CADERNO 14

2
CADERNO 14(1932-1935) § 67. Temas de cultura.“Racionalismo.” Conceito romântico do ino vador. Segundo este conceito, é inovador quem quer destruir todo o existente sem preocupar-se com o que acontecerá depois, uma vez que, já se sabe, metafisicamente toda destruição é criação e, aliás, só se destrói aquilo que se substitui recriando. Acompanha este conceito romântico um conceito “racional” ou “iluminista” . Pensa-se que tudo que existe é uma “armadilha” dos fortes contra os fracos, dos esper tos contra os pobres de espírito. O perigo advém do fato de que as palavras são tomadas “de modo iluminista” ao pé da letra, material mente. A filosofia da práxis contra este modo de conceber. Com efei to, a verdade é esta: toda coisa que existe é “racional”, isto é, teve ou tem uma função útil. O fato de que aquilo que existe tenha existido, isto é, tenha tido sua razão de ser enquanto “conforme” ao modo de vida, de pensar, de operar da classe dirigente, não significa que se tenha tornado “irracional” porque a classe dominante foi privada do

description

Cadernos do carcere, de Gramsci

Transcript of CADERNO 14

Page 1: CADERNO 14

CADERNO 14(1932-1935)

§ 67. Temas de cultura.“Racionalismo.” Conceito romântico do ino

vador. Segundo este conceito, é inovador quem quer destruir todo o

existente sem preocupar-se com o que acontecerá depois, uma vez

que, já se sabe, metafisicamente toda destruição é criação e, aliás, só

se destrói aquilo que se substitui recriando. Acompanha este conceito

romântico um conceito “racional” ou “iluminista” . Pensa-se que tudo

que existe é uma “armadilha” dos fortes contra os fracos, dos esper

tos contra os pobres de espírito. O perigo advém do fato de que as

palavras são tomadas “de modo iluminista” ao pé da letra, material

mente. A filosofia da práxis contra este modo de conceber. Com efei

to, a verdade é esta: toda coisa que existe é “racional”, isto é, teve ou

tem uma função útil. O fato de que aquilo que existe tenha existido,

isto é, tenha tido sua razão de ser enquanto “conforme” ao modo de

vida, de pensar, de operar da classe dirigente, não significa que se

tenha tornado “irracional” porque a classe dominante foi privada do

poder e de sua força de dar impulso a toda a sociedade. Uma verdade

que se esquece é esta: aquilo que existe teve sua razão de existir, ser

viu, foi racional, “facilitou” o desenvolvimento histórico e a vida. E

verdade que num certo ponto isto não acontece mais, que certas for

mas de vida converteram-se de modos de progresso em entrave e obs

táculo, mas não é verdade “em toda a área”: é verdade onde é verda

de, isto é, nas formas mais altas de vida, naquelas decisivas, naquelas

que assinalam a ponta do progresso, etc.