WALTER BENJAMIN E AS METRPOLES MODERNAS: A NOO DE UMA EDUCAO ESTTICA EM INFNCIA BERLINENSE:1900 E

DIRIO DE MOSCOU

Priscilla Stuart da Silva1

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir a noo de uma educao esttica em Walter Benjamin. As fontes principais da investigao so constitudas pelos ensaios Infncia berlinense: 1900 e Dirio de Moscou, os quais, ao transcenderem os gneros literrios da autobiografia e dos dirios de viagem, conduzem-nos a reflexes que nos mostram o lugar da educao do corpo na constituio da subjetividade humana. Desse modo, atravs das metrpoles modernas Berlim e Moscou refletimos como as mesmas constituram o autor como indivduo e como pensador, na tenso entre as instncias individual e coletiva na formao humana. Palavras-chave: Educao Esttica; Experincia; Educao dos Sentidos; Walter Benjamin.

WALTER BENJAMIN AND MODERN METROPOLISES: THE NOTION OF A AESTHETIC EDUCATION IN BERLIN CHILDHOOD: 1900 AND

DIARY OF MOSCOW

ABSTRACT

This article aimed to discuss the notion of an aesthetic education in Walter Benjamin. The main sources of research was constituted by essays Berliner Childhood around 1900 and Moscow Diary, which, to transcend the literary genres of the "autobiography" and "travel diaries", lead us to reflections that show us the place of education body in the constitution of human subjectivity. Thus, using modern metropolises Berlin and Moscow reflect how they were the author as an individual and as a thinker, in the tension between the individual and collective spheres in the human formation. Keywords: Aesthetic Education; Experience; Education Body; Walter Benjamin.

1 Priscilla Stuart da Silva Graduada em Filosofia pela UFSC, Mestre em Educao, tambm pela

UFSC e Doutoranda em Educao, na linha de pesquisa Filosofia da Educao, pela mesma instituio.

O espao da cidade na educao dos sentidos

Duas coisas instruem o homem sobre toda a sua natureza: o instinto e a experincia.

Blaise Pascal

A cidade o espao moderno por excelncia, lugar onde se encontram todas

as tenses do esprito da modernidade, espao de contradies, de guerras, da

infncia, do corte entre o domnio pblico e o privado, das expresses da linguagem

que definiram o espao individual do homem, do advento do romance; lugar,

notavelmente, do apogeu de uma crise generalizada no ethos humano que nenhuma

outra poca suportou tanto como a moderna.

A cidade a esfera e fundao do individualismo. O espao da modernidade

fundou uma concepo humana a partir da noo de que o homem moderno ,

acima de tudo, um ser humano mvel2, onde o movimento autnomo diminui a

experincia sensorial, despertada por lugares ou pessoas que neles se encontrem3.

O que surge um afastamento radical da dimenso corporal em detrimento da

racional. O corpo negado, o indivduo moderno sofre uma espcie de crise tctil:

deslocar-se ajuda a dessensibilizar o corpo4. As grandes cidades so planejadas de

acordo com o modo como o corpo humano conhecido e esquadrinhado pela

cincia.

Ao mesmo tempo em que o corpo ganha uma dimenso impessoal com a

descoberta da anatomia, das funes respiratrias e circulatrias, a cidade

organizada e pensada de acordo com essas descobertas: ganha o mesmo carter

distante, formal. A urbanizao das metrpoles movia-se na mesma ideia e ritmo de

funcionamento do corpo:

Partindo da idia de um corpo saudvel, limpo e deslocando-se com total liberdade, o desenho urbano previa uma cidade que funcionasse assim. [...] Na concepo iluminista, a rua era um importante espao urbano cruzando reas residenciais ou atravessando o centro da cidade. Palavras como artria e veia entraram para o vocabulrio urbano no sculo XVIII, aplicadas por projetistas que tornavam o sistema sanguneo como modelo para o trfego. [...] Construda logo aps a Revoluo Americana, Washington, DC, um belo exemplo desse tipo de planejamento urbano. O jogo de interesse entre os diversos poderes na jovem Repblica impediu os urbanistas de aproveitar alguma cidade situada milhas ao norte, em parte j estabelecida, e forou-os a transformar uma rea pantanosa, bem pouco hospitaleira, em uma

2 SENNETT, Richard. Corpos em movimento. In: ______. Carne e pedra. Traduo de Marcos

Aaro Reis. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 213. 3 SENNETT, 2003, p. 214.

4 SENNETT, 2003, p. 214.

capital nacional. O plano que eles adotaram resgata as crenas do Iluminismo no poder de criar um ambiente saudvel onde o povo pode respirar livremente por meio do desenho de uma cidade altamente organizada e compreensiva.

5

Contudo, o sculo XVIII tambm o perodo no qual a ideia da viagem como

formativa e como fonte de inspirao potica emerge e se fortalece no esprito

ocidental. Goethe ficara famoso com sua jornada italiana e reiterou o esprito da

poca, de que movimento, viagem e explorao seriam capazes de ampliar a

sensibilidade de qualquer um [...].6 Diante disso, essa ode ao deslocamento do

indivduo moderno produziu ao mesmo tempo uma educao e formao pautadas

por uma esttica da existncia, numa nfase favorvel ao corpo e aos sentidos que

se movem. Parece haver, consequentemente, uma ambiguidade em relao ao

corpo e suas possveis potencialidades.

Benjamin intensamente influenciado pelo romantismo alemo,

particularmente por Goethe. Seus dirios de viagem, a saber, sobre Ibiza, Moscou,

Npoles, Marselha, etc., so maneiras de desenvolver essa sensibilidade potica e

esttica, cultivada no Iluminismo e ilustrada pela figura de Goethe na Alemanha do

sculo XIX.

Benjamin, com sua tentativa de alcanar a iluminao profana7 (profane

Erleuchtung) na cidade, na metrpole moderna por vezes induzido pelo uso do

haxixe8 e do pio percebe e realiza os desejos do sculo XVIII, o antepassado

daquele no qual viveu o filsofo berlinense: conhecer a cidade pela dimenso dos

sentidos ampliados, j que a cidade, em ltima instncia, um corpo tambm, um

corpo urbano. Ampliar os sentidos pela experincia com entorpecentes

5 SENNETT, 2003, p. 220-222.

6 SENNETT, 2003, p. 228.

7 Segundo a apresentao feita ao livro Profanaes, de Agamben, o ato de profanar, ou

simplesmente profanao, teve origem no direito romano e indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religio e do sagrado voltava a ser restitudo ao livre uso do homem. In: ASSMANN, 2007 apud AGAMBEN, 2007, p. 10.

8 Em Sobre o Haxixe e outras drogas, o berlinense descreve suas experincias com o uso dessas

substncias na cidade de Marselha. Em Imagens do pensamento encontra-se tambm uma verso simplificada dessa experincia. Vale a pena conferir um pequeno trecho da experincia alucingena e da mudana na descrio na percepo da cidade: Um dos primeiros sinais de que o haxixe comeou a actuar uma vaga sensao de premonio e angstia; qualquer coisa de estranho e inevitvel se aproxima... [...]. Chegamos tambm a experincias prximas da inspirao, da iluminao... [...]. Agora fazem-se sentir as exigncias de tempo e espao que o fumador de haxixe experimenta. E, como se sabe, so absolutamente rgias, essas exigncias. Para quem tomou haxixe, Versalhes ainda pequeno, e a eternidade no lhe basta. E no plano de fundo dessas dimenses imensas da vivncia interior, da durao absoluta e do espao incomensurvel, instala-se agora um maravilhoso e sereno humor, tanto mais quanto maiores as contingncias de espao e tempo. In: BENJAMIN, 2004, p. 229-231.

dimensionaria os efeitos da cidade, suas perspectivas, aquilo que ela mostra, pois

na urbe o lugar que se realiza a formao humana na modernidade. A ideia de

iluminao profana poderia, nesse contexto, ser interpretada como uma tentativa de

reagir aos impactos, aos choques produzidos na/pela cidade9.

importante destacar as novas direes que a sociedade ocidental tomou

frente Revoluo Francesa e Russa. Entre outros aspectos tanto positivos

quanto negativos , essas revolues foram um marco da quebra com o passado e

com a tradio. Fundara-se um novo calendrio, novas perspectivas, o que permitiu

maior liberdade de ao e movimento no espao novo, espao revolucionrio. A

nfase sobre o corpo e suas potencialidades, entre elas a mobilidade, ressurge com

fora e vigor renovados10.

O corpo, no espao da metrpole moderna, sempre colocado prova: nas

guerras, nos festivais, nos protestos, no trabalho e, fundamentalmente, nas

dificuldades. Ao mesmo tempo, treinado tambm para agir e reagir e, vista disso,

a modernidade um palco em que cada atitude humana julgada a partir de regras

e protocolos fundados no contrato social estabelecido para o funcionamento desse

corpus urbano.

O perodo compreendido entre os anos 1848 e 1945 chamado de revoluo

urbana11, o mesmo perodo que se situam as experincias de Benjamin retratadas

em Infncia berlinense: 1900 e Dirio de Moscou retratos, respectivamente, de

uma criana no interior de sua vida burguesa e de um viajante que caminha na

contramo da urbanizao em meio s maiores metrpoles ocidentais.

Dirio de Moscou um relato de viagem que ultrapassa os limites do pessoal,

do ntimo, da esfera privada. Com ele, ao reconstituir as contradies da capital

russa, Benjamin salvou um gnero literrio do seu carter meramente recreativo. Ele

expressa, em meio aos dramas humanos, um momento primordial da histria, ao

reconstruir na histria individual humana a histria coletiva. Ele quer contar a

trajetria de uma cidade que fora palco de um dos mais importantes acontecimentos 9 Cf. La iluminacin profana [profane Erleuchtung] que conduce al espacio del cuerpo y de la

imagen en el surrealismo puede ser comprendida as como la contrapartida a tales prcticas violentas de clarividencia [Erhelhung] y, por lo tanto, ser interpretada una vez ms como un concepto basado en el sentido de una reaccin contra el impacto. In: WEIGEL, 1999, p. 66.

10 SENNETT, 2008, p. 244.

11 Cf. Durante a segunda metade do sculo XIX, todas as naes ocidentais foram varridas por transformaes geoeconmicas. Em 1850, Frana, Alemanha e Estados Unidos tambm eram sociedades predominantemente rurais; um sculo mais tarde, a urbanizao prevalecera, apresentando um alto ndice de concentrao populacional. No toa que os cem anos transcorridos entre 1848 e 1945 so chamados de revoluo urbana. In: SENNETT, 2003, p. 261.

da breve histria do sculo XX12: a revoluo russa de 1917 e a formao de um

povo ps-revoluo. Mas Benjamin quer contar esta histria por meio de uma

experincia esttica (sensorial) com a cidade, mostrando as ambiguidades da

poca. Para isso, reconstri uma atmosfera entre 6 de dezembro de 1926 e o final

de janeiro de 192713 momentos de consolidao do regime comunista russo,

como pano de fundo da sua temtica principal, a saber, novas formas de

subjetividade na metrpole moderna, mesmo com todas as suas contradies,

limiares, reticncias, prprios desse perodo histrico. Moscou, nesse sentido,

parece ser o lugar que melhor ilustra esse esprito social moderno.

Infncia berlinense: 190014 outro ensaio de carter pessoal que se alia ao

Dirio de Moscou e ao tema aqui proposto. Da ordem do particular, Infncia um

texto que resgata a memria de um Benjamin adulto revisitando as lembranas da

infncia, no qual, de modo semelhante ao Dirio, a cidade apreendida por um

corpo que descobre o mundo com os sentidos.

Os dois ensaios foram escritos quase que paralelamente e so, talvez, os

textos de Benjamin com carter mais pessoal, que revelam suas experincias na

infncia e na cidade de Moscou (perodo muito importante poltica e amorosamente

para o berlinense, j que toda sua vida fora colocada em suspenso desde o

momento em que viajou at a capital russa)15.

A cidade, notavelmente, um tema recorrente em Benjamin. Como era um

grande viajante, o autor escrevia sobre os lugares que visitava, como Marselha,

Paris, Moscou, Npoles, etc. Contudo, suas descries no so as de um mero

relator ou turista de viagem, posto que os escritos sobre a cidade so importantes na

constituio do sujeito, j que existe uma tarefa pedaggica importante que

Benjamin deixou como legado nessas obras. Essa tarefa parece caminhar em

12

Expresso usada em: HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

13 SCHOLEN, Gershom. Prefcio. In: BENJAMIN, Walter. Dirio de Moscou. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

14 Utiliza-se a traduo realizada por Joo Barrento.

15 Seu envolvimento com Asja Lacis e sua possvel filiao ao partido comunista foram decisivos para a definio de ideias encontradas em obras posteriores, como as teses Sobre o conceito de histria ou ainda o conjunto de ensaios de Imagens do pensamento. Asja Lacis fora o principal motivo de sua ida a Moscou e estadia naquela cidade [...]. Esse texto, por sua vez, serviu no apenas para Benjamin tentar uma espcie de ersatz de suas desiluses amorosas nessa sua estadia em Moscou ele acabou ficando muito mais tempo com o companheiro de Lacis, Bernhard Reich (1880-1972), do que com a prpria, que estava internada em um sanatrio , mas tambm a forma dos Dirios serviu de laboratrio para uma srie de procedimentos metodolgicos e de apresentao (Darstellung) que reencontraremos at o final de sua obra. In: SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 167.

direo a uma concepo de educao esttica, em que o corpo apreende aquilo

que a cidade fornece como experincia (Erfahrung).

Importante se faz, antes de prosseguirmos, reconstruir brevemente o que

Benjamin compreendia como Erfahrung e sua oposio ao conceito de vivncia

(Erlebnis), uma vez que so noes primordiais compreenso e desenvolvimento

de seu pensamento como um todo.

Breve percurso: experincia x vivncia

As experincias mais admirveis, mais instrutivas, as experincias decisivas, so exatamente as experincias cotidianas, que estas constituem justamente o grande enigma que cada um tem sob seus olhos, mas que poucos compreendem como sendo um enigma, e que, para o pequeno nmero de verdadeiros filsofos, so justamente estes os problemas que permanecem ignorados, abandonados no meio do caminho e, por assim dizer, pisoteados pela multido, antes que eles os recolham cuidadosamente e a partir desse momento resplandeam como pedras preciosas do conhecimento.

Friedrich Nietzsche

A experincia (Erfahrung) um dos conceitos centrais do pensamento de

Walter Benjamin. A partir dele o autor discute sua teoria da histria, da narrao, os

temas da infncia, da linguagem, sua teoria pessimista do mundo por meio da

discusso da melancolia moderna16, enfim, sua discusso sobre a cultura na

modernidade. Tudo passa por este conceito, uma vez que toda a nossa maneira de

ver o mundo foi reconfigurada desde o ponto em que rompemos um lao importante

com a tradio que nos antecedeu, com a cultura como patrimnio, em suma, com

nossa histria. Perdemos o vnculo com o conto, com a narrao, com o

aprendizado oral herdado de nossos antepassados, com a histria material que nos

precede. Estamos merc de uma eterna novidade: nossos atos esto fadados e

so refns de um eterno hoje, com um prazo de validade preso ao momento do

prprio acontecimento.

O filsofo no iniciara sua investigao sobre a experincia moderna a partir

da modernidade e da guerra de trincheiras17, ou ento da pobreza de valores que

16

Cf. A discusso sobre a melancolia moderna encontra-se na seguinte obra: BENJAMIN, Walter. Origem do drama trgico alemo. Traduo de Joo Barrento. Belo Horizonte: Autntica, 2011, p. 143-166.

17 Cf. No, est claro que as aes esto em baixa, e isso numa gerao que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terrveis experincias da histria. [...] Porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela fome, a experincia moral pelos governantes. Uma gerao que ainda fora escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro,

hoje invalidam a sustentabilidade de uma cultura e de uma tradio. Sua

preocupao estava vinculada, desde o incio, s suas memrias de infncia,

especialmente a uma pequena frase dita por seu irmo mais jovem, por ele revelada

numa carta endereada a Adorno:

El hecho de que las races de mi teora de la experiencia se remontan a un recuerdo de infancia. Mis padres costumbraban llevarnos de paseo durante los meses de verano, y siempre los acompabamos dos o tres de nosotros. Pero es en mi hermano en quien estoy pensando aqu. Luego de haber visitado uno u otro de los lugares obligatorios en torno a Freudenstadt, Wegen o Schreiberhau, mi hermano sola acotar: Ahora podemos decir que hemos estado all. Esta observacin qued impresa de forma indeleble en mi mente.

18

O trecho acima nos faz refletir sobre a crescente preocupao pessoal que o

berlinense mantinha com a profuso de temas que trata em seus escritos: nota-se,

portanto, uma necessidade de saber como adquirimos a experincia que

acumulamos da/na vida, dos lugares pelos quais passamos e, fundamentalmente,

das cidades nas quais vivemos. De alguma forma, tudo em Benjamin est vinculado

experincia formativa, a qual talvez pudssemos chamar tambm de afetiva,

porque diz respeito a um momento pessoal, ntimo, circunstancial de seu passado

com a famlia. Esse carter subjetivo da experincia est presente, com bastante

fora, naquele pequeno extrato acima citado. O caleidoscpio de temas que se

entrecruzam indica a necessria vinculao que um tema possui com o outro, como

a educao sensorial adquirida na cidade e seu vnculo poltico, por exemplo.

Entendemos, contudo, a dificuldade crescente quando se escolhe um assunto,

porque deixamos de lado outros da mesma magnitude, mas que, por uma falta de

tempo para investigao, consideramos mais relevante falar somente de um,

sabendo, contudo, que ocultamos outros vnculos necessrios.

Por isso, a preocupao de Benjamin com a experincia est para alm das

discusses de carter transcendental da histria da filosofia, por exemplo, ou ainda

da necessidade de achar um conceito necessrio para compreender esse

fenmeno. Benjamin parte da prpria existncia para pensar a realidade do conceito.

Ele diagnostica a transformao social realizada na Europa aps a 1 Guerra

Mundial e observa as inmeras modificaes produzidas no interior de uma

num campo de foras de correntes e exploses destruidoras, estava o frgil e minsculo corpo humano. In: BENJAMIN, 2010, p. 114-115.

18 Citado por Martin Jay no livro Cantos de experincia (vide referncias): Benjamin a Adorno, 7 de mayo de 1940, em ob. Cit., pg. 326. El Hermano en cuestin era Georg Benjamin (1895-1942), quin se convirti en comunista y muri en un campo de concentracin nazi.

sociedade que provocaram mudanas no somente sociais, mas de cunho

ideolgico, comportamental e tico. Isso tudo est presente, de modo bastante

particular, embora em ntima conexo, com as problemticas que circunscrevem a

obra de Benjamin, em textos como o Dirio de Moscou e nas memrias de criana

em Infncia berlinense: 1900.

Diagnosticar a modernidade , acima de tudo, analis-la como uma poca

produtora de empobrecimento de experincias (Erfahrung) humanas comunicveis.

Benjamin nomeia a experincia empobrecida de vivncia (Erlebnis). Talvez

possamos considerar que vivncia um conceito cujo valor heurstico s se deixa

entrever no contemporneo, no presente, momento em que parece ganhar mais

fora explicativa do que quando o autor o formulou. Nosso afastamento relativo

nossa prpria insero no movimento que o confirma. De qualquer modo, Martin Jay

faz uma reflexo etimolgica que nos ajuda a sistematizar esse conceito to caro a

Benjamin:

Erlebnis contiene la raz de la palabra Leben (vida) y a veces se traduce como experiencia vivida. [...]. Aunque erleben es un verbo transitivo e indica la experiencia de algo, Erlebnis suele implicar una unidad primitiva, previa a cualquier diferenciacin u objetivacin. Normalmente localizada en el mundo cotidiano (el Lebeswelt) del lugar comn y de las prcticas no teorizadas, puede sugerir asimismo, una intensa y vital ruptura en la trama de la rutina cotidiana. Pese a que Leben indica tambin la totalidad de una vida, Erlebnis generalmente connota una variante de la experiencia ms inmediata, prerreflexiva y personal que Erfahrung.

19

Em seu famoso ensaio Experincia e pobreza, o berlinense vincula Erlebnis

barbrie, mais precisamente a dois tipos de barbrie: uma que impossibilita as

experincias de serem transmitidas de uma gerao outra, condenadas a

morrerem no elo entre as geraes; outra, uma nova barbrie, lugar em que emerge

o novo e que no se vincula mais a uma tradio. Este ltimo conceito parece ser

alvo de uma nova reconfigurao na modernidade, pois nessa expresso recente de

experincia surge um novo sujeito, o homem brbaro20. Sua famosa frase presente

19

JAY, 2009, p. 27. 20

Cf.: Para uma anlise ps estruturalista sobre a questo da nova barbrie, ver: MATTI, Jean-Franois. A barbrie interior. Traduo de Isabel Maria Loureiro. So Paulo: UNESP, 2002. Neste livro, o autor analisa, desde os antigos at os dias de hoje, as formas com que a barbrie tomou forma na sociedade ocidental: tanto no sentido prprio quanto no figurado, a destruio de um povo se manifesta sempre pela destruio de sua cultura, quer dizer, das obras que mostram, pela importncia de origem, a fecundidade do homem. Delenda Cultura est: esse o dobre moderno da barbrie que decompe, desconstri e destri; numa palavra, arruna todas as colunas da civilizao que elevam o homem acima de si mesmo. O barbro, tal como viam Nietzsche, Simone

nas teses sobre a histria21 parece dar continuidade a esse pensamento, a saber,

nunca houve um monumento da cultura que no fosse tambm um monumento da

barbrie22. Benjamin parece aqui aludir a um tipo especfico de experincia que diz

respeito ao modo como experimentamos a histria, a cultura, em ltima instncia, a

materialidade dos objetos.23

Esse brbaro capaz de constituir-se enquanto um sujeito de vivncias

individual e coletivamente a partir de uma tbula rasa. Ele fundar uma cultura de

vidro, que no deixa nada atrs de si. Poderamos fazer uma comparao entre o

sujeito arcaico e o sujeito contemporneo. O prprio nome j revela o que os

distingue fundamentalmente. Enquanto o sujeito arcaico prende-se tradio,

histria, memria, ao seu passado, o homem contemporneo est dissociado de

todos os seus laos histricos porque no possui mais um vnculo direto com a

memria coletiva. Ele vive o tempo do acontecimento. As coisas seu valor so

mediadas pelo tempo do agora, do instante, no dizem respeito a um valor pretrito.

Benjamin parece remeter a uma concepo de homem despersonalizada quando

comenta a compreenso de homem contemporneo de Paul Scheerbart:

Scheerbart se interessa pela questo de como nossos telescpios, avies e foguetes transformam os homens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de serem vistas e amadas. De resto, essas criaturas tambm falam uma lngua inteiramente nova. Decisiva nessa linguagem a dimenso arbitrria e construtiva, em contraste com a dimenso orgnica. esse o aspecto inconfundvel na linguagem dos homens de Scheerbart, ou melhor da sua gente; pois tal linguagem recusa qualquer semelhana com o humano, princpio fundamental do humanismo.

24

Contudo, o carter positivo que o alemo introduz no segundo conceito de

barbrie parece ser devido capacidade que o filsofo percebe do homem

superar os aparatos tcnicos pelo uso de sua imaginao. Mesmo depois de uma

longa jornada de trabalho, o homem ainda consegue sonhar, realizar seus desejos

por meio da arte, por exemplo25. Essa nova constituio da experincia parece se

Weil e Hannah Arendt, o destruidor de colunas, aquele que a derruba no lodo ou a esvazia do interior, fazendo do mrmore, areia e da areia, nada. (MATTI, 2002, p. 243).

21 BENJAMIN, 2010.

22 BENJAMIN, 2009, p. 225.

23 Embora no temos condies de fazer uma anlise pormenorizada de Experincia e pobreza e Sobre o conceito de histria, gostaramos de indicar, contudo, que em ambos os textos Benjamin reflete sobre a maneira como os objetos de nossa realidade cultural definem o modo como nos relacionamos com ela, ou seja, refere-se a um tipo especfico de experincia, entendida como resultado da mediao entre o sujeito e a cultura.

24 BENJAMIN, 1993, p. 117.

25 PEREIRA, 2012, p. 51.

realizar atravs da imagem da criana, que sonha e imita os objetos da vida real

porque sua imaginao possibilita tal jornada. De modo semelhante, o viajante que

se deixa perder numa cidade26 e observa os traos fisionmicos do lugar realiza

tambm uma experincia autntica.

Poderamos ainda especular que a concepo despersonalizada do homem

na histria, esse conceito novo e positivo de barbrie, faz surgir um novo indivduo

semelhante ao alm-homem de Nietzsche que, diante da morte de todas as

concepes de mundo e de valores poca niilista , no se identifica mais com o

seu passado, um homem ps-humano, em que os valores so ultrapassados para

dar margem a uma ideia de superao.

Essa concepo nova de homem talvez possa se aproximar dos primeiros

escritos de Benjamin sobre o conceito de experincia, j que ele possua uma forte

necessidade de denunciar o preconceito contra o esprito juvenil, seu potencial e

fora revolucionrios. Integrante de movimentos juvenis27, sua linguagem a de um

combatente travamos nossa luta por responsabilidade que valoriza as

palavras de ordem e ao contra os clichs do discurso do adulto experiente.

Nesse perodo, Benjamin ainda no havia abordado a distino entre experincia

(Erfahrung) e vivncia (Erlebnis), que se constituiria mais tarde em sua obra, ou sua

crtica ao conceito de Kant: um conceito de experincia a partir de uma filosofia do

futuro28.

Muricy29 acredita que a concepo de experincia de Benjamin em 1913

estava mais relacionada sua noo de Erlebnis desenvolvida posteriormente,

26

Cf. No h nada de especial em no nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdermos numa floresta, coisa que precisa de se aprender. (BENJAMIN, 2004, p. 82).

27 Cf. Benjamim estava nesta poca totalmente voltado para a organizao do movimento de juventude, Berliner freie Studentschaft, da qual foi presidente em 1914. Os escritos do perodo respondem s questes vividas no movimento ou, mais exatamente, elaboram-nas teoricamente, procurando situ-las em um contexto estritamente filosfico. Foram, na sua maioria, publicados na Der Anfang [O Princpio], a revista do movimento e assinadas com o sugestivo pseudnimo de Ardor. O movimento de juventude (Jugendbewegung), ao qual se liga Benjamin, opunha-se s tradicionais e conservadoras corporaes estudantis das universidades alems. A ambio era grande: propunha-se transformao radical da sociedade e da cultura pela ao de uma juventude esclarecida. Uma reforma pedaggica ampla, uma mudana de mentalidade dos jovens, era vista como decisiva para o renascimento da cultura alem. (MURICY, 2009, p. 37).

28 Cf. Benjamim discutir a distino entre Erfahrung e Erlebnis essencialmente nos ensaios Experincia e pobreza e O narrador consideraes acerca da obra de Nicolai Leskov. Sobre a crtica do conceito de experincia em Kant ver o ensaio: Sobre o programa de uma filosofia do futuro.

29 Cf. MURICY, 2009, p. 44.

experincia entendida como contraposta ao que novo, estritamente vinculada ao

imediatismo dos acontecimentos, sem novidade, pura repetio.

Poderamos inferir que, antes de qualquer relao com a vivncia

empobrecida pelas runas que restaram das guerras, a experincia, neste ensaio da

juventude, faz uma crtica vivaz estagnao das tradies, dos povos e ao abismo

que se abriu entre uma gerao e sua sucessora, devido sua falta de dilogo e

comunicao30. Refere-se, portanto, grande dificuldade e barreira estabelecida no

esprito humano: a conciliao entre a tradio e o que est nascendo, a novidade, o

futuro.

No ensaio O narrador consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov31, a

perda da experincia na modernidade est diretamente ligada ao desaparecimento

da figura do narrador, do contador de histrias, daquelas lies de vida exemplares

que constituam a tradio das famlias, das aldeias, em suma, de uma comunidade.

Por isso, juntamente com o surgimento dessa nova estrutura de homem, que no

mais constitudo ou formado a partir de ideais milenares de uma sociedade, surge

tambm uma nova forma de narrativa: a narrao das runas. E o palco das runas

a metrpole moderna, que transforma a maneira pela qual apreendemos, pelos

sentidos, a experincia, conforme veremos a seguir.

A experincia sensorial na cidade

Com o passar do tempo, nas narrativas de Marco, as palavras foram substituindo os objetos e os gestos: no incio, exclamaes, nomes isolados, verbos secos; depois, torneios de palavras, discursos ramificados e frondosos, metforas e imagens. O estrangeiro aprendera a falar a lngua do imperador, ou o imperador a entender a lngua do estrangeiro. Mas dir-se-ia que a comunicao entre eles era menos feliz do que no passado: claro que as palavras serviam melhor do que os objetos e os gestos para apontar as coisas mais importantes de cada provncia ou cidade monumentos, mercados, trajes, fauna e flora todavia, quando Polo comeava a dizer como devia ser a vida naqueles lugares, dia aps dia, noite aps noite, as palavras escasseavam, e pouco a pouco voltava a fazer uso de gestos, caretas, olhares.

Italo Calvino

A modernidade produz um novo sujeito e uma concepo indita de

experincia, a qual se reconfigura na cidade, mais precisamente nas metrpoles

30

Cf. Akira Kurosawa, cineasta japons, ilustra o problema da incomunicabilidade nas tradies das famlias num filme chamado Rapsdia de Agosto, de 2002.

31 BENJAMIN, Walter. O narrador consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras Escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 2009.

modernas: Paris, Berlim, Londres, Moscou, Npoles, etc. A cidade o lugar onde se

expressa uma forma recente de definir o sujeito moderno.

O novo homem identifica-se com as ruas porque nela encontra um mbito,

uma instncia impessoal, um fora de si. As experincias de hoje, como afirma

Agamben, no so mais realizadas no prprio sujeito, mas fora dele32. Benjamin

previra uma nova noo de experincia para o indivduo contemporneo, um sair

das cinzas da barbrie. Qual seria essa promessa para um futuro vindouro?

Agamben parece partir da concepo benjaminiana de um futuro que essa barbrie

positiva pode trazer. Para ele, o homem necessita preparar esse novo lugar de

experincias:

Posta diante das maiores maravilhas da terra (digamos, o ptio de los leones, no Alhambra), a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experiment-las: prefere que seja a mquina fotogrfica a ter experincia delas. No se trata aqui, naturalmente, de deplorar esta realidade, mas de constat-la. Pois talvez se esconda, no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um gro de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernao, o germe de uma experincia futura. A tarefa que este escrito se prope retomando a herana do programa benjaminiano a de preparar o lugar lgico em que este germe possa atingir a maturao.

33

O novo conceito de experincia e o conceito positivo de barbrie surgem,

nesse caso, como vivncia (Erlebnis) rompida com qualquer vnculo com a tradio.

O novo homem destitudo de passado, ele no olha para frente com o peso dos

erros daqueles que o antecederam. Ele caminha com leveza, suas aes s dizem

respeito ao agora, ao acontecimento, caminhando com um olhar, uma audio, um

tatear, um degustar e um cheirar novos, no determinados pelo hbito, pelo

protocolo, pelas regras, pelo engessamento histrico. Esse sujeito parte para a

descoberta do mundo com seu prprio corpo, liberto para a novidade, pelo espao e

tempo novos, seus sentidos esto ampliados. Torna-se to pleno que se sente mais

apto para a ao revolucionria:

O contemporneo que, ao ler uma obra de histria, reconhece com que longa mo a misria que lhe sobrecaiu vem sendo preparada e mostrar isto ao leitor deve ser uma tarefa que se acerca do corao do historiador adquire, por isso, uma alta opinio de seus poderes. Uma histria que ensina o povo desse modo no os faz melanclicos, mas lhe proporciona armas.

34

32

AGAMBEN, 2008, p. 23. 33

AGAMBEN, 2008, p. 23. 34

BUCK-MORSS, 2002, p. 343.

Essa concepo de ao revolucionria na histria nos remete s categorias

de espao e tempo que suscitam e remetem teoria benjaminiana da histria aberta

e da imagem dialtica, intimamente ligadas sua concepo de experincia. A

histria aberta representa um ajuste de contas que as novas geraes realizam

com o passado, com a linhagem que os antecederam. O tempo histrico sob essa

crescente perspectiva promove um conceito de tempo no cronolgico,

continuum, mas um tempo em que passado e presente estejam unidos e conduzidos

a fazer do futuro um espao, lugar em que no haja catstrofes, opresso das

classes oprimidas, mas uma realidade em que predomine uma histria de

construo35.

Nesse sentido, as categorias de espao e tempo representam, no nosso

entendimento, o solo germinativo dessa nova barbrie, ao mesmo tempo em que

parece estar relacionada ao movimento que os sentidos e o corpo como um todo

realizam nessa concepo indita de experincia, e que possam promover um

verdadeiro acerto de contas com a histria. Sigrid Weigel defende que a noo de

corpo e de corporalidade em Benjamin aparece em sua obra como imagem.

Vejamos:

El cuerpo no se encuentra fuera de la historia, ni tampoco se lo entiende como perteneciente a la naturaleza en oposicin a la Cultura. Tambin el cuerpo tiene una historia. El cuerpo es, al mismo tiempo, la matriz y el lugar de ajustes de cuentas de la historia./Benjamin haba destacado de modo particularmente significativo la importancia de la historia para la materialidad y corporeidad (lo que es ahora un bastin tan relevante en la teora actual), aun cuando esto no haya despertado la debida atencin./ [...] en su obra siempre se da un entrelazamiento de cuerpo e historia, ello sucede en el rea de un espacio de la imagen, de tal modo que el cuerpo, en tanto matriz de la historia, aparece siempre estructurado como imagen.

36

Ainda sobre a experincia moderna, podemos l-la em vrios escritos de

Benjamin, principalmente em alguns aforismos do Livro das Passagens: em figuras

alegricas como o flneur, a criana, o trapeiro, a prostituta, o colecionador, e tantas

outras: alegorias que representam o carter de limiar da cidade, a conciliao entre

o antigo e o moderno, o pblico e o privado. So figuras que representam a

contradio e o esprito da modernidade, permitindo uma maneira de compreender

esse novo sujeito e seu espao par excellence, a cidade. Esse mundo repleto de

figuras alegricas permite a Benjamin tornar a experincia de um mundo em 35

Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria. In: ______. Obras escolhidas. Traduo de Sergio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 2010.

36 WEIGEL, 1999, p. 88-89.

fragmentos visivelmente palpvel37, mas, ao mesmo tempo, elas no esto bem

estabelecidas, j que se situam margem da cidade, sem um papel delimitado.

Assim, figuram tanto entre o estar presente e o no adaptado, e cujos papis sociais

ainda no se encontram completamente traados, pois so a expresso de um

momento histrico em que o rompimento com o passado no significa a agregao

de certos elementos (desse passado) no novo presente.

De qualquer forma, merece destaque o fato do conceito de experincia

benjaminiano estar notavelmente pautado pelas impresses suscitadas pelo

corpo, que se abre para o mundo. Em Imagens do pensamento, no aforismo Ler

romances, Benjamin argumenta que sem dvida existe um alimento cru da

experincia exatamente como existe um alimento cru do estmago , ou seja,

experincias no prprio corpo38. A aquisio de experincias uma aluso direta

aos sentidos do corpo aberto ao mundo.

As figuras que Benjamin prope como chaves de leitura desse novo tempo, a

exemplo do trapeiro, do colecionador, da criana e da prostituta, so, como j dito,

ambguas, e fundam uma nova sensibilidade histrica: a experincias das ruas39. E

entre esses personagens emblemticos, que so parte da narrativa da metrpole

urbana, destaca-se, por exemplo, o flneur, que no asfalto sobre o qual caminha,

seus passos despertam uma surpreendente ressonncia [audio]. A iluminao a

gs que recai sobre o calamento lana uma luz ambgua sobre este duplo cho

[viso]40. Benjamin pensa a cidade como a extenso da casa e qui tambm da

existncia. As ruas so parte de um habitat familiar para o flneur, lugar onde ele se

constitui, absorve os elementos que lhe formam como poeta: a poeira das ruas, as 37

BUCK-MORSS, 2002, p. 41. 38

BENJAMIN, 2009, p. 275. 39

Cf. Joo do Rio compartilha com Benjamin a mesma experincia na Alma encantadora das ruas: A rua nasce, como o homem, do soluo, do espasmo. H suor humano na argamassa do seu calamento. Cada casa que se ergue feita do esforo exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopia to triste que pelo ar parece um arquejante soluo. A rua sente nos nervos essa misria da criao, e por isso a mais igualitria, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. [...] A rua a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria noite, treme com a febre dos delrios, para ela como para as crianas a aurora sempre formosa, para ela no h o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das prprias aes, , no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostlgico dos preges to modesta, to lavada, to risonha, que parece papaguear com o cu e com os anjos... [...] Essas qualidades ns as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua, no basta gozar-lhe as delcias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. preciso ter esprito vagabundo, cheio de curiosidades malss e os nervos com um perptuo desejo incompreensvel, preciso ser aquele que chamamos flneur e praticar o mais interessante dos esportes a arte da flanar. fatigante o exerccio? In: RIO, 2007, p. 2.

40 BENJAMIN, 2009, p. 462.

vitrines, os espectros produzidos pelo reflexo dos vidros, o cheiro sinttico da vida

urbana, o barulho dos transeuntes, dos automveis... a rua como intrieur.41

A rua tambm intrieur porque o lugar em que mora o coletivo, a massa,

as pessoas em conjunto. Elas se identificam e se formam nessa paisagem: a dos

corredores, das ruas, das empresas, dos automveis, das praas, do asfalto. Esses

so lugares que ecoam, reverberam a condio de vida das cidades e de seus

moradores. Contudo, na experincia do flneur que a existncia se abre e produz

perspectivas e possibilidades. A leitura da cidade dada por este personagem

peculiar. O prprio flneur um personagem mvel, ele se transforma,

metamorfoseia-se, podendo se converter em todos os demais personagens: criana,

jogador, detetive, etc. Ele condensa todas as figuras em uma s, j que o flneur

usado por Benjamin para a misso de reconhecimento do labirinto da modernidade,

[...] a presena do flneur [funciona] como instrumento de orientao e mapeamento

da sociedade nas metrpoles modernas42. Segundo Bolle, podemos identificar um

verdadeiro mapa sociolgico por meio da figura do flneur: a aristocracia, [a]

burguesia, [as] classes trabalhadoras, [os] produtores de cultura e os

desclassificados43. Ele encerra em si os conflitos, contradies, perspectivas e

possibilidades desse tempo histrico to peculiar. Ele representa as ambiguidades e

o territrio, o espao de passagem, limiar desse novo ambiente urbano, no qual

expressa-se a ambivalncia dessa figura do limiar que o flneur: com um p ele

ainda faz parte da sociedade, com outro j est fora dela44.

Essas figuras alegricas, todas com seu carter marginalizado, que podem

ser todas elas representadas pelo flneur, mostram um emblema social muito

impactante da cidade moderna:

Benjamin apresenta um modelo da sociedade inteira, onde todos que desfilam no palco da Metrpole podem ver o prprio retrato em espelhos colocados rente ao cho. O texto se configura como uma leitura da sociedade, da perspectiva rasteira, do ngulo dos de baixo: marginalizados, desprezados, desclassificados, excludos, descartados. Sem se eximir a si prprio, o crtico convida os membros ilustres e bem colocados da sociedade, os que do o tom, a se olharem nesses espelhos. Ao cinismo vigente de sua poca, ele responde com uma radiografia da sociedade pelo prisma do flneur e da bohme, dentro da tradio da stira romana, do humor custico de Rabelais, dos caricaturistas do sculo XIX e da pardia brechtiana que mostra a sociedade burguesa como criminosa. Um tableau

41

BENJAMIN, 2009, p. 466. 42

BOLLE, 2000, p. 372. 43

BOLLE, 2000, p. 372. 44

BOLLE, 2000, p. 393.

alegrico, figuras em movimento, que passam como um desfile carnavalesco.

45

Para o autor berlinense, a leitura da modernidade s poderia ser feita a partir

das classes baixas, da representao de uma sociedade no estigmatizada por uma

classe sempre favorecida pelos padres sociais. A mudana social de uma poca

vista pelos impactos e desdobramentos sentidos pelos marginalizados, pela

periferia. Para isso, Benjamin escolheu Berlim e Moscou. Segundo Bolle:

Em ltima instncia, a Metrpole moderna mostrada, na obra de Benjamin, a partir da tica dos marginalizados e desclassificados, dos que vivem na periferia. Essa representao tem sua base histrica na poca da Revoluo Industrial, nas metrpoles de Paris e Londres; numa fase posterior, tambm em Berlim e Moscou, e, marginalmente, Npoles. Na capital do sculo XIX, o crtico focaliza as multides pauperizadas, na era da consolidao do capitalismo. Estendendo-se at o limiar da poca do Imperialismo, o estudo benjaminiano do sculo XIX sugere uma ampliao do campo de vista, uma superao da perspectiva exclusivamente europeia.

46

Certamente, Berlim e Moscou no so capitais repletas de marginalizados,

embora a tica de Benjamin seja a da classe dos oprimidos, no intuito de ressaltar

as diferenas sociais existentes nessas capitais e os personagens histricos que

no encontram espao na nova ordem social vigente. Sua abordagem visa revelar

as ambiguidades e discrepncias que se encontram no interior de uma sociedade

taxada de moderna.

A prpria figura do narrador tradicional retomada nessa nova configurao

da sensibilidade: ele pode ser visto como o trapeiro, aquele que no deixa rastros na

histria, que no possibilita um depois para a memria, algo a ser narrado, mas cujo

olhar, em contrapartida, no deixa de reconhecer os cacos da histria. Gagnebin

define pontualmente os traos desse novo narrador:

O narrador tambm seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do chiffonnier, do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movidos pela pobreza, certamente, mas tambm pelo desejo de no deixar nada se perder.

47

O empobrecimento da experincia produz ainda outras duas quebras com a

tradio, entre o velho e o novo: a separao entre o ato de narrar e o objeto

histrico. A perda da experincia de narrar impossibilita o reconhecimento dos

45

BOLLE, 2000, p. 396. 46

BOLLE, 2000, p. 397. 47

GAGNEBIN, 2009, p. 54.

objetos e obras de arte historicamente definidos como tais, visto que j no esto

mais vinculados ao passado. O objeto destitudo de valor e o que sobra peso e

runa. No mais possvel a acumulao da cultura, logo, no h uma legenda, uma

histria que a vincule ao objeto48.

Por isso, a obra de arte do poeta da cidade, ou o flneur, a poeira das ruas,

matria de inspirao, imaginao, no mais monumento histrico. No caso de

Benjamin, o prprio texto, isto , a materialidade da escrita, tornou-se patrimnio e

testemunho da histria.

Certamente, a produo de uma sensibilidade nova historicamente tem suas

vicissitudes, como, alis, tudo que diz respeito modernidade e s reflexes de

Walter Benjamin sobre esse tempo49. Esta sensibilidade tambm educada para

responder a uma necessidade desse novo tempo: a uma possvel falta de sentido

histrico nas aes humanas.

A educao dos sentidos em Berlim e Moscou

O que torna incomparvel e irrepetvel a primeira viso de uma aldeia, de uma cidade no meio da paisagem, o fato de nela o que est longe vibrar numa estreita ligao com o que est prximo. Ainda no se fizeram sentir os efeitos do hbito. Mal comeamos a orientar-nos, logo a paisagem desaparece como a fachada de uma casa quando entramos nela. Ainda no ganhou preponderncia atravs de constante explorao, transformada em hbito. Assim que comeamos a orientar-nos no lugar, nunca mais aquela primeira imagem poder ser reconstituda.

Walter Benjamin

Nossa anlise sobre a relao entre subjetividade e cidade considera esse

movimento muito presente nos textos analisados, Infncia berlinense: 1900 e Dirio

de Moscou, que vai da esfera privada, da dimenso pessoal, para o espao pblico,

e que o territrio par excellence no qual se d a formao (Bildung), a saber, a

cidade. Adorno, por exemplo, j havia identificado isso quando fez a oposio entre

urbanidade e campo50.

48

AGAMBEN, 2012, p. 174. 49

Como exemplo, poderamos citar sua discusso sobre o cinema em A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica, em que Benjamin comenta sobre o ambguo sentido que o cinema nova forma de arte dotado: por um lado, a perda da aura e a massificao da arte dadas pela capacidade de reproduo tcnica e, por outro, o aumento de sua dimenso social e poltica.

50 Cf. A formao cultural (Bildung) precisa corresponder urbanidade, e o lugar geomtrico da mesma a linguagem. Ningum pode ser recriminado por ser do campo, mas ningum deveria tambm transformar este fato em um mrito, insistindo em permanecer assim. Quem no conseguiu emancipar-se da provncia, posiciona-se de um modo extra-territorial em relao formao cultural. In: ADORNO, Theodor. A filosofia e os professores. In: ______. Educao e emancipao. Traduo de Wolgang Leo Maar. So Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 64-71.

Benjamin tambm percebera os limiares entre a cidade e o campo, como

expressa em Dirio de Moscou. Na Moscou recm-urbanizada da poca, os

elementos provincianos ainda se fazem presentes com bastante fora, como em

outras metrpoles, cenrios ainda comuns na construo da paisagem moderna.

Benjamin ressalta o limiar entre a cidade e o campo a propsito dos trapeiros, ao

concluir que estes eram os nicos que se aventuravam a fazer barulho em Moscou,

a mais silenciosa das grandes cidades que Benjamin conhecera:

S uma casta desfila ruidosamente pelas ruas: os trapeiros com seus sacos nas costas; seus chamados melanclicos atravessam todas as ruas de Moscou, uma ou mais vezes por semana. H algo de singular nestas ruas: nelas, a aldeia russa brinca de esconde-esconde. Entrando por um dos grandes portes frequentemente fechados com grades de ferro forjado, mas nunca encontrei qualquer delas trancada a pessoa se v no limiar de uma ampla rea residencial que muitas vezes se esparrama de forma to extensa e generosa que como se o espao nesta cidade nada custasse. Uma quinta rural ou uma aldeia estendem-se assim sua frente. O cho acidentado, crianas andam de tren, removem a neve com ps; barraces para madeira, ferramentas ou carvo pelos cantos, rvores aqui e acol, escadas primitivas de madeira ou anexos do s laterais ou aos fundos das casas, cujas fachadas apresentam um aspecto bastante urbano, um ar de casas camponesas russas. Assim, a rua adquire a dimenso de paisagem. De fato, em lugar algum Moscou tem realmente a aparncia da cidade que ; ela mais parece o subrbio de si mesma.

51

A propsito da temtica de Dirio de Moscou, o texto constitui-se de um relato

de viagem que expressa o cotidiano de Benjamin na capital russa em companhia de

Asja Lacis e Bernard Reich52. Benjamin viajara para Moscou por um motivo

passional: seu romance com Asja mulher notvel que o inspirou na produo de

Rua de sentido nico53 e por seu envolvimento com o comunismo54. Suas

51

BENJAMIN, 1989, p. 83. 52

Segundo nota do tradutor do Dirio, Reich fora diretor (entre outras funes) de teatro e escreveu junto com Benjamin o ensaio Revue oder Theater. Asja teve um romance com Reich e tambm era ligada ao teatro comunista russo. Lacis via o seu trabalho como parte integral da transformao revolucionria de uma sociedade. Como agente inovadora de um teatro para crianas proletrias, ela desenhou uma pedagogia infantil revolucionria que era a anttese de uma doutrina autoritria. In: BUCK-MORSS, 2002, p. 37.

53 Benjamin dedica esse conjunto de aforismo a Lacis: Esta rua chama-se Rua Asja Lacis em homenagem quela que como um engenheiro a abriu no corpo do autor deste livro. In: BENJAMIN, 2004, p. 7.

54 Cf. S fatores exclusivamente externos impedem-me de entrar no Partido Comunista Alemo. Agora seria o momento indicado, e talvez seja perigoso deix-lo passar. Justamente pelo fato de filiao ao Partido ser para mim, possivelmente apenas um episdio, no aconselhvel adi-la ainda mais. Mas h, e permanecem, os fatores externos, sob a presso dos quais eu me pergunto se no seria possvel, atravs de trabalho intensivo, consolidar concreta e economicamente uma posio independente na esquerda que continuasse me assegurando a possibilidade de uma produo abrangente dentro de minha atual esfera de trabalho. Mas a questo , justamente, se essa produo pode ser levada adiante, a uma nova fase, sem que haja uma ruptura. [...] Outra considerao: filiar-se ao Partido? Vantagens decisivas: uma posio slida, um mandato, ainda

descries sobre a fisionomia da cidade russa e a educao proletria mostram seu

grande interesse em investigar o que o regime comunista tinha de controverso e no

que se aproximava de uma sociedade burguesa. Moscou relatada, grosso modo,

como uma cidade repleta de contradies, de ambiguidades, uma caracterstica que

a aproxima de outras grandes metrpoles da poca, mas talvez com uma

peculiaridade muito prpria: nela, as dubiedades ainda esto bastante visveis.

Benjamin observa, ademais, pela moda, as discrepncias dessa urbe:

[...] Elegncia urbana e trajes camponeses misturam-se nos homens e mulheres. Aqui e acol, como tambm em outras grandes cidades, encontram-se ainda (entre as mulheres) o traje tpico campons.

55

Outro aspecto que incita as reflexes de Bolle sobre essa obra de Benjamin

diz respeito s aspiraes do Dirio de Moscou, da busca do filsofo alemo por

uma compreenso de si mesmo tanto em Moscou quanto na sua cidade natal:

Toda a problemtica da estada de Benjamin em Moscou se condensa nessa passagem; as emoes pessoais se cruzam com as linhas de fora da vida poltica e intelectual. Por um momento se dissipa a neblina das sempre frustradas expectativas erticas e emocionais em relao a Asja, e de sua surda rivalidade com Reich, e ele enxerga as bases materiais e psicossociais de uma vida de intelectual em Moscou. A figura de Reich para Benjamin tambm um meio para se perceber a si mesmo. Em comparao com ele muito bem relacionado em Moscou, membro da classe dominante Benjamin se d conta de sua prpria existncia: a de um outsider, no apenas em Moscou, onde isso natural, mas tambm na sua terra.

56

Outro aspecto relevante, segundo Bolle, a importante correspondance

entre a mentalidade das classes sociais e a fisionomia das grandes cidades57, o

que mostra a construo de sentidos empreendida pelo autor ao descrever os

processos polticos juntamente com a moral proletria dominante em Moscou.

Benjamin realizou uma verdadeira viagem de formao (Bildungsreise), trazendo a

que apenas virtual. Contato organizado com as pessoas. Por outro lado: ser comunista em um Estado onde governa o proletariado significa renunciar completamente independncia individual. Delega-se assim ao Partido a tarefa de organizar a prpria vida. [...] Dentro do Partido: a enorme vantagem de poder projetar seus prprios pensamentos em algo como um campo de foras preestabelecido. A legitimidade de se permanecer fora do Partido determinada, em ltima anlise, pela questo de se possvel posicionar-se do lado de fora com alguma vantagem tangvel e concreta, sem passar para o lado da burguesia ou prejudicar o prprio trabalho. Ser possvel atribuir uma justificativa concreta para meus trabalhos futuros, especialmente os cientficos, com seus fundamentos formais e metafsicos? O que haveria de revolucionrio em sua forma, se que realmente existe algo nela de revolucionrio? In: BENJAMIN, 1989, p. 88-89.

55 BENJAMIN, 1989, p. 86.

56 BOLLE, 2000, p. 192.

57 BOLLE, 2000, p. 180.

experincia de uma cidade marcada por um regime proletrio, uma relao

fisionmica intensa com a metrpole, principalmente pelo seu aspecto de formao

e pelas marcas que a experincia sovitica deixou pensamos aqui em seu

corpo, por meio da apreenso pelos sentidos. Ou ainda, uma busca de

autoformao, uma tentativa de encontrar-se a si mesmo58. O filsofo dava uma

importncia grande ao Dirio, segundo podemos depreender das notcias de sua

dedicao obra logo aps a viagem a Moscou, na volta a Berlim, segundo relata

Seligmann-Silva, ao comentar sobre outros detalhes desse texto de carter to

ntimo:

O texto guarda vrias marcas que atestam seu hic et nuc. Uma das mais patentes o prprio ttulo. Na folha do manuscrito, que se encontra no arquivo Walter Benjamin, o ttulo est rasurado, ainda que com esforo se possa ler Moskauer Tagebuch, e foi substitudo por outro: Spanische Reise (Viagem espanhola). O editor dos dirios, Gary Smith, especula se essa mudana no teria a funo de proteger o manuscrito em um eventual controle de carter poltico ou, ainda, se haveria alguma aluso literria por detrs desse gesto ou se ambos os fatores influenciaram nessa deciso. A verdade que a rasura e a substituio de ttulo atesta algo da histria do manuscrito, e o fato de Benjamin ter escolhido a Espanha e no outro pas tambm pode levar a conjecturas. Do dirio, o texto guarda tambm a distribuio das entradas por dias. O autor tambm utiliza inmeras vezes expresses tpicas da autoescrita, algumas delas, no entanto, mais prprias da autobiografia ou das memrias, como no me lembro muito bem (BENJAMIN, 1989, p. 42), mas que surgem aqui, como fica claro no texto, em funo dos atrasos na escrita do dirio. Benjamin anota a data na qual est escrevendo sobre dias anteriores, nos quais ele no tivera tempo para escrever. O mais caracterstico da escritura de dirios o que tambm mais marca esse texto: sua presentidade. Tudo se encontra em estado de acontecer. A fora desse gesto que sustenta a estruturao do texto e que lhe impregna com uma irrefutvel intensidade. O dirio permite esse passo a passo com o autor-protagonista. Na intimidade, sentimos as alteraes no pulsar de seu corao, nossa pele se arrepia com a dele e as paisagens descritas como que penetram pelas nossas retinas. A fora do ato testemunhal do dirio, Benjamin a explora com fins tanto pessoais, como literrios a at de seduo: de seus provveis leitores, mas tambm de sua leitora de primeira hora que foi Asja Lacis.

59

A aproximao que fazemos entre os dois ensaios que elegemos para anlise

nesse artigo se refere maneira de olhar e apreender a cidade em muitos

momentos: Benjamin procurara descrever coisas que poderiam ser consideradas

insignificantes para um viajante comum. Quando pensamos no que havia para se

conhecer numa grande cidade como Moscou, suas descries so muitas vezes

idiossincrticas e sensoriais. Qui como uma criana como a de Infncia 58

Willi Bolle ressalta tambm que Walter Benjamin fora um dos primeiros escritores alemes a visitar a Rssia nesse perodo. O que antes se fazia na Itlia (a viagem de formao Bildungreise), deslocara-se para a Rssia (BOLLE, 2000, p. 180).

59 SELLIGMANN-SILVA, 2012, p. 167-168.

berlinense ele busca um sentido diferente para os objetos e monumentos, a

saber, espontaneidade, inspirao mgica para olhar e tocar, alm de certamente

sua fascinao por tudo que diz respeito a esse universo: brinquedos, livros,

temticas da infncia em geral. Em suma, um universo que diz respeito a um

colecionador, como seu interesse por caixinhas: essa paixo origina-se da forte

impresso que uma dessas caixas sempre me causou [...] o que me permite avaliar

a impresso inesquecvel que essas imagens sobre fundo preto de laca devem

causar nas crianas, ou ainda por histrias suscitadas pelos quadros de um museu:

consegui andar por esse museu como nunca antes conseguira por uma exposio

desconhecida, totalmente descontrado e entregue a um desejo de contemplao

infantil das histrias que os quadros contavam60.

Em Infncia berlinense tambm temos o mesmo Benjamin adulto analisando

uma cidade pertencente s suas memrias: ainda assim o berlinense j crescido

mostrando uma Berlim projetada por seus desejos e aflies da vida presente e no

da cidade do passado por volta de 1900. Este texto tambm sobre uma cidade, de

acordo com as palavras do prprio Walter: Procurei [...] apoderar-me das imagens

nas quais se evidencia a experincia da grande cidade por uma criana da classe

burguesa. Ou ainda: [...] as imagens da minha infncia na grande cidade talvez

estejam predestinadas, no seu ncleo mais ntimo, a antecipar experincias

histricas posteriores61.

Duas categorias importantes para se pensar tanto o Dirio quanto a Infncia

so o tempo e o espao62. O tempo parece assemelhar-se a um relmpago que traz

a imagem do passado atualizada no presente: a imagem tanto de Berlim quanto de

Moscou. A cidade revela os percursos que a memria de Benjamin realiza,

sobretudo quando mostra o carter da infncia numa sociedade burguesa ao

descrever sua prpria trajetria na idade da inocncia e quando revela, em um

60

BENJAMIN, 1989, p. 93-94. 61

BENJAMIN, 2004, p. 73-74. 62

Em Benjamin, esta separao parece fazer sentido quando tensionada junto s categorias de forma e contedo; mesmo assim, sabemos da dificuldade de pens-las separadamente: no presente contexto, como em muitos outros, o espao necessariamente o correlativo do tempo. O caso individual e particular logicamente definido com relao a duas coordenadas: espao e tempo. Como Coleridge assinalou, psicologicamente nossa ideia de tempo est sempre misturada com a ideia de espao. Na verdade para muitos propsitos as duas dimenses so inseparveis, como sugere o fato de as palavras presente e minuto poderem referir-se a qualquer dimenso; e a introspeco mostra que no conseguimos facilmente visualizar um momento particular da existncia sem situ-lo tambm em seu contexto espacial. In: WATT, Ian. O realismo e a forma do romance. In: ______. A ascenso do romance. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 9-36.

dirio ntimo, a consolidao de um regime comunista em uma metrpole ocidental.

Nesse sentido, poderamos nos perguntar: onde estaria o limite entre a

subjetividade e a coisa pblica?63. Somente pelos sentidos conseguimos captar o

tempo fora do tempo e senti-lo reviver novamente no presente, pois, sem isso,

teramos somente a imaginao de algo ausente, sem senti-lo. O tempo

readaptado em Benjamin. Sua aluso ao espao maior. Para ele, o tempo uma

instncia profana ou sagrada (profanada pelo haxixe ou sagrada pela religio

judaica). Sua categoria de tempo na infncia relativa ao espao da experincia da

reminiscncia da memria obtida. Mais ainda: poderamos dizer que espao64 e

tempo se confundem no caleidoscpio da memria quando Benjamin reconstri, por

exemplo, as varandas da sua infncia:

As varandas mudaram menos desde a minha infncia do que as outras divises. Mas no s por isso que as sinto mais prximas. antes pelo consolo que a sua inabitabilidade traz a quem, por assim dizer, j no consegue viver em lugar nenhum. Nelas, a habitao do berlinense encontra a sua fronteira. Berlim o prprio deus da cidade comea a. Est a de forma to presente que nada que seja transitrio se pode afirmar a seu lado. Sob a sua proteo, o lugar e o tempo encontram-se a si mesmos, e um ao outro. Ambos se deitam a a seus ps. Mas a criana que um dia se aliou a eles instala-se, confundindo-se com o seu grupo, na sua varanda como num mausolu que h muito lhe estava destinado.

65

Benjamin parece querer situar a categoria de tempo fora do decurso

cronolgico, numa instncia, num limiar ou fronteira entre a memria e o presente,

num lugar, a rigor, fora do tempo, num espao em que Proust chamara de tempo

puro ou lembrana ausente de sensao. De acordo com o francs, a lembrana

que no passa pelos sentidos como e simplesmente a memria de um

ausente. No h abalo dos sentidos. Diferente a memria acionada pelas

sensaes corpreas:

Muitas vezes, no decurso da existncia, a realidade me decepcionara porque, ao vislumbr-la, minha imaginao, meu nico rgo para sentir a beleza, no se lhe podia aplicar, devido lei inevitvel em virtude da qual s possvel imaginar-se o ausente. [...] Onde o abalo efetivo dos sentidos, pelo som, pelo contato, acrescentara aos sonhos da fantasia aquilo de que so habitualmente desprovidos, a idia da existncia, e graas a esse subterfgio, me fora dado obter, isolar, imobilizar o que nunca antes aprendera: um pouco de tempo em estado puro.

66

63

BOLLE, 2000, p. 193. 64

Entendemos lugar e espao como sinnimos aqui. 65

BENJAMIN, 2004, p. 76. 66

PROUST, 2009, p. 153.

Contudo, o espao parece ser a categoria mais importante para Benjamin.

Suas aluses so, na maioria das vezes, a panoramas, monumentos, colunas,

parques, imagens que desenham um mosaico, caleidoscpios, esconderijos,

brincadeiras de esconde-esconde, caixas, armrios, museus, teatros: lugares

associados a costumes, brincadeiras, modos de vida urbanos, burgueses,

proletrios.

Vinculadas s categorias de espao e tempo se somam outras de certa

maneira reconfiguradas por esse padro como as de forma e contedo, na

medida em que essas dualidades se coadunam numa perspectiva de disperso e

suspenso, formando algo nico. Contudo, diante de uma histria do pensamento

sustentada por dualidades desde Plato, forosamente identificamos o filsofo

comprometido com a forma em/de seus escritos. De alguma maneira, a prpria

possibilidade de pensarmos uma educao do corpo em Benjamin parte da ideia de

forma.

Pensando agora no espao especfico da cidade como lugar de educao dos

sentidos, percebemos que ela obedece a conceitos bem demarcados pelos

discursos urbansticos definidos na idade moderna. comum o conceito de cidade

resguardar trs momentos que a constituem, segundo a definio de Certeau:67 o de

espao prprio, o de no-tempo sincrnico e o do sujeito universal espalhado no

anonimato da multido68.

Poderamos pensar que o no-tempo sincrnico a categoria da

agoridade69 em Benjamin, aquilo que ele chamara de Jetztzeit (literalmente, tempo-

de-agora), e o sujeito universal seria a prpria multido como personagem da cidade

moderna.

Destarte, o espao da cidade, em Benjamin, se constitui, mais do que o

tempo, como elemento de formao. Concordamos tambm com Certeau quando

afirma que o ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definio

como espao de enunciao70. Ampliando essa ideia, pensamos que em Benjamin

a escrita promove esse lugar de enunciao, de espao de construo do sujeito.

67

As categorias utilizadas por Certeau permitem uma aproximao muito relevante com os conceitos benjaminianos aplicados cidade moderna.

68 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1998, p. 172-173.

69 Este neologismo foi cunhado por Haroldo de Campos para melhor adaptar o conceito de Jetztzeit, de Benjamin. In: MATOS, Olgria. Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt. So Paulo: Brasiliense, 1989.

70 CERTEAU, 1998, p. 177.

Os dois ensaios de Benjamin permitem pensar, simultaneamente, que o

contato do corpo com a forma da escrita na reconstruo da memria reduz a

distncia (no espao e no tempo) entre o pensamento e a escrita: promove,

sobremaneira, a materialidade do pensamento na possibilidade do sentido ttil

reproduzir pelas mos as prprias ideias. A primeira estendendo-se at a ltima,

numa imagem nica e dialtica.

Importante destacar que o ato de escrita individual na forma de um dirio

pessoal ou como uma narrativa das memrias, em Benjamin, demarca uma poca

histrica de florescncia do individualismo e de perda da memria coletiva,

indicando, acima de tudo, uma mudana no modo como o sujeito da experincia se

relaciona com os objetos. No aforismo Telefone71, percebemos a mudana na

relao com o prprio corpo, na adaptao do tom de voz, dos comportamentos e

costumes para esta nova maneira de interagir, a distncia, com outras pessoas, e

indica, de certa forma, aquilo que ser a solido moderna:

[...] O aparelho, qual heri lendrio isolado no desfiladeiro da montanha, deixando para trs o corredor, fazia a sua entrada real nas salas aligeiradas e mais claras, habitadas por uma gerao mais nova. Para esta, ele era o consolo da solido. Para os desesperados que queriam deixar este mundo imperfeito, ele brilhava com a luz da ltima esperana. Partilhava a cama

71

Em O caminho de Guermantes, Proust descreve o surgimento do telefone em suas memrias. Este relato importante como descrio histrico-sociolgica do surgimento do aparelho como tambm sua relao com o corpo e com a memria coletiva: O telefone, naquela poca, ainda no era de uso to corrente como hoje. E, no entanto, o hbito leva to pouco tempo para despojar de seu mistrio as foras sagradas com que estamos em contato que, no tendo obtido imediatamente a minha ligao, o nico pensamento que tive foi que aquilo era muito demorado, muito incmodo, e quase tive a inteno de fazer uma queixa. Como ns todos agora, eu no achava suficientemente rpida, nas suas bruscas mutaes, a admirvel magia pela qual bastam alguns instantes para que surja perto de ns, invisvel mas presente, o ser a quem queramos falar e que, permanecendo sua mesa, na cidade onde mora (no caso de minha av era Paris), sob um cu diferente do nosso, por um tempo que no forosamente o mesmo, no meio de circunstncias e preocupaes que ignoramos e que esse ser nos vai comunicar, se encontra de sbito transportado a centenas de lguas (ele e toda a ambincia em que permanece mergulhado), junto de nosso ouvido, no momento em que nosso capricho o ordenou. E somos como a personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz aparecer num claro sobrenatural a sua av ou a sua noiva, a folhear um livro, a chorar, a colher flores, bem perto do espectador e no entanto muito longe, no prprio lugar onde realmente se encontram. Para que esse milagre se realize, s temos de aproximar os lbios da prancheta mgica e chamar algumas vezes um pouco longamente, admito-o as virgens vigilantes cuja voz ouvimos cada dia sem jamais lhes conhecer o rosto, e que so nossos anjos da guarda nas trevas vertiginosas a que vigiam ciumentamente as portas; as todo poderosas por cuja intercesso os ausentes surgem ao nosso lado, sem que seja permitido v-los: as Danaides do invisvel que sem cessar esvaziam, enchem, se transmitem as urnas dos sons; as irnicas Frias que, no momento em que murmuramos uma confidncia a uma amiga, na esperana de que ningum nos escuta, gritam-nos cruelmente: Estou ouvindo; as servas sempre irritadas do Mistrio, as impertinentes sacerdotisas do Invisvel, as Senhoritas do Telefone! / E, logo que o nosso chamado retiniu, na noite cheia de aparies para a qual s os nossos ouvidos se inclinam, um rudo leve um rudo abstrato o da distncia supressa e a voz do ser querido se dirige a ns. In: PROUST, 2007, p. 147-148.

com os abandonados. Agora que todos esperavam pela sua chamada, a voz estridente que lhe viera do exlio soava mais quente e abafada.

72

No mesmo aforismo, Benjamin comenta por meio de sua escrita

aforismtica de poema em prosa sobre a mo dominada pelo transe do toque do

telefone e pelo escutar da voz, do outro lado da linha, na direo e realizao de um

comportamento recente nos costumes humanos: o da constituio de uma classe

burguesa.

O domnio da categoria de espao em Dirio de Moscou muito corrente

quando percebemos a aluso s inmeras igrejas e monumentos paroquiais da

cidade. As esttuas da referida metrpole, em locais pblicos, so muito

imponentes, segundo Benjamin, na promoo do controle e influncia do partido

comunista sobre a mentalidade do povo, e tm ainda a funo de alienar por meio

do partidarismo e do nacionalismo extremos, promovidos pela propaganda de

governo. A cultura tambm usada na formao do povo russo:

Existe uma loja na Kusnetzky most especializada em Lenin, onde se pode encontr-lo em todos os tamanhos, poses e materiais. Na sala de lazer do clube, onde se ouvia naquele momento um concerto no rdio, h um quadro em relevo muito expressivo dele, mostrando-o como orador, em tamanho natural, de peito inflado. Imagens dele mais modestas encontram-se tambm nas cozinhas, lavanderias etc., da maioria dos institutos pblicos./A Rssia est comeando a tomar forma para o homem comum. Um grande filme de propaganda A sexta parte do mundo

73, foi anunciado. Em meio

neve das ruas, mapas da URSS, empilhados pelos vendedores ambulantes, so oferecidos ao pblico.

74

Os apelos visuais e tteis, convertidos em cifras mimticas, politicamente

manipulveis, como nos ensinam Horkheimer e Adorno75, so inmeros para a

formao da mentalidade poltica do povo russo. A passagem acima revela uma

tentativa de dominao pelos sentidos, evidenciada tambm em outras passagens

do Dirio de Benjamin, como as que relatam a utilizao dos espaos pblicos de

divulgao, inclusive no que diz respeito ao domnio da tcnica, to prezado pelos

72

BENJAMIN, 2004, p. 79. 73

A sexta parte do mundo um filme russo notvel, com uma esttica primorosa. Nesta poca se realizavam muitos filmes encomendados pelo prprio governo para a divulgao e consolidao do comunismo e a formao de uma nova mentalidade proletria.

74 BENJAMIN, 1989, p. 63-64.

75 Sobre a manipulao organizada dos impulsos mimticos, enquanto estratgia poltica, pelo regime nazista na Alemanha, conferir especialmente a seo V do terceiro captulo do livro Dialtica do esclarecimento. In: HOKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Elementos do anti-semitismo: limites do esclarecimento. In: ______. Dialtica do esclarecimento: fragmentos filosficos. Traduo de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 157-194.

russos76; o uso das flores a experincia cromtica e auditiva normatizado,

uma vez que as flores-da-verdade, que faziam parte do espao pblico antes da

revoluo, foram proibidas; o domnio visual do idioma russo, pela escassez das

palavras de origem latina; a proibio de comer girassol em pblico. Trata-se de

exemplos de dominao por meio de uma crena transmitida por uma educao dos

sentidos na antiga Moscou77.

Uma educao, como aquela que Benjamin parece sugerir em seus escritos,

est em conformidade com uma cultura e formao (Bildung) para e da vida prtica.

Talvez pudssemos fazer uma distino entre condio espiritual e condio

material na obra de Benjamin. Grosso modo, essa existncia espiritual se detm em

discusses da ordem da abstrao, da razo condicionada pela apurao de um

esprito puro, que pensa na vida como contemplao, relativo a uma ordem guiada

pelas ideias. Em Benjamin, percebemos uma preocupao da ordem prtica,

material, emprica, literalmente palpvel, da ordem dos sentidos apurados. Suas

descries de Moscou so da ordem da vida e da cultura material da humanidade:

Num armrio embutido vi a enorme proteo de metal, dourada e inteiramente incrustada de pedras preciosas, que havia sido doada para o cone de Rublev. As nicas partes dos corpos dos anjos que ficam descobertas so aquelas no vestidas: os rostos e as mos. Tudo o mais era coberto pela camada de ouro macio, e, quando o molde colocado sobra a imagem, os pescoos e braos dos anjos, como que presos a pesadas correntes de metal, devem dar-lhes a aparncia de criminosos chineses expiando seus crimes com argolas de ferro no pescoo.

78

Mais do que uma distino entre a vida espiritual e material, parece haver,

sobretudo, uma tenso dialtica entre essas duas dimenses humanas. Toda a

condio espiritual, das ideias, da aura79 encontra-se no prprio acervo histrico

humano, apresentado ou no para o indivduo pela educao e cultura de seu povo,

por seus descendentes, pela histria que os antecedeu: [...] quando j era mais

crescido, a presena das coisas da alma no corpo no era mais difcil de desvendar

do que a posio do fio da vida que, no pequeno tubo80, se furtava sempre no meu

76

BENJAMIN, 1989, p. 69. 77

BENJAMIN, 1989, p. 73. 78

BENJAMIN, 1989, p. 138. 79

Cf. O que propriamente aura? Um estranho tecido fino de espao e tempo: apario nica de uma distncia, por mais prxima que esteja. Em uma tarde de vero, repousando, seguir os contornos de uma cordilheira no horizonte ou um ramo, que lana sua sombra sobre aquele que descansa isso significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. In: BENJAMIN, 2012, p. 27-29.

80 Tubo o termmetro para medir a febre de Benjamin criana.

olhar81. O acesso cultura material histrica da humanidade no se d por uma

educao pautada pela razo individualizada do corpo, mas pela educao e pelos

modos que os sentidos apreendem o material dessa formao82.

Na fundamentao dessa ideia, poderamos pensar na maneira enftica com

que Benjamin faz uso da figura do colecionador em seus escritos sobre a cidade e

em suas memrias da metrpole seja Berlim ou Moscou. Em ambas as cidades,

menciona caractersticas grficas, de formas, cores, etc., das quais os objetos (a

maior parte das vezes ele se refere a objetos de produo artesanal) so

constitudos. O colecionador uma figura alegrica que d representatividade e

materialidade para objetos que nem sempre so possuidores de valor pecunirio, e,

ao fazer isso, funda um sistema histrico novo83.

A cidade o lugar de encontro com o novo, onde os produtos culturais

adquirem um valor de mercadoria. Ser que a figura do colecionador no seria uma

tentativa de salvar os produtos desses (ab)usos to amedrontadores que colocam

em risco nossa capacidade esttica (aisthsis), de sermos sensivelmente receptivos

s obras? Uma coleo de brinquedos (to cara a Benjamin) no recupera a

dimenso do sagrado to profanado dos usos/descartes num jogo de brincadeira

infantil?

Benjamin visita Moscou como colecionador, no como turista, como dissemos

anteriormente. Ele observa cada ornamento, objeto, monumento, pela ordem da

sacralidade observadora, um ritual daquele que olha e olhado igualmente, em

que o objeto receptivo num jogo mgico; ele se abre numa receptividade que

funda horizontes no espao profano da cidade. Espao talvez sem contedo para

alimentar a narrao, mas aberto aos encontros das disperses, ao malevel e

81

Cf. BENJAMIN, 2004, p 94. 82

O pensamento de Benjamin, com seu carter decididamente material, parece remeter a uma filosofia da vida ftica onde o critrio para se pensar a vida a prpria vida e no algo transcendente a ela. A transcendentalidade da vida funda-se, paradoxalmente, na prpria vida, seja por meio do xtase religioso visionrio ou pelo uso de substncias como o haxixe que fundam uma instncia sagrada na cidade.

83 Cf. decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funes primitivas, a fim de travar a relao mais ntima que se pode imaginar com aquilo que lhe semelhante. Esta relao diametralmente oposta utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude uma grandiosa tentativa de superar o carter totalmente irracional de sua mera existncia atravs da integrao de um sistema histrico novo, criado especialmente para este fim: a coleo. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopdia de toda a cincia da poca, da paisagem, da indstria, do proprietrio do qual provm. O mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um crculo mgico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorrer em ltimo estremecimento (o estremecimento de ser adquirida). In: BENJAMIN, 2009, H 1, 2.

movedio de um lugar que no acumula histrias, portanto, um lugar de

passagens, limiares, pontes; no um espao de permanncia, mas de

provisoriedade.

Por outro lado, podemos compreender e refletirmos Dirio de Moscou como

uma narrativa sobre a capital russa na mesma medida em que Infncia berlinense

seria uma narrativa sobre a cidade natal do autor. Haveria aqui uma tentativa de

reconstruir uma experincia de durao, entendendo durao como a incorporao

simultnea de memria e narrativa perdidas como tradio pelos lapsos e crises da

modernidade?

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