Cadeias Globais de Valor, Políticas Públicas e...

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Organizadores Ivan Tiago Machado Oliveira Flávio Lyrio Carneiro Edison Benedito da Silva Filho Cadeias Globais de Valor, Políticas Públicas e Desenvolvimento

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  • Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvim

    ento

    OrganizadoresIvan Tiago Machado OliveiraFlvio Lyrio CarneiroEdison Benedito da Silva Filho

    Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

  • Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    OrganizadoresIvan Tiago Machado OliveiraFlvio Lyrio CarneiroEdison Benedito da Silva Filho

  • Governo Federal

    Ministrio do Planejamento, Desenvolvimento e GestoMinistro Dyogo Henrique de Oliveira

    Fundao pblica vinculada ao Ministrio do Planejamento, Desenvolvimento e Gesto, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasileiros e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteErnesto Lozardo

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalRogrio Boueri Miranda

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaAlexandre de vila Gomide

    Diretor de Estudos e Polticas MacroeconmicasJos Ronaldo de Castro Souza Jnior

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas e AmbientaisAlexandre Xavier Ywata de Carvalho

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriais de Inovao e Infraestrutura, InterinoRogrio Boueri Miranda

    Diretora de Estudos e Polticas SociaisLenita Maria Turchi

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisSergio Augusto de Abreu e Lima Florencio Sobrinho

    Assessora-chefe de Imprensa e ComunicaoRegina Alvarez

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Braslia, 2017

    Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    OrganizadoresIvan Tiago Machado OliveiraFlvio Lyrio CarneiroEdison Benedito da Silva Filho

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2017

    Cadeias globais de valor, polticas pblicas e desenvolvimento / organizadores: Ivan Tiago Machado Oliveira, Flvio Lyrio Carneiro, Edison Benedito da Silva Filho. Braslia : Ipea, 2017.618 p. : il., grfs., mapas color.

    Inclui Bibliografia.ISBN: 978-85-7811-311-7

    1. Cadeia Global de Valor. 2. Setor Industrial. 3. Poltica Comercial. 4. Economia Internacional. 5. Desenvolvimento Econmico. 6. Polticas Pblicas. I. Oliveira, Ivan Tiago Machado. II. Carneiro, Flvio Lyrio. III. Silva Filho, Edison Benedito da. IV. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 338.4

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dosautores, noexprimindo, necessariamente, oponto de vista doInstituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou do Ministrio doPlanejamento, DesenvolvimentoeGesto.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nelecontidos, desdeque citada afonte. Reproduespara fins comerciais soproibidas.

  • SUMRIO

    APRESENTAO ......................................................................................................7

    PREFCIO .................................................................................................................9

    INTRODUO ........................................................................................................11

    PARTE I: CONCEITOS E ABORDAGENS

    CAPTULO 1CADEIAS GLOBAIS DE VALOR E IMPLICAES PARA A FORMULAO DE POLTICAS ....................................................................................17Pedro da Motta VeigaSandra Polnia Rios

    CAPTULO 2DIMENSES DA ABORDAGEM DA CADEIA GLOBAL DE VALOR: UPGRADING, GOVERNANA, POLTICAS GOVERNAMENTAIS E PROPRIEDADE INTELECTUAL ......................................................................................49Eduardo Costa PintoRonaldo FianiLudmila Macedo Corra

    CAPTULO 3FRAGMENTAO INTERNACIONAL DA PRODUO E CADEIAS GLOBAIS DE VALOR .....................................................................................87Flvio Lyrio Carneiro

    CAPTULO 4A EVOLUO DO VALOR ADICIONADO DOMSTICO NAS PRINCIPAIS REGIES DO MUNDO ..................................................................... 121Marcelo Jos Braga NonnenbergFlvio Lyrio Carneiro

    PARTE II: CADEIAS GLOBAIS DE VALOR E POLTICAS PBLICAS

    CAPTULO 5A DINMICA E O FUNCIONAMENTO DA CADEIA GLOBAL DE VALOR DA INDSTRIA AUTOMOBILSTICA NA ECONOMIA MUNDIAL ................................ 155Uallace Moreira Lima

    CAPTULO 6A INSERO DA COREIA DO SUL NA CADEIA GLOBAL AUTOMOBILSTICA: FOCO SOBRE AS POLTICAS PBLICAS ...................................................................... 207Uallace Moreira Lima

  • CAPTULO 7CADEIA GLOBAL DE VALOR DE COURO E CALADOS: PADRES DE INSERO DO BRASIL, DO MXICO E DE TAIWAN ............................ 269Synthia Kariny Silva de Santana

    CAPTULO 8CADEIA GLOBAL DE VALOR DE ELETRNICOS E A INSERO DO VIETN E DA MALSIA ................................................................ 297Eduardo Costa Pinto

    CAPTULO 9A PARTICIPAO DOS SERVIOS NAS CADEIAS GLOBAIS DE VALOR SELECIONADAS ......................................................................................... 351Rosana Curzel

    PARTE III: O BRASIL E AS CADEIAS GLOBAIS DE VALOR

    CAPTULO 10INSERO EM CADEIAS GLOBAIS DE VALOR E POLTICAS PBLICAS: O CASO DO BRASIL ..................................................................................................... 399Pedro da Motta Veiga Sandra Polnia Rios

    CAPTULO 11O IMPACTO DA RECONFIGURAO INTERNACIONAL DO MERCADO CALADISTA SOBRE O SEGMENTO BRASILEIRO DE COURO E CALADOS ............ 435Synthia Kariny Silva de Santana

    CAPTULO 12O BRASIL E A CADEIA AUTOMOBILSTICA: UMA AVALIAO DAS POLTICAS PBLICAS PARA MAIOR PRODUTIVIDADE E INTEGRAO INTERNACIONAL ENTRE OS ANOS 1990 E 2014 ........................... 451Uallace Moreira Lima

    CAPTULO 13CADEIAS DE VALOR BASEADAS EM RECURSOS NATURAIS: O CASO DO BRASIL ..................................................................................................... 545Pedro da Motta Veiga Sandra Polnia Rios

    CAPTULO 14A INSERO DO BRASIL NO COMRCIO INTERNACIONAL DE SERVIOS E SUAS RELAES COM CADEIAS GLOBAIS DE VALOR ........................................... 571Ivan Tiago Machado OliveiraCristina Fres de Borja ReisCarolina Dubeux Bloch

  • APRESENTAO

    A globalizao econmica e a interdependncia poltica so duas dimenses marcantes da ordem internacional nas trs ltimas dcadas. Esses dois fenmenos convergiram, no incio do sculo XXI, para a prevalncia de regimes polticos de ndole liberal e estratgias econmicas pautadas pela liberalizao comercial.

    Essa onda liberal vem sendo questionada nos ltimos anos, em consequncia dos efeitos negativos sobre o emprego industrial e do crescimento da desigualdade nos pases desenvolvidos. O corolrio poltico desses desequilbrios econmicos pde ser observado na recente emergncia do neopopulismo no ocidente, com a virada conservadora nos Estados Unidos e a vitria do Brexit no Reino Unido, o plebiscito que rejeitou a permanncia deste pas na Unio Europeia.

    Apesar dos obstculos e questionamentos polticos globalizao, no h evidncia de arrefecimento ou reverso de suas principais tendncias econmicas quais sejam, a fragmentao das cadeias produtivas, a integrao financeira dos pases e a relevncia cada vez maior do setor de servios no comrcio internacional. Estas tendncias concorrem para a consolidao do comrcio em torno dos padres de produo e consumo estabelecidos pelas chamadas cadeias globais de valor (CGVs) objeto do presente livro.

    A trajetria de insero econmica internacional do Brasil ao longo das ltimas dcadas foi marcada pelo modelo de substituio de importaes, no qual, em que pese os efeitos positivos sobre a diversificao de nosso parque industrial, pouca ateno foi dedicada eficincia produtiva domstica e competitividade das empresas nacionais no exterior. Esse modelo tambm foi replicado com maior ou menor nfase em vrias outras economias latino-americanas, com resultados igualmente desapontadores em termos de ganhos de produtividade. H hoje um consenso nesses pases de que somente a abertura econmica e a busca por novas oportunidades comerciais podem propiciar o necessrio ganho de eficincia e produtividade que lhes permita alcanar padres mais elevados e sustentveis de bem-estar social.

    Por seu turno, a anlise da experincia bem-sucedida das economias do Leste Asitico em alcanar a liderana produtiva em diversos segmentos industriais de elevada complexidade tecnolgica tambm revela a importncia de se conjugar o engajamento comercial com estratgias pragmticas e flexveis de poltica industrial. Muitas empresas desses pases encontram-se hoje em posies de liderana inconteste ou destaque cada vez maior nas CGVs, e o estudo de suas trajetrias de aprendizado e

  • conquista de novos mercados constitui uma referncia essencial para os formuladores de polticas pblicas dos pases em desenvolvimento.

    Este livro prope-se a qualificar e atualizar o debate sobre as caractersticas e a evoluo de algumas das principais CGVs do setor industrial e de servios, enfatizando os desafios e as oportunidades que se colocam s empresas brasileiras para melhorar seu padro de insero nessas cadeias produtivas. Trata-se, pois, de obra relevante e oportuna no esforo de se construir uma nova agenda de polticas voltadas ao aprofundamento da insero econmica internacional do Brasil, condio necessria para a promoo do desenvolvimento e a superao de nossas mazelas sociais.

    Boa leitura!

    Sergio Augusto de Abreu e Lima Florencio SobrinhoDiretor de Estudos e Relaes Econmicas

    e Polticas Internacionais do Ipea

  • PREFCIO

    Analistas dos mais variados matizes ideolgicos parecem concordar com ao menos uma opinio: a de que estaramos vivendo tempos singulares. Embora possa soar como mais um jargo, h razes para no negligenciarmos esse consenso. Afinal, estamos passando por transformaes econmicas sem precedentes.

    J se identificam megatendncias que muito provavelmente influenciaro o dia a dia das pessoas, dos negcios e da economia global e, entre elas, destaca-se a crescente interdependncia entre as economias.

    De fato, as economias esto cada vez mais interligadas por complexos e intrincados canais de transmisso que vo muito alm do simples fluxo de comrcio de bens. A alocao dos recursos e a formao de preos internos de bens e servios so cada vez mais influenciadas, direta ou indiretamente, por fatores econmicos, financeiros, polticos e regulatrios internacionais, e at mesmo as economias mais fechadas esto sujeitas quelas foras.

    Mas um dos aspectos mais marcantes dessa interdependncia a transformao do padro do comrcio que, cada vez mais, caracterizado pelo comrcio de bens e servios intermedirios em torno de sistemas produtivos fragmentados espalhados por todos os cantos do planeta. Trata-se daquilo que passou a ser conhecido como cadeias globais de valor (CGVs).

    As CGVs esto associadas s mudanas tecnolgicas, gerenciais, regulatrias e financeiras, mas, tambm, crescente consolidao dos mercados e ao protagonismo das empresas multinacionais na gesto da produo, na alocao de recursos e na geografia global dos investimentos.

    A interdependncia est nos ensinando que mudanas no padro de comrcio e na governana da produo no so neutras e tm repercusses importantes na competio, nas oportunidades de negcios, na gerao de emprego e renda, nas relaes econmicas entre pases, nas perspectivas de crescimento econmico das naes e at nos destinos da economia global.

    Tambm estamos aprendendo que, na era da globalizao da produo, o que importa cada vez mais no o participar, mas o como participar da economia global, e que custos de produo esto perdendo influncia como fator determinante de competitividade internacional.

  • 10 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    A essa altura, requerer um lugar ao sol tornou-se ainda mais desafiador do que o foi no passado recente e novas perguntas esto surgindo: que padro de crescimento perseguir? Qual insero internacional deve-se buscar? Quais so os requerimentos produtivos para se otimizar as chances de insero? Quais regras devem orientar as relaes econmicas entre pases e entre empresas?

    Este oportuno e mais que bem-vindo livro trata desses e de outros assuntos correlatos, com nfase no caso do Brasil.

    Oportuno, porque o Brasil est, finalmente, mostrando-se disposto a integrar-se mais economia global. O comrcio internacional e o investimento estrangeiro entraram na agenda das polticas pblica e privadas e tm sido considerados como um dos pilares da retomada do crescimento econmico e da promoo de um padro de crescimento mais sustentado. As discusses conceituais, de polticas pblicas, as comparaes internacionais e os estudos de caso deste livro so um material valioso e inspirador para os tomadores de opinio.

    Bem-vindo, porque os estudos deste livro so riqussimos e foram cuidadosamente desenvolvidos em linha com o que h de mais relevante na literatura internacional sobre CGV.

    Este livro aponta que o Brasil, uma das economias mais fechadas do mundo, est marginalizado nas CGVs e delas participa, notadamente, com commodities e outros bens de baixo valor adicionado, os quais tm nos custado muito em termos de perspectivas econmicas para as empresas e para o pas.

    No obstante os desafios, os autores so otimistas com dias melhores e com relao possibilidade de desenharmos polticas pblicas mais adequadas e promissoras.

    Este livro oferece alternativas para promover a insero do pas na economia global. As sugestes so qualificadas e do-nos esperanas de que podemos ser mais ambiciosos e fazer da insero internacional uma das molas propulsoras da nossa prosperidade.

    Desejo aos leitores uma proveitosa leitura e fao votos para que o conhecimento contido neste volume seja considerado em benefcio de todos ns.

    Jorge ArbacheSecretrio de Assuntos Internacionais do

    Ministrio do Planejamento, Desenvolvimento e Gesto

  • INTRODUO

    Tornou-se lugar-comum, nos ltimos anos, destacar a profunda crise pela qual vem passando a indstria brasileira, bem como ressaltar a necessidade de polticas pblicas destinadas a retomar a vitalidade da produo nacional. Muitas das propostas aventadas encontram eco no grandioso projeto de industrializao do pas, levado a cabo ao longo de boa parte do sculo XX e que tinha como meta a construo de cadeias produtivas integradas e como mito a assuno do produto genuinamente nacional, elaborado inteiramente em solo ptrio, como resultado de nosso esforo e engenho.

    Para um grande e crescente conjunto de setores e bens, contudo, falar em indstria nacional e atestar a nacionalidade de um produto tornou-se um anacronismo. Em vez de manter-se circunscrita s fronteiras de uma nao, a produo destes bens espraia-se por vrios pases, muitas vezes abrangendo vrias regies do globo. Cada etapa realizada onde quer que seja mais eficiente faz-lo, desde a concepo e o design, passando tanto pela produo de partes quanto de peas e componentes, at a montagem final e incluindo a todos os servios (financeiros, jurdicos ou de logstica, por exemplo) necessrios para seu funcionamento. Exemplos desse fenmeno abundam: de calados a smartphones; do setor automobilstico agroindstria.

    Como ficar claro nos captulos que se seguem, um conceito que norteia a anlise dessas transformaes e que assume papel fundamental neste livro o de cadeias globais de valor (CGVs), que busca captar o fato de que o conjunto de etapas ou atividades que compem um dado processo de produo de um bem ou servio pode ser fatiado e disperso ao redor do planeta: cada etapa realizada em um local diferente, muitas vezes por empresas diferentes, sob a coordenao de uma empresa-lder que detm o poder de comandar a governana de todo o processo.

    Evidentemente, a existncia de redes internacionais de produo no um fenmeno novo. No obstante, ao menos dois fatores distinguem o que vem ocorrendo nas ltimas dcadas. Em primeiro lugar, a escala na qual ocorre essa nova diviso internacional do trabalho no tem precedentes e reflete-se no crescimento vertiginoso do volume de comrcio internacional nas duas ltimas dcadas. Em segundo lugar e talvez ainda mais importante do ponto de vista conceitual est o fato de que a fragmentao internacional dos processos produtivos aprofundou-se, e, atualmente, tarefas muito especficas que at recentemente tinham que ser realizadas lado a lado podem ser relocalizadas e transferidas para lugares distantes uma da outra, graas a avanos tecnolgicos, logsticos e institucionais que permitem

  • 12 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    tanto transportar rapidamente o resultado de atividades intermedirias quanto coordenar remotamente todo o processo.

    O principal objetivo do projeto de pesquisa do qual resultou este livro chamar a ateno para tais transformaes e, especialmente, suas implicaes para a formulao e a conduo de polticas pblicas. O processo de fragmentao internacional da produo, que culmina na estruturao desta em CGVs, possui profundas implicaes sobre a capacidade de ao estatal com vistas ao desenvolvimento econmico e subverte boa parte dos instrumentos tradicionais de polticas comercial e industrial. Tudo isso cria a necessidade de se repensar e, caso oportuno, modificar a forma com que tais polticas so concebidas e implementadas no Brasil. Outras naes j vm realizando essa tarefa; a partir das experincias de alguns desses pases, este livro busca contribuir para esse debate, que, embora ainda incipiente, vem ganhando cada vez mais espao em nosso pas.

    A primeira parte deste livro tem por objetivo estabelecer as bases conceituais do debate. O primeiro captulo traa um panorama do processo de fragmentao da produo e da constituio das CGVs e apresenta, a partir da literatura dedicada ao assunto, os principais aspectos que norteiam a discusso do tema, bem como alguns conceitos que sero utilizados ao longo do restante do livro.

    O segundo captulo analisa as implicaes que o enfoque das CGVs representa para a formulao de polticas pblicas em pases em desenvolvimento. O captulo ressalta a importncia de se buscar uma distino entre polticas setoriais tradicionais e aquelas voltadas integrao bem-sucedida em cadeias de valor.

    O terceiro captulo concentra seu foco em trs conceitos centrais na anlise de CGVs: o upgrading (isto , a evoluo de uma firma ou pas que participa de uma CGV em direo a elos mais elevados ou nobres dentro da cadeia), a governana (a estrutura de relaes entre os participantes, que determina como funciona a cadeia) e o papel das polticas governamentais voltadas ao upgrading. O captulo analisa, ainda, o papel da proteo da propriedade intelectual na determinao das possibilidades de upgrading de pases em desenvolvimento.

    O quarto captulo busca avanar na anlise emprica do fenmeno, propondo e examinando um novo indicador destinado a captar a evoluo do contedo domstico embutido nas exportaes de um conjunto de produtos de alta e mdia tecnologias.

    A segunda parte do livro tem duplo enfoque: setorial e nacional. Os captulos que compem esta parte analisam experincias de pases selecionados, que enfrentaram o desafio de adaptar seu arcabouo de polticas pblicas para levar em conta a fragmentao internacional da produo e obtiveram algum grau de sucesso na integrao s CGVs em setores especficos.

  • 13Introduo

    Os dois primeiros captulos da segunda parte tm como tema o setor automobilstico. O quinto captulo apresenta a dinmica e o funcionamento da CGV deste setor, examinando a transio, desde meados da dcada de 1980, de indstrias nacionais localizadas em um nmero limitado de pases para uma indstria global mais integrada. O sexto captulo, por seu turno, analisa a insero da Coreia do Sul nessa cadeia, discutindo o papel das reformas econmicas levadas a cabo por esse pas no desenvolvimento do setor e sua integrao com o arcabouo produtivo global.

    O stimo captulo aborda a cadeia de produo de couro e calados, contrastando os padres de insero internacional distintos exibidos pelo Mxico, por Taiwan e pelo Brasil e analisando temas como as estruturas de governana e relaes entre os participantes em cada caso particular.

    O foco do oitavo captulo recai sobre a cadeia global de eletrnicos, apresentando sua evoluo e suas caractersticas, bem como analisando a insero do Vietn e da Malsia nessa cadeia, de modo a identificar os determinantes exgenos e endgenos desse processo e as diferenas nos atuais estgios de insero desses pases.

    O papel dos servios no funcionamento de processos produtivos estruturados em CGVs o objeto do nono captulo, que lana mo da base de dados desenvolvida conjuntamente pela Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) e pela Organizao Mundial do Comrcio (OMC) para calcular e analisar indicadores, tais como contedo domstico nas exportaes, valor adicionado de servios nas exportaes, participao do valor adicionado domstico incorporado na demanda final externa mundial, participao na CGV, nmero de estgios na produo e distncia demanda final.

    Por fim, a terceira parte do livro direciona o foco da anlise ao Brasil. A partir da discusso conceitual e dos estudos de caso de pases e setores apresentados nos captulos anteriores, procura-se agora examinar os desafios colocados ao pas por essa nova configurao da estrutura produtiva internacional. E, ainda, apontar como o Estado brasileiro, por meio de polticas pblicas, poderia influenciar esse processo de forma a integrar beneficamente o pas s redes internacionais de produo.

    O dcimo captulo analisa, de forma abrangente, as polticas comerciais e industriais brasileiras luz das concluses e recomendaes que o enfoque normativo das CGVs permite alcanar, bem como nota que, em grande medida, as polticas adotadas pelo pas no perodo recente parecem estar na direo contrria das prescries emanadas da literatura de CGVs.

    Os trs captulos seguintes estreitam o foco e examinam setores especficos. O dcimo primeiro captulo aborda o setor caladista brasileiro, analisando

  • 14 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    como o complexo coureiro-caladista posiciona-se no mercado global aps a reconfigurao internacional do mercado ocorrida ao longo da dcada de 1990. O setor automobilstico volta a ser o objeto no dcimo segundo captulo, que discute polticas setoriais, tais como o Regime Automotivo Brasileiro em 1996 e o Inovar Auto em 2012. O dcimo terceiro captulo, por sua vez, examina, para o caso brasileiro, a estrutura e a dinmica de duas cadeias de valor baseadas em recursos naturais a cadeia de carnes de frango e a de mveis de madeira.

    Finalmente, o dcimo quarto captulo analisa o papel que o comrcio de servios possui na insero do Brasil em CGVs e examina o perfil do comrcio de servios brasileiros, identificando alguns potenciais nichos de sofisticao de servios no pas, apresentando pontos de uma agenda de poltica para a qualificao da insero brasileira no comrcio internacional de servios.

    Ivan Tiago Machado OliveiraFlvio Lyrio Carneiro

    Edison Benedito da Silva FilhoOrganizadores

  • PARTE I:

    CONCEITOS E ABORDAGENS

  • CAPTULO 1

    CADEIAS GLOBAIS DE VALOR E IMPLICAES PARA A FORMULAO DE POLTICAS

    Pedro da Motta Veiga1

    Sandra Polnia Rios2

    1 INTRODUO

    O enfoque das cadeias globais de valor (CGVs), originalmente voltado para a anlise de relaes entre empresas operando em determinados setores ou linhas de produo, foi gradualmente expandido para a dimenso nacional, passando a informar a discusso de estratgias de insero internacional e de desenvolvimento. Desde meados dos anos 2000, crescente ateno vem sendo dada ao desenho de polticas mais adequadas para viabilizar a maior insero das economias em desenvolvimento nas CGVs.

    O interesse na formulao de polticas para insero em cadeias de valor estimulado pela hiptese de que a fragmentao internacional da produo abriria espao para que as pequenas economias capturem etapas ou tarefas produtivas especficas, viabilizando uma via rpida para a industrializao e o crescimento desses pases. Isso configuraria uma estratgia de industrializao combinada maior abertura da economia e insero internacional, em contraposio s polticas de substituio de importaes que buscavam promover a implantao de parques industriais integrados nas economias em desenvolvimento.

    Se essa hiptese encontra ampla aceitao para o caso das economias pequenas, ela enfrenta alguma contestao quando se trata de discutir os benefcios da inte-grao s cadeias internacionais de valor de economias em desenvolvimento com um grau intermedirio de industrializao e que j contam com parques industriais relativamente sofisticados e diversificados. Para os pases nessa situao, diversos analistas chamam a ateno para o fato de que a insero nas cadeias no uma panaceia e pode mesmo apresentar riscos, como o aumento da dependncia em relao s estratgias de empresas transnacionais lderes das cadeias, a especializao em etapas menos nobres das cadeias de valor etc. Nesse cenrio, adquire relevncia

    1. Diretor do Centro de Estudos de Integrao e Desenvolvimento (Cindes) e pesquisador-bolsista no Ipea. E-mail: .2. Diretora do Cindes e pesquisadora-bolsista no Ipea. E-mail: .

  • 18 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    a discusso das polticas pblicas capazes de maximizar benefcios e mitigar riscos da estratgia de conexo a cadeias de valor.

    O enfoque de CGVs leva, para as economias com estruturas produtivas mais diversificadas, discusso acerca do desenho de polticas que contribuam para aumentar a parcela de valor agregado capturado pela economia domstica. Ou seja, ganha espao a discusso de instrumentos de polticas industrial e comercial que fomentem a crescente internalizao ou captura pelas firmas do valor agregado gerado nas cadeias de valor. H aqui alguma ambiguidade em relao adoo de instrumentos de polticas que poderiam ser considerados como tpicos da abordagem de substituio de importaes.

    Este captulo tem o objetivo de avanar na compreenso das especifici-dades e dos dilemas que o enfoque das cadeias de valor traz para a formulao de polticas pblicas em pases em desenvolvimento. Ele est organizado em seis sees, incluindo esta introduo. A seo 2 traz uma descrio dos principais aspectos envolvidos no enfoque de cadeias de valor de produo relacionados dinmica da interao entre as firmas em um contexto de fragmentao internacional do processo produtivo. Discute tambm o peso da geografia na constituio de cadeias de valor, mostrando que esse um fenmeno mais regional do que global. A seo 3 apresenta, de forma estilizada, a evoluo dos estudos sobre cadeias de valor, que passam de uma abordagem centrada na dinmica das relaes entre as firmas nas cadeias a um enfoque nacional, desembocando na discusso de estratgias de insero internacional e de desenvolvimento dos pases. As duas sees seguintes tratam do desenho de polticas voltadas para a captura das oportunidades trazidas pelo fenmeno das cadeias de valor. Na seo 4 discute-se a dimenso comercial destas polticas, enquanto a seo 5 dedica-se ao debate sobre as polticas no comerciais e seus aspectos horizontais e setoriais. A anlise do debate sobre polticas voltadas para a integrao s cadeias de valor leva questo tratada na seo de consideraes finais (seo 6): em que medida a integrao deste enfoque s polticas pblicas requereria adaptaes ou revises nas estratgias nacionais de insero internacional das economias em desenvolvimento?

    2 AS CADEIAS INTERNACIONAIS DE VALOR: O MODELO DE ORGANIZAO INDUSTRIAL DA PRODUO GLOBALIZADA

    2.1 Origem e dinmica

    A formao de cadeias internacionais de valor tem sua origem em dois processos estreitamente inter-relacionados:

  • 19Cadeias Globais de Valor e Implicaes para a Formulao de Polticas

    de um lado, a fragmentao das atividades produtivas, de prestao de servios etc. relacionadas a uma determinada cadeia de valor e sua distribuio em diferentes pases e regies. Esse processo tornou-se possvel pelo desenvolvimento das tecnologias de informao e comunicao (TICs) e, em especial, pelas tecnologias de numerizao, que facilitaram a modularizao do desenho e da produo e pela acumulao de experincia em produo manufatureira nos pases em desenvolvimento. Essa foi uma condio necessria para que os pases em desenvolvimento absorvessem atividades e funes das cadeias antes concentradas em pases desenvolvidos;

    de outro, o desenvolvimento de diferentes modelos de coordenao da produo fragmentada, tambm possibilitada por avanos na tec-nologia de informao e conhecimento. Estes modelos distanciam-se, em muitos casos, do comrcio tradicional, em que os produtores vendem espontaneamente para compradores desconhecidos, e da integrao vertical das transnacionais das dcadas de 1960 e 1970, dando lugar a relaes de troca estruturadas (Altenburg, 2007) entre firmas de dife-rentes pases. As formas de coordenao exclusivamente por meio do mercado no desapareceram, mas a novidade o desenvolvimento de formas de organizao razoavelmente estveis entre as firmas, combinando, em distintos graus, componentes de hierarquia e de networking.

    O enfoque das CGVs toma como objeto central de anlise as relaes entre empresas de diferentes pases que participam de uma cadeia.3 Ao focar as relaes entre as empresas, busca-se entender as estruturas de governana destas cadeias, ou seja, quais as regras capazes de explicar como estas relaes so coordenadas, que atores na cadeia definem e implementam tais regras (e por meio de que meca-nismos o fazem) e de que forma essa distribuio de funes e de poderes afeta a repartio (ou a captura, na expresso de diversos autores) do valor produzido ao longo da cadeia entre as diferentes empresas que dela participam.

    Nessa viso,

    certos atores-chave, as firmas-lderes (...), tm a capacidade e o poder para definir e impor os parmetros dos contratos e subcontratos em sua cadeia de fornecimento. (...) Esse poder pode estar baseado na propriedade de marcas bem estabelecidas no mercado, de tecnologia proprietria ou na informao exclusiva acerca de diferentes mercados de produtos, o que permite firma atuar como um integrador de sistema (Altenburg, 2007).

    3. Utiliza-se aqui cadeias globais de valor (CGVs) e cadeias internacionais de valor de forma indiferenciada. A rigor, muitas cadeias de valor operam em escopo essencialmente regional, e no global.

  • 20 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    As competncias especficas das firmas-lderes do-lhes uma vantagem com-petitiva difcil de emular e permitem-lhes obter taxas de lucro acima da mdia. J as firmas subordinadas na cadeia ficam em posio negociadora mais fraca porque sua contribuio d-se em elos da cadeia em que as barreiras entrada de novos competidores so mais baixas, estando elas permanentemente sujeitas a serem substitudas como fornecedoras.

    Portanto, a posio de uma empresa na rede das relaes que compem uma cadeia de valor o que define os benefcios que esta retira de sua participa-o na cadeia. As firmas que detm posio central nas cadeias so aquelas que logram gerar e reter competncias e recursos que dificilmente sero replicados por seus competidores e que lhes permitem coordenar atividades e funes diversas, mas que concorrem para um mesmo objetivo.

    Gereffi, Humphrey e Sturgeon (2005) identificam diferentes modelos de governana das cadeias, relacionando-os a trs caractersticas: a complexidade das transaes dentro da cadeia; o grau de codificao potencial do conhecimento gerado e circulado dentro da cadeia; e a capacitao dos fornecedores.

    Em um extremo, a governana por meio do mercado teria maior probabili-dade de ocorrer quando as especificaes dos produtos so simples e codificveis, dificultando a acumulao de ativos especficos nas mos de algum ator na cadeia, e quando no h requisitos muito sofisticados de capacitao dos fornecedores. No extremo oposto, quando as especificaes de produto no podem ser codificadas, os produtos so complexos e muito custoso (e/ou arriscado) capacitar fornecedores, h grandes probabilidades de que a cadeia organize-se hierarquicamente a partir do princpio da integrao vertical.4

    As caractersticas que esto na origem dos modos de governana das cadeias e as combinaes entre estas caractersticas remetem, em boa medida, dimenso setorial espao em que se d a concorrncia entre empresas na produo de bens ou servios.

    Nesse sentido, as formas de governana variam de acordo com setores ou subsetores que tenham caractersticas econmicas e tecnolgicas razoavelmente homogneas. A referncia setorial (ou estrutural) , pois, muito relevante para a definio dos componentes de uma cadeia e de seu modelo de funcionamento e de governana.

    De fato, o prprio fenmeno da fragmentao internacional da produo, que est na origem da formao de cadeias de valor, observado principalmente em

    4. H diferentes tipologias de modelos de governana, que refletem a prpria evoluo da reflexo sobre o tema: em um primeiro momento, distingue-se entre buyers-driven e supply-driven chains para, mais tarde, evoluir em direo a uma tipologia mais sofisticada, que diferencia entre distintas formas de governana em rede (modular, relacional e cativa, esta ltima aproximando-se do modelo hierrquico de governana).

  • 21Cadeias Globais de Valor e Implicaes para a Formulao de Polticas

    certos setores industriais, em que as caractersticas tcnicas da produo permitem a modularizao e a separao do processo produtivo em etapas distintas no tempo e no espao. De acordo com Unctad (2013a),

    tradicionalmente, um nmero limitado de indstrias manufatureiras esteve na linha de frente da segmentao das cadeias de valor (fine-slicing das cadeias de valor) e das tendncias a ela associadas, tais como o outsourcing e o offshoring. As indstrias eletrnica e automotiva, em que os produtos podem ser divididos em componentes discretos que podem ser produzidos separadamente, facilmente transportveis e montados em localizaes de baixo custo, abriram o caminho no estabelecimento de cadeias globais de valor (Unctad, 2013a).

    Embora o enfoque de cadeias de valor privilegie a dimenso setorial na expli-cao de sua dinmica e das formas de governana, esta no a nica dimenso a moldar a estruturao da cadeia e seu modelo de governana. possvel encontrar diferentes formas de governana em cadeias pertencentes a um mesmo setor ou subsetor, e essa diversidade aponta para o fato de que as estratgias corpora-tivas tambm podem ter papel destacado, introduzindo, em um mesmo setor, diferentes padres de organizao e de governana.

    Berger (2006) radicaliza esse argumento e dedica boa parte de sua reflexo a analisar as experincias de empresas que, em um mesmo setor, organizaram suas cadeias de valor com base em modelos completamente distintos e lograram xito na competio internacional. Ou seja, no haveria uma cadeia de valor por setor, mas diversas e tantas quantas resultarem das estratgias das empresas-lderes no setor e da interao destas com outras firmas.

    O livro de Berger (2006) traz grande quantidade de exemplos de empresas que, atuando em um mesmo setor, adotaram com sucesso estratgias de governana de suas cadeias produtivas radicalmente diferentes entre elas. Alm de no ocorrer uma convergncia de estratgias empresariais e de modelos de governana de cadeias no nvel do setor, a diversidade de trajetrias seguidas pelas empresas tampouco poderia ser atribuda sua origem nacional. Em um mesmo setor, empresas de um mesmo pas optam por estratgias e modelos diversos de governana, embora a autora reconhea que certos traos dos modelos de capitalismo nacionais favoream o desenvolvimento de determinadas formas de governana das cadeias.

    Portanto, as estratgias das firmas-lderes (e, em certas circunstncias, tambm de certas firmas subordinadas) seriam, ao lado de caractersticas dos produtos e setores, variveis que condicionam de perto a ocorrncia de determinado modelo de governana das cadeias.

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    2.2 O peso da geografia: cadeias globais ou regionais?

    A geografia uma dimenso que no pode ser ignorada quando se trata de identificar polticas e estratgias pr-integrao a cadeias internacionais de valor. Enquanto a especializao e a possibilidade de fragmentao dependem das caractersticas setoriais, a deciso de localizao e distribuio geogrfica do processo produtivo influenciada no apenas pelos custos de produo e comrcio, mas tambm pelo tamanho do mercado local ou regional e por sua proximidade com mercados com consumidores de renda elevada (Unctad, 2013b). Estas caractersticas so relevantes para determinar tanto a dimenso domstica quanto a dimenso externa da poltica comercial associada participao em CGVs.

    As cadeias globais no so distribudas uniformemente pelo mundo. Diversos autores chamam a ateno para o fato de que as cadeias de valor so mais um fenmeno regional do que global. Baldwin (2012) afirma que todo o comrcio bastante regionalizado, mas o comrcio em cadeias de valor o ainda mais. Para o autor, trs caractersticas emergem da anlise da matriz de comrcio das cadeias de valor: i) as cadeias de valor no so globais, e sim regionais; ii) a matriz muito esparsa (poucos fluxos so relevantes em escala global); e iii) os Estados Unidos, a China, a Alemanha e o Japo dominam o comrcio das cadeias em mbito global.

    Estevadeordal, Blyde e Suominen (2013) mostram que, de fato, existe um grande vis regional na participao nas cadeias de valor. No mundo, cerca de metade do valor agregado estrangeiro tem origem em pases da mesma regio. Quando calculam o valor agregado estrangeiro nas exportaes de cada regio, os autores concluem que os pases da Europa so os que exibem o maior valor agregado estrangeiro, seguidos pela sia-Pacfico e pela Amrica do Norte. A Amrica Latina vem em ltimo lugar. Entretanto, para mostrar a importncia do vis regional na organizao das cadeias, os autores calculam a contribuio regional para o valor adicionado estrangeiro de cada regio e constatam que, na Europa, 51% do valor agregado estrangeiro tem origem na regio. Esses percentuais so de 47% na sia-Pacfico e de 43% na Amrica do Norte. J na Amrica Latina, a participao da regio no valor agregado estrangeiro de apenas 27%.

    Esse vis regional atribudo pelos autores aos custos de deslocamento e s polticas comerciais. Como consequncia de sua localizao e de suas opes de polticas comerciais, muitos pases em desenvolvimento, particularmente na frica e na Amrica Latina, permanecem margem do novo modo de organizao da produo internacional, com baixo grau de insero nas CGVs.

    Apesar do claro vis regional, existem cadeias organizadas realmente em mbito global, com firmas de diferentes regies do mundo interagindo entre si. Contudo, existe evidncia emprica de que a maior parte dos fluxos de comrcio das cadeias de valor est concentrada no mbito regional. Os custos de transporte

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    so a razo mais bvia para a regionalizao do comrcio nas cadeias de valor. Entretanto, como argumentam Estevadeordal, Blyde e Suominen (2013), muitas cadeias regionais esto intrinsicamente relacionadas a acordos comerciais entre pases vizinhos. Os autores citam diversos exemplos de cadeias de valor que foram impulsionadas pela negociao de acordos preferenciais entre pases de uma determinada regio.

    Os exemplos incluem a criao de uma cadeia de produo entre Estados Unidos e Canad no setor automotivo, aps a celebrao de um acordo bilateral especfico para o setor em 1965. A emergncia das cadeias de valor na sia coincide com a negociao de acordos restritos em termos temticos e nem sempre ambiciosos entre pases da regio. Os acordos firmados pelos pases asiticos caracterizam-se pelo pragmatismo e pela simplicidade e parecem ter sido moldados pelo interesse em facilitar a diviso do trabalho e a distribuio de tarefas entre pases vizinhos (Araujo Jr., 2012). Os graus de ambio, complexidade e alcance geogrfico de tais acordos vo avanando conforme a necessidade de expanso das cadeias locais de valor.

    A expanso da Unio Europeia para os pases do Leste Europeu tambm um bom exemplo de como os arranjos de poltica comercial propiciam um ambiente favorvel ao desenvolvimento de cadeias de valor. Segundo Curran e Zignago (2012), a adeso de pases do Leste Europeu Unio Europeia criou incentivos para a expanso de investimentos diretos de empresas do bloco original que integraram firmas dos novos membros s suas atividades produtivas.

    De acordo com Baldwin (2012), alm do carter marcadamente regional, as cadeias de valor tambm se caracterizam por relaes do tipo hub-and-spoke em torno dos quatro grandes gigantes da indstria mundial: Estados Unidos, Alemanha, China e Japo. Cada um desses pases exerce a funo de hub na organizao da fragmentao da produo com firmas de sua vizinhana geogrfica. A principal distino aqui se d em torno do que Baldwin chama de assimetria tecnolgica nas redes internacionais de produo entre as economias headquarter e as economias fbricas. As firmas nas economias headquarter coordenam as redes de produo direta ou indiretamente, enquanto as economias fbricas buscam atrair investimentos e empregos. A Coreia teria transitado de fbrica para headquarter.

    Esses dois componentes configuram um modelo em que as cadeias so eminentemente um fenmeno regional organizado em torno de pases que atuam como hubs, organizando a produo na regio. A maior regionalizao do comrcio nas cadeias de valor em comparao ao comrcio tradicional parece estar relacionada ao fato de que os fluxos de bens intermedirios so muito mais importantes e so mais sensveis distncia do que os fluxos dos bens finais nessa nova forma de organizao da produo. Baldwin (2012) argumenta que a principal mudana da nova onda de globalizao, com o compartilhamento do processo produtivo

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    entre pases desenvolvidos e em desenvolvimento, foi a transferncia de tecnologia e know-how. Portanto, a nova configurao um reflexo de um sistema de produo em que cresce o comrcio de produtos intermedirios e em que se intensifica a mobilidade de know-how.

    3 DAS ESTRATGIAS EMPRESARIAIS S POLTICAS PBLICAS

    Originalmente voltado para a anlise de relaes entre empresas dentro ou fora da moldura setorial, o enfoque das CGVs foi gradualmente expandido para a dimenso nacional, passando a informar a discusso de estratgias de insero internacional e de desenvolvimento.

    Em uma formulao bastante genrica, Gereffi, Humphrey e Sturgeon (2005) sugeriram que a evoluo da organizao industrial em escala global afeta no apenas as possibilidades das firmas e a estrutura das indstrias, mas tambm como e por que os pases avanam ou fracassam na economia global. Alm disso, formularam a expectativa de que o enfoque de cadeias pudesse ser til para a formulao de ferramentas polticas efetivas relacionadas ao upgrading industrial, ao desenvolvimento econmico, criao de emprego e reduo da pobreza (op. cit.).

    Dos primeiros trabalhos sobre cadeias internacionais de valor, na dcada de 1990, at recentemente, a interseo entre esse tema e a questo do desenvol-vimento econmico (em mbito nacional) dava-se em torno da ideia de upgrading nas cadeias das empresas baseadas em pases em desenvolvimento (tema que ser discutido na seo seguinte).

    As recomendaes de poltica que derivavam dessas anlises aproximam-se bastante das que emergem da literatura sobre capacitao de pequenas empresas e sobre desenvolvimento local e clustering de empresas. Um bom exemplo fornecido por Pietrobelli e Rabelotti (2006), que reuniram um conjunto de trabalhos nos quais se discute de que forma clusters de pequenas e mdias empresas latino-americanas e as economias de que fazem parte podem beneficiar-se da participao em cadeias internacionais de valor, que fatores dificultam ou, ao contrrio, facilitam essa participao etc. Para que o benefcio ocorra, as firmas necessitariam no apenas se inserir em cadeias de valor, mas ser capazes de evoluir dentro delas em direo a processos de fabricao mais eficientes, elaborao de produtos de maior valor unitrio e a funes mais valorizadas e menos vulnerveis na cadeia.

    A partir da avaliao dos processos de upgrading em curso entre as empresas desses clusters, os autores formulam propostas de poltica que enfatizam as relaes de cooperao e competio entre as empresas dos clusters. Os impactos espe-rados das polticas recomendadas ocorrem no mbito geogrfico e setorial dos clusters, ficando em segundo plano as relaes entre estes e o resto da economia de que fazem parte.

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    Portanto, as principais implicaes de poltica identificadas pela literatura das cadeias de valor at recentemente referiam-se capacitao das empresas e oferta, por meio de polticas pblicas, de condies favorveis para que estas se beneficiem de sua participao nas cadeias. H uma srie de recomendaes de polticas de corte horizontal, mas h tambm sugestes moldadas para caractersticas setoriais.5 Nesse perodo, as implicaes do fenmeno das cadeias internacionais de valor para as polticas nacionais de comrcio no constituam um foco relevante das anlises.

    Mais recentemente, no entanto, o enfoque das cadeias internacionais de valor ganhou novo flego pelas mos de instituies internacionais, como a Organizao Mundial do Comrcio (OMC), a Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE), a Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento (Unctad, do ingls United Nations Conference on Trade and Development) e o Banco Mundial. Estas investiram pesadamente nos embasamentos terico e emprico do argumento de que as cadeias internacionais de valor constituem, na atualidade e, presumivelmente, mais ainda no futuro o modelo dominante de organizao da produo industrial e de articulao entre diferentes setores (especialmente entre a indstria e os servios).

    As cadeias internacionais de valor teriam se tornado, nessa viso, o principal modelo de organizao internacional da produo, e ao seu funcionamento as polticas nacionais deveriam se adaptar, se os pases pretendessem se beneficiar da expanso global do fenmeno. O principal vetor desta adaptao seriam as polticas nacionais de comrcio.

    Ao apontar que os impactos econmicos das barreiras ao comrcio crescem com a difuso internacional da produo segmentada verticalmente em funo dos mltiplos cruzamentos de fronteiras requeridos para produzir um bem final e ao sugerir que, na lgica do funcionamento das cadeias, barreiras s importaes impactam negativamente exportaes, o argumento foi instrumentalizado como uma crtica ao protecionismo comercial e razo mercantilista dominante nas polticas nacionais de comrcio.

    Nesse contexto, o enfoque das cadeias internacionais de valor passou a orientar a produo de vasta literatura, originada naquelas instituies e voltada para as implicaes de poltica comercial derivadas do fato de que a organizao da produo baseia-se, cada vez mais, na lgica de cadeias internacionais de valor.

    5. Pietrobelli e Rabelotti (2006) associam diferentes padres de aprendizado e upgrading a grupos de setores definidos por intensidade de fatores, recorrendo taxonomia de Pavitt. No caso dos setores baseados em recursos naturais, por exemplo, o upgrading de produto e de processo estaria fortemente vinculado ao avano da cincia e da tecnologia em indstrias conexas (op. cit.), como a qumica (em sentido amplo) e a de mquinas e equipamentos. A articulao entre produtores dos setores baseados em recursos naturais e as fontes de inovao externas a tais setores podem ocorrer sob coordenao das empresas produtoras de bens baseados em recursos naturais.

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    No havia a qualquer referncia a polticas domsticas exceto a comercial capazes de contribuir para o objetivo de conectar economias em desenvolvimento a cadeias de valor.

    Essa conexo percebida nessa literatura, em geral, como um benefcio em si, especialmente mas no apenas para economias pequenas e pases menos desenvolvidos. A hiptese aqui que as cadeias poderiam constituir algo como uma via rpida para a industrializao e o crescimento de pequenas economias.

    Nessa hiptese, a fragmentao internacional da produo abriria espao para que pequenas economias capturem etapas ou tarefas produtivas especficas. Isso configuraria uma estratgia de industrializao certamente menos ambiciosa mas mais vivel para pequenas economias do que a propugnada pela substituio de importaes e pelo objetivo de montar um parque industrial integrado.

    A avaliao da conexo a cadeias internacionais de valor como um benefcio em si aparece em Unctad (2013a), que estabelece associao estatstica entre participao em cadeias e crescimento econmico:

    a experincia dos ltimos 20 anos mostra que, na medida em que os pases aumentam sua participao nas cadeias globais de valor, suas taxas de crescimento tendem a crescer tambm. Uma anlise estatstica correlacionando a participao em cadeias globais de valor e taxas de crescimento do PIB per capita mostra uma relao signi-ficante e positiva, tanto para economias desenvolvidas quanto para economias em desenvolvimento (Unctad, 2013a).

    O foco exclusivo nas polticas comerciais e na agenda de liberalizao dos regimes de comrcio e investimento como instrumentos de adequao realidade de uma globalizao conduzida pela fragmentao internacional da produo recebeu crticas de autores defensores de uma viso desenvolvimentista (Milberg, 2013; Dalle, Fossati e Lavopa, 2013).

    Antes mesmo da redescoberta das cadeias de valor pelas instituies inter-nacionais, Kosacoff, Lopez e Pedrazzoli (2007) argumentaram que participar de CGVs no uma panaceia. Isso porque a apropriao dos benefcios potenciais da participao em uma cadeia dependeria de aes e de polticas principalmente domsticas que estimulem o desenvolvimento de capacitaes que favoream o upgrading de firmas locais e permitam que elas efetivamente absorvam aqueles benefcios potenciais, desenvolvam estratgias associadas a diferentes cadeias de valor etc. De certa forma, esse tipo de viso resgata preocupaes dos estudos fundadores da teoria das cadeias de valor e a agenda de autores classificados por Dalle, Fossati e Lavopa (2013) como neoschumpeterianos.

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    O argumento de que a conexo a cadeias de valor constitui em si mesmo uma fonte de benefcios para a economia parece plausvel quando se trata de pases com economias pouco desenvolvidas e estruturas produtivas extremamente simplrias.

    De acordo com Unctad (2013a), para a maioria de pequenas economias em desenvolvimento com dotao limitada de recursos, h frequentemente poucas alternativas s estratgias de desenvolvimento que incorporam em alguma medida a participao em cadeias globais de valor.

    Nesse caso, a conexo tem grande probabilidade de gerar externalidades positivas em termos de criao de alguma capacidade industrial, de modernizao de mtodos de gesto e de diversificao dos canais de articulao com a economia internacional. Ou seja, dependendo do ponto de partida da economia nacional, a mera conexo a cadeias de valor pode ter efeitos positivos sobre ela.6

    No entanto, quando a economia j alcanou algum grau de industrializao e tem canais razoavelmente slidos e diversificados de articulao com o mundo, a simples conexo a cadeias de valor pode gerar benefcios, mas tambm pode ter custos. Nesse cenrio que ganha sentido o argumento de que a conexo a cadeias de valor no suficiente e que adquire relevncia a discusso das polticas pblicas capazes de maximizar benefcios e mitigar riscos da estratgia de conexo a cadeias de valor.7

    Na realidade, a discusso sobre polticas industriais e outras polticas doms-ticas no comerciais ganha sentido, no debate das cadeias de valor, quando o sinal positivo atribudo simples conexo da economia nacional s cadeias de valor questionado. De acordo com Unctad (2013a), a gerao dos benefcios potenciais das cadeias globais de valor para o desenvolvimento em particular a disseminao de tecnologia, a construo de capacidades e o upgrading no automtica.

    4 AS POLTICAS COMERCIAIS PARA A INTEGRAO S CADEIAS DE VALOR

    A literatura dedicada discusso das implicaes da organizao da produo em CGVs sobre o desenho de polticas comerciais ganhou mpeto a partir de 2012 e foi, em boa medida, promovida pelas organizaes multilaterais preocupadas

    6. Alm de apontar para o dinamismo das cadeias de valor e as oportunidades que ele abre para a indstria de pases em desenvolvimento, Ernst (2003) sugere que a integrao em cadeias de valor pode suprir carncias domsticas. Entre estas, encontrar-se-iam a falta de uma base de conhecimento e de capacitaes no plano domstico, especialmente para as economias de pequenos pases e/ou pouco diversificadas.7. Entre os riscos apontados por Unctad (2013a), so citados a excessiva dependncia de um pas em relao a estratgias de empresas transnacionais lderes das cadeias, o excessivo poder de mercado destas e a possibilidade de que empresas locais fiquem congeladas em posies subalternas das cadeias. Alm disso, a localizao de tarefas e atividades dentro de cadeias globais de valor (...) pode ser deslocada ao longo das redes de produo internacional das empresas transnacionais (...), causando desarranjos nos processos de upgrading industrial e impactos sociais negativos.

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    com a evoluo do protecionismo ps-crise de 2008 e com as dificuldades em fazer avanar as negociaes da Rodada Doha da OMC.

    nesse ambiente que, em um esforo conjunto, a OECD e a OMC cons-troem uma nova base de dados que apresenta os fluxos de comrcio com base no valor adicionado: trade in value-added (TiVA).8 O que se procura aqui estimar o valor adicionado na produo de bens e servios para a exportao e a importao por pas e setor de atividade. Essas organizaes argumentam que essa nova forma de medir os fluxos de comrcio importante porque a forma tradicional implica mltipla contagem, j que, a cada vez que fluxos de bens e servios cruzam fronteiras, eles so computados no valor do comrcio, e isso leva a uma superestimativa da importncia das exportaes para o produto interno bruto (PIB) dos pases. Mais do que isso, na forma tradicional de medir os fluxos de comrcio, as importaes tm uma conotao negativa e no revelam a importncia que os insumos importados tm para o desempenho das exportaes de um pas.

    Outro tema relevante que emerge dessa nova forma de medir os fluxos de comrcio a importncia dos servios para o comrcio de bens. Enquanto os servios representam cerca de 20% do comrcio total, sua participao dobra quando se considera sua contribuio para o valor adicionado comercializado internacionalmente. O reconhecimento do papel relevante dos servios para os fluxos do comrcio de bens refora os argumentos em favor da liberalizao do comrcio de servios como forma de reduzir seus custos e impulsionar a integrao dos pases s cadeias de valor.

    A nova forma de medir os fluxos de comrcio tem impacto sobre os saldos do comrcio bilateral entre os quarenta pases inicialmente includos na nova base de dados. Nessa metodologia, os pases que tm sua produo concentrada no final das cadeias produtivas tero tipicamente superavit menores com os seus mercados diretos de exportao. Ao mesmo tempo, tero menores deficit com seus principais fornecedores.

    Nas palavras de Pascal Lamy, ento diretor-geral da OMC, no lanamento da base de dados em maio de 2013:

    isso tem implicaes importantes para a forma como devemos entender a poltica comercial de hoje. A percepo de que as importaes de um pas so boas para as suas exportaes muda o que os negociadores comerciais chamam de interesses defensivos e tambm como eles avaliam os custos e benefcios da adoo de medidas de compensao comercial. Ainda, ela pode mudar a relevncia do bom e antigo princpio da reciprocidade.

    8. Mais informaes em: . Acesso em: 22 ago. 2017.

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    (...) Como muitos de vocs j sabem, desequilbrios politicamente relevantes, a exemplo do deficit comercial dos Estados Unidos em relao China, so reduzidos em mais de 30% quando o comrcio medido, como deve ser, em valor agregado, e no em comercial bruto valor. Mais uma vez, as boas estatsticas comerciais podem fornecer uma base slida para boas polticas comerciais e macroeconmicas, e para bons debates pblicos necessrios para apoiar as escolhas polticas, que podem ajudar a colocar as negociaes comerciais multilaterais no contexto certo. As polticas uni-laterais, o que os cientistas polticos chamam de polticas de empobrecer o vizinho, tero srias consequncias negativas no s para os vizinhos, mas tambm para prprio o pas tomador dessas medidas.

    Graas ao novo conjunto de dados divulgado hoje, espero que os analistas e os formuladores de polticas pblicas tenham uma melhor percepo dessas interde-pendncias. (...) Creio que, com os nossos esforos conjuntos, melhores estatsticas hoje contribuiro para melhorar as polticas no futuro. Em suma, transformando nmeros comerciais em inteligncia comercial (Lamy..., 2013, traduo dos autores).9

    Enquanto a nova base de dados era construda, diversos estudos e artigos eram elaborados com o apoio das organizaes multilaterais alm da OMC e da OCDE, a Unctad, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tambm se destacam. Esses estudos, que comeam a ser divulgados ainda em 2012, buscam avanar em recomendaes de polticas comerciais mais adequadas promoo da participao dos pases nas CGVs.

    De acordo com a Unctad (2013b), as polticas comerciais afetam a inte-grao de firmas domsticas s cadeias de valor de duas formas principais: i) polticas comerciais podem aumentar os custos de comrcio: tarifas elevadas para produtos intermedirios fazem com que os pases tornem-se menos atraentes para os investimentos estrangeiros e para a localizao de etapas do processo produtivo; e ii) condies desfavorveis de acesso a determinados mercados relevantes colocam as empresas montadoras de um pas em condies desfavorveis em relao a concorrentes que gozem de preferncias no acesso a estes mercados.

    Embora a reduo ou a eliminao de tarifas continue ocupando o centro das atenes quando se trata de debater polticas comerciais adequadas para a

    9. This has important implications for how we should understand todays trade policy. Realizing that imports of a country are good for its exports changes what trade negotiators call defensive interests and also how they evaluate the cost/benefit balance of adopting trade remedy measures. Furthermore, they may change the relevance of the good old reciprocity principle. (...) As many of you already know, such politically relevant imbalances like the US trade deficit with respect to China are reduced by more than 30 per cent when trade is measured, as it should be, in value-added and not in gross commercial value. Once again, good trade statistics can provide a sound basis for good trade and macroeconomic policies, for good public debates that need to underpin policy choices, and it can help put multilateral trade negotiations in the right context.Individualistic policies, what political scientists call beggar your neighbour policies, are bound to have serious negative consequences not only for the neighbours, but for the country taking the measures itself. Thanks to the new set of data released today, I hope that analysts and policy makers will have a better perception of these interdependencies. (...) I believe that, with our joint efforts, better statistics today will contribute to better policies tomorrow. In sum, turning trade numbers into trade intelligence (Lamy..., 2013).

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    promoo da integrao dos pases s cadeias de valor, as barreiras no tarifrias e as questes regulatrias vm ganhando espao crescente no desenho de polticas. Dado o nvel j relativamente reduzido das tarifas mdias aplicadas, os ganhos adicionais em termos de gerao de comrcio resultantes de redues adicionais de tarifas de importaes tendem a ser pequenos. Estimativas da UCNTAD mostram que uma melhoria significativa no ambiente de negcios produziria efeitos muito mais positivos em termos de crescimento do comrcio de produtos intermedirios, particularmente nos pases de rendas mdia e baixa.

    Os movimentos de fragmentao da produo e de formao de cadeias de valor observados a partir do incio da dcada de 1990 estimularam reformas nas polticas comerciais de muitos pases em desenvolvimento que combinam: i) reduo unilateral de tarifas; ii) assinatura de acordos de proteo de investimentos; iii) negociao de acordos preferenciais de comrcio de escopo abrangente e disci-plinas exigentes em reas como propriedade intelectual, poltica da concorrncia, movimento de capitais etc. (Baldwin, 2012).

    Essas reformas so resultado de uma nova economia poltica da poltica comercial, com elementos de demanda e oferta de liberalizao. Pelo lado da oferta esto os pases em desenvolvimento buscando encurtar o caminho para a industrializao pela via da integrao s cadeias de valor. Pelo lado da demanda esto as empresas dos pases desenvolvidos que exigem convergncia de regras, previsibilidade e garantias para transferir o know-how e combinar tecnologia com mo de obra barata nos pases em desenvolvimento.

    Os diversos documentos e estudos divulgados recentemente classificam de maneiras variadas os componentes do que seria uma poltica comercial conducente integrao nas cadeias de valor. Optou-se aqui pela seguinte organizao destes componentes: i) medidas tarifrias; ii) medidas no tarifrias; iii) liberalizao de servios; iv) acordos preferenciais de comrcio; e v) negociaes multilaterais.

    4.1 Medidas tarifrias

    A anlise de cadeias de valor sugere que as barreiras tarifrias ainda tm um peso no desprezvel. Embora as tarifas nominais tenham se reduzido de forma signifi-cativa nas ltimas dcadas, os efeitos da proteo tarifria sobre a competitividade acumulam-se nas CGVs. Os custos da proteo so magnificados, uma vez que os produtos intermedirios cruzam as fronteiras e pagam impostos de importao muitas vezes antes de se transformarem em bens finais e serem exportados para o seu destino final. O efeito cumulativo das tarifas pode elevar significativamente os preos dos bens finais. Isso significa que mesmo tarifas de pequena magnitude podem desencorajar o outsourcing no exterior e o desenvolvimento das cadeias de valor. Clculo feito pela OECD (2013) com base em metodologia desenvolvida

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    por Koopman, Powers e Wei (2010) mostra que, considerando informaes de 2009, a tarifa mdia que incide sobre o valor adicionado das exportaes de manufaturados 17% na China, 11% no Vietn e 5% no Chile, enquanto as tarifas nominais correspondentes so 4%, 6% e 1%, respectivamente.

    Outra questo relevante para a discusso de polticas tarifrias relacionadas a cadeias de valor a estrutura da proteo adotada pelos pases. A Unctad (2013b) chama a ateno para o fato de que a poltica comercial , em muitos casos, orientada para proteger os bens finais mais do que os bens intermedirios, o que estimula que a localizao das ltimas etapas da cadeia de produo concentre-se nas economias com grandes mercados consumidores ou em pases que gozem de acesso preferencial a estes mercados. A escalada tarifria, caracterizada por tarifas mais elevadas medida que se avana a jusante na cadeia produtiva, domina, em muitos pases, a estrutura tarifria da maioria dos setores.

    O impacto negativo da imposio de tarifas nas importaes de bens inter-medirios mais negativo quanto mais intensa for a participao de um pas na produo e na exportao de produtos nas etapas finais das cadeias de produo. Portanto, quanto mais a jusante na cadeia produtiva, mais as barreiras s importa-es de produtos intermedirios prejudicam a competitividade das exportaes do prprio pas. Entretanto, quanto mais a montante estiver um pas localizado nas cadeias, maior o nus indireto para seus exportadores, resultante da imposio de barreiras s importaes de produtos acabados ou semiacabados.

    A questo do impacto das tarifas sobre produtos intermedirios na compe-titividade das exportaes tem sido contornada, em muitos pases, pelo recurso criao de zonas de processamento de exportaes (ZPEs) e de regimes de drawback, que isentam as firmas exportadoras do pagamento de tributos sobre os insumos importados. Embora esses esquemas contribuam para a reduo dos custos de produo resultantes da proteo indstria local, eles no eliminam completamente tais custos. Os benefcios concedidos pelas ZPEs esto confinados, por definio, a determinadas zonas geogrficas e, portanto, a um nmero limitado de empresas. J o drawback um instrumento de maior abrangncia. Entretanto, frequente-mente estes regimes impem s firmas procedimentos burocrticos complexos e custosos para a comprovao de que os insumos foram de fato utilizados no processo produtivo de bens exportados, dificultando sua utilizao por empresas de menor porte (OECD, 2013).

    Para reduzir os impactos negativos da proteo sobre a competitividade, diversos pases vm optando por reduzir a proteo sobre produtos intermedirios e bens de capital. A Unctad (2013b) mostra que a mdia das tarifas que incidem sobre bens finais de 4,3%, enquanto para os bens intermedirios a mdia de 2,2%.

  • 32 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    A escalada tarifria resultante dessa estratgia atrai os investimentos voltados para a montagem de bens finais e desestimula a integrao vertical da produo domstica.

    De acordo com a OECD (2013),

    enquanto a remoo das tarifas sobre produtos intermedirios e bens de capital e a sua manuteno sobre bens finais era vista no passado essencialmente como uma estratgia protecionista de escalada tarifria para a concorrncia vertical de produtos, a situao diferente em um mundo onde, na maioria dos pases, os manufaturados tm tarifas muito baixas e onde a concorrncia se d na produo e acesso a insumos especializados (OECD, 2013).

    Na realidade, a lgica das cadeias de valor produz argumentos favorveis ao aumento da escalada tarifria por meio da reduo das tarifas de bens intermedirios.10 Contudo, parte deste argumento relaciona-se com a ideia de que os produtos que se encontram mais a jusante na cadeia de valor tm maior valor adicionado e, portanto, devem ter sua produo domstica estimulada.

    4.2 Medidas no tarifrias

    Barreiras tarifrias so um instrumento tradicional e talvez o mais transparente da poltica de proteo, que possibilita que uma empresa possa aumentar sua rentabilidade cobrando preos maiores na venda de seu produto no mercado interno em comparao com os concorrentes externos. Entretanto, h outros instrumentos, mais difceis de identificar e mensurar, que tm maior e crescente relevncia para determinar as possibilidades de participao de um pas nas CGVs.

    s barreiras no tarifrias tradicionais como medidas antidumping, procedi-mentos aduaneiros e regras de origem complexas somam-se, com peso crescente, instrumentos relacionados aos standards, avaliao de conformidade, subsdios, regulaes financeiras e de investimentos relacionadas ao comrcio, entre outros. Embora todos estes instrumentos sejam capazes de criar distores ao comrcio, na lgica das cadeias de valor, aqueles que afetam os custos dos produtos intermedirios assumem maior relevncia.

    Um exemplo de medida no tarifria que vem ganhando espao na discusso de polticas comerciais com impactos potenciais importantes sobre as cadeias de valor so as restries s exportaes. Tradicionalmente utilizadas para restringir as exportaes de alimentos com o objetivo de garantir o abastecimento domstico, as restries s exportaes na forma de quotas ou taxao vm sendo adotadas sobre matrias-primas e insumos estratgicos com efeitos potenciais devastadores sobre as possibilidades de produo de bens manufaturados. o caso das restries impostas

    10. Ao reduzir a proteo sobre os produtos intermedirios e manter inalterada a proteo sobre bens finais, aumenta-se a proteo efetiva destes ltimos.

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    sobre exportaes de minrios (por exemplo, minrio de ferro) e de terras raras (com impactos sobre a produo de diversos produtos intensivos em tecnologia). As restries s exportaes destes produtos tm, muitas vezes, o objetivo de garantir a oferta de insumos a produtores domsticos a jusante na cadeia de valor, impondo custos elevados aos participantes estrangeiros destas cadeias.

    As medidas antidumping so outro instrumento de poltica comercial e podem ter impactos no desejveis sobre o funcionamento das cadeias de valor. A maioria dos casos em que so impostos direitos antidumping de produtos intermedirios. O estudo da OECD (2013) resenha diversos artigos e mostra que na ndia pas que se tornou o principal usurio deste instrumento nos ltimos anos mais de 90% dos casos so relativos a produtos intermedirios e que as firmas que usam esses insumos acabam por buscar substituir tais insumos, de modo a evitar o aumento nos custos de produo. No Brasil, no perodo 2008-2012, 88% das medidas antidumping adotadas atingiram produtos intermedirios (Cindes, 2013).

    As exigncias de contedo local associadas concesso de benefcios fiscais ou financeiros, ainda que sejam contestveis perante as regras da OMC, vm ganhando espao nas polticas industriais no perodo ps-crise. Embora no sejam exatamente um instrumento de poltica comercial, seu efeito promover a integrao vertical da produo e discriminar contra os insumos e/ou bens de capital importados, erodindo as possibilidades de participao em cadeias de valor.

    O acordo de facilitao de comrcio concludo na reunio ministerial da OMC em Bali, em dezembro de 2013, talvez seja o primeiro resultado palpvel do esforo realizado pelas organizaes multilaterais para promover a necessidade de liberalizao comercial a partir do argumento das cadeias de valor. De fato, a reduo dos custos e dos tempos associados ao movimento de produtos intermedirios crtica para o funcionamento das cadeias internacionais. Estimativas de organizaes internacionais indicam que a implementao dos compromissos do acordo poder resultar em uma reduo de 10% dos custos de comrcio e gerar um incremento da renda mundial de at US$ 1 trilho (A trade..., 2013). Ainda que seja provvel que esses nmeros estejam em muito superestimados, a implementao do acordo de facilitao de comrcio exigir aperfeioamentos nos procedimentos aduaneiros em diversos pases particularmente em pases em desenvolvimento , que podem contribuir para eliminar custos desnecessrios nas operaes de comrcio.

    4.3 Liberalizao dos servios

    Se, como notado anteriormente, a qualidade e os custos dos servios so determinan-tes para a participao dos pases nas CGVs, a liberalizao do comrcio de servios passa a ser componente importante da agenda de polticas comerciais. H servios que podem ser considerados como insumos no interior de uma cadeia de valor

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    o caso de pesquisa e desenvolvimento (P&D), design, marketing, consultoria de negcios e informtica e telecomunicaes. Servios de transporte, comunicaes e distribuio so essenciais ao movimento de mercadorias nas cadeias de valor.

    A distncia um dos principais determinantes dos custos de comrcio e da forma como este se organiza em termos mundiais. Mas, como nota a Unctad (2013b), o problema no a distncia em si, mas os custos de transporte e a conectividade. Um estudo realizado pela organizao mostra que, no Caribe, a distncia responde por cerca de 20% da varincia das taxas de fretes martimos, enquanto a concorrncia e as economias de escala tm influncia muito superior na determinao dos custos. Quando h cinco ou mais transportadores operando em uma determinada linha, os custos do frete so um tero menores do que quando h quatro ou menos provedores.

    Os servios de distribuio tambm so considerados essenciais ao funciona-mento das cadeias. Nas cadeias buyer-driven, o papel dos grandes varejistas essencial para organizar a distribuio das funes (por exemplo, confeces ou alimentos). As grandes empresas determinam os padres tcnicos, promovem a interao entre os diferentes fornecedores e facilitam os aspectos logsticos, alm de permitirem o acesso a novos produtos e tecnologias. Entretanto, os servios de distribuio podem ser afetados por legislaes domsticas que restringem o direito de estabelecimento ou fazem exigncias que dificultam a operao desses provedores.

    Em 2013, as negociaes para firmar um acordo plurilateral para a liberali-zao dos servios (trade in services agreement TiSA) mobilizaram 26 membros, considerando os membros da Unio Europeia como uma representao. Com a percepo de que seria difcil avanar nesse tema no mbito da Rodada Doha da OMC, esses pases buscaram concluir um acordo que seria assinado na reunio ministerial da OMC em Bali, em dezembro de 2013. Contudo, o consenso mostrou-se mais difcil do que se previa e as negociaes no chegaram ao fim.

    4.4 O papel dos acordos preferenciais de comrcio

    A emergncia do modelo das CGVs traz novas motivaes para o interesse dos pases na negociao de acordos preferenciais de comrcio. Em primeiro lugar, o seu carter predominantemente regional refora a demanda pela negociao de acordos regionais de comrcio, formando blocos regionais no interior dos quais os processos produtivos so crescentemente fragmentados. O estudo de Estevadeordal, Blyde e Suominen (2013), j mencionado, mostra que a criao e a expanso de blocos de comrcio estimularam a constituio de cadeias de valor no seu interior.

    Mas, mais importante, a nova onda de acordos preferenciais de comrcio envolvendo parceiros no apenas da mesma regio estimulada pela necessidade de convergncia regulatria e de doing-business assurances por parte das empresas-lderes

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    da cadeia que organizam, distribuem e fornecem a tecnologia para os participantes da rede. Isso significa que os acordos do sculo XXI no so mais sobre reduo/eliminao de tarifas, mas, nas palavras de Baldwin (2014), so sobre disciplinas que perpassam o nexo comrcio-investimentos-servios.

    Como argumentam diversos autores, na lgica das cadeias de valor, as van-tagens comparativas devem ser computadas com base nos fluxos de comrcio por valor agregado. A OECD (2013) mostra que as vantagens comparativas de um pas mudam quando o clculo feito considerando os fluxos brutos de comrcio ou quando incorpora tambm os produtos intermedirios. Os indicadores de vantagens comparativas so significativamente sensveis evoluo dos custos, que podem alterar de forma considervel a competitividade relativa dos pases em um determinado produto ou setor.

    Uma implicao direta dessa concluso que, ao atuar sobre os custos de comrcio, as polticas comerciais podem alterar as vantagens comparativas e os acordos comerciais tm um papel importante a desempenhar nesse contexto. A inten-sificao do processo de fragmentao da produo deu-se nos ltimos vinte anos, perodo em que as regras multilaterais de comrcio mantiveram-se inalteradas. Aps a concluso da Rodada Uruguai da OMC, em 1994, os processos de liberalizao comercial ocorreram no mbito unilateral ou por meio de acordos preferenciais.

    Nesse perodo, a demanda por expanso da agenda temtica dos acordos de comrcio cresceu, embora o grau de profundidade atingido nos acordos concludos seja muito varivel. A maioria dos acordos firmados entre pases asiticos restrita ao estabelecimento de preferncias moldadas para remover barreiras relevantes para o funcionamento das cadeias de produo em que esto envolvidos em seu conjunto. J no caso de pases latino-americanos, h uma tendncia a replicar, nos acordos firmados recentemente entre eles, modelos j negociados bilateralmente com os Estados Unidos e a Unio Europeia. Esse o caso dos pases da Aliana do Pacfico, que buscaram incorporar disciplinas com as quais j haviam se com-prometido no mbito de seus respectivos acordos com os pases desenvolvidos. A exceo so os pases do Mercado Comum do Sul (Mercosul), que no fizeram qualquer movimento de integrao comercial relevante aps a criao do bloco.

    Como argumenta Baldwin (2014), os parceiros do Sul querem as fbricas e os empregos que vm com elas. A barganha internacional passa, ento, a ser as fbricas do Norte em troca das reformas no Sul. Como o autor chama a ateno, esta uma barganha muito assimtrica, em que os pases desenvolvidos buscam exportar seu padro regulatrio, sem ter que assumir compromissos de mudanas relevantes em sua poltica comercial, a no ser pela remoo de um nmero reduzido de tarifas de importao. O maior nus do ajuste recai sobre os pases em desenvolvimento, que tm que lidar com um complexo conjunto

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    de disciplinas em reas que at recentemente no eram consideradas barreiras ao comrcio. Baldwin (op. cit.) afirma que, desde o incio dos anos 1990, os pases em desenvolvimento tm se mostrado interessados em fazer o lock-in de reformas internas relacionadas a essas novas disciplinas em acordos preferenciais de comrcio, de modo a atrair as fbricas do Norte, uma vez que esse seria o caminho mais curto para a industrializao.

    Os acordos megarregionais em especial o Trans-Pacific Partnership (TPP) representam a etapa mais recente desse processo. O objetivo, no caso do TPP, aprofundar as disciplinas negociadas, incluir novas disciplinas e costurar em uma nica pea diversos acordos bilaterais que alguns desses pases assinaram. Diante da paralisia em que se encontram ou se encontravam at recentemente as negociaes multilaterais na OMC, muitos advogam que os megarregionais moldaro a governana do comrcio internacional de agora em diante.

    Nesse contexto, a principal preocupao dos pases que permanecem fora das grandes iniciativas de negociaes comerciais passaria a ser com os riscos da discriminao e com o seu alijamento das cadeias de valor. Ou seja, mesmo os pases que decidam no participar das novas iniciativas de negociao comercial terminariam por ser forados a adotar o padro regulatrio produzido por estas iniciativas, sob pena de ficarem excludos dos arranjos produtivos globais.

    O grau em que essas preocupaes mobilizam formuladores de polticas nos pases em desenvolvimento depende, entre outras coisas, do tamanho de seu mercado domstico e do grau de diversificao de suas estruturas produtivas. Neste sentido, os pases Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul (BRICS) tenderiam a ser menos suscetveis aos argumentos das cadeias de valor e aos riscos de discriminao provocados pelos megarregionais em comparao aos pases com mercados domsticos menores e maior grau de especializao produtiva.

    4.5 Os impactos sobre a agenda da OMC

    Muitos analistas defendem a ideia de que a agenda da Rodada Doha ficou velha, no sentido de que ela reflete as preocupaes do comrcio pr-cadeias de valor. Ao concentrar-se nas barganhas em torno de acesso a mercados de produtos agrcolas, industriais e de servios, a Rodada Doha teria deixado de lado os temas mais relevantes para as relaes de comrcio na atualidade. Isso estaria levando crescente perda de interesse por parte dos agentes econmicos no foro multilateral. As empresas, que no passado empurraram as negociaes da Rodada Uruguai, estariam voltando sua ateno para os foros megarregionais. A OMC correria o risco de tornar-se uma organizao irrelevante.

    A celebrao de um acordo sobre facilitao de comrcio na reunio ministerial da OMC em Bali, em dezembro de 2013, foi recebida com alvio por aqueles

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    que reconhecem no multilateralismo o first best para a governana do comrcio internacional. Primeiro, porque o tema da facilitao do comrcio foi, em boa medida, catapultado aos primeiros lugares em termos de prioridades da agenda de poltica comercial pela emergncia das cadeias de valor como forma de organizao e anlise do comrcio internacional. Em segundo lugar, porque representou a esperana de que o foro multilateral recupere sua capacidade de produo de regras e de promoo de liberalizao comercial adicional.

    Celebrado o acordo, os membros voltam-se agora para a discusso das bases para a retomada das negociaes da Rodada Doha. E esta tem se transformado em um locus para o debate sobre a convenincia de manter a velha agenda de acesso a mercados como o foco dos esforos negociadores, em contraposio oportunidade para atualizar esta agenda, incorporando os novos temas relevantes para a agenda das cadeias de valor, j mencionados anteriormente.

    A percepo de que s uma abordagem multilateral pode efetivamente globalizar as cadeias de valor tem servido de motivao para o aprofundamento desse debate. Ainda que os megarregionais possam ir costurando os acordos bilaterais ou regionais, s a OMC capaz de prover um arcabouo regulatrio abrangente e no discriminatrio para o desenvolvimento do comrcio e das CGVs. Alm disso, somente nesse ambiente ser possvel ter a participao dos BRICS na governana do sistema multilateral de comrcio. Esses pases so grandes demais para serem ignorados, mas dificilmente se incorporaro a iniciativas como o TPP, ainda que tenham que adaptar suas polticas domsticas a padres definidos por esse tipo de acordo.

    A velha agenda da OMC continuar a fazer parte da Rodada Doha, mas difcil imaginar que as negociaes podero avanar sem que os seus membros aceitem promover uma atualizao temtica desta agenda.

    5 AS POLTICAS NO COMERCIAIS PARA O UPGRADING NAS CADEIAS DE VALOR

    Ausentes na literatura que focava na poltica comercial as implicaes (de poltica) associadas s cadeias, as preocupaes relacionadas com as polticas no comerciais requeridas para uma participao exitosa dos pases em desenvolvimento nestas cadeias voltaram a receber alguma ateno, inclusive de organismos internacionais, a partir de 2013 (Unctad, 2013a; Bamber et al., 2014).

    Esses trabalhos muito recentes trazem de volta ao receiturio de polticas a dimenso de poltica industrial e de outras polticas no diretamente comerciais que eram contempladas pela primeira gerao de estudos baseados no enfoque das cadeias de valor. O foco destas polticas era e volta a ser o upgrading das empresas de pases em desenvolvimento para que sua participao em cadeias

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    internacionais de valor traduza-se em ganhos, em termos de crescimento, para a economia como um todo. Isso requereria a adoo de polticas de construo de upgrading capabilities, com vistas ao upgrading que o conjunto de processos por meio dos quais uma empresa (ou conjunto de empresas) logra capturar parcela maior do valor agregado gerado na cadeia.

    O processo de upgrading pode dizer respeito aos processos produtivos, aos produtos e s funes exercidas pela empresa na cadeia, mas a literatura sobre o tema valoriza principalmente o upgrading funcional. Por meio deste, a empresa distancia-se das atividades em que a competitividade depende dos custos e as barreiras entrada so baixas e nas quais alta a vulnerabilidade das empresas frente a novos competidores e s firmas-lderes da cadeia e busca atividades mais intensivas em conhecimento e menos vulnerveis concorrncia. Em geral, a literatura de cadeias de valor identifica nas atividades no manufatureiras como a inovao, o desenho e a construo de marcas as funes da cadeia de valor mais rentveis e mais protegidas da concorrncia por barreiras entrada.

    Se o upgrading um objetivo de poltica para pases em desenvolvimento, atingi-lo depende do desempenho das empresas, da qualidade de sua conexo com as cadeias de valor e, mais alm, das perspectivas de que estas empresas melhorem sua posio no mbito de uma cadeia de valor.

    O processo de upgrading pode ter diferentes origens (compradores, fornece-dores etc.), mas ele condicionado:

    pela dinmica global mutante das cadeias (por exemplo, a consolidao atravs de estratgias para reduzir o nmero de fornecedores, a incorporao de padres de qualidade e processo exigentes e mudanas geogrficas na demanda) e pelas limitaes dentro dos pases em desenvolvimento, inclusive a familiaridade limitada das firmas acostumadas a operar em ambientes de mercado tradicionais com os requerimentos de uma cadeia global de valor (Bamber et al., 2014).11

    a interao entre esses dois fatores o que define as possibilidades e as trajetrias de aprendizado e upgrading das firmas e dos setores. ela tambm que abre espao para propostas de polticas voltadas para o upgrading da participao de pases em desenvolvimento nas cadeias internacionais de valor.

    Segundo OECD (2007),

    a mutante paisagem competitiva, caracterizada por uma complexa rede de normas e padres pblicos e privados e pela ampliao do pool de fornecedores potenciais,

    11. Entre os aspectos da dinmica das cadeias que afetam as possibilidades de upgrade encontra-se o modelo de governana delas. Este modelo condiciona as possibilidades e as trajetrias plausveis de upgrading. Em cadeias estruturadas em torno de modelo fortemente hierarquizado, a hegemonia das firmas-lderes tende a congelar a posio das firmas subalternas em determinadas funes de baixo valor agregado e baixa rentabilidade.

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    aumenta as barreiras entrada de produtores de pases em desenvolvimento e pressiona para baixo suas margens de lucro (OECD, 2007).

    Na mesma tnica, Bamber et al. (2014) sustentam que:

    independentemente da posio de uma empresa na cadeia de valor, requisitos mnimos de qualidade, custo e confiabilidade devem ser atendidos de forma consistente para assegurar uma participao permanente, e estratgias de compras so constantemente revistas para aperfeioar estes elementos de suas cadeias de valor (Bamber et al., 2014).12

    Ora, precisamente o fato de que a capacidade das firmas em pases em desenvolvimento para atender de forma consistente a estes requisitos afetada pelo contexto institucional local em que elas operam (Bamber et al., 2014) o que torna necessrio ir alm da poltica de comrcio e de investimentos externos. Isso se o pas em desenvolvimento pretende no apenas participar das cadeias, mas gerar externalidades positivas, para a economia e a sociedade, com base nesta participao.

    Em Bamber et al. (2014), a formulao clara: focar somente na poltica de comrcio e investimento no suficiente para conectar pases em desenvolvimento a cadeias globais de valor e simultaneamente promover ganhos de desenvolvimento para a economia domstica (op. cit., grifos nossos).

    Ainda segundo esses autores,

    de forma a apoiar coerentemente objetivos de desenvolvimento, os esforos devem ser ampliados para ajudar os pases e incluir o comrcio de cadeias globais de valor em sua agenda mais ampla de desenvolvimento econmico nacional; ampliar a capacidade domstica e gerar vinculaes com a economia local; criar mais e melhores empregos para reduzir o desemprego e melhorar as condies de trabalho. Assim, no se trata apenas de como se vincular a essas cadeias de valor, mas como faz-lo de forma a gerar ganhos de bem-estar sustentveis no longo prazo (Bamber et al., 2014, grifos nossos).

    A agenda de polticas voltadas para promover o upgrading das empresas nas cadeias internacionais de valor no pode contornar as polticas de comrcio e investimentos externos. Estas so parte essencial da agenda, na medida em que a simples conexo com cadeias de valor requer a liberalizao e a facilitao do comrcio e dos investimentos. Neste sentido, as propostas de polticas no comerciais (industriais e outras) apresentadas por diferentes autores associados ao enfoque das cadeias de valor so formuladas tendo em conta a relevncia da liberalizao comercial e de investimentos.

    Indo alm das polticas de comrcio e investimentos, a literatura sobre cadeias de valor define uma ampla agenda horizontal de polticas de competitividade, rela-cionada capacidade produtiva (desenvolvimento de capital humano, inovao etc.),

    12. Observe-se que os requisitos de custo e qualidade associados participao em cadeias de valor condicionam no apenas o upgrade, mas a prpria participao de empresas de pases em desenvolvimento nas cadeias.

  • 40 Cadeias Globais de Valor, Polticas Pblicas e Desenvolvimento

    infraestrutura e aos servios, ao ambiente de negcios e