Cadernos Cultura Beira Interior v9

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AMATO E OS NASCIAlfredo Rasteiro ............................................................................................................................................................ 4

PANACEIAS NOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE”Fanny Andrée Font Xavier da Cunha ........................................................................................................................12

À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANOAntónio Lourenço Marques ........................................................................................................................................22

ACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA (...) DA BEIRA INTERIORAntónio Manuel Lopes Dias .......................................................................................................................................26

TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEMMaria Adelaide Neto Salvado ....................................................................................................................................32

O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPOElisa Pinheiro .............................................................................................................................................................40

A IDADE MILITAR (...) DO HOMEM DA GARDUNHAAlbano Mendes de Matos ...........................................................................................................................................42

A IDADE DE SER “RATINHO”Maria da Assunção Vilhena Fernandes .....................................................................................................................48

A IDADE DO QUOTIDIANOAntónio Maria Romeiro de Carvalho .........................................................................................................................53

O FIO DE “LÂQUESIS”... NAS PALAVRAS DOS POETASMaria de Lurdes Gouveia da Costa Barata ................................................................................................................58

AS IDADES DO HOMEM - IMUNDÍCES E CONSPURCAÇÕESVictor Saínhas ............................................................................................................................................................64

AS IDADES DO HOMEM - VIAGENS NO TEMPO E NA MEMÓRIAJ. Ribeiro Farinha .......................................................................................................................................................67

CONCLUSÕES - V JORNADAS DE ESTUDO ...........................................................................................................71

SUMÁRIO

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Medicina e História

É quase uma banalidade dizer que o estudo da história da medicina, infelizmentedescurado na formação universitária das últimas gerações de médicos, se apresentaimprescindível para compreendermos, em toda a sua extensão, o estado dosconhecimentos actuais, a natureza da própria prática médica e qual pode vir a sera sua orientação futura. Estudo indispensável também para atingir o mais cabalconhecimento do Homem, se integrado no concerto da interdisciplinaridade. E quesó analisando esse passado, perscrutando nele o que foi efémero e o que persistiupara alimentar o desenvolvimento de edifício tão assombroso, só captando a genuínaluz da vida transcorrida, que vivifica o presente, poderemos penetrar os fundamentosdas preocupações e de muitos dos problemas éticos que se erguem neste campo,hoje, e que reclamam satisfação. Não pretendemos, obviamente, substituir-nos aopapel que a Escola deve exercer neste domínio. Queremos tão somente contribuir,ainda que de forma despretensiosa, mas com a exigência do rigor científico e docontributo das diversas ciências sociais, para que o estudo deste nosso passado,tão significativamente enriquecido pela obra de Amato Lusitano, não esmoreça e semantenha, dando seguimento ao trabalho vultuoso e muito profícuo de investigadoresnotáveis, como foi o caso do médico historiador Dr. José Lopes Dias e do linguistaDr. Firmino Crespo. A esta última figura, que acabamos de perder, devemos essetrabalho notável que foi a tradução das Sete Centúrias de Curas Médicas, sem aqual, a obra do grande médico albicastrense da Renascença seria menos conhecidae talvez arredada da investigação dos estudiosos, que assim, a pouco e pouco, lhetêm relevado a singular grandiosidade, marca eloquente daquela época e dos homensque a fizeram. Dívida que aqueles que pela História da Medicina se interessamjamais saldarão.

Escolheu-se para enquadrar os trabalhos das VII Jornadas de estudo “Medicinana Beira Interior - da pré-história ao séc. XX”, a figura da Mulher nas suas relaçõescom a Medicina. A Mulher como alvo desta disciplina, mas também como agente.Aqui, Amato Lusitano é de uma riqueza extraordinária. Esperamos que os trabalhosque vão surgir sejam bem comprovativos de uma realidade fundamental, mas aindaassim tantas vezes dissimulada.

A direcção

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AMATO E OS NASCI

por Alfredo Rasteiro*

Na Torre do Tombo, em Lisboa, neste mês deNovembro de 1994, esteve patente uma exposiçãointitulada «O Testamento de Adão», inspirada numdito atribuído a Francisco I (1515-1547), quando seinterrogava sobre a divisão do mundo feita em 1494entre D.João II e Reis Católicos.Porém, o que figura no Génesis,3, 17-20 será qualquer coisa como:

«Porque seguiste a tua mulhere comeste o fruto proibido, terásque trabalhar. A terra produziráespinhos e abrolhos e comeráserva. Comerás pão amassado comsuor do rosto...» e o actual Chefeda Igreja Católica, João Paulo II,em Fevereiro de 1992, no Senegal,mantendo esta linha de pensa-mento, reconhece que a pobrezaofende a dignidade humana e im-pede o exercício da Liberdade.Cientes deste facto, muitosmédicos desde sempre sesentiram na obrigação de trabalhare embora alguns possam ter maisdo que o necessário, haverá outrosque talvez passem dificuldades enão têm apoios. Sempre assim foi e para melhorpoderem cumprir obrigações livremente assumidasperante as comunidades em que se inserem, semquebra da dignidade própria e provavelmente sem aspalhaçadas que algumas vezes se observam ondemenor probabilidade haveria para que surgissem,sempre houve médicos que tiveram de procurar apoiojunto de detentores do poder instituido. O patrono dasJornadas de História da Medicina de Castelo BrancoJoão Rodrigues (1511-1568) foi médico das poderosasfamílias Mendes Benvenides, Nasci e Yahia, deManuel Cirne, Feitor em Antuérpia, do embaixador emRoma Afonso de Lencastre, de D. Jacoba dei Montee de Vicencio de Nobilibus, irmã e sobrinho do PapaJúlio III, buscou a protecção de Cosme de Médicis,de Hipolito de Este, Cardeal de Ferrara, do Papa JúlioIII. Garcia de Orta (1500-1568) acompanhou MartimAfonso de Sousa e foi médico de vice-reis. PedroNunes (1502-1578) foi despachado para a corte de D.

Luis e esteve muito socegado em Coimbra, ondeTomaz Rodrigues da Veiga (1513-1579) cuidava doseu jardim botânico, atendia alunos, escrevia lições,fazia versos, conversava e jogava cartas com o reitor,não fazia ondas... Andres Laguna (1499-1563)

trabalhou para Carlos V. Em 1544Andreas Vesal (1514-1564) foimédico de Carlos V e em 1559passou a assistir Felippe II. Em1564 Carolus Clusius (1526-1609)orientava uma viagem de estudo deJacobo Fugger em Portugal.Ambroise Paré (1510-1590)acompanha o chefe militar Monte-Jean antes de pertencer aoConselho e ser Cirurgião do rei deFrança ...

No corrente ano de 1994, oaparecimento, em Fevereiro, deuma tradução portuguesa do ro-mance LA SENORA, 1992, deCatherine Clément, evocando boasrelações entre herdeiros dobanqueiro Francisco Mendes e omédico Amato Lusitano e aapresentação entre 21 de Junho e

4 de Setembro da exposição documental «Os JudeusPortugueses entre os Descobrimentos e a Diáspora»na Fundação Gulbenkian, foram actos culturais quepodem ter contribuído para um melhor conhecimentode Amato e dos Nasci no quadro da cultura portuguesa,na história do Renascimento europeu. Catherine Clem-ent contactou Pierre Amado, da Ecole Pratique desHautes Études, da família a que pertenceu Amato efalou com Alain Oulman, da família Benveniste,regressada a Portugal durante o holocausto nazi. Aexposição que esteve patente em Lisboa mostrou abela medalha de Pastorino de Pastorini, 1553, daColecção George Halphen, Paris, com o retrato deBeatriz de Luna, Hannah Garcia Mendes, Gracia Nasci(1510-1569), La Senora, Ha-Geveret, Glória de Israel,casada em 1528 com o banqueiro de Lisboa Fran-cisco Mendes Benveniste, falecido em 1536, irmãodo banqueiro da praça de Antuérpia Diogo Mendes,falecido em 1542, mãe de Brianda Mendes (1531-

Figura 1 -Amato

Lusitano inDIOSCORIDIS

ANAZARBEI DEMEDICA

MATERIALIBROS

QVINQVE,Venetiis, 1553

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1599) dita Reyna ou Regina, casada em 1545 comJoão Micas, Miquez, Joseph Nasci (1515-1579),presumível autor do BEN PORAT JOSEF, 1576, duquede Naxos, filho de Agostinho Micas, Miguel, SamuelNasci, que fora Lente de Prima de Medicina naUniversidade Portuguesa, em Lisboa, entre 1515 e1526, falecido em 1532.

Antes de iniciar a minha tentativa de desenvolvimentodo tema AMATO E OS NASCI seja-me permitidoregistar cinco curtos comentários ao interessante livrode Catherine Clement:

- Primeiro, de agradecimento, por se lembrar doLUSITANO;

- Segundo, não creio que Amato tenhadesempenhado algumas das tarefas que CatherineClement lhe atribui, pois mais depressa poderiam tersido desempenhadas por um amigo de Amato, DiogoPires, dito Jacob Flavio, de Évora (1517-1597), queaté poderia ter tido alguma formação como médico ecujo itinerário muitas vezes se cruza com o de Amato,poeta que até poderia ter acrescentado algum picantea umas pouco poéticas relações havidas neste ro-mance entre o «Nasi» e uma Faustina, prostitutaveneziana. A obra poética e as viagens de Diogo Pires,a sua composição dedicada «AO MÉDICO JOÃORODRIGUES, ESTANDO O AUTOR DE PARTIDAPARA LOVAINA» com recordações de Salamanca(«águas alouradas do Tormes»), o poema DELVSITANORVM TVMVLO IN VRBE FERRARA, assuas composições ragusinas como as que dedicou aSimão Benesso, os louvores a Solimão e o EPITÁFIODE AMATO LUSITANO, 1568, enquadram-se naqueleciclo, sem esquecer que uma tal hipótese exploratóriaé contrariada pela aparente ausência de qualquer obrade Diogo Pires dedicada a José Nasci, que até poderiaser como aquelas em que são lembradas as searasda pátria distante, as uvas à espera da colheita, obrilho das folhas de oliveira, ou simplesmente Rufa,tocadora de cítara e Mamertina Cloe, flautista de bairro,dadas à libertinagem, vergonhas do bordel de Valênciamesmo para Diogo Pires, pois «um poeta ou faz ver-sos, ou bebe»: «Aut uersus facit, aut bibit poeta.»;

- Depois, chamar Lusitano ao Amato, à semelhançade autores como Mario Santoro em AMATOLUSITANO ED ANCONA,1991, I.N.I.C., Coimbra, nãoé habitual na terra portuguesa em que a tragédia dosexílios forçados e a qualidade e número de quantosadoptaram o epónimo impedem que se diga «Lusitanosó há um, o Amato e mais nenhum». É certo queCatherine Clement, na página 78 da tradução do seuromance apresenta João Rodrigues de Castel(o)Branco (e) que se tornou o grande, o querido AmatoLusitano, nosso médico, que por sua bondade epaciência bem terá merecido o ápodo de «Angelicus»e que depois o nomeia por três vezes Amato Lusitanoentre esta página e a página 105, mas depois passaa designá-lo simplesmente Lusitano umas 36 vezes

até à página 175, até se despedir de Juan Rodriguezque nesta página é despachado numa viagem semregresso para Salonica. Índice, dedicatória, invocação,texto, cronologia, elementos bibliográficos eagradecimentos, são 361 páginas.

Creio que o bom nome de Amato terá de algum modocontribuído para que na terra portuguesa o epónimoLusitano caísse emdesuso, chamo a aten-ção para o facto de quedurante o século XIIIsempre os portuguesesse consideraram Hispa-nos e se diziam Portu-galenses, como oPedro Hispano Portu-galense (1210-1277)que foi Chefe da Igrejade Roma, mas queapós o discurso de Garcia de Meneses ao Papa SistoIV em 31 de Agosto de 1481 alguns adoptarão oepónimo Lusitano, como L(ucio) Andr(e) ResendiiLvsitani em 1 de Outubro de 1534 que encurtará onome na Oratio habita Conimbricae in gymnasio regiode Julho de 1551, assinada como L. Andr. Resendiisem epónimo, e será simplesmente como«Conimbricences» que em 1 de Outubro de 1552Hilario Moreira dedicará a sua Oração de Sapiênciaao «inuictissimum Lusitaniae Regem D. Joanem Ter-tium», enquanto por toda a Europa Homens orgulhososdas suas raízes no ocidente peninsular juntavamLusitano aos seus nomes, tal como Amato Lusitano,seu sobrinho neto Filipe Montalto Lusitano (1567-1616)e o seu companheiro de infortúnio Didacus PyrrusLusitanus (1517-1597), Roderico a Fonseca Lvsitano(1550-1622) e seu sobrinho Gabrielis a FonsecaLvsitani, Stephani Roderici Castrensis Lvsitani (1559-1637), Zacuto Lusitano (1575-1642) e muitos, muitosmais, parecendo-me demasiadamente curto e poucoelegante dizer-se que Lucio André de Resende terádeixado de usar o epónimo Lusitano porque ficariacom um nome muito comprido... Desgraçadamente,porém, tais danças de nomes não traduzem apenasincertezas relativas à identidade nacional, antes seapresentam como contraponto a infelizes movimentosxenófobos que será impossível erradicar completmentee que voltam sempre com afloramentos cíclicos deque são tristes exemplos as recentes alcunhas de«mouros» e «cristãos novos» atribuídas porprofissionais da política a habitantes da margem suldo Tejo e a militantes de última hora de algum partidode sucesso;

- Catherine Clément coloca Dona Garcia em 1553 aregressar sòzinha, «clandestinamente a Veneza, paracomprar a esmeralda do vice-rei das Indias». Não setratava de nenhuma pedra «veryl», como aquelas queGarcia d’Orta descreveu no COLOQUIO 43, quando

Figura 2 -Dona

Beatriz deLuna

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diz que «na Índia ha berilo q he assi como Cristal, e ao em grandes pedaços de q faze jaros. e escudellas»e de que em Lisboa se faziam lentes para óculos.Amato sabia que Dona Gracia tinha adquirido umbezoário que pertencera a um vice-rei. Trata-se deuma concreção que pode surgir em estômagos deruminantes e do próprio homem em resultado dadeposição de sais calcáreos sobre fibras de plantase pelos ingeridos e que na época era utilizada comoantídoto universal;

- Finalmente, utilizo a grafia Nasci (príncipe), porser a que estava em uso na casa de Abraham abenUsque em 7 de Setembro de 1553 e figura naCONSOLACAM AS TRIBVLACOENS DE ISRAEL,composto por Samuel Usque e dedicado àILLUSTRISSIMA SENHORA DONAGRACIA NASCI destinado a servircomo um «piqueno ramo de frutanova a nossa nação Portuguesa».

AMATO E OS NASCI trilharamna vida itinerários que parececoincidirem entre 1536 e 1553 e noano 5320 da Criação do Mundo quepara os Hebreus começou 3760anos antes de Cristo, em Salonica,Amato Lusitano dedicou aCVRATIONVM MEDICINALIVMCENTVRIAE QUINTA, 1560, aoSenhor José Nasci, «pessoaornada de ilustres e insignesvirtudes», com votos de felicidadesna companhia de Regina suaesposa e da muito ilustre SenhoraGrécia e seus aderentes e estadedicatória mais parece umadespedida. Registe-se que apublicação da QUINTA CENTÚRIA,quinta série de cem casos clínicos e respectivoscomentários e não a obra completa «sete volumes deum Ensaio de Medicina » como consta na página 175da tradução portuguesa do livro de Catherine Clem-ent, surge numa época em que Amato reencontraracondições propícias ao estudo e à reflexão, podendodedicar-se a doentes e aos livros, conviver comparentes e amigos, cobrar honorários clínicosparcimoniosos e, de alma limpa, fazer testamento, océlebre Amati lusurandum, onde afirma ter rejeitadograndes salários e nunca ter procurado ser rico,desejando apenas ser útil aos seus doentes,recusando publicar livros sem outra ambição que nãofosse contribuir de qualquer modo para a saúde dahumanidade.

A QUINTA CENTÚRIA oferece-nos dados muitointeressantes para o conhecimento do mundo em queviveu Amato, suas viagens e suas relações. Começapela dedicatória a José Nasci e a partida de Anconapara Pesaro, onde já estava no dia 5 de Fevereiro de

1556 (Cura LXXXIV) e onde continuava em Maio desteano (Cura XCVIII ) ao registar que um determinadoindivíduo chegado há pouco a Pesaro fora seucompanheiro em viagem no Oceano Atlântico cercade vinte anos antes, possibilitando datar com algumasegurança a sua partida de Lisboa para Antuérpia,que se terá realizado em 1536 e não em 1534 comopensava Maximiano Lemos.

Este quinto conjunto de cem assuntos clínicos erespectivos comentários, inclui diálogos com osobrinho e discípulo Brandão, recorda no Caso LXX aCura Lll da PRIMEIRA CENTÚRIA e a sua muitaadmiração por Vesálio e especialmente na Cura LXXXVInão deixa de lembrar a família de Leão Abravanel esua esposa Dona Luna, referindo lembrar-se de que

em Castelo Branco tratara umrapaz de nome Silva, certamenterecordado do infeliz caso clínicoXX da SEGUNDA CENTÚRIA,Roma, 1551, em que ilibara denegligência o médico Calaphurra,que não conseguira salvar umafilha de Leão Hebreu, atestandoo que pensava Amato Lusitanode Castelo Branco, em Ancona,em 17 de Maio de 1550.

A partir da Cura LXIX, as Curasda QUINTA CENTURIA referem-se a casos de Pesaro e éespecialmente interessante aCura LXXIII, não pelas tropeliasque fizeram ao pobre doente quedurante seis dias bradou porsocorro, mas por apontar apreocupação de Miguelrelativamente ao estado de saúdede Lourenço de Gentílibus,

notário em Pesaro, assistido por Amato e dois médicosDisauranos e este Miguel, preocupado com a saúdede um notário moribundo, poderia ser a pessoa ornadade ilustres e insignes virtudes a quem a Centúria édedicada, o filho do lente de Prima de Medicina deLisboa Agostinho Miguel, João Miguel (Micas) / JoséNasci.

Nesta QUINTA CENTÚRIA a referência a itineráriosque cruzam Ancona e podem ter a ver com actividadesda Casa dos Mendes, é digna de registo:

- Cura IV - João Edido Gradu, teutónico, mercadorde Antuerpia,

- Cura V - António Carrion, de 30 anos, vindo deNápoles, em trânsito para Bruges, Flandres, sua terranatal

- Cura XXIV - Joannito, teutão, mercador em Antuerpia- Cura XXVI - Naaman, sacerdote, vindo da Grécia,- Cura XLIII - João Thomasi, mercador em Veneza,

regressado de Antuerpia,- Cura LVI - Luca, da Ligúria, marinheiro, regressado

Figura 3 -Biblia deFerrara,

1552

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de Alexandria,- Cura LXI - Raphael Thadeu, florentino, trabalhador

em Ancona, adoeceu em Antuérpia e regressou a Itáliapara tratamento,

- Cura LXXVII - Maalem de Castro, cobrador deimpostos no Egipto, de passagem por Pesaro

- Cura LXXXVII - Pisaurina casada com indivíduo quetrazia víboras de Ancona

- Cura XC - Anna Pinta, senhora que viveu emInglaterra, casada com indivíduo que passou muitosanos na índia.

A aproximação entre os herdeiros de FranciscoMendes e Amato terá sido consequência de recursoaos serviços médicos do profissional de grandeprestígio João Rodrigues, nascido em Castelo Branco,licenciado em Salamanca, conhecedor profundo daMATÉRIA MÉDICA de Dioscórides (40-90) e essasrelações sofreram e foram resultado decondicionalismos determinados por factoreseconómicos e religiosos quenem o Lusitano nem os Nascidesencadearam.

Em 1535 Portugal foi assoladopor uma fome que obrigou o reia comprar cereais em Dantzig ena Flandres, mas em 1534, já«D. João III devia por jurosvencidos, dívidas das casas daIndia e câmbios de Flandres,quatro anos das receitas doreino, ou oitocentos contos»,segundo Oliveira Martins,História de Portugal, 1879, eentão, como hoje, a soluçãomais fácil era procurar dinheiroonde o havia. O comércioeuropeu era dominado porgrandes firmas alemãs (Fugger,Welser, Hochstetter) e italianas (Affaitati, Frescobaldie Gualterotti).

A família Benveniste que após o decreto de expulçãodos reis católicos assinado em 31 de Março de 1492procurara refúgio em Portugal, sob orientação deHenrique Nunes iniciou a Casa dos Mendes queprosperou no comércio de pedras preciosas eespeciarias. Por morte de Henrique Nunes seus filhostomaram conta do negócio, Francisco Mendes emLisboa e Diogo Mendes em Antuérpia e em 1525pagaram ao rei de Portugal cerca de um milhão decruzados pelo monopólio da Pimenta, quetranzaccionam por toda a Europa. Refere J. Lúcio deAzevedo em ÉPOCAS DE PORTUGALECONÓMICO, 1928, que Diogo Mendes, associadoa João Carlos Affaitati, mandava comprar pimenta emLisboa por seu irmão Francisco Mendes, montando ovalor de cada vez a 600, 800, mil, até um milhão decruzados e mais. Outros negociantes, de menos

cabedal, em Lisboa e Antuérpia, participavam naoperação em quotas de 10, 12, 20 mil cruzados,consoante as posses. Diogo Mendes e o sóciomanejavam as vendas, firmando o preço em Antuérpiae certamente por sua influência as companhiasalemãs perderam privilégios em Lisboa e o comércioda Pimenta, objecto de especulação, proporcionou aAntuérpia um desenvolvimento extraordinário.

Francisco Mendes casa com Beatriz de Luna em1528, têm uma filha, Brianda, em 1531 e D. Graciafica viúva em 1536.

O cheiro da pimenta determinou uma actividadediplomática muito intensa por parte do rei portuguêsJoão III (1502-1577) e seus conselheiros junto dopapado, onde procuravam ingloriamente soluçõesexpeditas e patrocinadas. Clemente VII, expedira em17 de Dezembro de 1531 a bula CUM AD NIHIL MAGISque instituiu o primeiro inquisidor, cabendo a nomeaçãosob pena de excomunhão a frei Diogo da Silva, que

terá recusado tal cargo, sus-penso em 17 de Outubro de1532, sendo os iudeus«perdoados» por bula de 7 deAbril de 1533 que deve ter ficadotranquilamente esquecida emalguma secretaria até novo«perdão» de Paulo III, datado de12 de Outubro de 1535, semque D.João III deixasse de estaratento aos judeus, cerceando--lhes até onde lhe foi possívelos direitos, as liberdades e asgarantias, como regista MariaJosé Pimenta Ferro Tavares emJUDAISMO E INQUISIÇÃO,1987, surgindo por fim afamigerada bula da inquisiçãode 23 de Maio de 1536,

publicada em 22 de Outubro, regulamentada em 18de Novembro. Os principais prejudicados, o País todo,tristes portugueses que viviam embalados no gostoda cobiça, nada fizeram e apenas um reduzido grupodos então chamados cristãos novos, apoiados pelopríncipe D.Luis (?-1555) se dirigiu ao rei a solicitarbenevolência.

Ao contrário do que escreveu Aquilino Ribeiro emPRINCIPES DE PORTUGAL, SUAS GRANDEZAS EMISÉRIAS, o infante D. Luis, aluno de Pedro Nunes(1502-1578) e pai assumido do futuro Prior do CratoD. António (1531-1595), que dizem ser filho de umaSenhora hebreia, mais do que «tipo acabado deparasita nacional» com seiscentos e trinta criados ebarcos no mar, capaz do acto de rebeldia que foi asua participação na campanha de Tunes em 1535, aolado de Carlos V, contra as ordens de seu irmão D.João III, antes parece ter sabido comportar-se, até àsua morte em 1555, como um factor de equilíbrio na

Figura 4 -Matiolo e

Amato emdesacordo

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vida portuguesa, cuja moral entrara em derrapagem.Esgotadas as providências diplomáticas e

comprovada a ineficácia das redes da corrupção,Beatriz de Luna / Gracia Nasci, sua filha Brianda /Reyna / Regina, a irmã Brianda Luna e o sobrinhoJoão Miguel / José Nasci fogem para Antuérpia.

O «Lusitano», que por essa época era apenas odoutor João Rodrigues, de Castelo Branco, estariamuito atento ao que chegava da Índia e organizava osapontamentos que lhe permitiriam uma primeiraabordagem da Matéria Médica de Dioscórides, o IN-DEX DIOSCORIDES, que publicará em Antuérpia comdata de 1536, o que não invalida a possibilidade de asua partida para o exílio ser apenas no final desteano. Em Antuérpia Amato passou sete anos felizes,observando doentes que por vezes lhe pagavamprincipescamente, como o encarregado da feitoria,Manuel Cirne, «trecentos largitus est aureos ducatus»por uma febre terçã dupla, estudava matéria médica eteria acesso ao jardim de Diogo Mendes, onde poderiacolher plantas com interesse medicinal, como aLactuca sylvestris «Nostra sylvestris Lactuca est,quam semel hic Anthuerpiae, in horto nobilis DominiDiodoci Mendi vidi» (Fl. 45 v, citado por Maximiano deLemos em Amato Lusitano, correcções e aditamentos,1922).

Em 4 de Setembro de 1546 Amato estará em Ferraraa assistir doentes, cultiva a amizade de António MusaBrassavola (1500-1555) que o aconselha a aceitar umconvite do senado de Ragusa / Dubrovnick paraabandonar Itália e incentiva Giovanni Baptista Canano(1515-1579) a tornar-se anatomista de renome. EmFerrara, com Canano, em 1547, descobre «ostíolosou operculos» na veia ázigos, observados em dozecorpos de homens e de animais e descritos na CuraLIl da Primeira Centúria, Ancona, 1547 e na Cura LXXda Quinta Centúria, Salonica, 1560, salva do esbulhoque sofreu em Ancona e oferecida a José Nasci. En-tre 1547 e 1556 Amato vive em Ancona e recolheelementos para o IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DEMEDICA MATÉRIA LÍBROS QVINQVE,ENARRATIONES, Veneza, 1553, publica as quatroprimeiras centúrias e prepara a quinta.

Os Comentários a Dioscórides registam pedaçosda história de Amato e referem contactos com osMendes. Assim, no libri 1, Enarratio CXXXVII,«Palmitos», em resposta a LVDOVICVS, Luis Nunesde Santarém, professor em Lisboa de 1529 a 1535,professor em Coimbra de 1541 a 1544, editor doDICTIONARIUM AELLI ANTONII NEBRISSENSIS,Antuérpia, 1545, «Amatvs: Scio certe, quum nos dueè Salmamticessi, nobili apud Hispanos gymnasio, inLusitaniam reuerteremur, te publicè medice nam apudColimbrienses, regis mandato legisse, imo ibidem tibiin eo munere primas delatas recordor. Sed ego relictaLusitania, vt qui in ab hinc decem & octo annispraesagieram, que nunc euenisse audio, regios

contem psi honores, & in Anthuerpiam me recepi, vbisepténium egi, & inde lilustrissimi ducis FerrariaeHerculis secundi iussu, Ferrariam veni, sub cuiusclientela sexennium moratus sun, vbi quoq; publiceartem medicam professi sumus & multa à virisdoctissimis, in re anatomica & herbaria didicimus» eestes dados são importantes para o conhecimentodo itinerário de Amato que poderia ter Partido paraAntuérpia dezoito anos depois de ter iniciado estudosem Salamanca e que, depois de sete anos emAntuérpia, não teria partido para Itália antes da chegadade Luis Nunes.

No que se refere a contactos com os Mendes,Maximiano Lemos chama a atenção para o INDIOSCORIDIS, Enarratio CXX, «De rosis» e EnarratioXXXIX, «De Cervi mascvli Genitale», que transcrevoda edição de Lyon,1558:

Contacto com Diogo Mendes: «De rosis», EnarratioCXX - «Ego verò noscens medicamentumpotentissimum & fere venenum esse, eam monui, abillo abstineret, nec eo amplius vteretur: putanerat euimliberalissima haec domina, côditum illud ex rosisincarnatis à nobis dictis paratum esse, quo aliasAnthuerpiae saepe usa erat, ad quam, meis votis,viuente Didaco Mendio huius cognato, & omniummercatorum suae aetatis ditissimo: SebastianusPintus, e Ferraria miserat, valut ad alios principes,tanquam donum praecipuum, & sanitati humanaedeserviens, Hae vero rosae moschatae in Hispaniararo videntur: sunt enim albae subcitrinae similes vtpaucis dicam, rosis caninis inter spinas nascentibus,quae ad sumum tria quatuor folia habet». Clientes deluxo, rosas encarnadas! Quando a rainha e senhoraD. Isabel de Aragão se viu na necessidade deadministrar um decocto de pétalas de rosa ao seusenhor e rei D. Diniz que tinha um frenesimdesgraçado, para ver se acalmava e governava arepública como era necessário, teve de contentar-secom umas rosas pobrinhas e desbotadas de quatropétalas, colhidas no meio de espinhos onde nem oscães as viam, mas que fizeram erguer este paíz quea não esquece nem ao «Milagre das rosas».

Contacto com Dona Gracia: - «De Cervi masevliGenitale ... Hispanicè, vergalho de cervo; Italicé, vergadel ceruo; Gallice, verge de cerf», Enarratio XXXIX -«Nom solum contra viperaae venenum virga cervi valet:sed etiam vt testatur Rasis, ad colicas affectiones, &vrinae retentionem, vel vt aliis placet, ad stimulandamvenerem. Caeterum, circumfertur hodie lapillus quidemex India ad Lusitanius primo aduectus, vt plurimum,magnitudine & figura glandis colore civeritio, adcyaneum inclinante, multis compositus laminis, quemcerui lachrymam quidam, alijvero lapidem belzahartappellant, & illum tanquam praestantissimum acdivinum antidotum, cõtra omne genus veneniapprobant, De quo Abinzoar libro sui Theisir testatur,se illo quendam deploratu à perniciosissimo ingurgitato

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veneno liberasse, cui granorum bordei trium põderebelzoharti, in quinq; vncis aquae cucurbitataepropinaverat....

... Nunc quu haec literis commendabamus, illustrisDomina Beatrix à Luna, mulier opulentissima, venetiisagens, lapillum vnum ex iis quos describimus ab Indiaeanimali extractu à quodam nobili Lusitano, qui apudIndos Pro rex fuerat, centum & triginta aureis ducatisemit: erat enim lapillus ille, vt hoc quoq; dicamus oualissere magnitudinis. Caeterum, non ab re quoq; esset,in praesenti postquàm de praestãtisimis antidotis con-tra venena egimus, de vnicornio quoque memoriamfacere, sed quoniam capite de cornu cervi, de illosermonem facimus, ideo supersedimus, lectorem adcitatum locum relegantes.» ... «Raspas» de Bezoárioeram antídoto poderoso contra qualquer veneno eserviam para as «dores de barriga» ou afecçõescólicas, muito antes dos COLOQUIOS DOSSIMPLES..., Goa, 1563, de Garcia de Orta que noColóquio 58, ao tratar das «cousas novas», avisaserem de difícil obtenção e que lhe parecia não haver«tantas como isso, poré(m) o tempo que descobretudo a descubrirá, ... porq(ue) por mais meezinhasq(ue) (h)aja contra a peçonha mais sam neces(s)arias,e tãbém parece ser que em Roma teria esta pedramuyta valia» «brilhante» final, possivelmente emlembrança do IN DIOSCORIDIS, publicado dez anosantes e provável acha numa fogueira que serviu paraqueimar os ossos de Garcia d’Orta em 4 de Dezembrode 1580.

Amato viajava. Em 1 de Maio de 1551 publica emRoma a SEGUNDA CENTÚRIA, dedicada a Hipólitode Este cardeal de Ferrara, um interessante livro queabre com o caso clínico da irmã do papa Júlio III einsere uma Cura XXXI que toca ao sobrinho papal,Vicêncio, governador de Ancona e é dedicada ao sumopontífice. Em 1553 Amato publica em Veneza oscomentários a Dioscórides, ao mesmo tempo que nosprelos de Abraham Usque, em Ferrara, surge aCONSOLACÃO ÀS TRIBULACOENS DE ISRAEL, deSamuel Usque, patrocinado por dona Gracia Nasci,que no ano anterior patrocinara a publicação das duasedições da famosa BIBLIA, Ferrara, 1552.

Após o papado de Júlio III, que se dilatou semperigos para os Judeus de 1500 a 1555, reinou du-rante vinte e dois dias Marcelo II, sucedendo-lhe ocardeal Caraffa, de 77 anos, que reinou de 1555 a1559, confirmou a Universidade dos Jesuitas de Évorae promoveu a política de desertificação intelectual quelevou Andres Laguna (I499-1563) a deslocar-se paraAntuérpia e terá empurrado Amato para os braços dosNasci, que muito o apoiaram perante os despautériosde Pietro Andrea Mattioli (1501-1577) que não se coibiude açular contra o Lusitano a voracidade dos esbirrosinquisitoriais com a viperina APOLOGIA ADVERSUSAMATHUM CUM CENSURA IN EJUSDEMENARRATIONES, Veneza, 1558.

A política anti-judaica do cardeal Caraffa, papa PauloIV, criou instabilidade por toda a Europa e D. Graciaviu as suas empresas confiscadas um pouco por todoo lado, o que a determinou a deslocar-se a Istambul aprocurar a protecção do Solimão, já que nessa épocao império Turco funcionava como uma sociedadeaberta e progressiva e por isso era muito diferentedas monarquias europeias em geral e do Portugaleuropeu e zonas administradas por Roma, onde existiauma autoridade dogmática bloqueadora de quaisqueriniciativas que não partissem da sociedade dominantein nomine Dei.

Dona Gracia, que fora obrigada a sair de Antuérpiae se vira obrigada a empurrar a própria filha para osbraços do sobrinho a fim de evitar arranjos palacianose casamentos ruinosos com pretendentes impostospela regente D. Maria irmã de Carlos V e pelo próprioimperador, vê-se em guerra com a cidade de Venezaque expulsou os Judeus em 1550 e se recusa a ceder-lhe a ilha de Chipre para aí instalar a comunidadeisraelita expulsa, restando-lhe fugir para a Turquia em1552, estabelecer residência em Constantinopla em1554 e enviar José Nasci junto de Selim, filho esucessor do Solimão o magnífico (reinou de 1520 a1566) pedindo-lhe que conquistasse Chipre, contactosestes que valeram a Joseph Nasci o título de duquede Naxos, nas Cidades, em 1567, tendo Veneza ficadosem Chipre em 1571. Por outro lado, como a Françados sucessivos governos de Henrique II, Francisco I eCarlos IX se recusasse a pagar uma dívida de 150 milescudos à Casa dos Mendes com a desculpa de queeram Judeus, o imperador Selim II (reinou de 1566 a1578) ordenou que fosse sequestrado um terço dacarga de todos os navios franceses que aportassemem portos turcos até que a dívida fosse inteiramentesaldada.

Autêntico ou forjado, existe um soneto atribuído aLuis Vaz de Camões (1524 - 1580) que canta La Se-nora: é o Soneto LXIX das OBRAS DE LUIS DECAMOES, nova edição, tomo terceiro Paris, à custade Pedro Gendron, 1759, página 398:

ILLUSTRE Gracia, nombre de uma moçaPrimera malhechora en este casso,A Mondonedo, a Palma, al coxo Trasso,Sugeto digno de immortal coroça.Si en medio de Ia Iglesia no reboçaEl manto a vuestro rostro tan devasso,Por vós diràn Ias gentes rezio, y passo;Veis quien cor el Demonio se retoça.

Puede mover los montes siri trabajo;Con palavras el curso al agua enfrena;Por Ias ondas hara camino enxuto.

A verguenza su Patria, y rico Tajo,Que por ella hombres feva más que arenaDe que paga al Infierno gran tributo.

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Que me permito “traduzir” e “adaptar” da seguinteforma:

GRACIA, nome ilustre, nome de moçaQuantas lágrimas choraste neste caso,Correndo contra o tempo e ao acaso,Quantos poetas terão a tua força!Se nas sombras da Igreja roçaO manto que te encobre do devasso,O povo reza e passo,Enquanto o demo se retoça.

Mover montanhas é trabalho!Páras o rio com a meiaE caminhas na água a pé enxuto.

Portugal tenha vergonha.Pelo Tejo Saíram homens como areia,E pagaram tributo!

Beatriz de Luna foi obrigada a fugir para Antuérpiaem 1536, em 1549 partiu para Veneza, em 1550 fixou-se em Ferrara, em 1552 seguiu para a Turquia.Expulsa da Europa, Dona Gracia reinou em Tiberíadese construiu Safed, tentou criar condições para odesenvolvimento de comunidades responsáveis eintroduziu a sericicultura na Palestina. Não se sabecomo nem quando La Senora se despediu do mundo.

João Rodrigo nasceu em Castelo Branco em 1511,uma vez que em 17 de Setembro de 1553, em Ancona,o Autor da QUARTA CENTÚRIA andava no seuquadragésimo segundo ano de idade. Terá começadoos estudos em Salamanca com 9 anos e quando teveidade para isso, entrou para a Universidade, depois

de ter prati-cado Cirur-gia, durantedois anos,quando tinhad e z o i t oanos. No fi-nal de 1536fugiu paraAntuérpia,num dessesbarcos dacarreira daÍndia quepassavampor Lisboa acaminho daFlandres eque, en-quanto nave-

gassem, quando chegava a primavera zarpavam denovo para o Oriente. Sete longos anos em Antuérpiae em 1545 reside em Ferrara, a convite de Hércules

II. Entre 1547 e 1556 vive em Ancona, deslocando-sepor vezes a Veneza, a Roma e outros locais. Em 1556Amato foge para Pesaro e em 1557 refugia-se emRagusa/Dubrovnick, passando a Salonica no final de1558 e em 21 de Janeiro ro de 1568, a tratar pestíferos«aquele que tantas vezes reteve a chama da vida emcorpos que morriam, amado por muitos, nascido emCastelo Branco, chegou ao fim dos seus dias longeda Pátria e descansa na Macedónia. Quando o azarbate à porta, é sempre a descer» (Diogo Pires: AMATILVSITANI EPITAPHIVM, tradução livre). Não sabemoscomo era a figura de Amato. O seu retrato vemreproduzido na portada da HISTORIA PLANTARUMUNIVERSALIS de Johann Bauhin (1541 -1613) editadapor Johann H. Cherler em 1650, em companhia comoutros dois autores de opiniões diferentes«Dissentimus» - Matthiolus e Guilandinus. Infeliz eironicamente a única representação conhecida deAmato, que pertenceu a Annibal Fernandes Thomaze correspondente a uma destas três figuras,reproduzida por Maximiano Lemos e Ricardo Jorge, éuma gravura alemã do final do século XVII e pareceantes representar Matiolo em traje de combate...Amato será antes o único dos três que se apresentaem trajo civil, de cabeça recoberta com larga boina,como quando herborizava.

Em toda a sua vida Amato sempre procurouprestigiar a terra que lhe serviu de berço e a profissãoque escolheu e sempre se refere a Portugal e aosportugueses como «patria mea» e «lusitani nostri»ou «nostri portugalenses». Foi perseguido por razõesditas religiosas... José Lopes Dias, numa obrainfelizmente pouco divulgada, COMENTARIOS AO«INDEX DIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO,apresentados no XXI Congresso Internacional deHistória da Medicina, em Sena (Itália), em Setembrode 1968, recorda o expressivo desabafo do grandealbicastrense: «Que outra profissão julgou Cristo,grande e santo salvador do género humano, mais dignade ser estimada que a medicina? Ele bem sabia queexceptuada a Teologia, nenhuma coisa havia de tãoútil ao género humano como a medicina... - quaesoquot aliut officium Christus optimus maximus humanigeneris servatur sibi diligendu(m) proeter unã medicinãputavitiq (sic) nempe sciebat ille que(m) nihil sallereposset, nullã existere re(m) Derinde humano generi,theologiã excipio, conducibile(m) atq medicina...» (Liv.II, XIX).

* Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra

Figura 5 -Matiolo em

farda decombate,

legendadocomo se

fora AmatoLusitano

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Resumo Cronológico

1492 - Início da construcão do Hospital de Todos osSantos. Fernando e Isabel expulsam os Judeus econquistam Granada.

1494 - Tratado de Tordesilhas.1495 - Morre D. João II.1500 - Descoberta do Brasil. Nascimento de Garcia

de Orta.1503 - Estatutos da Universidade. Regimento do Hos-

pital de Todos os Santos.1506 - Holocausto em Lisboa.1510 - Hannah Gracia Nasci/Beatriz de Luna, nasce

em Lisboa.1511 -Nascimento de João Rodrigues, de Castelo

Branco. Amato Lusitano.1515 - Nascimento de João Micas/Joseph Nasci,

filho de Agostinho Micas (Miguel).1517 - Entre 1517 e 1522 o «doctor Micas» é lente

de prima de Medicina na Universidade Portuguesa,em Lisboa e terá falecido em 1532.

1519 - O menino João Rodrigues inicia estudos emSalamanca (?).

Partida de Fernão de Magalhães para a volta aomundo.

1521 - Morre D. Manuel.1525 -D. João III inicia acções diplomáticas para

implantação da inquisição.1528 - Beatriz de Luna casa com o banqueiro Fran-

cisco Mendes Benvenides.1529 - João Rodrigues pratica cirurgia nos Hospitais

Santa Cruz e D. Branca.1531- Tremor de terra, recomeçam perseguições e

assassinatos. Gil Vicente defende os Judeus.Nomeação do primeiro inquisidor.

1535 - DIALOGHI D’AMORE. D. Luis participa naacção contra Tunis.

1536 - Partida de João Rodrigues para Antuérpia.INDEX DIOSCORIDIS, Antuérpia, 1536 Estabele-cimento da chamada santa inquisição em Portugal.Morte de Francisco Mendes. Partida dos Nasci parao exílio.

1542 - Morte do banqueiro Diogo Mendes, emAntuérpia.

1544-1545 - Chegada de Luis Nunes a Antuérpia.Partida de Amato para Ferrara. Concílio de Trento.Os Mendes/Nasci, fogem de Antuérpia para Itália.

1547 - Amato reconhece «ostiolos» ou «opérculos»na veia ázigos. Morte de Lutero.

1549-1553 - Amato fixa-se em Ancona. PRIMEIRACENTÚRIA, Ancona, 1549.

1550 - Beatriz de Luna / Dona Garcia / La Señorafixa-se em Ferrara.

1552 - BIBLIA DE FERRARA.1553 - Amato: IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE

MEDICA MATERIA. Veneza. Samuel Usque:CONSOLACAM AS TRIBULACOENS DE ISRAEL,Ferrara. Os Nasci fogem para Istambul.

1555 - Morte de Paulo III. Morte de Marcelo II.Coroação do cardeal Caraffa, Paulo IV.

1556 - Amato foge para Pesaro. La Señora embargao porto de Ancona.

1557 - Amato instala-se em Ragusa/Dubrovnick.1559 - Amato fixa-se em Salonica.1560 - QUINTA CENTÚRIA, com dedicatória a Joseph

Nasci.1568 - Amato morre em Salonica, no dia 21 de Ja-

neiro (?), a tratar pestíferos.Garcia de Orta morre em Goa.

Resumo Bibliográfico

Amato Lusitano: CENTÚRIAS DE CURASMEDICINAIS, Tradução Firmino Crespo, UniversidadeNova de Lisboa, 1980.

Castelo Branco, M.S.: «O amor e a morte ... nosantigos registos paroquiais albicastrenses».

CADERNOS DE CULTURA (Castelo Branco) 7, 7-32, 1993.

Lopes-Dias, J.: COMENTÁRIOS AO «INDEXDIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO, Gráfica deS.José, Castelo Branco, 1968.

Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO. A SUAVIDA E A SUA OBRA, Eduardo Tavares Martins, Porto,1907.

Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO.CORRECÇÕES E ADITAMENTOS, Imprensa daUniversidade, Coimbra, 1922.

Rasteiro, A.: MEDICINA E DESCOBRIMENTOS,Almedina, 1992.

Ricardo-Jorge: AMATO LUSITANO. COMENTOS ÀSUA VIDA, OBRA E ÉPOCA, I .A.C., Lisboa, 1962.

Santoro, M.: AMATO LUSITANO ED ANCONA,Imprensa Nacional, Lisboa, 1991.

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A Arte de Curar em Amato Lusitano (1511-1568) e oQuotidiano Terapêutico Português no Século XVIII

PANACEIAS NOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE”

por Fanny Andrée Font Xavier da Cunha*

«O verdadeiro fim da química não é fazer ouro, maspreparar medicamentos.»

Paracelso

Devido à sua industriosidade, o Homem disfruta dealimentação uniforme, que lhe assegura a vida. Porémo homem, para conservar essa vida, temfrequentemente de recorrera fármacos, e ao seuemprego racional, para aliviar ou curar as doenças.

A arte de curar tem ocupado o Homem através dostempos.

Por essa arte se podem avaliar os progressos dosconhecimentos humanos, e podem mesmoconsiderar-se dois períodos subjacentes a essa arte:ante e post Descobrimentos.

De todos os tempos os navegadores, os cronistas,os naturalistas, os boticários, os missionários e osmédicos portugueses contribuiram para odesenvolvimento da ciência médica e ciênciassubsidiárias (bioquímica e farmácia).

Os Portugueses e os Espanhóis foram os primeirosviajantes europeus a adquirir e transmitir vastosconhecimentos de doenças, de animais e plantas(frutos, sementes, raízes, gomas, etc), completamentedesconhecidos antes das Descobertas marítimas.

A prioridade de algumas grandes descobertas cabeaos portugueses, como consequência directa da suaexperiência na Ásia, África e América, entre 1420-1690.

Bastaria citarmos o boticário Tomés Pires, o médicoe naturalista Garcia de Orta (Índia), os viajantes Perode Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa(Brasil), os missionários Padres José d’Anchieta,Fernão Cardim, Frei João dos Santos, etc.

Através destes viajantes científicos, e do seu poderde observação, Portugal deu a conhecer ao mundoculto da época elementos e observações sobre váriasdoenças exóticas e sua terapêutica (uso do aloés, doópio, do óleo dericino, da quinquina, do ruibarbo, docopahu, etc).

O conhecimento dessas novas doenças, dessas flo-ras exóticas, tiveram um impacto considerável sobreo progresso da Medicina.

Para Portugal o século XVIII é um século deprogresso e de evolução nos métodos terapêuticos.

E se para Tácito 15 anos constituíam um lapsoimportante da existência humana, que dizer doisséculos? (grande mortalis aeve spatium)

Este é o século das ciências exactas; das ciênciasnaturais; das viagens e viajantes científicos; das

Figura 1 -Laboratório de

química doséc. XVIII

12

técnicas. É neste século, o das Luzes, que surge emPortugal a 1ª publicação médica periódica, intitulada«Zodíaco Lusitano-Delphico, Anatomico, Botanico,Chirugico. Dendrologico, Ictylogico,...», em Janeiro de1794.

No ano de 1726 fôra publicado por Brás Luís deAbreu o livro «Portugal Médico», verdadeira glorificaçãodos médicos. Na sua dedicatória ao Sereníssimo esempre Augusto Príncipe do Brasil, diz mesmo que«Ja houve quem entendeo, que não devia ser Príncepe,quem não fosse medico...».

O autor considera o legítimo Médico superior a todosos outros homens e que «a verdadeira Medicinadomina sobre todos os Monarchas...»

É também neste século que se publicam as 1ªs

Farmacopeias, para servirem de guia aosfarmacêuticos. Na 1ª metade do século XVIII era aindaa «Polyanthea medicinal» de João CurvoSemedo,1697, uma verdadeira enciclopédia médica,«o novo evangelho dos médicos portugueses», a qualcontinha remédios verdadeiramente repugantes,reeditada pelos tempos fora, que dominava.

Porém o verdadeiro século das Farmacopeias é oséculo XVIII.

A 1ª farmacopeia que se publicou em línguaportuguesa foi a «Farmacopeia Lusitana» em 1704,por D. Caetano de S.t° António, Boticário do RealMosteiro de S.ta Cruz de Coimbra, o qual diz no«Prologo ao Leitor»: «moveume a sair a publico comesta obra, a experiencia certa, e continuada, da pouca,ou nenhuma noticia que tem da lingua latina a mayorparte dos Praticantes, que aprendem a artePharmaceuthica; e ver também que (ou seja, porimpericia do latim, ou por falta de cabedal) nãocomprão, nem uzão aquelles livros, por onde segura,e acertadamente / podião dirigir-se, contentando-sesó com os treslados manuscritos de um methodo deobrar, a que elles chamão Pharmaca,...».

No Index encontramos a indicação de várias Aguas,Vinagres e Vinhos; Electuarios (pérolas, safiras,granadas, esmeraldas); Emplastros; Infusões;Mucilagens; Óleos (de minhocas, de lacraus); Pedras:pedra sardónica, jacintos, granadas, esmeralda, coral;Metais (ouro e prata); Pírulas; Pós (contra flatos;cordiais com pedras preciosas; digestivos, epilépticos;para fluxos de sangue; para gallico; para lombrigas;para sarna; pós restritivos); Triaga de Esmeraldas;Vinhos; Unguentos (unguentos desopilativos decurros, do baço, do estômago, do ligado); Xaropes eZaragatoas.

Em 1713, D. António dos Mártires (1698-1768), pub-lica «Colectaneo Farmacêutico» ou «FarmacopeiaBateana».

João Vigier, no ano de 1716 publica a«Pharmacopêa Ulissiponense»; Manuel RodriguesCoelho (1735-1751) publica a «PharmacopêaTubalense» (o primeiro volume no ano de 1735; o

segundo em 1751).A sua Farmacopeia foi classificada por Pedro José

da Silva como «um verdadeiro e colossal monumentoda polifarmácia».

Em 1766, A. Rodrigues Portugal publica a«Pharmacopêa Portuense».

Contudo, a 1ª farmacopeia oficial portuguesa, a«Pharmacopeia Geral para o Reino e domínios dePortugal» foi publicada em 1794, reimpressa em 1823,em Coimbra, de acordo com o Estatuto Universitáriode 1772.

É na 2ª edição da «Farmacopeia Lusitana», que sefala, pela 1ª vez, em Química.

Podemos mesmo considerar que a oficina dofarmacêutico foi o primeiro laboratório químico, e queo Dr. Curvo Semedo (1635-1719) foi o pioneiro daindústria farmacêutica.

Contudo, pelos fins do século XVIII ainda não setinham adoptado, em Portugal, as teorias químicasque noutros países iamtomando vulto. No dealbardo século XVIII eraminúmeras as fórmulasmedicamentosas mais oumenos mágicas queenchiam as farmaco-peias: pós medicamento-sos e mágicos, pedras,etc.

Ontem como hoje! Bemrecentemente ainda umdiário fazia referência a talismãs mágicos, pós egípciose cuecas magnéticas..., não esquecendo osproclamados efeitos milagrosos de umas pulseiras!

Mas regressemos ao século XVIII, bem semelhanteno seu quotidiano terapêutico ao dos séculosanteriores, nomeadamente ao do século XVI,aconselhado por Amato Lusitano.

Na «Pharmacopea Tubalense» vamos encontrar opó de múmia que entrava na composição de pós paradescoagularem o sangue e contra infecções da pele:os pós de víboras; as pedras, como a pedra bezoar, eos metais suspensos do pescoço ou presos aospulsos. Amato Lusitano, na CURA LXIV, 1ªCentúria-Duns envenenamentos con sublinsdo(Sublimato) e sua cura, receita remédios vomitivos.Entre eles cita a pedra bezar (lapis bezarticum)extraída do estômago de uma certa cabra da Índia;raspadura de unicórnio, e principalmente o vomitórioque levou a palma entre os outros: água de flor delaranjeira. Depois do vomitivo, passa ao antídoto: “feitode víboras a que chamamos teriaga”.

Na CURA VIII, 1ª Centúria-De Febre Quartã,aconselha purgar com remédios que limpam a bilisnegra, como: pílulas de fumária da India, de pedra daArménia, de lapis lazuli, chamada turqueza (cyaneus)e semelhantes. Aconselha igualmente dar teriaga

Figuras 2, 3e 4 -

Gravurasdo HortusSanitatis(1517).

Alquimistastrabalhando

comsubstâncias

mineraisentão

empreguesno

tratamentode

doenças.

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com vinho branco e em jejum.No capítulo da petroterapia, Curvo Semedo, na

«Polyanthea medicinal», refere: «varios effeytos dealgumas pedras, remedios que obrão por virtudese qualidades occultas e que obrão por sympathiae antipathia; pois vemos que as pedras de cobra, que

vem da India, postas sobre amordedura de qualquer bichovenenoso tem huma virtudeocculta tão rara, que atrahe asi todo o veneno da mordedura;e é digno de admiração ver queestando algumas vezes a partemordida muyto inchada, sedesfaz toda a inchação empoucas horas...»

«Vemos que a pedra Zafira,sendo de cor azul muyto subida roçada ao redor deAntrás, ou Carbunculo venenoso, tem virtude occultatão prodigiosa para fazer exhalar o veneno do Antráscomo se fosse tumo pelo meyo de huma chaminé....».

«A pedra de estancar, pendurada ao pescoçosupprime os fluxos de sangue; e o mesmo faz a pedraEmathitis, retida na mão até aquecer. A pedra de Aguia,atada na perna esquerda facilita o parto; e atada nobraço esquerdo, faz reter a crianca no ventre da mãy.

A pedra Nephritica, que tem cor verde, trazida sobrea cruz das cadeiras, faz deitar as pedras dos rins».

D. Caetano de S. António, na 1ª Farmacopeiaportuguesa inclui inúmeras fórmulas com pedrasnobres: pérolas, safiras, granadas, esmeraldas, coral.

Unguentos com corais vermelhos são usados porAmato na CURA LXXI,1ª Centúria «Dun Menino quesofria de disenteria» “R:.... de po de coraisvermelhos....”, com o qual se untaria toda a região do

fígado.Na CURA XXI, 1ª Centúria

- «Duma febre despresadaapos uma, pleurite....» refereuma confeição cordeal fria,e que se preparava assim:R: de safiras, de jacintos,de esmeraldas, de carabes,de coral branco, de coralvermelho, ...; de raspadurade marfim de chifre

queimado de Veado.... de goma arábica, de todos ossandalos,...de cânfora, de almíscar, de ouro e de prata,do osso do coração do veado,». Destes ingredientesse fazia um pó.

O século XVIII é igualmente o século das «viagensfilosóficas» e dos viajantes científicos. Estes faziam-seacompanhar de «boticas».

Neste século o papel dos boticários, emconsequência dos descobrimentos e das viagens pormar, é de capital importância, porque são eles queelaboram as listas das boticas necessárias a bordo.

As «boticas» eram caixas de madeira ou de folhade Flandres, de várias dimensões, que continham asdrogas e medicamentos mais necessários e urgentes.

Aliás uma parte importante da actividadefarmacêutica seria futuramente a produção demedicamentos para as diferentes possessões doimpério, principalmente para o Brasil. Comparemosas boticas «mais urgentes e necessárias» no séculoXVIII, com os remédios usados no século XVI porAmato Lusitano.

As boticas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira,naturalista em missão científica ao Brasil, incluíamSal de víboras; isto já em fins do século XVIII. Estespós viperinos eram obtidos cortando em pedaçosmiúdos corpos, corações e fígados de víboras quedepois eram secos e reduzidos a pó subtil.

Delas constavam também olhos de caranguejo,almíscar oriental (excreção do Moschus moschiferus)e Triaga ou Teriaga, a mais célebre das preparaçõesoficinais farmacêuticas; ela era o electuário maisfamoso, representante máximo da velha polifarmácia,e panaceia universal.

Tão antiga que já Camões a canta como antídotodos venenos das setas:

Que o veneno espalhado pelas veiasCurão no ás vezes ásperas triagas.....................................................Isto acontece às vezes, quando as setasAcertam de levar ervas secretas.(Canto IX, est. 33, 27)

Na sua CURA I, 1ª Centúria, feita em Portugal, emque se trata do curativo da mordedura de víbora, AmatoLusitano mandou aplicar ao sítio mordido um emplastrofeito de alhos e cebolas azedas... com teriaga àmistura. E para beber, uma poção de três dracmasde teriaga dissolvidas em XV onças do mais purovinho.

A teriaga era realmente aconselhada contra apeçonha, tendo como fundamento a víborapeçonhenta; ela continha mais sessenta e trêsmézinhas, como a pimenta, o ópio, a rosa damascena,a mirra, o gengibre, o ruibarbo, o aloés, a eoma arábicae betume da Judeia, e quase todas as drogas da Índia.

Note-se que o betume judaico ou «Asphaltus», porser originário do Mar Aspháltico «a que chamão MarMorto», ainda nos nossos dias é utilizado contra atosse.

O pó de víbora foi introduzido na fórmula primitiva dateriaga pela 1ª vez, por Andrómaco.

A teriaga de Veneza, teriaga fina, teve fama mundial,e só no ano de 1747 Veneza utilizou 2300 víboras.

O fabrico da teriaga, simultaneamente técnico eritual continha inúmeros espécimens sem valor: chifrede veados: pó de cloporte (crustáceo isopode), etc, eum só alcaloide, a morfina.

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Apesar da teriaga ter sido um dos remédiosaplicados a uma doente por Amato, CURA XIII, 4ªCentúria - De sintomas originados de plenite nos vasose ao mesmo tempo de excesso de sémen genital.Por se tratar de uma viúva e como os remédios poucoajudassem, Amato aconselhou-a a casar pois já diziaGaleno: «De que Vénus é saudável para tais viúvas».

A teriaga, a imortal Teriaga, herdada da Antiguidade,foi usada em Portugal até cerca do século XIX, referidaem todos os formulários oficiais. Panaceia universal,não só como antídoto contra todos os venenos, comotambém remédio para todas as doenças.

A farmacopeia de D. Caetano cita três teriagas: ateriaga fina, ou magna, a teriaga reformada, apenascom 11 componentes, e a dos pobres, apenas comcinco, e sem víboras.

A teriaga magna nunca foi preparada em Portugal,usando-se a italiana. Diz D. Caetano:«Esta receitada teriaga magna ou de Andrómaco, é a que se faz noGrande Hospital de Génova, por ordem da suarepública, e a mesma que se faz em Veneza pelosmelhores boticários daquela cidade, porém primeiroque se faça, põe o artífice os simplices todos empúblico, depois de escolhidos, e os mostra ao Protomédico e aos mais doutores e boticários, para seremvistos por eles, e examinados; depois de reduzidos apó subtil os tornam a ver, e com essa aprovação dá oSenado licença para que se possa fazer teriaga, e sóa que se faz com simplices expostos a todos e é quese pode gastar na dita cidade e mandar para outrasterras; e se nesta nossa não houvesse o mesmo zelo,também se poderia fazer a dita teriaga».

Ora nas duas listas de boticas do Dr. AlexandreRodrigues Ferreira, o qual por indicação de DomingosVandelli, professor da Universidade reformada peloMarquês de Pombal, dava início a uma viagem deestudo ao Brasil no ano de 1783, a qual lhe permitiuescrever a obra «Viagem Filosófica pelas capitaniasdo Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá1783-1792» encontram-se referidas 4 libras de Teriagaou triaga magna; 3 de sal de víboras e 6 de de olhosde caranguejos.

Na 2ª lista encontramos a requisição de 1/2 libra deTriaga, como antídoto, de 2 onças de olhos deCaranguejos, como absorvente.

O sal de víboras, cuja preparação consta daPharma-copea Tubalense, era considerado um dosmelhores remédios «que há na Medicina para asquenturas malignas, para as bexigas, Apoplexia,Parlesia, Affectos hystericos, peste, e para os venenoscoagulantes».

Os olhos de caranguejos, ricos em carbonato decálcio entravam na composição de um unguento decaranguejo e de rãs, contra o cancro, e seriamrecalcificantes e também usados contra os vómitossob a forma de laudano, contra a cólera.

Na terapêutica persistia o mito da Natureza

forçosamente benfeitora, donde o seu uso.A lista das enfermidades para que se dispunham

remédios, era tanto no séc. XVI como no século XVIIIbastante vasta; achaques da garganta, apoplexias,asma, bubões galicos, carbúnculo, catarro, chagas,desinteria, dores de cabeça, edemas, epilepsia,escorbuto, erisipela, doenças eruptivas da pele,hemorragias, gangrena, inflamações, lombrigas,obstruções do fígado, do pancreas, pneumonias,escrofulose, tísica, sarna, tinha, tumores,envenenamentos, vómitos, artrites, melancolia, paixãoamorosa diarreias, cólicas intestinais, úlceras,tumores, etc.

Para algumas destas enfermidades Amato Lusitanoapresenta Curas, e também a “PharmacopeaTubalense” é pródiga em composições terapêuticasde grandes virtudes.

Tanto no quotidiano do século XVI como no do séculoXVIII, os medicamentos mais usados eram osestomáquicos, os eméticos, os purgantes, oscalmantes, e os febrífugos, em cuja composiçãoentravam as drogas que Tomé Pires e Garcia de Ortaderam a conhecer ao mundo, como o aloés, o ruibarbo,o tamarindo, a canela, a pimenta negra, o gengibre eo ópio.

As mais utilizadas eram: o aloés (Aloes socotrin),cujas folhas carnudas contêm um suco amargo queconstitui o aloes oficinale, estomáquico e tónico, oupurgativo consoante adose. Esta indicaçãoterapêutica era assina-lada por Garcia de Orta:«conforta o estomagopor acidente, a que osfísicos chamão de peracidens scilicet, tiran-do-lhe os maus humo-res do estômago semnucumento algum ouao menos cõ pouco».Entra, nos nossos diasna composição depílulas de aloés equina, e outras.

Amato Lusitano, naCURA VI, 1ª Centúria -Cura de lombrigas,manda dar pílulas dealoés e beber vinho generoso!

A canela, que também fazia parte do rol das drogasestomáquicas pedidas por Alexandre RodriguesFerreira, em pleno século XVIII, também foi aplicadaem curas de Amato Lusitano.

Dela escreveu Garcia de Orta (col. 15): «He muytogentil mèzinha para o estomago, e para tirar a dôr decoliqua, que he procedente de causa fria; porque tiraa dôr de improviso como eu muytas vezes». Faz o

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rosto vermelho e de boa côr; tira o mao cheiro daboca». Isto é, a canela é um vasodilatador, e nosnossos dias esta especialidade obtida por dissecaçãoda casca da árvore da canela de Ceilão (Cinnaromumzeylanicum), é utilizada na cozinha e em pastelaria,e como aromático nas pastas dentífricas; dela se extraium óleo essencial farmacêutico.

Amato Lusitano usa-a na CURA X, 1ª Centúria - Dumafebre sanguínea, propinando: “R: de polpa de caneleiratirada recentemente, meia onça; de ruibarbo bom, umadracma,...” Com este remédio a doente vomitou muito,expulsando alguns vermes.

Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma tersã e dequantidade do xarope a usar, receita, além de umxarope, um purgante no qual entra também o ruibarbo,e um bolo, constituído por casca de caneleira eruibarbo.

Tomé Pires, boticário e primeiro naturalista na Índia,já por nós referido, descreve o ruibarbo (do latimrhabarbarum, raiz bárbara) Rheum officinale Baillon eRheum palmatum LINN), como uma planta de raízese caules laxativos e tónicos, em carta escrita a EI-Rei D. Manuel, em 27 de Janeiro de 1516.

Cristovão da Costa chama-lhe «medicina singular edigna de ser venerada por toda a Humanidade», 1578.

Ainda hoje considerado como tónico, amargo,eupéptico e adstringente.

Dentre os purgativos, a botica do Dr.AlexandreFerreira incluía 4 onças de ruibarbo em pó, o qual élaxativo em doses médias e purgante em doses fortes,1/2 libra de seno (Cassia acutifolia DEL ); 2 de polpade tamarindo, de jalapa em pó, purgante drástico(Exogonium jalapa H. BAILL), e os calomelanos(cloreto mercuroso sublimado, dos quais reza a Phar-macopeia Tubalense Químico Galénica:«...medicamento mercurial, o mais usual na Medicina,entre todos os que se elaborão do Mercúrio, usa-sedele para tirar todas as obstrucções, para depurar amassa do sangue, para untar as lombrigas, e paracurar as Boubas, purga por câmara os humoresserosos, e em particular se se misturar com algummedicamento hidragogo...Aplicado exteriormente curaa sarna, as pústulas venenosas, e as demais emoçõesda Cutis, mixto com unguentos, ou com água de cal,ou cozimentos mundifica, e desseca as ulcerasvenéreas antigas...»

Quanto à polpa de tamarindo, (Tamarindus indicaLIN), leguminosa arbórea das regiões tropicais obtidada respectiva vagem reduzida a massa consistente,ácida e doce, entrava na preparação do electuáriode sene. Na antiga farmácia havia electuários anti-febris, diaforéticos, escorbúticos, soniferos, etc.

Dele diz Garcia da Horta «tâ mediçinal que não tempreço», col.59.

Amato usa de ruibarbo, de seno e de polpa detamarindo na confecção de um purgante que aplicana CURA LV - 1ª Centúria - um que sofria de afecções

com certo calor não natural espalhado por todo ocorpo. R: .... de ruibarbo do meIhor, meia dracma; dedecocção confeccionada com foliculos de sene ealguns tamarindos, quatro onças....

O sene, também pedido por Alexandre Ferreira, é,com o ruibarbo, ainda hoje utilizado na expressão:«Receite o ruibarbo, receitar-lhe-ei o sene», para referirduas pessoas que mutuamente fazem concessõesinteresseiras. Visto serem ambos purgativos, não édifícil chegar a acordo.

Na CURA XVI; 1ª Centúria - Duma febre hórrida e dodecocto de sene, utiliza o seno em decocto simples,ou associado ao gengibre, etc.

O gengibre (Zingiber officinale ROSCOE)zingiberácea da Índia e da Conchichina, com umrizoma de sabor aromático e picante, utilizado comocondimento e droga medicinal, como estimulanteestomáquico e diaforético, e que foi um dos primeirosprodutos anunciados pelos descobridoresportugueses.

A Pharmacopeia Tubalense considera-o incisivo,atenuante e estomáquico.

Um purgante que veio até aos nossos dias, oscalomelanos ou calomelanos turquescos, dos quaisconstavam 6 onças na 1ª lista, e 2 na 2ª, sendoutilizado não só como purgativo, mas também comovermífugo, antisséptico intestinal, colagogo, diurético,anti-infeccioso, e externamente, principalmente noséculo XVIII, como anti-sifilitico, pois que se tratavade um sal de mercúrio.

O mercúrio já tinha uma longa história para uso dedoenças da pele, e manifestando-se o mal venéreocom alterações cutâneas e das mucosas, passou aser também usado naquela doença.

Usado e abusado a pontos de Spick referir que du-rante a campanha da Austria, um correio saíu de Vienapara Paris, em malaposta, com um cinto recheadode moedas de ouro. À sua chegada dá com elasbrancas e acusa os agentes do Tesouro de o teremroubado. Porém ele sofrera à partida de França umtratamento mercurial enérgico.

Fricções e fumigações mercuriais eram o tratamentopreferencial.

Amato Lusitano já o utilizava, como na CURA XLIX,1ª Centúria De alguns infectados de sarna galicanaaplicado em unguento feito de substancias aromáticase mercúrio (unguentum ex aromatibus e mercúrioconfectum.

Na CURA XVIII, 4ª Centúria - De “choilades”, isto é,escrófulas, e também de nodosidades, fê-las arrancarpor meio de sublimado (cloreto de mercúrio) ou seja,sublimado corrosivo.

Quanto aos eméticos, ou vomitivos, muito usadospor Amato Lusitano, as composições mais utilizadasno século XVIII tinham como base a ipecacuanha, osene e o tártaro emético, com propriedades vomitivas,e que entrava na composicão do vinho emético.

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De ipecacuanha ou cipó emético, cujaspropriedades eméticas eram assinaladas, desde 1560pelo Padre José d’Anchieta, constam na 1ª lista 4onças, e na 2ª, 5.

No Brasil era o medicamento antidisentérico porexcelência.

A ipecacuanha ou cipó emético, rubiácea vivaz doBrasil (Cephaelis ipecacuanha RICH e WILT, CallioccaGOMES e BROT), ainda entra nos nossos dias nosseguintes preparados: tintura de ipecacuanha, vinhode ipecacuanha, xarope de ipecacuanha, composto.

Também os electuários, mistura de pósmedicamentosos, hoje caídos em desuso, mas aosquais ainda se encontram referências, como na obrade Aquilino Ribeiro, «Quando ao gavião cai a pena»:«um vinagrinho fenomenal que lhe vinha dum primo,mestre em pivetes e electuário», sendo a teriaga omais notável, constituíam terapêutica muito usada,contendo a lista do Dr. Alexandre Ferreira o pedido defrascos de todas as qualidades de vinagres.

O uso de electuários já vinha de longe. Assim noLivro da virtuosa Benfeitona, do Infante D. Pedro,referencias são feitas aos electuários: «...e deuleytoayro ao cavaleiro com q o fez dormirprollongadamente»...«e quall leytoayro trazeráespécies tão estremadas q faça delectaçom maissaborosa».

Amato Lusitano também os utiliza, nas CURA X, 1ªCentúria - Duma febre sanguínea e na CURA XV - Dasupressão da menstruação e de exantemas queaparecem por todo o corpo, terminando, neste últimocaso com a prescrição de banho feito de água doceem que foram cozidas rosas vermelhas.

Já vimos a importância que Amato Lusitano dava àágua de flor de larangeira como vomitivo; na higienecorporal dá à rosa a importância que os antigos lhedavam no Oriente, segundo a afirmação do árabeAbd-er-Razzak:. “Esta gente não pode viver semrosas, que consideram tão necessárias quanto osalimentos!”

Chegados ao Oriente os Portugueses verificaramque a rosa e o seu perfume eram um dos elementosda higiene dos corpos. Com as pétalas de rosas seatapetava o chão das casas, para os pés descalçosdas pessoas, homens e mulheres muito maiscuidados que os dos europeus.

Com pétalas de rosa (Rosa centifolia e Rosadamascena MILL), rosáceas arbustivas da Ásia,prepara-se água de rosas. Orta refere a Rosa persicacomo “mézinha muito usada”; “e pera hum nome sepurgar levemente tomão rosas em boa quantidade ecozenas muyto...”

Amato na CURA XXXIII, 6ª Centúria receita um lavacropara os pés do doente com rosas vermelhas, e umdecocto de rosas secas.

Os calmantes mais usados externamente no séculoXVIII eram os láudanos e os bálsamos. Nos primeiros

procuravam-se os efeitos sedativos do ópio. Do ópio,suco leitoso da papoula (Papa ver sonniferum LINN),do qual Tomé Pires escreveu: «os homenscostumados a comêllo andam sonorentos,desvairados, os olhos vermelhos; nem andam em seusentido. Custuma-se, porque hos provoca luxuria; hede pranta de dormideiras.

He boa mercadoria; gasta-se em grande cantidadee vall muito. Costuma-se a comer, os reis e senhoresem cantidade de «avellã», a gente baixa come menos,poque custa caro».

A medicina utiliza-o ainda e sempre, assim comoos alcalóides que contém (morfina, codeína,papaverina), como calmante e como sonífero eanalgésico. Continua sendo uma droga preciosa. Entraem certos preparados opiados como o láudano.

Amato Lusitano, na CURA XLIV, 4ª Centúria - Dedisenteria curada com a poção de Filónio o Romano,em virtude dos três opiados que continha, receita-ocomo medicamento estupefaciente, ou para doresfortíssimas ou para longas insónias.

Nas listas do Dr. Alexandre Ferreira, encontramos6 onças de cada um dos láudanos que nela figuram.Láudano líquido, que é o Láudano de Sydenham, aindausado, e o láudano opiado, citado na PharmacopeiaTubalense, e do qual diz: «he louvado em todas asdores»; «he sagrada Anchora nos vómitos e cameras,que acompanham as febres terçãs».

O paludismo tem por principal sintoma a febre, febresintermitentes que surgem por acessos, comvariedades chamadas terçãs, febre quartã, febrepalustre, febre dos pântanos, etc.

Conhecido desde a Antiguidade, existia em estadoendémico em muitos países.

Note-se que já no início do século XIX a febre eraum substantivo cujo singular era mais claro que o plu-ral. No século XVI, era desconhecida a sua origem, edesconhecida a quinina, que ainda hoje é consideradapela Organização Mundial de Saúde, como o remédiomais eficaz contra o paludismo, pois que, se nãoelimina o parasita no sangue, evita a crise.

Ora no século XVI Amato Lusitano procurava apenasevitar a crise, e assim, na CURA VIII, 1ª Centúria- DeFebre Quartã, deu ao doente muitos e variadosmedicamentos, que ora diziam respeito à bílis negra,ora ao baço.

Por fim deu-lhe um medicamento purgativo,comentando que tanto nas febres quartãs como nasfalsas terçãs é bom conselho purgar-se no dia daaflição. Também diz ser de bom conselho dar teriaga,no dia da crise, com vinho branco e em jejum,estabelecendo um método de alimentação especial.

Recomenda que o doente tome coisas salgadas,mostarda, pimenta, um purgante especial (diospoliticum) e um remédio de três espécies de pimentas,para deitar todos os dias nos caldos e na alimentação.

- Uma notícia da pimenta como agente terapêutico,

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já se encontra na Crónica de D. Dinis.O valor terapêutico da pimenta declinou; no entanto

a farmacopeia portuguesa ainda a emprega, em pílulasarsenicais (ed. de 1936).

Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma terçã e daquantidade de xarope a dar, Amato, depois de praticaruma sangria, estabeleceu uma dieta de alimentação,

mandandodar um xa-rope, e des e g u i d aum pur-gante nacomposi-ção doqual en-trava, en-tre outross í m p l i -ces, o rui-barbo, ede segui-

da persuadiu-o a comer um bolo, na composição doqual entravam casca de caneleira, e ruibarbo.”Depoisdisso ficou bom”, afirma.

Quão longe estava esta terapêutica da do séculoXVIII, em que os febrífugos teriam por base a quinina!Da lista da Botica que o Dr. Alexandre requisitou em1788 constavam 32 libras de quina em casca e 16libras da mesma em pó, e só de Água de Inglaterra,antiga água das sezões, talvez a 1ª especialidadenacional, levava 12 garrafas.

Amato Lusitano achava de bom conselho darpurgantes,e, no dia da crise, dar teriaga com vinhobranco e em jejum, e como febrifugo, duas heminasde água gélida. CURA XI, V Centúria Duma terçã eda quantidade de xarope a dar; CURA XVIII, 4ª CentúriaDe Um doente com febre, curado com beber águagelada; deixou o doente beber água gelada até sesaciar, acabando por ficar totalmente são. Na listadas doenças que afligiam os portugueses nãopodemos esquecer o escorbuto ou mal de Luandacontra o qual se usava o xarope de tamarindos. Asastenias eram tratadas com estimulantes.

As hiperastenias reprimidas com sangrias.A sangria permanecia um dos pilares da terapêutica.

Aconselhada ou praticada por Amato Lusitano eminúmeras curas, como na CURA LXI, 4ª Centúria - Deuma dupla terçã, em que primeiro mandou tirar aodoente 6 onças de sangue, seguindo-se a tomada dexarope e de purgante, com alimentação adequada masbebendo vinho branco.

Na CURA XXV, 4ª Centúria - De febre sanguínea,mandou, logo no segundo dia da doença dar ao doenteum clister seguido de uma sangria de uma libra desangue; e ainda uma 2ª sangria, o que, com a tomadade xaropes fez com que o paciente ficasse bom antes

do 7° dia. Na CURA XXVI, 4ª Centúria De una aflitivafebre continua com grande dor de cabeça, depois depurgas e sangrias, mandou por duas vezes abrir aveia da testa e correr até 6 onças de sangue, afirmandoque após a 2ª abertura, a convalescença do doentefôra total. Na CURA XXXVIII, 4ª Centúria - De febreerrática que degenerou em quartã - mandou praticar asangria, seguida da toma de purgantes; na CURAXXVIII, Wª Centúria - De desinteria, depois de váriosclisteres, como lhe aparecesse uma febre violenta,mandou fazer uma sangria de 15 onças de sangue,bebendo de seguida um xarope, e dados clisteres compropriedades constrigentes, tal como o seguinte: R:de água de cevada...; de sebo de bode, ... ;de pelosde lebre, uma dracma. Misture e faça-se um clisterque será retido até ser possível. Por último utilizoudefumaduras, em cuja receita se incluía laúdano,incenso e outros símplices.

Ainda na 4ª Centúria, CURA XLVIII - De febre contínuacom erisipela ulcerada; Apanhando a face e toda acabeça, mandou primeiro fazer uma extracção desangue e dar um purgante, e de seguida mandouaplicar duas sanguessugas nas hemorróidas, tendoo doente voltado a ter saúde, e CURA LXII - De febrecontínua maligna; com exantema, chamada pulicaria:nesta tão grossa febre, de tipo maligno e de mau cariz,e como se tratava de uma criança de 6 anos, depoisde praticar a sangria, engendrou dois processos a fimde a melhorar. Um, ventosas às costas, outro,aplicação de uma sanguessuga às veias do ânus.Também em outros exantemas, chamados vanolas esarampos, refere que “todos os médicos doutospermitem uma abundante sangria”.

No século XVIII também os clisteres (clisteis) eventosas continuavam sendo pilares da terapêutica.Os primeiros estão indicados na «Pharma-copeiaTubalense» como antiapopléticos; anti-cólicos;carminativos; !axantes e febrífugos. Também indica«clister de Tabaco».

O Dr. Alexandre R. Ferreira requisitára 30 ataduraspara sangria, e borrachas de couro, com os seuspipos prontos para os clisteis...9.

Doenças da pele requeriam o uso de calmantes,como o Láudano opiado Ludovico, que levavamercúrio; os calomelanos ou mercúrio sublimadodoce, externamente usado como tónico, antissépticoe anti-sifilítico; o láudano líquido que é o Láudano deSydenham, uma tintura de ópio com açafrão, canelae cravo da Índia. Utilizado como analgésico emaplicações sobre a pele, puro ou misturado, sob aforma de linimento com outros analgésicos.

Deste calmante requisitára o Dr. Alexandre 2 libras.No «Portugal Médico», 1726, é dito do Láudano opiado:«Deve ser hoje remédio familiar, pella admiravel virtudede que he dotado para varios achaques», e cita algunscasos de doenças e sua cura.

Enquanto que a Pharmacopeia Tubalense diz:

Loja deboticário do

séc. XVII

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«Este é o medicamento anodino mais seguro, quetem toda a Medicina...tira todas, e quaisquer doresque sejão, suspende todas as hemorrhagias ou fluxos,e todas as fluxoens, quer sejão do ventre, ou de outraqualquer parte; modera as grandes inquietaçoens, ecalor nas febres malignas, aproveita nos Frenesis, naMania, Melancolia, Epilepsia, dor de Colica, Artrictica,na Gotta, nas queixas nephriticas, tira os vomitos, ascardialgias, e outras muitas enfermidades; confortaos espiritos, os nervos, e todas as demais partespincipaes do corpo humano...»

De Bálsamo Catholico, composto de benjoim,estoraque, incenso, etc, levava o Dr. Alexandre 1 librae meia, como consolidante.

Deste bálsamo dizia Ph. Tubalense: «A esteBálsamo se atribuem infinitas virtudes, por produzirem muitas enfermidades admiráveis efeitos...», o queseria natural, atendendo às espécies que oconstituiam. benjoim, incenso, estoraque, etc.

Garcia de Horta, nos «Colóquios», refere e descreveo benjoim, resina aromática extaída do Styrax benzuin(Ilha de Sumatra), utilizada em medicina comobalsâmico e antiséptico.

Diz Garcia de Horta «he quente e seco no segundogrão; aromatiza o estômago húmido e.... e conforta-o, faz bom cheiro da boca, fortifica os membros eacrescenta o coito» (col. 9) e a Ph. Tubalense diz:«He o Benjoim incisivo, penetrante, atenuante,particularmente as suas flores sublimadas (ácidobezoico), e servem nas enfermidades do Pieto; éfortificante da cabeça, contra veneno, e resiste àgangrena». Ainda nos nossos dias se usa comobalsâmico e antiséptico.

Amato Lusitano, na CURA L, 6ª Centúria - De umamulher que abortou no tempo certo de gestação e doseu tratamento, indica uma fumigação de benjoim ebálsamo do Perú na composição da teriaga. Depoisda fumigação aplicava «um pessário feito deopobálsamo, que é trazido da região do Perú há poucodescoberta», aconselha o seu uso a todos osfarmacêuticos (e perfumistas), pois ele próprio o utilizana composição da teriaga. Em pleno século XVIII, paraRibeiro Sanches os boticários são os maiorespraticantes da Medicina: «São elles os que curam asenfermidades, os que consultamos médicos famosospelas queixas dos seus doentes e elles mesmos sãoos que lhes vendem os remédios das suas boticas».

De uma outra resina, o incenso, Garcia de Hortadiz que os médicos indús fazem com ela unguentose perfumes e que, comido é bom para muitas doençasde cabeça. Do seu valor fala o presente dos ReisMagos.

O mesmo quanto ao estoraque, do qual diz aPharmacopea Tubalense: “He o EstoraqueCalamita, estomáquico e confortante do coração, econtra a malignidade de humores. he molificante, eresolutivo” Amato utiliza-o como emoliente na CURA

VU De febre quartã, e na CURA L, 6ª Centúria,também o usa.

Porém, na CURA V, 7ª Centúria, a propósito dasnovas drogas dadas a conhecer por Portugueses eHispânicos, comenta: “...de igual modo importa quese seja conhecedor não só dos remédios exóticos,trazidos da índia e de outros países, mas se possautilizar dos caseiros fáceis de preparação ...”.Nestacura utilizou vinagre muitíssimo forte. Conhecedor deremédios exóticos, de outros países além dos da Índia,utiliza na CURA XLV, 4ª Centúria - De artrite, asalsaparrilha, bem como nas Curas LXll e ,X, 5ªCentúria, em xarope e em decoto. As virtudes dasalsaparrilha do Brasil foram referidas nos escritosdo Jesuíta Pe. Vasconcellos. A salsaparrilha eraconhecida no comércio europeu como salsaparrilhade Lisboa. Os Hispânicos chamam-lhe Salsaparrilla(Similax officinalis KUNTH). Rica em saponinas, éfármaco depurativo. Do Bálsamo Catholico ainda faziaparte o Bálsamo Peruviano Sólido, o qual ainda seusa externamente como antipsorico, cicatrizante deúlcera, e gretas do seio. Donde o conselho dado aosfarmacêuticos para a sua utilização.

De láudano puro e bom também faz uso AmatoLusitano, na CURA XXXII, 2ª Centúria - Sobre cóleramorbus, na composição de um escudo estomacal,na qual entram a canela, o cravo da Índia, a nozmoscada, o pau-aloés, resina, etc. Sândalos, cânforae ópio são utilizados na CURA LXXIII, 4ª Centúria - Daerisipela ulcerosa que apanhava a face e toda a regiãodo olho direito e na CURA XXI, 1ª Centúria - Dumafebre desprezada após um pleuzite, numa confeiçãocordealfria, na qual além de inúmeras pedras entravamtodos os sândalos, cânfora, ouro e prata, e...chifrequeimado de veado e osso do coração de veado! NaCURA XXXIII, 4ª Centúria - De um menino que sofriade febre contínua; utiliza o sândalo em unguento, eem eleituário. O incenso usa-o, por ex. Na CURA XCV,1ª Centúria - Dor nos pés, na confecção de umlinimento, terminando a cura com um banho de águado mar. Aliás empregava banhos de água doce, porex. na CURA XV, 1ª Centúria - Da supressão damenstruação e de exantemas que apareciam por todoo corpo em que mandou à doente “que tomassebanho... feito de água doce em que foram cozidasrosas vermelhas”.

Nas doenças de foro dermatológico um outro génerode terapêutica, já usado pelos Romanos, recomeçanos fins do século XVIII a ser prescrito: a hidroterapiae o termalismo.

Já no século XVI e XVII a balneoterapia despertarao interesse de alguns médicos notáveis.

Assim Zacuto Lusitano (1575-1642) aconselhava astermas (férreas, nitrosas, sulfúricas, aluminosas, etc)para o tratamento de várias doenças, principalmenteartropatias, tão frequentes nos nossos dias, e,imitando Amato Lusitano, aconselhava práticas

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hidroterápicas contra certas doenças febris.Cerca de fins do século XVIII também os banhos de

mar e o clima marítimo comecam a ser aconselhados,como terapêutica. Aliás como vimos na CURA XCV, obanho de mar para os pés já fora aconselhado porAmato Lusitano, e a mudança de clima, seguindo osensinamentos de Hipócrates, no caso de longasfebres, na CURA 4ª, 5ª Centúria - De febre Précticaintroduzida depois de longas febres: “Mudar de solopátrio é bom nas doenças prolongadas”. Nesta CURAtratava-se do “meio ambiente” em que os doentes seencontravam em que o ar do quarto era demasiadohúmido, carregado e frio.

Alterado o” clima” do quarto, novamente AmatoLusitano o levou a tomar o costumado banho no fimdo qual bebia oito onças de leite de cabra. E A.Lusitano termina: “De modo que aquele que por todosera lamentado, agora aí está, vigoroso, alegre,saboreando o seu leite familiar, como fazem todos osteutões. Este com frequência manda preparar de suavontade um banho em que mergulha com o maior dosprazeres”.

Donde se conclui que a hidroterapia, tanto no séculoXVI como no século XVIII era sobretudo usada notratamento das pirexias.

E a propósito de água lembremos a «Água Ardente»,muito usada no século XVIII para doenças da pele eda qual Curvo Semedo diz: «muytas Erysipellas securão com Água Ardente».

Nas erisipelas Amato receita um unguento.Dentro das doenças infecciosas e contagiosas da

infância mais frequentes no século XVIII, e que semanifestavam sob a forma de erupções cutaneas,destacam-se o sarampo, a varicela e a varíola.

É sobre estas que ontem, como hoje, a Higiene e aProfilaxia alcançam as maiores vitórias, pois datamde fins do século XVIII as inoculações e a vacinação,como métodos preventivos da doença.

É um médico do século XVIII, Bernardino AntónioGomes (o descobridor de um dos alcalóides da quina,a quinina), o fundador da Dermatologia Portuguesa. Étambém quem, com a Academia das Ciências, fundaa Instituição Vacínica.

Com a vacina, princípio da Medicina preventiva, umanova era se iniciava. E é aqui que reside a supremadiferença entre a medicina do século XVI e a de finsdo século XVIII. É no ano de 1799 que é introduzidaem Lisboa a vacina de Edward Jenner (1749-1823),vasiolae vacinas. Anteriormente às vacinações já sefaziam inoculações que tinham começado em Lisboaem 1768.

Se considerarmos que a varíola em princípios doséculo XVIII provocava uma morte por cada dezdoentes, e atacava uma grande parte da população,apesar das inoculações fazerem diminuirprogressivamente o número de casos mortais, a varíolaprosseguia na sua mortífera caminhada. Apenas a

vacina de Jenner levou ao quase desaparecimento dadoença. O mesmo quanto à varicela e ao sarampo.

A grande diferença entre curar e prevenir, jáproclamada por um médico nascido em Penamacor,Ribeiro Sanches, o qual acima da medicamentaçãoaconselhava profilaxia e higiene.

Higiene que também Amato Lusitano proclamavaatravés dos banhos, e de ar puro ou mudança de meioambiente.

Terminaremos com um dos Aforismos de Hipócrates(460?-377? AC). “O ferro (a cirurgia) cura aquelasenfermidades que as medicinas não remedeiam; asque o ferro não cura são curadas pelo fogo, e as queo fogo não trata, contem-se então entre as totalmenteincuráveis”.

Amato Lusitano utilizou todas estes meios da artede curar: as medicinas, a cirurgia e o fogo. Só nãodispôs da arte de prevenir a doença.

No século XVIII, com a vacinarão, uma nova era seiniciou para a Medicina.

* Museu Nacional da Ciência e da Técnica

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À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANO

por António Lourenço Marques*

A DOENÇA COMO OBJECTO DA HISTÓRIA

Também a História patenteia a marcha vigorosa quese verifica em mais ciências sociais, exemplificadapelo entusiamo no estudo de tudo o que pertence àsua traça, como se sem exclusão de nada. Estaorientação para objectos só ilusoriamenteinsignificantes e que foram, pormuito tempo, consideradosdesprezíveis, revelou-se, antespelo contrário, tão enriquecedorapara o conhecimento que sepretende global, ainda queselectivo.

O interesse por zonasmarginais, por minudências outrivialidades, contrasta assim comos temas que prevaleceramantes, quando triunfava o estudofocalizado nas instituiçõesrelacionadas como poder político,nos “grandes” acontecimentos,nos protagonistas excelsos, ounas variáveis económicas, nosciclos de moeda, etc. Aparecemagora outros objectos, atéinesperados, como o sexo, a vidado casal e da família, a velhice, ainfância, a morte, o medo, aspaixões, o pecado, as doenças,etc, etc. São, apropriadamente,sempre realidades da vida do homem, que ao seremestudadas, também na perspectiva do historiador,ajudam a melhor compreendê-lo, no presente, porque“iluminado pelo passado” e a “perceber as nossasinquietações e dificuldades actuais”, no entendimentode Vitorino Magalhães Godinho(1). No fundo, é umcaminho que contribui para a não obrigatória, mascertamente desejável, beneficiação do futuro.

Constata-se pois a ampliação dramática dosinteresses da história. Avança-se para um nível maispalpável da vida, passando do corpo social, comoobjecto exclusivo de estudo, para o corpo físico que éo primeiro objecto cultural e com ele as manifestaçõesque o envolvem, os próprios “gestos do quotidiano,

(...) as práticas corriqueiras que preenchem, revelame cimentam o grupo social”(2).

A doença, isto é, certas situações de desarmoniado corpo, com os seus registos apropriados,traduzindo muitas vezes relações conflituosas ou deconfronto, ou mesmo de simpatia com a envolventesocial, pode representar um lugar privilegiado para

permitir a apreensão de sinaise significados singulares e derealidades inapreensiveis ouinsuficientemente apreensíveisde outra forma, não só rela-cionadas com práticas sociaisdeterminadas, como tambémcom certos mecanismosadministrativos, ou com “aimagem que uma sociedadetem de si mesma”(3).

Ora, o historiador, desde hámuito, compreendeu a im-portância deste acontecimentoirregular, mas determinante, daexistência de cada indivíduo eda própria sociedade. Por isso,a referência às doenças écomum, não escapando habi-tualmente à trama dos seusrelatos.

Mas a enfermidade podetambém ser observada doutromodo. Há mesmo doenças

rebeldes a uma explicação social.Assim, na perspectiva de uma abstracção, que o é

de facto, é uma entidade que congrega um conjuntode manifestações entrelaçadas. É uma construçãoformada na base de queixas ou sintomas, certos sinaise algumas alterações inscritas na realidade física docorpo, isto é, na anatomia e/ou na bioquímica,observáveis pelo contacto directo ou objectivadas pelosmeios complementares de diagnóstico. “Aoselementos assim reunidos atribui-se um diagnósticodo qual decorre um determinado tratamento destinadoa agir sobre os sintomas e se possível também sobreas causas”(4). “Todas estas noções, estespressupostos, estes encadeamentos, têm que ver com

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um estadio do conhecimento, com uma ideia deciência. São forçosamente evolutivos. Por natureza amedicina é histórica”(5).

A HISTÓRIA DO CANCRO

O homem de cada época tem investido, em uma ouvárias doenças, a sua angústia diante da fragilidadeda condição humana, com o corpo sujeito àdegradação e à morte. São doenças habitualmentedifíceis de tratar ou incuráveis e que se prestam asimbolizar muitos dos sentimentos negativos daspessoas. No século XV, foi a lepra, no século XVI, aloucura, no século XIX, a tuberculose e, no século XX,mais particularmente a partir do seu meio, o cancro,(hoje a sida, de certomodo, disputa omesmo lugar). Aimpotência perante aresolução de inúmeroscasos, apesar dosavanços da medicina,o carácter particular-mente penoso dosseus sintomas, a dorterrível, a deformação,etc., com a mortecomo horizonte in-transponível, promoveuesta doença a algo quesimboliza, de facto, oque há de maisassustador para a vidado homem.

Esta é a imagem actual do cancro, anteriormentemais favorável. Durante muito tempo, foi consideradocomo uma doença sem significado excessivo, apenasmarcada pelo selo da gravidade, mas como muitasoutras. Sendo também uma dessas doença que nãoevidencia abertamente implicações sociais, não sepresta com facilidade à elaboração de uma históriano seu sentido social. Já o mesmo não se pode dizerquanto à história científica, isto é quanto à história daevolução dos conhecimentos sobre a sua natureza, odiagnóstico ou sobre as práticas terapêuticas quesuscita.

Conhecido e estudado desde a alta antiguidade, estahistória reflecte bem a longa e lenta evolução doconhecimento científico, com algumas aquisiçõescertas, muito antigas, que prevaleceram e cimentama ciência de hoje. O modelo da história desta doençaserve assim para perceber como se processou agénese de saberes actuais, que correspondem, pordefinição, à melhor “verdade” científica dessasrealidades, ainda que envolta em muitas incertezas eperplexidades.

No papiro d’Hebers, escrito entre 3730 e 3710 anos

antes de Cristo, há descrições pormenorizadas detumores. Os Vedas, que são os primeiros textosreligiosos e poéticos da índia, datados de cerca de1500 anos antes de Cristo, referem-se também atumores malignos e até a actos terapêuticos(6). Nacontinuidade histórica, Hipócrates e Galeno tratamdo tema com grande profusão.

Ora, as ideias que têm dominado a história docancro são: 1 - Se o cancro é uma doença local ougeral; 2 - A noção de metástase; e 3 - As indicaçõesterapêuticas, incluindo o papel dos cuidados paliativos

Esta última faceta da terapêutica, cujodesenvolvimento continua tão actual, quase como umaredescoberta, tem, curiosa e surpreendentemente, umadefinição bastante precisa, no século XVI, como

vamos ver, de acor-do com o teste-munho legado porAmato Lusitano, naobra ímpar e excep-cional que são asSete Centúrias deCuras Médicas.

A Cura 32ª da IIICentúria, dedicadaao cancro da mama(7), constitui umasíntese notável so-bre o estadio dosconhec imentosacerca do cancro,naquela época.Esta cura descreve

a doença de uma religiosa, de trinta anos, sobrinhado bispo de Ancona, Balduino de Florença. Amatorelata-nos os primeiros sintomas da doente que foram“abundantíssima transpiração” e “palpitações docoração” sentidas cerca de dois meses antes doaparecimento de ‘`prurido na papila da mama direita”,de “picadas lancinantes” e de “febre”. É, nesta altura,que tem o primeiro contacto com a doente, observando“tudo como é preciso”. “A papila apresentava-se umtanto mais espessa”, como descreve. Perante estaapresentação, Amato Lusitano diagnosticou “uma atrozdoença, que era sem dúvida um cancro”. Havia entãoo hábito natural e muito salutar de informar os doentesacerca da natureza e gravidade da doençadiagnosticada: “exponho em poucas palavras que eradoença gravíssima e perniciosa, de que se seguiriamorte certa, a não ser que fosse curada por mão deChiron e Esculápio”.

A intervenção do médico, isto é, através dele, damedicina, é entendida como determinante quanto àevolução da doença e Amato lamentará sempre queos doentes demorem a recorrer ao médico ou recusemos seus conselhos(8).

Embora as doutrinas de Galeno, na peugada de

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Hipócrates, quanto à natureza das doenças,continuem a dominar (Amato é um profundoconhecedor destes autores), há no entanto novidadese esta cura reflecte a passagem para um cstadio novo,verificado a partir das descobertas da anatomia e dafisiologia, que implicaram uma nova mentalidade domédico, quer como motora do desenvolvimento quercomo seu produto.

A ideia sobre a formação do cancro é galénica. “Ocancro forma-se do humor melancólico (...) conformeensinou Galeno no livro De Atrabile”(9). Um excessodeste humor, portanto uma causa geral, por um lado,com repercussão em todo o organismo, apresentandosintomas gerais e, por outro, explicando auniversalidade da localização do próprio cancro. “Ostumores carcinosos costumam formar-se em todasas partes do corpo”. “Vimos muitos cancros nas ma-mas, no queixo, nas regiões glandulares, como nopescoço, nas axilas e nas virilhas”, informa AmatoLusitano, nesta cura excepcional.

Mas é a actuação terapêutica que revela como oentendimento desta doença era ainda mais complexoe, julgamos nós, mais de acordo com a realidadecientífica da doença.

Se é certo que o ensinamento de Hipócrates éconsiderado, pois é lembrado por Amato, logo quefez o diagnóstico, (“todos os cancros ocultos o melhoré não os tratar. Os tratados levam depressa à morte,os não tratados duram mais longo tempo”, Hipócrates,livro 6° dos Aforismos)(10), o contacto que vai ter coma doente e portanto com esta doença, neste casoconcreto durante um longo período de tempo,permite-lhe expor a actuação que julga mais adequadae que deve ser aconselhada, de modo a que o doentea cumpra. Ele lamentará, mais tarde, após cerca dedois anos da primeira consulta, e quando encontra ocancro já em fase avançada, a recusa da doente emnão ter deixado nunca “arrancá-lo a ferro”.

E tal como na cura 31ª da 1ª Centúria, coloca emprimeiro lugar a hipótese da cirurgia, a que os doentesentão, no entanto, dificilmente se submetiam, comose compreende sem esse esteio indispensável que éa anestesia, só descoberta cerca de quatro séculosdepois. A recusa à actuação sangrenta era de factomuito comum. “Começámos portanto o ataque àdoença, a ver se seria melhor usar cirurgia”. “Mandeique fossem chamados dois ilustres cirurgiões (...),mas quando estávamos todos de acordo, ela (adoente) não acedeu”(11).

A remoção cirúrgica radical do tumor é efectivamenteo primeiro conselho de Amato, perante tumores “queocupem um sítio adequado, à volta do qual se possadevidamente executar um trabalho manual eprincipalmente afastado das muitas artérias e dospequenos vasos”(12). “O tumor canceroso, no seu início,deve ser arrancado radicalmente por operaçãomanual”(13).

Mas esta intervenção devia ser acompanhada dotratamento geral, que basicamente envolvia conselhosrelacionados com a qualidade do ar, a qualidade daalimentação, tema extensivamente desenvolvido nareferida Cura 31ª da 1ª Centúria, os cuidados com oespírito e, obviamente, a terapêutica “evacuadora” dohumor responsável pela doença, isto é, as sangrias eas purgas(14). Estes cuidados, associados aotratamento cirúrgico, eram fundamentais, pois assim“não é de temer que sobrevenha outro (cancro) denovo”.

A IDEIA DE METÁSTASE E A MEDICINAPALIATIVA

Mas esta religiosa de S. Bartolomeu recusou otratamento cirúrgico, aconselhado pelos médicos. Aofim dos dois anos, “em vez do pequeno tumor, sofriade uma ulceração cancerosa, de grande tamanho” etinha “raízes de tal modo implantadas que era de crertivesse ocupado os pontos mais íntimos do corpo”(15). Que melhor descrição precisamos paracaracterizar a metástase, noção atribuída no entantoa Claude-Anthelme Récamier (1774-1852), já no iníciodo século XIX?(16)

A ideia de metástase é pois muito mais antiga etinha grande importância na indicação terapêutica.Amato recorda que Galeno chama “raízes do cancro”(...) a “veias repletas de sangue negro e melancólicoque se distendem pelas regiões circundantes” aotumor. Mas ele fala na ocupação de “pontos íntimosdo corpo”, uma ideia mais precisa e mais de acordocom a realidade científica deste aspecto determinanteda doença. A sua “verificação” determinava, tal comohoje, a decisão terapêutica.

Outro aspecto a que Amato Lusitano não é insensívelé a dor. Chama com insistência a atenção para estesintoma, que pode traduzir também o estadoadiantado da doença, como se pode inferir no casoda mulher de Sebastião Pinto, desta Cura 31°. Quaseantes de morrer, as “dores acompanhavam sempreesta chaga” e, por fim, foram “mais fortes e gravesque nunca”.

Nestas condições e nesta fase da doença, “estáconfirmado, pois, ser este um cancro que só admitiatratamento benigno” É esta a palavra utilizada porAmato, mais expressiva que as caracterizações deGaleno, que chamava a este método de curar ou à“providência que convenha ao sofrimento” e “torná-lomais suave”, de “mitigatório, demulcente ou afagante”e que “costumam os autores de medicina maisrudimentar chamar paliativo”. Amato diz que nestecaso, “se nada mais fizermos, é necessário quelimpemos ao menos o pus, usando qualquersubstância líquida, não ao acaso mas já encontradapor experiência ou indicação”(17).

A medicina paliativa é uma prática dos médicos,

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muito antiga. E satisfaz-nos constatar como o inter-esse que actualmente cresce em relação a esta áreada medicina, sendo já uma especialidade médica bemdefinida em vários países, não é novo. Os humanistasdo século XVI proclamavam-lhe o alcance e anecessidade, como demonstra o notável médicoalbicastrense. E não era uma actuação fora doexercício próprio do médico. “Necessária” e comcuidados precisos, provados pela “experiência e comindicação” são palavras quase definitivas sobre asatribuições deste tipo de medicina.

O modo como estas questões sobre o tratamentodo cancro são colocadas no século XVI e as própriasatitudes assumidas, numa dinâmica de procura damelhor solução para combater a doença, lembram-nos a realidade actual, que continua, como então,com não poucas incertezas. Donde, deixarmos apergunta: Qual é então a idade científica do Cancro?

E voltamos a Vitorino Magalhães Godinho. O estudoda história serve também para compreendermos quãoprofundas são as raízes das” perplexidades dopensamento actual “(18). Isto é, também a história daciência, mesmo sem uma marca que seja claramentesocial, se é certo que procura proclamar as certezase as conquistas que cimentam o seu edifício, comungadas hesitações e das dúvidas que existiram ontem,que ainda são de hoje e com certeza vão prevalecer.

* Assistente hospitalar graduado. Consultor deAnestesiologia.

Notas

1 - Vitorino Magalhães Godinho - A crise de história e assuas novas directrizes, Lisboa, Empresa Contemporâneade Edições.

2 - André Lepecki - Doenças, as Ficções e a História,Leituras, Público n° 839, 12 de Junho de 1992, p. 2.

3 - Jacques Revel e Jean-Pierre Peter. - O corpo, oHomem Doente e a sua História, in: Fazer História, vol. 3,Bertrand Editora, Lisboa, 1987, p. 187.

4 - Sournia, Jean-Charles - O homem e a doença, in:As Doenças têm história, Terramar, Lisboa, p. 343.

5 - Ibid., p. 344.6 - A.Tchakline - Le cancer Problème du Siècle,

tradução francesa, Edições MIR, 1980, p. 11.7 - Amato Lusitano - Centúrias de Curas Medicinais,

trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova deLisboa, p.p. 220 - 224.

8 - Outro caso, como exemplo de um doente comcancro: “deixou passar oito meses nos quais não tratoude empregar nenhuma espécie de remédios, emboranesse intervalo de tempo, aquele pequeno tumor sehouvesse tornado grande” - João Rodrigues de CasteloBranco (Amato Lusitano), Primeira Centúria de CurasMédicas, Cura XXXI, Trad. de Firmino Crespo, LivrariaLuso Espanhola, 1946, p. 110.

9 - Amato Lusitano. Centúrias de Curas Medicinais,trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova deLisboa, p. 223.

10. - Ibid., p. 221.11 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato

Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI,Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946,p. 110.

12 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova deLisboa, p. 224

13 - Ibid., p. 222.14 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato

Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI,Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946,p. 113

15 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova deLisboa, p. 222

16 - Marie-José Imbault-Huart. - História do Cancro, in:As Doenças têm História, Terramar, Lisboa, p. 170.

17 - Ibid., p.222.18 - Vitorino Magalhães Godinho. - A crise de história e

as suas novas directrizes, Lisboa, EmpresaContemporânea de Edições.

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Notícias das Plantas Medicinais e Aromáticas da 2ª Centúria de Amato LusitanoACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA DE VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR

por A. M. Lopes Dias*

Na “Charneca em Flor”, Florbela Espanca fala doRosmaninho e da Esteva e da nevrose de sua Mãe...

A. NOTÍCIA DAS PLANTAS MEDICINAIS EAROMÁTICAS DA SEGUNDA CENTÚRIA DE AMATOLUSITANO

1. Cria-se a ideia na Idade Média que o poder damandrágora (Mandragora officinarum L.)provinha de um factor divino: a sua raizde aspecto antropomórfico, teria sidoinicialmente fabricada com a mesmaterra com que Deus moldava o corpo deAdão, o que teria dado lugar àsupremacia da mandrágora sobre osoutros vegetais. É notória aqui apreponderância atribuída às raízes comolocal privilegiado das propriedadesmágicas ou curativa das plantas(1). Aosolhos dos Antigos, este orgão participavado elemento terroso e estava em situaçãointermédia entre os elementos, comoentre o vivo e o morto, o que conferia umestatuto e poderes particulares(2). DizAmato que Galeno é por muitosdesacreditado, lamentado, escalpeliza-do, e tido como mentiroso (Cura 72, IICent. Pág. 130). Galeno e os médicosdefinem Veneno e convém saber queeste, quando penetra e permanece noorganismo vence e corrompe este,actuando com toda a substância, comoo da víbora, etc. Define Medicamentovenenoso aquele que pelas suaspropriedades ataca o organismo, comoa cicuta, a mandrágora, o ópio. Diz queo Alimento nutriente é aquele que op-era muito pouco sobre o organismo, masque se desfaz completamente, como ofigado de galináceos e a carne das avesde boa qualidade. Nutriente Medecinaé aquela que embora actue no organismopelas suas qualidades, é todaviaassimilada muito bem, como os frutos.Da Medecina refere que quando actua

sobre o organismo, mas não é assimilada e ocasionaalguma perturbação, tal como a açafroa e o agárico.Medecina Nutriente é a que actua sobre o organismo,após longas transmutações é assimilada ao corpo,como os alhos e as cebolas. Após citar as palavrasde Galeno para depois o julgar, notando que não errou,pois atacã-lo neste assunto é quase como subvertertoda a medicina(1).

2. Desde a formação da biblioteca deAssurbanipal em Nivive as tábuas de argilade escrita cuneiforme mencionam já 150plantas medicinais e o mesmo número deplantas tem o papiro de Ebers, egípcio,que já tinha 3500 anos, mas refere-se acolectores com cerca de 5000 anos(2).

Galeno referia no séc. Il d. C. mais de450 plantas medicinais e insiste nanecessidade de possuir uma sólidabagagem de ervanário e de botânico.

Ficaram célebres a abadia de MonteCassino entre Roma e Nápoles e osensinamentos médicos nela ministrados.O tratado Circa instans de 1150, enumera229 drogas vegetais, com novidades damedicina árabe e que foi escrito emSalerno. Alberto o Grande, que ensinavamedicina em Paris, escreve o DeVegetalibus e refere-se a Avicena (980-1037) e ao Canon da Medicina, vastaenciclopédia médica, que só foi traduzidapara latim, no séc XII por Gérard deCrémone. Avicena de origem persa, de seunome d’ Ibn Sina, médico e filósofo doséc. XI, foi também traduzido para latimem 1473(2). A obra de Guillaume de Salicet,cirurgião italiano do séc. XIII, fala naprimeira parte do seu livro, das doençasexteriores do corpo de causa interna. Nasegunda parte, descreve as chagas e ascontusões nas partes moles. E, na terceiraparte, intitulada algebra (da palavra árabeal-djabr) que siginifica restauração e quedeu no contexto das matemáticas o termoalgebra e que se ocupa de fracturas eluxações.

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Uma quarta parte é dedicada à anatomia(9).A escola de medicina de Montpellier pôs sempre

em causa os conhecimentos médicos livrescos ebeneficia do conhecimento das medicinas árabe ejudia espanhola, da protoquimiatria árabe e com auxílioda alquimia, suscitará desenvolvimentosespectaculares.

O primeiro jardim botânico é criado em Pádua, em1545, em anexo à escola de Medicina da suaUniversidade. Jacques Le Goff não está deacordo com Maximiano de Lemos. Estediz que João Rodrigues na sua ida paraFerrara, em 1541, tem o ensejo deaprofundar os estudos botânicos, ondeexistia, à época, um jardim com plantasde raridade extrema(3). Anterior portanto,ao jardim botânico criado em Pádua, em1545, em anexo à escola de Medicina,como sublinha Jacques Le Goff(2).

Em 1593 é criado o primeiro jardimbotânico francês em Montpellier.

Brunfels, em 1530, publica o Herbariumvivae icone e Fuchs em 1542, publica aHistória

stirpium.Amato Lusitano tinha publicado o Index

Dioscorides em 1536, e em Florençaimprime-se a Primeira Centúria em 1551 ea Segunda Centúria sai dos prelos deVeneza em 1552. As Enarrationes saemem 1553 e os Comentários de Mattioli, emlatim, saíram em 1554 e a 2° parte em 1558,sendo nesta que ataca João Rodrigues,assunto conhecido e que MaximianoLemos e José Lopes Dias jáescalpelizaram(3 e 4).

Só no séc. XVII em 1633, é instalado emParis, o Jardim real das plantas medicinais,hoje Jardim das Plantas. Em 1636 o jardimtinha 1800 vegetais, mas em 1641 estesseres vivos aumentaram para 2360.

3. Estudamos as plantas da citadaSegunda Centúria de Curas Médicas e oseu conjunto de plantas terapêuticas.Depois de ponderado o numeramentochegamos a um somatório de 170 plantasnovas e que não foram enunciadas na I Centúria.Estas são fruto da nova terapêutica e apresentam oacréscimo de conhecimentos do seu autor. Já tinhaempregue na I Centúria 281 plantas de que falamosno nosso trabalho apresentado nas V Jornadas. Assimtemos o total nas duas Centúrias iniciais, a indicaçãode 451 vegetais, o que consideramos notável. Estaprodução equivale a uma vida profissional intensa, nãonos esquecendo que isto se passava em meados doséc. XVI e começam a aparecer nesta II Centúria asplantas das descobertas ocidentais, do Novo Mundo

tanto nossas como dos vizinhos peninsulares.Descobertas há muito poucos anos, como JoãoRodrigues por vezes lembra. Como por exemplo, oopobálsamo do Perú, trazido dessa terra ainda hápouco descoberta(1). A II Centúria é escrita a partir de1 de Abril de 1551(1) (4). O Balsamo do Peru, refere-seao suco obtido do Myroxyglum pereirae Royle,leguminosa, oriunda deste país da América Sul. Édiurético e era empregue nos catarros da bexiga, na

blenorragia, entre outros(8). Também apropósito de outra composição, a teriaga,diz que terá cada um dos símplices queentram na sua composição, escolhidosmesmo dos confins do mundo, não nospoupando a despesas. Estas afirmaçõesdizem bem a sua largueza de vistas, semhermetismos (C.55, II Cent.).

Outra ideia que nos parece importanteé a mudança que se opera nostratamentos, o que demonstra muitaexperiência, estudo e reflexão.

Na associação de plantas para apreparação de determinadas terapêuticas,observa-se a preocupação de sintetizar etodas elas, de maneira geral, têm poucossímplices, ao contrário do que sucedia naCentúria inicial.

Demonstra também o cuidado econhecimentos de quem utiliza plantas esubstâncias químicas, em utilizar dosescom maiores diluições, reduzindo apotência dos fármacos, acentuando quedoses mais fracas atingem resultadosmais rápidos e melhores para os doentes.

Dos produtos usados que não eram deorigem vegetal, desde o chifre de veadoqueimado até ao rútilo, dão um conjuntode 60 unidades na II Centúria. Ficamos asaber que estes produtos cresceram emrelação aos indicados na I Centúria,embora levemente.

Contudo, os produtos não vegetais dasduas primeiras Centúrias comparadoscom os vegetais dos mesmos livros, dãouma relação de 20% e 80%respectivamente favorável portanto aos

últimos.Os produtos da fauna doméstica são o rol que

aumenta os não vegetais da II Centúria. E relembramosque na I Centúria os vegetais atingem 84%(5).

4. Parece-nos útil dizer quanto à tradução do Dr.Firmino Crespo nos merece o maior respeito, masnão desdoura o seu trabalho se apresentarmosalgumas achegas botânicas que são necessárias.

A propósito da C. 44, Il Centúria, pág 91, na traduçãoaparece Erva gnafália, chamada Formentícia, e depoisem nota de rodapé, põe os sinónimos Formentila e

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Formentilha, servia esta erva para o tratamento dadisenteria. Como estas ervas têm muitos nomes vul-gares regionais, além dos botânicos, apresento o temanuma transparência que facilita a leitura. (Folhatransparência com os Potentillas).

Amato não escapeliza a destrinça das espécies. Adificuldade reside na ligação da História à Ecologiada Vegetação. Mas é sobretudo para chamar aatenção, da necessidade de se usar um só nome vul-gar correspondente ao nome botânico das plantas,para evitar o caos. Estamos de acordo que de cadaplanta se eleja o nome vulgar actual mais usado anível nacional e que se leve em conta, se possível, asdesignações dos países latinos para facilitar oentendimento dos vegetais. Amato fala da água degnafálio, donde se faz um vinho cozido contra adisenteria que Dioscórides muito elogia no seu livro3° da Matéria Médica.

(Cura 44, II Centúria) Tratamento da Desinteria

FAM.ROSÁCEASNome Botânico Nomes vulgares

Potentilla erecta (L) SETE-EM-RAMARãuschel TOMENTINA(rizoma) TORMENTILHA

TURMENTILATORMENTILAERVA GNAFÁLIA (A.)TORMENTÍCIA (A.)TOMENTO (A.)

Potentilla reptans L. CINCO-EM-RAMAPOTENTILAPOTENTILHAQUINQUIFÓLIOTORMENTILA (A.)

Potentilla ausexina L.(planta florida)

(A.) - Designação de Amato Lusitano

Na C.73 II Centúria, o tradutor fala em Coshiarum eem rodapé diz: “Será antes cochlearum? (N. do T.)”.Há de facto duas espécies: A Cochlearia officinalisL.= coclearia, da qual se utiliza a planta florida.Aparece ainda a C. officinalis subsp.officinalis L.conhecida por Cocleária ou Erva das colheres, queos espanhóis também indicam. Temos ainda a C.armoracia L. = Rábano silvestre do qual se utilizamas raízes. Hoje em dia emprega-se para debelar asúlceras. É esta espécie rica em Vitamina C,nomeadamente nas suas folhas.

Amato empregava as pílulas de Coclearia notratamento de uma chaga crostosa(6).

Na Cura 7, II Centúria Amato fala da Erva ajuga aCamefites. F. Crespo chamava-lhe, impropriamente“Chamaepitys (fr. ive) (N. do T.)”. Existem a Ajugareptans L. = Ajuga ou Erva-Carocha, a A. ive (L.)Schreiber = Abiga ou ainda a A. chamaepitus (L.)Schreiber = Erva crina a que Amato chama Camefites,como é fácil de perceber(7).

Na Cura 81, II Centúria, há a preparação dumasolução para possibilitar a um jovem obter filhos.Aparece na tradução Eruca hortense. Mas não éEruca, mas sim Erica. E é E. cinerea L. da qual seaproveitam as sumidades floridas. Da família dasEricáceas há ainda a E. australis L. conhecida emvernáculo por Chamiça ou Urgeira (na Beira Baixa,em Vila Velha de Rodão há uma grande propriedadecom este nome) e ainda a E. ciliaris L. de nome vul-gar Carapaça. Inclinamo-nos para pensar que a Ericaempregue por Amato fosse a E. cinerea L.. Porémnão nos admirava que as outras espécies pudessemser empregues no mesmo sentido(7).

Ainda nesta C. 81, da II Centúria, F. Crespo fala deraízes de iríngio para excitar o impulso de Vénus, nasua tradução. Não é Iríngio mas sim Eryngiumcampestre L., um afrodisíaco conhecido no vulgo porCardo corredor. Há ainda o Cardo marítimo = E.maritimum L. e ainda a Cardete = E. tenue Lam.:Todos são da Família das Umbelíferas(7).

A C.81 da II Centúria, fala do almíscar doce, da suaconfeição, e se destina a afrodisíaco e João Rodrigueschama-lhe diamischos, segundo F. Crespo.Conse-guimos chegar ao nome botânico que é oErodium moschatum (L.) L’Her. da Fam. dasGeraniaceas. Hoje chama-se Agulheira-moscada ouAgulha-de-pastor-moscada, a Almiscareira, o Bico-de--cegonha-moscado, Bico-de-grou-moscado e aindaErva-de-alfinete. Reparem que designações diferentesdão ideia clara da planta. Entre nós aparece comrelativa facilidade. E. malacoides (L.) L’Her. é outraespécie conhecida por Maria-fia, Erva-garfo, a Marioilaou finalmente a Planta-de-garfos. A E. cicutarium (L.)L’Her, é outra espécie conhecida pelo Bico-de-cegonhae também por Repimpim.

Para finalizar na Cura 81, Centúria II, F. Crespotraduz o Cardamomo da Cardamine hirsuta L., no vulgoAgrião-Menor ou Cardamina-pilosa. A outra C.pratensis L. é o Agrião-Menor ou Cardamina, aCardamina dos Prados ou a Enxadreia. São da Famíliadas Crucíferas. Mas na Cura 1, II Centúria, pág. 16,fala-se de dois cardamomos. Donde concluímos queAmato já conhecia as duas Cardaminas.

Na C. 98, Centúria II, fala de um remédio à base daraíz de énula campana verde, para fazer face àincomoda sarna crostosa. Junta num ungento debanha de porco com a raíz e diz que tem admiráveisvirtudes, a ponto de dizer que a sua acção maisparece obra de bruxedo(1). Esta planta da família dasCompostas, além do nome vulgar Énula é conhecida

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ainda hoje, entre nós, por Énula-campana, é tambémem espanhol, em catalão e em italiano, no francêspor Inule-aunée, que é a Inula helenium L..Tem floresamarelas e os frutos são aquénios, é utilizado comoexpectorante e antiespasmódica, serve para a faltade apetite e para as desordens estomacais eintestinais e para a bronquite. Vegeta ainda a I.crithmoides L. conhecida vulgarmente por Campana-da-praia ou Madomeira-bastarda.

Na pág. 98 turbith, está mal escrita, não deve ter oh final.

5. Na Cura 95, Centúria II, que no rótulo tem “DoCuidado A Haver No Tratamento Do Pano Ou TremorInguinal E O Que É O Pau-Deguáiaco, Que Entre NósNasce Com o Nome de Buxo”. Em seguida diz que opau de guaiaco trazido das ilhas recentementedescobertas é o mesmo que os europeus chamambuxo, como se torna evidente a quem confirmar(1). Aidentidade referia-se aos tratamentos pois as plantassão ecologicamente muito diferentes. O guaiaco oupau-santo, é o Guaiacum officinale L. da Família dasRutáceas. Árvore das ilhas da Jamaica, de Cuba, deS. Domingos e das Bahamas. Empregue na síflis,nas afecções cutaneas, nas dores reumáticas, nagota e nas escrófulas, etc. A decocção leva 50 g deguaiaco, água e ferve numa hora, para obter um quilode cozimento, coa-se e depois de depor decanta-se(15).

O Buxo, o Buxus sempervirens L., da Família dasBuxáceas, da qual se praticam as folhas, assumidades floridas e as raízes, como fazia Amato. Obuxo é arbusto ou pequena árvore, geralmente com 1a 5 m. de altura. As folhas são opostas, inteiras eglabras, a flor é branca esverdeada. Os frutos sãocápsulas ovóides. Aparecem nos brejos calcários eseus bosques. É marcadamente mediterrânica e estárepresentada em Portugal. Tem como primos a buxina,alcalóides secundários, vitamina C, tanino e óleoessencial. Como utilização actual, estimula atranspiração, alivia a febre e serve como laxante. Usa-se para as infecções, a epilepsia, a malária, na calvíciee no reumatismo(6).

6. Quanto ao conhecimento geográfico das plantas,fala da Erva dos Passarinhos (herban passerculorum)em Nisa e Castelo Branco, nas muralhas do castelo.Indica as faldas de Serra da Gardunha para designarplantas. Fala nos nabos enormes do Sabugalpossivelmente a caminho de Salamanca onde estudou.De Herrera de Alcantara e das pepitas de ouro queapareciam no rio Tejo e que muitas vezes empregavano seu receituário.

Cita Almeirim, Santarém, Alcobaça, Pederneira,Oeiras e Lisboa. De Abrantes cita os melões moscatelde cheiro. Cita Setúbal e Alcácer do Sal e de Extremozfala da água de medronho. Fala de Évora, a propósitode Pierre Brissot, sábio botânico que percorreu aPenínsula Ibérica a estudar as plantas medicinais,por volta de 1518 e que veio a falecer em 1522. Nesta

altura João Rodrigues tinha 11 anos. Na Cura 39, IICentúria, menciona uma rapariga de Esgueira, a noveléguas de Coimbra, a quem chama cidade ilustre dePortugal. Diz que a rapariga de Esgueira era fidalga eque passou de Maria Pacheca a Manuel Pacheco.Amato pensa que ele ficou sempre imberbe.

É bem conhecido o seu trajecto europeu por issonão me refiro ao seu périplo pelas grandes cidadeseuropeias da época renascentista.

Na Cura 39 II Centúria, diz Amato: “Eu próprio vi emÁfrica”. Esteve naquele continente, não se referindoao ponto geográfico ou áreas geográficas.

B. ACHEGAS PARA O ESTUDO DE ECOLOGIADA VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR

1. Já referimos na primeira parte as ligaçõesimportantes das diferentes culturas e que foramenriquecendo a medecina e as outras ciências afins,com os tratados publicados em edições renovadas eas traduções, que alargaram os conhecimentoscientíficos. Assim como a indicação dos herbários edos jardins botânicos tão importantes para oalargamento dos conhecimentos das plantas. Amatofoi aprofundando os seus conhecimentos de plantasdesde os árabes aos chineses, apanhando as doÍndico e do Pacífico. As descobertas a Ocidente vãoabrir ainda mais o conhecimento de novas plantasmedicinais, aromáticas e comestíveis. A II Centúriadá fé das muitas plantas novas das terras descobertashá pouco tempo. Vê-se a grande evolução que JoãoRodrigues realizou. Sente-se que cada planta suaconhecida foi experimentada e o aproveitamento quefaria de uma certa área das mesmas se foi alargando,passando das folhas para as sumidades florais edestas para as raízes ou vice-versa. Amato Lusitanofoi um biólogo porque tratou dos seres vivos. A maneirainteligente como percebeu que muitas plantas tinhamnomes diferentes em diversas origens. Não havia umaclassificação sistemática. Quando se pronuncia nascitações de plantas, atribui geralmente dois nomes àmesma planta, como mais tarde foram classificadospor Lineu com o Género em primeiro lugar e a Espéciede seguida. Só que Amato nos dois nomes que aplicanão os liga sistematicamente. As descriçõesdeliciosas de muitas plantas de origens diferentespercebendo e afirmando que os climas não podemdar a mesma cópia do ser vivo vegetal.

A noção de espécie, por vezes, ainda não era clarana sua destrinça, sobretudo quando as mesmas erammais sofisticadas.

O Conhecimento do meio era necessário para fazeras combinações de plantas que utilizava na suaterapêutica. Assim pode-se perceber que a relaçãoentre a vida vegetal e o meio terrestre não tinhamsegredos para Amato, haja em vista as áreasgeográficas que indica nos seus trabalhos, o que

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permite considerá-lo um homem que abordou aGeobotânica “avant Ia lettre”, o que é o mesmo quefalar de Ecologia da Vegetação seu sinónimo.

Foi proveitoso para a nossa percepção destesgrandes Mestres, nomeadamente Amato Lusitano eGarcia de Orta, com o estudo das plantas aromáticas,das medecinais e condimentares, e que devido àpersistência e ao aproximar da base científica destasplantas, que interessavam os homens de ontem masque interessam muito os actuais. Em áreaGeobotânica, como nos ensinou Amato,a importância da nossa região das faldasda Serra da Gardunha, da Serra daEstrela que ele conhecia muito bemcomo já abordamos o ano passado(5).

Aproveitamos a ocasião para falarmosduma planta rara das faldas da Gardunhaque aparece nas orlas dos cerejais,acima dos 600 m, pertencendo aodomínio do Carvalhal do Quercuspyrenaica. Espécie pelo Anexo II daDirectiva 92/43/CEE, consideradaprioritária dada a sua distribuiçãogeográfica a nível mundial. Aparece sónas freguesias de Alcongosta e doAlcaide, com flores brancas ou rosadas,numerosas e dispostas num cachodenso ou em panícula. O Asphodelusbento-rainhae P. Silva. é uma plantada Família das Liliáceas. Foi descobertapelo grande botânico P. Silva e pelo seucolector Bento Rainha que trabalhavacom aquele botânico. Quem estuda estaAbrótea são os Engenheiros C. J. PintoGomes, professor em Évora e ligadofamiliarmente à nossa terra e as ColegasSofia Castel Branco da Silveira e PaulaGonçalves na Reserva Natural daMalcata. Os frutos são cápsulas com 5-7 mm, mitriformes, com rugas trans-versais na deiscência. Este endemismofaz parte de um trabalho desenvolvido noâmbito do projecto (I.C.N.-Life) deEspécies Ameaçadas da Flora aProteger.(10)

Em relação à arca estrelense, Amatofala do Rapôntico, ou melhor, a traduçãodeveria ser rapôncio ou rapúncio aCampainha-rabanete ou Espera-do-Campo, cujo nome botânico é a Campanularapunculus L.da Família das Campanuláceas, plantacomestível actualmente. Amato fala dele para osdisentéricos. É também endemismo da nossa Serrade Estrela a Campanula herminii, de flor anil. Játinhamos falado da Genciana lutea, a argençana-dos-pastores raríssima e também em perigo deextinção(5).

Há pouco mais de um mês morreu o Prof. Dr. AbílioFernandes (94.I0.07) antigo director do JardimBotânico e Prof. Catedrático da Faculdade de Ciênciase Tecnologia da Universidade de Coimbra. Contava 88anos. Estudou os Narcisos tanto o rupícola como otriandrus que não chegou a encontrar na Serra daEstrela. Falou do N. confusus muito raro na Serra daEstrela. O N. triandrus subsp. pallidulus (Graells)D.A. Webb confundindo com a subsp. triandrus ede facto era necessário esclarecer a distribuição

destes dois taxa, este último aparece emValhelhas (a 521 m.) e na Quinta doPrado (acima dos 800 m.) perto daGuarda.

O N. asturiensis (Jordan) Pugsley, daEstrela, das Serras Montesinho, Gerês,das Astúrias espanholas e nas serras donoroeste. Tivemos ocasião de observareste narciso, este ano, entre Oviedo eGijon. Estamos plenamente de acordoque se chame a este narciso, Narcisusnardeti A. Fernandes ao narcisotetraploide (14+14 cromossomas) = 28que com o decorrer do tempo se tornaestável. Além destes estudos, felizmente,vamos ter trabalhos dentro da Ecologiada Vegetação, levados a cabo no parqueNatural da Serra da Estrela e aquelesque a Codicor dedica na região deCortes.(13)

Além destas regiões da Gardunha eestrelense, Amato também nos ensinoua importância da região dos salgados deSalamanca. Assim como a taxa leonêsmuito ligado a Trás-os-Montes, nomeada-mente às Serras de Montesinho eNogueira, extremidade de um sistemamontanhoso descontínuo que se inicianos Pirinéus e se prolonga pelos MontesCantábricos, Montes Aquilianos, Montesde Leon e Serra de Sanábria. Facto, aliásreconhecido, na carta Fitogeográfica dePortugal de Franco (1984).(11)

Ainda na Beira Interior e nomeadamenteno concelho de Penamacor segue o“Estudo das Comunidades Vegetais daReserva Natural da Serra da Malcata”.(12)

A Sul e com grandes afinidades comáreas nossas da região ribeirinha do Tejo temos aflora alentejana. Do norte alentejano, nomeadamenteos estudos de Malato-Beliz, Pinto Gomes, deEscudero e Lavado-Contador, no Parque Natural deSão Mamede, no distrito de Portalegre e servindo defronteira com a Extremadura espanhola.

As alergias médicas e a Ecologia da Vegetação.Cinco anos de estudo em Évora (1989-1993) dão uma

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panorâmica destes estudos no Alentejo médio.A análise estatística indicou que as rinites alérgicas

atraem em 54,3% dos casos que a Oleae e a Poaceaesão bastantes para a sintomalogia em Évora. Bastouo exame de 119 pacientes, com testes da pele e veros casos em que são positivos. As conclusões àmedida que se fazem o estudo de muitos casosfacilitam a análise dos mesmos(14).

Do lado espanhol e desde a nossa fronteira políticaacima do Tejo, trabalhos sobre a direcção do Prof.Doutor Ladero Alvarez, têm levado a cabo umacartografia de Ecologia da Vegetação, trabalho damaior utilidade.

As Plantas ensinam as pessoas, nunca tiveramtonteiras políticas, só aceitam as naturais que sãosempre ténues.

Amato Lusitano estava de acordo com elas.

* Engenheiro Agrónomo

Bibliografia

1. LUSITANO, Amato (1551), Centúrias de CurasMédicas, Volume II, Tradução de Firmino Crespo, Univ.Nova Lisboa, Faculdade de Ciências Médicas, Lisboa,1980.

2. LE GOFF, Jacques (1991), As Doenças têmhistória, Ed. Terramar, Lisboa.

3. LEMOS, Maximiano (1899), História da Medicinaem Portugal, Doutrinas e Instituições, Vols. I e II,Manuel Gomes, Edit.Livreiros de Sua Magestade eAltezas, R. Garret (Chiado), 70-72, Lisboa.

4. LOPES DIAS, José (1971), Biografia de AmatoLusitano e Outros Ensaios Amatianos. Separata deEstudos de Castelo Branco, Rev. História e Cultura,Academia Portuguesa de História.

5. LOPES DIAS, Manuel (1993), Estudo da PrimeiraCentúria de Amato Lusitano. O uso das plantas,imagens de aromáticas da região da Serra da Estrelae abordagem da sua composição florística. V Jornadasde Estudo da Medicina da Beira Interior, C. Branco.

6. LAUNERT, Edmund (1982), Guia de Ias PlantasMedicinales y Comestibles de Espanã y de Europa,Ed. Omega S. A., Barcelona.

7. ROCHA, Fátima (1979), Nomes Vulgares deAlgumas Infestantes e Respectivo Nome Botânico,M.A.P, S.E.F. Agrário, D. G. Prot. da Prod. Agrícola,Oeiras.

8. CHERNOVIZ, Pedro L.N. (1904), Formulário eGuia Médico, 17° Ed Liv. de A.Roger e F. Chernoviz,Paris.

9. JACQUART, Danielle (1994), Les GrandsPrincipes de Ia Medicine Médiévale, Les Cahiers deScience e Vie, Ambroise Paré, nº 19, Fev. 1994, Paris.

10. PINTO GOMES, C. J., S. C. Silveira, P.C.C.Gonçalves (1994), A Distribuição Geográfica e aEcologia do Asphodelus bento rainhae P.Silva, PainelC.13, Colóquio Internacional de Ecologia deVegetação, Universidadede Évora 27-28. Outubro 1994.Évora.

11. AGUIAR, Carlos, CARVALHO, Ana Maria (1994),Flora Leonesa das Serras de Nogueira e Montesinho,Painel C.19. Col. Int. de Ecologia de Vegetação,Universidade Evora, 27-28, Outubro 1994, Evora.

12. REGO, Francisco Castro, GONÇALVES, P.C.C.,Silveira S. C. da, Lousã, M. Fernandes (1994), Estudosdas Comunidades Vegetais da Reserva Natural daSerra da Malcata, Painel C.1., Colóquio Internacionalde Ecologia de Vegetação, Universidade Évora,Outubro, 1994.

13. CODICOR, Ervanária (sem data), Cooperativade Desenvolvimento Integrado de Cortes, Cortes doMeio.

14. BRANDÃO, R. M., Lopes, M. Luisa (1994) PlantsEcology and Medicine of Allergies: A 5-Year Study InEvora (1989-1993), Painel B 12° Colóquio Internacionalde Ecologia da Vegetação. Universidade Évora, (Hos-pital Distrital Évora). Outubro 1994, Évora.

15. RASTEIRO, Prof. Dr. Alfredo (1992) Medicina eDescobrimentos, Liv. Almedina, Coimbra.

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TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEM - A SERRA DA ESTRELANA VIDA, NA OBRA E NA MORTE DE SOUSA MARTINS

por Maria Adelaide Neto Salvado*

«A sua enfermaria no Hospital de S. José era umaromagem: não podia haver clínica mais douta nemmais sugestiva.

(...) falharia a cura por impotência, mas não adevoção do alivio, a consolação dos aflitos.»

Ricardo Jorge (Discurso proferido na sessão deabertura da Sociedade de Medicina e Cirurgia do

Porto, em 8 de Novembro de 1817.)

Tempos açoitados por mutações sociais profundasque arrastaram guerras e fomes, violência e revoltas,varreram Portugal durante o século XIX.

Pior que a devastação da guerra e a profundainstabilidade política e económica foi, no entanto, asombra ameaçadora que a tuberculose pulmonarlançou nesse século à escala planetária.

Em mais de 3 milhões de pessoas orçou, segundoas estatísticas da época, o número estimado devítimas ceifadas anualmente por esta doença nomundo de então.

Tendo em conta condicionalismos vários que seprendiam com a incipiência e as lacunas dos serviçosestatísticos nos começos do século XIX, alcançou,por certo, valor significativamente muitíssimo maiselevado o número de mortes que esta doençaprovocava.

Embora não se restringindo a idades específicasnem respeitando hierarquias sociais, a tísica, comoera chamada na época, tinha no entanto umapredilecção especial por duas idades do Homem: aadolescência e a juventude plena.

Dois grandes poetas portugueses desse século XIX,António Nobre e Cesário Verde - eles própriosacabando vítimas da implacável doença, traduziramde modo pungente esta cruel predilecção de idades.

Assim retratou António Nobre o lento desvanecerda chama da Vida de uma adolescente tuberculosa:

(...)Sarar? Da cor dos alvos linhosParecem fusos seus dedinhos,Seu corpo é roca de fiar...E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,Eu julgo ouvir numa oficina,Tábuas do seu caixão pregar!

Sarar? Magrita como o junco,O seu nariz (que é grego e adunco)Começa aos poucos de afilar,Seus olhos lançam ígneas chamas;Ó pobre Mãe, que tanto a amas,Cautela! O Outono está a chegar...(1)

Leça, 1889

A crueldade da súbita extinção da vida em plena eprometedora Juventude foi retratada deste modo porCesário Verde:

Tinhamos nós voltado à capital maldita,(...)Quando nos sucedeu uma cruel desdita,Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!(...)

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!Não sei dum infortúnio imenso como o seu!Viu o seu fim chegar como um medonho muro,E, sem querer, aflito e atónito, morreu!(2)

Considerado o maior especialista em tísica pulmonar

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da sua época e uma das personalidades maisfascinantes e cultas do seu tempo, José Thomaz deSousa Martins traduziu deste modo aquilo que elechamou de “cruel predilecção” da tuberculose pelapuberdade e idade viril:

“ ... a implacável moléstia rouba-nos anualmenteentre 12 a 15.000 vidas (...)

E vidas das mais úteis, porquanto a estatísticaensina, já desde o tempo de Hipócrates e Celso, quea tísica pulmonar colhe o maior número de vítimasnas idades que vão desde os 18 anos aos 35 anos”.(3)

Personalidade fascinante, clínico infatigável,eloquente e culto professor da Escola Médico-Cirurgíca de Lisboa, orador apaixonado (“com palavrasde aço e palavras de oiro - aço que se faria lâminapara ferir, oiro que se faria poalha para correr nas asasdo vento, deslumbrado”(4), no dizer de António Joséde Almeida), - a sua ânsia de saber, a sua apaixonadaadesão às novas ideias que as descobertas de Pas-teur tinham trazido ao seio da Medicina, e o seuprofundo entusiasmo pela nova ordem que norteavana Europa a tentativa de cura da tuberculose, ligaramaté ao fim da vida José Thomaz de Sousa Martins aesta região da Beira Interior.

Sousa Martins e a 1ª Expedição Científica àSerra da Estrela

A Serra da Estrela exerceu sobre ele um longo eperdurante fascínio.

Na Europa de então, eram as montanhas o Eldoradodos tísicos. O tratamento pelo ar rarefeito das grandesaltitudes constituia a nova ordem terapêutica emmatéria de tuberculose pulmonar.

Foi na adesão a estes novos ventos que acuriosidade científica e o entusiasmo contagiante deSousa Martins se transformaram na molaimpulsionadora da Expedição Científica à Serra daEstrela, organizada pela Sociedade de Geografia deLisboa, em Agosto de 1881.

Fundadas ao ritmo das políticas expansionistas dosestados europeus, as Sociedades de Geografiaprivilegiavam como campo das suas investigaçãoesos países coloniais. Fornecer conhecimentos emtemáticas variadas que permitissem, quer aosgovernos quer a uma burguesia endinheirada,intercâmbios comerciais vultuosos, alicerçados naexploração de matérias primas e fontes energéticaslucrativas, na instalação de mercados de escoamentoda produção industrial europeia, era a verdadeira linhaque, a coberto do espírito de aventura e de fascíniopelo exotismo, tão marcado nos valores doRomantismo imperante na época, norteava a actuaçãodas Sociedades de Geografia pela Europa fora.

A Sociedade de Geografia de Lisboa não fugia aesse vector de investigação colonial marcadamenteeconomicista. Prova concludente desse facto ressalta

na fundamentação com que a Sociedade justifica oseu apoio à Expedição Portuguesa ao interior da ÁfricaAustral, empreendida por Silva Pinto, Roberto Ivens cHermenegildo Capelo (1877-1879). Nela se declaraexplicitamente que a Expedição Científica ao grandesertã (africano se realiza na tentativa de encontrarmeios que ajudem a solucionar ”os graves problemasdas Ciências Geográficas e da economia comercial”.(5)

A Expedição Científica à Serra da Estrela, situadanos confins de uma região pobre e pouco atractiva,no Portugal profundo e real como agora se usa dizer,surge pois como um desvio anómalo, como uma notainvulgar na costumeira actuação das Sociedades deGeografia Europeias.

Segundo S. A. Pereira, que acompanhou aExpedição como representante e repórter do jornalDistrito da Guar-da(6) e do jornal doPorto ComércioPortuguês, a ideiaprimeira da Expe-dição Científica àEstrela ficou adever-se a SousaMartins. Daí ter omédico SousaMartins partilhadocom HermenegildoCapelo, explora-dor e geógrafo derenome, o presti-gioso lugar de Pre-sidente da Comis-são administrativada ExpediçãoCientífica a umaregião poucoconhecida do interior português.

“Aos literatos falava literatura; aos negociantes,negócios; aos pensadores, de ideias e de problemas;aos affectivos, de ternura e de afectos”(7) - assimexplica Fialho de Almeida, em carta a Casimiro Joséde Lima, o forte poder persuasivo de Sousa Martins.Foi possivelmente esta força persuasiva contagiante,aliada a uma invulgar comunicabilidade e eloquência,que ajudou Sousa Martins a convencer a Sociedadede Geografia de Lisboa a lançar-se na Expedição àSerra da Estrela, desviando-a do rumo normal do seucampo de investigação.

Intencionais razões científicas impeliam Sousa Mar-tins para a Serra da Estrela e esse apelo da Serraajusta-se a uma faceta do carácter deste grandemédico que Miguel Bombarda em 1897 assim definiu“Pródigo de saber e pródigo de conquistas intelectuais,durante trinta anos fez jorrar a flux mananciais deideias novas, de relações de teorias desenvolvidas.Teorizador lhe chamam esses castos, que não

CarlosTavares,Sousa

Martins eEmídio

Navarro nacélebre

viagem àEstrela emAgosto de

1884

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chegam a compreender que a medicina até na suaprática, é forçada a recorrer a hipóteses queestabeleçam relações, a assentar teorias que sejama estrêla de orientação”.(8)

As razões do interesse de Sousa Martins pelaExpedição Cientí-fica àEstrela corro-boram,do meu ponto de vista,esta afirma-ção deMiguel Bombar-da.Esse interesse não foimais do que a buscado alicerçar de umateoria que apaixonada-mente orientou a in-vestigação científica dogrande médico: a curada tuberculose pulmo-nar pelo ar rarefeito dosclimas de altitude.

Numa bela passa-gem da carta-prefácioque escreveu comoapre-sentação do livro de Emídio Navarro, “Quatro diasna Serra da Estrela”, Sousa Martins explicita os efeitosterapêuticos do ar dos climas de altitude. Escreveu:

“Figure o meu amigo um leque de panno, atacadopela traça. Se o leque se conservar por largas vezesfechado, o insecto vai fazendo muitodescansadamente o seu ninho por entre as dobrasdo panno, certo de que nem os excessos de luz, nemos impetos do ar, nem os resfriamentos da atmospheralhe darão cabo da prole; mas se uma vez, oabandonado leque fôr aberto a um permanente banhoatmosphérico, então nem a traça, nem a sua raça sesentirão à vontade(...).

Ou emigram ou morrem (...). Pois o leque é opulmão que em muitos sítios tem pregas. E a traça éo micróbio da tísica, ao qual, um ar puro, quasi seco,rarefeito e de temperatura pouco variável e poucoelevada causa maior dannos do que S. Tiago causouaos moiros...”(9)

Era pois a comprovação científica da existência naEstrela deste clima de temperaturas pouco elevadase de fracas amplitudes térmicas diurnas e anuais, queatraía Sousa Martins para a Estrela.

Em uma outra passagem do livro de Emídio Navarro,o grande médico clarifica de um outro modo os efeitosbenéficos desses ares serranos:

“Rarefeito o ar dilata o pulmão e assim evita osninhos de productos morbidos; uniformiza a circulaçãorespiratória e dessa arte contraria as tendênciascongestivas e exudativas, tão nefastas aos tísicos”.(10)

Em Agosto de 1881, a Sociedade de Geografiarealiza a sua Expedição Científica à Estrela. Possuiaela um cariz marcadamente multidisciplinar,abrangendo um leque variado de ciências e de

temáticas desde a Arqueologia à Botânica, daGeologia ao estudo da Hidrologia (temperatura edensidade das águas das lagoas), das aptidõesagrícolas dos solos, às vantagens da instalação deum posto meteoro-lógico visando a construção na

Estre-la des a n a t ó r i o ssemelhantes aosque funcionavamcom êxito nos Alpessuiços.

Embora não expli-citado, constituía noentanto este últimoobjectivo a razão fun-damental da Expedi-ção. O jornalistaEmídio Navarro as-sim o declara no seulivro:

“A grande expedi-ção à Serra daEstrela em 1881

quasi que teve por fim principal, embora meiodisfarçado, uma inspecção à Serra, de modo acolherem-se os esclarecimentos necessários paraaquela empresa”.(11)

Sousa Martins foi nomeado chefe da Secção deMedecina, coadjuvado pelo Dr. Jacinto Augusto Me-dina, facultativo do Hospital da Marinha e pelo Dr. JoséAntónio Serrano, professor da Escola Médico-Cirúrgicade Lisboa.

Dividia-se em 2 sub-secções esta Secção deMedecina: sub-secção de Hydrologia - Minero Me-dicinal, chefiada pelo Dr. Leonardo Manuel Leão daCosta Torres, e sub-secção de Ophtalmologia chefiadapelo Dr. Francisco da Fonseca, Médico Oculista.

No entanto, apesar destas duas sub-secções, ogrande propósito da secção de Medicina da Expediçãofoi - afirmou-o Emídio Navarro:

“Estudar a applicação das excepcionais altitudesd’essa serra ao tratamento de certas doençaspulmonares”.(12)

A Sousa Martins coube a elaboração de todo oprograma da secção de Medicina da Expedição.

A sub-secção de Hydrologia Minero Medicinal,competia a “análise das águas thermaes de Manteigase Unhais da Serra”.

O sumário do relatório entregue à ComissãoAdministrativa em 25 de Agosto de 1882 dá-nos contados trabalhos realizados por esta sub-secção. Síntesedaquilo que se conhecia acerca das duas nascentestermais, estudo químico das águas, levantamento doestado das nascentes e comprovação de umasentença popular, vulgar, na época, na região da Beira:

“Caldas de Manteigas para os rheumatismos,banhos de Unhaes para os dermatosos”(13)

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O Dr. Leonardo Manuel da Costa Torres apresentano final esta conclusão:

“Careciam de reconhecimento analytico as águasthermaes de Manteigas e Unhais da Serra. Fiz-lhesesse reconhecimento indispensável e o primeiro, ed’elle resultou a sua classificação que é esta: águasthermaes alcalinas silico - sulplureas”.(14)

O programa de estudo da sub-secção deOphtalmologia consta do relatório que o Dr. FranciscoLourenço da Fonseca Junior entregou à Secretaria daComissão Administrativa da Expedição datado de 28de Fevereiro de 1882.

Um aspecto interessa relevar neste relatório: o quese prende com a mentalidade das gentes da regiãoserrana nos finais do século passado. A naturaldesconfiança das populações analfabetas e isoladasnestes confins do mundo, soube ser contornada demodo hábil, facto que espanta e confere uma dimensãoprofunda ao trabalho desta sub-secção. A actuaçãodestes médicos citadinos do século passadosobressai pela sua consonância, com os princípiosque devem nortear os trabalhos de campo de uminvestigador em Ciências Sociais dos nossos dias.Assim relata o Dr. Francisco Junior o modo comoprocederam na recolha de material para o segundoponto do programa, designado por Pathologia GeralOcular.

“Tivemos de recorrer ao estratagema de charlatãesde feira: necessitámos de, dias antes de nosinstallarmos n’uma localidade, fazermos annunciar apróxima chegada de um médico oculista da capital,que punha gratuitamente o seu préstimo ao serviçoda humanidade enferma. Foi assim, graças a talexpediente, que em Manteigas só n’uma tarde, fomosprocurados por 41 doentes da villa e suascircunvizinhanças”(15).

Constituia, respectivamente, primeiro e terceiropontos do programa desta subsecção, o encontro dasrespostas às seguintes interrogações:

“1° - A diminuição da pressão atmospherica, pelaaltitude, exerce alguma influencia immediata sobre afunção visual?

3° - Qual a therapeutica indigena das doenças doapparelho ocular?”

A Expedição, inicialmente pensada como plurianual,acabou por se restringir a uma única viagem.

Mas Sousa Martins retorna à Serra em Agosto de1884, e, durante quatro dias na companhia de CarlosTavares, professor da Escola Médico-Cirúrgica deLisboa, médico do Paço (grande amigo do rei D.Carlos) e do Jornalista Emídio Navarro, volta apercorrer os tortuosos caminhos da Serra.

Pela magia da escrita saída da pena de EmídioNavarro, com uma elegância de estilo que fez deleum dos grandes jornalistas do seu tempo, perpassamante os nossos olhos esses quatro dias vividos porSousa Martins na Serra da Estrela em Agosto de 1884.

A beleza esmagadora e agreste de várias regiõesda Serra, as dificuldades da subida de certospenhascos, o fascínio mágico das lagoas, asingularidade de determinados aspectos geológicos,os efeitos da diminuição da pressão no organismodestes homens da cidade, são alguns dos aspectosque este livro faz renascer magicamente.

Mas nele, com uma força quase assombrosa,ressalta a personalidade empenhada de um homemem busca da concretização de um sonho: a de SousaMartins.

Os registos realizados no observatóriometeorológico fundado pelo Governo no Poio Negro(em Fevereiro de 1882) a pedido da Sociedade deGeografia, tinham comprovado como Sousa Martinssupusera, a existência nesse local de excelentescondições (de temperatura e humidade) favoráveis àcura da tuberculose pulmonar. Apenas um elementonegativo se registava nesse local: a predominânciade fortes ventanias de quadrante de Noroeste.

Foi a busca de outros locais, entre as altitudes de1500 a 1800 m, possuindo iguais condições detemperatura e humidade, mas mais abrigados dessesventos, que determinou a vinda de Sousa Martins àSerra, no verão de 1884.

A escolha recaiu no Valle do Conde (1.700 m), en-tre dois outros lugares analisados: Corgo das Mós(1600 m) e Santinha (1.500 m), local que num primeirorelance pareceu a Sousa Martins reunir as condiçõesmais favoráveis para a instalação de um futuroSanatório.

O aspecto do coberto vegetal guiou Sousa Martinsna escolha destes três locais.

A existência de abundante vegetação,principalmente arbustiva e herbácea, era indiciadorade um local naturalmente abrigado de ventanias fortes.Por razões que se prendiam com uma mais fácilacessibilidade (proximidade de Manteigas e doobservatório) era no entanto o Corgo das Mós o localque, numa fase mais imediata, apresentava maioresfacilidades para a construção de um Sanatório.

Com o intuito de reforçar as naturais condições deabrigo desse local, Sousa Martins solicitou à Câmarade Manteigas o plantio, aí, de duzentas árvores.

Precursor da arborização da Serra foi, pois, estemédico genial de finais do século passado.

A escolha criteriosa de coníferas, espécie melhoradaptada à altitude do local e menos propícia a umaalteração climática no sentido de um aumento dehumidade, dá a dimensão da visão interdisciplinar edo rigor científico que norteava a actuação de SousaMartins.

Mas uma outra razão motivou este seu retorno àSerra em 1884: a visita a Alfredo César Henriques, oprimeiro doente tuberculoso que a conselho do próprioSousa Martins procurou nas altitudes da Estrela umavia de cura. Este jovem, e cito as próprias palavras de

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Sousa Martins, anos mais tarde: “Se animou a ir,...iniciar a série de casos clínicos que houvessem dedefinir, pelo lado de observação médica, o valortherapeutico de tal clima”(16).

O Clima de Altitude da Serra da Estrela e oGrande Sonho de Sousa Martins

Mas é num livro que Sousa Martins publica em 1890,“A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serrada Estrela”, que a sua ligação à Serra ressalta deforma marcadamente evidente.

Encontram-se, neste pequeno ensaio,materializados aspectos vários da brilhante emultifacetada personalidade deste médico.

Para além da sua “arte de expor com nitidezprofissional”(17), dote que Teófilo Braga apontou comotraço notável da sua personalidade, que aqui seevidencia em cada linha, este ensaio é prova evidentede uma postura que muitos dos que com ele de pertoprivaram são unânimes em referir: a sua imensareceptividade às inovações, a sua inflamada febre desaber, a profundidade dos seus conhecimentoscientíficos e sobretudo a força contagiante do seuentusiasmo na concretização de uma ideia que lhenorteava a investigação e a vida.

Mas, a par destes aspectos, ressaltam neste ensaiomuitos outros não menos importantes: objectividadecrítica, clareza, simplicidade e rigor na exposição deideias científicas.

A objectividade crítica evidencia-se no modo comoanalisa uma diversidade de factos: dados da estatísticada época, inoperância do Governo em matéria deSaúde Pública, estagnação de alguns médicos do seutempo manifestada quer na vinculação a ideias hámuito ultrapassadas, quer na falta de visão doscaminhos interdisciplinares que a Medicina, comoqualquer outra Ciência que toca o Homem, devepercorrer.

Modelar é a sua reflexão crítica às fontesestatísticas. Estatísticas necrológicas incompletas,pouco rigorosas e vagas que dificultam qualquerestudo fundamentado acerca da incidência de umadada doença, contituiram a dura crítica apresentadopor Sousa Martins. As causas dessa fragilidade sãoapontadas com pertinência: modo pouco preciso comoa Estatística Geral realizava o apanhado das doenças(por aparelhos e sistemas orgânicos e não porespécies nosológicas); falta de obrigatoriedade,nalguns distritos, do certificado de óbito, que tornavamuda a estatística necrológica; ausência deuniformidade na nomenclatura das doenças usadapelos diferentes clínicos; continuidade por parte dealguns médicos, no caso concreto da tuberculosepulmonar, da vinculação à chamada escola dualistaque excluía do grupo das tuberculoses pulmonaresmuitas tísicas que, conforme dados da ciência da

época praticada além fronteiras, deveriam ser nelaincluídas - eram, entre outros, alguns dos entravesque impossibilitavam em finais do século XIX qualquerestudo fundamentado com base na Estatística Oficialacerca da real incidência no nosso país quer datuberculose pulmonar, quer de qualquer outra doença.

A metodologia que Sousa Martins utiliza na análisedos dados fornecidos pela Estatística Oficial das trêscidades Lisboa, Porto e Coimbra, conferem a estepequeno ensaio um notável rigor científico e umainvulgar modernidade.

Partindo para cada uma das cidades da realidadeconcreta do seu espaço físico e social, Sousa Mar-tins faz um levantamento de factores específicos reaisindutores de erro. A avaliação do impacte dessesfactores permitiu a Sousa Martins realizar estimativaspara Lisboa e Porto com menores margens de erro e,deste modo traçar um quadro mais aproximado daverdadeira realidade da situação da tuberculosepulmonar no Portugal do seu tempo.

Quanto a Coimbra, embora ciente da imensafragilidade que os dados da Estatística coimbrãapresentavam, Sousa Martins utiliza-os sem qualquercorrecção.

As razões dessa atitude foram por ele apontadascom precisão.

Entre os factores indutores de erro, no caso deCoimbra, contava-se o modo como os dados eramcolhidos. Relativamente ao cálculo da mortalidade,os dados apresentados pela estatística diziam respeitosomente a enterramentos no cemitério municipal eabrangiam cinco freguesias (quatro da cidade e uma,considerada na época como suburbana: Santa Clara).Sousa Martins evidencia como um dos factores deimprecisão o modo como era calculado o número deóbitos ocorridos dentro da cidade, visto serem elesdiminuidos aos números de enterramentos feitos nocemitério de Santo António dos Olivais, que nãopossuia na época registo oficial.

Mas um outro factor, aquele que Sousa Martinschamou de “condição especialíssima da populaçãoacadémica”(18) - o seu carácter flutuante, introduzia,segundo ele, na Estatística coimbrã um duplo erro.

Um deles (que António Nobre assim exprimiu:“Quando vem Junho eu deixo esta cidade/Batina,caes, tuberculoses céus” ...(19) prendia-se com o factode muitos estudantes que contraíam tuberculose emCoimbra irem morrer no seio das suas famíliasdispersas um pouco por todo o país. “Esses alliviarãoa estatística” - escreveu Sousa Martins.

Mas um outro aspecto da mesma realidade nãodeveria, segundo Sousa Martins, ser menosprezado:o daqueles que chegavam a Coimbra já portadores datuberculose contraída algures por esse país fora e quena cidade tinham o seu encontro com a Morte - essesvinham sobrecarregar com óbitos a EstatísticaCoimbrã. Considerando estes erros como não

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passíveis de qualquer possível correcção, Sousa Mar-tins, embora alertando para a fragilidade e imprecisãodos dados da Estatística de Coimbra, apresenta-ossem qualquer alteração.

Mas se a objectividade crítica é aspecto relevanteneste ensaio, não de menor importância são asimplicidade e o rigor com que nele são expostasideias e teorias científicas. A correlação que SousaMartins estabelece entre tuberculose e condiçõesclimáticas de um dado lugar é disso exemplo:

“Para uma determinada temperatura média, alocalidade em que as variações diurnas, semanais,mensais e anuais, forem menos amplas, será amenos propícia para o desenvolvimento datuberculose”(20).

O modo preciso como distingue clima de montanhae clima de altitude, a correlação que estabelece entreos factores latitude e altitude na localização dasregiões possuidoras dos saudáveis climas de altitude(os efeitos benéficos sobre o aparelho respiratórioprovocados pelo abaixamento da pressão atmosféricacom a altitude) são, do meu ponto de vista, belosexemplos que evidenciam a veracidade de um aspectosaliente nos testemunhos de muitos dos discípulosde Sousa Martins ou de amigos que com ele de pertoprivaram: a sua fabulosa capacidade de expor ideiascientíficas.

Assim, relativamente aos efeitos benéficos doabaixamento da pressão sobre o aparelho respiratório,esclarece:

“(...) não só porque a defeciência do oxigénio empressão e em massa é nociva à vida de algunsmicroorganismos que com o bacillo da tuberculosecollaboram na destruição do pulmão e na infecção doorganismo nuns também porque a ampliação do tho-rax e a completa expansão pulmonar produzem a umtempo o robustecimento do apparelho respiratório e odesalojamento dos seus microorganismosdestruidores(21).

Mas, numa outra perspectiva, um saborestranhamente actual possuem mais passagens desteensaio, que mostram à evidência que Sousa Martinsfoi um homem muito além do tempo em que viveu.

O apelo à valorização daquilo que, neste século XX,se chama recursos endógenos de uma região, foi, nocaso da Serra da Estrela, magistralmente tratado nesteensaio de um médico de finais de século XIX.

O repto que Sousa Martins lança ao Estado nosentido de o sacudir do seu alheamento narentabilidade de factores naturais que, noutros paísesda Europa da época, se tinham tornado fontespalpáveis de riqueza; os argumentos com que alicerçaa chamada de atenção ao governo para a necessidadeda tomada de medidas na luta contra a tuberculose,mostrando uma a uma as razões que tornavam estadoença “uma força social negativa”(21), - por si sóbastavam para dar a medida do interesse deste

pequeno livro. Mas a estes aspectos outro se junta: aclareza com que Sousa Martins expõe a minimizaçãodos gastos na construção de infraestruturasnecessárias à valorização das riquezas climáticas daEstrela. O pragmatismo com que aponta quais asinfraestruturas essenciais que caberia ao governoconstruir; o apelo aos investidores privados para aconstrução, na Serra, de edifícios capazes desatisfazer as exigências da população doente de umestrato social elevado, - mostrando que a exploraçãodesses edifícios poderia ser considerada umaverdadeira indústria, alicerçada numa garantidaclientela, constituida por todos os que não quisessemaventurar-se até à Suiça - são, entre outros, algunsexemplos. Nada esqueceu Sousa Martins. Nem asmedidas que o Estado poderia implementar no sentidode fomentar a atracção de capitais privados:

“Isenção de contribuições até período de 12 annosaos comerciantes e industriais que se quisessemestabelecer nas altitudes de 1400 a 1800 m”(22).

São estes, entre muitos, os aspectos que conferema esta obra de Sousa Martins um conjunto designificativas virtualidades.

Na verdade, a argumentação inteligentementefundamentada em que se alia uma reflexão profundaacerca dos problemas reais a um conhecimento sériodas realidades locais dão a esta obra de Sousa Mar-tins qualidades que muitos dos actuais projectos dedesenvolvimento regional, para sacar subsídioseuropeus, estão longe de apresentar. Nunca tãoseriamente se pensou num desenvolvimento integraldas potencialidades da Serra da Estrela como SousaMartins o fez.

Uma outra dimensão não esqueceu este médicogenial, esta demonstrativa do seu conhecimentoprofundo acerca dos efeitos psicológicos negativosque a monotonia da vida num Sanatório de montanhapoderia despoletar nos doentes atacados detuberculose pulmonar: o tédio.

Thomas Mann descreve magistralmente em páginasinesquecíveis da Montanha Mágica (no Sanatório, quepara Sousa Martins era o modelo acabado: Davos),esses efeitos deprimentes do tédio. Sousa Martinspreconiza duas medidas tendentes a combater oisolamento e de certo modo a atenuar a força negativadesse mal do espírito entre os possíveis enfermos deum futuro Sanatório nas altitudes da Estrela. São elas:a instalação de um serviço telegráfico postal emManteigas, e a redução das taxas dos telegramas atodos os habitantes do futuro Sanatório.

A Serra da Estrela na morte de Sousa Martins

Perdurável e forte foi a atracção de Sousa Martinspela Estrela. Em 1897, Sousa Martins desloca-se aVeneza como delegado do Governo Português àConferência Sanitária Internacional. Aí se manteve de

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I6 de Fevereiro a 19 de Março, ocupando o honrosocargo de Presidente da sub-delegação encarregadade estudar a profilaxia contra a peste na Europa.

A insalubridade do clima da bela cidade italianaagravou a doença pulmonar arrastada de que SousaMartins há longo tempo padecia.

Fialho de Almeida assim descreveu esse efeitonefasto de Veneza sobre Sousa Martins:

“chama voraz, corpo diáfano... Um sopro das lagunaspodres de Veneza bastou para a chama aniquilar seupobre invólucro”.(23)

Tocado em Veneza pela asa da Morte, Sousa Mar-tins regressa a Lisboa e, já doente, retoma a 29 deMarço o serviço no Hospital de S. José.

A doença agrava-se vertiginosamente e é na Serrada Estrela que Sousa Martins vem procurar alívio.

Assim, a 27 de Junho de 1897 Sousa Martinsinstala-se numa casa que Francisco Tavares deAlmeida Proença possuia na Serra, no local onde maistarde se ergueu o hotel das Penhas da Saúde.

Qual seria o estado de Sousa Martins nesta vindapara a Estrela? Ele era conhecedor como ninguémde que as virtudes do clima de altitude no tratamentoda tuberculose pulmonar só actuavam emdeterminadas fases nos períodos primitivos da doençaquando as zonas infectadas fossem ainda diminutas.Seria essa a situação? Ou animá-lo-ia a esperançaremota de uma cura em circunstâncias raras que eleassim descreveu:

“Casos há em que a virtude curativa do climaalcançou muito mais pois debellou a doença, emperíodo bastante avançado - incluindo o dascavernulas e até das cavernas pulmonares mesmocom febre héctica”(24)?

Ou seria mais grave o seu estado, aquele para oqual era contra-indicada a permanência num clima dealtitude? Teria Sousa Martins agido do mesmo modoque certos doentes, aqueles que contrariando osconselhos médicos (e são estas as suas palavras):

“seguem a sua errada inspiração, com o que apenasconseguem receber o golpe de misericórdia dado peloinopportuno e logo contraproducente remé-dio, assimtransformado em antecipador da morte”(25)?

Não o sabemos ... Catorze dias passa Sousa Mar-tins na casa de Tavares Proença.

Mas não volta a recuperar. O que foi esta últimaestadia na Serra surge-nos através da notícia comque o jornal O Século de I9 de Agosto de I897anunciaria a sua morte.

“ Em logar de ser um doente que precisava dedescanço e socego, continuou a ser um clínico; egrande era a romaria de enfermos que iam consultá-loà casa onde elle estava na Serra.

E levou tão longe a sua philantrofia, o seu amorpela humanidade enferma que n uma noitetempestuosa, sendo chamado para ver gratuitamenteum doente, esqueceu-se de si, não se lembrou deque elle também era um doente, e desceu a Serra,indo ver o desgraçado que reclamava os seus socorros.Foi talvez isso que lhe agravou a doença (...).(26)

Um mês depois, a 18 de Agosto de 1897 morre emAlhandra, apenas com 54 anos. No entanto e atravésda carta de agradecimento que Sousa Martinsescrevera datada de 10 de Julho de 1897 desprende-seuma certa esperança de melhoras. É este o teor daúltima carta escrita da Estrela

“Exmº Sr. Tavares Proença. Ao deixar hoje estamagnifica vivenda onde, graças à bizarria de V. Ex°,nos alojámos durante quatorze dias eu e minha família,venho renovar os meus agradecimentos, nuncabastante repetidos, por tão grande favor. Do meupréstimo se algum V. Exª., encontrar, poderá V. W,dispor sempre e em qualquer parte em que se achequem tem a honra de ser. De V. W, creado e V. Ex°muito obrigado. J.T. de Sousa Martins”(27). Masefémeras foram as esperanças de melhoras. Numamadrugada do verão de 1897, a Morte arrebatou-o...

A Premonição de António José de Almeida

Premonitórias são, do meu ponto de vista, aspalavras que António José de Almeida escreveu num

artigo em 1897:“...Lá está na Alhandra no cemitério que eu antevejo

discreto e gracioso... Está melhor do que nosGerónimos. O panteon seria o mais adequado

Cemitériode Alhandra

(1994).Entrada do

jazigo do Dr.Sousa Martins

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aogrande Sousa Martins; mas o cemitério da Alhandraestá mais a propósito para o bom Sousa Martins”.(28)

De facto hoje, neste final desencantado de século,ao modesto cemitério de Alhandra, recortado na amplaimensidade das lezirias, onde o fluir sereno do Tejomarca em cada instante a indubitável fugacidade davida, afluem cada dia muitas pessoas, tal comoacontecia à enfermaria do Hospital de S. José ou aoconsultório da rua de S. Paulo, movidas pela profundacrença de conseguir que a imensa Sabedoria e aenvolvente Bondade desse médico ultrapassem aspróprias barreiras da Morte e tragam uma Esperançade cura aos seus corações atormentados.

*Docente na Escola Superior de Educação de CasteloBranco

Notas

(1) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins,1968. p. 171.

(2) Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, Lisboa,Edições Ática, 1959. p. 149.

(3) José Thomaz de Sousa Martins. A TuberculosePulmonar e o Clima da Serra da Estrela, Lisboa, ImprensaNacional, 1890, p.4.

(4) António José de Almeida, “Sousa Martins”. in AMedicina Contemporânea, 1897, p. 343.

(5) Citada em Suzanne Daveau, «A Expedição Científicaà Serra da Estrela» in Finisterra . Lisboa 1989.

(6) Distrito da Guarda - Semanário que se publicou naGuarda entre 4-8-1912 a 15-11-1919. Era um dos orgãosdo Partido Republicano Evolucionista. fundado em 1912por António José de Almeida. De tendência conservadora,torna-se este partido o principal opositor e contestatário

da política radical de Afonso Costa. Teve, porém, duraçãoefémera pois foi este partido oficialmente dissolvido nocongresso realizado em Lisboa em 30 de Setembro ede Outubro de 1919.

(7) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José deLima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962,pp. 86, 87.

(8) Miguel Bombarda, in A Medicina Contemporânea,1897, p. 276.

(9) in, Quatro dias na Serra da Estrêla, Porto, LivrariaCivilização.

1884, pp. 16, 17. No jornal O Campino de 2 de Agostode 1884 lê-se este anúncio:

“Emydio NavarroQuatro dias na Serra da Estrella(Notas de um passeio)Um grosso volume com 12 phototypias e um prólogo

de Sousa Martins. Envia-se pelo correio a quem remetter1:250 reis ao editor Eduardo da Costa Santos, rua deSanto Ildefonso,10 Porto.

(10) in, op. cit., p. I8.(11) Emidio Navarro, op. cit., pp. 62, 63.(12) Emidio Navarro, op. cit., p. 61.(13) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e Jacinto

Augusto Medina - Sub-secção de Hydrologia Minero-Medicinal, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, p. 7.

(14) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e JacintoAugusto Medina, in op. cit, p. 23.

(15) “Relatório do Dr. Francisco Lourenço da FonsecaJunior”, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em

1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, pp. 5,6.(16) Emídio Navarro, op. cit, p. 35.(17) Teófilo Braga, “In Memoriam”, in Imprensa Médica,

nº5, Lisboa, 10 de Março de 1943, p. 63.(18) José Thomaz de Sousa Martins, A TuberculosePulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela,

Lisboa, Imprensa Nacional, 1890.(19) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins,

1968, p. 155.(20) José Thomaz de Sousa Martins. A Tuberculose

Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa,Imprensa Nacional, 1890, p. 26.

(21) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p. 27.(22) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p.(23) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José de

Lima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962p. 88.

(24) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit. p. 40.(25) José Thomaz de Sousa Martins, A Tuberculose

Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa.Imprensa Nacional, 1890, p. 28.

(26) in Jornal O Século, 19 de Agosto de 1897, nº 5603.(27) Carta de Sousa Martins a Tavares Proença, in José

Lopes Dias, Miscelânea de Cartas e DocumentosAlbicastrenses, Lisboa, Editorial Império, 1966, p. 26.

(28) António José de Almeida, “Sousa Martins” in AMedicina Contemporânea, 1897, p. 343.

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O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPO

por Elisa Calado Pinheiro*

“Colocarás a tua ruína nas mãos da natureza paraque esta a aperfeiçoe e a embeleze... só o tempomelhora as ruínas”.

William Gilpin, Observations relative chiefly to ...Cumberland and Westmorland.

“No entanto, não será o carácter de antiguidade deuma história tanto mais profundo, perfeito e lendárioquanto mais próxima do presente ela se passou?”.

Thomas Mann, Montanha Mágica.

Na Serra da Lã e a Neve, subsiste, a meia encostacoroando uma colina, o Sanatório das Penhas daSaúde.

Impõe-se pelo insólito de uma forte presença napaisagem nua, pela imponente e extensa fachada,assumida qual fortaleza da montanha, e pelagrandiosidade do figurino arquitectónico de catedral,com canones de decoração clássica e nacionalista,revisitados de uma modernidade que foi beber ànatureza envolvente não só a sua monumentalidadecomo o contraponto da própria existência, a queCottineli Telmo emprestou o traço, num projectoencomendado pela C.P., concluido em 1936, apesarde inaugurado só em 1944.

Embora à escala da montanha foi uma obra feita àmedida dos homens, para os curar. Começou-lhespelos corpos, nos tempos em que a esperança do arpuro e rarefeito vencia, com a eficácia da pranchaatirada a náufragos, as bactérias da “tuberculoseromântica e burguesa” do país e, depois, as datuberculose faminta e operária da região. Acabou-lhespelas almas. Em tempos ainda próximos, bastou o

seu tecto amplo para curar feridas da guerra e dodesenraizamento. Albergando, sem divisórias deintimidade, uma multidão de “retornados”,transformada em comunidade pela necessidade, pelaspartilhas de espaço e de passado e pelas incertezasde futuro, transplantada de outros espaços em tem-pos de aceleração brusca dos ritmos da história, oSanatório ofereceu o despojamento e o silêncio,transformados em concha de protecção num bastiãoquase inexpugnável.

Hoje, o edificio, apesar das marcas visíveis de umaforte presença, carregada de dispares esperanças,encontra-se exactamente no limiar que separa doistempos: o dos homens, ainda apreensível e bemmarcado pelo ritmo das mudanças e o da naturezaque o cerca e nele penetra, feito tempo longo depermanências incomensuráveis. O vento, as águas eum ténue mundo vegetal coabitam já ali com o queresta das memórias dos homens.

No espaço da antiga secretaria encontram-se hojepelo chão, espalhados, os documentos de todo estemundo que no Sanatório se encerra: são os livros deponto do pessoal e dos médicos, os livros deaquisições, as fichas médicas dos doentes e asrequisições de exames de diagnóstico ecomplementares, para além de toda a correspondênciainstitucional e administrativa. A área da rouparia, estáatapetada das fardas do pessoal e das roupas deinternamento dos doentes. As radiografias e os restosdo mobiliário metálico estão espalhados por todo oedifício marcando fortemente as décadas de 40 a 70do nosso século e referenciando quanto baste o tempodos tuberculosos, ricos e pobres. Os documentosdispersos do Instituto de Apoio ao Retorno de

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Nacionais e os cadernos escolares espalhados pelasvárias salas e corredores chamam-nos aos anos en-tre 75 e 80 marcados pela chegada dos que albergouem longos invernos de isolamento e falam-nos daescola que ali funcionou para os mais novos dos“retornados”. Finalmente os graffiti nas paredes dão-nos as derradeiras imagens da última ocupação antesdo abandono: São os Carnavais da Neve do ClubeNacional de Montanhismo da Covilhã e os EncontrosNacionais de Motards que ainda ecoam pelos salõesde arcaturas e colunata do 1° piso.

No Sanatório das Penhas da Saúde aprisionam-se ainda as primitivas imagens do difuso espaçosanatorial dos finais do séc. XIX que foi primeirocorporizado na Montanha Mágica portuguesa, naárea das Penhas da Saúde, através da construção, a1.530 m de altitude, do Grande Hotel dos Hermínios,seguindo à risca as confiantes prescrições do Dr.Souza Martins. Foi todo este ambiente de fim deséculo que moldou o programa arquitectónico e ofigurino decorativo, do novo Sanatório dos Ferroviários,marcadamente de anos 30, mas com ainda bemvisíveis pinceladas de uma “Belle Epoque” que aospoucos se foi desvanecendo pelas mundanasestâncias de veraneio e de restabelecimento físicoaté ao deflagrar da 1° Grande Guerra. As marcas de“hotel” mantiveram-se no Sanatório, disfarçando atéaos anos 50, tanto quanto puderam, as de hospital.Só então, com o enquistar do Estado Corporativo, afactura do 2° “post guerra” e os frutos do nosso surtoindustrializador se lhe massificou a densidade e selhe empalideceu o brilho. É este o período quecorresponde às ampliações realizadas à custa dasgalerias e ao aumento das enfermarias e dasinstalações de apoio que lhe deram a sua últimautilização como Sanatório.

A História está, pois, bem marcada neste edifíciopelas vivências dos homens que o habitaram. É embusca dela que o demandamos. Mas quando, feitosHans Castorp da “Montanha Mágica”, subimos até lápara, quais espectadores, o reconhecermos eanalisarmos como fonte histórica, evidência de campode uma época e como monumento que urge preservar,é ele que nos domina e nos aprisiona numamultiplicidade de problemas em que nos enreda.Projectavamos uma passagem breve e, afinal,quedamos nele enredados. E quando nos ocorre aestratificação que vigorava para os seus doentes:“curados”, “melhorados”, “estacionários”, “piorados” e“falecidos” - e a sua repercussão em números. Deuma breve análise efectuada a documentos dispersos,situados entre os anos de 1953 e 1967, poderá reter-se que dos 4.264 tuberculosos que passaram peloSanatório, 1.252 curaram-se, 1.694 melhoraram, 1068mantiveram-se estacionários, 149 pioraram e 101faleceram. E a nós como nos catalogará?

Entretanto, instalamo-nos. Vamos ficando.

Começamos a conhecer-lhe os meandros e aspersonagens que por ele vagueiam e aceitamos aexplicação de Joachim a Hans Castorp: “Aqui nãofazem muita cerimónia com o tempo das pessoas”.

Adaptamo-nos e descobrimo-lo aos poucos,descobrindo-nos a nós também e ao nosso tempo, odas maçãs calibradas e da produção normalizada, odo viver industrializado. Documentamo-lo e fazemos-lhe a ficha, como também ali se preenchia a dosinternados. Descrevemo-lo. Recolhemos-lhe asmarcas das telhas tipo marselha (Mourão, TeixeiraLopes & Cª. Lda. da Pampilhosa) e do mosaicohidráulico dos pavimentos (SCIAL). Demoramo-nos nadescrição da fachada, que se estende por mais de160 m de comprimento e onde os seus torreões emflecha, varandins e solários, arcaturas e bandasritmadas de centenas de janelas lhe definem o figurino.Subimos-lhe a imponente escadaria de granito;entramos no átrio e apreciamos-lhe o encanastradoférreo das elegantes portas dos elevadores, assimcomo os azulejos figurativos dos salões do 1° piso.No final, diagnosticamos - “Estado de Conservação:degradado”. Imediatamente nos ocorrem as vias daterapêutica em uso nestes casos: recuperação oureabilitação?

Depois de um tempo em que as ruínas dignificaramos jardins dos mecenas do Renascimento e de umoutro em que inspiraram os românticos oitocentistasque, com Byron, defendiam que elas enobrecem eembelezam os lugares, já que introduzem nele “algode vida real que não pode pertencer a nenhuma parteda natureza inanimada”, assistimos hoje àdesvalorização de tudo o que revela marcasdestruidoras do tempo. É a norma. O primado dosnossos dias é o da manutenção da juventude, mesmoque aparente e recauchutada, o do terror da velhice, oda desvalorização do ritual participado da morte, doseu asséptico encobrimento, mesmo.

E quando testemunhamos o forte impacto das ruínasdeste edifício, sobretudo ao nível das artes e dosartistas a quem continua a impressionar ainda hojeocorrem-nos então as palavras de Carlo Carena(Enciclopédia Einaudi, Ruina/Restauro, 1984, p.107):“Esta vitalidade da ruína exclusivamente interpretativa,subjectiva e antropológica, torna essencialmente cul-tural o discurso que sobre ela se faz”.

E perante as terapias de normalização da vida dosmonumentos, vacilamos então no limiar entre a VIDAe a MORTE, o tempo dos HOMENS e o da NATUREZAtendo por única convicção a de que há “memórias”que urge preservar.

Covilhã, Novembro de 1994

*Assistente Convidada da UBI. Membro do Centro deEstudo e Protecção do Património - CEPP

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A IDADE MILITAR E A LITERATURA TRADICIONALNO CICLO DA VIDA DO HOMEM DA GARDUNHA

por Albano Mendes de Matos*

As Sortes e o Grupo de Idade

Os rapazes das povoações inseridas na região daSerra da Gardunha, nascidos no mesmo ano, dosfinais do século passado até meados deste século,ao completarem vinte anos de idade, entravam nasSortes, ritual pré-liminar para a entrada no serviçomilitar, constituindo-se em grupo informal, o Grupo deIdade ou Conjunto de Idade(1), em que o essencial dacoesão grupal era fundamentado no factor idade,espaço físico da aldeia e no espaço social dacomunidade rural. A mesma idade,em pessoas domesmo sexo, fundamenta a ideia de que as pessoassão semelhantes, agrupando-se por laços de afinidade.

Os elementos deste grupo informal ficavam ligados,tradicionalmente, por uma forte analogia desentimentos de pertença ao grupo, interiorizados poruma grande relação comunicabilidade e desolidariedade que fortalecia a coesão, manifestando-sepor comportamentos festivos ritualisados, como o“baile das sortes”, descantes pelas ruas e refeiçõescolectivas, com os componentes individualizados,durante as manifestações, por uma flor ou um ramode manjerico, na lapela do casaco ou na orelha, oupor uma fita na lapela, segundo os valores e os cos-tumes da comunidade.

O facto de pertencer a um grupo social, mesmoinformal, encorajava a fortes laços de amizade entrepessoas e contribuía para diferenciação entre osrapazes que tinham idade militar e os que tinhamidades inferiores. As Sortes promoviam uma amizadeinstitucionalizada quase sempre para toda a vida,desenvolvendo solidariedade de grupo, comexperiências partilhadas, entre membros dacomunidade não ligados pelo parentesco, grupos quese sucediam anualmente, enquanto durou a tradição,hoje em extinção.

A idade militar, como em todas as outras idades dohomem, era marcada por atitudes e comportamentosculturais que podem ser considerados como “ritos depassagem”(2), como uma fase de um ciclo que sedesejava marcar e revelar. Por exemplo, “dar o nome”,indo à Secretaria da Câmara Municipal ou do RegistoCivil, era o primeiro dos rituais em que o rapaz dava a

confirmação e se prontificava a pertencer,temporariamente, a uma outra família, a família militar.

Particularizando, descreve-se o ritual, ou conjuntode ritos, na Aldeia do Alcaide, na primeira metadedeste século, relativo à ida à inspecção médica, àpartida para a vida militar e a algumas vivências navida militar.

Roubo Ritual das Flores

Alguns dias antes da inspecção, os rapazes iamroubar vasos com flores, em quaisquer casas,retirando-os das janelas e dos balcões, que eramguardados em locais próprios, costume que pode sersobrevivência do rito de apropriação(3), na iniciaçãodos rapazes.

Na noite da véspera do dia da inspecção, os rapazesdas Sortes “arranjavam” o chafariz da praça,ornamentando-o com as flores que tinham roubado,colocando-as em prateleiras, organizadas empirâmide, montadas em volta do chafariz. Em algunsanos, eram colocado um quadro com as fotografiasde todos os rapazes das sortes, como afirmação so-cial do grupo ao qual pertenciam.

Pela manhã, muitos alcaidenses deslocavam-se àpraça para observarem o chafariz “arranjado”. Duranteo dia, as mulheres e as raparigas retiravam os vasoscom flores que eram sua propriedade.

O Banho Ritual

Depois do arranjo do chafariz, muitos dos rapazesiam a um tanque ou à ribeira tomar banho, um banhocolectivo, como que no ritual de purificação, observadoem diversas sociedades(4).

Ida às Sortes

De acordo com o horário do Edital, os rapazes dassortes caminhavam para o Fundão. Iam a pé, emgrupo ruidoso, com um, dois e, às vezes, trêstocadores de concertina ou de acordeon, à frente,contratados para tocarem durante os rituais. Todoslevavam ramos de manjerico na lapela do casaco. Até

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aos anos vinte iam munidos de cacetes (varapaus),para defesa pessoal, se necessário fosse, cacetesque deixavam guardados à entrada do Fundão(5).

Submetidos ao ritual da inspecção médica, perantea Junta, os mancebos, agora assim designados,considerados aptos ou “apurados”, prestavamjuramento de fidelidade à pátria, como rito “preliminar”(6)

solene da idade militar. Como resultado da inspecçãomédica, surgia a hierarquização dos membros dogrupo de idade, em sub-grupos de “apurados” (aptos),“livres”, eufemismo de inaptos, e, por vezes,“esperados”, estes a aguardarem nova inspecção.Como sinais visíveis de diferenciação grupal, osrapazes compravam fitas que colocavam na lapela docasaco, cujas cores eram símbolos nítidos dasclassificações que lhes tinham sido atribuídasvermelha, cor forte, significando valor, esforço e fonteda vida, para os “apurados”, amarela, cor fraca ousecundária, para os “livres” e cor branca ou neutrapara os “esperados”. As cores identificavam asclassificações dos rapazes no ritual das Sortes, queapresentava tonalidades festivas, com música, desfilespelas ruas, lançamento de foguetes, jantar colectivoe baile, ao qual compareciam as raparigas da aldeia,com as mães destas a assistir, sentadas em volta dasala.

Na perspectiva do mundo rural, especialmente naregião onde se focaliza a temática desta comunicação,existiam categorias ou modos de ver que orientavamas concepções, particularizadas, a que estavamsujeitos os corpos, que os catalogavam funcionalmentesegundo um discurso oficial geral, que era interiorizadopela ideologia camponesa. Os inaptos ou “livres” parao serviço militar desciam momentaneamente naescala da avaliação social, marcados por uma possívelincapacidade para a prestação de um serviço ao País.As raparigas candidatas a namoro interrogavam-sedizendo que “se não serviam para a tropa, algumacoisa havia”, segundo o código do sistema ideológicolocal. Fora deste campo de pensamento, estavam osfilhos dos “ricos” ou de algum “remediado”, cujos paismetiam um “empenho”, para ficarem “livres”.

No próprio desfile pelas ruas da aldeia, após a ins-pecção, os rapazes dispunham-se hierarquicamente,com os “apurados” à frente, com as fitas vermelhasnas lapelas, seguidos pelos “livres”, estes menosruidosos. As fitas simbolizavam as qualidades físicasdos rapazes, com alguma arbitrariedade, pois, umainaptidão,considerada pela Junta Militar, nãocorrespondia a uma inadaptação laboral ou social,numa idade em que o corpo era visto como umatecnologia, como um recurso no processo dereprodução e de produção. No entanto, algumasvezes, era notória uma desordem temporal oumomentânea na personalidade dos “livres”,manifestada nos seus modos e nas suas atitudes.

A Idade e a Vida MilitarO Militar na Avaliação Social

As comunidades rurais davam muita ênfase àclassificação por idades, especialmente a “idademilitar”, que era considerada um ponto-charneira en-tre o ser rapaz e o ser homem, entendendo a vidamilitar como uma “escola da vida”, na qual o rapazera transformado em homem, subindo na escala so-cial, conjugando mesmo a “idade militar” com a “idadedo casamento”(7). O ser militar ou ter sido militar eraum factor de prestígio social, utilizado algumas vezescomo elevacão momentânea de “status”(8), comnomeação para actos públicos, como “cabo de ordens”,em festas, para manutenção da ordem.

É de salientar que a vida militar surge como temáticana Literatura Tradicional, quase sempre emcomposições simples e ingénuas, de tendênciahumorística, cantadas ou recitadas nas casernas elembradas toda a vida.

A vida militar, numa idade em que o indivíduo seafirma homem, como “rito de passagem”, com maiorou menor valorização, consoante a época e oscontextos sócio-político e sócio-cultural, faz parte dafala quotidiana das gentes rurais, pois, fica comomarco indelével na vida do homem, cujas vivênciasperduram ao longo dos tempos.

Algumas raparigas tinham receio de namorar ourejeitavam mesmo os rapazes que ficam “livres” nasSortes, porque “se não serviam para a tropa, algumacoisa tinham”, como foi já referido. Diz a literaturatradicional:

Quem não serve para a tropa,Também não serve para nada,É tacho velho sem fundo,É bilha velha furada.(9)

A Despedida

A ida para a vida militar era uma ruptura com oquotidiano familiar e com a vida da aldeia. Era partirpara o desconhecido, para uma vida talvez perigosa,para uma situação de margem, que talvezproporcionasse riscos. Alguns rapazes submetiam-sea “ritos de Protecção”, como confissão e comunhão,verificadas na aldeia do Alcaide, pedir a benção aospadrinhos e aos pais e solicitar a protecção dosSantos e das Senhoras mediante promessas(10). Nageneralidade, todos praticavam “ritos de despedida”(11)

dos familiares, dos amigos e das namoradas. A partida,algumas vezes dolorosa, como a primeira saída dacomunidade, era bem definida cronologicamente,talvez como uma data muito significativa, no ciclo davida do camponês beirão. Assim a refere um serranoda Gardunha, na sua despedida:

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A vinte e oito de Fevereiro,“De mil novecentos e trinta e dois,“Disse adeus ao povo inteiroE fui para a tropa depois.

Fui despedir-me dos meus,Naquele doloroso dia,Só talvez soubesse DeusO que o meu peito sentia.

Dos meus pais me despedia,Copiosamente a chorar,A minha mãe só me dizia-Filho, tu, vais-me deixar.

De novo me veio abraçar,E eu segui o meu destino;Assim, deixei o meu larE o meu povo pequenino.(12)

A Entrada no Quartel

Os rituais de entrada na idade militar seriam umcomplemento dos rituais de transição da puberdadepara a maturidade. Rituais que visavam uma elevaçãode “status”, ainda evidente em diversas sociedades,motivada e inculcada pelos chefes, pelo cumprimentode uma norma social, norma de pertença a um grupoou a uma organização, com uma certa finalidade, queo poder exigia e a sociedade comparticipava.

A chegada ao quartel, a apresentação da guia demarcha, o primeiro banho, o corte do cabelo, comomedida higiénica e marcas distintiva de uma pessoaem situação de margem, numa classe de iniciação,ficam na memória da tradição popular.

Às portas do Regimento,Estava uma sentinela;Logo naquele momento,A sorrir me disse ela.

-Entra que a tropa é bela,Eu gosto de aqui andar,É preciso é cautela,para ninguém nos castigar.

Ao ouvi-Ia assim falar,Fiquei cheio de alegria,pedi-lhe para me informarOnde era a Secretaria.

-Sobe essa escadaria,Ao cimo a vais encontrar;Com muita ou pouca alegria,Vai-te lá apresentar.Eu subi, até que fui darEntão com a Secretaria,

Pedi licença para entrarE entreguei a minha guia.

Quando da porta saía,Logo me disse o quarteleiro:-Toma banho em água fria,Depois vem ao nosso primeiro.

A seguir vais ao barbeiroO teu cabelo cortar,Depois, diz o nosso primeiro,Vens-te a mim apresentar.(13)

O recruta era, por vezes, submetido aos “ritos deentrada”(14) que colidiam com a sua mentalidade e asua visão do mundo, como a perda de liberdade,transpondo as realidades da vida militar para uma visãoanalógica com a vida conventual:

Na peluda, não pensavaque havia de vir a ser praça;Fui metido num convento,Já não tenho liberdade.(15)

A Atribuição do Número

A mudança de nomes ou a aquisição de nomesadicionais ocorrem, muitas vezes, nas idades dosindivíduos como indicação de novos estados(16),normalmente associados a ritos de margem. Poranalogia, a vida militar, encarada como uma situaçãode margem, em que o homem é retirado para um novoestado, fora da família e da sua sociedade, dava umnúmero ao neófito-recruta, que passava a identificá-lo, retirando-lhe o nome, no tratamento estritamentemilitar, pois, era introduzido numa nova família em quetinha, simbolicamente, como pai o capitão e comomãe o primeiro-sargento. Vejamos o que dizia, em1952, um militar do Regimento de Cavalaria 8, deCastelo Branco:

O meu nome do baptismoJá ninguém mo quer chamar;Número cento e setenta e oito,Foi o número que vim a usar.(17)

A Distribuição do Fardamento

A distribuição de fardamento, como “rito deagregação” comunidade militar(18), é quase sempredescrita com humorismo, quer por parte dos agentesda distribuição, quer por parte dos recrutas a fardar.

Diz o sargento:

-A farda te quero darE mais o belo barrete,Muito bem te deve ficar,

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Deves parecer um cadete.-(19)

Diz o recruta:

A camisa e as ceroulasFizeram-me logo tremer,Puseram-se em pé comigo,Vi jeitos de me virem bater.

As calças eram tão grandes,Que até metiam confusão;Dentro das mesmas calças,Cabia outro figurão.

As botas eram tão grandes,Que nem as podia arrastar;Tenho a certeza que serviamPara eu atravessar o mar,

Do jaleco não se fala,Ficam-me as mãos escondidas;As mangas eram tão grandes,Tinham dois metros de compridas.(20)

A Disciplina

O rigor disciplinar exigido aos soldados, como umpotente meio de sugestão e de intimidação parainculcar nos homens a deferência pelos chefes e parafomentar a ordem e a coesão na instituição militar, éreferido, bem como as exigências do atavio da farda,este insinuado como “rito de orgulho”, nas cantigaspopulares, criadas espontaneamente, como asseguintes quadras:

Quando um minuto mais tarde,Na forma quero entrar,Não querem saber de desculpas,Logo me vão castigar.

Se falo, tenho castigo,Se me calo, sou castigado,Não sei como hei-de viver,Nesta vida de soldado.

Quando quero sair à rua,As botas levo engraxadas,A sentinela da portaLogo se põe a examiná-las.

Então a sentinela me diz:

-Volta para trás rapazinho,Bota graxa nessas botas,Não gastes o pré em vinho.Temos que andar direitinho,Em qualquer formatura;

Se não estamos caladinhos,Logo nos vão para a figura.(21)

Educação, Valentia e Competição

A iniciação militar inclui a instrução militar comoprocesso educativo dos cidadãos, levando-os aoconhecimento de certos valores patrióticos ecivilizacionais, que vêm da tradição portuguesa,orientada para valores específicos de defesa e decontinuidade da Pátria, para além ensinamentosconducentes à formação geral do cidadão.

A ideologia que envolvia a acção militar e o esforçode mentalizar os jovens, e a sociedade de um modogeral, no sentido de valorizar o homem e o cidadão,está espelhada na seguinte quadra, que reflecte aevidência de que, para muitos beirões, a única escolaera o quartel.

Todo o rapaz que é preguiçoso,Devia vir para soldado,que aqui é que se aprendeA ser brioso e educado.(22)

Em momentos históricos e conjunturais,sublimam-se alguns valores, que as sociedadesabsorvem, mentalizando-as para certos ideais, comoa sublimação do”ser homem” aliado ao “ser soldado”,com significativa ascensão social, como já foi referido.A maturidade de ser homem passa pela condigão deser soldado, com entrada, por direito, nos negóciosda aldeia e na organização das festas, por exemplo,para além da aptidão para defender o País. Na décadade trinta, escrevia um soldado do Batalhão deCaçadores 6, de Castelo Branco:

Olha que um militarquere-se valente p’ra guerra,com valentia lutar,E defender a sua terra.(23)

A instituição militar fomentava, em nome da coesãoe do espírito de corpo, para além da valorização so-cial e patriótica, uma competição, quer entre osindividuos do mesmo aquartelamento, quer entreaquartelamentos diferentes, como realçam asseguintes quadras, relativas a soldados que serviramem Unidades de Castelo Branco:

O soldado de CavalariaÉ o espelho da Nação,Quando põe o pé no estribo,Já leva a espada na mão,

Cada vez que vejo o oito,Me lembra o meu Regimento;Minha espada, meu cavalo,

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E meu lindo fardamento.(24)

Juramento de Bandeira

Tal como em muitas sociedades, em que se verificauma apresentação dos seus novos membros àcomunidade, os nossos militares, após um regimede margem e de aprendizagem ou iniciação, que é otempo de recruta, são apresentados à sociedade, emmanifestação pública ritualizada, o Juramento deBandeira, já não como simples indivíduos rurais oucitadinos, mas como soldados, ou seja, comoelementos defensores de uma sociedade ou dos ideaissuperiores que norteiam essa mesma sociedade, porque foram iniciados na instrução militar, como refereum soldado, nos anos trinta:

Eu tratei de me apurarLogo na instrução primeira,Só para trás não ficar,Quando jurasse Bandeira.(25)

Os rapazes, retirados às famílias e à comunidade,são apresentados às suas comunidades valorizadoscomo homens e como cidadãos, capazes de defenderas suas terras, após o Juramento de Bandeira, “ritopatriótico” por excelência. Diz a quadra:

Estendi o braço à BandeiraE quis por ela jurar,A dar pela pátria a vidaE sempre do inimigo a saltar.(26)

O Militar e o Namoro

A Idade Militar coincide muitas vezes com a idadedo namoro, como é muitas vezes factor de rupturasamorosas. Todas estas vivências deixam os soldadosnas suas expressões poéticas, como o militar que sequeixa do abandono a que foi votado pela namorada:

Até da própria namoradaFui logo abandonado;Na última carta me dizque já não liga ao soldado(27)

A namorada protesta contra o comboio, objectovisível do seu descontentamento, que levou o seurapaz para a vida militar:

Ó comboio das oito,Não te posso ver passar,Levaste o meu amorPara a vida militar.(28)

A namorada promete ao seu namorado que nunca oesquecerá, enquanto ele estiver na tropa:

Hei-de escrever-te, bem sei,Numa folha de papel,cartinhas para a cidade,Mandadinhas para o quartel.(29)

As raparigas que viviam próximo dos quartéis eramavisadas para não confiarem nos soldados, porque atropa é passageira e os militares estão numa idadede aventuras e brincadeiras:

Menina não se enamoreDo rapaz que é militar,quando não, ele toca a caixaE então, põe-se a andar.(30)

Os soldados, já nos fins do século passado,galanteavam as raparigas, quando andavam pelasruas:

Sou soldado, sirvo o rei,E também sirvo a rainha;Também meto sentinelaÀ sua porta, lindinha.(31)

A Saída da Vida Militar

Entre as quatro crises básicas e universais daHumanidade, nascimento, maturidade, reprodução emorte, compreendidas no ciclo completo davida,sucedem-se acontecimentos biológicos eculturais, que podem designar-se por “idades”, vividasmais ou menos intensamente pelos indivíduos e pelassociedades. Como vimos, algumas atitudes peranteas situações e os acontecimentos, actuando comorespostas aos imperativos biológicos e às vivênciasimpostas pelas normas sociais, projectam-se comoconjuntos cerimoniais embebidos em ritos próprios,que correspondem às diversas idades do Homem,enquanto ser cultural.

Podemos concluir que a Idade Militar, nos meiosrurais da região da Gardunha, marcou profundamenteo homem, que percepcionava o mundo sob aperspectiva de uma “visão do mundo camponesa(32),caracterizada por uma inferioridade cultural em relaçãoao homem citadino, pela ideia de casa, como unidadesocial, elemento de identidade familiar e de trabalho,com a função social definida por bens económicosvisíveis, como a posse da terra. Refere a poesiatradicional:

Quando for à disponibilidade,Vou para a casa dos meus pais;E eles dão-me um papel,Para não me esquecer mais.

O soldado que está em casa,A trabalhar no seu campo,

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Quando há uma chamada,A ferramenta vai para um canto.(33)

Como na entrada para a vida militar, há também umritual, no final do tempo, como que numa evasão paraa liberdade da comunidade aldeã, verdadeiros “ritospós-liminares”, preparatórios para o reencontro comos familiares e com os amigos, ou “ritos de saída”,com realce para as despedidas, que a literaturatradicional exprime:

Tenho o tempo acabado,De novo vou ver os meus pais;entrar neste quartel,Juro que não volto mais.

Fui um soldado fiel,Cumpri a minha missão;Digo adeus ao meu coronele adeus ao meu capitão.

Digo adeus a toda a gente,com grande satisfação;Digo adeus, muito contenteAo primeiro do Esquadrão.(34)

* Mestre em Ciências Antropológicas.

Notas

1 - TITIEV, Moscha - Introdução à Antropologia Cul-tural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 1979. pg.263.

2 - VAN GENNEP, -Arnold - Os Ritos de Passagem,Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1978, pg. 31.

3 - Idem, pg. 154.4 - Idem, pg. 158.5 - Conforme depoimento de informador qualificado.6 - VAN GENINEP, obra citada, pg. 31.7 - HOBEL, E. Adamson e FROST, Everett - Antropologia

Cultural e Social. Editora Cultrix-São Paulo-Brasil, 1981,pg. 167.

8 - TURNER, Victor - O Processo Ritual- Estrutura eAnti-Estrutura-Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1974, pg.202.

9 - JOÃO GAMA, Casal da Serra. 63 anos.10- Na aldeia do Alcaide, alguns miIitares prometiam

ao São Sebastião, protector dos militares, ou ao SãoMacário, uma prestação monetária, pegar no andor, oumesmo fazer uma festa ao primeiro Santo, para que osprotegessem na vida militar.

11 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 48.12 - JOSÉ SIMÃO, Casal da Serra, 78 anos.13 - Idem.14 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 39 e 83.15 - JOÃO GAMA, Idem.16 - HOBEL e FROST, obra citada, pg. 165 e VAN

GENNEP, obra citada, pg. 69.17 - JOÃO GAMA, Idem.18 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 89.19 - JOSÉ SIMÃO, Idem.20 - JOÃO GAMA, Idem.21 - JOÃO GAMA, Idem.22 - JOÃO GAMA., Idem.23 -JOSÉ SIMÃO, Idem.24 - JOSÉ MATOS, Casal da Serra, 91 anos.25 -JOSÉ SIMÃO, Idem.26 -JOÃO GAMA, Idem.27 -JOÃO GAMA, Idem.28 -JOSÉ MATOS, Idem.29-JOSÉ MATOS, Idem.30-JOSÉ MATOS, Idem.31 - JOSÉ MATOS, quadra ouvida ao seu pai, no

princípio do presente século.32 - CABRAL, João de Pina - Filhos de Adão, Filhas de

Eva, Editora D. Quixote, Lisboa, 1989, pg. 59.33 - JOÃO GAMA, Idem. 34-JOSÉ SIMÃO, Idem.

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A IDADE DE SER “RATINHO”

por Maria da Assunção Vilhena Fernandes*

I - As Idades do Homem do Concelho deProença-a-Nova

Como em todas as sociedades, também aqui háidades próprias para determinadas actividades.

Nos primeiros anos em que tomei contacto com asgentes do concelho de Proença-a-Nova, tive ocasiãode verificar que as crianças desta região não passavampela idade de brincar por que passavam as de outrasterras e, felizmente, as dos nossos dias. Em geral,as famílias eram pobres, tinham muitos filhos a quemnão podiam proporcionar umainfância feliz. Assim, tinham deaproveitar das crianças, mesmoas menores e mais fracascapacidades para ajudar à suaprópria criação. Ainda na primeirainfância, por volta dos 3 ou 4 anos,já lhes era imposta a obrigaçãode cuidar dos irmãos mais novos,afastando-os da fogueira, do solou da chuva, se já andavam, evigiar o bébé no berço, embalá-lo,dar-lhe a chucha para que nãochorasse, etc, enquanto a mãetrabalhava.

Depois vinha a idade de levar ascabras ao pasto ou acompanharo pai na lavoura, para guiar os boisou os burros no rego, às vezes,com pouco mais de 5 anos.

Mais tarde, por volta dos 7 ou 8anos, chegava a idade de ir servir - os rapazes, emgeral, para pastores, as raparigas para criadas. Disse-me uma senhora da Sarzedinha que, a primeira vezque foi servir, não se lembra que idade teria, era tãopequena que, para conseguir chegar à masseira paraonde devia peneirar a farinha para fazer o pão, a patroatinha de lhe pôr o meio alqueire debaixo dos pés!

Na 1ª metade deste século, principalmente nasaldeias, ainda não havia para todas as crianças a idadede ir à escola, por falta de estradas, por falta de escolasmas, principalmente, porque os pais necessitavamdo trabalho delas. Raras foram as raparigas queaprenderam a ler e também nem todos os rapazes

tiveram esse privilégio.Quando os filhos eram muitos, de ambos os sexos,

e não era possível empregá-los todos a servir, ficavamem casa dos pais que os ocupavam nos trabalhos docampo, bem mais cedo do que devia ser.

Os “Ratinhos” e o Desempenho da TarefaContratada

Chegado o mês de Maio, tempo em que as searasjá estavam maduras, muitos homens desta zona, para

melhorar a sua precária situaçãofamiliar, migravam para o Alentejo(outros para Espanha), para fazera ceifa. Era a esses trabalhadoresque chamavam os “ratinhos” não sesabe ao certo porquê, mas talvezpelo seu hábito de ratinhar ouregatear o prego de qualquer coisaque compravam, ou por muitoeconomizarem, poupando em tudoaté com uma certa sovinice.

O costume de ir ceifar às terrasalentejanas vem de muito longe:foram “ratinhos” os avós, os pais,os filhos e os netos, durantegerações, e já não o são hoje,graças ao progresso que ossubstituiu por ceifeiras mecânicas.Antes delas, os “ratinhos” eramimprescindíveis nas ceifas, pelaescassez de braços alentejanos.

Habituados a trabalho duro na sua terra, os beirõesceifavam com desembaraço e uma destrezaincomparáveis. Por isso, os lavradores alentejanosesperavam com ansiedade a visita dos manajeirosbeirões que, na Primavera iam ao Alentejo tratar doscontratos e ver as possibilidades de ganhar bonsproventos. Ao voltar, contratavam os homens que iriamdepois ceifar sob a sua autoridade. A regra eraobedecer, ouvir e calar. Se se revoltassem, eramdespedidos. Nem sempre os manajeiros eramtrabalhadores do campo, mas sapateiros, barbeiros,etc., que aproveitavam aquela quadra para obterembons lucros. Eram sempre tipos com astúcia: iam

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um ou dois anos a ceifar para aprender comofuncionava o serviço, procurando a simpatia dosconterrâneos, dos manajeiros e dos patrões. Depoisjá podiam entrar em acção...

Contratados os homens para a ceifa, faziam-se ospreparativos para a faina que durava 40 a 45 dias.Com os dias da viagem, eram quase dois meses deausência das suas aldeias.

Como fato de trabalho, escolhiam as calças maisvelhas que tinham, de surrobeco ou de cotim,remendadas por todos os lados, que, por não seremlavadas durante toda a safra, ficavam tão duras com osuor que, quando despidas se aguentavam de pé ...As camisas de linho grosseiro, nos tempos maisrecuados, tiveram de ser substituídas por outras maismacias pois, com o movimento brusco e continuadodos braços, chegavam a ferir-se nas axilas. Adoptaramentão as blusas de riscado azul e branco, aosquadradinhos, usadas pelos ganhões alentejanos e aque, não sei porquê, chamavam garibaldas. Eram as“alfaiatas” que as faziam e também preparavam osvelhos chapéus de feltro forrando-os de sarja epespontando-os em círculos para os tornarem maisduros e impermeáveis aos raios ardentes do sol. Paraprotegerem a nuca, usavam o tradicional lenço dealgodão vermelho que, a maior parte das vezes,usavam sob o chapéu para ensopar o suor. Tambémfazia parte da “copa” do “ratinho” um par de safões depele de cabra que usava ora com o pêlo para fora, orapara dentro, conforme o tempo que fizesse; um peitilhoe uma “braçadeira” da mesma pele para proteger opeito e envolver o braço esquerdo, defendendo-o dosgolpes ou da aspereza da palha. Como adereços paraproteger os dedos, faziam dedeiras de cana queusariam no indicador, médio e anelar da mão esquerdaou dedeiras de cabedal. Levavam , pelo menos, duasfoices. Era indispensável a manta para, durante anoite, se protegerem da “maresia”e do sol, durante asesta, esticada sobre alguns molhos de trigoempinados, quando não havia árvores por perto. Ofato que levavam na viagem só o voltavam a vestir noregresso. Na véspera da partida, preparava-se o farnel:broas, chouriço e uma cabaça de zurrapa para ajudara engolir.

Alguns ceifeiros levavam consigo filhos ou sobrinhosque não estavam a servir, para os iniciarem na profissãoe para trazerem mais algum dinheiro. Eram garotosde 12 ou 13 anos (mas conheço um que foi aos 8anos só para guardar a “copa”(1) e dar de beber aosceifeiros). Como se não lhes bastasse já a tortura detrabalharem nas propriedades dos pais, iam iniciar-se no trabalho mais duro que se pode conceber -trabalho de escravos - sob o olhar atento dos adultose também dos familiares que os tinham levado e nãoqueriam que os deixassem ficar mal, perante omanajeiro que os tinha contratado.

Era essa a idade de começar a ser “ratinho”. Esses

jovens “ratinhos” estavam apenas na 2ª infância, noinício da puberdade, alguns na adolescência. No planofisiológico, era uma idade crítica e, portanto, essetrabalho era um perigo para o seu desenvolvimento.Estavam a crescer, eram geralmente mal alimentadosna sua terra e, consequentemente, tinham fracacompleição física. Além disso, as modificaçõesfisiológicas, que afectam o estado de espírito doadolescente, não eram de modo a uma fácil adaptaçãoao novo trabalho. Mesmo no seu meio, ao tomarconciência do mundo que o rodeia, tem as maisdiversas reacções, ora mostrando uma timidez que oimpede de falar, de se abrir, mesmo com as pessoascom quem lida de perto, ora tomando atitudes de umaagressividade assustadora, ora, ainda, caindo numainstabilidade que lhe provoca alegria ou tristeza, fácilno riso descontrolado ou em crises de choro ou desilêncio.

O ambiente, a dureza do trabalho, o clima hostil, aopressão e as injustiças que era obrigado a suportardurante esse período de 40 a 45 dias, não eram, demodo algum, propícias ao seu desenvolvimento físicoe à boa formação da sua personalidade. Mais ainda,todo o dia debaixo daquele sol de fogo em que otermómetro subia aos 40° (Fialho de Almeida diz quechegava aos 50°, estava sujeito a insolações e, se assearas eram próximas de zonas pantanosas, ondeos mosquitos atacavam em enxames, e bebendomuitas vezes água de charcos, onde bebiam cães eburros e os porcos chafurdavam, não estavam livresde contrair doenças, como as febres quartãs quesegundo Brito Camacho, eram frequentes e só securavam com sulfato de quinino ou sulfato inglês. DizJosé da Silva Picão que era importante a percentagemde doentes “ ratinhos” nos hospitais alentejanos, ondenem todos se curavam.

Alguns “ratinhos”, que eram contratados para a ceifada cevada, iam mais cedo. Parece que não era tarefafácil, porque às vezes, a cevada era muito curta eobrigava o ceifeiro a andar numa posição muitoincómoda. Falaram-me de um padre já velhote que,no confessionário, quando lhe aparecia um penitenteainda novo, lhe perguntava: “Já foste à ceifa aoAlentejo? Já ceifaste cevada janeirinha de cabeça parabaixo?” Se a resposta era afirmativa, dizia-lhe: “Vaiem paz, que todos os teus pecados já te estãoperdoados...”

Os que iam para a ceifa do trigo partiam em meadosde Maio; partiam cheios de entusiasmo os garotosque iam pela primeira vez e ignoravam o que osesperava. Era receio quase medo o que sentiam osque já lá tinham estado, mas que escondiam dosoutros para que não os julgassem fracos ou medricas.Para quem ficava, a partida dos “ratinhos” era sempreuma ocasião de tristeza, lágrimas, prelecção das mãesaos garotos, das esposas e namoradas aos adultos.Iam a pé, alguns com a bagagem em burros, mas a

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maioria levava-a às costas, nalguns casosacompanhados pelas mulheres que levavam parte dacarga à cabeça, até ao Tejo, à barca da Amieira,principalmente. Chegados aí, elas voltavam para casae eles, passado o rio, continuavam a pé, se a herdadeonde iam ceifar não era muito longe, ou tomavam ocomboio no caso contrário. De todos os lados surgiam“ratinhos”, em grupos que iam engrossando, formando“legiões” de muitas centenas que depois se iamseparando novamente conforme se aproximassem dassearas que iriam ceifar. Fialho de Almeida, que nãotinha nenhuma simpatia pelos beirões, escreveu:“...mais ou menos todos os temos visto descer emrécuas para os trabalhos agrícolas do Alentejo (...) ouvir das ceifas de Espanha...”

À chegada ao lugar do trabalho, descansavam doisou três dias, alimentando-se do que tinham levado,não só para se recomporem da maçada da viagem,mas para se organizar o trabalho. Eu imagino o estadoem que chegariam os garotos que tivessem feito todoo percurso a pé!

A faina começava antes do romper do dia,formando-se a “camarada” ou corte, à ordem domanajeiro, com os adultos devidamente equipados defoice em punho e capitaneados pelo “cabeceira” queocupava a ponta direita e substituía o manajeiro quandoeste tinha de se ausentar. A ponta esquerda tambémera ocupada por um ceifeiro de confiança que tinha aobrigação de auxiliar o ponta direita na orientação dosceifeiros. Ganhavam como os outros, recebendoapenas, no fim da safra, uma gorgeta do lavrador.

Para os jovens “ratinhos” era o seu “baptismo” deceifa, embora ainda não ceifassem... O seu trabalhoera a “atada’, isto é, tinham de reunir em molhos aspaveias que os ceifeiros deixavam no restolho, atrásdo corte. Com o joelho em terra, atavam as paveiasreunidas, com vários colmos de trigo unidos e torcidosjunto às espigas, ou com junça, correias de trovisco,etc., sempre numa corrida para não se atrasarem.Muitos deles mal podiam com os molhos que faziam,mas mostravam-se diligentes e lestos, talvez porreceio de censura ou de castigo. Esse trabalho erafiscalizado pelo guarda da herdade para evitar que osgarotos aldrabassem o serviço, por inexperiência oupela pressa que lhes impunham os superiores e osparentes. Quando alguns molhos, mal atados, sedesfaziam o guarda ralhava-lhes e queixava-se aomanajeiro que, por sua vez, também se zangava comos garotos. O guarda, às vezes, queixava-se dos“ratinhos” ao lavrador, falando-lhe da pouca idade ecapacidade dos atadores que eles traziam. O patrãofurioso, ameaçava de, no ano seguinte não os aceitar:“...para o ano, nem um só desses fedelhos ranhosos...as mães que os desmamem lá na Beira... Nada queeu pago-lhes como homens e como homens trato...”E era verdade: o lavrador pagava a todos os “ratinhos”a mesma quantia e eram os seus próprios

conterrâneos, ceifeiros e manajeiro, com a anuênciados familiares, que os exploravam ao fazer as contas,como veremos adiante.

O que os patrões não queriam, principalmente, eraque a percentagem de garotos fosse muito elevadaem relação ao número de ceifeiros. José da Silva Picãodiz a este respeito, que os manajeiros “arranjavamcontradanças de pessoal” conseguindo que os garotosescapassem como homens, para o beneficiarem aele e aos ceifeiros adultos. Uma “exploração vil, queos pais dos garotos consentiam, por irem feitos nojogo...”

Durante toda a temporada da ceifa, os “ratinhos”que também trabalhavam ao domingo, sódescansavam no dia de Corpo de Deus, se aconteciajá lá estarem, e no dia de S. João que, em anos atrás,era dia santo de guarda. Eram os únicos dias em quese lavavam e escreviam à família.

A idade de ser “ratinho”! Essa idade terrível começavana infância e continuava na maturidade enquanto ohomem se sentisse com forças para ceifar ou, ao ser“joeirado”, sofresse a humilhação de receber comoum garoto.

Ao nascer do sol, já com algumas horas de trabalhono corpo, a “cabeceira” interrompia a ceifa, tirava ochapéu e exclamava em voz alta: “Bendito e louvadoseja o S.S.mo Sacramento! Todos os ceifeiros oimitavam e, pondo a foice ao ombro, rezavam as suasorações da manhã. Os garotos também rezavam, masnão interrompiam a “atada” para não se atrasarem.Acabada a reza, comiam o desejum - pão com queijoque tinham guardado, porque o patrão só dava trêsrefeições. Voltavam ao trabalho até às 7 ou 8 horasque era a hora do almoço. Este constava de sopas dealho, com sal e uma colher de azeite mal cheia porcada pessoa. Ao referir-se a essas sopas, os “ratinhos”diziam:

“Sopas de larum-tum-tumÁgua e salE azeite nenhum.....Logo a seguir à fraca refeição, voltavam a ceifar e a

atar até ao meio dia - hora de jantar em que já podiammatar a fome. (Referindo-se à alimentação dos“ratinhos” no Alentejo, um velhote que conheci nasForneas e que foi 40 anos à ceifa, dizia que emEspanha era bem diferente: “era sempre boda”.)

O jantar vinha cozinhado do monte, trazido pelo“tardão” ou “manteiro” (que não era “ratinho”) em“asadas” de cobre brilhando ao sol, dispostas nascangalhas de uma cavalgadura que ele montava. Aoavistá-lo, cada um fazia o seu comentário, mas sólargavam o trabalho quando o manajeiro anunciava ojantar. Este compunha-se, invariavelmente, de “olha”de grãos de bico adubada com toucinho, a “bóia” ,excepto às sextas e sábados que era temperada comazeite. Nestes dois dias, a “bóia” era substituída pormetade de um queijo. Ao domingo, além do toucinho,

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também havia morcela.Era o manajeiro que vasava a “olha” para dentro de

cada barranhão (alguidar de lata, individual), onde osceifeiros migavam sopas de pão de trigo. Tambémera ele que dividia a “bóia” em tantas rações quantasas pessoas. Se havia por perto alguma azinheira, cadaum com seu alguidar na mão, dirigia-se para a sombra;caso contrário, comiam ao sol, sentados no restolhoou com um joelho em terra. Entretanto, tiravam a colherdo chapéu mas só começavam a comer quando omanajeiro dizia em voz alta:” Com Jesus!”. Comendoao sol, comida quente, o suor escorria-lhes pelo corpoem torrentes.

Todos os dias, o jantar era de grãos de bico! Alguns,que foram “ratinhos”, ainda hoje não são capazes doscomer, de tal modo ficaram enjoados.. Mas o pão detrigo ... podemos dizer, sem receio de errar, foi a melhorcompensação que esta gente, que só comia broa (ecenteio pelas festas), teve nos trigais do Alentejo.Ainda hoje, que já não comem pão de milho, aorecordar as refeições da ceifa, comentam: “Que ricopão!”.

Depois do jantar, dormiam a sesta, procurando, dequalquer modo proteger-se dos raios de fogo que,segundo Fialho de Almeida, atingia a temperatura dasprimeiras 20 léguas de areia do Sahara. O repousoera de uma hora ou hora e meia, em que os ceifeirosdormiam um pouco logo acordados pelo manajeirocom o grito de “Ala arriba!”. Enquanto os homensdormiam os garotos continuavam a atar, depois deterem esfregado com palha do restolho o barranhãode cada ceifeiro até os deixarem a brilhar.

O trabalho tornava-se um inferno a essa hora, sósuportado pelo estímulo do dinheiro. A sede eraabrasadora:os homens bebiam com avidez, comgrandes goladas, a água, nem sempre fresca nem deboa qualidade que o “tardão” lhes vinha a trazer.

Florbela Espanca, poetisa alentejana, sabia comoera a planície, no tempo das searas sazonadas.

“Horas mortas ...Curvada aos pés do MonteA planície é um brasido ... e, torturadas,As árvores sangrentas, revoltadas,Gritavam a Deus bênção duma fonte!”Como as árvores, às vezes tão distantes da seara,

no brasido da planície, torturados, os “ratinhos “tambémpediam a bênção de uma fonte... de água fresca...

À tarde, meia hora antes do sol-posto, comiam amerenda que era apenas o tradicional gaspacho (atécostumavam dizer:”vamos gaspachar”) e algumasazeitonas como conduto. Descansavam apenas otempo para comer e ler algumas cartas dos familiaresdistantes, enquanto os garotos iam dar de beber aosburros. Entretanto, o sol ia-se escondendo como umaenorme bola vermelha e os ceifeiros continuavam asua labuta, um pouco menos dolorosa, porque já corriauma agradável brisa que lhes refrescava os corpos.

Eles ouviam, ao longe, os relógios das torres a dar

as horas, às vezes 10 horas da noite! Mesmo quefizessem ver ao manajeiro que já era tarde demais,ele repreendia-os com azedume, e só os mandavalargar já noite cerrada, dizendo, como era habitual:“Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!.

Ao largarem a foice, rezavam as orações da noite,estendiam a “copa” no restolho e deitavam-se emcima: eram as suas camas, onde iriam repousar poucotempo porque, na madrugada seguinte, já teriam derecomeçar. Poderemos dedicar-lhes este poema deAntónio Salvado:

“No pequeno intervalo entre a noite e o diao saberem que ‘aí’ estão é o seu único dom...

Respiram pelas horas consumidas, refazendoum novo tempo entre o silêncio e a acção...E o seu perfil limitado é feito de alguma fé ...E a sua existência aberta é feita de alguma

esperança.”

No caso dos “ratinhos” é a fé que os leva a dizerque todo o sofrimento é “a vontade de Deus” e aesperança é não só que o tempo passe depressa paravoltarem para junto dos seus, com aquela miséria demesada, que para eles era uma pequena fortuna, masainda a esperança de que “um dia” - não sabiamquando nem como - a sua vida havia de melhorar.

Acabada a tortura da ceifa, vinha a euforia: algunsatiravam as foices ao ar, cantavam e dançavam comose já estivessem esquecido tanto sofrimento. Osmanajeiros recebiam dos lavradores as importânciasdas respectivas empreitadas (com as costumadasgorgetas: às vezes um presente de queijos e a vendabarata de algum “burranco reles...”)

De posse do dinheiro, o manajeiro mandava reuniros ceifeiros, longe dos garotos para que não ouvissemo que se ia passar: estendiam uma manta no chão e,aí, o manajeiro colocava, em montículos, a quantiaque havia recebido do lavrador respeitante ao númerode homens (incluídos os garotos) e procedia-se à“julgação” ou “joeiração”, que consistia em tirar decada quinhão destinado a cada garoto, metade, doisterços, três quartos ou mais. Se achavam que algumhomem era inferior aos outros no trabalho, tambémele sofria desfalque no seu quinhão. A soma dessedinheiro subtraído aos quinhões dos “joeirados” eradepois dividida, em partes iguais, pelos adultos que“saíram por inteiro”. Muitas vezes, estas operaçõesprovocavam contendas bem azedas porque omanajeiro e alguns ceifeiros procuravam, ao máximoexplorar os garotos, achando alguns que, até um quintojá era demais. Como é evidente, “o direito da forçaprevalece sobre a força do direito” e os garotos vinhamde lá, a maior parte das vezes, com uma ninharia.Alguns ceifeiros chegavam a enganá-los do seguintemodo: “ Vocês podem receber «por inteiro», mas têm

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de pagar a «patente» que era sempre uma quantiaavultada a entrar para o monte dos adultos. Criançassem maldade nem astúcia, só pelo prazer de ganhar«por inteiro» aceitavam muito contentes e, quandochegavam à terra, atiravam um foguete por terematingido aquela honra.

O manajeiro recebia ainda a “manajaria”, quantiaque, segundo o contrato, era retirada do monte decada ceifeiro, incluindo os garotos.

No dia imediato ao das contas, efectuava-se a partidapara a Beira, nos mesmos termos em que tinhamchegado, apenas com a diferença de que levavam maisburros...

Nas localidades de que eram naturais, esperavam-nos com grande ansiedade, porque a sua ausênciatinha causado grandes modificações no ritmo normaldos seus costumes. Durante gerações, a ceifa foi umacontecimento importante nestas povoações. Apesardos bailes domingueiros se continuassem a fazer naeira, não tinham a alegria habitual porque faltavammuitos rapazes. As mulheres casadas e as noivas,que tinham os seus homens no Alentejo, não dançavam“porque não parecia bem”. Então os cantadores, quetinham ficado, dedicava-lhes cantigas que, por vezes,as faziam chorar.

“O caminho do AlentejoTodo o ano é seguido:Os homens com as passadasAs mulheres com o sentido.

Faz calor que abrasa o mundoSenhor, manda a fresquidão,Que anda o meu amor na ceifaFaltado de compreensão.

Eu venho do AlentejoEnfadado do caminhoJá por aqui não há quem diga:- Assenta-te um poucochinho.”

Até as datas das festas religiosas mudaram,celebrando-se, no dia próprio do santo, apenas amissa assinalada no calendário cristão. A festa,propriamente dita, com a procissão e a parte profanasó se realizava mais tarde, depois da chegada dos

“ratinhos”. Nas freguesias do concelho de Proença-a-Nova, a festa do Sagrado Coração de Jesus, quedeveria realizar-se na 6ª feira a seguir à festa do Corpode Deus, pela ausência de tantos homens ocupadosna ceifa, foi transferida para as Têmporas do Outono,aproveitando-se para agradecer as graças pedidas nasTêmporas da Primavera. Na aldeia do Padrão, cujoorago é S. João Baptista, festejado pela Igreja em 24de Junho, ainda hoje a grande festa tem lugar na últimasemana de Agosto.

Os “ratinhos” foram muito importantes para aprodução de trigo no país - escravos do século XX!Em 1957, ainda foram ao Alentejo (mas de autocarro)150 ceifeiros do concelho de Proença-a-Nova.

A idade de ser ratinho acabou! A classe extinguiu-senos anos 60, substituída pelas máquinas.

Notas

(1) No Alentejo costumavam chamar “cope” ao fato.

Bibliografia

Almeida, Fialho de, Os Gatos e Separata Ceifeiros.Livraria Clássica Edidora, Porto, s/d.

Camacho, M. Brito, Memórias e NarrativasAlentejanas. Prefaciadas e seleccionadas por ÓscarLopes, Colecção Textos esquecidos. GuimarãesEditores. Lda. Lisboa, 1988.

Espanca. Florbela, Sonetos, Livraria Bertrand. VendaNova - Amadora. 1978.

Picão, José da Silva, Através das Campas,Publicações D. Quixote. Colecção Portugal de Perto,Lisboa. 1983.

Salvado, António, Antologia, Tip. Jornal do Fundão.1985.

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O CONCELHO DE IDANHA-A-NOVA EM MEADOS DO SÉCULO XXDados para o Estudo da Vida Quotidiana na Raia Centro

A IDADE DO QUOTIDIANO

por António Maria Romeiro Carvalho*

1. As Fontes Escritas Utilizadas

As Fontes utilizadas foram o Livro do Posto deDespiolhagem e Desinfecção, de Penha Garcia,Monfortinho, Salvaterra do Extremo e São Miguel deAcha, 1941. Este Livro encontra-se no arquivo daMisericórdia de Idanha-a-Nova e não conhecemosqualquer outro nos Arquivos Paroquiais, das Juntasde Freguesia ou no Arquivo da Câmara Municipal deIdanha-a-Nova.

2. Composição do Lar

Existe vulgarizada a ideia que, no tempo dos nossospais e avós, as famílias eram muito numerosas: pai,mãe e cinco, seis, sete, dez ou mais filhos. Esta ideianão corresponde à verdade. O mais frequente são oslares com três membros - 22,5%. Os laresconstituídos por dois a cinco membros, isto é, comnenhum até três filhos, são 80% do total dos lares,enquanto 6,5% têm um só elemento. Com seis oumais membros, isto é, com quatro ou mais filhos, só22% dos lares.

É necessário imenso cuidado nas generalizações,principalmente quando surgem de uma análise senti-mental. A admiração quase religiosa tida para comaqueles pais, principalmente as mães, que criaramuma dezena de filhos e estes vieram a afirmar-se navida contra, muitas vezes, os dois ou o filho único dasfamílias mais ricas da aldeia, pode conduzir ageneralizações não correctas.

Contudo, a outra face da verdade é que a Fonte sórefere os moradores, os que estavam em casa,esquecendo os possíveis emigrantes. Mas, mais doque este facto, note-se que sempre são 22%, a quintaparte dos lares da aldeia que têm quatro ou mais filhos.Um número suficientemente grande para se fazernotado e permanecer na retina da memória individuale colectiva.

3. Natalidade e Mortalidade

A Fonte em estudo só nos fala dos vivos. Nada referedos mortos. Mas uma pesquisa no local conduz deimediato à informação de que rara era a família a quemnão morrera um ou dois filhos pequenos. Em alturasde convergência de vários males - más colheitas,climas mais quentes, epidemias - aconteciamautênticas mortandades. Como dizem algumasmulheres, «já nem o sino tocava, tantas eram asmortes. Havia mulheres que nem despiam o luto: senão era familiar era vizinho ou amigo».

Doenças não faltavam e a ausência de médicos emedicamentos, ausências estas agravadas pela faltade higiene e por uma má alimentação, doenças comoa varíola, sarna, sesões, tifo ou doenças de peleconduziam fatalmente ao cemitério.

A uma forte natalidade corresponde uma igualmenteforte mortalidade, dando razão a Cipolla, para 1950:com as taxas de 24,4 /1000 (natalidade) e 12,2/1000(mortalidade), Portugal é o país com as mais elevadastaxas de entre um conjunto de países europeusconstituído por Espanha, França, Inglaterra, Grécia,Alemanha e Itália(1).

O Concelho de Idanha-a-Nova, pelo menos atémeados do século XX, possui uma demografia tipo deAntigo Regime: elevada natalidade e elevadamortalidade com cíclicos saldos negativos e rápidasrecuperações.

Tentámos verificar o intervalo intergenésico, a fimde se analisar a fertilidade, mas não é possívelqualquer conclusão. Os dados disponíveis são poucose, principalmente, a Fonte não informa quantos filhosteve o casal, se algum morreu e quando tal aconteceu.

4. Mortalidade Infantil

A taxa de mortalidade é enorme, como atrás ficoudito. Para ela contribui de forma esmagadora a

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mortalidade infantil, fornecendo quase metade dosóbitos. Também por esta razão, permanece namemória individual e colectiva a alta fertilidade dosnossos avós(2). As causas, bem como os ambientesde nascimento e crescimento, são em tudosemelhantes às dos séculos anteriores.

Problemas derivados do parto, da amamentação,do trabalho árduo das mães, das águas, dos frutos eda alimentação do bébé são uma permanência.Sarampo e desidratação são doenças quefrequentemente matam.

A todos estes problemas de mortalidade infantiltípicos de Antigo Regime, dever-se-á juntar um novo:a mudança na relação família-criança. No centro destarelação é agora colocado o sentimento. Este factocriou, estamos em crer, graves problemas de índolepsicológica a todos os membros da família ecertamente a toda a aldeia. Mulheres de lutocarregado desde cedo e para toda a vida, em todauma região (e um país), um ambiente de tristeza, deredução de energias, de introversão e de maiorfrequência dos ofícios religiosos, nomeadamente osmais macabros, os relacionados com o culto dosmortos. Eis um tema para um estudo aprofundado: opeso do negro das mães e das viúvas no Social daaldeia portuguesa. Um estudo ainda não feito.

5. Vestuário. O Lenço e o Xaile

O vestuário é pouco e praticamente reduzido a duaspeças de cada elemento. São roupas femininas: saiote,saia, corpete, blusa, camisa e o lenço, dobrado emtrês e atado pelo cimo da cabeça, ao queixo ou sabe-se lá... São roupas masculinas: calças, casaco,camisa, ceroulas, colete e chapéu. As criançasusavam um macaco de perna curta e sem mangas,com abertura atrás e à frente para que as necessidadesfisiológicas fossem feitas sem problemas e commenos trabalho para as mães. Isto, quando nãoandavam à «pai Adão».

Calçado? O que traziam à nascença. Quandochegavam a uma idade mais adulta, quando «já pareciamal» e o bolso o permitia, o sapateiro fazia uns pesadossapatos, botas ou tamancos a partir de um dos doisou três moldes que a sua oficina possuía.

Mas voltemos ao vestuário feminino, porque a modaé mulher. E voltemos ao lenço, a peça de vestuárioque, segundo cremos, era a mais significante einsinuante. No trabalho e na festa, na rua e mesmodentro de casa, o lenço era sempre usado pela mulher.Dobrado em três pontas e atado. No modo de atar eno local onde era atado, um significado; lenço maiscaído sobre a testa até ao lenço totalmente caído sobreo pescoço, isto para além da cor e do desenhodecorativo, muitos outros significados: solteira oucasada, tímida ou extrovertida, séria ou brincalhona...

O xaile é a peça da mulher-mãe. Para além de um

significado decorativo, (mais visível na mantilha das«senhoras»), o xaile é o quente para o filhinho e apeça que, não só pela sua resistência, melhor passada mãe (avó) para a filha (mãe). O xaile é negro e, naviúva, tudo tapa: o frio e a tristeza.

6. Habitação

A grande maioria das casas não excede a superfíciede 30 m2 e os 4 metros de altura. Possui de um aquatro compartimentos, divisões feitas, na melhor dashipóteses de paredes-«taipa». Possui nenhuma ouuma só janela. Casas com duas janelas não chegama 20% do total.

A casa dominante tem um só piso e uma só portapara o exterior. A pavimentação é de soalho, para o 1°andar e térrea, o caso do Ladoeiro (e possivelmentede outras freguesias) é interessante: o chão das casasera bosteado, isto é, dilui-se o excremento de vaca(«bosta santa») em água e vassoura-se o chão.ficando este brilhante como o ouro e bem cheiroso.Na Páscoa, época da limpeza geral da casa, do corpo,da alma e da aldeia, ia o padre «dar as Boas Festas»a todos os lares e era um regalo este cheiro a lavado.

Regra geral, só há uma cama em casa: é a camado casal. Às vezes, há uma também para a filha, filhasou filhos, como a sardinha em lata, enquantopequenos: uns com os pés para a cabeceira, outroscom eles para o fim da cama. Quando granditos, vãoos filhos para o palheiro. Despem-se e metem-se nusna palha, que aquece e enchuga. Embora poucodizendo, a média, só conhecemos para Penha Garcia,é de uma cama para nove pessoas.

Muitas casas têm quintal, como em Penha Garcia.Mas a maioria, noutras freguesias, não o tem, comoo demonstra São Miguel de Acha. Só algumas casas-20%-têm estrumeira. Em Penha Garcia, a grandemaioria das casas -84%- tem estábulo («loja») eanimais em casa, principalmente galinhas. Tambémoutros animais, como suínos, vacas e jumentoscoabitam vulgarmente no Concelho.

7. Higiene

A Fonte coloca duas perguntas aos inquiridos acercada higiene: se há hábitos de higiene em casa e setêm a casa limpa. Tanto em Penha Garcia como emSão Miguel de Acha, as casas apresentam-se limpas,na quase totalidade dos casos -95%. Hábitos dehigiene não existem em Penha Garcia -95%-, mastem-nos São Miguel de Acha -75%.

Estranho facto este fornecido pela Fonte quando sesabe que, mesmo hoje, não estão generalizados oshábitos de higiene na população rural portuguesa.Cremos haver aqui uma diferença acentuada deinquiridor para inquiridor quanto à noção do que eramhábitos de higiene. Não era hábito lavar as mãos antes

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de comer, ou mesmo tomar banho mais que uma vezpor ano. Era hábito dormir com a roupa do dia e comela iniciar outro dia de trabalho. Não havia retretes oucasas de banho. Não havia higiene dentária, salvo oalicate do barbeiro. Cuspir e escarrar para o chão deterra batida ou de pedra de ferro, onde circulam cãesvadios, era hábito ainda hoje conservado.

Na rua se faziam despejos e lançavam penicadas.isto é, feses, urinas e águas sujas. Todas as ruastinham lixo e muitas lixeiras. Na parte baixa dapovoação, geralmente junto a um curso de água,normalmente até seco no Verão, existe a maior lixeirada aldeia e o principal local de recepção de dejectosindividuais e colectivos, um local de pastagem de cães,moscas e doenças. Só uma boa invernada limpavaestas lixeiras. Mais limpas, porém, seriam ascapoeiras das galinhas que habitavam no vão dasescadas ou do balcão e cujo estrume era ouro paraquatro pés de tomate e um metro quadrado de feijãode embarrar plantados na horta.

No respeitante a todas as donas de casa terem acasa limpa, nada nos custa a acreditar nos númerosapresentados: qual a mulher que conseguiria resistiràs bocas das vizinhas?

8. Alimentação: «Encha-se o Tambor, seja doque for»

A alimentação é má, já o dissemos. Essencialmentevegetal e primordialmente pão. O pão era o centro e omotivo primeiro do trabalho, para além de ser um bomdefinidor do estatuto social. Pão de trigo ou de centeio,conforme as posses e a produção cerealífera dapovoação. Por exemplo, come-se quase só pão detrigo no Rosmaninhal e quase só pão de centeio noLadoeiro. Isto, claro, em épocas normais pois que,em anos de crise, não existe regra e come-se atépão de farelo se se o apanha.

A riqueza da aldeia é medida pela produção de trigo.O «pãozinho de Deus» é deificado: é pecado não ocolocar sempre de costas no cesto, ou não o beijarquando se apanha do chão. A similitude com o pãoCorpo de Cristo é total e, no essencial, indiferenciável.

A maioria da população come caldo: uma sopa devegetais temperada com sal e um pedaço de toucinhoou farinheira. Conforme a posse da família e conformea povoação, entrava o azeite no tempero. Caldo logode manhã - almoço, e caldo à noite - ceia, com umpedaço de toucinho, farinheira, um terço de sardinha,ou nada. Indo trabalhar, levava-se a merenda, dondese comia o jantar e a merenda: pão, azeitonas,azeitonas e pão com um naco de toucinho ou enchido.Tudo isto depende da riqueza familiar, do dia e daépoca. Domingos, festas ou dias santos e épocas deceifa tinham dieta melhorada.

Nestes dias, havia carne do talho ou da salgadeira,mas quase sempre e só carne de porco. Fartura de

carne só mesmo de festa em festa. Vulgarmente, nemmesmo se come a cabrita, a ovelha ou o porco quese criou. São o mealheiro do lar. Um almoçodomingueiro feito de sopa de feijão vermelho e, porsegundo prato, feijão vermelho cozido e regado comazeite é manjar do Olimpo. O feijão grande é umararidade no Concelho de Idanha-a-Nova e o principalbem de troca com a olaria idanhense Um copo devinho feito das uvas dadas por Deus e quatro pés devinha ou o copo posteriormente bebido na tabernacompleta a refeição de Domingos e festas.

Na dieta alimentar do Concelho têm certaimportância os alimentos silvestres. São cogumelosou tortulhos, agriões, rabaças, criadilhas, amoras,bolotas de azinheira, leitugas e baldregas. Carne decaça é privilégio de uns poucos que têm arma ou pos-ses para adquirir caça aos caçadores da aldeia.

O peixe é a sardinha ou o bacalhau. Raros e caros.Peixe do rio, igualmente raro. Aliás, «peixe não puxacarroça».

9. Idades

A população do Concelho de Idanha-a-Nova é joveme situa-se na faixa etária da energia e da produtividade.Noventa e um por cento dos recenseados, em 1944,situa-se na faixa etária mais activa: 20-64 anos. Cercade 20% da população andaria entre os 20 e os 45anos, enquanto 15% se situaria entre os 46 e os 65.Não começou ainda a sangria da emigração para aEuropa e para o litoral. Existe ainda o domínio doPrimário e da ruralidade, como se pode vislumbrar noponto dez.

10. Economia. Profissões

Através do Recenseamento Eleitoral de 1944,observa-se que a economia assenta no sector Primário,já que 67% dos recenseados trabalha na agricultura(3).Os sectores Secundário e Terciário possuem númerossemelhantes entre si, 14% e 19%, respectivamente.

Se se ultrapassar a diferente designação, saber-se-á que os jornaleiros constituem 68% do sectorPrimário da economia do Concelho e 46% do totaldos recenseados. É claro que há neste grupo socialvários matizes. Do que nada possui para além daroupa que lhe cobre o corpo e a sua imensa prole, aoque possui 250 m2 de horta, uma cabra, um jumentoe um casinha, vai toda uma pleiade de variedades.Haverá mesmo aquele jornaleiro que possui um bompedaço de terra e até meia dúzia de cabras e ovelhasque ocupam a mulher e os filhos jovens e ele só fazalguns meses à jorna. Em todos, de igual, o trabalhodiário por conta de outrem a dominar as suas vidas eos orçamentos familiares. Uma prova clara dopredomínio do trabalho assalariado nos camposraianos e mesmo a sua proletarização.

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Se entendermos lavrador como o que trabalhaexclusivamente para si e nas suas terras (ouarrendadas), o pequeno número destes lavradoresradicalizará a sociedade agrícola-rural em dois grupos:proprietários e jornaleiros. No Rosmaninhal, Medelime Idanha-a-Velha, o sector Primário só temproprietários e jornaleiros. Em São Miguel de Acha,apenas um grupo de 29 pastores impede uma igualafirmação; contudo, aqui tudo parece indicar que estespastores são assalaridos e não donos.

Os assalariados agrícolas constituem um grupo, do

total dos recenseados, que vai desde o mínimo, queé 37% - Alcafozes e Oledo - até ao máximo, que é54% e pertence a Monsanto. Para além do predomíniodo sector Primário é pois visível a proletarização doConcelho a par da influência dos empregos nas forçasmilitarizadas - 5% do total dos recenseados.

Não há indústria no Concelho de Idanha-a-Nova,apenas oficinas. Não há operários, apenas artífices.Se concluirmos isto da análise do sector Secundário,o Terciário fala do predomínio das viúvas domésticas,

dos comerciantes e dos guardas republicanos eguardas fiscais, reformados ou em serviço.

11. Nota Final

De tudo o que ficou dito, poderá permanecer a ideiaque os nossos pais e avós viviam mal, pobremente,esfomeados, sem divertimentos, sem sorrisos, semvestuário e sem espaço. Enfim. tempos infelizes.

É vulgar tal pensar e afirmar, seja da parte deestudiosos, seja da parte dos avós, seja da parte dosnetos. Pensar que os nossos avós eram infelizesporque não tinham o que nós temos hoje - hiperscheios de tudo o que é bom, auto-estradas,discotecas...- é o mesmo que pensar que CristóvãoColombo era infeliz porque não tinha automóvel ounão viajava de Concorde. Não se olhe para esteuniverso com olhos de miserabilismo. Ao contrário,este viver deve encher-nos de espanto. Dando provasde uma secular e eficaz gestão do lar, conseguiramviver nestas limitações. Uma diferente gestão deriqueza, espaço e tempo hoje já (quase)incompreensíveis.

* Professor de História do Ensino Secundário.Investigador do EDS - Instituto para o Estudo eDivulgação Sociológica, UNL

Notas

1- C.M. Cipolla, História Económica da PopulaçãoMundial, p. 82

2 Dcf. António M.R. Carvalho, «População do Concelhode Idanha-a-Nova (1860-1910)», pp. 32-34

3 Portugal possui a maior percentagem de populaçãoactiva trabalhando na agricultura na Europa Ocidental, apar da Grécia que tem 48%. Dcf. C.M.Cipolla, Opos Cit.p. 29

12. Fontes e Bibliografia

Fontes InformantesO número de pessoas com quem falámos ao longo

de todos estes anos é de tal forma longo que se tornaimpossível aqui individualizar.

Fontes EscritasLivro do Posto de Despiolhagem e Desinfecção de

Penha Garcia, Monfortinho, Salvaterra da Extremo eSão Miguel de Acha, 1941

Recenseamento Eleitoral do Concelho de Idanha-a-Nova, 1944

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Bibliografia

CARVALHO, António Maria Romeiro, Introdução eExplosão do Capitalismo nos Campos de Idanha-a-Nova a partir da Memória dos Vivos, Dissertação deMestrado, U N.L.. 1993. pp. 143

Idem, «População do Concelho de Idanha-a-Nova(1860-1910)», Cadernos de Cultura, n° 5, CasteloBranco, 1992. pp. 32-34

CIPOLLA, Carlo M., História Económica daPopulação Mundial, Rio de Janeiro, Zahar Editores,1977, pp. 143

ESTEVES, Maria Helena Geraldes. «O Trajo Popu-lar». Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova, 1993, pp.13

NAZARETH, J. Manuel. O Envelhecimento daPopulação Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença,1979, pp. 239

ROMAO, Maria Edite Caldeira, «Alimentação».Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova. 1993. pp. 14.

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O FIO DE LÂQUESIS...NAS PALAVRAS DOS POETAS

por Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata*

“ ... a fraqueza dos meninos, a impetuosidade dosjovens, a gravidade da idade viril e a maturidade davelhice têm qualquer coisa de natural, que deve serrecolhida no seu tempo”.

Marco Túlio Cícero

Dizem que as fiandeiras da vida eram cruéis e nemos deuses podiam intervir no seu trabalho: Clotosegura a roca, presidindo ao nascimento do homem;Lâquesis desenrola o fio, fazendo girar o fuso e Átroposcorta-o. É esta terceira Parca que mais afronta oshomens...

O ser humano, porém, aproveita o girar do fuso deLâquesis e assume o seu destino nesse durante, naesperança, sempre, dum longo fio desenrolado...Ninguém é poupado do corte de Atropos (e Parca, dolatim parcere - poupar...).

Se foram geradas por Zeus e Témis (que encarna ajustiça), outra genealogia as dá como filhas da Noite,filhas de Aqueronte...

Durante o desenrolar do fio se passam as Idadesdo homem. A ponta do começo tem a atracção doque é novo, com vigor de crescimento: a graciosidadeda infância, um cais sempre evocado pelos poetas:“Branco, branco e orvalhado, / o tempo das criançase dos álamos.” (Eugénio de Andrade, Da Memória,Coração do Dia); um tempo de olhar inviolado, tempode gritos das crianças que “exaustas fixam mais emais remoto / esse mar nunca mais atravessado.”(António Salvado, Infância, O Corpo do Coração); são“as lições da infância / desaprendidas na idademadura.” (Drummond de Andrade, Obra Poética, 2°vol.), ideia reiterada em

PEDAGOGIABrinca enquanto souberes!Tudo o que é bom e beloSe desaprende...A vida compra e vendeA perdição.Alheado e feliz,Brinca no mundo da imaginação,Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamenteComo um bicho!Fura os olhos do tempo,E à volta do seu pasmo alvarDe cabra-cega tonta,A saltar e a correr,DesafrontaO adulto que hás-de ser!

Miguel Torga (Coimbra, 16 de Março de 1960),Antologia Poética

Furar os olhos do tempo, porque é no tempo quetudo se volatiliza... ideia que Torga também guardanum verso doutro poema: “ Tempo - definição daangústia!”, uma angústia de que só se vaiprogressivamente tomando consciência à medida queLâquesis maneja o precioso fuso.

No entanto, quem não se lembra dos longos diasda meninice, que nunca mais acabavam, dotempo-para-tudo, do passar lento do tempo? Anovidade e descoberta da vida, das coisas da Natureza,das coisas dos homens. O olhar virgem e demoradosobre as coisas... Daí que o poeta seja comparadoàs crianças por nunca perder esse olhar especial.

A vida enche-se de maravilhamento que inunda aalma. (É evidente que falamos num plano genérico,sem referir o drama dos homens que nunca forammeninos, como diz Soeiro Pereira Gomes naintrodução do livro Esteiros, porque há crianças paraquem a vida se revela exigindo-lhes de imediato forçasde homens).

Depois vem o tempo do arrebatamento adolescente,(...)corpos recém-chegados dos ombros da noite,Vós, braços transparentes dos deuses, atravessaiscomo raios de sol o coração dos sonhos!(...)filhos trémulos de sóis, vossos lábios com gostode angústia,lábios totais, pássaros elásticos do calordourado dos beijos,povoais uma festa perfeita, a rápida festa absolutade viajantes suspensos sobre a Morte.Vós, os de risos esbanjando as flautas

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dos instantes,intermináveis irmãos das grandes coisas sem

sentido,concluindo os deuses inevitáveis do eterno!Victor Matos e Sã, Horizonte dos Dias.

com pujança de sonhos e de ideais no espanto dedescoberta do seu todo - corpo e alma - consciênciade identificação dum corpo que o fará completar aparticipação plena no mistério da vida.

Nos muros adolescentesapareciam na caliniciações sagradas,riscos, traços, curvas,sóis estreitos de Vénus- toda a geometria sujados alfabetos obscenos.

Sinais que nos guiavamde muro em muropara os lençóis de lama secretanas catacumbas.

José Gomes Ferreira, Obra PoéticaCompleta, 3º vol..

O adolescente torna-se crítico, agressivo peranteuma sociedade que não tem espaço para a realizaçãodos seus sonhos, culpabilizando os da sua espécie,os outros homens, que não a souberam construir àmedida da aproximação, pelo menos, dum ideal. Étempo de rebeldia, de alma inteira, amando com pleni-tude, sem entraves, recusando, com recusas radicais.

O tempo sempre a correr... e, num ápice, aresponsabilidade de ter crescido - a profissão, oemprego, o querer construir o seu mundo familiar. Nanossa sociedade começa cedo o travo do tempo quevai definindo a angústia da dificuldade do futuro, que ojovem vê com a desilusão antecipada de ter decompetir cada vez mais.

Vem a idade madura, a manifestação da pujançafísica e intelectual, a consciência da realidade, queem nada corresponde aos sonhos de adolescente. Oaspecto material começa a pesar, e tanto, em algunscasos, que se escamoteiam os prazeres da fruiçãoda vida por si própria. O prazer de viver, saboreando-olentamente. Todavia, o Tempo não perdoa: “Tudo écalmo e leve / como o teu olhar... / Uma ave breve /atravessa o ar... / (...) Já não sei quem sou. / Adoro-te, sabes? / No meu amor cabes / e... A ave? -Passou. (António Salvado, ANTOlogia).

Cada vez mais, a luta incessante - o homem, umSísifo, carregando continuadamente a pedra até aocimo do monte, para rebolar de novo e de novorecomeçar... Tremendo castigo dos deuses! Mas é aíque se assume a dignidade de ser homem: aceitaressa luta, não desanimando para não desmerecer -

destino na terra depois do Paraíso perdido, que Torgadefende dever procurar-se aqui e agora. Toda a suaobra o documenta. Eis um momento:

CANTILENA DA PEDRASem musa que me inspire,Canto como um pedreiroQue, de forma singela,Embala a sua pedra pela serra fora...Upa! que lá vai ela!Upa! que vai agora!

A pedra penitente que eu arrastoTem o tamanho de uma vida humana.E só nesta toada a movimento,Embora o salmo já me saia rouco.Upa! meu sofrimento!Upa! que falta pouco...

Miguel Torga (30 de Julho de 1968),Antologia Poética

O homem assume, por opção e liberdade, umcaminho que vai traçando. Nos desiludidos sonhos,ainda a esperança e a capacidade de edificar:

(...)No dentro da incerteza a construção se mostraedificadaenquanto adormecemos à beira do regato secoou bebemos na aridez dos sonhos destruídosa directriz traçada pela primeira alegria -quando os dedos aprendiam a tocar as coisassimples.as coisas ternas da infância, a refazerpequenos barcos azuis sulcando o marda esperança...

Pensar nos sons agudos dessa presença apagada.recolher na palma da mão os frutos do-já-ter-sido,é caminhar até ao impossível, clarificar a solidão...(...)

António Salvado, Recôndito(do livro homónimo)

À medida que Lâquesis vai desenrolando o fio davida, mais cada ser humano se agarra a ele num amorinesgotável. Viver é a certeza palpável, viver é dommisterioso que uma outra certeza perturba: a certezada morte, que faz despertar o homem absurdo, queainda ama a vida aspirada num hausto de sensações.Mas nessa idade madura, a força vital é a força daNatureza:

Senhor, deitou-se a meu ladoE cheirava a maçã como no diaEm que o primeiro pecadoFurava a terra e nascia.Era preciso lutar,

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Cuspir-lhe o corpo, que viE era como um pomar!...Senhor, eu então comi.Miguel Torga, Relato (Coimbra, 27 de Fevereiro de

1939), Ant. Poética

E os poetas são amantes da vida:

É o amor que me inspira.Amo a vida, esta bela prostituta.Esta mulher tão pura e dissolutaNo mesmo instante,Que não dá tréguas a nenhum amante.(...)

Miguel Torga, Ditirambo (Coimbra,25 /06/1958), Ant. Poét.

Por isso, o mesmo poeta reitera este amor no Mad-rigal dos cinquenta anos (18 de Julho de 1957,Coimbra):

Com as mesmas palavras do passado,Digo que te desejo, vida!E como um namoradoQue desmede a paixão, já desmedida,PrometoSer-te fiel sem esperança.Fiel à conscienteTemeridadeDe amar intensamenteSem mocidade...

No homem renasce continuamente aquele Ícaro quequeria chegar ao céu, mesmo com asas de cera, queo calor do sol iria derreter e precipitar no mar... O soldos sonhos queima, mas a tentativa é válida. E nohomem há sempre asas de Ícaro, substitutas de outrasasas já derretidas...

Mas o Tempo espreita cada minuto da sua espera:

ESPERAAguardo as minhas mãos, aguardoenfim a forma desejadana espera longa permitidae tão sonhada, tão sonhada.Quebro o meu ser no fogo em que ardo,em cinza eterna a minha vidase desfaz!... Que frio sustémno entanto a longínqua horapara que eu me perca no tempoque me parece haver lá fora?Ah! Tempo que o tempo retémsem permitir que chegue o Tempo!António Salvado, Recôndito.

É a crueldade do tempo sádica e masoquista emsimultâneo: faz sofrer pela agressão concreta do gosto

do efémero e provoca a dor de cada ser por ser opróprio culpado do sofrimento, quando constata,tardiamente, que foi abdicando e adiando. O adiadonunca mais é vivido com a força dum certo tempomarcado no fio de Lâquesis:

Constrói com as tuas mãos o dia de hojeque amanhã veloz o tempo não seráigual à força do momento agora...(...)

António Salvado,Difícil Passagem, p.51.

Uma contínua aprendizagem do homem seconcretiza no seu viver, uma aprendizagem tanto maisformativa, quanto mais ele tem consciência das suasquedas, quanto mais corajoso for, não desistindo daluta, afirmando-se com autenticidade. Porque viver éestar desperto e atento. “Quanto mais profundamentese dorme, mais estremunhado se acorda com arealidade. Ninguém vive indefinidamente entreparêntesis” (Miguel Torga, Diário XV, p.95).

O homem colhe da plenitude de ser e de se afirmarna pertinácia de não desistir nunca da vida. Porém...subtilmente, o corpo começa a dar o sinal dumaespécie de juro pago na totalidade da entrega:

VÉNUS ENVELHECIDAArrefeceu a cor dos teus cabelos.O tempo tudo apaga e desfigura...Que palha triga, sensual, madura,O loiro resplendor que rememoro!Chove ou sou eu que choroDesiludido?Como era quente o oiro da seara!Ah, deusa sem tiara,Mito desvanecido!

Miguel Torga (Miramar, 16 de Agostode 1963), Ant. Poét.,

numa angústia, mesmo Pesadelo, como diz Raúlde Andrade: “Coisa estranha como a cor / Arrancadaduma tela, / A alma absorta na dor / De não ter corpop’ra ela (Pontos de Vista - Poemas).

Aquela consciência de que Átropos está sempreatenta ao fio, para o cortar, torna-se incisiva eacutilante. Muitos homens apercebem-se sempre dasua sombra. Têm mais mérito na teimosia da sualuta. Porque é lógico a presença da morte gerar ohomem absurdo. Mas o coração e a alma têm a lógicada sua força: teimar na esperança de cada instante,poética da vida, no sussurro do carpe diem...

A sociedade, exigente de produção material à vista,estipulou que o homem tem uma terceira idade e tornounecessário reformar o homem. Estipulou-se a velhicecomo uma doença... “ Não há nenhuma doençachamada envelhecimento, como não há nenhuma

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chamada adolescência. A velhice é uma invenção dohomem” (Almerindo Lessa, Público Magazine, 22/08/1993).

Porém, a verdade é que a seguir a um período maisou menos longo de maturidade, há um processodesfavorável, de perda, constatado em todos oshomens, com maior ou menor relevo. Diego Diaz citaHenry de Montherland, que afirma: “Sempre se dizque a borboleta saiu de uma lagarta; no homem, é aborboleta que se converte em lagarta”.

A angústia instilada por Cronos torna-se cada vezmais pungente, porque há uma aproximação da morte- há a certeza da sombra de Átropos debruçada sobreo fio, atenta e agoirenta.

Sabemos que muitos jovens e homens em pleni-tude de vida são colhidos pela morte. Inesperada. Masagora é tempo de a pressentir. Só que muitos não seentregam a esse pressentimento, afrontando-o coma alegria do próprio viver: saborear, tocar, aspirar, vere ouvir... mesmo que tenha de se encostar o ouvidopara distinguir sussurros... um murmúrio de futuro,uma ressonância de passado cheio de vozes quepovoam a memória.

Se há momentos de desânimo, como

CILÍCIOSão tristes estes dias de velhice.O sol já não aquece,Nenhum sonho apetece,Os versos desfalecem ao nascer.Mas há não sei que sádico prazer,Que infernal sedução,Numa melancolia assim desamparada.É como ter razãoNuma causa perdida, mal julgada.

Miguel Torga (Coimbra, 11 de Novembrode 1982), Ant. Poét.,

há também sádico prazer, infernal sedução, que éa sedução da vida. É esta que faz a

PRESCRIÇÃODeixa passar as horasSem as contar.Alheia a cada instante,Vive, a viver a vida, a eternidade.Feliz é quem não sabeA própria idadeE em nenhum ano pode envelhecer.Dura encantada na realidade.Negar o tempo é o modo de o vencer.

Miguel Torga (Coimbra, 30 de Junhode 1983), Antologia Poética

Um estado de espírito se insere na mensagem dopoeta e é este estado uma condição da capacidadede amar - uma “sobrevivência da vida intelectual a

par da fragilidade somática”, como dizia Freud,seguido, na mesma ideia, por Almerindo Lessa: “aidade cronológica (...) não tem nada a ver com a idadebiológica, ninguém tem os anos do bilhete deidentidade”. Diz-nos Florbela Espanca (Pior Velhice,Sonetos):

Sou velha e triste. Nunca o alvorecerDum riso são andou na minha boca!Gritando que me acudam, em voz rouca,Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!(...)

E dizem que sou nova... A mocidadeEstará só, então, na nossa idade,Ou está em nós e em nosso peito mora?!

Tenho a pior velhice, a que é mais triste,Aquela onde nem sequer existeLembrança de ter sido nova... outrora...

Muitas estatísticas têm também demonstrado queos seres humanos com trabalho intelectualconseguem maior longevidade.

Este prolongamento da vida é procura contínua dohomem em elixires, como demanda de Graal, emtentativas de cientistas, como Sérgio Voronoff e osseus transplantes de glândulas de macacos, de quehavemos notícia de algum êxito, mas que hoje deixaa dúvida de ser germe do pesadelo SIDA - uma cargademasiado pesada para conseguir a juventude que aNatureza não quer preservar.

Nos nossos dedos tem corrido o fio de Lâquesis, ofio anónimo dum qualquer ser humano, conferindo asmedidas das Idades. Agora a tremura do fio quase nofim... Digo tremura, porque esta fase podeapresentar-se-nos triste, com um travor de solidão eamargura, numa época que deveria ser a da serenidadee a da paz, não a dum tempo em que se traduz avelha história dos filhos que levam o pai, o velho, paraa montanha, deixando-lhe somente uma manta parase cobrir no espaço da morte. Decerto viria breve como abandono e a solidão. Mas é esse espaço que vematé nós no correr dos dias: IDOSOS QUE NINGUÉMQUER ENTREGUES À SOLIDÃO (Jornal de Notícias,5 de Março de 1994); IDOSOS REJEITAM CENTRODE DIA (Diário de Notícias, 9/10/94), e crónicas,alertas daqueles que têm maior consciência damesma-condição-um-dia, como, por exemplo, MariaJudite de Carvalho:

“ Ei-los que esperam ao sol. Esperam o quê, quem?Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem,esquecidos de quem são, de quem foram - foram-nohá tanto tempo! - e com frio.

Desconhecem este mundo em que subsistem e queos ignora. Desconhecem palavras como gerontologia

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e reciclagem, inúteis, pesados aos filhos e mais aindaàs noras e aos genros. Pesos mortos que têm de seralimentados, vestidos, alojados, suportados. E háquem julgue que tem lugar no céu só porque osalimenta, os veste, os aloja, os suporta.(...) Esperamportanto ao sol, quando há sol. Se chove têm a paredeem frente, ou o écran em frente, ou ainda o transistorou um jornal lido, esquecido, lido de novo. Há quantotempo os reformou a vida? Sem ordenado por inteiro,naturalmente. Sem nenhum ordenado tantas vezes.Pô-los de parte, só isso. São os velhos, osimprestáveis. Uma espécie de disposables destemundo que cada vez venera menos os velhos”.

VELHOS, O Homem no Arame.

A última estrofe de O Guardador de Rebanhos(Alberto Caeiro, Fernando Pessoa) teima numajura de amor à vida, renovada em cada instante: “Étalvez o último dia da minha vida. / Saudei o Sollevantando a mão direita, / Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, / Fiz sinal de gostar de o ver antes: maisnada”.

São ainda os velhos da cidade de Lisboa, que podetraduzir outra cidade qualquer, que falam nas palavrasdo poeta Alexandre O’Neill:

Em suma: somos os velhos.cheios de cuspo e conselhos.velhos que ninguém aturaa não ser a literatura

e outros velhos. (Os novosafirmam-se por maus modoscom os velhos). Senectudeé tempo não é virtude...

Decorativos? Talvez...Mas por dentro “era uma vez...”(...)(Tomai lá do O’Neill)

Como em Velhos / 4, o poeta nos fala de Azeredo,representativo de muitos outros Azeredos, um outrosem nome - “Pouco a pouco arrumaram-no - é a vida!- / “num trabalho muito mais consentâneo / com assuas possibilidades actuais.” Que é o não-trabalho.

É este pôr de lado que transforma o homem-considerado-um-velho num marginalizado, sentindo osabor acre da inutilidade. Alguns (e sobretudo os quetiveram uma vida intelectual intensa, que neste transeos alimenta) sabem defender-se e protestar e ocuparo seu lugar na vida até ao fim. Constata-se aprodutividade e criatividade de grandes homens naconsiderada terceira idade: recordemos Sófocles,Platão, Cícero, Kant, Goethe, Cervantes, Verdi,Stravinsky, Miguel Ângelo, Ticiano, Goya, entre outros.Como diz Cícero, “os grandes empreendimentos não

se levam a cabo por meio da força ou da velocidadeou da agilidade do corpo, mas sim pela sabedoria,pela autoridade e pelos bons conselhos”.

Outros homens há: os que sentem a tortura de sesentir a mais, de serem desprezados e esquecidos,de apenas ouvirem palavra-grito: “veja o que está afazer!; Olhe que suja tudo!; Eu não aguento com estetrabalho!” e sei lá que mais...

Nos humanos Bichos de Torga, é um cão, Nero,que exprime a aflição de estar velho e às portas damorte: “Que para chegar à miséria presente, antestivesse morrido também. Ao menos, deixavasaudades. Assim, acabava de velhice, podre pordentro, a meter fastio a toda a gente. (...) Agora lianos olhos de todos o desejo de que partisse o maisdepressa possível (...)”.

Os homens consideram outros homens na terceiraidade, esquecendo que o tempo é cavalo louco quetambém os vai derrubar, esquecendo que esses queconsideram velhos poderiam ser socialmenteprodutivos (já que os seus negócios são semprenúmeros..) com actividades menos duradoiras (e aideia não é minha), proporcionando continuidade dasua integração e colhendo frutos do saber deexperiência feito e da autoridade decorrente. Mas oque acontece? No final da vida, o homem sente-sedespojo - da família, da sociedade, dos outroshomens. Um extremo de horror pode ler-se em O becoonde mora o rei Lear, de Eça de Queirós (Farsas,Prosas Bárbaras).

Alberoni diz que o reconhecimento está semprepresente na moral e esta não existe sem amor, nãolhe bastando a razão que a sustentava em Kant. Seos Centros de Dia e os Lares de Terceira Idadecumprem prestimosa e prestigiosa missão, quandoequipados, não com luxos materiais, mas com sereshumanos preparados e capazes de dar amor, são aindainsuficientes qualitativamente (para além dainsuficiência do seu número): nunca passarão dummeio, que terá de completar-se com a presençaassídua dos que povoaram o coração do homem velho:os familiares, os amigos, os que amou.

Um mundo perturbadoramente desumanizado nosenvolve: tentáculos dum polvo quotidiano, de corridas,de máquinas, de competição selvática. E o que épreciso é ter tempo para o amor. Furar os olhos dotempo (como diz Torga), se necessário. Mas tambémé preciso este necessário, que passa por umaeducação.

Nuno Grande dizia no Jornal de Notícias (6/03 /94)que “os povos que não respeitam os velhos destroema respectiva identidade, porque não reconhecem aprópria memória” e que “é imperativo voltar a colocaros idosos na cúpula da família portuguesa”. Um poucopor toda a Europa se debate este problema.

Sem pretender demagogia, refiro um texto dumposter da Multinova, divulgado há alguns anos:

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PENSAM... MAS NÃO DIZEMFelizes os que respeitam as minhas mãos

enrugadase os meus pés deformados.Felizes os que falam comigo, apesar dos meus

ouvidosjá não entenderem bem as suas palavras.Felizes os que compreendem que os meus olhoscomeçam a não ver e as minhas ideias a ficarem

baralhadas.Felizes os que, com um sorriso, perdem tempo a

conversar comigo.Felizes os que nunca me dizem: “É já a terceira vez

que me conta essa história”.Felizes os que me ajudam a lembrar coisas de

antigamente.Felizes os que dizem que gostam de mim e que

ainda presto para alguma coisa.Felizes aqueles que me ajudam a viver os últimos

dias da minha vida.Lâquesis cansou-se deste fio... Átropos impiedosa

corta. Os homens estremecem. É

ACONTECIMENTOPor entre as lágrimas desceuuma palavra amarga e aflita...

(Parece que um Homem morreu).

António Salvado (Antologia Poética).

*Professora Adjunta da Escola Superior de Educaçãode Castelo Branco

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de, Obra Poética.2º volume. - Lisboa: Publicações Europa-América, s/d.. Col. “Obras de Carlos Drummond de Andrade”.

ANDRADE, Eugénio, Coração do Dia / Mar deSetembro. - Porto: Editora Limiar, s/d.. Col. “Obra deEugénio de Andrade’ - 3.

ANDRADE, Raúl d’, Pontos de Vista - Poemas. -Fundão: Edição do autor, 1968.

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“AS IDADES DO HOMEM: IMUNDÍCIES E CONSPURCAÇÕES”

por Victor Saínha*

As doenças infecciosas e as epidemias têm sidomotivo de especulação desde os tempos maisremotos. Poucos fenómenos naturais podem ser tãoaterradores ou inexplicáveis.

Nos tempos antigos, a explicação mais vulgar paraas pestilências - que, em boa verdade, o homem dehoje ainda tem uma certa relutância em abandonar -era a de que elas eram uma manifestação dodesagrado dos deuses ou, segundo uma fórmula maisdo nosso tempo, o castigo divino dos nossos pecados.Na Ilíada de Homero a epidemia que grassou entre asforças que cercavam Tróia foi atribuída à ira de Apolocontra Agamémnon. Mais recentemente em 1832 eaquando de uma epidemia de cólera na Irlanda, SamuelHopkins Adams relata-nos que a opinião, durantealgum tempo aceite, era a de que a cólera atacava ospecadores e os inúteis e todos aqueles que tinhamfeito mau uso das suas vidas.

Preparando esta comunicação, e ao pensar naquiloque seria comum a algumas doenças infecciosas,concluí que é efectivamente esta vertenteculpabitizante e pecaminosa: a Sida é (foi) claramenterelacionada com comportamentos de risco,nomeadamente da área da sexualidade. O mesmose passa com as Hepatites...

“Os flúidos sexuais são perigosos e potencialmentecontaminantes”...

A tuberculose sempre esteve associada noimaginário das pessoas, ao desregramento, à noite,ao excesso e não tenho dúvida que a ideiaprevalecente ainda hoje é a de que as pessoas “fizerampor isso e só têm o que merecem”...

Em relação à Sida e até há pouco tempo, a maioriados cidadãos, “os bons”, via na doença a confirmaçãodos seus preconceitos acerca dos aspectos moraise infamantes de uma doença tão diferente de todasas outras.

«Esta doença - dizia uma senhora americana afectahomens homossexuais, drogados, haitianos ehemofílicos e, graças a Deus, ainda não se propagouaos seres humanos. Se ela atacasse toda a genteseria uma crise terrível». E acrescentou: “ É Deusque pune os homossexuais”...

Um outro americano declarou esperar que oscientistas encontrassem depressa um tratamento

eficaz, para depois acrescentar, cinicamente, “masnão demasiado depressa”...

Parece que os cientistas lhe deram ouvidos... Comefeito há doenças que parecem ter acompanhadodesde sempre, como uma sombra negra, a vida sexualda humanidade. Encontram-se diversas descriçõesbíblicas, que não deixam margem para dúvidas quantoà existência de doenças ligadas à sexualidade jánesses tempos remotos, aventando alguns autores ahipótese de, por exemplo, a chamada “Peste de Moabpoder ter sido um surto epidémico de Sífilis ou atéeventualmente de Sida. o que nos parece uma hipotesefantasista. Segundo John Gwilt, vice-presidente deuma firma farmacêutica americana, a Sida ter-se-iapropagado na época de Moisés, como o comprovariaa descrição de uma epidemia do Livro dos Números.A Bíblia menciona, com efeito, uma terrível pestilênciaque atingiu mortalmente vários milhares de judeus porestes terem mantido relações carnais com mulheresmoabitas. O nome bíblico desta doença, maggepha,designa de maneira geral uma pestilência que matamuita gente mas é perfeitamente arbitrário identificá-la com a Sida.

Mas já que falámos na Bíblia, iria deter-me um poucona influência da cultura judaico-cristã sobre o conceitode pecado, de culpa e mesmo de imundície que aindahoje são associadas a algumas doenças infecciosas.

O Levítico, 3° livro da Bíblia, na sua parte 15 refere-seàs impurezas do homem e da mulher, às impurezasdos corrimentos e dos derramamentos seminaisprescrevendo rituais de purificação e sacrifício deanimais em holocausto para obter a absolvição.

O 2° livro de Samuel descreve o “affair” de David eBetsabé: “entretanto aconteceu que David,levantando-se da cama, pôs-se a passear pelo terraçodo seu palácio, e avistou dali uma mulher que sebanhava, a qual era muito formosa... Então Davidenviou emissários para que lha trouxessem. Ela veioe David dormiu com ela. Ora, a mulher, depois de sepurificar da sua imundície, foi para sua casa”.

Ter-se-á também David purificado?O livro dos Números, parte 95, descreve-nos como

Israel se estabeleceu em Sitim e, como o povo seentregou ali a excessos com as filhas de Moab... Osmortos, na sequência do flagelo então aparecido,

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pioram em n° de 24.000.Este flagelo é muito sugestivo de Sífilis epidémica

e, na civilização hebraica, estas doenças eramconsideradas “imundícies da carne”, fruto dadesobediência aos preceitos divinos necessitando deexpiação através de oferendas e holocaustos.

Assim a tradição judaico-cristã introduz o factormais determinante contra o desregramento dos cos-tumes, impondo um sentimento de culpabilidade.

Este sentimento era desconhecido noutrascivilizações, como a grega, onde a homossexualidadeera relativamente bem tolerada e, as referências àsdoenças transmitidas pelo sexo, aparecem emdiversos escritos de autores famosos como Platão,Aristóteles e Hipócrates. Nas escavações de Pompeia,foram encontrados preservativos feitos de bexiga ouintestinos de animais domésticos. Lembro que autilização do preservativo é incompatível, ainda hoje,com as orientações oficiais da Igreja Católica...

Em várias obras de medicina da China antiga,encontram-se descriçôes inconfundíveis de doençasligadas ao sexo.

Durante a Idade Média estas foram consideradas“doenças vergonhosas” castigo de Deus pela cedênciaàs tentações do “demónio da carne”. Inspiravam medoe motivavam especulações irracionais, fruto doobscurantismo cultural e religioso da época.

Muitas pessoas acabaram nas fogueiras daInquisição!

Mas falemos um pouco da Lepra. Conhecida desderemota antiguidade na Babilónia, Egipto, Israel, Índiae China, frequente na Europa, especialmente nasregiões orientais, a lepra conheceu “um extraordinárioincremento” nos séculos XII e XIII.

Segundo Tavares de Sousa, o ocidente Europeu viu-se a braços com epidemias “e consequência decontágio no Oriente das populações deslocadas pormotivo das Cruzadas”.

Horror, repulsa e um profundo sentimento devulnerabilidade tornaram a doença um símbolo deimpureza espiritual e carnal, que segundo Tavares deSousa “complicou singularmente o reconhecimentoda entidade nosológica específica, já de si difícil, e foia origem de inúmeros erros e de tremendas injustiças.”

Conscientes de se tratar de uma doença que sepropagava por contágio directo, pessoal, a leprainspirava atitudes extremas de segregação, umaespécie de “morte civil”, como lhe chamava Tavaresde Sousa, que incluía, entre outras formas desegregação, a obrigatoriedade dos doentes (ou tidoscomo tal!!!) usarem vestimentas identificadoras da suacondição de leprosos, a interdição de falar com outrossem estarem virados contra o vento, de entrar emigrejas e chegar-se a multidões.

Para assegurar completo ostracismo, encurralaramos lazarinos em leprosarias e gafarias, que diz Tavaresde Sousa “se contavam em milhares na Europa

Ocidental” ao tempo da Expansão.Igualmente graves foram as consequências da

intervenção eclesiástica no “diagnóstico” de casos delepra, cuja declaração carecia da sua apreciação atéfinais do século XIV, quando se começou a privilegiara opinião dos médicos e cirurgiões.

Aparentemente, eram frequentes os erros dediagnóstico, e muitos parecem ter sido os casos dedoentes (cuja enfermidade nada tinha a ver com obacilo de Ilassen) condenados a vadiar pelas florestas,pedindo esmola de terra em terra.

Por outro lado, o exército de lázaros que seacumulavam pelas estradas da Europa no Século XIII,representavam simultaneamente uma enorme edispersa bolsa de seres humanos debilitados pelafome, desarmados pela falta de higiene. Não admira,por isso, que os relatos e indícios estatísticos sugiramo desaparecimento progressivo da epidemia após adevastadora “peste de 1348”: estavam todos mortosou tão enfraquecidos que era mero preciosismo incluí-los nos censos populacionais. Tal como Tavares deSousa escreveu “infelizmente, declínio não significaextinção”.

Situação semelhante à vivida hoje com a Sida, foi ada eclosão da epidemia de Sífilis na Europa Ocidental,a partir dos finais do Século XV e Século XVI e queprovocou grande alarme nas populações, dado ocarácter particularmente agressivo, desfigurante emuitas vezes letal que assumia esta “nova” doença.Mas tal não impedia os soldados de continuarem aterem relações sexuais nos locais por ondepassavam, quer durante as guerras, quer depois dedesmobilizados. Não poupou nenhuma classe social,o próprio papa Júlio II parece ter sido atingido.Curiosamente era de bom tom, na sociedademasculina, já ter tido uma ou outra doença venérea,sinónimo de aventura clandestina e sucesso junto do“belo sexo”; exibia-se esse facto como se se tratassede cicatriz dum duelo bem sucedido. Mas a gabarolicedos “D. Juan” e “Casanovas” deu lugar a um prudentesilêncio à medida que os avanços da ciência punhama nú as terríveis sequelas que podiam resultar dessasdoenças.

Durante o Século XIX e primeira metade do SéculoXX o epíteto siflítico era um estigma tão temível comoo da lepra e do cancro ou da tísica (tuberculose).

Em Portugal há provas da existência de umaenfermaria para siflíticos (casa das boucas) já em1504, no Hospital de Todos os Santos, que era naaltura um dos melhores da Europa. Vários intelectuaisfamosos foram vítimas da sífilis, como por exemploGuy de Maupassant e Friedrich Nietzsche.Provavelmente de sífilis morreu também Erasmo deRoterdão, chegando alguns autores actuais a referirque terá sido a mais antiga vítima de Sida. Morto em1556 com 69 anos de idade. Erasmo sofreu na partefinal da vida de febre com recaídas, de diarreias, de

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poliarterite nodosa, de tumefacções da pele e de umalinfadenopatia generalizada. Certos indícios, fazemsupor que seria homossexual. Viajava muito e são-lhe atribuídas numerosas ligações amorosas. Mas osseus ossos, exumados em Basileia em 1930 e quese supõe serem os seus, mostram marcas de sífilis.Aliás, entre a Sida e a Sífilis existem semelhançascuriosas.

A sífilis apareceu bruscamente em 1494 no exércitode Carlos VIII que guerreava em Itália, e foi chamada“mal de Nápoles” pelos franceses e “mal francês” pelositalianos, espelhando a tendência enraizada paraencarar os estrangeiros como portadores de doençasinsólitas.

Sífilis vem Syphilus, “o que gosta de porcos”, eSyphilus era pastor. O nome foi-lhe atribuído pelainspiração poética de Girolamo Fracastoro.

Há paralelismos curiosos entre a expansão da sífilisno início dos tempos modernos e a epidemia actualde Sida: a transmissão pelo acto sexual, a passaremdo germe da mãe ao fecto, as implicações morais, oimpacte sobre os costumes, o encerramento dosbanhos públicos e dos locais ditos de deboche, asreacções de rejeição social e mesmo, em certamedida, a gravidade do mal.

Também à semelhança da Sida o principal focodifusor parece ter sido Hispanhola, a actual ilha doHaiti. Durante a segunda metade do século XIX e oprincípio do século XX a T.P. esteve em expansão emPortugal e em 1930 chegou a constituir 10% de todosos casos de morte.

O primeiro estabelecimento de luta contra atuberculose para internamento de doentes em Portu-gal foi fundado no Funchal em 1869 pela imperatriz DMaria Amélia, viúva de D. Pedro IV com a designaçãode “Hospício da Princesa D. Amélia”, em memória dafilha, ali falecida de tuberculose.

Em 1898, iniciou-se a luta organizada contra adoença pela criação da Assistência Nacional aosTuberculosos e da Liga Nacional Contra aTuberculose, que se completavam num programa deconjunto, de criação de estabelecimentos dediagnóstico e acompanhamento (dispensários) e deinternamento (sanatórios), bem como de recolha defundos para tratamento dos doentes Foi sua promotoraa Rainha D. Amélia com o apoio do marido, o Rei DCarlos, e a assessoria técnica do médico D. Antóniode Lencastre.

Por iniciativa do médico Sousa Martins é construídona Serra da Estrela um pavilhão para internamento dedoentes com 54 camas e a Assistência Nacional aosTuberculosos, inaugurou no Outão, o seu primeirosanatório marítimo com 36 camas em 1901, que éseguido de um segundo sanatório marítimo emCarcavelos, e de muitos outros.

Em 1901 é inaugurado o primeiro dispensárioantituberculoso em Lisboa e são inauguradas váriascolónias de férias para crianças pobres em váriospontos do país, assim como novos dispensários sãoinstalados.

Assim a erradicação da tuberculose é na práticaum facto consumado em algumas populações e istoantes mesmo do aparecimento dos tuberculostáticos.

Isto foi possível à custa de medidas conjuntas deSaúde Pública e não de tratamento medicamentoso:através de higiene pessoal e familiar, alimentaçãoequilibrada, disciplina de comportamento, diagnósticoprecoce tratamento por isolamento na fase infectante,vigilância de cada caso e repouso - por teremconsiderado a T. P. uma doença ou praga social, emque o contágio era o factor de maior risco, a evitar portodos os meios. A luta na prevenção da tuberculosedeu resultados eficazes mesmo antes da medicaçãomoderna.

O mesmo pudessemos dizer em relação aos flagelosque nos afligem hoje...

* Médico Psiquiátrico

Bibliografia

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Portugal, F. A. Gonçalves Ferreira.- Medicina Preventiva e Saúde Pública, Sartwell e

Maxcy-Rosenau.- Amor e Sexualidade no Ocidente - VV.AA.- A mulher e o prazer - Gilbert Tordjman- Sexologia em Portugal, VV.AA.- A Medicina nos Descobrimentos.

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AS IDADES DO HOMEM - VIAGEM NO TEMPO E NA MEMÓRIA

por Ribeiro Farinha*

Numa recente visita à aldeia onde nasci - Figueira,a 4 Km de Sobreira Formosa procurei dar ao meufilho Tiago que me acompanhava, uma ideia do quefora a minha infância ali, sem Rádio nem T. V., tãodiferente da sua na grande cidade, marcada pelosgrandes avanços da Ciência, da Arte e da Tecnologia.

Pedra a pedra, rua a rua, casa a casa, fomospercorrendo o espaço mágico da minha meninice. E,pela minha cabeça, desfilavam acontecimentos comeco de pessoas com quem partilhei jogos, aventurase cumplicidades, habitantes das casas hojesilenciosas que, há algumas décadas, fervilhavam devida.

Era uma vida comunitária assente, sobretudo, naAgricultura. Os trabalhos sazonais eram, quasesempre, partilhados pelos vizinhos mais chegadosnuma interajuda que se estendia às famílias atingidaspor fatalidades. Lembro-me, por exemplo, da tristezaque entrava nas casas onde faltava a “salgadeira” eos “enchidos”, porque a peste levara o porco e afectaraa economia doméstica. Nestes casos, os que podiam,partilhavam com os atingidos, algum toucinho e“enchidos”. E, se chovia de repente e havia grão naeira ou pasto a secar as pessoas disponíveis saíamcorrendo das suas casas, acudindo onde eranecessário.

Nos tempos da guerra a vida ali era muito dificil:não havia trabalho e o pão escasseava. Valiam àsfamílias numerosas os produtos da horta e alguns litrosde cereal e de azeite ou alguma peça de roupa usada,oferecidos por vizinhos mais remediados e sensíveisa estas carências, a mostrar que a solidariedade nãoera palavra vã. Para além disto, a “malta” nova tinhasempre a possibilidade de colher fruta aqui e ali,mesmo correndo o risco de fugir à frente do dono oude ter os cães à perna, a lamber-lhes os calcanhares.

Como quem viaja no tempo ao sabor dasrecordações, deixando de parte cronologias eestatísticas aqui, lembro a minha terra, nesta simplescrónica de aldeia em que evoco um tempo outro tão

distante já, pelas transformações que para bem oupara mal, os últimos anos trouxeram. Passo um poucoao lado de “As Idades do Homem”, tema que será,seguramenle, bem tratado pelos ilustres mestres dasCiências Humanas que todos os anos nos enriquecemcom as suas brilhantes lições.

Chega-se à Figueira por uma via estreita que sebifurca à entrada e a contorna em forma de laço. Aolongo desta rua envolvente dispôem-se as casas aindahabitadas que, com outras mais recentes nosextremos da povoação, compôem os pouco mais deduas dezenas de moradores actuais. Mantém a traçaoriginal de estreitas e angulosas quelhas convergindono Forno Comunitário ainda utilizado - Coração queteima em bater em corpo debilitado. Mas o miolo daaldeia é um espaço em ruínas, parado no tempo, jácom honras de visitas turísticas.

Os balcões de pedra, envelhecidos mas solenes,que levavam ao andar nobre da habitação dão, agora,para buracos negros que foram portas e janelas; asboas casas de outrora com anexos, arrecadações,adega e tear, com marcas de várias gerações, “ninhos”de ranchadas de filhos, estão abandonadas ou servemde palheiro ou curral aos animais que o povo ainda vaicriando. Das antigas famílias restam alguns vestígios.Os mais velhos têm vindo a desaparecer, prolesinteiras emigraram... ficaram os que não sabiam ler eos remediados que, por falta de espírito de aventura,não quiseram deixar o “Ninho”, ficaram com os pais epor ali constituíram família.

Um apelo interior faz-me recuar 50 anos. Como sesonhasse, repito gestos, repiso caminhos abertos pormeus pais e avós onde por vezes me perdia nasdeambulacões iniciáticas. Pelos atalhos da emoçãodeixo a memória planar até poisar nos lugares queguardam as marcas esbatidas dos meus primeirospassos. Mergulho, assim, na seiva das minhas raizes,naquela comunidade exemplar que ia passando, depais para filhos, os seus saberes empíricos, tãoimportantes na minha aprendizagem, especialmente

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nas relações Homem/ Natureza/Bicho, noconhecimento dos efeitos dos ciclos das estaçõesnas lides do campo, nos tempos para sementeiras,enxertias, etc.. Com homens que não sabiam ler noslivros mas “liam” com alguma precisão, nas estrelase no Pôr-do-Sol a previsão metereológica, os jovensaprendiam a amar a Natureza...

Neste regresso imaginado às origens “entro” naaldeia, de novo, a arredondar caminhos, a juntar aspedras e a alinhar os madeiros para levantar o pórticoe reordenar o espaço íntimo. Depois de acamar astelhas e fechar a cúpula é só atear o fogo nalareira-fumeiro e repousar em paz ao som reconfortantedo crepitar da fogueira ... Mas a azáfama continua nomeu espírito: regar a horta, apanhar os frutos, recolhera lenha e preparar o forno para cozer o pão. Ir ao pipopelo vinho e, em seguida, estender a toalha, servir osmanjares e partilhar o pão e o vinho - frutos retribuídosa quem com amor trabalha a terra.

É bom lembrar, hoje, o prazer de chapinhar os pésna água fresca das ‘’levadas” da rega, o paladar dafruta colhida da árvore e a novidade das primeirascerejas e dos figos lampos; o sabor quente do pão asaír do forno, o reacender dos maranhos na cozeduraem dias de festa e a fartura das iguarias, em temposde carência, na semana da “matança” ou em dias deboda; e, enquanto se esperava pelas filhoses do Na-tal, vivia-se o ritual da abertura do pipo e da prova dovinho novo pelo S. Martinho, acompanhado demagustos, no aconchego das adegas.

Lembro com nostalgia os cantares na lavra dassementeiras, nas desfolhadas, na apanha daazeitona, com os ranchos a competirem alegremente;os bailaricos ao som do harmónio e da gaita de beiçose os namoricos furtivos a cada esquina; a curiosidadea espreitar a cópola dos bichos e os mais atrevidos atentar surpreender as moças no rio, nos banhos deS.João; as festas primaveris, misto de práticasreligiosas ancestrais com ritos pagãos, ligadas àfloração dos campos e às colheitas: rapazes eraparigas, enfeitados com cordões de flores,colocavam nas portadas das casas ramos de oliveira,espigas e papoilas e cantavavam, de rua em rua, o“Vito-Maio” aos moços, “Vito-Maio” às cachopas, umamalguinha de castanhas, vou pedir por essas portas“Vito-Maio”, Maio, Maio ...etc...

Por altura dos Reis, grupos de rapazes iam pelasaldeias vizinhas, ao compasso da concertina e delanterna na mão, a cantar as “Janeiras” e recolherdádivas, geralmente produtos da lavra dos ofertantespara, com o produto da venda, mandar rezar missaspelas Almas... A “semana gorda” era de festa para agarotada: uns iam pelas casas, mascarados, a pedirdinheiro e doces, a que muitos habitantescorrespondiam na mira de identificar os incógnitosvisitantes; outros, ao cair da noite, atiravam desurpresa e com estrondo para dentro das casas, as

“Caqueiradas” do Carnaval, a que se seguia a fuga,pé descalço a “dar à sola”, pelas quelhas alcatifadasde mato.

Depois, na quaresma, “serrava-se a Velha”, comlatas e chocalhos, à porta das mulheres idosas daterra. Umas corriam-nos à pedrada e à vassourada;outras regalavam-nos com figos secos e castanhas,com votos de que voltássemos no ano seguinte.

A noite de S. João era de festa, até altas horas, emvolta da fogueira, no monte em frente à aldeia. A seguirà quaresma começávamos a juntar grandesquantidades de lenha e pinheiros desbastados nasredondezas. Os maiores, arrastados por juntas de bois,eram fixados em círculo, nos buracos abertos no chão,para sustentar o recheio formando, assim, um cilindrocompacto de lenha ressequida. Ao atear-se o fogo,as labaredas pareciam atingir o céu e obrigavam todaa gente a recuar com exclamações, numa mistura dealegria e de temor!

Um dos períodos mais marcantes da minha infânciafoi o tempo da escola, apesar das dificuldades dessaépoca. Da Figueira para a vila, por entre pinheiros ehortas, os alunos da primária - dezenas, nessa alturae apenas uma menina, se não erro, este ano -animavam os caminhos jogando ao eixo, à bilharda, àmalha e à bola. Quando disponível esperava-nos àsaída o bonacheirão do Padre António, já idoso, quenão perdia ocasião de se misturar com as crianças.

De regresso a casa orientava as nossa brincadeirase inventava jogos para nos e se entreter. Todos osanos comprava piões aos rapazes, pequenaslembranças às meninas e rebuçados a todos. Aindaexiste na Figueira, na casa da sua família, a pequenacapela onde celebrava missa aos Domingos e, nosintervalos das leituras, nos ensinava a Doutrina.

O Padre António Laia era um homem bom que, longedos olhares da família, ajudava os mais pobres e nãocobrava dinheiro pelas missas que celebrava. Aqui ficaa minha homenagem.

Dos tempos da Primária lembro as andanças peloscampos à procura de ninhos e a armar abuises aostordos e às rolas e as manhãs pelas hortas a montararmadilhas aos taralhões ... mas o que não possodeixar de evocar é a “Festa do Galo” pelo Carnavalque, como outras práticas da nossa cultura popularse perdeu, por estas paragens.

Organizada pelos alunos com ajuda dos pais,consistia na angariação de fundos para comprar osgalos a oferecer aos mestres. Em cada classe, umgrupo de trabalho esmerava-se a enfeitar a preceitoos andores com bandeiras, flores e serpentinas e,um pouco em segredo, adquirir os galos mais vistosos.

No dia da festa os andores engalanados, carregadospelos alunos e seguidos pelo séquito, desfilavam àvolta da escola com vivas aos professores. Percorriamas ruas da vila cantando quadras alusivas ao evento,recebiam uma chuva de confeitos das janelas e faziam

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o julgamento do galo: “Este galo é o mais lindo, queaqui vai neste caminho, é para o Sr. professor, quenos ensina com carinho”; “Este galo meu senhor, temas penas de galinha, é para o meu professor que jáestá carequinha”; “Este galo é ladrão, foi ao Vale doSerrão, comeu pinhos e melões, fez perca de setetostões, nós vamos ao juiz, carregados de correntes,nosso mestre come galo, nós ficamos bemcontentes”, etc., etc...

Não havia TV mas a “malta” divertia-se.Aos domingos, quando tudo abalava para a missa e

às compras na vila, a aldeia era da miudagem. Umdia, na ausência do dono, trouxemos para um recintoaberto, fora do curral, um enorme carneiro quetinhamos ensinado a marrar. Foi uma tourada, oumelhor, uma carneirada, onde não faltaram cabeçaspartidas... Também não faltaram reprimendas evalentes tareias da parte de alguns pais...

Tantas histórias! Tantas que não cabem nesterelato... Em certas ocasiões ajudava o pastor Talaçana recolha do rebanho ou na assistência a reses compartos dificeis. Sempre que podia, iludindo a vigilânciado pastor ou, quando bem disposto, com a suacumplicidade, mamava o leite das tetas como umautêntico cabrito... Era assim, cheia de peripécias, avida na aldeia dos anos trinta e quarenta. Um dia,para apanhar um lindo sardão que se escondera naspedras do muro de uma horta, destrui a parede atéchegar ao réptil que dominei pelo pescoço. Atei-lheum fio a uma pata e, ufano, andei a exibi-lo na aldeiaaté que o “Pirolito”, rafeiro reguila, o matou com umapatada. O choque foi tremendo e era ver o “Pirolito”, apartir dali, a fugir mal me avistava, adiando a tareia eeu a fugir do dono porque, como retaliação, pendureio lagarto na aldraba da porta de sua casa e a tia Maria,ao voltar da fonte com o “asado” à cabeça, ia morrendode susto, partiu o cântaro e ficou encharcada... Du-rante tempos alerta e pé ligeiro foi preciso o “Ti Manel”me tranquilisar, de longe, para não fugir... Fizemos aspazes e ele ofereceu-me figos secos para comemorar.

Pelos meus 13/14 anos tive direito a entrar no círculodos serões do forno, onde a malta miúda era corrida àcanholada, mediante suborno com “cigarros feitos”.Era preciso cair nas graças dos “mandões”,respeitados contadores de histórias. E os maços detabaco, naquela altura, eram um luxo.

Além da função principal o forno era a praça, o jornal,ponto de encontro onde o Cabo de Ordem, ao som dobúzio, tocava a reunir para resolver problemas de in-teresse comunitário. Área coberta, ao fundo a bocado forno, uma cantareira lateral e um grande balcãode pedra para as masseiras e os tabuleiros e a servirde assento, ao serão. Tem ainda, na parede principal,uma tábua graduada com furos onde, por ordem dechegada, se coloca uma tabuleta a marcar a vez paracozer o pão.

Pelo calor que irradiava o “forno” era o local

privilegiado para os serões das longas noites deInverno. Que saudades das histórias intermináveisonde o real e o fantástico se casavam com a maiordas naturalidades! Salvé Bernardino Coxo (ainda vivo)!Salvé João Folga (já falecido)! (O meu Bem-Haja atantos outros que, em versões livres e aumentadasde contos infantis e fábulas que mais tarde viria aconhecer, animaram aquele cantinho!

Também se falava ali, com menor interesse por partedos atentos ouvintes, do tempo, das lides campestres,das actividades profissionais, dos “artistas”: pedreirose carpinteiros por exemplo. A atenção redobravaquando os mais velhos e experientes contavam assuas proezas da tropa, as conquistas amorosas etodo o tipo de aventuras da ceifa no Alentejo, dascaçadas, muito exageradas por parte dos maisfanfarrões. As misteriosas e estranhas histórias a falarde mundos longínquos e maravilhosos apontavam“saídas” possíveis e cómodas para interrogações semresposta e para a compreensão de fenómenos quenão conseguia entender...

Ouvindo-as, o meu pensamento transpunhafronteiras desconhecidas, elevava-se planando nasalturas como que a tentar ultrapassar a exiguidadedo lugar e a pequenez dos horizontes. Para mim, omundo parecia acabar onde o céu tocava os pinheirosdos montes em volta. Levitava pelo reino do sonhosem distinguir, muitas vezes, a realidade da fantasia.Mesmo hoje, à distância, muitas das minhaslembranças contém fragmentos que não sei já muitobem se os vivi ou se apenas os sonhei...

Haverá certamente alguma relação entre os meus“vôos” impossíveis pelos reinos da fantasia, a maniaque tinha de subir às árvores mais altas e aos telhadospara ver as coisas lá de cima... e a minha adoraçãopor escadas e aves. O planar dos milhafres lá no alto,pairando ao sabor das variações do ar, deixavam-meextasiado a contemplar aquela maravilhosa dança,frustrado por também querer voar e não ter asas!..

As aventuras daqueles tempos viviam muito do“desenrascanço” já que, na falta de recursos técnicospara vencer dificuldades a necessidade lá ia aguçandoo engenho. E, na falta de assistência médica aspessoas recorriam, muitas vezes, a práticasancestrais com marcas muito profundas, ainda hoje,na nossa região, que vão da simples utilização deervas medicinais, tisanas, papas de linhaça e outrosprodutos naturais, aos rituais onde se cruzam asmesinhas com rezas e benzeduras.

Assisti, vezes sem conta, pelas quelhas da aldeia,entre o martelar compassado dos teares e celebradospelas mesmas mãos que criavam maravilhas a partirdo linho e da estopa, aos exorcismos contra o mauolhado e cobranto, por exemplo.

Muitos dos jogos tradicionais em que então separticipava já só os conhecemos por ouvir falar oupela generosidade esforçada de alguns que teimam

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em não deixar morrer a cultura popular. Não querodeixar de apontar o exemplo da Dra. Assunção Vilhenaque, com “A Flor do Feto Real” e “Gentes da BeiraBaixa” (em vias de ser publicado) dá um importantecontributo nesse sentido no que respeita, sobretudo,ao Concelho de Proença-a-Nova.

Devo terminar, que vai longa esta “Romagem deSaudade”. Embora não fosse fácil, esforcei-me poromitir acontecimentos trágicos que, ciclicamente,abalavam a terra, e os dramas familiares que, em maiorou menor grau, marcaram negativamente alguns dos

habitantes. As mortes a semear orfandades, a doençaa atirar para a penúria famílias numerosas, as rixaspor partilhas ou divisão de águas, a falta de pão, etc.- coisas tristes da vida que eram e continuam a ser,comuns às sociedades humanas..., mas, porventuraterão tido ali menor expressão do que em outraslocalidades o que me levou a exaltar os aspectos maispositivos...

* Artista Plástico

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1- Dentro de uma coordenada deinterdisciplinaridade, marca domi-nante do espírito que define arealização das Jornadas de Estudo“Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XX”, decorreu aapresentação de 21 comunicaçõesque, em conteúdo variado, desen-volveram os temas escolhidos paraeste ano: 1 - Amato Lusitano naHistória do Renascimento Europeu; 2 - As Idades doHomem.

2 - Como consequência imediata, verificou-se umsaliente enriquecimento relativamente ao leque deCiências Humanas, materializado nas múltiplasachegas constatadas e que, sem dúvida, ajudaram àformulação de princípios que melhor caracterizam aexistência do homem desta região, no decurso dostempos.

3 - Ficou salientado que, embora a matéria essencialde estudo tenha como referente a realidadeantropológica da Beira Interior, um alargamentogeográfico que permita uma relação com o exterior,como aconteceu nestas Jornadas, poderá constituirtambém motivo de enriquecimento no que se refere avariadíssimos aspectos do trabalho de investigação.Sirvam como exemplos as comunicações queversaram pura temática da história da medicinaportuguesa ou conteúdos de âmbito mais geral quese formalizaram em processos operatórios daPsiquiatria, da Literatura, da Mitologia, doMemorialismo...

4 - Congratularam-se os presentes com o significadode um trabalho preparatório que conduziu aoestabelecimento de relações com a SociedadePortuguesa de História da Medicina e de FilosofiaMédica (SPHMFM) e a Sociedade da História da

Medicina Portuguesa (SHMP),representadas nestas VI Jornadas,pelos seus presidentes, respectiva-mente Professor Doutor NunoGrande e Doutor A. FortesEspinheira. Todo um programa decolaboração irá ser intensificado.

5 - A exemplo de Jornadasanteriores, também agora foievidenciado o interesse em que seja

levada a efeito a edição de obras de grandes vultos dopassado que, escritas em latim, não permitem umarecepção alargada por parte dos investigadores. Frutopalpável deste propósito será a oportuna edição do“Index Dioscoridis” de Amato Lusitano, cuja versãose encontra ultimada devido ao labor do Doutor FirminoCrespo, e para cuja apresentação pública contribuiráa SPHMFM.

6 - Embora sem confirmação oficial, parece estarpara breve, por parte da Câmara Municipal de CasteloBranco, a implantação de um horto com as plantasmedicinais usadas por Amato Lusitano, tornando-seassim realidade o teor de uma proposta surgida emJornadas anteriores. Notícia que despertou nosparticipantes visível júbilo.

7 - As VII Jornadas de Estudo “Medicina na BeiraInterior - da pré-história ao séc. XX” foram marcadaspara os dias 10 e 11 de Novembro de 1995. Os temasescolhidos serão:

1 - A Mulher na obra de Amato Lusitano;2 - A Mulher da Beira Interior nas suas relações

com a Medicina.

Escola Superior de Educação de Castelo Branco,Dias 11 e 12 de Novembro de 1994.

VI JORNADAS DE ESTUDO

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