da mesma. O

    trabalho criativo do diretor e do ator, quer seja a partir de uma obra dramtica, quer

    literria ou de outro material textual, deve orientar-se pelo superobjetivo.

    Para Maria Knbel19 (1898-1985), a definio do superobjetivo a principal

    incumbncia dos diretores e atores para concretizar na cena as idias e sentimentos do

    dramaturgo, os quais o fizeram escrever a obra. Ele atrai para si todas as tarefas que

    17 TOVSTONGOV, G. A. Zrkalo Stsni (O espelho da cena). 2 volumes. Leningrado: Iskusstvo, 1980, p.40, v.1. 18 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinnii v 8 tomakh, 1954-1961. Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi v tvrtcheskom protssse perejivnia (O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo da criao da vivncia). Tomo 2, Moscou: Iskusstvo, 1954, p.341. 19 Maria Knbel, aluna de Stanislvski no 2 Estdio e atriz do TAM. Em 1936 foi convidada a trabalhar no Estdio de pera Dramtica. Pedagoga do GITIS (atual Academia Russa de Arte Teatral GITIS), diretora teatral e autora de inmeras obras sobre o sistema de Stanislvski.

    27

  • mobilizam as foras internas, como o intelecto, a vontade e o sentimento, e as externas,

    como as aes, as atitudes e os elementos sensoriais do ator para com o seu

    personagem. O que possibilita a realizao do superobjetivo da obra pelo ator o seu

    correto entendimento do papel.20

    K. Stanislvski, em toda a sua vasta obra, no cansou de reforar a importncia

    do superobjetivo no trabalho do ator, na criao do papel. Ele afirma que a mxima

    proposio dos grandes autores dramticos oferecer um objetivo emocional para o

    trabalho do ator que carregue todos os diversos elementos da obra e do papel: Tudo o

    que ocorre na obra, todas as tarefas isoladas grandes ou pequenas, todos os

    pensamentos e aes do artista relacionados com a criao e o papel tendem a

    concretizar o superobjetivo.21

    Para ele, a qualidade da obra e o poder de atrao do superobjetivo tornam a

    aspirao real, humana, ativa, como uma artria que alimenta todo o organismo do

    artista e da personagem.

    K. Stanislvski22 declara que o superobjetivo consciente imprescindvel.

    Aquele que nasce da emoo estimula toda a personalidade do artista, ele to

    necessrio como o alimento. E aquele que nasce da vontade essencial, pois arrasta

    todo o nosso ser fsico e espiritual.

    O superobjetivo para o papel deve vir do autor, mas deve ressoar na alma do

    ator. O superobjetivo gera desejo para a sua realizao, estimula a imaginao criativa,

    absorve nossa ateno, satisfaz o sentido da verdade, desperta a f e os demais

    elementos da atitude do ator. Deve ser fundido com a sensibilidade do ator, converter-se

    em algo prprio, encontrar a essncia interior do ator. O superobjetivo deve estar

    estreitamente unido ao plano do subconsciente.

    A busca do superobjetivo exige tempo, ateno e investigao profunda na obra

    do autor e deve repercutir no esprito do ator. Sobre essa lenta assimilao do

    superobjetivo por parte do ator, Nemirvitch-Dntchenko23 (1858-1943) diz que:

    20 KNBEL, M. O. El ltimo Stanislvski, Anlisis Activo de la Obra y el Papel. Madrid: Editorial Fundamentos, 1999, pp.51-53. 21 STANISLVSKI, K. Sobrnie sotchinnii v 8 tomakh, 1954-1961. Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi v tvrtcheskom protssse perejivnia (O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo da criao da vivncia). Tomo 2, Moscou: Iskusstvo, 1954, p.333. 22 Ibidem, p.334. 23 Vladimir I. Nemirvitch-Dntchenko, fundador do Teatro de Arte de Moscou, dramaturgo, pesquisador, pedagogo e diretor teatral.

    28

  • Uma semente ao cair na terra germina, porm ao preo de sua prpria decomposio, e exatamente o mesmo ocorre com a obra de um poeta ao penetrar na alma artstica, j que desperta sua criatividade, porm ao fazer isso morre dentro dela.24

    Como j foi dito, a definio do superobjetivo exige um difcil processo de

    investigao que mobiliza no s o intelecto, mas os sentimentos e a vontade do diretor

    e do ator, e K. Stanislvski determinou que fosse nomeado por um verbo de ao para

    reforar o mpeto de desejo ardente da criao. A preciso do nome, da ao que este

    encerra, depende da orientao e do enfoque da obra. A ampliao do superobjetivo, ou

    seja, a sua universalidade, no plano humano, social e filosfico d obra um contedo

    mais profundo.

    O superobjetivo universalizado amplia e aprofunda o sentido da obra. K.

    Stanislvski25d, entre outros, o exemplo do superobjetivo em Hamlet, que se for

    determinado assim: quero honrar a memria de meu pai tem a conotao de um

    drama familiar. Mas se for: quero conhecer o sentido da existncia, resulta numa

    tragdia mstica, na qual o homem que vislumbrou para alm da vida j no pode deixar

    de resolver essa questo. E acrescenta outro mais amplo: quero salvar a humanidade,

    que amplia e aprofunda ainda mais a tragdia.

    A eleio das palavras que nomeiam o superobjetivo de suma importncia para

    a arte e a tcnica do ator, e para a orientao do espetculo como um todo. A escolha

    errada pode levar o ator expresso de sentimentos, que o levam passividade e ao

    clich. So numerosos os exemplos extrados de sua experincia pessoal no papel que o

    mestre nos d desse perigo. Aqui citaremos o da obra Mirandolina de Goldoni (1707-

    1793), em que o superobjetivo da obra eleito foi: a dona de nossas vidas a mulher

    Mirandolina, a dona da pousada. Esse s foi formulado, mais corretamente, depois de

    ter sido corrigido o do papel, no qual K. Stanislvski representava o misgeno, pois

    tinha como superobjetivo: quero evitar s mulheres. Ao perceber a paralisia da

    pe