Cadeirantes 2

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Luciana Marques, Marcelo Grisa, Marina Cardozo Jornalismo Investigativo 20.06.2012 Esqueceram de mim Falta de lugares adequados em cinemas exclui cadeirantes da atividade cultural O estado do Rio Grande do Sul tem o maior número de cinemas da região sul: são 139 salas, com uma média de 200 lugares. Das quase 30 mil vagas, porém, apenas 278 são destinadas a cadeirantes. O número representa menos de 1% do total e está longe de atender à demanda. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 285 mil gaúchos têm grande deficiência motora, sendo 44.685 paraplégicos, tetraplégicos ou hemiplégicos (metade do corpo paralisada). Eduardo Senna Batista, 43 anos, se declara um apreciador do mundo cultural. Casado com Vanessa Vasconcelos e padrasto de dois enteados, o aposentado leva a família a espetáculos teatrais e, principalmente, ao cinema, sempre que pode. Há um ano o aposentado é cadeirante, devido a uma queda numa tarde chuvosa. Um dos poucos cinemas que o casal ainda não conhecia, o Unibanco Arteplex, fica no Shopping Bourbon Country, em Porto Alegre. A curiosidade de avaliar a estrutura do local fez com que eles fossem assistir ao filme Homens de Preto 3. Ao chegar à sala em questão, os dois se depararam com uma rampa os conduzia até a primeira fila. Duas poltronas foram

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Luciana Marques, Marcelo Grisa, Marina Cardozo

Jornalismo Investigativo

20.06.2012

Esqueceram de mim

Falta de lugares adequados em cinemas

exclui cadeirantes da atividade cultural

O estado do Rio Grande do Sul tem o maior número de cinemas da região sul:

são 139 salas, com uma média de 200 lugares. Das quase 30 mil vagas, porém, apenas

278 são destinadas a cadeirantes. O número representa menos de 1% do total e está

longe de atender à demanda. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 285 mil gaúchos têm grande deficiência

motora, sendo 44.685 paraplégicos, tetraplégicos ou hemiplégicos (metade do corpo

paralisada).

Eduardo Senna Batista, 43 anos, se declara um apreciador do mundo cultural.

Casado com Vanessa Vasconcelos e padrasto de dois enteados, o aposentado leva a

família a espetáculos teatrais e, principalmente, ao cinema, sempre que pode. Há um

ano o aposentado é cadeirante, devido a uma queda numa tarde chuvosa.

Um dos poucos cinemas que o casal ainda não conhecia, o Unibanco Arteplex,

fica no Shopping Bourbon Country, em Porto Alegre. A curiosidade de avaliar a

estrutura do local fez com que eles fossem assistir ao filme Homens de Preto 3. Ao

chegar à sala em questão, os dois se depararam com uma rampa os conduzia até a

primeira fila. Duas poltronas foram removidas para dar lugar a dois cadeirantes,

contanto que pelo menos um deles não estivesse acompanhado.

O filme começou e, com ele, as dores no pescoço, a vertigem nos olhos, a

tontura e a dificuldade de acompanhar as legendas. O cansaço tornou o filme

maçante: “Assistir a um filme em 3D assim é praticamente inviável”, observa o

aposentado.

Eduardo lembra que não apenas no cinema falta acessibilidade: o teatro do

Bourbon Country também apresenta problemas: “No ano passado eu e minha esposa

fomos comprar os ingressos para o show do Roupa Nova, mas nosso plano foi

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interrompido porque o elevador do local não estava funcionando”, revela. Vanessa

comenta, ainda, que o lugar destinado a cadeirantes é na plateia baixa, com ingresso

mais caro: “Ou nós acompanhantes pagamos o valor estipulado para sentar junto, ou

ficamos separados. O cadeirante também tem família, amigos. Ele não é sozinho”.

Há cerca de um ano, um caso que denunciou a falta de acessibilidade e de

preparação dos cinemas repercutiu no país. Vitória Bernardes tem 27 anos, é psicóloga

e mora em Porto Alegre. Em 2002, foi vítima de uma bala perdida e, desde então,

utiliza uma cadeira de rodas para se locomover. Gosta de cinema e costuma frequentá-

los, mas, em 2011, Vitória teve de deixar o Cinemark do Shopping Bourbon Ipiranga,

em Porto Alegre, antes do início da sessão. O motivo: descontente com os locais

destinados a cadeirantes no cinema, ela quis sentar em cadeiras normais, auxiliada

pelas primas que a acompanhavam, mas o gerente proibiu. Segundo ele, só havia

estrutura para pessoas “normais”.

À época, Vitória denunciou o caso ao blog Sem Barreiras, do Grupo RBS, o que o

elevou a escândalo nacional. Hoje, ela espera a marcação da audiência do processo

que move contra a rede de cinemas.

O desconforto combinado à possibilidade de sofrer preconceitos por sua

condição desencoraja a ida de cadeirantes ao cinema. Osório Martins, 40 anos, não

frequentava uma sala desde 2004, um ano antes de sua paralisia. Há sete anos, ele usa

uma cadeira de rodas devido a formação de coágulos, resultado de uma interação

medicamentosa. Morador da cidade de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre,

Osório aceitou acompanhar nossa reportagem à incursão a um dos cinemas da rede

Cinemark, em Canoas.

Localizado no Canoas Shopping, o Cinemark conta com sete salas de cerca de

200 lugares. Os balcões de atendimento – tanto de compra de ingressos quanto da

lancheria – têm partes adaptadas à altura da cadeira de rodas. Apesar da preferência

no atendimento na bilheteria, cadeirantes e acompanhantes demoram entrar nas salas

de cinema, que é separada do “lounge” por uma cancela.

Há dois espaços para a acomodação de cadeirantes em cada uma das sete salas

do Shopping Canoas. Cada um deles, segundo Osório, comportaria quatro cadeirantes.

Os espaços são adaptados com a retirada de duas poltronas. O posicionamento,

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entretanto, prejudica a experiência da tela grande, pela proximidade - o pescoço do

espectador não pode estar reto para se olhar diretamente o filme.

Durante a sessão, Osório só conseguia olhar diretamente para a tela durante

meia hora antes de baixar a cabeça e se alongar. Ao longo de duas horas de filme,

foram aproximadamente três pausas para descanso.

Na saída do cinema, mais um ponto negativo. Apesar de existirem duas portas

duplas na saída do Cinemark Canoas, apenas uma delas estava aberta – e pela metade.

Osório teve de sair pelo mesmo lugar por onde entrou, em vez de usar a saída usual.

Pelo menos, o erro não é estrutural: a porta somente deixou estar aberta o suficiente

para permitir a passagem da cadeira de rodas.

Além de Vitória, Osório e Eduardo, outros tantos cadeirantes sofrem com

situações de desrespeito. A Associação Canoense de Deficientes Físicos (Acadef),

próxima ao centro da cidade, oferece tratamento fisioterápico, convívio e formação

profissional para pessoas de 136 cidades em todo o Rio Grande do Sul. Nas manhãs de

terça a sexta-feira, muitos deficientes físicos se encontram para conversar. Clóvis

Schenkel, 40 anos, diz que a convivência no espaço trouxe muitos benefícios à sua

vida: "Se eu tenho amizades agora, é aqui dentro”.

Clóvis frequenta o Shopping Canoas eventualmente e também sente o

desconforto causado pelos lugares destinados a cadeirantes: "É muito em cima da tela

e muito em cima das caixas de som. Desconfortável em dobro". O morador de Canoas

acredita que a situação poderia mudar se as pessoas que idealizam os espaços

entendessem o que significa estar numa cadeira de rodas: "Deixa eles umas três ou

quatro horas por dia sem sair de cima de uma cadeira, para eles verem o que é bom”.

Conversando com o restante do grupo, todos assumem a dificuldade que têm

para ver os filmes com conforto – e não apenas cadeirantes passam por isso. Lariane

Caetano, 21 anos, tem dificuldades para caminhar, e as escadas nas laterais do cinema

são um obstáculo para sua acomodação: muito estreitas.

Os locais, de fato, existem. O problema é onde eles ficam. Em sua maioria, os

assentos destinados a cadeirantes estão nas primeiras filas, o que obriga o espectador

a levantar demais a cabeça e, ainda assim, ter sua visão limitada pela proximidade.

Deduzido o desconforto.

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A posição em que o deficiente é obrigado a permanecer pode causar danos que

vão de dores musculares e de cabeça até sintomas mais sérios como náuseas, vertigem

e hérnias: “Por ser móvel, a coluna cervical é mais propensa a lesões e, uma vez

lesionada, ela se adapta àquela nova posição”, explica a fisioterapeuta Cátia Festner.

“A posição do pescoço para ver um filme tão próximo à tela causa a compressão de

artérias e nervos.” Ela lista que pode haver desgaste ósseo, dor cervical, dor de cabeça,

vômito, fraqueza muscular, dor nos ombros. “Citando apenas alguns sintomas.” Cátia

afirma que tudo depende da frequência com que o cadeirante utiliza o cinema: “Um

cinéfilo pode desenvolver algo muito sério”.

De acordo com a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos do

Ministério Público, um expediente que tem o propósito de verificar as condições de

acessibilidade e de acolhida das pessoas com deficiência física nos cinemas está em

andamento, em virtude da denúncia da cadeirante Vitória. Como as reclamações ainda

não são separadas das demais a cerca da questão dos direitos humanos, não há como

verificar o número de registros de processos sobre o tema. As empresas que não se

adequarem as normas estabelecidas na ABNT NBR9050, no prazo máximo de três

meses a partir da denúncia, serão penalizadas conforme o que está previsto no Termo

de Ajustamento de Conduta (TAC).

A reportagem tentou contatar primeiramente a gerência do Cinemark Canoas,

que não atende mais por telefone. Indo presencialmente ao cinema, duas vezes o

gerente informou, por meio de funcionários, que não poderia atender. Tentamos

contato via redes sociais (Facebook e Twitter do Cinemark) e também não obtivemos

resposta. Não há e-mail para contato.

Já no Unibanco Arteplex, conseguimos contato por telefone com a gerência de

Porto Alegre, que não respondeu a nossas perguntas. Tentamos contato por e-mail

com a assessoria de imprensa da matriz, em São Paulo, mas não obtivemos qualquer

resposta.

O que diz a lei

Segundo o artigo 3º da Lei Estadual 12.339, de 10 de outubro de 2005, sobre a

proteção dos direitos e do atendimento da pessoa com deficiência, deve haver

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acessibilidade e conscientização da sociedade sobre os direitos, necessidades e

capacidades das pessoas com deficiência.

Em Porto Alegre, o artigo 1º da Lei Municipal nº 10.379, de 6 de fevereiro de

2008, prevê obrigatoriedade de espaço para cadeira de rodas e assentos reservados

para pessoas portadoras de necessidades especiais em salas de cinema.

Já em Canoas, a lei municipal nº 5.341, de 22 de outubro de 2008, institui que a

implementação do programa de mobilidade urbana adote melhoras nas condições de

acessibilidade. A lei também estabelece estabelecer normas, parâmetros e

instrumentos para que o poder público municipal tenha condições de exigir melhores

condições de acessibilidade nos espaços públicos da cidade.

A situação em outras capitais

Em 2010, o Blog do Estadão pediu que um deficiente físico de São Paulo

avaliasse os cinemas da cidade e escolhesse os melhores – e piores – no quesito

acessibilidade. Para Anderson Santana, de 22 anos, que utiliza muletas para andar, o

cinema do Shopping Metrô Santa Cruz é o melhor para quem tem necessidades

especiais: “A equipe de funcionários é a que mais ajuda”, diz. E, para levar usuários de

cadeiras de roda, ele recomenda o Cinemark Pátio Paulista: “A área reservada é ótima

e você não paga estacionamento”.

No Rio de Janeiro, o blog Mão na Roda, aponta alguns cinemas da capital carioca

acessíveis a cadeirantes. O cinema São Luiz, no Largo do Machado, tem duas salas com

entradas por cima, ou seja, os lugares são mais distantes da tela. O cinema Roxy, em

Copacabana, tem todas as salas adaptadas, com locais de boa visibilidade. Nas duas

salas do térreo, se entra por cima, ou seja, os espaços reservados para a cadeira de

rodas ficam no fundo do ambiente, afastados da tela. Já na sala 3, no segundo andar, a

entrada é na altura da quarta fileira. O espaço entre a tela e os assentos, porém, é

grande, não é necessário olhar para cima para assistir ao filme.