Cadernos do Olhar #04 – textos injustificáveis

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1 HORAS , DIAS , SEMANAS , MESES. CdO # 04 “A tipografia está para a literatura assim como a performance musical está para a composição: é um ato essencial de interpretação, cheio de infinitas oportunidades para a iluminação ou para a estupidez. Muita tipografia mantem distância da literatura, dados os muitos usos da linguagem, que também incluem as embalagens e a propaganda. Como a música, a tipografia pode ser usada para manipular comportamentos e emoções, mas não é nesse palco que os tipógrafos, músicos e outros seres humanos nos mostram o seu melhor ângulo”. Robert Bringhurst Elementos do estilo tipográfico, Cosac Naify. #04 Outubro/Novembro/Dezembro 2013 PÁGINA 3

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Edição & Design: Claudio Ferlauto Colaboração: Regina Silveira e Pedro Sabatino Outubro/Novembro/Dezembro 2013

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Horas, dias, semanas, meses.

CdO#04

“A tipografia está para a literatura assim como a performance musical está para a composição: é um ato essencial de interpretação, cheio de infinitas oportunidades para a iluminação ou para a estupidez. Muita tipografia mantem distância da literatura, dados os muitos usos da linguagem, que também incluem as embalagens e a propaganda. Como a música, a tipografia pode ser usada para manipular comportamentos e emoções, mas não é nesse palco que os tipógrafos, músicos e outros seres humanos nos mostram o seu melhor ângulo”.

Robert Bringhurst Elementos do estilo tipográfico, Cosac Naify.

#04 Outubro/Novembro/Dezembro 2013

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Esta oração é para trazer boa sorte. Sua cópia original (sic) veio da Holanda.

Ela já deu a volta ao mundo mais de 20 vezes. Agora a sorte escolheu você.

Para tanto você deverá contribuir enviando 10 cópias para parentes

e amigos a quem você deseja boa sorte. Mesmo que você não

acredite poderá ter surpresas agradáveis em apenas 9 dias.

Por nenhuma razão esta corrente deve ser quebrada, pois trata-se apenas de um

poder mental que existe e não se trata de superperstição

ou crendice!nnnnnnnn

The luck has been sent to you. É a sorte enviada a você

graciosamente! nnnnnnnnnnnnnnnnnnn

Ninguém ganha nada com isso, a não ser você mesmo, a partir do momento

que outros tomarem conhecimento desta poderosas corrente. Envie suas cópias em

até 96 horas/4 dias após o recebimento desta. Acrescente seu nome ao pé da lista

eliminando o que estiver no primeiro lugar. E boa sorte! Add your name to the

botton of the lis and leave off the top ame when copying tis letter. (sic) Esta

corrente-prá-frente veio da Venezuela trazida por Lizzie Bravo, após ter dado

mais de 10 voltas pelo mundo. Agora está de volta ao Brasil —por sorte nossa

e porque ninguém mais segura este país— após outras tantas voltas e reviravoltas. nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn

Tome nota: — Sebastian Serpentin pediu à sua secretária que fizesse 10 cópias e as enviou. Em poucos dias quase ganhou

a loteria esportiva sozinho! Caito Lanhoso recebeu e não acreditou: uma semana depois quebrou a perna e não pode assistir ao show do Beleléu. Flávio Pons enviou rapidamente suas cópias, todas amplamente ilustradas e coloridas. Alguns dias depois foi convidado para expor na

Galeria Arte Global, no Museu de Arte Contemporânea/SP e no MAM/Rio de Janeiro. Carmem Machado, diligentemente enviou mais de 100 cópias. Em seguida casou-se e descolou um lindo sítio em Taquara, RS. Nilo Soares deixou suas cartas junto com outros papéis numa gráfica no Ipiranga, SP. Não foi buscá-las e depois esqueceu-as. Dias depois

sua Mobylete sumiu do estacionamento de um supermercado. Mutz Mutuca enviou apenas 5 cópias e mesmo assim recebeu pelo correio sua guitarra Gibson, que entretanto chegou com um arranhão no braço. Uda Lisca interrompeu a cor-rente com uma gargalhada: até hoje anda expondo sua Profissão: louco. Não aguenta mais. São fatos verídicos (ou quase) que não pretendem assustá-lo ou forcá-lo a prosseguir. Afinal esta corrente é para bem comum e a sorte (sic). E NÃO DEVE SER INTERROMPIDA. Aguarde: em 9 dias uma surpresa. nnnnnnnnnnnnnnnnnnnn Na lista: Blanche Hansen, Mavi Mouse, Roberto Casaccia Ginger McLure, Prof. San Martin, Carlos Nobre, Juju Monster, Enio Martins, Lizzie Bravo e Claudio Ferlauto

Boa sorte?Trust in the lord with all your heart,

and all will acknowledge him, and will light our way (sic)

O original é um texto datilografado em papel de carta azul, presumivel-mente do início dos anos 1970, foi encontrado na embalagem vermelha de uma antiga máquina de escrever Hermes Baby, sob um orelhão, numa rua do Leblon no Rio de Janeiro.

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Há o tempo que passa rápido e o que demora para passar.

Há o tempo que não espera e o que não marca hora nem dia.

¶ Faz anos me lembro da folhinha [calendário] de meu pai,

daquelas de uma folha para cada dia. ¶ Com as fases da lua,

o santo do dia e uma oração ou um pensamento para embalar

o efêmero. e no verso, uma charada: porque na infância

o tempo demora tanto a passar? ¶ Tipos, sinais, fontes.

Uma família tipográfica. os números da folhinha eram

bodonis de madeira ou talvez walbauns, já que os tipógrafos

gaúchos também eram imigrantes italianos ou alemães.

¶ Tipos estranhos, que eram entintados e depois transferiam

os tons pretos e vermelhos para o papel. ¶ Para mim gravados,

impressos na memória. Transferidos com afetos metálicos

para a mente. Letras, números, palavras, frases. Um texto.

¶ hoje imprimimos com perfeição, com tintas ou com luz,

sem o duro metal dos typefaces, com máquinas incríveis

que unem passado e futuro em uma sofisticada trama

de tecnologia e de sensibilidade, são os novos tempos.

rápidos, muito rápidos, tanto que nenhum relógio,

de ontem ou do amanhã, é capaz de controlar.

“A tipografia está para a literatura assim como a performance musical está para a composição: é um ato essencial de interpretação, cheio de infinitas oportunidades para a iluminação ou para a estupidez. Muita tipografia mantem distância da literatura, dados os muitos usos da linguagem, que também incluem as embalagens e a propaganda. Como a música, a tipografia pode ser usada para manipular comportamentos e emoções, mas não é nesse palco que os tipógrafos, músicos e outros seres humanos nos mostram o seu melhor ângulo.”

Robert Bringhurst Elementos do estilo tipográfico, Cosac Naify.

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O LIVRO

DE

ViagensPARTE I

MAIRIPORÖPARISSebastian Serpentin

MMXIII

Dívidas. A partir deste momento me deves mais uma carta. Estamos conversados? Como estás nesta cidade vazia? Neste lugar de magias e sonhos? Cá vou correndo pela cidade, de carro ou a pé, mas sempre de saco cheio. Sabes lá o que é isso? Estou sem trabalho, mal dá para justificar o fato de sair de casa todo santo dia para batalhar dinheiro. É só isso: poluição. Mental, ambiental, sonora. Só agora sei, diz o poeta. Só agora serei diz o profeta baiano. (Peguei essa mania de escrever frases muito curtas). Quem sabe o que sabe. Não é o que pensa ser. Logo: existe. [Aqui ele escreve um longo trecho sobre medicina e remédios e a loucura dos processos químicos modernos, que elimino para sossego do leitor]. No entanto sou incorrigível. Já tenho novos planos. Novos projetos para a vida. Estou pensando numas transas rurais, ou melhor, semi-urbanas. Mas isso é ainda sonho, guardado. Bem guardado, pois temo que depois de divulgados, conversados acabem ficando no papel esquecidos em algum canto da memória. Ou ficando na saudade. Neste próximo fim de ano penso ir a PA. Mas já sei que será muito difícil. Ou ficarei comigo mesmo, recolhido em retiro no meio do mato. Estás prestando a atenção? Vai ser um final de ano muito diferente. Para todos. Acabo indo mesmo para Paris, Amsterdã ou Nova York. Beijos desencantados de SbSp.

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Paris, le 8 de décembre de 1974Alô, alô meu amigo Serpentin. E então como vais? Depois de um silêncio muito grande tenho vontade de falar contigo. Vai daí que pego da pena e… Andei muito pelas terras do velho mundo. Estive uns days em Londres logo que cheguei. Depois fui passar o verão na Grécia, de onde parti para a Turquia. Retornei a Paris e fiquei lá um bom tempo. No mes passado estive pedalando por terras italianas e por campos da Provence, aproveitando um outono de folhas vermelhas e céu azul. Agora estou novamete da Cidade Luz, que é uma festa, uma fresta, para curtir e sacar. Mas estou apenas jogando dados para ver o que eles me apontam: vou ter de decidir, até o fim do mes, se me quedo acá ou retorno para terras tropicais. Sei que se ficar a barra vai pesar porque não é nada fácil um artista levantar grana por aqui. De qualquer manière, mesmo voltando au Brésil no começo de 1975, passarei antes em Nova York. Bom por aqui fico. Beijos. Saudades de todos. Flo.

Alô. Alô querido SS.Como estão as coisas por aí? Onde está você? Vim de Amsterdã para passar o fim de ano nesta britânica ilha, Londres, 1975, onde o sol se põe às quatro da tarde e um vento gelado corre pelas esquinas de prédios antigos. Ônibus vermelhos

passam como barcos, taxis misteriosos e velhinhas com flores no chapéu sorriem ao guarda na esquina. Enquanto isso, por trás de uma vitrine decorada com uma fluida cortina tomo chá com biscoitos de gergelin. Esta Londres já não é tão swinging como dantanho. Mas ainda é bonita com suas fachadas de tijolinho à vista, janelas brancas, portas vermelhas, jardins de magnólias e hortelã, e volta e meia um tapete dizendo para meus olhos «welcome my love». Numa escada em Portobello um gato preto e garrafas brancas de leite se espreguiçam ao sol. Meninas lindas cruzam pela calçada com cabelos loiros e ruivos, curtos, longos encaracolados, com tranças sugerindo transas com suas bocas vermelhas, olhos sombreados, noturnos, sobre sapatos absurdamente altos. É uma Time Out ao vivo: gente, cultura e civilização, rock and folk places, movie places, enfim places para tudo e para todos os gostos e sabores. E a rainha sentada, assiste a tudo calma e placidamente, mas de vez em quando grita: — Cortem-lhe a cabeça.E tem mais a TV colorida aqui é tão boa que parece cinema, o problema é que ela está sempre cheia de uns caras jogando golf ou cricket ou andando a cavalo… Daqui vou para Portugal, Espanha, volto a Paris e vou a Nova York em fevereiro

e depois, Brasil, meu Brasil izoneiro… Tenho desenhado um pouco que é a única coisa que dá para fazer nesta vida de viajor. Estou com um projeto de uma instalação ambiental que, por enquanto está complicada e cara para realizar. O grilo que para fazer o que estou pensando eu teria mais abertura aqui na Europa, mas aqui não tenho os contatos. No Brasil tenho os cantatos mas não a abertura. Escreva para Paris. Saudades Fly. Amsterdã, 12/2/1975

Alô! Alô! Serpentin.Não coloquei esta no correio… Mas foi até melhor pois ontem recebi seus desenhos (Nice!) e achei ótimo porque curtiu a transa da janela e acho que ela ainda vai dar «pano para manga». (Já que a moda está retrô for why not usar também palavras antigas? O revival completo!). Então tomei da pena para traçar estas linhas. Cada vez está pintando mais o lance de ficar por aqui e o mais estranho é que estou decidido a isso no momento em que as saudades das pessoas da minha terra começa a bater mais forte. Fica difícil não pegar o primeiro avião e ver de perto os sorrisos numa praia ensolarada.Meu coração está broked because também recebi carta de Nova York me chamando para ficar por lá uns tempos. Wow man, como dizia Jacqueline Onassis: é fogo amizade.

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Enquanto isso Amsterdã se desmancha qual uma aquarela na minha janela. O relógio dourado na torre da igreja marca quinze para as cinco in the afternoon. O chão está úmido e gaivotas brincam no ar. Os primeiros girassóis da casa vão nascer das sementes da Serra. Plantei quando cheguei. Espero colher sometimes. Beijos. Saudades Fly. PS. Please send me a letter •••Fly. via aérea SP 5 março 1975. Escrevi (foi com um presente anexo) para Paris. E agora? Posso reescrever e reenviar a carta (que era mais de uma, contando as atrasadas) mas o presente já deve ser de novo passado. Calculei que ela não chegaria em Amsterdã até 28 de fevereiro. Então ela correu para Paris. Tua carta que recebi hoje está datada de 23 de fevereiro logo concluo que as cartas levam dez dias para ir ou para voltar, mas isso não me aborrece.Windows: está aberta. Já que perguntastes: obra única é aquela tradicional, óleo sobre tela, que acaba num museu… Mas isso como aquilo é apenas uma brincadeira. Estou mais para desenhar e curtir lentamente. Comprei hoje uma pena Gillot, para nanquim, um barato. Estou querendo virar ilustrador. Da janela aberta sobra uma brisa agradável, pelo menos aqui na serra. Sobre o livro. É melhor não chamá-lo

de livro. Com os textos em inglês e português. Meus pequenos textos que deves juntar com os teus. Faremos cópias fotográficas do desenho da janela, em cinco diferentes dimensões. Com este material montaríamos algumas páginas aqui e algumas por aí. Sobre um formato de folha determinado. Depois: xerox ou multilith. Mando as mi-nhas, tu completas, imprime e mandas para mim e para o mundo. Idem para as tuas páginas que vais enviar para mim. Depois de trabalhá-las, também devolvo-as ao mundo. As outras coisas, deixa prá lá… Aut. (de autor) •••13 de mar e terra de 1975F. Aqui é SP, tarde de uma quinta feira, com meus olhos vejo um lindo céu da cidade. Abro a janela para que entre luz natural e que ela se misture com a da minha fluorescente, são 16 horas. E, por aí, na sua janela? Então vamos aos projetos. Minha proposta é fazer cinco janelas. Uma é esssa, anexa, desse momento: o negativo do desenho original, que afinal das contas nunca foi original. Cambio. Agora deves prosseguir. Câmbio. Por aqui fiz o seguinte: apenas 5 cópias no formato 18x24. Agora vou procurar outras imagens de janela desta cidade e deste meu brasil-brasileiro. E sobre elas farei meus textos. Um deles está aqui na minha frente:

Para aquem para aquiloA estrela para issoBrilhaAqui é o paraísoSão Paulo ParisÀ tardePor meus olhos passa o céu da cidadeAbro janelas para que o sol se misture com a luz da fluorescente.Sãoo 16 horas, creio.Mairiporã Amsterdã E na sua janela?

Provavelmente mando-te isso na próxima segunda-feira, dia 17, temos tempo, afinal ainda é dia 13. A proposta é: tu interferes gráfica e mentalmente e etc bem etceterado. E concomitantemente, transo sobre tuas janelas. Câmbio. (VV. encontrou SA. num cinema em Londres. Depois nunca mais se viram).Câmbio. Os xerox dos teus e dos meus falsos originais remeteremos para toda a plebe ignara que nos cerca? Ou ficamos com os segredos guardados entre nossos melhores amigos e desafetos? Câmbio. Decida a parada e essa charada. Ontem depois de fazer os xerox encontrei Augusto, Regina e Julio, e ainda, pasme cruzei com M. Maloy e espalhei para todos que nunca mais voltas de Amsterdã. Enfim, uma proposta. Beijos e abraços. Serpentin.Amsterdã, 28/3/1975SS..As bicicletas sobre as nuvens vão anexas por conta da primavera que, por enquanto só pintou no calendário e nas vitrines. Yesterday nevou, choveu e fez muito frio.

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Atenção: não recebi os negativos. Você enviou para Leidsegracht 56? Ou será mesmo que o correio extraviou? Recebi as cópias fotográficas com os textos. Recebi as respostas! Mande outro negativo caso contrário não possa fazer nada. Quanto às suas dúvidas: deixe estar porque a coisa foi feita para ser assim. Mande o endereço da repórter Mirna do Planeta Diário e que sometimes transforma-se na Super-Woman para o espanto de Miriam Lane, Clarck Kent e do pessoal da redação. Aqui é de manhã e faz sol. Cravos vermelhos, narcisos amarelos estão na paisagem por onde passo a caminho do mercado com minha cesta e minha bicicleta. Grandes beijos holandeses. Fly.24/3/1975F. Segunda-feira pelo menos é um dia que corre. Recebi tua carta de Londres só hoje. Veio rápida. Escrevi na quinta que não havia gostado do acabamento dos desenhos da janela. Cada hora gosto menos. Mas, voila! Desta forma espero que trates de me informar sobre se recebestes o filme negativo (ou se terei de produzir outro) e as cópias nas quais trabalhei em cima do desenho (ou se terei de fazer outras). [Aut. e Fly. desenvolvem um projeto intitulado Windows.… mas não este de seu computador]. Bad/.bode: Raa.

morreu num acidente de carro no interior do Rio Grande do Sul. Hoje é o penúltimo dia para entrega da Declaração do Imposto de Renda. Gil. me envia receitas com sementes de Ypoméia compiladas por um índio mexicano. Queres? Sementes e receitas? Nar. apareceu em Porto Alegre. Aut.Amsterdam 17.abril.1975Alô! Rapaz, Aqui vai, antes tarde do que nunca a «Transatlântica». Tarde porque a carta com o negativo recebi com um atraso de 15 dias e ainda levei uma semana para fazer os blow ups. Bat taí a coisa parida com a ajuda dos correios nacionais holando-brasileños. O único detalhezinho constrangedor é que cada exemplar que se produzir sai pelo preço de 5 Florins (mais ou menos 15 cruzeirinhos), o que não vai impedir grandes tiragens, pois aqui a vida está, como se dizia antigamente, «pelos olhos da cara». Vou fazer mais algumas cópias e depois te mando um original. Penso que seria uma boa abrir as «Windows» para mais gente (ficou cheirando trocadilho, sorry), enviando um original e explicando o processo e as dimensões exigidas e ir juntando as folhas aqui e aí. Acho que para dar certo é melhor pedir uma única página para cada um: sabes com é, muito trabalho assusta a rapaziada. Não me atrevi

traduzir (ou verter) teus escritos para holandês ou inglês pois seria um negócio arriscado que requer prática e habilidade para não dar cagada. Por aqui o frio brabo está no fim, mas chove pracas, não há primavera decente que aguente tanta água, amizade, logo teremos algas na sacada em vez de tulipas. A transa da exposição continua na espera do financiamento. Enquanto isso estou fazendo uma série de trabalhos com fotografias de cinema que provavelmente chamar-se-á «American dreams», ao mesmo time faço um album de desenhos virtuosos (Oh! preciso aulas de anatomia humana) chamados «The light houses», e tenho projetos de pequenas assemblages que ainda não executei para não ter que aumentar minha bagagem, que cresce dia a dia. Devo decidir: ou bem corro o mundo ou encho minha casa de trastes, como já dizia Hamlet: «é isto ou aquilo, talvez nada disso». A porta que coloquei lá em cima pode ser a próxima «Transa Atlântica», se voce quiser, se tiveres saco, tempo e élan. Saudades F. PS E o galinheiro? Mande ovos frescos pela Varig!Le vendredi 14/5/1975 Amsterdream, amsterlife, amsterhome, amsterdamas-e-cavalheirosAut. Enfim eu já estava achando

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que a «Transa atlântica» tinha dançado nos correios. Curto praca teu desenho na minha parede. Assim que os copiar devolvo-lhe o original. O financiamento da exposição foi confirmado pelo Cultural Conseil. A Embaixada do Brasil talvez patrocine o catálogo e a data já está confirmada para o primeiro dia do verão europeu, em junho próximo. Começo a trabalhar nas

peças que tinham sido planejadas em plástico, coisas grandes, mas vou ter de changer por pano que é mais resistente ao vento. Apronto novas: trabalho numa padaria, coisa fina de gente que tem umas lojas de health food. Fazemos delícias (PM. precisava ver) em pães de passa, biscoitos, pão preto, pindakaas, appeltaart, prune taart e outros babados mais.

It’s a hard work, but a good feeling: amassamos o pão ao som de discos da pesada como Eletric Storm by the group White Noise. Se você não conhece, must be do that. Qualquer dia ponho alguns pães num envelope e envio para vocês. Doors/proposta/resposta: penso num grande livro em que as portas tivessem cortes em vez de folhar (ou folhear) abrir-se-iam as portas até ficarmos losted in the dark night. Mas esse é um plano muito abstrato e expensive. E uma impressão serigráfica grandeur nature da porta para as pessoas suas paredes and your minds. Vou ver se agito divulgar a exibition em Paris aussi, Milano também.Quanto ao mais, Vivaldi in the morning. Concert voor fluit en orkest. Allegro, Largo, Allegro. Pêras, maçãs e abricós. Quanto ao mais, na mais imperfeita paz. Saudades Fly. PS. Je ne comprend pas le present, ça m’échappe. Je ne compreend pas mon present, c’est plus fort que moi meme. Dans Une femme mariée, de Godard.SP 26/6/1975Caro F.Aqui re-edito meu tempo: fico mais alguns meses em São Paulo. Depois: voilá. Acho que emplaco 1976 na Serra e depois desço ao Rio Grande para ver terras e projetos que estão soltos no ar.

Chegou a minha hora de voltar a sonhar. Deves ter recebido alguma carta que o correio devolveu pois não estamos mais no velho endereço em Higienópolis. Quando chegares em São Paulo deves tomar o rumo da Serra. É o caminho mais seguro para nos encontrar. M.Maloy recebeu sua carta-reportagem que já havia passado por mim e por diversas repartições dos correios franceses e brasileiros. J. e R. expõem em São Paulo e Buenos Aires. Anexo re-edições de Sebastião Serpentin. Uma para Fly e outra para quem Fly quiser. Tenho novos lápis de cores. Aliás quando vieres ao Brasil o que quero de presente é uma caixa de lápis de cor da pesada. A teu critério. Até lá. Serpentin.Paris, 14, agosto, 1975

Pela janela a cidade desenhada.Pela janela a cidade derramada, escrachada.Respirar não tá fácil amizade.Pode-se fazer disso uma bandeira de cetim vermelho.Pode-se fazer disso um lamento num ombro qualquer.Pode-se fazer disso um anuncio luminoso no horizonte de concreto.Pode-se fazer disso um soluço no fundo da garganta.Pode-se fazer disso um rock legal nas paradas de sucesso.Pode-se fazer disso um bordado em linha de seda matizada.Pode-se fazer disso uma bala de revolver no meio dos olhos.Pode-se fazer disso uma lição: a de manter a luz acesa.Intervalo com uisques e salgadinhos.

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Da transa visual penso: 24 atos, 24 rounds, 24 movimentos (allegro ma non tropo), 24 capítulos, 24 fascículos em todas as bancas. Post card/o consumdao. Aquela das fotos pousadas aí na serra pode ser uma boa, tem uma agora de fotografar com máquina de cinema Super 8: será muito complicado? Cá do meu canto, da minha casa de papel de seda, com meus amigos, discos e livros e muito mais, digo até logo, mando um beijo e vou dormir. Fly. PS. Minha máquina de escrever Hermes Baby, meu deus!, até quando vai me deixar nesse estado. Nunca vi tanto relaxamento.Último contato. Um dia qualquer de 1978. Warder, near Edam, near Amsterdam, la nuit de mardi de 1er de juillet. To Serpentin. near Serra, near São Paulo: Pois é, a long time, mas não em vão, ulti-mamente ando com o tempo cheio de trabalho e a cuca cheia de ideias que irão encher meu tempo. Pois é, daqui dessa horizontal planura holandêsa lanço linhas que (I hope) vão encontrar curvas sinuosas da serra tropical que vives entre avencas, passarinhos e vento morno. Pois é, saudade que chega de mansinho, tento dar a volta por cima e digo a mim mesmo: ora, ora isso passa. Mas quem disse que o coração acredita na razão? Pois é, esse é o convite poster da exposição

(do you remember estas antigas pictures?), a coisa ficou bastante boa no final. A transa divide-se em três partes: 1. Inside the gallery: pequenas montagens (assemblages ou escuturas) e desenhos (The love history que você já conhece e que tem um cara querendo comprar, mas o grilo é que eu não tinha intenção de vender tais drawings pois penso imprimí-los algum dia.2. Outside on the roof of the house: grandes peças de tecido que cobrem a metade dos quatro lados do roof.3. Outside in the field: caixas e montagens de objetos.Mas realmente acho que não dá para explicar. Enviarei as fotos logo que ficarem prontas. Agora começo a trabalhar em novo projeto: Experimental Project DeeZeevang que reune 12 caras com diferentes propostas about vida-morte e natureza-poluição. Com isso vou descolar uma grana pois vou fazer o design do convite e também a sinalização da área já que as obras vão se espalhar pelo campo em volta da casa. Passo a maior parte do tempo aqui na farmhouse: muito leite de legítimas vacas holandêsas e banhos num lago-mar que temos aqui ao lado. Essa casa, tinhas de conhecer, é uma antiga casa de fazenda que foi reformada mas

mantiveram algumas das divisões internas originais. No centro dela tem uma grande sala onde foi outrora o depósito de feno, com duas clarabóias bem lá no alto. Tenho trabalhado muito com FE. que é um cara maneiríssimo. É escritor-filósofo mas sem ranço de academicismolivrescoculturalista. Temos construído muitos sonhos juntos e ele me ajuda a ver com mais clareza meu próprio trabalho.

Crio raízes por aqui e isso me dá um nó (Laing, Laing help me please) na boca do estômago. Viajo em agosto para algum lugar quente, acho que pode ser para a Espanha, e volta after para Amsterdam. Peço-lhe o favor de me enviar o adress de SA. em Lisboa ou será em Porto?Today is a perfect day. Beijos F. n

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Aqui estou nesta sexta 13. Volto noutra noite para vê--los. (?) Oi Magro, seja mago e consiga o vinho Clos de Nobles, queijo de cabra e erva amarga/ Se não tiver queijo, serve beijo mas não de cobra. Até quando. Leila, Serra dos Cristais.PS. Parte 2. Tenho outras sugestões mas só as darei pessoalmente (visto que as anteriores ainda não foram registradas). L. Again

restanteSebastiãoEstou mandando as correções à parte, porque não dava para fazer hoje se fossem fazer as emendas nas com-posições. Falei com o Lobo e como não tinha seu tele-fone ele pediu-me que mandasse para adiante. Odécio. ✍ ☞

Falta apenas o skyline que o Diniz fotografou e cujo contato examinarei 3ª feira. Refilei apenas uma foto da “mensagem arquitetônica” porque não sei da sua ideia: preferi deixar as demais como estão. Abraço. Décio.

✍ ☞

RelatórioModerada escoliose dorsal baixa de convexidade E [esquerda]. Corpos vertebrais com estrutura óssea de aspecto normal. Espaços discais conservados.Dr. José Machado

❝ ❞

Cara. Ainda fica faltando pagar $400,00… Mas agora só no século 21…Beijos em 29 dezembro 1999.

� �

Hoje é meu primeiro dia na escola em Basel depois de um anno na Polônia e o verão na Croatia. No livro pode ver meu nome na página 51. É uma contribuição. Espe-ro que você vai gostar. Obrigada você fica em contato comigo já dois annos. Sonja.

Posta

Pedr

o Sa

bati

no

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Ali estou, bem no centro, na terceira fila contando de baixo para cima. Mal aparece meu rosto e um dos ombros. O cabelo bem curto e pela cara amarrotada, a foto deve ter sido batida na primeira aula na manhã de uma segunda-feira. Como sempre, nesta idade, estou no segundo plano, pois sou um dos menores da sala. Mas desta posição, como todos, tento olhar o futuro que se avizinha. Observe como os olhares são desafiadores: parece que a câmara e o fotógrafo vai nos abrir grandes perspectivas. Estou iniciando o segundo colegial. Ou seria o primeiro? Ou talvez seja na segunda vez que curso o segundo colegial. A foto tem aquela pátina de coisa antiga, mas não tem uma data impressa ou anotada no verso. Ela está impressa a partir de um clichê metálico com uma retícula grosseira que deixa ver claramente seus pontos. Olhando com o conta-fios vejo apenas pontos espaçados e as imagens se desmancham como as lembranças de agora. Não reconheço quem está no meu lado direito, tampouco o vizinho da esquerda. Aquele altão, um pouco acima, na ponta esquerda, jogava futebol muito bem, isso eu lembro. E o baixinho da primeira fila, ao lado do padre jesuíta, é advogado, assessor de deputado. Foi director do Grêmio Futebol Porto Alegrense. A memória fraqueja e fica rodando ao léu: aquele é o Rodney dos

sanduíches com muita manteiga? Um rosto me lembra cheiro de fumo de cachimbo, certamente é o Ênio, muito mais velho que eu. Do professor lembro da sua voz lendo trechos em latimdo Ludus Tertius —”Lesbia puella est…” —e mais nada; muitos são apenas figuras desbotadas como as bordas da fotografia. Como pude esquecer? E ao mesmo tempo lembrar que devemos estar sentados ou em pé sobre os bancos do refeitório para que todos possam ser vistos pela câmera. Por cima da cabeça, bem penteada, de quem está à minha frente, espio o fotógrafo enfiar a cabeça sobre o pano preto para ajustar o foco da máquina. Este é o momento: o presente. Agora ficarão gravadas não só os rostos para os anais, mas também os rostos das gurias do colégio das freiras; a derrota no último jogo de basquete; as notas ruins do boletim; as últimas aulas e a melancolia da separação durante as férias. Mesmo assim a fotografia guarda uma certeza: tudo recomeçará depois do verão e seus ociosos e longos fins de se-mana com cinema, cachorro quente e Coca Cola; as peladas de futebol no campinho da igreja e as conversas intermináveis sob a luz do poste da esquina. Dias em que não preciso andar correndo atrás do bonde Floresta para chegar a tempo da primeira aula de março.

A fotografia

Ed. S

ulac

ap, P

orto

Ale

gre

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Ingredientes2 xícaras de olhar retrospectivo3 xícaras de ideologia1 colher de sopa de École de Paris1 lata de definição temática, gelada e sem soro1 pitada de exacerbação da cor1 índio, pequeno, ralado

Modo de preparoCom o olhar retrospectivo e a ideologia prepare uma calda e quando grossa junte-lhe a École de Paris, sem mexer. Deixe amornar, bata um pouco a definição temática, junto os demais in-gredientes e leve ao fogo em banho-maria em uma forma acaramelada.

CoberturaMisture uma e meia xícara de função social, com 5 colheres de sopa de vitalidade formal e leve ao fogo até dourar; retire do fogo, junte mais duas colheres de sopa de jogada mercado- lógica e sacuda um pouco a frigideira para mis- turar tudo bem; não se deve mexer com a colher. Deixe esfriar, cubra o pudim e sirva gelado.

Regina Silveira | 1977

PudimArteBrasileira

Edição & DesignClaudio FerlautoColaboraçãoRegina Silveira e Pedro SabatinoOutubro/Novembro/Dezembro 2013