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Café molecular contos de ficção-científica

Café molecularCafé molecularМолекулярное кафе

Contos de ficção científica

Tradução de Maria José Fernandes de Mello

Излательство МирМосква

Editora Mir (Mundo)Moscou

Impresso na URSS1981

Сборникнаучно-фантастических

рассказов

(Coleçãoficção-científica

histórias)

Digitalizado em maio de 2012

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Café molecular contos de ficção-científica

ÍndicePrefácioВведение

Café molecularMolekuliarnoye kafe (Молекулярное кафе)relato curto, 1963Ília Varshavski

O mistério de HomeroSekret Gomera (Секрет Гомера)RelatoAlexandre Poleschuk

Encontrarei meu irmãoYa idu vstrechat brata (Я иду встречать брата)Relato, 1962Vladislau Krapivin

Esperando MagalhãesCaminho noturnoO quarto sol

A coluna negraChjornyj stolb (Чёрный столб)novela curta, 1968Eugênio Voiskunski, Isaías Lukodianov

Os caranguejos andam na ilhaKraby idut po ostrovu (Крабы идут по острову)relato curto, 1958Anatólio Dneprov

Dos andarilhos e dos viajantes1

O stranstvuyushchij i puteshestvuyushchih (О странствующих и путешествующи)Relato, 1963Arcádio & Bóris Strugatski

Até logo!, marcianoDo svidaniya, marsianin! (До свидания, марсианин!)novela curtaRomão Yarov

Prefácio1 Os contos …dos andarilhos e viajantes e Até logo!, marciano não foram publicados neste volume em português. Como constam

da tradução castelhana decidi os incluir, traduzindo a partir de Selección de relatos cortos de ciencia-ficción soviética. Uma ficha técnica em http://www.tercerafundacion.net/biblioteca/ver/ficha/9729 Nota do digitalizador

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Café molecular contos de ficção-científica

A popularidade de literatura de ficção científica, ou ciência de ficção, é extremamente elevada na URSS. Os livros de ficção científica, soviéticos e estrangeiros, se editam anualmente aos milhões de exemplares. A ficção científica é lida por pessoas de todas as idades e especialidades. Dezenas de milhares de leitores procuram e encontram na ficção-científica o reflexo dos assombrosos processos que se estão realizando no interior da sociedade humana. Procuram e encontram novos problemas da história, da sociologia e das ciências humanas que por diversos motivos não se refletiram na literatura clássica realista. Procuram e encontram novas tendências que surgem agora, no seio da vida quotidiana, e que, imperceptivelmente, formam o novo mundo do futuro.

Nesta coleção o leitor encontrará os traços fundamentais que caracterizam a ficção-científica soviética: Humanismo, diversidade temática, estreita relação com os problemas atuais que inquietam a humanidade. Esperamos que esta coleção agrade ao leitor e sirva pra fortalecer a mútua simpatia entre nossos povos.

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Café molecularÍlia Varshavski

indicador da calculadora eletrônica que analisava o comportamento de Michka, havia já uma semana, assinalava a nota relevante e, por isso, decidimos celebrar o acontecimento.OO

Liúlia propôs ir ao concerto das sensações difundidas, eu disse que se podia visitar o museu de aroma de bebida alcoólica e Michka exigiu que fôssemos ao café molecular.

Como era de prever, fomos ao café Molecular, porque fora Michka quem se comportara bem e não era justo o privar do direito de escolha.

Num aparelho telecinético nos deslocamos até lá num instante. No caminho só uma vez tivemos uma sacudidela, quando pensei que poderíamos passar no museu ainda que fosse só um momento. Por sorte ninguém notou.

No café nos dirigimos a uma mesa encarnada, mas Liúlia disse que gostava mais da comida sintetizada a partir do petróleo claro que da do escuro.

Lhe recordei que nos jornais se dissera que na aparência eram equivalentes.Liúlia respondeu que talvez fosse um capricho, mas, quando se faz algo por gosto

próprio, porque não satisfazer os caprichos?Não discutimos consigo porque a apreciamos muito e queríamos que obtivesse o

maior prazer da visita ao café.Quando nos sentamos à mesa branca, no écrã do televisor apareceu a imagem dum

robô com gorro e bata brancos. O sorridente robô nos explicou que no café de síntese molecular havia 360 pratos. Pra obter o prato escolhido, se tinha que se marcar o número correspondente no prato da mesa. Além disso acrescentou que, se queríamos algo que não houvesse na ementa, tinha que se pôr a antena na cabeça e pensar no prato. Então, o autômato cumpriria a incumbência.

Olhei a Michka e entendi imediatamente que não desejávamos o que havia na ementa.

Liúlia pediu um prato de filhó e eu um pseudobifesteca. O pseudobifesteca estava suculento, tenro e muito apetitoso. Liúlia disse que não podia comer tanta filhó e que eu podia ficar com uma metade. Assim fizemos e lhe dei metade do bife.

Enquanto estávamos ocupados nisso, Michka, enfastiado, remexia com o garfo o prato inventado por ele, que consistia em pepino salgado, sardinha, papa de sêmola e doce de framboesa, tentando compreender por que, às vezes, a combinação de coisas tão boas resulta numa porcaria.

Tive pena de si e pus o prato no destruto. Liúlia lhe disse que quando se compõe com imaginação alguma comida, se tem que se concentrar mais.

Então Michka começou a sintetizar uma empada em forma de nave sideral. Entretanto tentei imaginar que gosto deveria ter a bebida que se preparava pra mim, se acrescentando uma gota de conhaque. Quase que o conseguira quando, de repente, se acendeu um sinal vermelho e o robô que apareceu no écrã, disse que nesse café não se podiam fazer tais coisas.

Liúlia me acariciou a mão, teve pena de mim, e disse que ao sair do café, ela e Michka iriam a casa e eu podia ir ao museu. Liúlia se preocupava mais com os outros do que consigo. Eu sabia que ela queria ir ao concerto das sensações e lhe disse que ia a

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casa com Michka, e que ela fosse ao concerto. Então, propôs que o melhor seria irmos todos a casa e passarmos a tarde tranqüilamente.

Queria lhe agradar e imaginei uma fruta que tivesse a forma duma laranja, o gosto dum sorvete e que cheirasse como seus perfumes preferidos. Sorriu e deu, decididamente, uma dentada, arrancando um grande pedaço.

Gosto muito de ver Liúlia sorrir, pois todas as vezes que sorri a quero ainda mais.Quando dispúnhamos a ir a casa no aparelho telecinético, Liúlia disse que esses

antigos cafés moleculares são uma preciosidade e sua comida é muito mais agradável que a que se sintetiza em casa a partir da estação central.

Pensei que era devido a que na síntese da comida sempre se introduziam perturbações através dos fios condutores.

Já em casa, de repente Liúlia começou a chorar. Disse que a comida sintética era uma porcaria, que odiava a cibernética e que queria viver no meio da natureza, viajar a pé, ordenhar cabra, beber leite natural e comer pão de centeio. Disse também que as sensações infundidas eram uma paródia do sentimento humano.

Michka começou também a chorar e declarou que a calculadora do comportamento era uma invenção infame, que um rapaz que se chamava Tom Sawyer, que vivia na antigüidade, e que ele apreciava em alto grau, passava perfeitamente sem calculadora. Depois disse que se inscrevera no círculo de eletrônica somente pra apreender a enganar a calculadora e que se não o conseguisse, faria uma fisga pra fazer um crivo no imbecil automático.

Os tranqüilizava como podia ainda que pensasse também que o museu de aroma não era uma invenção tão extraordinária. Pensei também qualquer coisa dos pseudobifes. Em suma, talvez nos cansemos de encomendar comida.

Depois nos deitamos.Sonhei que lutara de braço partido cum urso e que estávamos sentados junto a uma

fogueira, comendo a agradável carne de urso cheirando a sangue e fumaça.Michka metia na boca enormes bocados e Liúlia me olhava alegre, com seu

maravilhoso sorriso, e um pouco perturbado.É difícil imaginar como era feliz em sonho, porque, não recordo se já o disse, gosto

muito de Liúlia e Michka.Quando acordei, constatei que sonhara todas essas palermices do café, e então

escrevi este conto. Me parece, pois, que, se deixarmos livremente os cibernéticos, o resultado não será muito bom.

É necessário que não os percamos de vista.

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O mistério de HomeroAlexandre Poleschuk

té agora não pude explicar como sucedeu e nunca me senti tão abatido. Tudo começou durante os dias da última sessão da sociedade moscovita dos amantes de literatura da antigüidade. Na sala havia uma pessoa minha desconhecida. Se me

apresentou depois da sessão e me pediu pra ir a sua escola.AA

— Temo por meus alunos. A técnica, a matemática e a física absorveram seu interesse. Queria introduzir em sua educação uma nova corrente.

Aceitei o convite e nunca me arrependi. Os alunos das classes superiores, rapazes de dezesseis e dezessete anos, me acolheram com receio. Um, ao terminar a primeira lição, me perguntou, sem preâmbulo:

— Foi a ti que enviaram pra curar nossa prolixidade técnica?— Não. Não é interessante o que contei?— Se agüenta. — Respondeu alguém, sentado no parapeito da janela. — Por

enquanto é suportável.Eu sabia que, no fim de conta, eram jovens e quando, na agradável aula, se ouviram

os hexâmetros das antigas lendas, os olhos desses presunçosos adolescentes se iluminaram de admiração e curiosidade. A verdade é que em meus alunos, estudantes de filologia e de história, não observara tanta atenção nem interesse. Parece que, o que pros estudantes de humanidade era uma obrigação, a esses rapazes era uma narração assombrosa.

Uma vez por semana ia os ver e cada vez me admiravam mais com sua luxuriante percepção e magnífica memória. Só um, o mais alto e, certamente, o mais forte, não fazia pergunta. Estava sentado na segunda fila e o braço robusto, pendurado nas costas da cadeira, balançava marcando o ritmo das poesias. Às me vezes dirigia a ele com algumas perguntas, mas as respostas eram lacônicas.

— Falas como um espartano. — Lhe disse, certa vez.Talvez fosse esse meu primeiro erro.Assim passou um mês, depois outro. Sabia que os rapazes estudavam intensamente e

trabalhavam numa tarefa que auto-impuseram e que traziam nas mãos a montagem dum aparelho muito complicado, uma espécie de máquina do tempo. Sabia que minhas aulas eram apenas um apêndice pedagógico. Por isso fiquei atônito, em todo o sentido da palavra, quando, numa das minhas conversas, o rapaz calado, de repente, deixou de balançar o braço e disse:

— A acentuação não é exata. Tu...Esperes, esperes. A acentuação desta palavra apenas mudou no tempo do império

romano... Acaso começaste a estudar o grego antigo?— Ele já aprendeu. — Observou um dos rapazes.— Isso é verdade?— Não completamente. Apenas li um livro, o livro do qual nos falaste! E isso é tudo.— Não lhe faças caso! — Disseram — Artião recita de memória a Ilíada.— E verdade?, Artião.— Pois, sim...Fiz-lhe uma série de pergunta. Escolhendo as palavras sem dificuldade, Artião me

respondeu no idioma de Homero. Nem tudo era perfeito com respeito à pronúncia, mas esse defeito era fácil de corrigir.

Certa vez, há dez dias, entre Artião e eu surgiu uma discussão. Estávamos lendo precisamente o lugar da Etiópida, onde se fala, que Aquiles, tendo ferido de morte

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Pentesiléia, rainha das Amazonas, lhe tirou o elmo, troféu tradicional, e de repente, fascinado pela beleza, se enamorou da moribunda.

— Se supõe que o milésio2 Artino, autor desse poema, foi aluno de Homero. — Disse eu.

— Não duvido. — Disse Artião. — Que cena!— Bestial! — Disse um dos rapazes.— Mas, meus amigos, — disse, me dirigindo a toda a classe — é possível que não

pudessem encontrar um vocábulo mais melodioso que bestial?— O sentimento nem sempre se expressa com palavras melodiosas. E sabes melhor

que qualquer outro. — Replicou Artião.— Mas essas obras como a Etiópida, a Ilíada...— Na tradução censurada, sim. Os heróis de Homero são mortais, às vezes

carinhosos, com mais freqüência severos. Mas, sem papa na língua! Aquiles grita a Agamenão: Bêbado, cara-de-cão!, e o tradutor evita o risco, dizendo: Provador de vinho, pessoa com figura de cão!3 E como Zeus insulta Hera?

Artião sorriu.— Por isso Homero é grande. Em tudo se revela o artista, o poeta. Outro em seu

lugar teria começado a narração da guerra de Tróia quase desde Adão. Contudo Homero começou a partir do mais importante, do mais relevante.

Canta, musa, a cólera de Aquiles, o peleidaFunesta aos aqueus, feixe de calamidade

— Talvez tenhas razão. — Comecei cautelosamente, procurando me aproximar do tema da aula desse dia O problema homérico — mas o caso é que Homero não existiu.

— Como, não existiu? Não pode ser! — Gritaram os rapazes.— Sim, meus senhores, Homero não existiu. Houve um criador coletivo: Centenas de

aedos4 transformaram o núcleo primitivo da lenda num poema de maravilhosa formosura.

— E isso se sabe cabalmente? — Perguntou Artião.— Sim, exatamente. Mantenho essa opinião. Já o abade François D'Aubignac

interveio, no princípio do século 17, duvidando da personalidade de Homero. Assinalava uma série de contradições nas narrações. Desde então, e se baseando nas investigações de Grote, de Hermann e, anteriores a elas, as de Wolf, se considera isso completamente demonstrado. A propósito, já antes discuti sobre isso, mas a seu tempo venceu o parecer de Aristarco, de que Homero compusera a Ilíada em jovem, e a Odisséia muito depois, já velho.

— Mas e os antigos? Consideravam que Homero existia realmente! — Replicou Artião, sem se dar por vencido.

— Os antigos não conheciam o método analítico, desenvolvido em meado do século 19.

— Nessas questões mais valia integrar... — Assinalou alguém.— Como? Integrar? — Ri. — Outra vez o tecnicismo numa lição de letra humana?— Não te aborreças. — Disse, conciliador, Artião.— Mas nos é difícil acreditar, a mim e a meus camaradas, que Homero não existiu.

Tem de se estudar isso.— Sabeis, meus amigos, o que pensavam os antigos sobre a questão? Sete cidades

disputavam a honra de ser o berço do poeta, e até hoje se conservou um antigo quarteto 2 Natural de Mileto, cidade da Jônia, na antiga Grécia.

3 Se trata da tradução dessas obras ao russo. (Nota do tradutor)4 Aedo: sm Poeta grego da época primitiva, que cantava ou recitava com acompanhamento da lira. Homero era um aedo. Nota do digitalizador

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que diz:

Não tentes saber onde nasceu Homero nem quem ele foi,Todas as cidades se consideram ufanas de serem sua pátria,O que importa é o espírito e não o lugar. A pátria do poeta éA própria narração da Odisséia, o brilho da mesma Ilíada.

E mais... Consideraram Homero filho de Apolo e da musa Calíope. O consideraram natural de Quio, da Lídia, de Chipre, da Tessália, da Lucânia, de Rodes, de Roma e até descendente do próprio Ulisses, filho de Telêmaco e de Policasta, filha de Nestor.

— Quente! — Gritou de repente Artião. — Quente! Teria que comprovar essa última suposição. Não é em vão que Ulisses ocupa um lugar tão proeminente na Ilíada e na Odisséia. Houve certas razões que obrigaram o antigo narrador...

— Ou antigos narradores. — Disse eu.— Não. Obrigaram o antigo narrador a fazer de Ulisses a figura central do segundo

poema. Além disso, o único canto da Ilíada que não está relacionado diretamente ao argumento, a ira de Aquiles e a conseqüência, volta a nos falar das aventuras de Ulisses.

— Te referes a Dolonéia?— Falo do canto onde Ulisses, de reconhecimento a Diomedes, matou o espião dos

troianos.— Eles mataram o espião Dólon e os especialistas chamam esse canto Dólon. Mas o

que se deduz disso?Que havia relação entre Homero e Ulisses. É isso que se deduz.— Em geral, o arqueólogo Schliemann que com a licença do governo turco escavou

na antiga Tróia, não duvidava de que Ulisses existira realmente. Na ilha de Ítaca, cujo rei era Ulisses, Schliemann descobriu o coto duma velha oliveira no meio das ruínas de pedra. Recordas como, ao comprovar a personalidade de Ulisses, a esposa Penélope ordenou à criada Euricléia tirar a cama do marido, e Ulisses, ofendido, respondeu que era uma cama especial, explicando, em continuação, como erguera as paredes do quarto de dormir em volta duma oliveira à qual cortara os ramos e o tronco, deixando o coto, do qual fez a cama e portanto ela não podia se mover.

— E foi precisamente essa cama que Schliemann achou? — Exclamou Artião.— Schliemann achou o resto duma enorme oliveira entre as ruínas dumas paredes de

pedra, mas isso pode muito bem ser uma coincidência. Que dedução se pode tirar disso?— Muitas. Porque esse leito é um segredo da família de Ulisses. E só o sabiam

Ulisses ou o filho. Inclusive a criada Euricléia não sabia que essa cama era imóvel. E se Ulisses viveu realmente, por que se há de negar a existência de Homero? Isso tem de se comprovar.

Assim o disse: Tem de se comprovar. Nessas palavras de Artião havia algo de extraordinário. Me recordei da exclamação dum dos rapazes: Bestial! Mas lhes disse:

— Minha tarefa não é vos atrair ao campo dos humanistas. Só queria vos interessar um pouco pela arte da antiguidade e sua história. Enfim, o conhecimento da arte enobrece o homem.

— E o trabalho coletivo pra resolver os problemas necessários não enobrece? — Perguntou Artião, se levantando e rapidamente saindo da aula.

Alguém observou:— Artião irá diretamente ao laboratório.Já não voltei a o ver até o memorável dia em que veio me falar e, um pouco confuso,

disse:— Tenho tudo preparado e podemos começar a busca quando queiras, mesmo agora.— A busca? Mas a quem procuraremos?

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— Como, a quem? Homero!Soltei uma gargalhada.— Mas Homero tem que se procurar nos manuscritos antigos, analisando e

confrontando os textos, se afundando num montão de comentário.— Ou se afundando na profundeza do tempo. — Observou Artião. — A máquina

está pronta. Pensei que aceitarias.Fiquei tão aturdido que permiti que Artião me levasse ao laboratório. Ali, junto à

janela, estava um deslumbrante aparelho de metal polido e muito parecido com um carrinho de acumulador do século 20.

Me acomodei no assento metálico. Artião se sentou ao lado. Agora, falando com o coração nas mãos, posso dizer que nem de longe imaginei algo de verdade. Pensava que Artião decidira me pregar uma peça e depois confessaria rindo. Mas nada parecido sucedeu. Se inclinou até o painel de comando e de repente as paredes do laboratório começavam lentamente a se desvanecer. Surgiram imagens confusas de figuras humanas que com estranhos movimentos desfaziam as paredes do laboratório. Momentaneamente brilhou o sol e depois se extinguiu.

Levei algum tempo a me recuperar. Nosso carrinho deslizava numa calçada abaixo. Ao redor verdejavam as plantações e o sol brilhava no alto do céu. Artião deteve o carrinho na volta do caminho atrás da qual se avistava o mar.

— Onde estamos?— Já saberemos. — Respondeu Artião.Saltou ligeiramente do carrinho e começou a subir a colina em passos rápidos. Ali

em cima, estava um homem com um extravagante traje amarelo, mas quando se levantou e se inclinou saudando Artião, vi que o traje não tinha manga. Mas isso é uma túnica!, pensei. Imediatamente, atrás da colina, começavam umas ladeiras abruptas, e ao longe se viam enormes penhascos que pareciam suspensos. E de novo me pareceu ouvir uma voz que me sussurrava: O Olimpo. Isso é o Olimpo.

Artião desceu da colina correndo e saltando e se sentou apressadamente no carrinho.— O que averiguaste?— Tudo está em ordem. O pastor de cabra disse que Homero já morreu, mas o avô

do pastor se recorda bem do poeta.— Em que século estamos? — Perguntei, sem chegar a crer completamente não ser

um sonho tudo o que se passava.— Agora? — Artião se inclinou aos instrumentos, deu voltas à manivela dum

aparelho parecido cum velocímetro. — Estamos no século -12. Antes de Cristo, se subentende.

Houve várias paradas mais, e, enfim, a última. Paramos no meio dum amplo prado. Anoitecia. Se ouvia uma canção que saía dum pequeno povoado, cujas casas baixas podiam ser vistas por nós entre as árvores. Nada havia ao redor. Artião me pediu que me levantasse, tirou de baixo do assento um pequeno embrulho, o abriu e me deu um sanduíche com queijo.

— Aonde iremos?— Receio que desta vez tenhamos passado além.Artião, com grande apetite, arrancou duma vez um enorme pedaço de sanduíche, e de

repente, me batendo com o cotovelo nas costas, apontou, com a mão, ao povoado. Dali vinha um cavaleiro a galope na erva coberta de orvalho. Se aproximava rapidamente, e o ruído da armadura amorteceu o uivar dos cães, a canção, e o incansável cricri dos grilos. O cavaleiro cavalgou até onde estávamos e parou, admirado, levantando com a mão direita uma pesada lança. Encolhi os ombros, escondendo a cabeça e esperando o golpe que se nos avizinhava, mas Artião, sem se levantar do assento ergueu a mão com

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o embrulho e saudou o cavaleiro em voz alta e em dialeto eólio:— Te saúdo! Te saúdo!— Te saúdo também, jovem guerreiro e a ti honorável desconhecido. — Respondeu

o cavaleiro e saltou do cavalo.— Procuramos Homero — disse Artião. — O viste?— Homero? Homero... Não, não conheço esse senhor. Ó, pode ser que seja um

simples guardador de porco que fugiu de vossa casa?— Não, compõe canção.— Compõe canção? Então é um mísero cantor. Ontem esteve em nosso povoado e

cantou durante largo tempo na praça, mas, que caia sobre minha cabeça a maldição dos deuses se algum dos nossos lhe deu ao menos um osso descarnado. Noutros lados foi melhor, lá ainda há cães tontos que já esqueceram o que nos custou Tróia. O mendigo foi mo caminho, em direção ao mar.

Artião manobrou com uma alavanca e nosso carrinho deslizou suavemente na relva. O cavalo, se assustando, deu um salto e começou a galopar até o povoado. Ouvimos durante muito tempo a voz do cavaleiro chamando o cavalo.

Na manhã avistamos o mar. O ar era transparente. Se percebiam as saliências das rochas duma ilha ao longe. Artião saiu do carrinho e me ajudou a sair. O sol se elevava no céu azul sem nuvem e pressagiava um dia quente.

— Está ali alguém sentado. — Disse Artião, indicando, com a cabeça, ao lado do desfiladeiro.

Efetivamente, a uns 100m de nós estava um homem sentado num penhasco. Donde estávamos apenas se podia o ver confundido com o fundo acinzentado das rochas, mas quando nós nos aproximamos vi um velho sentado e imóvel. Sem afastar os olhos, olhava ao longe, onde se estendia a ilha de forma mais visível.

Nos aproximamos mais.— Este é Homero. — Disse Artião. — Este é Homero! Isto é tão certo como a ilha

que se divisa daqui ser Ítaca.O ancião não se voltou ao sentir nossos passos. Parecia estar dormindo, mas quando

Artião lhe dirigiu a palavra respondeu imediatamente à saudação. Se a lenda era certa: Homero era cego.

— Não vê. — Disse Artião. — É cego. Olhei a cara do ancião, esperando ver os olhos sem vida do poeta, tão conhecidos de todos nós segundo o busto antigo, mas, em breve compreendi algo mais: Não só era cego. As pálpebras enrugadas se afundavam nas órbitas dos olhos... Homero fora cegado.

— Homero, estão falando contigo homens do futuro. Compreendes? 33 séculos nos separam.

— Sois deuses? — Perguntou o ancião, sonora e simplesmente.— Não! Nada disso! Somos mortais mas viemos dum futuro longínquo. Se lembram

de ti, Homero, e te veneram como grande poeta. Suas canções foram escritas. A Ilíada e a Odisséia.

— Foram escritas? Não compreendo.— Com sinais pequenos, em folhas finas e brancas.— Assim fazem os fenícios. — Disse Homero, pensativamente. — Ouvi falar disso.— Mas devo comunicar uma notícia desagradável. Algumas pessoas duvidam de tua

existência, Homero.— Os deuses não têm dúvida. Sois mortais — Homero sorriu de modo cômico e com

um rápido movimento, tateou o penhasco onde estava sentado e vi que a mão era forte e ágil. Depois se inclinou e, levantando uma pedra do solo, a apertou fortemente na mão.

— Nos interessam certas contradições dos poemas.

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— Não estareis rindo de mim?, forasteiros. — Homero perguntou em voz alta e, através do debrum da capa cinzenta, se via como se retesaram os músculos ainda potentes.

— Cuidado! — Exclamou Artião, e segurou a mão do ancião levantada pra desferir um golpe.

Durante um momento Homero resistiu, mas enfim a mão se abriu e a pedra caiu na ladeira e se afundou no mar.

— Agora, todos podem ofender um cego. — Disse Homero, tristemente. — Pra que faço falta? Seguis vosso caminho.

— Não queríamos ofender. Dissemos a verdade, mas há contradições dos poemas. Olhes, por exemplo, eu queria saber... Freqüentemente falas das canções de Ulisses, objetos de ferro, uso de arma de ferro. Mas se em teu tempo ainda não o conheciam?

— Não conheciam? Efetivamente não o conhecia aquele que não tinha touros de grandes chifres pra os trocar por facão de ferro, espada e machado. Mas, não encontraram mercadores que trazem do outro lado do mar jóias e armas? Muitas trocas por cativos, vinho, touro, pele...

— É possível. É possível. Mas, de qualquer maneira, Homero, estás de acordo...— Esperes. — Artião me interrompeu. — Agora, toca a mim perguntar. Homero, já

comeste algo hoje?— Não ontem nem hoje. Aqui não querem escutar minhas canções. Doze naves

pintadas de vermelho e cheias de intrépidos guerreiros conduziu Ulisses, filho de Laertes às costas de Ílion e não voltaram. Aqui não esqueceram isto.

Artião correu a nosso carrinho, tirou o embrulho e empreendeu o regresso aonde estávamos. Me aproveitando disso perguntei, sem rodeio, a Homero:

— Se crê que tu, Homero, durante a guerra de Tróia estiveste nas fileiras dos aqueus. É verdade?

— Estive. — Disse Homero, muito pensativo. — E com qual dos heróis me comparais?

Com nenhum. — Respondi, encolhendo os ombros. — Se considera que eras um simples guerreiro e que depois cantaste o que viste.

Artião voltou correndo e, desembrulhando o papel, pegou cuidadosamente a mão de Homero e pôs nela um pedaço de pão com queijo.

— Comas. — Disse Artião. — É pão com queijo.Homero deu uma pequena mordidela no sanduíche, engoliu e, escondendo o rosto

entre as pregas do traje, disse:— O pão é como o ar, o queijo é muito saboroso. Acredito, forasteiros, não vos ríeis

dum velho mendigo. Perguntai e contarei tudo.— Por tuas canções sabemos que Ulisses, depois de matar os pretendentes de

Penélope, foi de novo rei de Ítaca. Viveu muito mais tempo?— Algum dia comporei um canto mais sobre ele. — Disse Homero. — Agora não,

depois. Sim, Ulisses matou os pretendentes. Clamando e gemendo, os parentes tiraram de casa os cadáveres. Os que viviam em Ítaca foram enterrados pelos seus. Os que eram doutra cidade foram enviados às respectivas casas. Encarregaram os pescadores de transportarem os cadáveres. Mas é aqui que Eupites levantou contra ele os cefalônios.

— Isso sabemos, sabemos. Permitas te recordar o lugar onde Eupites, se dirigindo aos aqueus, os incitou à vingança, senão a humilhação e a desonra cairiam sobre os descendentes.

— Sim. Assim disse e conduzi à casa de Ulisses a turba de cefalônios.— E foi morto?— Sim. Foi morto.

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— E o que se passou depois? — Perguntou Artião, impacientemente.— Chegaram os pescadores à casa dos familiares dos mortos, e durante a noite,

silenciosamente chegaram à Ítaca sete embarcações negras. Quando Ulisses viu seus mastros já era tarde. Enquanto que os cefalônios, uns indiferentes, outros com rancor retido, olhavam Ulisses, que se defendia à porta de casa. O primeiro que caiu foi Telêmaco, filho de Ulisses. Abateram Eumeu cuma flecha e assim morreu o intrépido e fiel ancião, guardador de porco. Arrancaram a espada de Ulisses e ataram os pés e as mãos com correia. Depois se ouviram gritos, dizendo: Morte a Ulisses! Morte! Morte! Não!, disseram os que se recordavam da força e da inteligência do herói, o que com pleno direito levava o elmo e as armaduras de Aquiles. O cegai!, gritou um desconhecido da multidão, cujos olhos ardiam de raiva. Certamente parente dalgum dos que morreram nas mãos de Ulisses. E cegaram o herói. Entre risos, o meteram numa barca, enquanto o mar se encrespava. Eis nossa vítima. É pra ti, Posseidão. Tomes!, gritando assim seguiram a barca que levava o herói. Durante muito tempo ela vagueou sobre as ondas furiosas, e o vento do mar sussurrava aos ouvidos do mártir: Te recordas de quando cegaste Polifemo? Estamos em paz. Agora vivas, se podes, herói...

— E o que sucedeu depois?As ondas arrojaram a canoa sobre uma costa arenosa. As gaivotas gritavam ao redor

e audaciosamente esvoaçavam sobre a cabeça de Ulisses. E gritavam chorando: Estás vivo!, Ulisses. O herói vagueou durante muito tempo mas todos lhe davam coisas. Aqui um pedaço de pão, ali um cacho de uva. Essa era sua comida. Se passaram anos. Ninguém ousou reconhecer no cego ancião o herói. Um dia, foi em Atenas, estava Ulisses sentado junto ao fogo duma lareira, o nobre senhor o mandara encher uma tigela com sopa. Alguém cantava, as cordas do instrumento vibravam e ao redor reinava grande alvoroço. Depois, a conversa recaiu, por si só, sobre a guerra e as perdas sofridas e alguém pronunciou o nome de Ulisses dizendo: Não, Tróia não cairia, se, audaciosamente, o onisciente varão não usasse um ardil. Assim falavam e o velho mendigo se sentou mais perto da lareira. A luz não se vê sem olho, só se apercebe o calor. E os heróis, amigos, de repente ficaram de pé a seu redor. Só tu, Ulisses, nos sobreviveste. Será possível que desaparecemos sem deixar rastro de vida? Assim disseram os heróis. Então Ulisses, recordando tudo, se levantou rapidamente, descalço e com passos cuidadosos, e foi até o canto, onde soava a cítara e a pediu timidamente. E pegando em todas as cordas com uma mão, as soltou ao mesmo tempo. Mal se deixou de ouvir o som, Ulisses começou a cantar os feitos de Aquiles, sua terrível ira, que tanta dor infligiu aos aqueus. Assim anda o herói em sua amada terra. Uns lhe dão de comer, outros açulam os cães, mas a glória das proezas dos grandes heróis vive, e consigo os heróis. Freqüentemente essa força ignorada o arrasta a esta costa. Sabe que ali, envolta na névoa, está a costa de Ítaca, sua terra natal.

Regressamos a nosso aparelho. Carrinho respondeu ao contato de Artião com o murmúrio dos motores. Artião fixou no tabuleiro dos comandos umas cifras. Pensativamente me deixei cair no assento.

— A julgar pelo que observamos esse ancião considera Ulisses e Homero a mesma pessoa — Disse. — Não sei o que meus colegas acharão disso. Alguns, naturalmente, acolherão minha notícia sem entusiasmo.

— Olhes. — Disse Artião. Estava de pé, em terra, e se inclinou a mim, apoiando o peito sobre a borda do carrinho. — Puxes esta alavanca a teu lado.

Executei a indicação e só então, quando Artião começou a andar na vereda a encontro do ancião e ele se levantou em sua direção, pelo conhecido tremor dos objetos que se desvaneciam ante meus olhos, compreendi que Artião ficava... E não sei donde

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chegou, de repente, a meus ouvidos, a exclamação emocionada do ancião:— Ó! Zeus, nosso pai! Ainda há deuses no claro Olimpo! Não és, meu filho,

Telêmaco?Ainda não pude compreender o ocorrido. O que menos podia esperar é que um

homem amante da técnica se comportasse e pensasse assim.

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Encontrarei meu irmãoVladislau Krapivin

Esperando Magalhães1

uem estivera em Konsat recordará a estreita e inclinada escada situada na costa rochosa. A escada começa no larguinho5 de colunas e desce até o mar. Na parte inferior, a separa da água uma estreita franja de terra coberta de pedras esponjosas e

de grandes cantos arredondados. Essa franja se estende entre o mar e as rochas amarelo-esbranquiçadas, desde o vale do sul até a mesma língua do norte, onde se ergue ao céu a agulha inclinada dum obelisco, monumento aos astronautas que pereceram.

QQAqui dá gosto apanhar pedras de diferentes cores, polidas pela água, e perseguir os

pérfidos caranguejos negros do mar. Os rapazes da cidade escolar, situada ao sul do cosmódromo de Ratalsk, de caminho até casa, se detinham na praia. Depois de encherem as algibeiras de riqueza, cujo valor nunca compreenderam, nem os mais crescidos compreendem, sobem correndo nos altos degraus. Gostam mais da velha escada que da nova, mecânica, que sobe entre as rochas a uns cem passos dali.

Naquele tempo eu acabava de fazer a informação sobre a terceira expedição ao território do Amazonas e durante todo o mês podia ler novelas e poemas que pusera um pouco a parte nos dias de intenso trabalho.

Cum volume de poesia ou novela de Randin ia até o larguinho superior da Velha Escada. O lugar era solitário. Entre as gretas das lajes crescia a erva. Nos ornamentos dos pesados capitéis os pássaros se aninhavam.

A princípio passava o tempo sozinho no larguinho. Depois começou a aparecer um homem alto e moreno com casaco cinzento de corte estranho. Nos primeiros dias, como de comum acordo, não nos prestamos atenção. Mas, exceto nós, quase ninguém vai àli, e ao nos encontramos continuamente, começamos finalmente a nos cumprimentar, mas não falávamos. Eu lia um livro. O desconhecido, segundo parecia, estava preocupado com algo e, ocupado nisso, não queria entabular conversa.

Esse homem vinha sempre na tarde. O sol já estava sobre a península do norte, atrás da qual se erguiam, agrupados, os edifícios brancos de Konsat. O mar ia perdendo a cor azul e as ondas tinham uma cor cinzenta, metálica. A oriente, refletindo o sol do entardecer, os arcos da velha colunata, ponte ao cosmos, adquiriam uma cor rósea. Essa colunata estava nos limites do cosmódromo de Ratalsk, como monumento aos tempos em que as naves interplanetárias ainda não se descolavam verticalmente.

Quando chegava ao larguinho desconhecido se sentava na base duma coluna e permanecia calado apoiando o queixo no punho fechado.

Só se animava quando na praia apareciam os alunos. De pé, no degrau superior da escada, seguia os jogos dos rapazes e esperava o momento em que um rapaz meio-ruivo, com casaco de tigre com franjas negras e cor-de-rosa, o visse e corresse até lá acima. Ia

5 Na tradução original está larguinho. Largo na acepção de praça onde desembocam várias ruas. Nota do digitalizador.

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sempre correndo com tanta rapidez que o casaco, posto no ombro, ondeava como uma bandeira multicor.

E o reservado desconhecido se modificava num instante. Alegremente acolhia o rapaz e, falando animadamente de seus assuntos, se afastavam depois de se despedirem de mim cuma inclinação de cabeça.

A princípio pensei que eram pai e filho mas o rapaz, em certa ocasião, respondendo a alguém, gritou:

— Encontrarei meu irmão!Na conversa dos irmãos, depois soube que o maior se chamava Alexandre.O que se segue, sucedeu aproximadamente uma semana depois de ter visto

Alexandre em primeira vez. Ele vinha na hora costumeira e se sentou junto da coluna, cantarolando uma canção estranha e um pouco estridente. Estava lendo, mas sem muita atenção, porque sabia quase de memória A canção do planeta azul, de Valentim Randin. Às vezes, por cima do livro, dava uma olhadela a Alexandre e parecia que a cara me era conhecida.

O vento que soprava era débil. Voltando as folhas do pequeno tomo quase desencadernado, me escapou uma folha solta, que se arrastando entre as pedras, caiu quase aos pés de Alexandre, que a apanhou e se levantou pra me devolver. Também me levantei e nos encontramos no meio do larguinho.

A primeira vez que vi Alexandre de perto. E vi que era mais jovem do que pensava. As rugas do cenho davam um semblante severo mas Alexandre sorriu e as rugas desapareceram. Perguntou, me dando a folha:

— Certamente o livro não é interessante?— Simplesmente sei quase de memória.Eu não queria interromper a conversa e disse:— Teu irmão se atrasou hoje.— Me avisou que demoraria mas me esqueci.Nos sentamos lado a lado. Alexandre me pediu o livro. Me parecia impossível que

não conhecesse as novelas de Randin, mas nada disse. Alexandre abriu o livro e pôs a palma da mão sobre as folhas pràs sujeitar. No dorso vi uma cicatriz bifurcada e esbranquiçada. Alexandre captou meu olhar e disse:

— Isto foi lá... Na Rosa Amarela.Imediatamente recordei tudo. Exclamei:— O planeta de neve?! Alexandre Snieg!Isto sucedera há muito pouco tempo: Transmissões de rádio e exemplares

extraordinários de revistas cujas páginas mostravam Alexandre Snieg e seus três camaradas. Em toda a Terra se repetiam seus nomes com espanto.

Via em minha frente o homem que voltara à Terra, 300 anos após terpartido numa nave interplanetária. Mas não era isso o mais espantoso. As naves

Bandarilha e Monção6 também navegaram no cosmo durante mais de dois séculos. E embora a história da nave fotônica na qual Snieg voltara fosse mais extraordinária que a das outras naves, eu não pensava em sua história! Perguntei, pressentindo que tropeçara num enigma excepcional:

— Alexandre, são 300 anos, e o rapaz não tem mais de doze! Como pode ser teu irmão?

— Sei que és arqueólogo. — Disse Alexandre, depois de curto silêncio — Deves sentir o tempo melhor que os outros. E compreender a gente. Me ajudarás se te contar

6 Na tradução portuguesa original está Bandarilha e Musson. À tradutora escapou que o termo russo муссон e ucraniano мусон se traduz a monção. Assim apenas transliterou. O estilo e outras características deixa subentender que a tradutora é uma russa, de pais portugueses, não sendo o português sua língua nata. Levando isso em conta, além de não dispor de internete, é estupenda a qualidade da tradução. Nota do digitalizador.

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tudo?— Tentarei ajudar.— O que contarei apenas três pessoas e eu sabem. Mas não podem me ajudar. Sinto

muita falta de teu conselho. Mas como começar? Bom... Olhando bem tudo, começou precisamente nesta escada.

2Tudo começou nesta escada.Naall, depois de morrerem os pais, veio na primeira vez até o mar. O mar, bordejado

no amplo arco da branca cidade, desprendia uma cor azul e se enchia de pequenas ondas. Luzia o sol e o mar parecia carinhoso, como se nunca desaparecera nave na profundeza.

Naall ia descendo até a água. Quanto mais se aproximava do mar, mais apressados eram os passos nos degraus. Em breve se transformaram numa correria desenfreada, de encontro á enorme massa azul banhada de sol e acariciada por um vento úmido e salino.

Pisou uma pedra em falso e torceu um pé, caindo no chão, mas a pancada não foi forte. Mordendo o lábio e coxeando, continuou descendo. Como todos os meninos, Naall acreditava que a água salgada era o melhor remédio contra os arranhões e feridas. Por isso, tirando as sandálias, se meteria na água mas, entre as pedras que as pequenas ondas cobriam periodicamente, viu um grande caranguejo negro. O rapaz deu um salto involuntariamente ao lado.

Mas uma coisa é se deixar levar pelo medo momentâneo e outra é se acovardar completamente. Pra evidenciar sua valentia e se vingar do caranguejo pelo susto recebido, decidiu caçar o negro crustáceo e o lançar longe no mar.

O caranguejo, talvez pressentindo o perigo, se apressou a se esconder entre as pedras.— Agüentes, pois. — Murmurou o rapaz.Absorto na caça, começou a rolar a pedra.A pedra, lisa, caiu na água. O caranguejo, vendo que o encontraram, apressou ainda

mais a corrida: Mas Naall já não lhe dava atenção. No cascalho molhado viu uma caixinha azul. Era redonda e lisa como um seixo rolado. Não se sabe como chegou àquela costa do mar.

O rapaz se sentou nas pedras e começou a examinar o achado. A caixinha estava hermeticamente fechada. Ficou mais de uma hora a raspando com a fivela do cinto, antes de conseguir fazer saltar a tampa. Enrolado numa velha folha de papel havia um distintivo estranho: Era um raminho de ouro em cujas folhas estavam incrustadas estrelas brilhantes. No mesmo ramo estava gravada uma breve palavra: Busca.

Examinando o distintivo, se esqueceu do papel, e não se lembraria se o vento não o fizesse bater nos joelhos. O rapaz o alisou. Era uma folha duma velha revista, parecendo muito velha. A água não se infiltrara na caixinha e não estragara o papel.

Começou a ler, decifrando, com dificuldade, os caracteres antigos. De repente a face ficou muito séria mas continuou lendo e no fim da folha encontrou umas palavras inesperadas, como um som forte e de improviso saído duma corda de instrumento.

Cerca de duas horas depois, os estudantes chegaram na beira-mar. Naall continuava sentado no mesmo lugar com os cotovelos apoiados numa pedra ainda quente de sol, olhando como surgiam junto na beira-mar as cristas brancas das ondas. Disse o maior dos rapazes:

— Estávamos te procurando. Não sabíamos que vieras ao mar. Por que estás sentado sozinho na beira-mar?

Naall não o ouvia. O vento aumentava e as ondas faziam muito barulho. Sabes como as ondas retumbam? No princípio foi aumentando o ruído da onda que se aproximava,

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depois se desmoronou a crista salpicando tudo. A onda ao se desfazer, se estendeu ruidosamente na praia e atrás dela muitas mais chegavam.

3

Entre os estudantes do vale do sul Naall não se distinguia por algo de extraordinário. Como todos, gostava de se balançar a grande altura, se aproximando perigosamente das árvores tortuosas e nodosas, dar pontapé na bola de cores diferentes entre os troncos das árvores do soalheiro bosque. Não gostava muito de estudar a história das descobertas dos grandes planetas. Ao correr deixava atrás muitos rapazes mas não nadava muito bem. Tomava parte em qualquer jogo com prazer mas nunca era o melhor. Só uma vez fez uma coisa que nem todos podiam fazer.

Um raminho flexível dum arbusto que crescia na beira-mar, lhe arrancou a insígnia da camisa. A insígnia de ouro com estrelas azuis caiu à água. Se via na água cristalina como se afundava cada vez mais. E então, sem pensar, Naall se atirou de cima das escarpas, de 6m de altura, passando, por milagre, sem roçar as bicudas pedras amontoadas embaixo.

Rapidamente alcançou outra vez a margem e, levando no punho fechado a insígnia, com a mão livre começou a escorrer a camisa em silêncio.

Ninguém sabia onde encontrara a insígnia nem porque gostava tanto dela. Ninguém lhe perguntou algo. Cada um é livre de ter seu segredo. Depois da perda dos pais, Naall parecia que se tornara maior e nem sempre respondia às perguntas dos amigos.

Aparentemente quase nada mudara em sua vida depois de se inteirar da desgraça. Já antes, Naall passava a maior parte do tempo na escola. O pai e a mãe eram especialistas no estudo das grandes profundezas marinhas e freqüentemente faziam expedição de investigação. Agora o rapaz já sabia que o batiscafo Veado nunca mais voltaria, e no fim da avenida não apareceria alguém a cujo encontro se pudesse correr, se esquecendo de tudo.

Passaram meses. Houve manhãs de horas de aulas tranqüilas, dias cheios de sol, de jogos ruidosos e chuvas alegres. Talvez já se esquecera da dor mas um dia, não se sabe donde, as ondas arrojaram à praia, junto da Escada Velha, uma caixinha azul. Não era uma recordação do batiscafo desaparecido.

Na noite, observando na janela os reflexos laranja dos faróis de Ratalsk, tirava da caixinha a folha enrugada da revista. Não precisava de luz, sabia de memória todas as linhas impressas. Era uma revista editada havia 300 anos. O texto da folha falava da descolagem da nave fotônica Magalhães.

Nos manuais de história dos vôos siderais, breve e concisamente se dizia dessa nave: Magalhães partiu a uma das estrelas amarelas, a fim de procurar um planeta parecido com a Terra. A tripulação devia, certamente, trabalhar com dados inexatos, obtidos da nave desaparecida Globus. O Magalhães deveria ter voltado no fim de 112 anos mas não se recebeu notícia. Certamente os jovens astronautas, atraídos pela lenda e sem experiência, morreram sem atingir o objetivo.

No manual nem citavam os nomes. Naall os averiguou na folha encontrada. O capitão se chamava Alexandre Snieg.

Naall ouvira, do pai, que um dos antepassados era astronauta. E então, na beira-mar, ao ler o nome de Alexandre Snieg, sentiu orgulho e afronta ao mesmo tempo. Afronta por causa do manual com as poucas palavras, e talvez inexatas sobre os cosmonautas. Como se pode saber se a nave desapareceu e a tripulação teve culpa?

— E se nada encontraram naquela estrela amarela e seguiram em frente? E se ainda

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continuam voando? — Pensou, debatendo as frases do livro. Mas, ao pensar, rapidamente quase fechou os olhos, como se assustando do próprio pensamento. Via claramente a larga e frondosa avenida do parque da escola e no fim um homem alto, com o casaco prateado de astronauta, pessoa a cujo encontro podia correr e se esquecer de todo o mundo.

E se voltar? Ainda podia voltar. Nas naves cósmicas o tempo decorre dezenas de vezes mais devagar que na Terra. E se de repente a nave voltar? Então Naall se encontraria não com um antepassado, pessoa desconhecida doutro século, mas com seu irmão. Porque no final da folha da revista o rapaz lera as palavras ditas por alguém à tripulação de Magalhães:

Não esqueceis os velhos nomes. Voltareis dentro de muitos anos mas os netos de vossos amigos vos receberão como amigo e os netos de vossos irmãos serão vossos irmãos.

Naall compreendia que tudo era simples fantasia. Contudo imaginava claramente como podia ocorrer tudo aquilo. Será que numa manhã...?

Essa manhã chegou, evidentemente: Um sol brilhante no alto do céu e um céu tão azul que os edifícios brancos e o corpo prateado da nave refletiam uma cor azul celeste. Os foguetes auxiliares acabavam de pousar cuidadosamente a nave no solo do cosmódromo. E a nave ficara imóvel, se apoiando nos cilindros negros dos refletores fotônicos. A enorme nave sideral era uma torre brilhante cuma crista negra de cerca de 150m de largura. Na crista ressaltavam nitidamente as letras antiquadas e brilhantes do nome: Magalhães. Naall via como as pequenas figuras dos astronautas desciam lentamente na escada em espiral. Já os astronautas desceram e foram encontrar as pessoas. Naall foi primeiro a seu encontro, se pôs diante de todos e imediatamente perguntou quem é Alexandre Snieg, depois... Não, falará muito. A princípio simplesmente dirá o nome, uma vez que ele também é Snieg.

Naall não estava acostumado a ocultar sua alegria ou tristeza: Mas isso não se diz a alguém, já que, sem querer, começava a sonhar com o milagre. E quem acreditará num milagre? Mas às vezes, na noite, olhando os reflexos dos faróis do cosmódromo, Naall pegava na enrugada folha. Cada um tem direito a seu sonho, ainda que seja em vão.

Não há milagre. Mas devido a uma rara coincidência, nesse mesmo ano, a quinta estação piloto captou um sinal de chamada que alvoroçou todo nosso planeta:

— Terra, dês sinal de resposta. Me aproximo. Sou Magalhães.

4A Lua ainda não aparecera mas a parte superior do anel energético já se elevava

sobre os montes, formando um marcado arco irregular. A dispersa cor amarelada deslizou na janela e, formando uma larga franja, pousou no tapete.

Naall desligou o rádio-receptor de pulso. Não teve mais notícia mas não podia esperar mais. O rapaz vacilou um segundo depois se levantou num salto, num instante fez a cama e se vestiu. Pondo o casaco no ombro, se aproximou da janela. A janela estava entreaberta. Nunca se fechava toda porque na parte exterior, fortemente se prendendo à cornija com minúsculas puas, uma trepadeira marciana de cor escarlate entrava no aposento. A haste delgada seria cortada se o vidro corresse até o topo.

Lá fora fulguravam, refletindo a luz do anel, os arbustos molhados pela recente chuva, emitindo sobre as paredes e os largos vidros dos edifícios da escola, um reflexo esverdeado mal perceptível. Sobre as colinas cintilou e se apagou nas escassas nuvens um raio de cor alaranjada: De novo o cosmódromo de Ratalsk sinalizava a alguém.

Abriu a vidraça e saltou à vereda calçada.Alex Oscar, reitor da escola, ainda não se deitara. Estava lendo. Uma fresca rajada de

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ar, cheirando a chuva, penetrou na porta, que se abria, e revolveu as páginas do livro.De pé, à porta, estava um rapaz.— Naall?— Sim.Arrastando ligeiramente as palavras e se apressando a terminar rapidamente, Naall

contou tudo em primeira vez.Oscar se levantou e foi até a janela. Contra a opinião geral, não se considerava um

pedagogo experimentado. Simplesmente tinha a aptidão de encontrar a tempo a verdadeira solução, mas nesse caso não sabia o que fazer. O que diria? Tentar explicar, dissuadir o rapaz? Mas dissuadiria? Nesse caso teria razão?

O reitor continuava calado, o tempo passava e não se podia ficar calado mais tempo. O reitor começou, ainda sem saber como continuar.

— Ouças, Naall. Agora... é noite...— Oscar, me deixes ir à costa de Verão. — O rapaz disse em voz baixa. Nem era um

rogo. Se sentia na voz uma saudade parecida com a que os cosmonautas sentem pela Terra e que os faz cometer atos desesperados.

Há coisas perante as quais os conceitos e as regras habituais são impotentes. O que Oscar diria? Somente que era na noite e teria de ir na manhã. Mas o que importava? Oscar disse:

— Te levarei à estação.— Não é preciso. É melhor eu ir só.O rapaz saiu.Oscar se aproximou do videofone, chamou a costa de Verão e, marcando o número

de estação piloto, apertou desesperadamente o botão de chamada urgente.Ninguém respondeu. Só o autômato o tranqüilizou:— Está tudo bem.

Caminho noturno1

Oxalá ele não tivesse ido nesse caminho!Pensando encurtar caminho, Naall decidiu ir à estação através das colinas. Num

quarto de hora chegou ao pé das montanhas. Sobre os cumes arredondados flutuava a Lua branca na elipse iluminada do anel energético. À direita se apagavam e se acendiam os faróis de Ratalsk. À esquerda, nas partes ocultas por uma cadeia de colina, resplandeciam as luzes de Konsat. As luzes se estendiam formando um largo arco, e mais adiante, debilmente cintilando à luz do luar, a difusa barreira do mar.

O vale era atravessado pela antiga e enorme ponte negra de Ratalsk.Até então Naall não tinha medo do encontro, nem duvidava. A notícia do Magalhães

era demasiado maravilhosa e inesperada, e a alegria não dava lugar a alarme.E Naall não sentiu medo até ver a velha construção. Não pôde explicar porque surgiu

a dúvida. Certamente os arcos de 200m, que surgiram no caminho como gigantescos pórticos, eram excessivamente tenebrosos e enormes. Recordavam a grandeza inconcebível de tudo o que se relacionava ao cosmo, as distâncias percorridas pelo Magalhães nos três séculos passados. Os netos de vossos irmãos serão vossos irmãos. Mas imagines o que se diria há 300 anos!

As negras colunas pareciam formar uma fila dupla de Atlantes que em silêncio perguntavam ao rapaz: Aonde irás? Pra quê? Que pensamentos tão tolos tens na cabeça?

O rapaz olhou atrás, como buscando ajuda, mas as luzes do vale do sul já estavam ocultas atrás do monte.

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Então, durante um instante, ficou imóvel e de repente começou a correr até a velha construção. Ia em linha reta, pisando a erva alta ainda molhada. Uma planta espinhosa arranhou a perna. Parou, a arrancou, cheio de ira, a raiz e continuou correndo de novo. Apressado, pra que o alarme sussurrante e incompreensível não o tomasse de novo! Agora atravessará a ampla franja de sombra e passará diante do pórtico da ponte de Ratalsk.

2A carruagem do expresso de circunvolução, que ia, na costa de Verão, até o extremo

norte do continente, estava vazia. Se sentou no assento, com as pernas encolhidas, olhando como, à velocidade de 500km/h, desfilava a escuridão atrás da portinhola.

Estava cansado. Noutra ocasião adormeceria, mas neste momento sussurrou de novo a inquietação como uma corda impertinente: E se não perguntar? Ou crês que é apenas uma brincadeira? Seria que o herói cósmico prestaria atenção ao rapaz, após ter voltado à Terra após 300 anos?!

O rapaz imaginou rapidamente o enorme campo do cosmódromo repleto de milhares de pessoas que foram os receber. Milhares de cumprimentos, milhares de mãos estendidas pra estreitar as dos astronautas. O que fará ali? O que dirá?

Repentinamente teve a idéia de que não era preciso passar a noite na cidade e esperar a manhã e a aterragem da nave. Tinha que dizer tudo a Alexandre naquele mesmo momento. A estação Piloto 5 mantém comunicação com a nave. A estação está a 40km da costa de Verão, portanto são mais cinco minutos de caminho.

Ao chegar à curva seguinte do caminho, se apeou no cais móvel e circular. Passando dum círculo a outro de velocidade cada vez menor, chegou ao centro imóvel e saiu do cais no túnel.

Na frente se estendia o campo negro. Atrás ficaram as luzes opacas do cais e na frente, ao longe, brilhava a agulha azul da estação piloto. O vento sussurrava debilmente. Esse sussurro, coisa estranha, tranqüilizou o rapaz. Separando com as pernas a alta erva, caminhou, em linha reta, até a agulha azul.

Ali, parecia que também chovera há pouco. As folhas grudavam nos joelhos. O vento era cálido e úmido.

Saiu rapidamente ao caminho e os passos ficaram mais rápidos: O vento também aumentou, tentando arrancar dos ombros o ligeiro casaco.

3A estação «Piloto-5» há já algum tempo que se negava a dar informação detalhada. A

todas as perguntas o autômato respondia: «Está tudo bem». Muitos tentaram sintonizar a onda da nave, mas não conseguiam: Ninguém sabia o antigo sistema de transmissão.

A primeira notícia da nave fotônica que se aproximava foi captada pela estação intermediária de Júpiter. Mas depois a Terra teve ligação direta com a nave. Os técnicos não saíam da estação, nem um minuto. Três estavam de guarda ao farol vetorial, o quarto dormia ali, num cadeirão. A tripulação da nave já comunicara à Terra a direção. Os técnicos tinham que ajudar a nave a pousar no cosmódromo da Costa.

Só havia umas horas que Sérgio Koster estabelecera comunicação fônica bilateral com a nave. Mas a tripulação ainda não transmitia notícia, exceto os dados do sistema automático, necessários ao pouso.

Os técnicos guiaram a nave até a órbita fechada e a nave ficou pairando sobre a Terra, se convertendo num satélite de revolução diária. Sérgio já terminara a transmissão das coordenadas quando Miguel Núvios disse:

— Há uma hora e pouco que alguém está chamando.— Alguém que não pode dormir. — Supôs Sérgio, sem voltar a cabeça, seguindo

atentamente o vetor no mapa luminoso que atravessava o ponto negro do cosmódromo.

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— Chamada urgente, seis sinais desesperados. Isso não é uma simples curiosidade.— Se é importante, por que não utilizaram a comunicação direta?— Não sei.No fim duns minutos o próprio Sérgio ouviu a sirene de chamada urgente. Não ele

nem os outros dois técnicos que estavam de serviço nos transmissores paralelos podiam se aproximar do videofone. Sérgio pediu:

— Miguel, respondas duma vez.Mas Miguel já estava dormindo, semiencostado no cadeirão.A chamada não se repetiu.Decorreu meia hora mais. O automático da nave recebeu a última ordem. Sérgio

fechou os olhos com alívio, mas, de toda maneira, continuava bailando diante dos olhos a risca roxa das cifras e doíam as pálpebras de cansaço.

Então alguém o puxou na manga. O operador retirou a mão dos olhos e viu um rapaz duns doze anos, meio-ruivo e tostado de sol, com um desabotoado casaco de franja, trazendo uma insígnia dourada na camisa verde clara e com recentes arranhões nas pernas. O rapaz olhava a cima, a cara de Sérgio. E querendo, ao que parecia, explicar tudo num minuto, disse várias palavras cujo sentido o técnico não compreendeu imediatamente:

— De quê falas? Como vieste?Ao chegar ao edifício central, Naall encontrou imediatamente uma porta, entrou e se

viu num corredor comprido e estreito. O chão, liso e brilhante como vidro, refletia os grandes candeeiros. Naall avançava no corredor e, de repente, outra vez surgiu o alarme, e a emoção deu um nó na garganta. Naall sentiu que o coração palpitava desordenadamente, como uma bola pulando numa escada.

O corredor terminava repentinamente. Ao voltar a um dos lados subiu numa ampla escada e ficou um segundo com a mão levantada diante dumas portas de vidro translúcido e, decidido, as empurrou.

Viu diante de si uma sala circular, de paredes baixas e cúpula transparente cheia de incompreensíveis linhas brancas. Através da rede dessas linhas se viam as estrelas. O chão, assoalhado de rombos7 preto-e-branco, se elevava suavemente até o centro, onde havia um pequeno estrado. Ali, junto a um aparelho de forma cônica, havia três pessoas. Não longe do estrado, num dos cadeirões, desordenadamente distribuídos pela sala, dormia uma quarta pessoa. Os de junto ao aparelho estavam palrando e vozes ressoavam artificialmente. Naall percebia todas as palavras mas cansaço dava ligeiras voltas à cabeça. Como se fosse tudo imaginário, se aproximou do centro, pisando os rombos brancos e negros, subiu ao estrado e pegou a mão dum dos operadores. O homem se voltou e pelo olhar de assombro compreendeu que não ouvira os passos.

Então, pra explicar tudo num instante, o rapaz disse:— Vim encontrar meu irmão.Tudo se passava como em sonho. Naall falava, e ouvia como sua voz soava e se

perdia no enorme aposento, como se fosse alheia. Não se lembrava se falara muito ou pouco. Certamente muito pouco. Cintilavam as lâmpadas dos quadros de comando das paredes redondas e o serpentear azul dos écrãs mudava rapidamente o perfil.

— Digas, técnico: Te negarás a me responder? —Naall, um momento se sacudindo de todo aquele aturdimento. Se seguiu um breve silêncio. Depois alguém pronunciou uma frase que, por ser simples e comum, não estava de acordo com o que acontecia.

— Homem, olhes de que se trata...

7 Rombo: Peça com a qual se tapa rombo no costado do navio (talvez do latim rhumbus). Quadrilátero ou losango, isósceles, sem

que os ângulos sejam retos (do latim rhombus). http://www.lexico.pt/rombo/ Certamente se trata dum ladrilho, tijolo ou taco de formato rombóide. Nota do digitalizador.

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Alguém acordou o que estava dormindo:— Miguel! Despertes, escutes.Os relâmpagos bailavam aceleradamente nos écrãs e o chefe dos técnicos, que se

chamava Sérgio, disse, de repente:— Estás dormindo?, rapaz.O colheu nos braços e deitou numa poltrona larga e felpuda. Mas Naall não estava

dormindo. Olhava as cintilantes luzinhas e ouvia as palavras que ressoavam sob a cúpula:

— Um homem.— Três séculos.— Não se assustou. E se não é?— Está dormindo.— Não.E o que disse não perguntou:— Como te chamas?, irmão de cosmonauta.— Naall.Não se ouviu a segunda pergunta mas, pressentindo que os técnicos não o

compreenderam, disse:— Natanael Snieg.— Snieg... — Se ouviu como um eco.— Estranha coincidência...— Nada de estranho. — Quis dizer Naall. — Assim me chamam em honra a

Natanael Lid, capitão do batiscafo Luz.Alguém moveu a cadeira e disse:— Está dormindo.— Não estou dormindo. —Naall disse e abriu os olhos. — Técnico, o Magalhães

respondeu?Sérgio se inclinou a ele:— Durmas. Disseram que se encontrarão contigo dentro duma semana. A tripulação

decidiu descer no foguete de desembarque e pousar na zona dos bosques. Parece que não querem um acolhimento ruidoso. Têm saudade da Terra, do vento, do bosque. Dentro duns dias virão até a costa de Verão.

O sonho se desvanecia rapidamente.— E eu? E a gente? Será que não querem os receber?— Não te preocupes. — disse Sérgio. — Prometeram se encontrar contigo daqui a

uma semana.Então Naall viu que a sala da estação piloto não era tão grande quanto parecera à

primeira vista. Se apagaram os écrãs. Através da cúpula transparente se via que a névoa se espalhara e o céu parecia abaixado.

— E onde aterrarão?— Pediram pra nada dizer.— E a mim?— Na península de Cabo Branco.Naall se levantou.— Durmas aqui até ser dia. — Sérgio propôs — Depois decidiremos o que fazer.— Não. Vou para casa.— Te acompanharei.— Não.E assim acabou a história. Fora um conto muito pateta no qual acreditara

inutilmente... 300 anos...

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Sem escutar as últimas palavras do técnico, saiu apressadamente e começou a correr, pisando piso preto-e-branco da sala, o chão de vidro do corredor e o cascalho da vereda. De novo o rapaz ficou na escuridão do campo e foi ao cais distante. Ia devagar. Pra quê se apressar? Nos encontraremos daqui a uma semana. Se uma pessoa quer se encontrar com outra nem uma hora espera.

4Talvez tudo terminasse assim mas a uns cem passos da estação Naall esbarrou num

parque de estacionamento de aparelhos chamados abelhas e de repente passou na cabeça uma idéia que, a princípio, pareceu simplesmente irrisória. Contudo, ainda não andara 10m, o rapaz se deteve. Pensou:

— Talvez Alexandre não pôde revogar a decisão de pousar quando o técnico o pós a par de tudo. No fim de conta a tripulação não é apenas si.

Sentindo que o coração palpitava de nova esperança, se aproximou, indeciso, dos aparelhos. Faltavam três meses pra completar doze anos, idade em que era permitido pilotar uma abelha. Poderia violar a ordem?

Embora vacilando, se meteu na cabine e apertou o capacete. Depois experimentou o estado do motor. No quadro de comando se acenderam as luzinhas amarelas, o animando. Então se elevou na abelha, com as hélices horizontais, e imediatamente se dirigiu a nordeste.

A grande velocidade do aparelho permitia chegar a cabo Branco em duas horas.Certamente adormeceu no ar. Ao menos a travessia pareceu muito breve. Só pensava

no seguinte: Me aproximei e disse quem sou. Agora, tanto se me dá.Se encontrar um olhar indiferente, se mete silenciosamente na cabine, se eleva no

aparelho e o dirige até sudoeste.A desgraça ocorreu quando a abelha atravessava a tranqüila baía que refletia as

estrelas, e voava até o cabo sobre o extenso bosque. No oriente já começava a clarear mas no zênite o céu ainda escuro. Ali, num lugar do zênite, o Magalhães ficara suspenso e abandonado pela tripulação.

Naall, inutilmente, procurava ver em terra as luzes do avião-foguete de desembarque ou a fuselagem escura. Duas vezes voou até o extremo do cabo sobre as mesmas copas das árvores. Depois começou a diminuir a força do motor. Os acumuladores se esgotaram. O rapaz compreendeu que escolhera um aparelho não preparado pra voar. Então, pra ver, em última vez, uma maior extensão do escuro bosque, começou a subir com as hélices horizontais. Conseguiu se elevar até que o motor parou. As hélices deixaram de girar e, abrindo as asas, a abelha planou.

Se deu conta do erro tarde demais. O bosque não tinha clareira. Aterrar planando era impossível.

Contudo não se assustou. Vendo passar os cumes das árvores sob as asas, procurava se manter na velocidade mínima. Depois viu a diante as negras copas das árvores e instintivamente puxou a alavanca. Foi um golpe forte, depois se seguiram vários bruscos e em último um mais débil. Deu com os ombros de encontro às costas do assento. Uma coisa dura se fincava no ombro. Pegara de encontro à cara umas hastes secas e cheirosas. Onde está o avião-foguete? Pensou, e caiu estendido na erva.

O quarto sol1

— Não os técnicos nem o rapaz sabiam claramente as razões de nossa estranha decisão. — Disse Alexandre. — A causa foi o desconcerto. Não o simples desconcerto que pode originar uma notícia inesperada mas certa impotência e temor. O que contestaríamos?

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Não falarei de nosso vôo. Todos decorrem da mesma maneira, se não acontece catástrofe. O trabalho, o longo sono em estado de anabiose... Na Terra decorrera meio século, enquanto na nave cerca de doze anos, quando após darmos uma volta, segundo umas das órbitas da Rosa Amarela, enfim nos aproximamos do planeta.

A princípio sentimos a amargura duma investigação fracassada. Diante de nós havia uma terra gelada, sem vida, sem os ruídos do bosque, sem o chapinhar das ondas. Envolto pelos vapores duma fria névoa, sobre a linha quebrada dos montes, flutuava um grande sol de cor amarelo vivo. Efetivamente parecia uma rosa amarela. O oceano gelado refletia uma luz rosa e amarela. Nas gretas das rochas, nas do gelo, na sombra dos lúgubres precipícios se detinha uma densa penumbra azul. Gelo, brilho, silêncio.

A única coisa que nos alegrava era o ar. Um verdadeiro ar quase terreno, só que frio, como a água dum manancial da montanha. No primeiro dia tiramos o escafandro e respiramos através dos dentes cerrados devido ao frio. Nos enfadava o ar tão insípido, quimicamente puro, dos compartimentos da nave. A meu ver, essa é a causa da atormentadora nostalgia da Terra, que só de a recordar já se começa a sentir calafrio! E ali, no planeta de neve, deixamos de sentir tão intensamente essa nostalgia. Algo íntimo havia neste mundo gelado, encantado pelo frio, só que não percebemos logo. Sempre que saíamos da nave, víamos um reino de neve, pedra e gelo.

2Se viam profundos precipícios cobertos de névoa azul. Os raios do sol, planos e

amplos, de cor laranja, se transformavam em verdes quando penetravam nos precipícios através das gretas das paredes verticais. Se descompunham em centenas de chispas ao incidirem sobre os fragmentos de gelo. E se os raios alcançavam o fundo refletiam em centenas de cristais de gelo, formando um feixe de luzes fantásticas.

Na noite, através dos iluminadores do Magalhães, o céu parecia uma parede negra, onde, em linha quebrada, se viam os contornos das constelações azuis. Às vezes as altas e transparentes nuvens começavam a lançar uma luz amarela, que deslizava nas encostas geladas das montanhas, fazendo surgir, da escuridão, uma série de penhasco.

Contudo esse planeta frio não estava morto. Às vezes, do ocidente vinham pesadas nuvens que tapavam o amarelo sol poente, borrifando de gelo as sombras disformes, e começava a nevar. Uma verdadeira neve, como em qualquer parte da costa do mar de Lara ou na região das cidades do Antártico. Se derretia na palma da mão e transformava em água corrente. Depois a água ficava temperada.

Certa vez, no hemisfério meridional, nosso pessoal encontrou um vale sem neve nem gelo. Ali havia rochas e pedras nuas e prateadas pela umidade, e calhaus na margem dum riacho que não estava gelado. Entre as rochas, rodeada por centenas de arco-íris, troava uma esplendorosa catarata, como querendo despertar daquele frio um mundo adormecido.

Não longe da catarata, Kar viu uma pequena planta de folhas negras e com forma de flecha, grudada à rocha e tirou a luva, querendo logo colher o delgado caule nodoso, quando, de repente, as negras folhas oscilaram e se orientaram em direção à mão do homem. Kar retirou a mão instintivamente. O prudente Larsen aconselhou:

— A deixes. Quem sabe...Mas Kar compreendeu a sua maneira. Desenhou um esboço de sorriso na cara.

Passou a palma da mão sobre o negro arbusto, e de novo as pequenas e estreitas folhas se voltaram em direção à mão.

— A atraía o calor. — Kar disse, em voz baixa. Em seguida gritou ao biólogo, que se atrasara: — Tael! Finalmente tens aqui um verdadeiro achado!

Naquele momento o observador ainda não compreendera toda a importância da descoberta.

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●Na tarde todos se reuniram na sala do Magalhães. Eram cinco pessoas: Knud Larsen,

louro de ombros largos, bondoso e distraído em tudo o que não se relacionasse às máquinas calculadoras; dois africanos: O pequeno e alegre biólogo Tael e o navegador Tey Karat, a quem sempre chamavam Kar, sem mais; o piloto e astrônomo Jorge Rogov, louro como Larsen e de tez morena como a dos africanos, o mais jovem da tripulação; e enfim, Alexandre Snieg que era navegador-explorador e pintor, que ultimamente estava tão ocupado com os esboços, por isso deixara a direção da tripulação nas mãos de Kar.

Se reuniram e Kar disse:— Estranho planeta. Não é? Está visto que se não fosse o gelo haveria vida. O sol, ou

seja, a Rosa Amarela, acabará derretendo o gelo. Isso também está claro. Só não se sabe quantos milhares de anos levará isso. O derreteremos?

Kar propôs criar no planeta de neve quatro sóis artificiais segundo o sistema do acadêmico Vorontsov. Era um sistema velho e bastante simples. Esses sóis atômicos apareceram na Terra já nos primeiros decênios depois que os homens, tendo eliminado as armas, enfim puderam utilizar a energia nuclear com fim pacífico. Foi precisamente quando se derreteram os gelos da Groenlândia e das regiões costeiras da Antártida.

— Por que precisamente quatro? — Perguntou Jorge.— É o mínimo. Menos de quatro não se pode, visto que não se derreteria o gelo e o

inverno eterno se estenderia novamente a todo o planeta.Mas, pros quatro sóis, se inverteriam duas terças partes do esã, combustível sideral

da astronave. Portanto, os cosmonautas não poderiam acelerar a nave à velocidade necessária e não voltariam à Terra antes de 250 anos. A maior parte do vôo seria feita por parte dos tripulantes em estado de anabiose. 250 anos... Contudo, os astronautas poderiam oferecer aos homens um planeta que seria um novo posto avançado da humanidade no cosmo. E o longínquo vôo não seria em vão. Larsen perguntou:

— O que é preciso pra isso?— O consentimento de todos. — Kar olhou a todos.— Sim.— Claro. — Exclamou Tael.Jorge concordou com a cabeça.— Não. — Disse, imediatamente, Snieg e se levantou.Decorreram uns segundos de silêncio surpreendente e Snieg começou a falar.Disse que era um disparate fazer do planeta uma incubadora. Os homens não devem

temer o rigor glacial, a luta contra a natureza dum planeta desconhecido. Sem luta a vida perde o sentido. E se apagarem os sóis artificiais antes de se derreter todo o gelo? O que será dos primeiros habitantes do planeta de neve se voltar o inverno permanente? Mas suponhamos que não se apaguem os sóis e que desapareça o gelo. O que farão os homens? Montanhas despidas, vales sem bosque, um deserto cinzento.

Os outros o ouviam e houve momento em que cada um já queria aderir à opinião do camarada. E não porque as palavras pareciam convincentes. O que convencia era a veemência e a perseverança. Assim falava Snieg quando sentia firmemente que a razão estava a seu lado. Com a mesma veemência defendeu, na Terra, o direito de voar a seu planeta.

3Os amigos recordavam quando, de pé, numa grande sala do palácio das estrelas,

estava perante um homem pálido e seco, a quem falava com violenta franqueza:— Me admira que a união dos astronautas confiara a decisão da questão só a ti,

pessoa que não sabe acreditar nas lendas!

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O homem estava cada vez mais pálido, mas a sua irritação refletia somente num ligeiro desconcerto nas respostas pronunciadas em voz baixa:

— Todo o jovem, depois de ter estado além da órbita de Júpiter, se considera preparado à investigação livre e está disposto a voar ainda que seja ao centro da galáxia. Isso é ridículo. Os contos sobre os planetas da Rosa Amarela te perturbam. A Rosa Amarela é uma estrela muito traiçoeira. E fascinante, certamente. Mas também é uma verdade eterna que um conto é sempre atrativo.

— Pretendes saber as verdades eternas, mas te esqueceste de uma: Em cada lenda há um grão de verdade. Acreditamos que haja planetas...

Rotais inclinou a cabeça:— Permitas terminar esta conversa inútil. Não vejo razão pra pretender uma

expedição de investigação livre. Além disso, estou muito preocupado e me é difícil falar. Há uma hora que Valentim Iantar se estilhaçou num hidro. Agora está em casa e tenho pressa em ir o ver.

Ao que parece, não tinha tanta pressa, uma vez que Alexandre, ao chegar à casa do velho astronauta, apenas viu os médicos. Soube que Iantar se negara a se submeter a uma operação.

— Já não poderei voar mais, no que se refere à vida, que é bastante longa.Snieg, calado, passou ao compartimento onde estava deitado o astronauta. Iantar

disse ao desconcertado médico:— Peço que vás embora.O compartimento estava na penumbra, não pelas cortinas mas nas densas macieiras

floridas que tapavam a janela. Alexandre se aproximou da cama. Iantar estava tapado até o pescoço cuma colcha branca. Sobre a colcha jazia uma revolta barba loura. Uma sangrenta cicatriz cruzava a enrugada testa.

— Ninguém me entende como tu. — Começou Alexandre — Os outros podem me acusar de insensibilidade, obsessão e egoísmo mas podemos dizer a verdade. Já não mais poderás voar.

— Bom...— Não deixam partir nossa expedição em exploração. — Alexandre disse, em voz

baixa.— Transmitas a nós o direito do segundo vôo e voaremos.— A Leda? A meu planeta? — Iantar não moveu as mãos nem a cabeça, só os olhos

cintilaram alegremente. — Decidido?Nesse momento viu, certamente, o mundo azul de Leda ainda não descoberto até o

fim, as ruínas das cidades de cor turquesa e as brancas montanhas que se elevavam sobre os maciços violáceos dos bosques intransitáveis cobertos por venenosa névoa cor de chumbo. Mas a visão extraordinária desapareceu. De novo apareceu diante de si o severo e rígido rosto de Alexandre.

— Não, claro. Não é meu planeta. — Iantar disse, com voz apagada.— Cada um é iluminado por sua estrela. — Disse Snieg.Se sentou junto à cama e contou tudo brevemente: A última notícia transmitida do

globo, o mistério de Rosa Amarela, o plano de exploração independente sugerido pelos cinco jovens astronautas, a última conversa com Rotais.

— Leda espera os arqueólogos. Somos exploradores. Queremos encontrar um planeta onde o ar seja como o da Terra. A humanidade necessita desses planetas.

Iantar fechou os olhos.— Bom... Cederei o direito.— Não acreditará. — Objetou Alexandre, ao recordar o rosto pálido de Rotais.— Pegues minha insígnia. Está na mesa, na concha azul.

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Na concha encontrada em Leda havia uma insígnia de ouro com estrelas azuis e a inscrição Busca.

Alexandre deu uma olhada na insígnia e ao astronauta ferido. Na primeira vez, no decurso dos últimos dias, lhe faltou a firmeza. Apertou os dentes e deixou cair a mão que já estenderia.

— Pegues. — Repetiu Iantar. — Tens razão.— Abras a janela. — Pediu quando Alexandre apertava na mão a insígnia. — Não,

não abras, quebres os vidros. São velhos, muito frágeis.— Disse, quando soou o estilhaçar.

Alexandre quebrou um grande pedaço da janela e entrou no compartimento um raio de sol.

— Feliz viagem! — Disse Valentim Iantar, procurando conter, com força de vontade, a crescente dor no peito — Que voltem todos à Terra!

— Isso sucede raras vezes.— Por isso vos desejo...Na saída, Snieg encontrou Rotais e lhe mostrou a insígnia na palma da mão. Rotais

encolheu ligeiramente os ombros e inclinou a cabeça. Isso significava uma rebelião dissimulada na conduta do jovem astronauta e ao mesmo tempo um consentimento obrigado. No sistema solar ninguém podia negar o direito ao segundo vôo: O cosmonauta que descobrira um novo planeta e voltara à Terra podia sair segunda vez, quando quisesse, em qualquer expedição, em qualquer das naves preparadas prisso. Também podia ceder esse direito a qualquer capitão.

Durante um momento Alexandre recordou rapidamente a cara de Iantar, o célebre capitão da Busca, a testa com a ferida sangrenta e os olhos azuis como se refletindo o fantástico mundo de Leda. A Leda? A meu planeta? Decidido? Mas o velho astronauta compreendeu a Alexandre. E Rotais?

Alexandre se voltou e disse, secamente, nas costas de Rotais:— Comuniques ao cosmódromo oriental. Elegemos o Magalhães.Foi quem mais fez por esse vôo. E tinha muito mais dificuldade que os outros de

deixar tudo. Todos deixavam familiares na Terra mas Snieg além dos familiares deixava a noiva.

Visto de fora essa amizade em silêncio parecia estranha. Raras vezes se viam juntos. Falavam muito pouco um do outro. Só os amigos conheciam seu amor.

Uma semana antes da partida Alexandre a encontrou num jardim soalheiro, recentemente plantado, exatamente onde está o parque Ouro de Konsat. O vento arrancava as folhas e o claridade solar bailava na branca areia do passeio. A moça se calava. Disse Snieg:

— Sabias muito bem. Sou astronauta.Ele sabia permanecer tranqüilo.Antes de partir lhe ofereceu a insígnia de ouro.Uma vez, entrando casualmente na sala do Magalhães, Jorge ,viu que Snieg tirava e

punha diante de si una pequena estereofoto e a olhava calado, sem pestanejar. Disse Jorge:

— Eu esconderia essa foto a sempre.Alexandre o olhou, não sei se com ironia ou com assombro.— E crês que tudo se esqueceria?Fechou os olhos e com traços bruscos do lápis, desenhou, com assombrosa exatidão,

a fisionomia da moça numa folha de cartão.— Olhes.Era o oitavo ano de vôo, segundo o tempo do Magalhães.

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4E é precisamente agora que Alexandre Snieg, o mais atarefado na investigação,

defendia o estado do planeta de neve, como se esperasse a morte e não a renascença.— Deserto cinzento, poucos arbustos! Se desaparecer o gelo o que ficará? Uma terra

morta, pedras mortas.— Os homens farão tudo! — Objetou Tael — Farão tudo o que falta.— Mas eu ainda não disse uma coisa: — Continuou Snieg — Não se deve tirar do

homem o mundo que encontramos aqui só porque é formoso. E possível que não compreendeste?

E pôs na mesa os esboços. Todos se calaram ao ver de novo o que viram antes mas que esqueceram, dominados pelo império do gelo. As cores foram captadas com assombrosa exatidão. O pôr-do-sol negro-alaranjado, os desfiladeiros azuis com névoas luminosas, uma manhã, cintilante fulgor dourado nas gretas do gelo, um céu amarelo, com nuvens cinzentas amontoadas...

Enfim Kar disse:— Está bem. Mas não se pode deixar assim: Frio e morte, ainda que seja belo. Pra

quê os gelos sem vida?— Sem vida, não. — Disse Alexandre, movendo a cabeça — Há vida neles. O vento,

os riachos, os arbustos... Tudo aqui se vai despertando pouco a pouco. Não devemos ter pressa, senão se converteria num deserto.

— Não será um deserto. Será um oceano, azul e ilimitado como na Terra. Basta derreter o gelo. As cascatas troarão. Imagines, Alexandre: Milhares de torrentes prateadas entre os pinheiros e as névoas multicores. Haverá uma natureza rigorosa, com a própria beleza, mas também haverá vida. É, precisamente, um planeta assim que procurávamos.

— Haverá um oceano e ilhas povoadas de bosque. — Disse Tael, em voz baixa.— Donde surgirão os bosques? Os arbustos negros se estenderão e aumentarão?— Os homens plantarão os bosques!— Nas pedras?— Não tens razão, Sacha.8 — Jorge, que estivera calado até então, disse, em voz

baixa. — Te lembres da Antártida.Snieg quis replicar, mas em breve se sentiu cansado e disse:— Bem, já não o discuto!— Participarás nos cálculos?— No trabalho, não nos cálculos. Que matemático sou?

5Trabalharam muito tempo com a ajuda dos autômatos e das chaves pneumáticas.

Depois puseram em órbita quatro naves-foguetes de desembarque rodeadas duma rede de reguladores magnéticos. Nessas naves não havia piloto automático. Kar e Larsen se metiam nas cabinas e depois se lançavam nos escafandros de salvamento. Assim fizeram duas vezes. Quatro naves-foguetes com combustível sideral RE-202-ESAN se converteram nos vértices duma pirâmide imaginária, dentro da qual estava o planeta de neve.

Ninguém se põe de acordo com discussão. Alexandre trabalhava apaixonadamente. Até fez os cálculos dum dos sóis artificiais. Cada um tinha seu sol, exceto Kar, que ficara com a tarefa do cálculo geral e da direção. Quando terminou o último dia de trabalho a tripulação do Magalhães se reuniu no desfiladeiro onde se instalara a estação de direção.

8 Sacha: Diminutivo de Alexandre. N o t a d o t r a d u t o r

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— Bom... Deuses criadores da primavera... — Disse Kar, excessivamente sério.— Venhas já. — Suspirou Tael, ruidosamente.— Começamos?— Venhas já.Se deu o sinal.Três écrãs se iluminaram de tal forma que pareciam cegar. Depois surgiram neles as

montanhas e a acumulação de gelo iluminado por dois ou três sóis. O quarto écrã continuava impassivelmente branco, com a superfície opaca.

— O meu. — Disse Snieg.O quarto sol não se acendera.Não se sabia o que aconteceu. Certamente se alterara o sistema dos reguladores

magnéticos. Talvez fosse suficiente um minúsculo golpe, o choque dum diminuto meteorito, pra que o sol se acendesse uns segundos. Mas há tanta probabilidade dum meteorito esbarrar na nave?

— Que desgraça! Conservará uma cobertura de gelo, como aconteceu à Antártida. Que diabo! Mas se estava funcionando formidavelmente: A superfície plana em honra a Snieg, o que significa neve! — Disse o ingênuo Larsen.

— É formidável. — Disse Alexandre, secamente.Todos guardaram um silêncio embaraçoso. Claro que ninguém pensou que Snieg de

propósito fizer mal os cálculos. Ele mesmo compreendia. Mas foi justamente a ele que aconteceu a desgraça!

— Subirei na nave-foguete e com o jato reativo destruirei o sistema de reguladores. — Disse Snieg, em voz baixa e firme, quando regressaram ao Magalhães.

— Nos deitemos a dormir. — Propôs Snieg. — Demonstrei o que se pode fazer.— Nos deitarmos?— Romper o sistema de retenção dos reguladores e ter tempo de fugir da explosão.Larsen se sentou, obediente, diante do quadro de comando do cérebro eletrônico.

Alexandre começou a ditar.— Vede, em princípio isso pode ser feito. — Disse, quando terminou o cálculo.— Em princípio... — Resmungou Larsen. — Não sejas tonto, porque arderás.— Durmamos, Sacha. — Disse Jorge. — Não está tão mal.No entanto todos compreendiam que estava mal, muito mal.Gastaram duas terças partes do esã. Só dentro de 250 anos os astronautas voltariam à

Terra. Voltariam com nada. Nessa altura de novo o frio oprimiria, num abraço gelado, o planeta de neve. Quando voltarão àqui os homens e acenderão os sóis atômicos? E olhes que estava tudo preparado. Se não fosse pelo erro cometido, a tripulação do Magalhães levaria à Terra a notícia dum planeta útil à vida normal. A humanidade necessita desses planetas, postos avançados do homem no universo infinito,9 trampolins a novos e mais longínquos saltos.

●Durante a noite os despertou uma potente chamada. A voz de Alexandre, ampliada

pelo receptor, dizia:— Estou na nave-foguete. Não ficai zangados, rapazes. É preciso tentar.— Sacha, — disse Jorge — te pedimos todos: Não tentes. O planeta que vá ao diabo!

Recorda a Terra.— Nada acontecerá.— Não sejas teimoso!— Não!— Snieg! Te ordeno que voltes! — Gritou Kar.

9 O universo não é nem pode ser infinito. Nota do digitalizador.

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— Não te zangues, Kar, porque ainda sou o capitão.— Querias que o planeta continuasse coberto de gelo. — Larsen disse, timidamente.Se ouviu o riso de Alexandre.— É Kar o culpado. Descreveu muito bem o oceano, as cataratas, as ilhas. Sou pintor

e quero refletir tudo isso numa pintura.Kar negou em voz baixa.— Ligues o videofone. — Pediu Tael.Snieg ligou. Todos viram sua cara no écrã. Estava assobiando uma modinha,

inclinado sobre o painel de comando. Parecia tranqüilo.— Sejas prudente. — Disse Jorge.Snieg confirmou com a cabeça e continuou assobiando.— É preferível o regresso à Terra! Pra quê fazes isso? — Disse Kar,

desesperadamente. — E se arder tudo ao mesmo tempo?— Sabes muito bem. É preciso ir até o fim.O ruído do motor interrompeu a conversa. A imagem oscilou, depois se viu a cara de

Alexandre deformada pela sobrecarga. Logo desapareceu a aceleração e a velocidade começou a diminuir. Em grande velocidade Alexandre não podia virar a nave e dar com o jato reativo nos reguladores. Todos se calaram, mais nada se via além da cara excessivamente rígida de Alexandre. Isso continuou até o momento em que o écrã se iluminou ante uma labareda deslumbrante e branca.

6E como te salvaste? — Perguntei a Alexandre.Me olhou de soslaio.— O caso é este: Me chamo Jorge Rogov. Snieg morreu. Agora compreendes o que

sentimos quando o técnico nos transmitiu o caso do rapaz? Em Terra um homenzinho impacientemente esperava o irmão. Talvez te seja difícil compreender, mas nós, que passáramos tantos anos sem ver a Terra nem as pessoas, sabíamos o que era a saudade e a espera. É muito triste quando se sabe que na chegada não se encontrará uma cara conhecida. 300 anos... Até os sobrenomes são difíceis de encontrar. E, de repente, um irmão... Compreendíamos o rapaz, a saudade dalguém que chegava. E era muito difícil dizer a verdade. Impossível.

Tael se mostrou o mais engenhoso de todos. Deu uma resposta à estação que nos permitia dilatar o tempo.

— Isso não é uma saída. — Disse Larsen. — O que responderemos depois?— Como se chama o rapaz? — Perguntei. Kar respondeu e depois me olhou de

maneira estranha, porém nada disse.●

O motor da nave-foguete de desembarque falhou já quase sobre a Terra. Nos lançamos com os escafandros de salvamento.

Ainda era noite. Começava a aparecer a aurora azul. Não me lembro tudo. Sentia o cheiro de folha molhada e de terra. Tael estava de pé, apoiando a cara escura num tronco de bétula que sobressaía da treva pela cor branca.

Larsen se deitou na terra e disse:— Olhes! Erva.

●Eu olhava o céu, onde, de repente, começou a se iluminar a aurora intensamente

amarela, e o zênite ficou puro azul. Me pareceu o céu sussurrar algo. Eu não sabia o que pudesse emitir som como se saindo de milhões de cordas instrumentais. Sobre a cabeça uma ligeira nuvem cor laranja se incendiava aos poucos. Subitamente senti medo. Parecia que isso era de novo o sonho atormentador da Terra, que não deixava algum de

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nós tranqüilo no planeta de neve. Esse medo foi como uma sacudidela de corrente elétrica. Me deitei na relva. Semicerrei os olhos, me prendi à raiz dum arbusto. A raiz era áspera, molhada.

Um segundo depois diminui a pressão dos dedos e abri os olhos. O céu azul sussurrou de novo sobre o bosque. Através do sussurro ouvi Larsen dizer outra vez: Olhes! Folhas!

Depois apareceu o sol.Já viste como se eleva o sol entre a erva? É melhor ver deitado na relva, que parece

um bosque fantástico sobre o qual se eleva o astro resplandecente. As gotas de orvalho estalam em chispas coloridas.

●Naall olhava o sol entre a erva. Se recordava de tudo, até via no canto do olho a

abelha destroçada mas não sentia emoção nem pânico retardado. Tudo o que se passou naquela noite, recordava como um sonho confuso. Percebeu que era ilusão.

Quando o sol se elevou o suficiente pra sua parte inferior tocar as corolas das flores mais altas, que cresciam no extremo do prado, Naall se levantou. A cabeça rodava ligeiramente, doía o ombro machucado. Tivera sorte. Os amortecedores o lançaram sobre a erva macia. Sem sequer tentar se levantar, adormeceu, tão grande era o cansaço!

Sem se apressar olhou ao redor. De qualquer maneira não precisava se apressar. A centenas de quilômetros só havia bosque e as folhas tremulavam ao vento.

●De repente, atrás, alguém disse, com alegria e assombro:— Olhes! Um homem!Naall voltou a cabeça ao lado da voz e ficou aturdido. Viu pessoas com traje azul de

vôo entrelaçado com grandes correias brancas.Sentindo que o coração se oprimia, gritou:— Sois do Magalhães!— Naall. — Disse o piloto de pele morena e cabelo louro.— O vi depois dos outros. — Disse Jorge. — E, coisa estranha, me pareceu que

conhecia o rapaz. Talvez recordasse a mim em pequeno. Estava de pé, inclinado a diante, em nossa direção. Pequeno, de cabelo louro, a camisa rota no ombro, uma folhinha seca grudada na cara, com arranhaduras nas pernas. Me olhou na cara. Com os olhos imensamente azuis arregalados. Parece que o chamei do nome.

Subitamente Kar disse, em voz alta e me empurrando no ombro:— Alexandre, abraces teu irmão.— Talvez me portasse com egoísmo. — Continuou Jorge — Então me esqueci

completamente de que Naall não era meu irmão. Hás de compreender o que significa encontrar, na Terra, um familiar quando menos se espera. Mas gradualmente, e cada vez com mais freqüência, comecei a pensar se tinha direito a ele.

Não entendi o que Jorge queria dizer com isso. Então disse:— Alexandre acendeu o sol, o último, o necessário pra aniquilar o gelo. Por isso ali

há oceano, ilha... Teria eu direito de roubar ao rapaz um irmão assim?— Morto?— Até morto.— Jorge, é difícil eu julgar. Pode ser que Alexandre tenha outra razão pra se

aventurar? Queria realmente voltar? Aquela moça...Jorge só sorriu. Naturalmente considerava tola minha pergunta.— Queria. Tinha um grande carinho pela Terra. Quem não quer voltar à Terra?

Ficamos em silêncio.— Assobiava continuamente a música duma antiga canção. — Disse Jorge, de

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repente. — Dela sei somente umas quantas palavras:

Não importa a Terra ser um grãona impenetrável cósmica imensidãoNa Terra há coisa boa de montão

●— Se tudo fica como antes, certamente será pior. Não só tirei o irmão do rapaz como

também roubei o heroísmo de Alexandre, uma vez que ninguém sabe como se incendiou o quarto sol.

— Também ficaste sem nome, pois Jorge Rogov se considera morto.— Meu nome não é uma jóia.— Então escutes meu conselho. Me pediste. Tudo deve ficar como está. O quarto sol

não se apagará por isso. Há de se pensar em Naall.— É nele que penso o tempo todo. Mas e Snieg?— Com o tempo, as pessoas saberão. A propósito: Te recordas de apenas três versos

da canção. Sei mais, não fosse eu historiador. É a canção dos exploradores de Vênus. Olhes, como é a última estrofe:

Que saiba o que nos segue os passosnos labirínticos atalhosNão queremos glória nem monumentose acendermos astros preles

— Mas, a lembrança de Alexandre, a memória de seu heroísmo! O que fez é um exemplo pros vivos. Talvez Naall tenha que acender seu sol.

Olhei Jorge, que esperava réplica: A queria ouvir, visto que lhe devolviam o irmão. — Pode ser. Mas em que planeta acenderá seu sol? O ensines a ser explorador. É por

isso que és seu irmão, pois quanto ao sol, ele acenderá.Já há muito tempo que o sol se pusera. A meia-lua, rodeada num lado pelo arco do

anel energético, cavalgava pouco acima do nível do mar.Uns passos apressados nos degraus de pedra interromperam nossa conversa. Pra

dizer a verdade é que já nada tínhamos a dizer.Foram embora, se despedindo com a cabeça. O astronauta segurava fortemente a

pequena mão do irmão.●

Em minha frente, sobre uma folha do caderno aberto está a insígnia dourada, cuja história ficou desconhecida. Quem me deu foi Naall, momentos antes de nossa partida.

Nós, os arqueólogos, vamos a Leda, o planeta cujo mistério Valentim Iantar não conseguiu decifrar completamente. Não voltaremos em breve.

Talvez dentro de 80 anos, ao voltar, receba, entre muitos, um homem, agora desconhecido, grande ou pequeno, não tem importância, e que diga aos amigos:

— Encontrarei meu irmão!

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A coluna negraEugênio Voiskunski, Isaías Lukodianov

Como sentimos a gravidade? Acreditas que nosso corpo atrai? Nosso corpo, meus amigos, no ar, é um zero à esquerda. A força, nossa força, é que atrai. Não o corpo!

N. Leskov

ertamente que já vistes o retrato de Alexandre Kravtsov. Vem em todos os manuais de geofísica, no capítulo que trata do Anel de Kravtsov. A seu tempo, esse retrato foi publicado número após número nos jornais do mundo inteiro.CC

Do retrato nos olha um jovem em camisa branca, das que então se chamavam praieiras.10 Nos olhos, semicerrados talvez devido ao sol deslumbrante, tinha algo de infantil e ao mesmo tempo inquebrantável. O retrato, em geral, não é uma obra de arte. Se vê que se obteve por ação dum feixe luminoso focado sobre brometo de prata, como se fazia na segunda metade do século 20. Esses aparelhos se podem ver no Museu Central da História da Técnica.

Essa fotografia foi feita a bordo do Fukuoka-maru, por Olovianikov, correspondente do jornal Izvestia,11 e, como era de prever, não podia supor que gravava as feições duma pessoa cujo nome passaria à história.

E como sucede freqüentemente, o nome eclipsou o homem.Se perguntares ao primeiro estudante que se encontre, se sabe quem é Alexandre

Kravtsov.— Kravtsov? Claro! — O rapaz responderá. — O Anel de Kravtsov!— Falo de Kravtsov e não do Anel com seu nome.O rapaz franzirá a testa e dirá:— Foi há muito tempo. Realizou algo de heróico durante o grande curto-circuito.Realizou algo heróico...Se tem, pois, de contar a esse onisciente estudante de nossos dias a história de

Kravtsov.Não se deve falar do nome, mas sim do homem.Porque, em geral, não era um herói. Era um rapaz comum e normal mas

simplesmente se podia confiar em si.Os jornais de então imprimiam em papel frágil, uma massa de celulose de madeira.

Mas há microfotografias deles. Por sorte se conservou um excelente artigo sobre Kravtsov (micro # kmmA2pk-2681438974), escrito por Olovianikov, que, apesar da idade avançada, ainda está bastante animado e com memória, e nos contou muitos pormenores desse acontecimento remoto. Até conserva uma cópia da última carta de Kravtsov, que não chegou a enviar.

Falar de si não é fácil. O caso é que no âmbito dum acontecimento de escala 10 Camisa praieira: Deve ser a camisa regata. Nota do digitalizador11

Izvestia (Известия) é um antigo jornal diário de alta circulação na Rússia. Era um jornal de registro na União Soviética, de 1917 até a dissolução da URSS em 1991. A palavra izvestiya em russo significa mensagens entregues, derivadas do verbo izveshchat (pra informar, pra notificar). No contexto dos jornais é geralmente traduzido como notícias ou relatórios. http://en.wikipedia.org/ Novye Izvestia (em russo: Новые известия): Jornal russo diário. Fundado em 1997, o primeiro redator-chefe foi Ígor Golembiovsky. Desde 2003 Valery Iakov é redator-chefe. Contém notícia, entrevista com personagem renomada e perito, publicidade, reportagem, foto colorida. http://pt.wikipedia.org/ nota do digitalizador

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mundial, e o grande curto-circuito foi precisamente um acontecimento desse tipo, qualquer propósito de falar sobre o destino individual dum homem parece pretensioso. Querendo ou não, tem que se falar da humanidade e não do indivíduo, uma vez que só a humanidade pode vencer as catástrofes mundiais.

Calculando isso, tentaremos, dentro do possível seguir os passos da vida admirável de Alexandre Kravtsov, participante ativo dos acontecimentos descritos.

Numa palavra, o julgai vós.

1Que estado tão estranho é o do homem ao acordar! Os antigos consideravam que não

se devia despertar inesperadamente uma pessoa dormente: Durante o sono o espírito abandona o corpo e enquanto não voltar o dormente é como se estivesse morto. Mas os antigos nada sabiam da atividade físico-químico-elétrica das células do cérebro nem das propriedades dos ácidos nucleicos.

Durante breve instante o homem que acorda não se recorda de tudo: Quem é, onde está, que acontecimentos se passaram nos tempos pretéritos e o que se lhe apresenta no futuro.

Sem abrir ainda os olhos, Kravtsov imaginava que encima tinha o mesmo teto esbranquiçado com o florão modelado no centro, como na infância. Depois, ainda com os olhos fechados, compreendeu que o florão estava a 12.000km dali, e sobre onde estava tinha umas tábuas estreitas pintadas de esmalte branco e nelas deslizavam, se confundindo, os reflexos do manso marulhar do oceano.

Se recordou de tudo e abriu os olhos com desagrado.O dia será quente e sem vento. Haverá discussão com Will. Á, sim! Hoje é o dia do

russo: Falarão somente russo. Ele, Kravtsov, preparará a comida a seu gosto. Como se vingar de Will pela panqueca de ontem, borrifada de geléia azeda de groselha?

Pôs os óculos escuros, saiu à coberta e deu uma olhada na porta entreaberta do camarote de Will. Dali saía o zumbido da máquina elétrica de barbear: O velho pedante que antes se quer deixar comer pelos tubarões a aparecer na manhã com a cara a barbear. No que respeita Kravtsov, já fazia um mês e tanto que não se barbeava. De qualquer forma, a 500km ao redor não havia viva alma. Mas não era esse o caso. Kravtsov sabia que sua barba rala e castanha irritava Will, e não é que isso lhe desse alegria mas, vamos lá, o divertia ou qualquer coisa no estilo.

— Bom dia, Will. — Disse Kravtsov. — O que desejas pro desjejum?— Bom dia. — Se ouviu atrás da porta uma voz que resmungava. És muito

atencioso. Muito obrigado.Kravtsov tossiu ironicamente e se dirigiu à despensa. Ficou pensativo diante do

frigorífico, depois decididamente se dirigiu às estantes e tirou uma lata de trigo sarraceno. Papa de trigo sarraceno como desjejum, era precisamente o que Will mais detestava.

Enquanto preparava a papa Kravtsov deu uma volta na plataforma flutuante. Nisso perdeu meia hora: A plataforma, redonda, tinha 500m de diâmetro. Permanecia imóvel, embora não estivesse ancorada. Ali, na mais profunda fossa oceânica, era impossível ancorar.

Seis hélices potentes mantinham a plataforma no mesmo lugar: Três hélices giravam à direita e três à esquerda. Os captadores comunicavam constantemente à máquina calculadora eletrônica todos os dados necessários sobre o vento, ondulação e correntes marítimas, e a máquina elaborava continuamente esses dados e dirigia a ação das hélices.

As hélices do segundo grupo, também em número de seis, estavam sob a plataforma e o eixo era vertical. Eram pra equilibrar a plataforma contra balanço e inclinação. Por

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mais que o oceano se enfurecesse, e Kravtsov e Will se convenceram disso duas vezes, a plataforma permanecia quase imóvel. A deriva não era superior a 100m, e a tubagem que atravessava a plataforma e chagava ao fundo da fossa oceânica, se inclinava, com respeito à vertical, menos de 1 grau.

As ondas mais altas não chegavam à borda da coberta, que se elevava a 30m. Só o vento lançava sobre a coberta, de vez em quando, pedaços de espuma arrancados das cristas das ondas tempestuosas.

Naquele dia, como sempre, tudo estava em ordem. A caldeira atômica aquecia regularmente a água, que se tornava potável com os aparelhos ionizadores. O vapor fazia girar, com regularidade, os rotores da turbina. Os geradores da central elétrica funcionavam em regime mínimo porque o oceano estava pacífico, justificando sua antiga denominação. Os excedentes de energia eram invertidos em processos secundários, como a extração eletrolítica da prata contida na água do mar, que em certo grau cobria os grandes gastos do centro geofísico internacional.

A instalação automática funcionava normalmente. Kravtsov contemplou a superfície azul do oceano tenuemente iluminada pelo sol matutino. Nos primeiros dias esse quadro o cativava. Agora o oceano só lhe causava aborrecimento.

— Me faltam 27 dias de vigilância. — Pensou e coçou a barba sob a orelha esquerda. Um novo costume já adquirido.

Kravtsov se encaminhou ao centro da plataforma, onde se elevava a torre de perfuração de 150m de altura, e observou a faixa através duma janelinha do registrador. Começou a olhar atentamente: Durante o último dia o cabo do sistema de polia se afrouxara 15mm. No dia anterior, com Will, observara que o cabo estava um pouco mais frouxo que o normal. Contudo não lhe deram importância. Mas 15mm em 24h!

Will chapinhava na piscina, pequeno espaço de água cercado por uma rede anti-tubarão. As 7:15h em ponto saltará do elevador, ofegante e dirá: Hoje a água está muito quente. No corpo magro de Will havia um mecanismo exato de relógio, a que deram corda duma vez a sempre.

Kravtsov pôs manteiga na papa, as salgou, preparou o chá e saiu da despensa no mesmo instante que Will subia à coberta. O saudou languidamente com a mão. Will assentiu com a cabeça, tirou a toca de banho, de borracha, escorreu com as mãos a água do corpo bronzeado e disse:

— A água está muito quente.— Quem diria? — Resmungou Kravtsov.Tomaram o desjejum sob o toldo. Will se comportou como se não vira a papa de

trigo sarraceno. Cortou um pãozinho ao meio, o recheou com grossa fatia de presunto e serviu uma xícara de chá com rum.

— Então, não comas a papa. — Disse Kravtsov.— Obrigado. Prà próxima, as comerei. — Respondeu tranquilamente Will. — Como

passaste a noite?— Mal. Os pesadelos me atormentaram.— Não leia revistas em esperanto na noite.— É preferível estudar esperanto que modelar repugnantes gnomos com plasticina.— Sim. — Disse Will, sorvendo o chá com rum. — Até agora ainda não consegui o

modelar. Talvez seja porque não consigo imaginar clara e definitivamente a essência espiritual.

— Essência espiritual? — Kravtsov sorriu e olhou o curto e encanecido cabelo eriçado de Will. — Queres que conte uma história? A lebre perguntou ao veado: Pra quê levas um peso tão grande na cabeça? Como para quê? Por ser belo, certamente. Não posso tolerar os que andam com a cabeça vazia. A lebre

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se ofendeu e disse: Em compensação meu mundo interior é muito rico.Will, calado, enchia o cachimbo de tabaco louro mas Kravtsov viu, pelo modo de

semicerrar os olhos que estava refletindo sobre o conto.— Agora contarei outro conto. — Disse Will, envolto em fumaça. — Um irlandês

caiu nas garras dum urso. Queres me comer? O urso respondeu: Sim, te comerei. O irlandês disse: Mas como me comerás sem garfo? O urso tinha muito amor-próprio e não quis confessar que não sabia o que era um garfo. Ficou pensando e disse: Sim. Tens razão. E soltou o irlandês.

— E é tudo?— Sim, é tudoKravtsov sorriu.— O cabo afrouxou 15mm. — Disse, depois de breve silêncio.Will sacudiu a cinza do cachimbo e cuspiu no caixote com areia.— Desçamos, rapaz. — Com essas palavras se levantou e, sem se apressar, foi à

torre.-Kravtsov o seguiu olhando as robustas pernas peludas e a cuidadosa risca dos calções

curtos verde claro.Levantaram a pesada tampa da escotilha da coberta e desceram, se introduzindo sob

a base da torre de perfuração. Estava escuro e a atmosfera era asfixiante. Kravtsov acendeu a luz.

Diante deles se via o extremo superior da coluna de tubulação coroado com preventores,12 através dos quais saía o tubo de perfuração até acima.

Will ficou pensativo, depois se encarrapitou em cima da brida superior, pegou numa régua graduada e mediu a distância que a separava das vigas de sujeição dos rotores.

— O que encontraste? — Kravtsov perguntou.Will desceu num salto, olhou de novo os preventores e murmurou, entredente:

Margens do rio PeterjeskNa emboscada de McDougal15cm no peito inimigo.Medirei com meu punhal

— Então? — Kravtsov começava a perder a paciência.— Pois fui quem montou esses preventores há seis anos. E maldito seja se a coluna

de tubulação não se elevou uns bons 15cm!— Will, te recordas bem como estava? Will se calou. Não costumava responder a

essas perguntas.

2Fazia já seis anos que, por decisão do correspondente AGI, ano geofísico

internacional, naquela fossa oceânica se começara a perfuração dum poço superprofundo pra prospecção da composição da Terra. Todos os países participantes fizeram uma cota prà construção da base flutuante. Quatro brigadas de perfuradores eleitas por uma comissão internacional, se estabeleceram na plataforma. Todos eram operários experimentados na perfuração de poço petrolífero marinho, mas essa era a primeira vez que se abria um poço de 50km de profundidade. É verdade que a força oceânica lhes poupava mais de 10km, mas 40km, digamos de passagem, não é ninharia.

O instrumento de perfuração tinha que penetrar no enigmático manto sob a crosta terrestre. Ali, sob o fundo do oceano, a descontinuidade de Mohorovicic,13 zona de

12 Preventores: Grossas bridas que servem pra tornar o poço hermeticamente fechado13

A descontinuidade de Mohorovičić, moho, ou descontinuidade M, é a fronteira entre a crosta e o manto terreno. Como o nome indica, e fronteira é descontínua, variando em espessura e distância da superfície. Essa distância varia de 5km e 10km no fundo

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variação de propriedade, é a que mais se aproxima da superfície do planeta.Prà abertura do poço se utilizaram os meios técnicos mais modernos. A tubulação,

duma ligação de alta dureza, não descia ao nível da perfuração mas atravessava a massa marinha de água e se aprofundava no estrato do fundo apenas uns quilômetros. Doravante as paredes do poço não se reforçavam com metal. O método termoplásmico de perfuração, que aquecia o mineral até a temperatura de evaporação, ao mesmo tempo fundia e solidificava as paredes, tornando as sólidas, herméticas, preservando o poço contra afundamentos, e interceptava a passagem da água dos diferentes estratos.

●Nesse poço se introduziam nas profundidades inexploradas tubos de perfuração, que

não se uniam, como geralmente, com fechos de rosca. Um dispositivo com soldador automático de alta qualidade os soldava quase instantaneamente durante a descida. E durante a subida os tubos se cortavam nos lugares da junção cuma cortadora automática de plasma.

Se todo o poço se perfurasse no método termoplásmico a perfuração terminaria relativamente depressa, duma vez. Mas o objetivo não era a própria perfuração e sim a extração consecutiva das amostras minerais de todos os estratos que se atravessavam. Por isso, de vez em quando, recorreriam à antiga perfuração por rotação, limpando o poço cuma lama de perfuração. Só a lenta broca anular ou saca-amostra podia roer com os dentes diamantinos as amostras da sondagem: Prova mineral no estado natural, com ângulo de incidência do estrato claramente distinguível, conservando a porosidade natural, a saturação e muitos outros dados importantes pros geólogos.

De vez em quando tinha que se recorrer não só às perfuradoras elétricas e às perfuradoras rotatórias (interiores) mas também à perfuração rotatória de torre (exterior), fazendo girar toda a enorme coluna tubular. A tal profundidade se podia utilizar o rotor porque os tubos de perfuração eram duma nova ligação ligeira e resistente, preparada especialmente prisso.

O sagrado recinto da plataforma era o paiol das amostras de sondagem, aposento onde em pratéis14 semicirculares colocados em estantes numeradas, estavam as amostras de sondagem (núcleo): Largos cilindros de minerais tirados cuma broca. O paiol ocupava metade da coberta média da plataforma. Na mesma coberta estava o laboratório de investigação das amostras (se devia obter imediatamente alguns dados depois da recolha das amostras) Após isso conservavam as amostras, esperando as análises posteriores, as cobrindo cuma solução que rapidamente se transformava num plástico transparente.

Muitas vezes se elevou o tubo de perfuração e os geólogos liam lentamente, letra a letra, o espantoso relato da profundidade e quebravam a cabeça o decifrando.

No km42 a perfuração parou de repente. Dentro o plasma a 100.000°C (gás de núcleos e elétrons) se enfurecia agitando o poço. As agulhas dos aparelhos de controle chegaram ao topo. Tudo foi inútil: A broca de plasma, que até então não encontrara obstáculo que não vencesse, tropeçou numa barreira intransponível.

Se decidiu tirar os tubos de perfuração e ver a broca mas os tubos resistiam a sair. Algo incompreensível os retinha no poço.

Foi precisamente quando um dos mestres em perfuração, Ali-Ovsad Raguimov, de Bacu, disse a célebre frase que passou à história:

oceânico a cerca de 35km a 40km abaixo dos continentes, podendo atingir 60km sob as cordilheiras e montanhas mais elevadas. Já a espessura varia de 0,1km até alguns quilômetros. O nome foi dado em homenagem a Andrija Mohorovičić (1857-1936), o geofísico, seu descobridor. O estudo extensivo da descontinuidade iniciou durante o ano geofísico internacional (AGI), na década de 1950. As ondas sísmicas sofrem brusco aumento de velocidade ao atravessarem o moho. http://pt.wikipedia.org/ nota do digitalizador14 Pratel: sm Pequeno prato http://www.dicio.com.br/pratel/ nota do digitalizador

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— Não vai nem vem. Tal qual um burro de Karabaj.15

Os operários perfuradores lutaram várias semanas, tentando vencer a resistência das rochas ou tirar a enorme tubagem. Os melhores geólogos do mundo debatiam, na sala de oficial da ilha flutuante, sobre esse fenômeno incompreensível. Tudo foi em vão. O poço, que se perdia em inconcebível profundeza, não pensava revelar o segredo aos homens.

Então, a presidência do AGI decidiu interromper o trabalho. A plataforma circular ficou vazia. Cessaram as conversações em diferentes idiomas, não atracavam nos cais os barcos de transporte de hematita,16 argila e material de atividade superficial prà lama de perfuração. Os cientistas foram embora. O paiol de amostra ficou vazio, se levando as amostras pra análise definitiva.

A comissão geológica do AGI conservou na plataforma um corpo-de-guarda, que se revezava todos os três meses. A princípio a guarda era composta por duas brigadas de operário perfurador mas com o decorrer dos anos a guarda se reduziu, pouco a pouco, até duas pessoas: Engenheiros perfuradores.

Assim decorreram quase seis anos. Todas as manhãs os engenheiros de vigilância punham o cabrestante a trabalhar, tentando tirar os tubos. Todas as manhãs se comprovava a tensão dos cabos do sistema de polia e invariavelmente no diário de bordo aparecia uma inscrição que em todos os idiomas significava o mesmo: Os tubos não se movem.

O burro de Karabaj continua teimando.Sacha Kravtsov ainda era estudante quando começou a perfuração do poço

superprofundo. Sua cabeça, com o cabelo cortado formando uma mecha, estava cheia de dado sobre essa perfuração sem precedente: Dados adquiridos lendo revistas especiais e ouvindo os participantes. Kravtsov sonhava poder ir à plataforma circular mas em lugar disso, depois de terminar o estudo de engenharia, o destinaram a Neftianíe Kamni, explorações marinhas de petróleo no Cáspio. Ali trabalhou dois anos e, de repente, quando já não pensava no poço abandonado, foi destinado a fazer a vigilância trimestral no oceano.

Ficou satisfeito em saber que seu companheiro seria Will Macpherson, veterano da perfuração do poço. Efetivamente, a princípio foi interessante. O escocês exalando, de vez em quando, fumaça do cachimbo e misturando as palavras russas com as inglesas, falava da água superfervente do km12 e da areia negra do km18, areia que não se deixava penetrar pela broca de coluna e em duas horas comiam a broca diamantina. Will ria quando se recordava de Bramulla, apaixonado geólogo chileno, que se inquietava exigindo que se tirasse, a todo custo, do poço não menos de 8t de areia negra, e inclusive pedia a Deus ajuda imediata.

Will lhe falou, também, da horrorosa vibração e das pressões monstruosas, das estranhas bactérias que há nos estratos ricos em metano do km37, das terríveis erupções gasosas, do incêndio que foi combatido depois de esforço desesperado.

O escocês não gostava de repetir as coisas e quando esgotou a conversa, Kravtsov se sentiu aborrecido. Se verificou claramente que seus pontos de vista eram

15 Carabaje: Região separatista da Armênia oriental, enclave no sudoeste do Azerbaijão. Quando foi escrito o conto toda a região era parte da União Soviética. Karabaj, em turco e persa, significa pomar negro. Nota do digitalizador.

16 Hematita ou hematite é um mineral de fórmula química óxido de ferro III, (Fe2O3), um dos diversos óxidos de ferro. Às

vezes contém pequena quantidade de titânio. Pode ser usada como gema (variedade especularita) e quando lapidada facetada sole ser chamada de diamante-negro. É um mineral muito comum, preto a cinza, marrom a marrom avermelhado ou vermelho. http://pt.wikipedia.org/ nota do digitalizador

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diametralmente opostos em tudo, exceto na perfuração de poço submarino. Isso complicava consideravelmente a vida. Discutiam cortesmente sobre qualquer coisa desde os métodos de determinação da viscosidade da lama de perfuração, até a análise psíquico-comparativa dos espíritos russo e inglês.

— Nada entendes dos ingleses. — Will dizia, tranquilamente — Pra ti o inglês é uma mistura de Samuel Pickwick, coronel Lerentz e Soms Forsyte.

— Não é verdade. — Exclamou Kravtsov. — Vós é que não compreendeis os russos. Pra vós somos algo entre os irmãos Karamazov e o mestre de perfuração Ali-Ovsad!

Kravtsov se enfurecia quando Will falava das misteriosas propriedades do espírito russo, que lera nas obras de Dostoievski, onde o bem e o mal se alternam em estratos paralelos, como a argila e a areia nas estratificações petrolíferas. Kravtsov sorria quando Will recordava o mestre Ali-Ovsad com sua extraordinária intuição no respeitante à profundidade terrena. Certa vez o escocês lhe contou que no km22 ocorreu a rotura dos tubos, até agora incompreensível. Introduziram no poço uma câmara fotográfica pra determinar o caráter da rotura segundo as fotografias. Apesar duma grande proteção anti-radiativa, a película ficou exposta a radiação luminosa. Então o mestre de perfuração Ali-Ovsad recordou o tempo passados: Com os tubos introduziu no poço um negativo, um molde de chumbo, o aplicou cuidadosamente no extremo aberto do tubo de perfuração e comprimiu o negativo contra a fratura. Quando subiram o negativo e ficou pendurado sobre a boca do poço, Ali-Ovsad levantou a cabeça e esteve muito tempo examinando as amolgaduras do chumbo. Depois, induzido pela impressão gravada no chumbo, fabricou, com suas mãos, o feliz gancho de forma complicada, com o qual separou o tubo da parede do poço até o centro e, núltimo, o agarrou cuma potente braçadeira, extrator de tubo de grande profundidade.

— Vosso Ali-Ovsad é um verdadeiro oildriller.17 — Dizia Will. — Vê muito bem o que se passa sob a terra. Não encontrei melhor especialista pra liquidar avaria.

O escocês não falava mal o russo, mas com sotaque do Azerbaijão, devido ao estreito contato com Ali-Ovsad. Intercalava no discurso frases como: Descansa-adescansa, não conheço esta palavra ou Trabalha o trabalho de perfuração. Recordava o prato nacional russo, segundo pensava, que Ali-Ovsad preparava nos domingos. O prato se chamava dzhizbiz e se preparava com intestino de carneiro.

Kravtsov conheceu Ali-Ovsad em Neftianíe Kamni, e as fórmulas tipo Descansa-adescansa, não conheço esta palavra lhe eram bastante familiares.

A paixão a perfuração de poço submarino e o respeito ao mestre Ali-Ovsad, talvez eram os únicos laços que uniam Kravtsov e Will.

3Decorreu mais um dia. Os aparelhos de controle indicaram que as duas tubagens, a

da perfuração e o tubo, se elevaram 20mm mais. Mas não se podia elevar a coluna de perfuração com a ajuda do cabrestante. Parecia que a terra empurrava, pouco a pouco, os tubos, os tirando de sua entranha, mas não permitia que o homem fizesse o mesmo.

Will se animou visivelmente. Cantarolando canções escocesas passava horas inteiras sob a base da torre de perfuração, junto aos preventores, estava ocupado com o magnetógrafo e apontava não sei o quê. Kravtsov disse, no jantar:

— Ouças, Will. A meu entender devíamos ligar ao centro.— Compreendo. — Will, pondo rum ao chá. — Queres pedir revista recente em

esperanto.— Deixes de graça.— Deixes de graça. — Repetiu, lentamente, o escocês. — Mas que expressão mais

estranha. Em inglês não se diz assim.17 Oildriller (anglicismo): Perfurador de poço petrolífero

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— Repito em inglês. — Disse Kravtsov, reprimindo apenas a bílis que lhe saía — Tens de te comunicar com o centro. Algo acontece no poço.

Na manhã pediram uma conferência extraordinária via rádio e deram conhecimento à comissão geológica do AGI sobre a auto-ascensão dos tubos.

— Continuai observando. — Respondeu a voz longínqua do vice-presidente da comissão. — A não ser que precisais de ajuda urgente. É isso?, Will.

— Até agora não necessitamos.— Muito bem. Tropeçamos com sérias dificuldades na perfuração de poço na costa

peruana. Dês cumprimento a Kravtsov. Passai!, bem Will.Os engenheiros saíram da cabine de rádio e o calor sufocante do meio-dia os rodeou

num abraço úmido e pegajoso. Kravtsov coçou a barba e disse:— O mais certo é termos aqui de novo uma junta militar. Que diabos a levem!— O que interessa? — Will limpou o pescoço com o lenço. — Só peço que não

incomodem o trabalho dos cientistas e engenheiros.— O mundo não se compõe só de cientistas e engenheiros.— Isso não me importa, nem me interessa a política. É ridículo te ver quando te

lanças, com toda pressa, ao receptor de rádio, pra ouvir as últimas notícias.— Pois é melhor não me olhares. Também não te olho quando estás esculpindo

figuras femininas e sorris luxuriosamente ao mesmo tempo.— Hum!... Nada a ver com meu sorriso.— Sem dúvida. O mesmo em relação a minhas correrias ao receptor.— Já verificaste os cabos?— Sim. E corrigi a frouxidão. Ouças, Will: Por que-diabo aceitaste vir tomar conta

disto? Com tua experiência poderias estar perfurando.— Aqui pagam bem. — O escocês se introduziu através da escotilha.

4E os tubos continuavam subindo. Na manhã do sexto dia Kravtsov deu uma olhada

no postigo do mostrador e... o que via nem queria acreditar: 1,5m num dia!— Se continuar assim a tubagem em breve tropeçará como o rotor.— É muito provável. — Disse Will, que acabava de sair do camarote recém

barbeado, em traje de banho azul.— Tomarás banho? — Perguntou Kravtsov, com semblante carrancudo.— Sim. Sem dúvida. — Will enfiou a touca de banho e foi até o ascensor de bordo.Kravtsov desceu na escotilha. Os preventores se subiam a olhos vistos. Pensou e

começou a desligar os tubos de comando hidráulico:— Tem que se tirar as chumaceiras do rotor pra que os preventores possam passar

através dele.Neste momento apareceu Will, que cheirava a frescor marinho:— A água está quente hoje. O que fazes aqui?, rapaz.Libertaram os preventores de todas as ligações, desmontaram todas as partes

salientes e subiram à coberta.— Não compreendo. — Disse Kravtsov — Auto-ascensão dos tubos de perfuração.

O que acontece é ainda inconcebível. E a coluna de tubagem? Se a base está encravada em terra firme! E no entanto, também sobe. Coisa infernal. Hoje ou mais tardar amanhã, aparecerá aqui a parte superior da tubagem.

— É preciso cortar os tubos superiores de perfuração.Kravtsov levantou a cabeça e, semicerrando os olhos atrás dos espelhinhos, observou

o sistema de polia. Nos últimos dias se viram obrigados a esticar os cabos muitas vezes, e agora, o sistema de polia estava pendurado quase na altura do farol da torre. Kravtsov se aproximou do painel de comando e olhou a agulha do indicador:

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— Só faltam 9m. Sim. Precisa cortar os tubos.Will ficou diante do painel de comando. Ruidosamente arrancou o motor principal e

começaram a encostar as engrenagens dos redutores do potente cabrestante: Will esticou os cabos dos tubos de perfuração. Depois apertou um botão e logo outro. Da bancada do aparelho automático saiu um comprido braço cum maçarico de plasma, que se aproximou do tubo. Atrás da couraça de vidro azul, da abertura de volfrâmio saiu, sibilando, um fino dardo do jorro de gás eletrônico-nuclear. O aparelho automático conduziu rapidamente o maçarico cortante em volta do tubo de perfuração, a chama se apagou cum leve estalido e o braço se retirou.

A vela cortada dos tubos de perfuração com 80m balançou suavemente no gancho e o aparelho automático de cima a deslocou a um lado e a desceu, a deixando no suporte, como se pusesse uma proveta na grade.

Já livre, o gancho com a mordaça automática, desceu rapidamente. No alto parecia um pouco maior que um anzol de pesca mas quando desceu ocupou quase todo o espaço que havia entre os pés metálicos da torre.

A mordaça automática fechou suas mandíbulas de aço em volta do extremo da tubagem de perfuração. Will ligou o mecanismo de elevação, puxou por acaso o tubo. Mas mesmo assim o poço não soltava a coluna. Os tubos, tal como antes, continuavam sem ceder.

Não se podia fazer mais. Kravtsov se acomodou na espreguiçadeira,18 embaixo de toldo e se enfronhou na leitura duma revista em esperanto. O manso vento o arejava agradavelmente. Will tirou a fita do magnetógrafo e, assobiando uma canção, examinava a gravação.

Kravtsov levantou a cabeça.— O que pode ser isso?, Will. Parece que o poço ficou louco.— O que sabemos, em geral, da entranha da terra? — A voz de Will soou com uma

aspereza desusada. — Conhecemos, e bastante mal, apenas a fina capa de papel colada ao globo terreno.

— Não está mal definido. — Pensou Kravtsov.— Se a humanidade não gastasse tanto esforço e meio em armamento...— O que disseste?— Nada. É só pra meu foro íntimo. — Kravtsov trauteou, cansado. — Faríamos

muitas coisas, se coletivamente, todo o mundo...— Isso nunca se conseguirá. — interrompeu Will.— Se conseguirá. Com certeza.— A humanidade, acerca da qual gostas tanto de filosofar, se inclina mais à luta que

à investigação científica.— Não é a humanidade, Will, mas indivíduos.— Sei. Sei. Já me explicaste: Os monopolistas. Isso não me atinge. Maldita política!Em primeira vez Kravtsov viu o escocês tão excitado.— Deixemos isso. — Estendendo as compridas e bronzeadas pernas — Mas por que

empurram os tubos a cima? A não ser que o fundo do mar esteja subindo. Algumas sacudidelas submarinas...

Will deixou a fita e apontou algo na caderneta. Resmungou:— Melhor seria me dizeres por que se magnetizam os tubos.— Se magnetizam? Tens certeza? — Kravtsov arqueou as sobrancelhas, com

18 Espreguiçadeira: No original Chaise longue (cadeira longa) é um sofá estofado em forma de cadeira, que é longo o suficiente pra suportar as pernas. Às vezes grafado chaise lounge, termo arraigado em Estados-Unidos, que não é mais considerado incorreto lá e ainda podem ser encontrados em seus dicionários (um exemplo de etimologia popular). Em francês moderno o termo chaise longue pode se referir a qualquer cadeira longa reclinável como uma espreguiçadeira. Uma tradução literal em inglês é cadeira longa. Em Estados-Unidos o termo lounge chair também é usado pra se referir a qualquer cadeira longa reclinável. http://en.wikipedia.org/wiki/Chaise_longue nota do digitalizador

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expressão de espanto.Will não respondeu.— Mas a ligação dos tubos não pode se magnetizar.— Sei. Mas é fato. Olhes o gráfico das medições diárias durante os dois últimos

meses. — E deu a Kravtsov a caderneta aberta.Kravtsov considerava um juízo precipitado resultante do cansaço do escocês com o

magnetógrafo mas ficou surpreendido vendo o gráfico tão bem ordenado. A magnetização dos tubos que antes não se revelara surgiu de repente, havia já duas semanas, e aumentava sensivelmente dia a dia. Em suma: Era muito débil mas, se não haveria...

— Will, queres dizer...— Quero dizer que temos de ir comer.

5Kravtsov acordou com o bramido do vento. Era muito cedo, a aurora começava a

iluminar a densa treva noturna. O vento penetrava com furor no camarote via escotilha aberta de par a par, balançava as cortinas, brincava com as folhas das revistas sobre a mesa. Era fresco e úmido, cheirava ao longínquo outono de Moscou, e Kravtsov sentiu deleite e intranqüilidade. Pensou:

— Em breve terminará a vigilância. De repente se lembrou do que sucedera nos últimos dias na plataforma. A sonolência desapareceu num instante. Se vestiu e saiu do camarote. A torre estava iluminada. O que Will faz ali tão cedo? Kravtsov foi rapidamente à torre. Ouvia como sibilava o ar ao deslizar nos barrotes de ferro, como bramava o oceano despertado pela tormenta que se avizinhava. No escuro céu não se via a Lua nem as estrelas.

Kravtsov subiu correndo a passarela da torre. Ali, junto à boca do poço, estava o escocês.

— O que aconteceu?, Will.Mas já via o que aconteceu. Os preventores subiam lentamente através da abertura

octogonal do rotor liberto das chumaceiras. Subiam, perceptivelmente empurrados pela coluna de tubagem. Espetáculo bárbaro, nunca visto.

— É preciso tirar os preventores. — Disse Will.— Não será perigoso?, Will. E se subitamente vazar gás?— É preciso tirar enquanto estão aqui. Quando forem empurrados a maior altura será

mais difícil tirar.Começaram a manipular as chaves-de-fenda elétricas, libertaram a maciça brida e

tiraram o preventor, o suspendendo no gancho do cabrestante auxiliar. Da mesma maneira tiraram o segundo e o terceiro preventor. Quando trabalhavam com o último, ele já estava na altura do peito. A coluna de tubagem continuava subindo, empurrada por uma força misteriosa.

É verdade que não subia tão depressa quanto a coluna de perfuração, que se elevara ao menos 40m acima do bocal. Mas o que sucederá? O que acontecerá quando se elevar mais e tapar os tubos de perfuração? A cortar? Mas o dispositivo automático do maçarico de plasma está apenas calculado pro tubo de perfuração de 20cm e não poderá circundar a coluna de tubagem de 50cm. Além disso, quem se lembraria de que a coluna de tubagem sairia do poço?

Kravtsov coçou a barba e disse:— O que Ali-Ovsad faria em nosso lugar?— O mesmo que fazemos.Se olharam nos olhos.— Fazer descer na coluna de perfuração a cortadora de tubo?

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— Não dispomos de tempo suficiente. A velocidade aumenta constantemente. Além disso nós dois sozinhos não podemos. Arrancaremos os tubos de perfuração até os romper.

Tais decisões só se tomam em casos extremos. Mas aquilo era o caso mais extremo que podia suceder. Não as podiam regular com as duas colunas de tubo, uma vez que a velocidade aumentava constantemente. A única coisa que podiam fazer era puxar a coluna de perfuração até que se rompesse nalgum lado e depois tirar o mais rapidamente possível e cortar com o dispositivo automático a série de tubo. Depois disso apenas lutar com a tubagem.

De novo os dedos de Will se apossaram do teclado de comandos. O motor principal rugiu e começaram a ronronar as rodas dentadas dos redutores. Os cabos dos sistemas de polia rangiam ao se esticarem sob a enorme sobrecarga. Esse rangido produzia calafrio de terror. O vento, investindo em rajada, se batia nos cabos extremamente tensos e parecia sibilar uma canção pirata.

A agulha do carguímetro, tremendo, se aproximou da linha vermelha da carga máxima. Os engenheiros observavam a agulha, calados, e de repente ouviram um débil estalo. O ruído chegou da profundidade no largo corpo da tubagem. A agulha oscilou bruscamente à esquerda. No gancho ficaram suspensos apenas 9300m de tubagem.

— Os rompamos! — Kravtsov gritou alegremente. — Ligues o maçarico.O gancho continuava tirando do poço uma série de tubagem de perfuração. Will

igualou a velocidade da cortadora à velocidade de subida. O braço começou a deslizar até acima no resvaladouro junto ao tubo e com a chama azul do plasma rodeando os tubos. Enquanto o aparelho automático de cima transportava a vela cortada, a cortadora descia e se pegava de novo ao tubo. Assim cortavam as velas umas após outra.

Há já um tempo que amanhecera, chovera e cessara de chover. O vento arrastava a manada de nuvem cinzenta e tormentosa a pouca altura do oceano.

Depois a coluna de intubação saiu o suficiente pra impedir o corte da tubagem de perfuração. Tiveram que se ocupar dela. Kravtsov tirou o maçarico de plasma do aparelho automático do braço e, o sustendo com as mãos, começou a cortar o corpo da tubagem de intubação coberta de lapa. O cortou completamente, da raiz. De novo começou a subir e a baixar o aparelho automático.

●Quase sem perceberem, o crepúsculo os surpreendeu. Enfim terminaram o pesado

trabalho. Tiraram toda a parte arrancada, cortada e colocada nos suportes.Kravtsov foi, quase sem força, pra preparar o café. Quando saiu da despensa, com a

bandeja na mão, viu Will se retorcendo, deitado numa cadeira-de-espaldar, com a mão no coração.

— Nitroglicerina. — Pediu, com voz rouca. — No armário de porta, estante superior, à esquerda.

Kravtsov correu até o camarote de Will e pegou o frasco de vidro. Will pôs, bem metidas na boca, duas pílulas brancas.

— Te sentes melhor? — Kravtsov perguntou, alarmado. Will concordou com a cabeça.

Kravtsov deu café e depois foi apressadamente à cabine de rádio. Só às 10h e pouco da noite conseguiu se comunicar com o centro.

— Sim, sim, urgente! — Gritou. — Não menos de duas brigadas! E um médico! O quê? Sim, um médico. Macpherson sofreu um ataque.

Will arrancou o microfone dele e disse, com voz tranqüila:— Não faz falta o médico. Quatro brigadas de emergência, turno completo, depressa.

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Chuviscava e o oceano não estava tranqüilo.Kravtsov nada via. Passou toda a noite cortando a coluna de intubação sem notar que

a manhã nascera cinzenta. Apenas se permitiu duas vezes um pequeno descanso pra ver Will. O escocês estava deitado e acordado no camarote.

— Que velocidade? — Perguntou, debilmente.— 5m/min — Kravtsov, o olhando com inquietação. — Como estás aqui? Não estás

melhor?— A cortadora. — Sussurrou Will. — A cortadora funciona bem?— Funciona bem. — Kravtsov encolheu os ombros. — Procures dormir, Will. Irei.O maçarico de plasma funcionava normalmente, só que sentia peso nas mãos, de tão

pesado que era. Os tubos subiam cada vez mais depressa. Kravtsov ainda tinha tempo pra enganchar os tubos cortados no cabrestante auxiliar.

Acabou o argônio e teve de recorrer ao paiol e carregar no carrinho as garrafas cheias. Esteve ocupado ali meia hora. Quando já chegava com o carrinho nos carris até a torre, a coluna de intubação se aproximava do moitão19 fixo.

Kravtsov ligou o comando do quadro principal ao do elevador e subiu nele. Com grande dificuldade pôde trocar o grampo de 20cm por um de 50cm. Depois, o grampo desceu, rangendo, encontrar o tubo e prendeu com garra firme o extremo superior. Durante esse momento Kravtsov regulou a velocidade de subida, baixou e ligou a cortadora.

Cortou o tubo, embora o corte saísse torcido. Puxou o extremo do tubo com o cabrestante auxiliar e o colocou sob o carrinho. Umas quantas voltas mais e a série de tubo de 120m ficou em posição horizontal na ponte, no outro lado da torre.

Depois disso, sobre o bocal do poço se elevava, como um coto, um cabo de 3m. Pra chegar até o alto era necessário um pouco de tempo.

Mas precisava dar chá a Will.Se curvando e arrastando apenas os pés, Kravtsov foi ao camarote do escocês. Tirou

as luvas de trabalho e secou a cara, que escorria suor e água de chuva. A cabeça já dava ligeiras voltas de cansaço ou também podia ser, na realidade, por nada ter comido nas últimas 24h.

Will não estava no camarote.As portas da despensa estavam abertas de par a par. Correu àli. Claro, faltava mais

nada! Ali estava, junto ao pequeno fogão, mexendo algo com a colher no tacho.●

— Que-diabo fazes aqui!? — Gritou Kravtsov, sem conter a ira. — Vás te deitar agora!

— Papa de trigo sarraceno. — Disse Will, em voz baixa. — Nunca pensei que levassem tanto tempo pra cozer.

Kravtsov se calou e ficou olhando as olheiras azuis do escocês.— Vás te deitar. As acabarei de fazer.— Devias ser carcereiro e não engenheiro mineiro. — Will resmungou e saiu ao

terraço.Kravtsov retirou a chaleira do pequeno fogão e serviu dois chás: Um pra Will e outro

pra si. Bebeu uns tragos e deixou a taça na mesa. Dali, no terraço, se via como se elevava, no interior da torre, a coluna de intubação. A velocidade aumentara consideravelmente.

Kravtsov correu à torre mas quando ligou o maçarico, em lugar do agudo dardo azul

19 Moitão: sm Peça metálica elíptica, que serve pra levantar peso. http://www.kinghost.com.br/ nota do digitalizador

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de plasma em alta temperatura, resplandeceu, fumegando, uma chama grande e vagarosa.

Lançando uma série de praga, Kravtsov se aproximou com o maçarico da lâmpada, pra ver melhor o que acontecia. Mal dera cinco passos quando o maçarico começou a lançar o plasma normalmente.

— Que novidade é essa?Se aproximou rapidamente do tubo, e aplicou o maçarico mas o plasma se

transformou de novo em simples fogo. Manipulou novamente a alavanca de comando da válvula, puxou o tubo flexível mas nada.

— Já estava esperando. — Soou nas costas.— Ouças, Will: Se não te deitares agora mesmo...— Apagues o maçarico, senão arderá como é normal.— Por quê?— A auto-elevação se acelera e o campo magnético da tubagem aumentou. O

ionizador da cortadora falhará estando perto do poço. Neutralização. Compreendes?— Então o que fazer? — Kravtsov desligou a cortadora e atirou o maçarico à

coberta.— No paiol há maçarico a gás.— Velharia. — Cochichou Kravtsov.— Não há outra solução. É preciso continuar cortando.Subiram ao carrinho e foram ao paiol. Tiveram que tirar as garrafas de gás do último

canto cheio de diferentes utensílios. Will, subitamente lançou um surdo gemido e se sentou num caixote. Kravtsov deixou a garrafa e correu aonde estava o escocês.

— Nada. Agora. — Will, com a mão tremendo, tirou da algibeira o frasco de vidro e pôs sob a língua duas pequenas pílulas brancas — Agora passará. Vás.

Kravtsov carregou o carrinho cheio até a torre de perfuração. Febrilmente e ensangüentando os nós dos dedos, colocava as garrafas nos assentos da rampa e fixava as porcas de união.

A cortadora a gás trabalhava muito mais devagar. Aumentava interminavelmente o tempo, e, interminavelmente saíam do bocal do poço novos e novos metros de tubo.

— 7m/min!Destroçava os tubos tal como lhe vinham parar à mão e já não retirava os pedaços

cortados. Só se afastava, saltando, quando caíam com estrondo sobre as pontes. A chama azul zumbia sem par, o maçarico tremia nas mãos e os cortes saíam torcidos.

— Terá decorrido 1h? Ou 1 dia? Se perdeu noção de tempo. O zumbido da chama, o estrondo dos pedaços de tubo e nada mais. Um só pensamento no cérebro já confuso: Eu mesmo os cortarei. Eu mesmo...

E não viu como Will se aproximou andando com dificuldade, e começou a observar a pressão do gás, desligando as garrafas vazias e ligando as cheias da rampa.

Não ouviu o ronco dos motores de aviação, nem que junto da plataforma amarou no agitado mar um hidroavião branco, nem que uns botes pneumáticos vermelhos, tripulados por gente com capote de lona impermeável, se moviam nas ondas, ao desembarcadouro.

Uma mão pesada se apoiou em seu ombro.— Te retires! — Rugiu, num último esforço, fazendo um movimento brusco pra se

livrar da mão.A mão se retirou do ombro mas não desapareceu. Lhe tirou o maçarico e a outra mão

o afastou suavemente.Kravtsov levantou a cabeça e ficou olhando, sem compreender, uma cara rígida e

enrugada com bigode negro.

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— Ali-Ovsad? — Disse, movendo a língua com dificuldade. E desfaleceu.

7Naqueles dias, em todos os jornais do mundo apareceram pequenas informações dos

respectivos correspondentes em Manila, Jacarta e Tóquio e foram reproduzidas nos jornais provinciais.

Notícias do oceano Pacífico: Se reanimou o poço de 40km de profundidade, abandonado durante o anterior AGI. New York Gerald Tribune

Misterioso fenômeno da natureza. A entranha da terra empurra os tubos de perfuração do interior do poço superprofundo. The Times

Façanha de engenheiro soviético: 24h de luta tenaz na ilha flutuante do oceano Pacífico. Izvestia

O mestre de perfuração Ali-Ovsad acudiu pra prestar ajuda Bakinski Rabotchi

Luta dum russo e dum escocês contra o diabo-marinho Stockholms Tidningen

Castigo divino pela insolente penetração na profundeza da Terra L'Osservatore Romano

Estamos alarmados: Sucede outra vez algo perto de nossa casa. Nippon Times

8Kravtsov olhou o indicador e, franzindo o sobrolho, se coçou sob a orelha esquerda.

Fizera a barba nesse mesmo dia na manhã mas ficara o costume de se coçar.10m/min. Em breve toda a tubagem sairá.Quatro brigadas, se revezando, cortavam os tubos, tentando seguir o desenfreado

ritmo de subida. A plataforma estava cheia de tubo cortado. A grua automotriz os carregava sem cessar nos camiões-vagões. Dos desembarcadouros, os transportavam ao porão dum barco de carga com bandeira holandesa.

O mestre de perfuração, Ali-Ovsad se aproximou de Kravtsov. A cútis, curtida de sol e vento, brilhava de suor.

— É lamentável.— Sim. É muito aborrecido. — Kravtsov replicou, distraidamente.— Digo que é lamentável. Uma tubo tão boa. É lamentável. — Ali-Ovsad estalou a

língua. — Jim! — Gritou a um rapaz albino e esgrouviado, com bermuda de couro. — Venhas!

Jim Parkinson saltou da passarela e se aproximou, passando sobre os tubos, movendo os compridos braços. Não obstante a pouca idade, Jim era um dos melhores montadores em exploração petrolífera do Texas. Parou, balançando sobre o tubo, e, sorrindo, olhou Ali-Ovsad. A sombra da viseira verde de celulóide caía sobre a larga cara, as queixadas se moviam compassadamente ao mascar chiclete.

Ali-Ovsad apontou o gancho do cabrestante auxiliar.— Pares o andaime suspenso. Bilirsen?20 Metas nele teus rapazes cortadores, com

autógeno, e os eleves até junto do tubo. Na mesma velocidade de elevação do tubo. Bilirsen? — Ali-Ovsad indicou, com as mãos, como se elevava a tubagem e, junto dela, o andaime suspenso. — Elevador! Upa! Bilirsen?

Kravtsov traduzia tudo isso a inglês mas aconteceu que Jim compreendeu perfeitamente Ali-Ovsad. Cuspiu o chiclete, acertando entre suas botas e as de Ali-Ovsad, e disse:

— Certo!

20 Bilirsen?: Compreendes? (em azerbaijano). Nota do digitalizador

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Depois se inclinou e, amistosamente batendo a mão no ombro do sujeito de Bacu, acrescentou:

— Ali-Ofsait, bem!E, gargalhando, foi dar a ordem aos rapazes.15min depois o andaime suspenso, arrastado pelo gancho do cabrestante, subia até

junto da coluna de intubação. Um enorme romeno moreno, da brigada de rendição, assobiou estridente e gritou:

— Andes, andes!O texano cortador assomou ao parapeito do andaime suspenso e, sorrindo, levantou o

dedo polegar, querendo indicar que tudo estava bem. Depois apontou o maçarico como se fosse uma escopeta e atacou, com o fogo, o corpo cinzento do tubo.

9Cerca das 7h da tarde, o chileno Bramulla, representante da comissão geológica,

convocou uma reunião na sala de oficial.— Senhores, peço transmitir vossas opiniões. — Dum trago esvaziou um copo de

limonada fresca e se encostou ao espaldar da poltrona de vime. — Will, queres começar?

Will, um pouco melhor do ataque, estava sentado ao lado de Kravtsov e olhava sua caderneta de apontamento.

— Meu colega Kravtsov que comunique primeiro o resultado das últimas medições. — Disse, sem levantar a voz.

— Sim. Faças o favor, senhor Kravtsov.— A velocidade da auto-elevação é de 11m/min. Segundo meu cálculo, com o

incremento de velocidade observado, em cerca de 4h a coluna de intubação será empurrada da terra e ficará fora do poço. O extremo inferior ficará suspenso no fundo do oceano.

— Permitas, jovem. — Interrompeu o magro austríaco, de nome Stamm, o único entre todas as pessoas da plataforma que usava gravata, casaco e calça. — Empregaste a expressão empurrada. Então o extremo inferior de tubagem não pode ficar suspenso, como disseste. Certamente que o susterá aquilo que o empurrou. Não é?

— Provavelmente... — Kravtsov ficou ligeiramente confuso — Simplesmente, não me expressei perfeitamente bem. Passemos agora a examinar o referente à tubagem de perfuração. Sabeis que a despedaçamos em certa profundidade mas, sem dúvida, ela também sobe. Segundo meus cálculos, o extremo superior está na profundidade de cerca de 7000m, isso é, se eleva dentro da coluna de intubação, na parte rodeada de água. — Falava devagar, cuidadosamente escolhendo as palavras. Às 6h da manhã se pode esperar o aparecimento da tubagem de perfuração no bocal do poço. Proponho...

— Permitas. — Se ouviu a voz rachada de Stamm — Antes de passar à conclusão é preciso se concretizar algo. Achas, senhor Kravtsov, que, com a coluna de intubação se empurrará também a tubulação artificial ou, noutras palavras, a rocha fundida das paredes do poço representa uma espécie de segmento da coluna de intubação?

— Não sei. —Kravtsov, inseguro. Se intimidava um pouco perante Stamm. O austríaco lhe recordava o professor de geografia de sua escola. — A rigor, não sou geólogo, apenas perfurador.

— Não sabes. — Constatou Stamm. — Faças o favor de continuar.— Nossos operários cortadores — Kravtsov tossiu. — apenas podem com o trabalho.

O que acontecerá quando os tubos se empurrarem, perdão, subirem mais depressa? Proponho que se envie um radiograma urgente ao centro, pedindo que enviem à plataforma uma machada fotoquântica. Em Moscou temos uma instalação excelente, a FKN-6A, que corta instantaneamente material de qualquer dureza.

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— FKN-6A — Repetiu Bramulla, confirmando com a cabeça. — Sim. É uma boa idéia. — Disse, enquanto bebia outro copo de limonada, e acrescentou: — Por que te calaste?

— Tudo o que tinha a dizer já está dito. — Disse Kravtsov.— Senhor Macpherson!— Sim. — Respondeu Will . — Penso o seguinte. A perfuração penetrou numa

fresta do manto. Um material desconhecido, comprimido sob enorme pressão até o estado plástico, encontrou saída e empurra a tubagem.

— Permitas. — Interveio Stamm — Senhores, é preciso se observar certa lógica consecutiva. Insisto sobre a questão da tubulação artificial. Consideras...?

— Não creio, senhor Stamm, que as paredes do poço possam estar tão destruídas. — Will disse, comedidamente.

— Não acreditas. — Resmungou o austríaco. — Contudo creio que é preciso descer imediatamente a câmara de televisão e ver o que acontece no fundo. Na plataforma existe uma câmara de televisão. Certo? Enquanto a fazemos descer, a coluna de intubação sairá do solo e veremos como se comporta a tubulação artificial. Estou admirado, senhor Macpherson, que ainda não fizestes descer a câmara de televisão desde o começo do fenômeno. Continues, por favor.

— Sim. No que se refere à câmara de televisão, talvez fora uma negligência minha. Concordo. O material que empurra os tubos tem propriedades magnéticas. Medi desde o começo da vigilância e me convenci de que os tubos estão magnetizados. Um momento! — Elevando a voz ao ver que o austríaco abria a boca — Prevejo tua pergunta. Sim. Os tubos são de ligação anti-magnética mas, apesar disso, é um fato: Estão magnetizados. Seu campo magnético neutraliza o ionizador do maçarico de plasma. Peço que examines o gráfico geral de minhas observações.

Stamm pôs apressadamente os óculos e se inclinou ao gráfico. Bramulla, arfando ruidosamente e dilatando os lábios carnudos, o olhava sobre o ombro de Stamm. Ali-Ovsad se inclinou, aproximando a orelha peluda a Kravtsov, quem, em voz baixa, lhe traduzia o que Will dizia. Depois de ouvir tudo Ali-Ovsad coçou a orelha, pensativamente. O velho mestre, que quase toda a vida perfurara a terra estava desconcertado.

— Queres dizer algo?, senhor Ali-Ovsad. — Bramulla perguntou e Kravtsov traduziu.

— Quer dizer? Perfuração-aperfuração. Isso, naturalmente, entendo um pouco — respondeu Ali-Ovsad com a sua entonação melodiosa. — Mas essa classe de rocha, palavra que em toda a minha vida a encontrei. Vamos esperar que saia esse material a cima, e então veremos.

Stamm levantou a cabeça do gráfico.— Não se pode esperar. Não se sabe o que aconteceu dentro da terra. A erupção da

tubulação pode causar forte tremor. Senhores, proponho evacuar todos ao barco de transporte holandês depois de fazer descer a câmara de televisão.

— De maneira nenhuma! — Gritou Kravtsov. — Perdoes, senhor Stamm, mas apoio a proposta de Ali-Ovsad: Tem que se esperar e ver o que acontecerá depois da expulsão dos tubos. Tem que se obter informação!

— De acordo. — Anuiu Will — Os instrumentos estão aqui e não devemos fugir.Naquele momento todos olharam Bramulla. Lhe pertencia a última palavra. O

gorducho chileno pensava, passando a mão na cabeça calva. Enfim disse:— Senhores, a questão consiste em se há perigo imediato. É difícil de responder a

isso, uma vez que tropeçamos num incompreendido fenômeno natural. Mas estou acostumado a abordar essa questão como sismólogo. Parece, colega Stamm, que do

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ponto de vista sísmico não há perigo imediato. Ó! Diabo! — Exclamou, de repente, olhando na janela. — O que é isso?

●Do bocal do poço emergia o tubo cinzento e, abraçado a ele de mãos e pés e

suspenso, estava um homem de gorro e traje de trabalho azuis. Os montadores que estavam embaixo assobiavam e gritavam. Do andaime suspenso, que se elevava junto da tubagem, o operário cortador se inclinara, pondo fora metade do corpo, e gritando algo, com extremo entusiasmo.

— É teu esse rapaz?, Jim. —Bramulla, alarmado.Parkinson, tranqüilamente mascando chiclete, meneou a cabeça negativamente.— É meu perfurador Chulkov-Achulkov, que é um pouco travesso. —Ali-Ovsad,

que saiu da sala foi à torre, contornando sobre os pedaços de tubo.Todos o seguiram.— Chulkov-Achulkov? — Bramulla reperguntou.— Não!, homem. Não! Simplesmente Chulkov. — Sorriu Kravtsov.Ali-Ovsad gritou algo ao alto. Um operário cortador, cumprindo a ordem do mestre,

cortou a tubagem uns 2m embaixo de Chulkov. O pedaço de tubo com Chulkov desceu lentamente, suspenso no gancho.

— Saltes! — Gritou Ali-Ovsad.Chulkov se separou do tubo cum movimento brusco, caiu de pés e mãos e se

levantou em seguida, esfregando os joelhos. A cara redonda de menino estava pálida, os olhos claros olhavam aparvalhados.

— Que diabruras são essas? — Ali-Ovsad, severamente.— Fiz uma aposta com os rapazes — Chulkov disse baixinho, procurando o gorro

que perdera ao saltar.Do grupo de perfurador se destacou um ianque rechonchudo, cum lenço multicor em

volta da cabeça. Sorrindo, ofereceu a Chulkov um isqueiro com complexos monogramas cromáticos e deu umas palmadas nas costas.

Bramulla foi aos perfuradores cum pequeno discurso, e as brigadas, rindo, voltaram ao trabalho. O incidente fora resolvido.

E Kravtsov se lembrou de como as mãos de Chulkov tremiam quando pegou o isqueiro.

— O que aconteceu com as mãos? — O rapaz, em voz baixa.— Nada. — Respondeu Chulkov. E subitamente, levantando um olhar arregalado ao

engenheiro: — O tubo atrai.— O quê?

— Atrai. — Repetiu Chulkov. — Não com muita força. Como se fosse um ímã e eu de ferro.

Kravtsov se apressou até a sala de oficial, onde Bramulla finalizava a reunião.— Agora não evacuaremos a plataforma. — Dizia o chileno, que de repente sorriu e

disse: — Com esses intrépidos rapazes nada nos faz arredar.Stamm alisou o cabelo cor de linho cuma escova dura e foi aonde estava a câmara de

televisão, pensando algo sobre a negligência russa e chilena.Sob o toldo Kravtsov chamou Will a parte e comunicou o que Chulkov dissera.— Também temos isso?! —Will mais exclamou que perguntou.

10Já havia 3h e pouco que a câmara de televisão descia. O cabo se desenrolava do

enorme tambor do cabrestante pra grande profundidade e, passando nas roldanas situadas no extremo do braço da grua, se perdia na água escura. Um montador seminu, da brigada de Ali-Ovsad, fumando um cigarro junto à borda e, de vez em quando,

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olhando o indicador de profundidade de descida.Ali-Ovsad se aproximou dele.— Só se fuma quando se vai passear. — Disse, severamente. — A mão tem de estar

na alavanca.— Nada acontece, mestre. — O montador respondeu pacificamente e, cum estalido,

atirou o cigarro borda fora. — Tudo está automatizado.— O automatismo é uma coisa e és outra.Mais por costume, o velho mestre deu uma volta ao cabrestante e tocou com a palma

da mão nas chumaceiras que auto-aqueciam.— É interessante. Que horas são em Bacu? — Disse. Sem esperar resposta, foi ao

camarote onde estava o receptor de televisão.Junto ao écrã estavam sentados Stamm, Bramulla e Kravtsov.— Que tal? — Kravtsov sonolento e pestanejando.— Um mar muito profundo. — Ali-Ovsad, tristemente — Ainda se tem de esperar

meia hora. Ou uma hora. — Acrescentou, depois de pensar um pouco.Na porta assomou a cabeça do radiotelegrafista de piquete.— Kravtsov está aqui? O chamam de Moscou. Rápido!Kravtsov saiu, precipitadamente, ao terraço.A plataforma estava vivamente iluminada. Guinchavam os tubos junto à grua

automotriz e se ouviam conversas em diferentes línguas. Kravtsov correu à cabine da rádio.

— Alô!Através dos sussurros e ruídos se ouvia uma voz alarmada e querida:— Sacha, saudade! Me ouves?, Sacha.— Marina? Saudade! Sim, sim. Te ouço. Como conseguiste comuni...— Sacha, o que aconteceu? Os jornais falam de ti. Estou muito, mas muito

alarmada...— Aqui está tubo bem. Não te preocupes!, querida. Que-diabo! Essa música

incomoda. Marina, como estás? Como estão Vova e a mãe? Marina, me ouves?— Sim, sim. A música incomoda. Estamos todos bem! Sacha, estás bem de saúde?

Digas a verdade.— Completamente! Como está Vova?— Vova já anda. Corre mesmo. Se parece contigo até não poder mais!— Já corre? — Kravtsov riu de felicidade. — Olhes! O valentão! O beijes por mim.— Recebemos tuas revistas em esperanto. As enviarei.— Agora não fazem falta. Temos muito trabalho. Não as envies agora!— Sacha, de qualquer maneira, o que aconteceu? Por que sobem os tubos?— Quem sabe?!— Como quem sabe?!— Agora ninguém sabe. Como vão tuas coisas na escola?— Á! Sabes: Os rapazes do décimo ano são difíceis! Mas em geral vai tudo bem!

Sacha, aqui estão dizendo pra me apressar.Uma voz monótona pronunciou em inglês:— Plataforma AGI! Plataforma AGI! Chama Londres.— Marina! Marina! — Gritou Kravtsov. — Marina!O radiotelegrafista tocou Kravtsov no ombro, que deixou o telefone na mesa e saiu.

●A luz branca dos refletores, o zumbido da chama do maçarico cuspindo chispa, a

coberta cheia de pedaço de tubo e, em volta de tudo isso, o escuro oceano e o céu. A noite era úmida e sufocante.

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Kravtsov, saltando dum tubo a outro, foi à torre. Trabalhava a brigada de Jim Parkinson.

— Que tal?, Jim.— Não muito bem. — Jim saltou ao lado. O pedaço de tubo cortado caiu

ruidosamente. Jim o deixou rodar a trás e olhou Kravtsov. — Receio que a torre salte feita em caco. Ouças com atenção, senhor.

O próprio Kravtsov já percebera um ruído surdo e confuso e certa vibração do solo. Parkinson continuou:

— A água está mais quente. Os rapazes se meteram nela pra tomar banho e saíram precipitadamente: Não menos de 40°C na superfície.

Kravtsov ainda continuava ouvindo a voz de Marina: Os jornais falam de ti. Pensou:

— Seria interessante saber o que dizem? Estou muito alarmada. Não entendo o que acontece comigo. Se aproxima algo incompreensível, ameaçador.

No camarote de Will a luz estava acesa. Kravtsov chamou via porta entreaberta e ouviu uma voz resmungona.

— Entres!Will, com a camisa desabotoada e em calça curta, estava sentado à mesa,

examinando seus gráficos. Apontou uma poltrona e lhe aproximou os cigarros.— Como vai a câmara de televisão?— Em breve estará no sítio. Will, estive falando com Moscou.— A esposa?— Sim. Acontece que os jornais falam de nós.O escocês tossiu irônica e depreciativamente.— Will, tens família? Nunca me falaste nela.— Tenho um filho. — Depois de longa pausa.Kravtsov tirou da mesa uma figura esculpida em plasticina verde. Era um veado com

grandes chifres ramificados.— Não me comportei muito bem consigo. — Disse Kravtsov, dando voltas nas mãos

com o veado. — Te recordas? Gritei.Will fez com a mão um breve gesto.— Queres que narre um conto? — E voltou a cansada cara a Kravtsov, passando a

mão no cabelo encanecido e riçado. — Nos montes de Escócia há um desfiladeiro que se chama maciço Negro,21 onde existe o eco mais bem-educado do mundo. Se ali se gritar Como estás?, maciço Negro. o eco responderá imediatamente: Muito bem, senhor. Muito obrigado.

— Por que me contas isso?— Por nada. Me recordei disso. — Will voltou a cabeça à porta aberta. — O que está

acontecendo? Por que parou o ruído da torre?A brigada de Parkinson se agrupara nas bordas da passarela da torre de perfuração.— Por que deixaram de cortar?, Jim. — Inquiriu Will.— Venhas ver.A coluna de tubulação estava imóvel.— Assim é que é bom! — Se admirou Kravtsov. — Será possível que cessara a auto-

elevação?Nesse momento o tubo tremeu e de repente começou a subir rapidamente e, como

regra seguinte, desceu até a posição anterior e até mais. A plataforma sofreu uma boa

21 No original paddy Black. Pad: Almofada, enchimento, bloco, plataforma. Os sufixos y e ly geralmente são acrescentados a substantivo pra formar adjetivo: Grease gordura, greasy gorduroso, week semana, weekly semanal, oil óleo, oily oleoso, sun sol, sunny ensolarado, day dia, daily diário, friend amigo, friendly amigável... Então paddy pode significar maciço, cheio, colosso. Nessa acepção geográfica paddy Black pode significar maciço Negro, denominação condizente a um desfiladeiro. Nota do digitalizador.

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sacudidela. A transmissão automática das hélices não teve tempo de reagir.A coluna de intubação estremeceu outra vez, de cima a baixo, depois outra investida

e outra, sem ritmo determinado.A coberta se escapava sob os pés e nela, com grande ruído, rolavam os pedaços de

tubo.— Cuidado com as pernas! — Gritou Kravtsov. — Amarrai tudo o possível!Os montadores das brigadas que estavam descansando saíram correndo dos quartos.

Will e Kravtsov se lançaram ao camarote do receptor da televisão. Ali estava sentado Bramulla, com o nariz quase sobre o écrã e junto, de pé, Stamm e Ali-Ovsad.

— A coluna de intubação galopa! — Disse Kravtsov, tomando alento.— Eu já vos advertira. — Respondeu Stamm. — Olhai o que acontece no fundo do

oceano:No écrã do televisor se deslocava e derramava algo cinzento. A imagem desapareceu,

depois apareceu o quadro lúgubre do fundo do oceano, despovoado e acidentado, e de novo tudo começou a se mover no écrã. Ao que parecia, a câmara de televisão dava lentas voltas no fundo.

Nesse momento Kravtsov viu que sobre o fundo se elevava uma montanha, se movia, aumentava e diminuía e nas ladeiras rolavam pedras, não rapidamente como em terra, mas lentamente, como sem desejo.

Stamm sintonizou ligeiramente o botão. O écrã se alterou e depois, inesperada e claramente, um tubo apareceu no ângulo esquerdo.

— A coluna de intubação. — Exclamou Bramulla.No écrã o tubo parecia uma palheta.Cambaleou, sob ela se elevou um montão de pedras, que aumentava gradualmente,

então outra vez tudo se turvou e nesse instante a plataforma sofreu tal sacolejo que Bramulla caiu da cadeira.

Kravtsov o ajudou a se levantar. O chileno disse, ofegante:— Mãe-de-deus! Santiago!— Já adverti. — Se ouvia a voz de Stamm. — A tubulação artificial sendo expulsa

do poço, junto com as rochas. O extremo inferior da coluna de intubação está bailando numa montanha de resíduo. Não se sabe o que doravante acontecerá. É preciso evacuar urgentemente a plataforma.

— Não! — Disse Will. — A coluna de intubação suspensa no gancho tem que subir o mais depressa possível.

— Muito bem! —Kravtsov apoiou — Então deixará de bailar.— Isso é perigoso! — Protestou Stamm. — Não posso consentir.— É perigoso quando o homem é imprudente. — Disse Ali-Ovsad. — Eu mesmo

observarei.Todos olharam Bramulla.— Subis a tubagem. — Disse o chileno. — A subis e cortai. Mas depressa, por todos

os santos!A plataforma tremia febrilmente.Ali-Ovsad se postou no painel de controle do motor principal, o gancho começou a

subir puxando a coluna de intubação. Rangiam os cabos e zumbia a chama azul.— Alá, alá! — Gritava, de vez em quando, Ali-Ovsad, seguindo atentamente a

elevação. — Já falta pouco!Os pedaços de tubos cortados caíram sobre a coberta. Então, quando a coluna já

estava a bastante altura do fundo, cessou o tremor da plataforma.Depois, quando a manhã azul resplandecia sobre o oceano, começaram a sair do poço

os tubos de perfuração, empurrados pela força misteriosa. O maçarico a plasma

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continuava sem funcionar. O a gás cortava lentamente. Mas agora se podia instalar o maçarico no dispositivo automático de corte circular. O dispositivo automático subia na mesma velocidade do tubo, a abertura de corte ia nas guias circulares em volta do tubo. Terminado o corte, o dispositivo automático descia e de novo começava a subir, junto com o tubo.

Mas a velocidade de auto-elevação aumentava sem cessar, o dispositivo automático já não podia acompanhar a tubagem e os cortes saíam inclinados, em espiral. Foi necessário parar o dispositivo automático e cortar manualmente, sentados no andaime suspenso, pendurado no gancho do cabrestante auxiliar.

Os operários cortadores se revezavam freqüentemente: O extraordinário ritmo de trabalho os extenuava, além de que os dias eram muito quentes. O barco de transporte, carregado de tubo até o topo, zarpou mas a coberta ao redor da torre de perfuração estava de novo cheia de pedaço de tubo.

Durante toda a vida se recordará esses dias cheios de sol ardente, trabalho louco e essas noites à luz de refletor, entre as labaredas azuis do gás.

Durante toda a vida se recordará a voz rouca de Ali-Ovsad, com seu grito de combate: — Alá, alá! Já falta pouco!

11O hidroavião chegou no amanhecer. Com bastante trabalho transportaram, à

plataforma, os caixotes com a instalação fotoquântica FKN-6A.Kravtsov viu a instrução. Sim, conhecia a instalação. Era de manejo simples, mas

parece que já era tarde pra implementar.200m de tubo de perfuração ainda estavam no poço. 150...Ali-Ovsad mandou largar o andaime suspenso. Era perigoso estar suspenso no alto,

quando saíam os últimos tubos... 120... 80...O oriente ardia com o fogo vermelho do amanhecer mas ninguém prestava atenção.

A plataforma continuava inundada com a penetrante luz branca dos refletores. Todos os operários das quatro brigadas acabavam de retirar os tubos, deixando o caminho livre. Bramulla assim dispusera. Junto à torre de perfuração estava de vigilância um pequeno carro aberto pra que em caso de perigo os operários cortadores de piquete se deslocarem rapidamente até a borda da plataforma.

Então, junto ao poço ficaram quatro: Dois cortadores, Kravtsov e Ali-Ovsad.60m...A plataforma tremeu como se a empurrassem e girassem.— Apagar os maçaricos! Ao carro! — Ordenou Kravtsov.Levou o carro no caminho livre na borda da plataforma e travou junto ao toldo. Ali

teve novo sacolejo. Kravtsov e os outros saltaram do carro. Os semblantes estavam pálidos. No centro da plataforma se ouviu um grande estrondo, um rangido. Os últimos tubos, subidos quase até o moitão fixo caíram. No estrondo geral parecia que caíam sem ruído.

Bramulla gritou algo, agarrando o braço de Will, e Stamm, que estava em pé junto a eles, ficou imóvel como estátua.

O estrondo cessou um pouco. Depois dum instante de alarmante espera todos viram como o rotor, arrancado do bastidor, se elevou e deslizou ao lado. Um rangido e o bastidor de aço se quebrou. Os extremos quebrados das vigas se dobraram até o alto. A coberta sob a torre inchou. O vapor saiu, se espalhando. Se sentia calor.

Na destroçada abertura do poço apareceu algo negro, redondo. A negra cúpula crescia rompendo o estrado. Cresceu e se transformou num hemisfério. Uns minutos mais e se viu claramente que do interior da torre se elevava uma grossa coluna cilíndrica.

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Kravtsov a olhava fixamente. O tempo decorria imperceptivelmente. A coluna negra tropeçou com o moitão fixo, no vértice da torre. Os largos pés da torre, junto à base, se desmoronaram com estrondo.

Ali-Ovsad, de repente correu até a torre. Kravtsov foi atrás, o apanhou nos ombros e o obrigou a retroceder.

— Arrancou a torre! — Gritou Ali-Ovsad. E em breve, compreendendo o absurdo de seu movimento involuntário, abriu a mão cum gesto de doloroso desespero.

A coluna negra subia, chegando à torre de 150m.

12Então a plataforma ficou atravessada pela gigantesca coluna. Depois de expelir do

poço os tubos e atravessar a capa de água do oceano, a coluna negra subia reto, como uma vela, até o céu, crescendo sem cessar.

As pessoas da plataforma se recompuseram depois da primeira comoção. O gorducho Bramulla se encaminhou rapidamente à cabina de rádio, Kravtsov se aproximou de Will e perguntou, entrecortadamente.

— Tentaremos cortar?Will, encostado à grade de proteção da borda, olhava a coluna com binóculo de

grande alcance.— Maldita seja! Se pudesse cortar. — E deu os binóculos a Kravtsov.A coluna tinha cerca de 15m de diâmetro. A superfície tinha brilho opaco à luz dos

refletores. De que profundidade saíra essa coluna coberta duma casca vítrea de mineral fundido? De que material era formada? Disse Kravtsov:

— Algo tem de ser feito. Se continuar crescendo tão rapidamente não suportará o peso e destroçará nossa plataforma.

— Nossa plataforma! — Resmungou Will. — Não digas disparate, rapaz. Bramulla entrou em comunicação com a presidência do AGI e a administração internacional já está passando a plataforma ao artigo de gasto irreparável. Que vá ao diabo!

— Por que digo sempre disparate? — Kravtsov se agastou.— Não sei por quê. Não compreendes? A plataforma é nada. Ameaça outro perigo

muito maior.— O que queres dizer com isso?Will não respondeu. Se voltou e foi à cabine de rádio.— Se quiseres até podes deixar de me falar! — Gritou Kravtsov, arrebatado.Fazia calor intenso. Kravtsov desapertou a camisa molhada. Observava, espantado, a

negra superfície opaca que subia correndo. Pensou:— Bem, que corra. Que lhe façam o que quiserem. No fim isso não me atinge. Minha

especialidade é abrir poço. Que-diabo! Já chega ao céu! Não poderá agüentar o próprio peso e cairá. Que caia! Que me... Não sou cientista, sou engenheiro e minha tarefa é perfurar e não...

Ali-Ovsad, que estava em pé a seu lado, lhe tirou os binóculos da mão e observou a coluna.

— Naturalmente é de ferro. — Disse Ali-Ovsad. — Precisa cortar. Certamente é de bom aço, por que se perderá? Tem de cortar. Vás perguntar ao armênio.

— Qual armênio?— Ao chefe, Bramullan.Da cabine de rádio saíram Stamm e Bramulla. O geólogo austríaco limpava a cara e

o pescoço cum lenço. Se permitira desabotoar o casaco num só botão. Will lhe dizia algo e o austríaco, obstinadamente, negava com a cabeça, mostrando inconformidade.

Kravtsov se aproximou e, interrompendo a conversa, disse, no tom mais oficial, de que era capaz:

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— Senhor Bramulla, acho imprescindível começar imediatamente a cortar a coluna.O chileno voltou a cara cheia de suor a ele. Os olhos eram como duas ameixas

negras.— Com quê? — Gritou. — Com o quê a cortarás? Se o maçarico de plasma nem

pode com os tubos!— O FKN corta como uma navalha de barbear. Estou disposto a começar

imediatamente.— Está disposto a começar! Ouviu, Stamm? Está disposto a se meter nesse inferno

diabólico! Não permito que te aproximes da coluna!— Senhor Kravtsov, — disse Stamm, com voz compassada — enquanto não se

averiguar a natureza desse fenômeno não temos o direito de nos arriscarmos.— Mas pra averiguar a natureza do fenômeno temos que ter ao menos uma amostra

do material. Não é?O calor ficou insuportável, a coberta vibrava, sacudindo a todos como gelatina. Os

montadores das quatro brigadas estavam estreitamente encostados ao parapeito de proteção da borda. Não se ouviram as costumeiras brincadeiras e risos. Muitos tomavam conta na conversa dos geólogos e engenheiros.

— Minha cabeça estalará! Não posso reter as pessoas aqui na plataforma. Não sei o que acontecerá! — Bramulla falava sem cessar e assim se aliviava. — Mãe-de-deus! Onde está o Fukuoka-maru? Por que esses japoneses sempre se atrasam? Por que tudo recairá sobre minha cabeça?

— Se cairá, — disse Kravtsov, asperamente — inevitavelmente será sobre tua cabeça, senhor Bramulla, se te lamentas em vez de agir.

— O que queres de mim? — Gritou Bramulla.— Temos indumentária resistente ao calor. Permitas...— Não permito!Durante uns segundos se olharam em silêncio. Nesse momento se aproximou o

esgrouviado Jim Parkinson, nu da cintura a cima, e levou a mão à viseira até a tocar com ponta do dedo.

— Senhor, — disse a Kravtsov — quero que saibas que estou a tua disposição, se tepermitirem cortar essa vela do demônio.O alto romeno se destacou atrás de Jim, tossiu surdamente e algaraviou, em russo,

que seus rapazes e ele também estavam dispostos.— Todos ficaram loucos! — Gritou Bramulla. — Stamm, o que responderás?— Digo que as regras elementares de segurança exigem ter em conta precaução

extrema. — Stamm desabotoou outro botão.— E tu?, Macpherson. Por que te calas?— Com todos os diabos!— Se pode tentar. — Disse Will, olhando ao lado. — Provavelmente se pode

conseguir um pedaço pra análise.— E quem é o responsável, se...?— Segundo o que estou compreendendo, não os obrigas, Bramulla. Se ofereceram

voluntariamente.E Bramulla se deu por vencido.— Tentes, senhor Kravtsov. — Disse, com resignação, arqueando as sobrancelhas.

— Tentes. Só peço que vás com cuidado.— Irei com muito cuidado. — Kravtsov, alegre, se encaminhou ao paiol.Ali-Ovsad foi com ele.— Ê! Balam,22 aonde correrás?

22 Balam: Filhinho (em azerbaijano)

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— Cortarei a coluna!— Irei contigo.O mestre observava como Kravtsov precipitadamente tirava das estantes do paiol os

instrumentos e a indumentária especial e sentenciosamente dizia com sua entonação melodiosa:

Ainda és um adolescente. Mamãe e papai não estão aqui, nem os sindicatos. Exceto Ali-Ovsad, ninguém cuidará de ti.

13Cinco homens com escafandro resistente ao calor iam, lentamente, até o centro da

plataforma. O grosso traje de fibra-de-vidro se retesava e rangia como lata. Os cinco avançavam, empurrando a diante o carrinho com a instalação fotoquântica. O carrinho deslizava tranqüilamente nos carris. Através do vidro do hermético escafandro Kravtsov olhava fixamente a coluna que se aproximava. Pensou:

— Tem 300°C. Talvez 500°C. É pouco provável que tenha mais, a capa de água que atravessa a resfria. É claro que o raio fotoquântico a atingirá. Talvez a corte. Não se pode. Não se sabe como cairá. Mas um pedaço podemos arrancar.

Perto da coluna as chapas de aço arrancadas da coberta se retorciam, se moviam ao andar sobre elas. Com gesto Kravtsov ordenou os camaradas pararem. Ficaram olhando, como encantados, a coluna que subia a grande velocidade. Umas vezes se estreitava. Então em volta se formava um espaço onde podia cair livremente um homem. Outras vezes, de repente, começava a se ampliar, enganchando as bordas estragadas do estrado e, rangendo, os dobrava até o alto.

— Ponde a instalação. — Disse Kravtsov, e o laringofone, apertado na garganta, transmitiu a ordem aos capacetes laringofônicos dos camaradas.

Chulkov, Jim Parkinson e o romeno Jorge tiraram do carrinho um rolo de cabo condutor, desenrolaram as mangueiras da água de refrigeração, as arrastando até um montante da coberta. Depois se aproximaram, com precaução, uns 10m até a coluna, fixaram a barra condutora no trípode e ligaram os condutores.

Kravtsov se postou junto ao painel de controle do concentrador de rubi.23 Gritou:— Atenção: Ligo!O aparelho indicou que o emissor de radiação lançara um feixe invisível e

extremamente delgado de luz, de força terrivelmente concentrada.Mas a coluna continuava subindo como anteriormente, a grande velocidade. A negra

capa fundida era invulnerável. Só as porções de vapor se amontoavam com mais força.Cum salto Kravtsov se postou junto aos montadores e pegou o cabo do emissor de

radiação e dirigiu o feixe através da coluna.O negro material não cedia. Parecia que o feixe se fundia nele ou se desviava.— Tentemos mais perto, senhor. — Disse Jim.Kravtsov desligou a instalação. Gritou:— Aproximai a instalação. 1m mais.— Muito perto não é conveniente. — Disse Ali-Ovsad.Os montadores arrastaram o tripé o aproximando da coluna. A coberta se movia sob

os pés e de repente Chulkov, que estava à frente de todos, gritou e, estendendo os braços, foi às bordas destroçadas do poço. Ia com passo trôpego diretamente à coluna. Jim se aventurou o seguindo e o sujeitou, abraçando. Durante um momento resistiram terrivelmente, como se balançando numa corda-bamba. Nesse momento Jorge se aproximou, agarrou Jim, Kravtsov agarrou Jorge e Ali-Ovsad Kravtsov. Exatamente como num jogo de menino. Retrocedendo trouxeram Chulkov o arrastando e ele caiu na

23 Os átomos do rubi, estimulados pela luz, se excitam e emitem fótons, que, em reação em cadeia emitem luz monocromática, monofásica e alinhada: Raio lêiser. Nota do digitalizador

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coberta e se sentou, cruzando as pernas. As pernas não o sustinham.Todos olharam Chulkov, em silêncio. Se ouviu a voz de Ali-Ovsad:— Mas como é possível? Te esqueceste da instrução de segurança? Foi assim que te

ensinei? Por que te dirigiste à coluna?— Não fui a ela. — Disse Chulkov, com voz rouca. — Ela me atraiu.— Vás descansar. — Disse o velho mestre. E se voltou a Kravtsov. — Com essa

coluna não podemos brincar.Tentou convencer Kravtsov da necessidade de interromper o trabalho e voltar ao

extremo da plataforma mas Kravtsov não se dava por vencido. Os montadores retiraram a instalação, a situando um pouco mais longe e de novo a espada invisível cruzou a coluna e se fundiu nela.

Á! com que vontade Kravtsov foi obrigado a ceder! Mas nada havia a fazer. O único remédio foi carregar a instalação no carrinho e voltar. Ainda tremiam as pernas de Chulkov, e Kravtsov o mandou se sentar no carrinho.

— Não fez efeito? — Perguntou Will, quando Kravtsov se libertou do ruidoso escafandro.

Kravtsov negou com a cabeça.

14O vértice da coluna negra já se perdia nas nuvens e não se distinguia. A base da

coluna estava coberta de vapor, sobre a plataforma se espalhara uma capa de vapor irrespirável e se sofria com o calor.

Mestre Ali-Ovsad suportava melhor que os outros aquele microclima infernal, contudo reconheceu que nem no golfo Persa fazia tanto calor.

— Não é assim?, ínglis. — Disse, se dirigindo a Will, com quem abrira ali poço submarino havia muitos anos. Will confirmou:

— É verdade.— Não queres beber chá? Com o calor cai bem tomar chá.— Não quero.— Anda muito depressa. — Disse Ali-Ovsad, olhando como a coluna negra subia —

A pressão do estrato é muito grande. O ferro sai como num tubinho de creme dental.— Creme dental? — Perguntou Will. — Á! Sim! Uma comparação muito acertada.Da cabine de rádio saiu Bramulla, ruidosamente ofegante e meio nu. Levava a cabeça

coberta por uma toalha molhada. Atrás saiu Stamm, que ia sem casaco e se via claramente que se envergonhava de seu aspecto não habitual. Will perguntou:

— O que está acontecendo? Onde está o Fukuoka?— Está chegando! Na tarde já estará aqui! Até a tarde todos derreteremos! Stamm,

tenhas em conta que te derreterás antes de mim. Tua massa é menor que a minha. Quando eu começar a derreter já estarás convertido num charco que se evapora, formando uma nuvem.

— Uma nuvem em calça. — Resmungou Kravtsov, encostado numa cadeira-de-espaldar, junto à porta da cabine de rádio.

— No Fukuoka vem o acadêmico Tokunaga, presidente do AGI. — Comunicou Bramulla. — E o acadêmico Morozov. E deve chegar de avião o acadêmico Bernstein de Estados-Unidos. Mas enquanto não aparecerem nos derretemos! Caso nunca visto em minha carreira! Observei tantas erupções vulcânicas, Stamm, que nem podes imaginar. No entanto é a primeira vez que estou nesta situação diabólica!

— Todos ficamos assim na primeira vez. — Concordou Stamm.— Bramullan, — disse Ali-Ovsad — venhas beber chá. O chá é o que há de melhor

contra o calor.— O quê? O que dizes?

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Will traduziu o que o mestre dissera.— Senhores, nunca bebi chá! — Gritou Bramulla. — Como se pode meter na boca

chá quente? Isso é horrível! Mas vamos lá, é verdade, que alivia?— Vamos, verás. — Ali-Ovsad levou o chileno a seu camarote e Stamm os seguiu,

com olhar de reprovação.Will se deixou cair pesadamente numa cadeira-de-espaldar, junto a Kravtsov, e olhou

em milésima vez através dos binóculos em direção à coluna negra. Will disse:— Parece estar se contorcendo. Se inclina a ocidente. Olhes, rapaz.Kravtsov pegou os binóculos e olhou a coluna durante muito tempo. Pensou:— Terrível e inconcebível solidez Que material será? Precisamos conseguir, ainda

que seja um pedacinho.— Cum projétil acumulativo.24 — Disse. — O que achas?, Will. Um projétil

acumulativo poderia com a coluna?Will negou com a cabeça.— Creio que só a bomba atômica.— Mas isso é demais!, homem.Nem pra falar tinham força. Estavam encostados às respectivas cadeiras-de-espaldar,

respirando difícil e freqüentemente, e suando a jorro. E ainda faltava muito a anoitecer.No terraço da sala de oficial os montadores estavam sentados e seminus. A conversa

em línguas diferentes subia de tom, ora esmorecia até cessar. Em décima vez Chulkov começava a contar como a coluna o atraíra e o que seria de si se Jim não chegasse a tempo. Entretanto Jim, sentado no degrau de terraço, melancolicamente arranhava o banjo e cantava, com voz um pouco rouca:

Oh SusannaOh don't cry for me

For I came from Alabamawith my banjo on my knee25

— O que é isso? — Se ouvia o falar rápido de Chulkov. — Ao que parece não estou magnetizado, contudo a infame me atrai. Me atrai e não há maneira de me desfazer dela. Agora, pensei: Caio sobre ela e finita la comedia.26

— Finita la comedia. — Os ianques e romenos concordaram com a cabeça. — Magnete.

— É precisamente isso! — Chulkov estendeu os braços, indicando como ia em direção à coluna. Me puxa, compreendes?, a grande cadela. Ainda bem que Jim me agarrou. Senão, adeus!

— Adeus! — Concordaram os montadores.— Oh Susanna — Suspirava o banjo.— Jim sujetabu Chulkov. — Jorge explicou. — Eu sujetabu Jim. Ó! — Jorge

demonstrava como agarrava Jim. — O engenheiro Kravtsov sujetabu a mia...Em resumo: O avô do nabo, a avó do avô...— Depois sujetabu Ali-Ovsad.— Ali-Ofsait. — Repetiram os ianques, com respeito.— Se continuar assim, logo chegará à Lua. — Disse Chulkov. — Bolas! Bolas! O

que esperam os engenheiros? Se chegar à Lua, nos dará o que fazer.O texano rechonchudo começou a contar que, havia oito anos, quando ainda era

rapaz e navegava num barco baleeiro, viu uma serpente com 800m de comprimento.E começaram os contos de terror. Os montadores, coisa espantosa, se entendiam

24 Projétil acumulativo: Projétil de explosão dirigida25 Ó, Susana, não chores por mim, pois vim do Alabama com meu banjo nos joelhos26 finita la comedia (italiano) Acabou a comédia. Nota do digitalizador

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perfeitamente.As sombras da noite caíam densamente sobre o oceano. Ela não lhes trouxe mais

frescura. Talvez o calor fosse maior. À luz branca dos refletores a coluna envolta em vapor parecia uma tromba fantástica saída da água, se elevando sem-fim ao alto.

O homem era incapaz de deter essa corrida. O pessoal se apertava na borda da ilha flutuante, aspirando o ar muito quente. Embaixo, a bastante profundidade, chapinhava a onda oceânica, mas estava quente e não refrescava.

Bramulla, recostado numa cadeira-de-espaldar, observava a superfície azul escuro do oceano. Os lábios se moviam ligeiramente. Dizia apenas Virgem Santíssima! Virgem santíssima! A seu lado, imóvel como uma estátua, e em pé, estava Stamm. Tinha apenas vestido um calção, respirava ruidosamente e se envergonhava de suas delgadas pernas brancas.

15O barco dísel-elétrico Fukuoka-maru, barco de vigilância do AGI, chegou cerca de

meia-noite. Ficou a deriva a 1,5km a noroeste da plataforma. Suas luzes prometiam rápida libertação do terrível calor.

Os elevadores de passageiro e os monta-cargas desceram todos da coberta superior ao terraço do desembarcadouro. No cais, iluminado por grande resplendor, a multidão de homens seminus, com mochila, mala e saco de viagem, tinham um aspecto muito estranho. O estrado de aço vibrava sob os pés. Os ombros e costas molhadas brilhavam e as caras sem barbear e maceradas pelo vapor. Alguém desceu na escada, tocou o pé nu na água e, amaldiçoando, voltou a subir.

Enfim chegou uma lancha branca a motor do Fukuoka-maru. Os marinheiros diligentes lançaram a passarela e imediatamente desembarcou, correndo nela ao cais, uma loura magra, vestida com calça clara e jérsei azul claro. Os que estavam na beira do cais saltaram ao lado, espantados: Se podia esperar tudo. Mas isso, nem pensar!

— Ó! Não tende vergonha! — Disse a mulher, em inglês, enquanto tirava do ombro a máquina fotográfica. — Meu-deus! Que calor! Quem de vós é doutor Bramulla?

Bramulla, com sua grande ceroula azul, tossiu, perturbado.— Minha senhora, mil perdões.— Ó! Isso é nada! A mulher apontou com a objetiva e a máquina começou a fazer

barulho.O chileno agitou os braços, protestando, e retrocedeu. Stamm se meteu rapidamente

no meio do grupo e começou a abrir febrilmente a maleta e a tirar uma calça e uma camisa.

— Quem é essa mulher? — Perguntou, surpreendido Kravtsov a Will. — É uma correspondente ou o quê?

Will não respondeu. Olhava a loura. Na abertura dos olhos semicerrados se notava algo hostil. Mas que-diabo quer essa mulher aqui? Kravtsov se voltou de costas à objetiva da máquina fotográfica.

A mulher estendeu a mão a Bramulla.— Norma Hampton do Daily Telegraph. — Disse — Que calor horrível! Não podia

dizer a mim, senhor Bramulla...— Não minha senhora! Não! Peço. Quando quiseres. Mas agora não! — Bramulla se

voltou ao jovem japonês vestido de uniforme branco, que desembarcara atrás de Norma Hampton e pacientemente esperava a vez. — És o capitão do Fukuoka-maru?

— O segundo de bordo, senhor. — O japonês levou a mão ao boné até tocar a pala com as pontas dos dedos.

— Quantas pessoas cabem em tua lancha?— 20, senhor.

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— Somos 53. Podes nos levar a todos em duas viagens?— Sim, senhor. Mas sem equipagem. Prà equipagem temos que fazer a terceira

viagem.Kravtsov foi na segunda viagem. De pé, na popa da lancha, olhava o molhe da ilha

flutuante que se afastava. As luzes de cima se apagaram e só o cais vazio ficou iluminado.

Olha como terminou o serviço de vigilância no oceano! Na realidade, Kravtsov já não tinha mais o que fazer ali. Podia voltar à pátria na primeira oportunidade. Com a breca! Que felicidade ver Marina, Vova e a Mãe! Vova já corre, tem que se ver! Mas se apenas acaba de fazer um ano. Passear em Moscou, se meter de cabeça no tumulto da capital... Em Moscou já é outono, chuvas. Uma chuva refrescante. Que bom!

Que os cientistas se arranjem aqui como puderem. Ele já tem sua conta.Via como o vapor esbranquiçado se amontoava em volta da coluna. Depois a treva da

noite tragou a plataforma e mais nada se via além da mancha iluminada do cais.Se ouvia a voz apagada da correspondente:— A bordo, doutor Bramulla, te espera a imprensa mundial. Te prepares pra te

defender dos ataques. Meus colegas queriam vir na lancha mas o capitão do barco não permitiu. Só fez exceção a mim. Os japoneses não são menos galantes que os franceses. Por que não se desfaz essa coluna?

— Minha senhora, eu já disse: Ainda nada sabemos sobre a composição do manto. Vejas: A enorme pressão e a alta temperatura transformam...

— Sim, já me dissera, me recordo. Mas a nossos leitores interessa saber se a coluna pode se elevar indefinidamente.

— Minha senhora, — se defendia, pacientemente, Bramulla — creias: Também quero saber.

O corpo branco de navio resplandecia. A lancha se aproximou da passarela que descera do barco e os ilhéus começaram a subir em fila indiana. Ao pisarem a coberta do Fukuoka ficaram deslumbrados com os relâmpagos dos fleches dos correspondentes, que pareciam cegar. A imprensa mundial se lançou ao ataque.

— Senhores jornalistas. — Se ouviu uma voz aguda — Peço que sede comedidos. Essas pessoas necessitam descansar. Amanhã às 6h da tarde, haverá uma conferência de imprensa. Boa noite!, senhores.

Kravtsov, rodeado por vários correspondentes, olhou agradecido ao que falara, um japonês, entrado em anos, com a cara enrugada e com traje cinzento.

Um camareiro cortesmente conduziu Kravtsov ao camarote e em mau inglês lhe explicou que o banheiro estava no fim de corredor.

— Certo! — Disse Kravtsov. Se deitou no leito estreito e se espreguiçou com deleite. — Ouças! — Chamou o camareiro. — Não sabes em que camarote está alojado engenheiro Macpherson?

— Sim, senhor. — O camareiro tirou da algibeira uma folha de papel e a olhou — Camarote 27. Deste lado, senhor. Três camarotes mais a diante do teu.

Kravtsov se deitou um pouco, os olhos se fechavam.Uma suave pancada na porta o despertou. O mesmo camareiro entrou no camarote,

pôs a mala de Kravtsov num canto, apagou a luz de cima e silenciosamente fechou a porta atrás de si.

Não. Não tem que se fazer assim. Daí até o desleixo vai um passo. Kravtsov, fazendo um esforço, se levantou. Cambaleou e teve que se apoiar com as mãos na mesa de escrever. Será da agitação do mar simplesmente cansaço? Pensou:

— Que vá tudo ao Diabo. Basta! Amanhã mesmo entregarei isso! Bolas!, homem, já se me vão as palavras da cabeça. Bem, isso... A solicitude.

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Pegou a roupa interior e saiu ao comprido corredor coberto por uma passarela cinzenta. Em direção contrária, acompanhado de Bramulla e de Stamm, vinha um homem alto com traje verde claro. Tinha uma grande cabeleireira branca e olhos penetrantes e alegres. Kravtsov lhes deu passagem e resmungou uma saudação. O homem alto inclinou a cabeça cumprimentando e Bramulla disse:

— Este é o engenheiro Kravtsov.— Á! — O desconhecido exclamou e estendeu a mão a Kravtsov — Muito gosto em

te conhecer. Sou Morozov.Kravtsov, mantendo embaixo do braço o maço de roupa interior, apertou a mão do

acadêmico.— Em Moscou valorizamos altamente teu trabalho na plataforma, camarada

Kravtsov. — Disse Morozov — Te comportaste dignamente.— Obrigado.O maço de roupa caiu ao chão. Kravtsov se inclinou pra o apanhar, cambaleou outra

vez caiu de pés e mãos.— Te deites pra dormir. — Ouviu a voz de Morozov. — Já teremos tempo de falar.Kravtsov se levantou e seguiu o acadêmico com o olhar.— Canalha! — Disse, entredente. — Não podes te manter de pé, idiota.No banho olhou sua imagem ao espelho e sentiu nojo. Estava bonito pruma

fotografia! O cabelo desgrenhado, a cara a barbear e cheia de mancha, os olhos fundos.Kravtsov se meteu no banho e ficou muito tempo sob a ducha. A ducha o reanimou e

devolveu seu interesse pela vida.No corredor havia silêncio, estava deserto e os quebra-luzes dos candeeiros

derramavam uma luz suave. Kravtsov parou junto ao camarote 27. Will estará dormindo? A porta estava entreaberta. Kravtsov se aproximou e dobrou o dedo pra chamar. De repente ouviu uma apagada voz de mulher.

— ... Isso não importa. Só que não penses que vim por ti.— Muito bem! — Respondeu a voz de Will.— O melhor que tens a fazer é começar a andar.— Ó, não! — A mulher riu. — Tão depressa não irei embora, querido.Kravtsov se afastou rapidamente da porta. Pensou, admirado:— Norma Hampton e Will!— O que pode haver de comum entre eles? Enfim, não me importa.Entrou no camarote. O camarote não era mau. Pequenino mas acolhedor. Coçou a

barba rala. Se barbear agora ou na manhã?Kravtsov acendeu a luz e viu um maço de carta na mesa.

16Acordou com sentimento de alegria. O que podia ser? Ali! Sim, as cartas de Marina!

Lendo e relendo às 3h da madrugada. Que horas são? Ó! 9:15h!Kravtsov se levantou cum salto, correu as cortinas e abriu o postigo. A manhã azul

entrou camarote adentro. Kravtsov viu a imensa superfície do oceano, o céu com ligeiros pedaços de nuvem e, no mesmo horizonte, a caixa da plataforma coberta por uma capa branca de vapor. O sol deslumbrava. Kravtsov não notou, logo em seguida, o delgado fio negro que saía nos remoinhos do vapor e se perdia nas nuvens. Daqui a misteriosa coluna nem parecia um fio mas um pêlo desprezível no potente peito da terra. Uma mesquinhez que não merecia, nem a centésima parte, o ruído que produzira no mundo.

O olhar de Kravtsov se deteve numa folha de papel que estava sobre o maço de carta. Sorrindo, Kravtsov aproximou a folhinha dos olhos e de novo leu as palavras escritas com letras torcidas de imprensa: Papai, venhas depressa. me fazes muita falta.

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Vova o escrevera, guiado pela mão de Marina. Embaixo estava desenhada uma casa, também torcida, e da chaminé saíam anéis de fumaça. Valente Vova, já sustém o lápis com na mãozinha!

Já está bem, tem que se ir tomar o desjejum e buscar Morozov. Se ele, Kravtsov, já não faz falta aqui, na primeira ocasião...

Soou o toque do telefone e estremeceu pelo inesperado. Ouviu a voz surda de Will:— Alexandre, já tomaste o desjejum?— Não.— Então já não chegarás a tempo.— O que está acontecendo?, Will.— Às 10h sairá a lancha. Não chegarás a tempo. Vás tomar o desjejum.— Tenho tempo! — Disse Kravtsov, mas Will já desligara.Kravtsov se vestiu apressadamente e saiu ao corredor. No amplo vestíbulo o

encontrou um jornalista, mas Kravtsov lhe disse, em voz baixa, Sorry27 e continuou correndo. Acabou parando num corredor estreito, onde um ventilador trabalhava ruidosamente, e compreendeu que se perdera. Atrás! Depois de perguntar o caminho, saiu, enfim, à coberta de toldo, e imediatamente viu em baixo, ao longe, a lancha balançando nas ondas, junto à amurada do Fukuoka. Saltando as escadas, duas a duas, desceu à coberta superior e parou junto a um grupo de pessoas que tomavam um pouco de ar. Nesse mesmo momento Ali-Ovsad o chamou:

— Porque vieste? Disse não te despertarem. Que descansasses. Te disse o ínglis?— Sim. Onde está?Ali-Ovsad apontou, com o dedo, a lancha.— Ali. Não irás. Descanses.— Descanses-adescanses. — Disse Kravtsov a si, enojado, e evitando risco, deslizou

até Bramulla e Stamm através do cerrado círculo jornalístico. Estavam falando com o conhecido japonês, entrado em anos, junto à passarela estendida até a lancha.

Kravtsov se envergonhou de sua sonolência. Cumprimentou timidamente e Bramulla, lhe pegando no braço, o atraiu até o japonês:

— Este é o engenheiro Kravtsov.As rugas da cara do japonês se estenderam num sorriso. Aspirou o ar com força e

disse em voz alta:— Masao Tokunaga. — E acrescentou, em perfeito russo. — Conseguiste descansar?— Sim, completamente.Homem, olhes quem é o célebre acadêmico! Em seu tempo, este acadêmico, com o

primeiro grupo de cientistas japoneses examinou as cinzas de Hiroxima e interveio cuma declaração colérica contra a arma nuclear. Se dizia que Tokunaga tinha uma doença causada pela radiação. A verdade era que o seu aspecto não era lá muito bom, digamos...

— Senhor Tokunaga, — disse Kravtsov — me permitas passar à lancha.— Sabes com que missão zarpa a lancha?— Não.Tokunaga sorriu reservadamente. Kravtsov disse, se sentindo ruborizar:— Conheço muito bem a plataforma e... posso ser útil...Nesse momento se aproximou o acadêmico Morozov.— Últimas notícias, Tokunaga-san28 — lhe comunicou, alegremente — O localizador

assinala a altura da coluna em cerca de 30km e que se desloca na velocidade de 800m/h. Mas isso tem que ser comprovado.

27 Sorry (inglês): Lamento28 San: Chefe, senhor

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— 30km! — Exclamou um dos jornalistas.— Isso mesmo. Já está tudo preparado? — Morozov se dispôs a descer a passarela.

— Kravtsov, virás conosco?— Sim!— Então vamos!Desceram e se meteram na lancha e imediatamente um marinheiro, cum empurrão, a

separou do patamar inferior da escada. A lancha começou a deslizar ao longo da amurada do Fukuoka. Morozov agitou a mão, se despedindo, e Tokunaga respondeu, assentindo tristemente com a cabeça.

Kravtsov cumprimentou Will, Jim Parkinson e Chulkov.— Não podias faltar aqui. — Lhe disse Chulkov.— Claro! — e sorriu. — Aonde fores também irei.— Sem tomar o desjejum? — Perguntou Will a Kravtsov.— Não importa. — Disse Kravtsov.Will o olhou, pensativamente, chupando o cachimbo e fumegando de vez em quando.Além deles, na lancha ia um jovem louro, que Kravtsov não conhecia, com camisa

muito pitoresca, com estampa representando o Fujiama.29 Estava ocupado com os aparelhos e falava com Morozov em voz baixa. Havia cinco ou seis aparelhos. O maior parecia uma garrafa de gás e o menor, num pequeno estojo de madeira, que o rapaz o segurava nas mãos.

À medida que se aproximavam da plataforma, iam cessando as conversas na lancha. Todos os olhares estavam cravados na coluna negra que surgia entre a nuvem de vapor. Naquele momento já não pareceu a Kravtsov um delgado fio inofensivo: Tinha algo de horroroso e ameaçador.

— Si-i-im. — Disse Morozov, depois dum momento de silêncio. — Bolas ao rabinho que saiu de nossa Mãe Terra.

Perto da plataforma a água estava intranqüila. A lancha se aproximou do cais e Morozov, antes de mais, mandou introduzir na água um recipiente cum termógrafo pra medição de temperatura durante bastante tempo. Depois mudaram os aparelhos à cabine do monta-carga e subiram à coberta superior da plataforma.

— Ufa! Como numa caldeira fervendo! — Kravtsov olhou, preocupado, a Morozov. No fim de conta era um homem já entrado em anos, como suportaria o calor infernal? Morozov, banhado em suor, vestiu o traje de fibra-de-vidro e todos se apressaram a fazer o mesmo.

— Todos me ouvindo? — No capacete laringofone se ouviu a voz de Morozov. — Muito bem. Então começamos as medições preliminares. As medições são feitas em cada 20m. Iura, tudo preparado?

— Sim, Víctor Konstantinovich. — Respondeu o rapaz ruivo. Afinal era o técnico dos aparelhos.

— Começar!Jim Parkinson foi seguindo os carris até o centro da plataforma, desenrolando a fita

métrica. Depois de medir 25m desde a borda, molhou a brocha no balde com tinta de

29 O monte Fuji (em japonês 富士山 Fuji-san), na ilha de Honshun é a mais alta montanha de todo o Japão. É um vulcão ativo,

porém de baixo risco de erupção.O Fuji-san é às vezes referido erradamente como Fuji-Yama nalguns textos ocidentais, isso porque o terceiro canji, que significa montanha, também pode ser pronunciado yama. Em japonês, a única forma correta de fazer referência ao monte Fuji é Fuji-san. A frase japonesa Fujiyama, geisha é uma frase idiomática que exprime a incompreensão dos ocidentais sobre o Japão. Notar que o sufixo -san, que significa montanha, não tem relação com o título -san que se emprega quando se fala a uma pessoa. Adicionalmente, Fuji pode ser pronunciado Huzi, se se utilizar a romanização Nihon-shiki, contudo a pronúncia usual é geralmente considerada mais próxima da japonesa. Outros nomes japoneses utilizados pra fazer referência ao Fuji-san, de origem poética ou caídos em desuso, incluem Fuji-no-Yama (a montanha de Fuji), Fuji-no-Takane (o alto pico de Fuji), Fuyō-hō (o pico de lótus) e Fu-gaku (ou o primeiro canji de Fuji, e , montanha). http://pt.wikipedia.org/wiki/Monte_Fuji Nota do digitalizador

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mínio e fez um sinal vermelho. Morozov carregou num botão e encostou o olho ao ocular que sobressaía do recipiente parecido a uma garrafa de gás. Ficou observando um grande momento. O olho se iluminava com os relâmpagos da luz do ocular. Depois, Morozov tirou uma caderneta de nota, descalçou a luva da mão direita e começou a escrever.

Entretanto, Iura anotava as indicações dos outros aparelhos e Will estava atarefado com o magnetógrafo. Morozov encarregou Kravtsov da medição da radiatividade.

Iura e Chulkov transferiram os aparelhos à marca feita por Jim, a 225m da coluna negra, e repetiram as medições. Jim avançou com a fita metálica medindo os 25m seguintes, e Kravtsov o observava, preocupado. É certo que a distância até a coluna ainda era respeitável. Mas ninguém sabia a que distância começaria naquele dia a atrair.

— Camarada Kravtsov, — se ouviu a voz de Morozov — a que distância ontem começou a coluna a atrair Chulkov?

— Aproximadamente a 10m.— Não seria 10m, uns 8m. — Disse Chulkov.— Não, não. — Replicou Kravtsov e, dando uma olhada final, repetiu em inglês.— Exatamente 10,968m. — Declarou Jim — Nem uma polegada a mais.Morozov riu um pouco.— Investigadores, — disse — ponde os aparelhos no carrinho. Parkinson, voltes.

Avancemos juntos.De repente, a coberta começou a bailar. O esgrouvinhado Jim caiu sobre o balde de

tinta. Iura caiu de costas segurando contra o peito o estojo com o gravímetro de quartzo. Will foi lançado contra Morozov. Ao pé da coluna começou a se amontoar, apressada e furiosamente, o vapor, e a plataforma ficou coberta por uma capa branca.

Pouco a pouco o sacolejo diminuiu até desaparecer. O ar estendia o manto de vapor e o empurrava a cima. Cinco homens com trajes cinzentos azulados de fibra-de-vidro permaneciam em pé, agrupados, impotentes perante o poderio ameaçador da natureza.

— Parece que aumentou a velocidade da coluna. — Disse Will, levantando a cabeça e semicerrando os olhos atrás da viseira transparente.

— Isso dirão as medições do localizador. — Disse Morozov. — Adiantes.E os obstinados homens se aproximavam, passo a passo, da coluna, empurrando a

diante o carrinho com os aparelhos e desenrolando a fita métrica.As medições à distância de 200m duraram 1,5h. Tiveram que esperar que o

gravímetro de pêndulo, perturbado pelas sacudidelas, voltasse ao estado normal.A 150m, Morozov ordenou que todos se atassem cuma corda.A 100m Jim observou que a tinta do balde fervia e se evaporava. Então Iura lhe deu

um pedaço de giz.A 75m Will se sentou, se retorcendo no carrinho, e gemeu.— O que está acontecendo?, Macpherson. — Se ouviu a voz preocupada de

Morozov.Will não respondeu.— O levarei à lancha. — Disse Kravtsov. — É um ataque cardíaco.— Não. — Se ouviu a débil voz de Will. — Já passa.— Imediatamente à lancha — ordenou Morozov.Kravtsov pegou Will embaixo dos braços, o levantou e o levou à amurada. Ouvia a

respiração arquejante de Will e repetia continuamente:— Não te preocupes, velho amigo. Não te preocupes.Na cabine do elevador pareceu que Will perdera o conhecimento. Kravtsov se

assustou deveras e começou a o mover, tirou o capacete dele e também tirou o seu. O elevador parou, Kravtsov abriu a porta e gritou:

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— Ê! Os da lancha!Dois diligentes marinheiros japoneses correram ao cais e ajudaram Kravtsov a tirar o

escafandro de Will. Cum débil movimento de mão o escocês apontou uma pequena algibeira sob o cinto da calça curta. Kravtsov compreendeu, tirou da algibeira um frasco de vidro e introduziu na boca de Will uma pílula branca.

— Outra — disse Will, entre estertores.O levaram à lancha e deitaram no estreito banco da popa. Um dos marinheiros

colocou sob a cabeça um colete salva-vida de cortiça.— O levai urgentemente ao barco. — Kravtsov disse à brigada, em inglês. —

Compreendeis?— Sim, senhor.— Deixai o senhor Macpherson nas mãos do médico e regressai.— Sim, senhor.A lancha desatracou e se afastou do cais. Kravtsov ficou um instante a seguindo com

a vista. Pensava, alarmado:— Will, amigo, sinto muita afeição por ti. Will. Não deves. És um homem forte.Só então percebeu que o sol já se inclinava a ocidente. Quantas horas levavam na

plataforma? No céu deslizavam nuvens compactas, densas, se arrastavam até o sol, se incendiando e despedindo um fogo alaranjado.

O calor sufocante apertava a garganta como as presas dum cão. Kravtsov pôs o capacete e se meteu na cabine do elevador. Depois, andando lentamente na coberta superior, envolta no vapor, experimentou uma sensação estranha, como se tudo aquilo não acontecesse na Terra mas num estranho planeta.

Se repreendeu por esses pensamentos absurdos.Se aproximou das figuras azul-acinzentadas que ainda faziam medição na linha de

referência de 75m e ouviu a pergunta que lhe fez Morozov, à qual respondeu que enviara Macpherson ao barco.

Algo preocupava Morozov, que comparava as indicações de lodos os instrumentos.— Um salto brusco. — Disse, baixo. — Vamos adiante. Vos mantende todos juntos.Avançaram lado a lado empurrando a diante o carrinho onde estava o recipiente com

o gravímetro de pêndulo. Os outros instrumentos os levavam nas mãos. Jim desenrolava a fita métrica.

Ainda não avançaram 15m quando de repente, o carrinho, sozinho, começou a deslizar, nos carris, até a coluna.

— A trás! — A voz de Morozov ressoou como um golpe nos ouvidos.Todos retrocederam. O carrinho com o recipiente do gravímetro deslizava cada vez

com mais rapidez, arrastado por uma força misteriosa. Uma nuvem de vapor o tragou, e, depois surgiu de novo na totalidade num espaço. Ali, onde terminavam os carris, o carrinho deu um salto, como efetuado num trampolim, apareceu, durante um instante, cuma mancha cinzenta, e desapareceu entre os remoinhos de vapor.

— Olhai! — Gritou Chulkov, apontando com a luva.A altura de cerca de 20m, entre os remoinhos fragmentados de vapor, se via a coluna

aumentar a corrida e levar o recipiente do gravímetro e um pouco mais abaixo pegara o carrinho. Um instante depois desapareceram entre as nuvens.

O pessoal pasmo, continuava olhando com a cabeça levantada.— Agora adeus! — Gritou Chulkov, a apontando com a luva.Jim soltou uma maldição.Kravtsov sentiu um grande cansaço. Como se as pernas fossem de chumbo e o

escafandro pesasse 10t. Nas fontes sentia o repique lento duns martelos.— Basta pra hoje. — Se ouviu a voz de Morozov. — Vamos à lancha.

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17— Queres chá? — Perguntou a mulher.— Não. — Respondeu Will.Estava deitado no camarote. Os braços magros, com as veias salientes, estendidos

sobre a manta azul clara e as mãos fechadas. A cara bronzeada e pálida ao mesmo tempo, estava imóvel como a da esfinge. A queixada inferior, coberta de barba encanecida, sobressaía singularmente.

Norma Hampton estava sentada junto ao leito de Will e observava a cara imóvel.— Queria fazer algo por ti.— Me enchas o cachimbo.— Não, Will. Isso não. Não deves fumar. Will se calou.— Agora não te dói tanto?— Agora não tanto.— Há três anos não te queixavas do coração. Estás extenuado de trabalho. Te lanças

aos lugares mais funestos. Nesses três anos nem três meses passaste na Inglaterra.Will continuava calado.— Por que não perguntas como vim parar no Japão?— Como vieste parar no Japão? — Perguntou, indiferente.— Ó! Will. — Respirou intermitentemente e se inclinou a diante — Não penses que

tudo me correu bem durante esses três anos. Aconteceu que ele... Bem, em resumo, em junho, quando o lugar de correspondente em Tóquio ficou vago, o pedi e vim embora, me separando dele.

— Sempre vais embora. — Disse Will, com voz tranqüila.— Sim. — E sorriu tristemente. — Esse é meu caráter. Olhes o que te digo, Will:

Tenho muita vontade de voltar.Will esteve muito tempo calado. Depois a olhou de soslaio.— Não te doem as orelhas?— As orelhas?— Sim. Os brincos devem ser muito pesados.Norma levou os dedos involuntariamente até os brincos, grandes triângulos verdes

com relevo.— Via jornal soube que estavas aqui na plataforma e compreendi que esta era minha

última ocasião. Telegrafei à redação e zarpei no Fukuoka.— Vás. — Disse Will. — Quero dormir.— Não queres dormir. Nós já não somos jovens, Will — A voz da mulher soou um

pouco apagada. — Eu te encheria o cachimbo e plantaria rosa e petúnia no jardim diante da casa. Já basta viajar no mundo. Estaríamos todo o tempo juntos. Todas as tardes, Will. Todas as tardes que nos restam.

— Escutes, Norma...— Sim, querido.— Howard escreve a ti?— De vez em quando. Quando necessita de dinheiro. Já não lhe fazemos muita falta.— Eu ao menos...— No entanto é nosso filho. E poderias, Will...— Não! Basta! Basta! Diabo!— Bem, homem. — E passou a mão lhe acariciando a perna sobre a manta. — Te

tranqüilizes. Queres chá?Bateram à porta.— Entres. — Disse Will.Kravtsov entrou, desgrenhado, com a camisa desabotoada amplamente aberta no

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peito e com a calça arregaçada.— O quê?! Como estás aqui?! — Começou desde a porta e depois ficou confuso —

Perdoai. Incomodo?— Não. Norma, o engenheiro Kravtsov da Rússia. Kravtsov, Norma Hampton,

correspondente.Norma sacudiu sua adorada mata de cabelo e, sorrindo, estendeu a mão a Kravtsov.— Encantada em te conhecer. Em todo o mundo se falou de ti, senhor Kravtsov. Os

leitores do Daily Telegraph ficarão contentes de lerem umas quantas palavras que lhes dediques.

— Esperes, Norma. Isso depois. — Disse Will. — Há muito que regressaste da plataforma?

— Agora mesmo. Como estás?— O médico, ao que parece, me meteu na cama um tempo. Bom, agora contes.Kravtsov, emocionado e se apressando contou como a coluna negra atraíra e levara o

carrinho com o recipiente do aparelho.— Que coisa!, homem. O que será isso? Um fenômeno magnético ou de gravitação?— Não sei, Will. Uma anomalia.— E o que disse Morozov?— Morozov calado ainda. Só disse que a força horizontal de atração cresce à medida

que se aproxima da coluna. Mas não proporcional à distância. Apenas progressivamente.

— O que acontecerá?— O que acontecerá? Novas medições, uma vez que as de hoje foram as primeiras e

muito imperfeitas. Na plataforma estão instalando instrumental de ação contínua e de controle remoto. Transmitirão os dados ao Fukuoka-maru. Bem, Will, me alegro de te encontrar melhor e me despeço.

— Senhor Kravtsov, — disse Norma Hampton — deves me falar, com mais detalhe, da coluna.

Kravtsov a olhou detidamente. Pensou:— Quantos anos terá? A cara e a figura são jovens mas as mãos são velhas. 30? 50?— Já comeste algo hoje? — Perguntou Will.— Não.— Não sejas louco. Vá agora mesmo comer. Norma, deixes em paz senhor Kravtsov.— Às 8h haverá uma conferência de imprensa, senhora Hampton. — Disse Kravtsov.— Por quê às 8h? Tinham dito 6h.— Prorrogaram às 8h.Kravtsov cumprimentou com uma inclinação de cabeça e foi à porta, abriu e ficou

cara a cara com Ali-Ovsad.— Cuidado, ê! — Disse o velho mestre, levando na mão um bule pintado com

florzinhas cor-de-rosa. — Já imaginava que estavas aqui. Comerás — disse, severamente. — Andas de lado a outro e te esqueceste de comer.

— Irei, irei. — Sorrindo, Kravtsov começou a se afastar no corredor. Por causa da fome sentia náusea.

Ali-Ovsad entrou no camarote de Will, olhou de soslaio a Norma e pôs o bule na mesa.

— Bebas chá, ínglis. Preparei pra ti. O chá é bom, azerbaijano. E não há noutro lugar.

18Um manto mal matizado de nuvem cobriu o oceano. O vento começava a aumentar e

as sombras vespertinas ficavam mais densas. As luzes se acenderam no Fukuoka-maru.

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O barco balançava.À entrada do salão onde se realizar ia a conferência de imprensa um jovem de face

corada retinha Kravtsov no cotovelo.— Camarada Kravtsov, — disse, o olhando amistosamente com sorridentes olhos

cinzentos — invisível camarada Kravtsov, permitas me apresentar: Olovianikov, correspondente especial do Izvestia.

— Muito gosto. — Kravtsov lhe apertou a mão.Ontem não quis te incomodar e hoje na manhã tentei te reter em trajes menores mas

ias a grande velocidade e não pude te alcançar. Tu, como homem bem-educado, te escusaste...

— Eras tu? — Kravtsov sorriu. — Perdoes, camarada Olovianikov. Agora digo em russo.

— Com muito gosto, Alexandre Vitalievich. Talvez te interesse saber que antes de sair de Moscou de avião, telefonei a tua mulher ....

— Telefonaste a Marina?!— Falei com Marina e por suas palavras deduzo que gosta estranhamente de ti.— O que mais disse? — Gritou Kravtsov, tomado de grande simpatia pelo sorridente

correspondente.— Disse que tinha muita vontade de te ver, que em casa estão todos bem, que teu

Vova é um espevitado e que com seu caráter lhe recorda cada vez mais o pai.Kravtsov riu e começou a apertar efusivamente a mão de Olovianikov.— Como te chamas?— Lev Grigorievich. Se quiseres podes me chamar sem o patronímico. Tua mãe está

bem e pediu te cumprimentar em seu nome, e te dizer que te espera. Com Vova não pude falar, estava dormindo muito bem. Marina pediu a mim pra trazer a ti umas revistas em esperanto mas infelizmente tinha muita pressa: Tinha que ir ao aeroporto.

— Muito obrigado, Lev Grigorievich!— Não tem de quê.Entraram no salão e se sentaram juntos num sofá encostado à parede.Esperando que o início da conferência, correspondentes de todo o mundo falavam

ruidosamente, fumavam e riam. Norma Hampton encurralou Stamm num canto e, movendo sua cabeça leonina e o bloco de nota, tirava certos dados do austríaco. Ali-Ovsad, vestido de traje azul, com todas as condecorações, se abeirou a Kravtsov e se sentou ao lado, obrigando os vizinhos a se apertarem. Kravtsov o apresentou a Olovianikov, e imediatamente Ali-Ovsad começou a contar ao correspondente sua antiga e complexa relação com a imprensa.

— Escreveram muito sobre mim. — Se ouviam deslizar gravemente as palavras. — Sempre escreveram: Mestre Ali-Ovsad está na torre perfuratriz. Eu lia isso e pensava: Será que Ali-Ovsad está sempre na torre perfuratriz? Ali-Ovsad tem família, meu irmão é agrônomo, entende muito de vinha, tem filho. Por que escreverão sempre que o mestre Ali-Ovsad está na torre perfuratriz?

— Tens razão, Ali-Ovsad. — Olovianikov disse, rindo — Reconheço o estilo de nossos jornalistas. Pintam só pra converter o homem em estátua.

— Bravo! Muito bem dito! — Ali-Ovsad levantou o dedo nodoso. — Transformar o homem em estátua? Por que escrevem essas palavras? Será que não há outras palavras?

— Existem, Ali-Ovsad. Mas isso é o mais difícil, encontrar outras palavras, as verdadeiras. Com a pressa, nem sempre se consegue...

— Pois não te apresses. Se todos se apressam o trabalho fica mal.No salão entraram Tokunaga, Morozov, Bramulla e duas pessoas desconhecidas pra

Kravtsov. Foram à mesa presidencial o se sentaram. No salão cessaram as conversas.

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Tukunaga se levantou. Relampejaram os fleches. No silencioso salão ressoou a voz aguda do japonês:

— Senhores jornalistas, em nome da presidência do AGI tenho a honra de abrir esta conferência de imprensa. De antemão advirto que no momento só comunicaremos os primeiros dados e algumas suposições que, e sublinho isso, não pretendem ser verdade absoluta e necessitam comprovação reiteradas vezes.

Dois intérpretes traduziam o discurso suave e um pouco cerimonioso do japonês ao russo e inglês.

— Comecemos, pois. O que aconteceu? Há seis anos, na profundidade de 42km do nível do oceano, parou a perfuração do poço super-profundo. A broca deixou de perfurar a rocha, e por causas inexplicadas foi impossível tirar os tubos. Certamente recordais as discussões e hipóteses de então. Nessa altura estabelecemos uma vigilância internacional junto ao poço, e não foi em vão. Agora, depois de cinco anos e tanto, um novo evento, e mais sério. Desde já recordo que o poço se abriu no fundo duma profunda fossa marítima, onde, segundo nossos cálculos, a espessura da crosta terrena é notavelmente menor. Não se sabe o que sucedeu depois: Se o poço tropeçou numa fenda profunda ou se a perfuração por meio de plasma perturbou os estratos inferiores.

Podemos supor que a coluna negra é um material oriundo de grande profundidade, que estava no estado plástico devido às altas pressões e que encontrou nalgum lugar menos resistência e subiu até os limites da crosta terrena. Ao encontrar o poço no caminho, começou a subir muito lentamente, mas depois o movimento ascensional se fez cada vez mais aceleradamente. Alguém comparou isso, e muito acertadamente, à saída da pasta de dentes ao apertar o tubo. Este material, como vocês sabem, empurrou e tirou do poço a tubagem e, ampliando notavelmente o poço, continua a se elevar formando uma coluna, que se está inclinando para ocidente. A composição química e a estrutura física da coluna ainda são desconhecidas. Meus senhores, o caso é que muitos cientistas consideram que a Tabela periódica de Mendeleiev só se adapta às pressões e temperaturas correntes. Mas a grande profundidade, onde pressão e temperatura são enormes, a estrutura das capas eletrônicas dos átomos varia: Como se comprimindo as órbitas dos elétrons. E a uma profundidade maior, as capas dos átomos se misturam. Ali todos os elementos adquirem novas propriedades. Ali não há ferro, fósforo, urânio, nem iodo. Não há elemento. Há apenas certa substância universal de caráter metálico. Assim o supomos. Certamente sabeis que as tentativas de obter uma mostra do material da coluna, infelizmente, fracassou. É indiscutível o fato de que esse material tem propriedades singulares.

19Já passava de meia-noite quando Kravtsov saiu do salão cheio de fumaça de tabaco.

Doía a cabeça e as costas. Ir ao médico e tomar uma pílula? Mas como encontrar o gabinete médico nessa cidade flutuante?

Ali-Ovsad e Olovianikov se perderam entre grupo de correspondentes que depois da conferência de imprensa correram à cabine de rádio.

Kravtsov não sabia exatamente em que corredor estava seu camarote. Desceu na primeira escada que viu. Outro corredor solitário coberto por uma esteira de juta, portas e mais portas. E os números dos camarotes são pares. Tem que se passar ao lado de bombordo. Em geral tinha de se esclarecer a disposição das coisas no Fukuoka-maru. Parece que se terá de passar aqui mais de dois dias.

De cansaço, apenas podia arrastar as pés deambulando no corredor, e da cabeça não saía a enjoativa cançoneta: Cresceu a erva no caminho... onde passou o pé querido...

Adiante se ouviu um fragmento de conversa em inglês e uma explosão de riso.

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Depois se ouviram as notas melancólicas dum banjo. Se abriu a porta dum dos camarotes e saíram ao corredor o texano gorducho e outros dois montadores da brigada de Parkinson. Estavam um pouco embriagados.

— Olá!, engenheiro. — Exclamou o texano. — O que ficou decidido com os senhores cientistas?

— Até agora nada se decidiu. — Kravtsov respondeu, cansado.— Acontece que vos pagam dinheiro em vão.Kravtsov olhou a cara avermelhada e alterada do texano e, sem dizer, seguiu em

frente mas nesse momento um dos montadores o obrigou a parar.— Um momento, sir. Vejas, Fletcher: — E apontou, com a cabeça, o texano — lhe

interessa saber se essa maldita coluna cairá sobre a América. Tem muitos parentes na América e o preocupa...

— Que lhes escreva dizendo que ponham pontaletes nas casas.Os montadores desataram a rir. Do camarote vizinho assomou Jim Parkinson, com

seu banjo. Saudou Kravtsov cuma inclinação de cabeça e disse:— Fletcher, vás dormir.— Eu iria com muito gosto. — Sorriu ironicamente o texano — Infelizmente tenho

medo de me transformar num negrinho em sonho.Outra explosão de riso.Kravtsov, franzindo o cenho por causa da dor de cabeça, continuou no corredor.Cresceu a erva no caminho... por onde passaram... selvagens gatinhos...Dobrou ao corredor transversal e por pouco deu de cara com Ali-Ovsad, — Ai

balam, aonde vais? Já estive ali e ali não é nossa rua. Um barco tão grande. Precisa pôr um policial de trânsito na esquina.

— Efetivamente onde desemboca essa escada?Subiram a escada e se viram na coberta superior. Ali tudo era mais compreensível.

Passaram à coberta com o toldo e se sentaram, ou melhor se deitaram numa cadeira-de-espaldar.

O barco balançava e rangia. Iluminadas pelas luzes de vigia, se viam nuvens escuras flutuando baixo. Disse Ali-Ovsad:

— Choverá.Kravtsov, aspirando o ar fresco da noite, olhava as nuvens que continuamente

passavam correndo sobre o barco. Pensou:— Que disparate disse esse Fletcher! Tenho medo de me transformar num

negrito em sonho. O que significa isso?— Sacha, te recordas o que disse o jornalista gordo? Deus está zangado com os

perfuradores e lhes enviou a coluna negra.Kravtsov sorriu ao recordar a pergunta do jornalista do Christian Censurer, se a

coluna seria uma advertência divina. E a resposta de Tokunaga pedindo que, em vista de não terem provas sérias pra demonstrar a existência de deuses, e que o tempo apertava, pusessem perguntas atendendo à realidade.

— Tão bem-vestido. Parece um ministro e não sabe que não há Deus. — Ali-Ovsad estalava a língua. — E eu pensava que eras um homem culto.

— Há muitas classes de pessoas, Ali-Ovsad. Olhes, teu amigo Bramulla também tem o costume de invocar a Deus.

— Bali! Isso é só um costume, Sacha, não compreendi bem por que mencionaste o japonês Hiroxima.

— Hiroxima? Porque aquele jornalista de camisa colorida, parece que do New York Post, perguntou donde saía, em geral, a energia, ou algo do tipo. E Tokunaga respondeu que segundo Einstein, a energia é igual ao produto da massa pelo quadrado da

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velocidade da luz no vácuo, e, portanto, 1g de qualquer substância encerra uma energia sem revelar, segundo parece de 25 bilhões de calorias, que pode se revelar por vários métodos. E acrescentou que uma revelação particular dessa energia é muito bem conhecida dos japoneses em Hiroxima.

Kravtsov se calou. Que frase mais estranha a de Fletcher, Tenho medo de me transformar num negrinho, se recordou de novo e de repente compreendeu o sentido. Compreendeu e ficou sombrio. O puxador da porta rangeu. À esquerda apareceu um espaço oval iluminado. Dos compartimentos interiores saíram à coberta com toldo várias pessoas que falavam em voz alta, riam e manejavam os isqueiros. Um se aproximou das cadeiras-de-espaldar de Kravtsov e Ali-Ovsad. Foi Olovianikov quem disse:

— Olhes onde estão. Nada mal acomodados. — E se deitou também sobre uma cadeira-de-espaldar. — O Diabo sabe que se tem que transmitir à redação. — Se queixou. — Confuso, está tudo confuso. Com grande trabalho pude me aproximar de Morozov. Pedi dizer algo, ainda que fossem só algumas palavras, pro Izvestia e se negou. É prematuro. Alexandre Vitalievich, sabes algo sobre a teoria do campo unitário?

— Só sei que não existe. Por que perguntas isso?— Morozov citou de passagem. Tem teu ponto de vista sobre isso. Penso no

magnetismo. Posso, com esforço mental, imaginar o campo gravitacional. Mas, que campo surgiu em volta da negra coluna? Que componente horizontal ativo gravitacional é esse?

— Tudo isso está relacionado entre si. — Disse Kravtsov — Faz falta uma teoria que una todas as teorias dos campos. O que havia antes? Uma teoria do éter e mais nada. E parecia inquebrantável. Creio que em breve aparecerá a teoria do campo unitário.

— Também acredito. — Respondeu Olovianikov. — Senão há uma discordância terrível. Sabes o que preocupa Morozov?

— O quê?— A ionosfera. Pronto, disse. A coluna chegará à ionosfera.E quis dizer algo mais mas interceptou um olhar de Tokunaga e se calou. O que crês

que seja?Kravtsov encolheu os ombros.— Caso espantoso. Dalguns problemas cósmicos estamos melhor inteirados do que

das entranhas do próprio planeta. Nosso poço representa menos de 1% do caminho até o centro da terra, e já tropeçamos num fenômeno de tal classe. Nada sabemos sobre o que temos sob os pés.

Se calou um momento e, se levantando, disse:— Mas de qualquer maneira saberemos. Nosso poço é só o começo.

20Um disparo retumbante, como se fosse um canhão, despertou Kravtsov, que se

levantou e foi à vigia. O céu escuro estava coberto de nuvem de tormenta. Brilhou um relâmpago e se ouviu de novo o estampido dum prolongado e estrondoso trovão. O copo da prateleira do lavabo e as anilhas de cobre da cortina ressoaram com fino tinir.

Kravtsov se vestiu apressadamente e correu à coberta do toldo. Junto à amurada ao lado da plataforma se agrupara gente, que conversava alarmada. Os estalidos freqüentes de trovões não deixavam ouvir as palavras.

Habitualmente, naquelas horas, no oceano resplandecia uma manhã azul. Mas naquele momento parecia uma meia-noite cerrada. Como se todas as nuvens tormentosas do mundo fossem atraídas pela negra coluna. Os relâmpagos saíam despedidos das nuvens e caíam sobre a coluna e o céu se despedaçava com estrondo

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ampliado.Um espetáculo fantástico! Os relâmpagos iluminavam o oceano intranqüilo, que

parecia mais claro que o sombrio céu. No horizonte, brilhantes punhais se batiam em duelo junto à coluna envolta em vapor.

Começou a chover torrencialmente.Kravtsov viu Bramulla e se aproximou. Bramulla se agarrara à amurada e os lábios

se moviam.— Ó! Santiago de Barrameda! — Dizia, baixinho. — Virgem morena de

Montserrate!Stamm, que estava ao lado, imóvel e calado voltou a cara pálida a Kravtsov e o

cumprimentou com inclinação de cabeça.— Bolas à tormenta! — Gritou Kravtsov. — Nunca vi coisa igual.— Ninguém viu outra igual. — Respondeu Stamm, e um estalido tragou suas

palavras.O Fukuoka balançava fortemente. Se agarrando aos corrimãos, Kravtsov foi até a

escada, desceu ao corredor e bateu à porta do camarote de Will. Respondeu uma voz desconhecida. Kravtsov entreabriu a porta e nesse momento o barco deu um solavanco, que o fez entrar disparado no camarote. Por pouco deitaria ao chão o japonês da bata branca. Disse e olhou Will:

— Peço desculpa.Will estava deitado de costas, com os olhos fechados e o queixo saliente voltado a

cima. O médico pegou o braço de Kravtsov e disse algo que não percebeu, mas era claro que tinha de ir embora e não incomodar. Concordou com a cabeça e foi embora, fechando a porta, atrás da qual se ouviu um som metálico.

No corredor ia apressadamente Norma Hampton. Levava o cabelo preso de qualquer maneira e nos lábios não tinha resto de batom. Kravtsov disse:

— Não entres. Está ali o médico.Não respondeu nem se deteve. Entrou no camarote de Will sem bater à porta.Kravtsov permaneceu um bocado escutando. A tormenta bramava surdamente mas

do camarote não se percebia ruído. É preciso fazer algo. — Não tirava da cabeça este pensamento alarmante. Algo precisa ser feito.

E correu. No salão iluminado tomavam o desjejum uns japoneses da tripulação do barco. Não estava Morozov nem Tokunaga. Kravtsov perguntou:

— Onde está o acadêmico Morozov?Um marinheiro respondeu que Morozov certamente estaria na cabine do localizador.Kravtsov subiu à ponte na escada quase a pique. A chuva golpeava as costas e a

cabeça descoberta. se deteve um momento. Daquela altura o quadro que representava a tempestade era muito mais fantástico. Embaixo o oceano se debatia furiosamente, os relâmpagos, em ziguezague, rasgavam um céu violeta pardo. Os olhos doíam devido a esse baile de luz e sombra. Cheirava a ozônio. A ponte fugia sob os pés.

Nos vidros da cabine do localizador jorravam torrentes de água. Puxou violentamente a porta e entrou.

Ali, oprimidos entre os painéis de comando, trabalhavam os japoneses com uniforme de marinheiro, Iura, o já nosso conhecido técnico gravimétrico, e Morozov. No écrã do localizador cintilavam pequenos fios vacilantes de prata e deslizava um ponto luminoso. Morozov deu uma olhada penetrante em Kravtsov.

— Á! Camarada Kravtsov! O que nos dizes de novo?— Víctor Konstantinovich, — disse Kravtsov, limpando da testa as gotas de chuva

com a palma da mão. — Macpherson está muito mal. Esta tempestade e o balanço...— Segundo entendi, tem um médico de vigia todo o tempo.

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— É verdade. Mas... não se pode afastar o barco da zona da tempestade. Morozov atirou o lápis a cima da mesa se levantou. Um instante ficou olhando o quadro de exploração do localizador. Disse Kravtsov:

— A atmosfera está carregada de eletricidade.— És o é médico? — Asperamente Morozov perguntou.— Não, claro, mas, olhes...Morozov coçou a face. Depois, pegou no telefone, quase o arrancando, e discou um

número.— É a senhora Hampton? Fala Morozov. O médico está? Faças o favor de o chamar.

Então perguntes qual é o estado de Macpherson. — Morozov ficou ouvindo o que lhe diziam, enquanto franzia o cenho e contraía a face. — Muito obrigado.

O interruptor emitiu um estalo ao cair o auscultador.— Bem, Kravtsov. — Disse Morozov, apanhando um lápis — Parece que tens razão.

Tomaremos as medidas convenientes. Não te preocupes.

21O Fukuoka-maru se afastou e ficou de novo a deriva. A tormenta continuava

bramindo sobre o oceano. Os relâmpagos cercavam a coluna negra e caíam sobre ela de todos os lados. Alguém viu uma bola-de-fogo, concentração de energia, espalhando chispa, flutuando no ar sobre as ondas e repetindo, em seu vôo, a configuração delas.

Às 9h e tanto da manhã zarpou do Fukuoka uma lancha, cum grupo de voluntário, em direção à plataforma. Entre eles Chulkov. À cabeça do grupo ia Iura, quem recebera instrução detalhada de Morozov sobre onde e que instrumento colocar.

— É perigoso. — Disse Ali-Ovsad. — Não se poderia esperar que passe a tormenta?Mas o sabichão Olovianikov explicou que era inútil esperar, uma vez que a

tempestade não terminaria em breve e talvez durasse muitos dias.Os voluntários, com trajes protetores, subiram à plataforma e instalaram os

instrumentos estacionários dotados de radiotransmissores automáticos. A partir de então, na cabine do localizador do Fukuoka-maru, as canetas triangulares dos registradores automáticos escreviam, na tira de papel, cromáticas linhas oscilantes. As calculadores elaboravam a informação recebida. Os cientistas estavam continuamente reunidos.

Não se permitia a entrada aos jornalistas na cabine de instrumento. Eles pressentiam que sucedia algo grandioso, que se aproximava algo sensacional. Alguns já tentaram enviar a seu jornal a descrição da tempestade adornada com invenções próprias mas a cabine da rádio não admitia informação sem o visto particular de Stamm e o austríaco era inexorável. Truncava implacavelmente tudo o que duma ou outra maneira se referia a suposições científicas, e deixando na correspondência só uns miseráveis fragmentos.

Tokunaga e Morozov tiveram várias conversações, via rádio, com o Centro Geofísico Internacional. Lagrange, o expedito correspondente do Paris Soir, esperou os acadêmicos quando voltavam da cabine de rádio. Os seguiu silenciosamente no corredor, com o magnetofone, ligado e pôde gravar um fragmento da conversa.

Nem devia pensar em transmitir à redação a conversa gravada. Stamm simplesmente lhe proibira a fita magnetofônica. Lagrange resistiu durante bastante tempo sem querer largar de mão a sensacional informação e, enfim, não podendo agüentar mais, reuniu todo o grupo de jornalista no salão de imprensa, exigiu silêncio e ligou o magnetofone.

Se ouviu o sussurro característico e depois a seguinte conversa amortizada, em inglês:

— ... A velocidade aumenta.— Sim. A coluna se adianta sem nos deixar tempo. Ouviu a informação do piloto do

barco? A bússola magnética saiu do meridiano.

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— A situação é muito complicada. Não obstante, tuas teses sobre os ímãs...— Acredites. Antes queria estar errado, mas perante a reconstrução da estrutura...

Perdão, Masao-san. O que desejas?, senhor correspondente.— Eu? — Se ouviu o rápido falar de Lagrange. — Ó, caro mestre. Nada em

absoluto.— Bem, o resto já não é interessante. Lagrange parou o magnetofone acompanhado

de gargalhada geral.— Me vendas esse texto, Lagrange. — Pediu um correspondente ianque de camisa

havaiana.— Pra que o queres?, Jacobs. Acreditas que teu encanto abrandará o coração do

guardião austríaco?— Meu jornal não olhará o gasto.— Mas estás equivocado!, Jacobs. — Gritou Lagrange, agitando violentamente as

mãos. — Stamm é mais incorruptível que Robespierre! Nada entendo de ciência mas no que se refere aos homens, conheço bem. Fiques de olho nele! Podes cortar esse Stamm com uma serra embotada, e, de todas as maneiras.

Alguém puxou a manga de Lagrange! Na porta estava Stamm de pé, direito e impávido. Disse, com voz apagada:

— Estou muito grato, meus senhores, que não pusestes em dúvida minha honestidade profissional.

Stamm avançou até a mesa, pôs diante de si um caderno e olhou severamente os jornalistas. Disse, depois de esperar que cessasse o ruído e ajustar os óculos:

— Meus senhores, me encarregaram de vos fornecer um comunicado extraordinário. Perante a situação excepcional se decidiu informar imediatamente os jornais. Recebereis o texto escrito do comunicado da presidência do AGI. Pedimos o transmitir à redação sem tirar nem pôr. Um texto análogo já se transmitiu, via rádio, à ONU e a outras organizações internacionais.

— O que aconteceu? — Se ouviram várias vozes.— Venha o comunicado!— Vim pra isso. — Disse Stamm. E começou a comentar, medindo minuciosamente

cada palavra. — As medições via localizador indicam que a velocidade da coluna negra aumenta rapidamente. O vértice alcançou 80km e tanto acima do nível do mar e se inclina a ocidente devido à rotação da terra. Na superfície da Terra, como deveis saber, o ar quase não conduz eletricidade mas na altura de 80km a condutibilidade elétrica do ar aumenta bruscamente e é igual à da água do mar. Por isso, ao alcançar a altura indicada, a coluna negra que tem, sem dúvida, grande condutibilidade elétrica, a qual se aproxima da supercondutibilidade, originou uma tempestade nunca vista, ou seja, potentes descargas de eletricidade atmosférica.

Stamm tomou um pouco de alento depois dessa longa locução. Se ouviu o surdo ruído da tempestade. Continuou:

— Agora passemos ao principal. Na tarde a coluna negra alcançará os estratos ionizados da atmosfera. A ionosfera, isso também deveis saber, está carregada de eletricidade e o potencial em relação à Terra é, em termos médios, de mais de 200.000v. As observações indicam que na coluna surgiram correntes de condutibilidade e a coluna já criou o próprio campo, muito específico. Esse campo aumentará subitamente quando a coluna penetrar na ionosfera e interagir com ela a seu modo. A Terra formará um curto-circuito com a ionosfera.

Os jornalistas, que puseram os cinco sentidos esperando algo de sensacional, suspiraram defraudados e olharam uns aos outros. Outra vez os raciocínios pouco compreensíveis sobre os campos. Continuou:

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— Nesse caso a Terra não perderá a carga. Uma vez que o Zustrom, influência constante das partículas cósmicas carregadas, é evidente, não cessará. O campo magnético da Terra é um grande captor dessas partículas, segundo a opinião de muitos cientistas. Mas, devido ao curto-circuito, as propriedades magnéticas do captor variam notavelmente. Nos surgiram sérios temores, meus senhores, de que todo esse complexo fenômeno, e perante todo o inexplicado campo da coluna, acarrete uma mudança sensível na estrutura do campo magnético do planeta. Segundo certos indícios, isso pode... Tememos que origine uma desmagnetização de todos os ímãs constantes.

Stamm se calou. Se ouviu a voz tranqüila de Jacobs:— Por que se desmagnetizarão?— O ímã se desmagnetiza ao aquecer ou o golpear! — Exclamou Olovianikov —

Mas aqui não sucede uma coisa nem outra.— Sim, senhores. — Disse Stamm, parecendo se emocionar um pouco — O

golpeando ou ao aquecendo acima do ponto de Curie. A reconstrução da estrutura do campo magnético terreno, segundo certos dados, causará no ímã aproximadamente o mesmo efeito dum forte golpe ou aquecimento. Mais exatamente, do complexo desses fenômenos que influem no estado magnético do corpo. Mas me desviei um pouco do objetivo de minha comunicação. — Stamm tossiu e ajustou os óculos. — Assim tememos que, se nossos temores forem justos, se desmagnetizarão os ímãs, todos os que há no mundo. Isso significa que não haverá corrente elétrica. Nenhum gerador a poderá produzir.

Durante instantes houve um profundo silêncio no salão. Depois o aturdimento rompeu em grito.

— Como viveremos sem eletricidade?— Quando é que vós, os cientistas, terminareis vossas endiabradas experiências?— É possível que não podeis parar essa diabólica coluna?Stamm, pacientemente, esperou que cessasse aquela manifestação violenta. Quando

se acalmaram um pouco as paixões, disse:— Meus senhores, os cientistas de todo o mundo procuram a maneira de fazer parar

a coluna mas não adiantou. É necessário estudar minuciosamente o fenômeno. Isso é o que fazemos. Sem dúvida, os cientistas acharão uma saída. Não posso dizer quando. Talvez tenhamos que viver sem técnica eletromagnética mais de um mês. É evidente que teremos de utilizar amplamente os motores a vapor. Repito: Isso é temporário. Asseguro que os cientistas eliminarão o curto-circuito e restabelecerão o status quo. Pedimos pra conservarem a calma e chamar todos os leitores a ela.

Os jornalistas se lançaram à mesa e cada um recebeu a folha com o comunicado oficial.

22Na tarde a tempestade aumentou. Chovia. Várias vezes bolas-de-fogo passaram

flutuando sobre o Fukuoka-maru, como se estivessem o observando e seguiram a diante, até a coluna negra.

Kravtsov se sentia inquieto pela interminável dança de relâmpago e proximidade de acontecimentos incompreensíveis e ameaçadores. Ali-Ovsad o levou a seu camarote, começou a lhe dar chá e perguntar sobre a ionosfera. Olovianikov estava com eles e os observava.

— Escutes: — Disse Ali-Ovsad, mantendo o pires nas pontas dos dedos — Funcionará o motor a gasolina? Não lhe faz falta a corrente.

— E o acendedor? — Replicou Kravtsov. — Como se pode passar sem chispa elétrica?

Ali-Ovsad bebia pensativamente o chá e mordia o açúcar. Declarou, de repente:

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— Preciso ir a Bacu. Se não haverá corrente elétrica tem de se extrair muito petróleo. — Se levantou, ligou o interruptor de luz e a lâmpada se acendeu — Acendas. Certamente o japonês inventou isso de que não haverá eletricidade. Por que o escutas?, Morozov.

— Morozov, não podes assustar as pessoas em vão.— Ai balam, qualquer um pode se equivocar. — Ali-Ovsad, bebendo chá numa

xícara, começou a falar do geólogo Novruzov, que nunca se equivocava. Contudo, certo dia, o poço aberto no lugar que o próprio Novruzov escolhera e que alcançara a profundidade de 2000m submergiu inesperadamente.

— Quando foi isso? — Perguntou Olovianikov, tirando o bloco de nota da algibeira.— Já há muito tempo, em 1949. Não escrevas, nosso jornal Vyshka (Torre

perfuratriz) já o escreveu: Mestre Ali-Ovsad está na torre perfuratriz, salvando o rotor, o cabrestante, a bomba. O rotor e o cabrestante os salvei, é verdade, mas a bomba não tive tempo. Era uma rica bomba, da fábrica Krasni molot (Martelo Vermelho). Depois fugimos todos: A própria torre submergiu. Agora ali há água: Um lago.

— E o que diziam os geólogos?— Cada um dizia uma coisa. Estratos, estrutura. É a terra, e sob ela não sabemos o

que há.Kravtsov o ouvia distraidamente. Esse caso de Shirvanneft, que então originou tanto

alvoroço, já o conhecia perfeitamente. O chá não passava na garganta.— Escreverei carta. — Disse e foi ao camarote.Ficou um momento indeciso diante do camarote de Will, depois bateu serenamente e

em seguida se abriu a porta. Norma Hampton, em pé, no portal, levou o dedo aos lábios e moveu cabeça.

— Quem é? — Se ouviu a voz de Will.— Não dormes? — Perguntou Norma. — Bem, então, entres, senhor Kravtsov.— Que tal, Will, como te sentes? — Kravtsov se sentou, olhando, inquieto, a cara do

escocês. O camarote estava no escuro. Só estava aberta a lâmpada do candeeiro de mesa, que estava coberta por um jornal.

— Melhor. Acendas a luz.— Se acendeu a lâmpada do candeeiro da mesa. À luz amarela a cara magra de Will

parecia desconhecida a Kravtsov. Pode ser que seja por ter crescido a barba encanecida. E os olhos tinham algo de novo, já sem aquela chispa irônica. Empurrado por um impulso de carinho, Kravtsov tocou suavemente na mão de Will.

— Desembuches as notícias, rapaz. — Disse Will.— Notícias? Sim. Há notícias não muito alegres. — E começou a contar.— Não haverá eletricidade? — Estranhou Norma Hampton — Compreendeste bem?,

Stamm.Kravtsov sorriu.— Transmito o que ouvi, palavra a palavra. A propósito, Senhora Hampton, não

recebeste o texto... Que-diabo! Não me ocorreu tirar um pra ti!.. No centro da imprensa ainda deve haver...

— Vás com Deus e com o texto. — Disse Norma.— Mas ela não é assim jovem. — Pensou Kravtsov, observando o rosto cansado da

mulher.— Vês. — Disse Will. — É teu dever.— E a caminho, descanses. — Acrescentou Kravtsov. — Ficarei aqui com Will.— Então... — Norma se levantou, indecisa. — Se ficarás aqui... Olhes, eis o frasco,

senhor Kravtsov. As 9h em ponto pingues 20 gotas e as dês.

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E Norma foi embora.— Um curto-circuito. — Disse Will, depois de silêncio. — É curioso.— Sim. Uma descarga colossal disruptiva entre a ionosfera e a Terra. É difícil

imaginar.— Estava convencido de que se tratava de simples anomalia magnética. — Disse

Will. — Por isso me ofereci como voluntário. Queria comprovar minha conjetura. Pra melhor dizer, não minha. Já há seis anos que Guilar e Noiré a emitiram...

— E Komarnitski. — Kravtsov acrescentou.Chamaram à porta. Um camareiro japonês deslizou a dentro do camarote, disse algo

cortesmente em voz baixa e pôs na mesinha uma vela num pratinho negro.— Pra quê isso? — Kravtsov perguntou.— Disposição do capitão, sir.O camareiro fechou silenciosamente a porta ao sair.— Velas, lâmpadas a querosene... — Kravtsov meneou a cabeça. — Até onde

chegamos!— Rapaz, vás e digas que a bomba atômica é a única coisa que poderá com a coluna.— Deixes de brincadeira, Will.— Não brinco. Não há outra saída.Permaneceram um momento em silêncio. Kravtsov olhou o relógio, pôs num copo

com água vinte gotas do frasco e o deu ao escocês.— Tens pais? — Will perguntou de repente.— Tenho mãe. Não me lembro de meu pai. Morreu em 1948, quando eu tinha três

anos. Era piloto de prova.— Se estatelou?— Sim. Num caça-a-jato.Will se calou e um pouco depois fez outra pergunta, de novo inesperada:— Por que estudas esperanto?— Simplesmente porque é interessante. — Kravtsov sorriu. — A meu entender não

estaria mal que todos os homens aprendessem um idioma internacional. Seria mais fácil se entenderem.

— E tu, queres te entender a todo o custo.— Não sei o que dizer, Will. O que há de mal em que os homens se entendam?— Eu não digo que seja mau. Simplesmente creio que é inútil.— Não quero discutir contigo. Fiques bom e então discutiremos.— Tens algo que me irrita.Kravtsov olhou atentamente Will nos olhos e decidiu reduzir tudo a uma brincadeira:— Isso deve ser porque abusaste da papa de trigo sarraceno no desjejum.A lâmpada começou a ficar muito tênue e enfim se apagou. O candeeiro da mesa de

cabeceira também se apagou.— Começou. — Disse Kravtsov, tirando os fósforos da algibeira. — Adeus

eletricidade. Riscou um fósforo e acendeu a vela.

23Isso não sucedeu ao mesmo tempo em todo o mundo. A princípio a zona de

desmagnetização abrangeu a região da coluna negra, depois lenta e desigualmente começou a se estender na esfera terrena.

Onde o eletromagnetismo se manteve mais tempo foi num pequeno espaço de terra perdidona imensidão do oceano Atlântico, na ilha de Ascensão, que pela situação geográfica é quase o antípoda da região da coluna negra. Ali as luzes elétricas se apagaram 11 dias mais tarde.

Parecia que a vida do planeta retrocedera, dando um salto gigantesco de quase um

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século.Em vão as águas do Volga, do Nilo e do Colorado, caindo do alto das represas,

faziam girar as rodas das centrais hidrelétricas. Os rotores dos geradores elétricos funcionavam em vão. As bobinas não cortavam as linhas magnéticas e, portanto, não induziam a força eletromotriz.

Em vão as caldeiras atômicas aqueciam a água. O vapor fazia girar inutilmente os rotores dos geradores.

A densa rede de condutores elétricos que envolvia o planeta era então inútil. Em vão os fios condutores chegavam até as oficinas das fábricas, às casas e apartamentos. Neles já não corria o fluxo de elétrons levando luz, calor e energia aos homens.

É evidente que a corrente elétrica não desapareceu completamente. A engendravam os elementos químicos, as pilhas elétricas, os alimentadores elétricos até que se descarregaram e não havia com que os carregar, os geradores eletrostáticos, as pilhas termelétricas e solares. Se tentou as ligar às bobinas de indução dos geradores mas a corrente circulava nas bobinas sem induzir o campo magnético artificial.

Parou a potente indústria terrena, baseada na energia eletromagnética. As ruas e as cidades ficaram submersas em treva. Pararam os trólebus, os tornos, os elevadores dos edifícios de muitos andares, as lavadoras, os magnetofones e as gruas. Nos motores de combustão interna deixou de funcionar a ignição. Se calou a rádio. Emudeceram as centrais telefônicas.

As pessoas ficaram incomunicáveis tal como há cem anos.Se complicou a navegação. As agulhas das bússolas giravam sem rei nem roque30 sob

o vidro, sem indicar o curso verdadeiro.Não só os homens sofriam com essa inesperada calamidade. Os peixes perderam os

misteriosos caminhos dos fluxos elétricos nas correntes oceânicas e desovavam onde podiam, ao acaso.

As aves de arribação não puderam encontrar os caminhos habituais.As auroras boreais se deslocaram ao equador e se detiveram ali, circundando o

planeta cum anel cintilante.Começou a circular rumor sobre a elevação da irradiação cósmica primária nas capas

inferiores da atmosfera, cujas propriedades protetoras começaram a mudar substancialmente. Os habitantes das zonas montanhosas abandonavam a casa e desciam ao vale. Se transmitia de boca a boca a terrível notícia de que morrera todo o pessoal do observatório instalado a grande altura, no Pamir.

Adjunto à ONU se criou o comitê da Coluna Negra, integrado pelos cientistas mais relevantes do mundo. Mas enquanto esse comitê investigava intensamente o modo de liquidar a coluna negra, o mundo tinha de se acostumar a viver na nova condição.

Contudo o mundo não estava unido.Nos países socialistas o sistema planificado permitia realizar uma emigração

organizada dos habitantes das regiões montanhosas, a conservação temporária da indústria elétrica e a passagem das empresas que consumiam energia elétrica às que consumiam energia a vapor. Os operários da indústria elétrica aprendiam urgentemente outros ofícios de produção, onde temporariamente se necessitava mais gente.

Entretanto o mundo capitalista foi sacudido. Estalou uma luta encarniçada dos monopólios aos pedidos governamentais. As ações das empresas de carvão e petróleo subiram até o céu, as ações das companhias elétricas desmoronaram. Os que acreditavam que era possível liquidar o curto-circuito as compravam. Na bolsa reinava o pânico. Uma colossal especulação mercantil abrangeu todo o mundo capitalista. Os 30 Sem rei nem roque: Em situação difícil, periclitante, ao acaso. Se trata de locução portuguesa fundada no jogo de xadrez. É o mesmo que dizer: Sem rei nem torre. Tal jogo, de origem oriental, foi adaptado na Europa, onde a pedra chamada roch (dromedário) foi substituída pela torre. Mudar a torre, no jogo de xadrez, ainda se chama rocar. http://www.ciberduvidas.pt/ Nota do digitalizador

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preços subiram, os impostos aumentaram.Nos jornais apareciam grandes títulos anunciando Os últimos dias da humanidade,

mas inclusive atrás deles freqüentemente se encobriam ávidos interesses dos grandes monopólios. Uma companhia de transporte transatlântico firmou um contrato cum consórcio jornalístico e se espalhou na América o rumor de que a ilha de Ascensão só seria atingida pelos raios cósmicos muito depois das outras regiões do globo terreno. Os ricos se afoitaram até essa pequena ilha, ardente e quase seco cone e quase que emergia da profundeza do oceano Atlântico. Em Jorgetau, único povoado da ilha no qual viviam um par de centenas de habitantes, empregados do porto, chegavam diariamente em seus barcos, os ricos emigrantes. Traziam víver, material de construção e água. Pagavam quantidade enorme de dinheiro por cada metro quadrado de terreno pedregoso ao pé da montanha. Muito em breve ficou sem lugar livre e útil prà construção. Os preços subiram em quantidade estratosférica. Havia choque sangrento na ilha.

O governo britânico, a quem pertencia a ilha de Ascensão, enviou ao governo de Estados-Unidos um protesto categórico. Uóchintão repeliu, indicando, na nota de resposta, que a ilha de Ascensão fora ocupada por particulares por cujas ações o governo ianque não era responsável.

Enviaram navios de guerra ingleses à ilha de Ascensão e à de Santa helena, próxima da primeira e à qual se dirigia também um grande caudal de emigrante.

— O fim do mundo! — Gritavam, nas praças das cidades, homens barbudos acostumados a se barbear com máquina elétrica.

— Esperando os cavaleiros do apocalipse! — Os acompanhavam, em suas vozes, os histéricos religiosos.

— Olhai em que situação nos puseram os cientistas! Tem que se ser duro aos cientistas! — Se esganiçavam os comerciantes dispostos a se lançar ao massacre e ao roubo.

Em Princetão, estado de Nova Jérsia, em cavalos cobertos da poeira dos caminhos vindos do sul, chegou uma companhia inteira de jovens armados. Se desdobrando em grupos nos prados de relva cuidada, se lançaram ao ataque contra o edifício principal da universidade. Espancavam com ferocidade os estudantes e professores que encontravam na passagem, e os que ofereciam desesperada resistência mataram a tiro. Os malfeitores irromperam nos laboratórios, partindo todas as vasilhas, deitando as mesas abaixo e destroçando valiosos aparelhos.

— Em que laboratório trabalha o bandido Einstein? — Gritavam. — Tem que se enforcar os professores!

Gritando, começaram a destruir as casas dos professores. Um grupo de estudante e professor, se entrincheirou e repeliu os malfeitores a tiro de revólver. Se ouviu tiro até noite alta. As vivendas repeliam os ataques uns após outros, até acabar a munição. Mas, mesmo então o valente grupo não se deu por vencido e lutou corpo-a-corpo até caírem uns após outros crivados de bala. Quando chegou a polícia as vivendas ardiam como uma tocha. Os bandidos abriram fogo sobre a polícia. Chegou reforço pra ambas as partes e o governo federal enviou força do exército a Princetão, onde uma verdadeira guerra durou seis dias cobertos de sangue.

Amaldiçoavam furiosamente os cientistas. Contudo só se podia ter esperança nos cientistas. Só eles podiam vencer a catástrofe.

Passou o aturdimento dos primeiros dias. No mundo começou febrilmente a se moldar à nova condição. O transporte voltou às caldeiras a vapor. As locomotivas arrastavam os trens iluminados com lâmpada a querosene e acetileno. Dos portos zarpavam os barcos a vapor. Apareceram os tubos acústicos e o correio pneumático. Teve de se aumentar várias vezes a quantidade de carteiro. Os bilhetes postais

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substituíram o telefone.No asfalto das cidades começaram a se ouvir os ruídos de casco de cavalo, arrastando

camiões e automóveis. Apareceram uns híbridos raros: Motores dísel com arranque a vapor.

Duas semanas depois em todo o mundo se difundiram os nomes de Leônidas Moslakov e Iúri Kramer, estudantes graduados da escola superior técnica Bauman, de Moscou, inventores dum dispositivo que substituía a ignição nos motores a combustão interna. O invento era simples, genial. Os estudantes montaram no corpo da vela uma rodinha dentada pra conseguir chispa e uma barra pirofórica cum mecanismo alimentador do avanço microscópico. A alavanca de levantamento do eixo de leva empurrava uma mola, a rodinha raspava a barra e saltava a chispa. Numa palavra, era um acendedor mecânico corrente, acendedor de Moslakov-Kramer. E precisamente graças a eles reviveram as grandes legiões automobilísticas e as ruas adquiriram o aspecto habitual.

Se intensificou a extração de carvão e petróleo. Se acelerou a produção de lâmpada a querosene e vela.

Os jornais continuavam saindo regularmente, sem intermitência, só que se imprimiam à luz de lâmpada a querosene ou acetileno em rotativa acionada por máquina a vapor. E era raro quando a primeira página do jornal não saía com uma foto da enigmática coluna negra envolta em vapor, emergindo do oceano.

24Acadêmico Morozov: O curto-circuito será liquidado Izvestia

As ações das sociedades carboníferas nunca subiram tanto Wall Street Journal

Na ilha de Santa Helena está se levando a cabo uma grande construção. Segundo rumores a cripta de Napoleão foi demolida e em seu lugar se construi uma vila prà família do mais novo Rockfeller. Londres prepara uma nova nota pra Uóchintão. A terceira frota britânica zarpou pra vigiar as ilhas de Tristão da

Cunha Daily TelegraphMissão dos operários de destilação do petróleo: Ultrapassar o plano dos

tipos de querosene pra gás de iluminação Bakinski RabochiAs minas de carvão nacionalizadas devem ser devolvidas aos legítimos

proprietários: Só isso salvará a Grã-Bretanha TisnesO fascismo não passará! O que aconteceu em Princetão não se repetirá!

WorkerO mais sensacional do mundo depois que, em 1949, a casa Sanson Hosiery

Mills obteve as meias de calcanhar negro segundo a patente de Blay e Spargen, de Filadélfia. Comprai as meias da nova marca Coluna Negra!

Filadelfia NewsNeste inverno o aquecimento dos habitantes de Paris será seu

inesgotável otimismo FigaroNo Fukuoka-maru se sucedem intermináveis reuniões enquanto a coluna negra

chega ao espaço cósmico BorbaAs donas de casa exigem: Nos dai eletricidade! For you, women

A subida de preço da vela não deve diminuir o entusiasmo religioso dos crentes L'Osservatore Romano

Neste outono não se realizou expedição ao Himalaia buscando o homem-da-neve. A associação dos xerpas (carregadores) está alarmada. Sua

majestade, rei do Nepal em pessoa, está examinando a questão Katmandu Weekly

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Devido à carestia de combustível nesta temporada, infelizmente se espera a passagem da moda de vestido comprido e apertado. Nosso comentarista confia

que se conseguirá criar modelos com forro de fibra-de-vidro que possam ressaltar a figura da mulher. No que se refere à roupa interior feminina se

espera... La vie parisienne

25— Uma bola-de-fogo! — Gritou o observador, no megafone. — Todos a baixo! Uma

bola-de-fogo!A coberta superior do Fukuoka-maru ficou despovoada. Só a equipe de emergência

permaneceu em cima.Era essa a ordem rigorosa do estado-maior dos cientistas: Quando aparecia uma bola-

de-fogo todos tinham de se refugiarem nos compartimentos interiores e fechar hermeticamente todas as vigias, escotilhas e aberturas. A ordem teve de ser dada depois duma bola-de-fogo ter entrado numa escotilha aberta da oficina do barco e originar um incêndio, que foi sufocado com grande dificuldade pelos marinheiros japoneses.

Se subordinando à ordem, Kravtsov desceu. Deu uma olhada na ante-sala esperando ver ali Olovianikov mas viu apenas um grupo de desconhecidos diante do balcão do bar.

Todos os dias chegavam desconhecidos: Cientistas, empregados da ONU, engenheiros, jornalistas. Uns vinham e outros iam. Se reuniam, discutiam, enchiam de fumaça de tabaco o Fukuoka e esvaziavam a enorme adega de vinho do barco.

Entretanto a coluna negra continuava crescendo, se elevando acima da atmosfera terrena e depois de alcançar a terceira parte, ao menos, da distância à Lua, se inclinava em volta da Terra como se quisesse circundar o planeta com delgado cinturão. Continuava envolvida em infinitas nuvens negras. Feixes de relâmpagos caíam sobre ela dando a impressão de que a tormenta não tinha fim.

Havia tempo que os aparelhos de controle remoto instalados na plataforma não funcionavam. O Fukuoka navegava em volta da plataforma, se aproximando e se afastando. Em certo lugar estava retido o barco de transporte com combustível e o do Fukuoka estava terminando.

A vida do barco decorria em desassossego. Mas o que mais abatia Kravtsov era a inação forçosa. Compreendia que pros cientistas não era uma tarefa muito fácil: Vás averiguar o misterioso campo que rodeava a coluna negra! Mas de qualquer maneira as reuniões e consultas se prolongaram demasiadamente. Kravtsov tinha vontade de se aproximar de Morozov e perguntar sem rodeio: Quando se decidirão a lutar contra a coluna negra? Que-diabo! Até que ponto se pode esperar? Mas se agüentava. Sabia que Morozov trabalhava sem cessar.

Bramulla, com o qual Kravtsov se encontrava poucas vezes no camarote de Ali-Ovsad, não respondia às perguntas, reduzia tudo a brincadeira e contava picante anedota chilena.

Kravtsov, agora melancólico, estava em pé na sala pobremente iluminada, de vez em quando olhando a porta do salão, onde se reuniram os cientistas.

— Hello!31 — Ouviu e se voltou.— Olá, Jim! Boa tarde! Por que não estás jogando bilhar?— Estou farto. — Jim sorriu tristemente — 40 partidas por dia! Se fica maluco.

Dizem que amanhã chegará o barco de transporte com combustível. Não ouviste dizer?— Sim. Dizem isso.— Não queres beber algo?, sir. — Kravtsov moveu a mão, expressando indiferença:— Bem.Se sentaram nos tamboretes diante do balcão e o barista japonês preparou

31 Hello (inglês): Alô. Nota do digitalizador

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rapidamente um combinado e pôs diante deles ambos os copos. Começaram a beber em silêncio. Jim perguntou:

— Teremos trabalho?— Espero que sim.— Aqui não pagam mal. A alguns rapazes levam dinheiro em dormir e jogar bilhar

mas já está me aborrecendo, sir. Um mês e tal sem cinema nem mulher. Inclusive não se pode ouvir rádio.

— Compreendo, Jim.— Quanto tempo ainda estaremos nesta arca japonesa? Se os cientistas não podem

inventar algo, que digam sem rodeio e nos deixem ir a casa. Posso viver sem eletricidade. Maldita seja!

— Sem eletricidade não se pode viver, Jim.— Pode! — Parkinson pôs o copo violentamente sobre o balcão. — Não me importa

o campo magnético e outras palermices parecidas.— A ti isto não importa, mas aos outros...— E a mim o quê? Digo: Posso passar sem ela! Faz sempre falta abrir poço nalgum

lugar. Se não é a eletricidade, a máquina a vapor que faça girar a broca no poço. Qual a diferença?

— Olhes, homem. —Kravtsov pensou — E este fleumático já está impaciente com a inação.

— Ouças, Jim...— Como se fosse pouco a tempestade, aparecem as bolas-de-fogo que vão flutuando

em manada no ar. Lá a cima não se pode sair. Em todas as escadas há japoneses com espingarda... Ao Diabo tudo isso!, sir. Se os cientistas gostam que fiquem. Mas não queremos!

— Deixes de gritar. — Kravtsov disse, sombriamente. — Quem são nós? Respondas!A cara estreita de Parkinson se entristeceu. Sem olhar, Kravtsov estendeu no balcão

uma nota amassada e foi embora.Terminou de beber o combinado. O que fazer?: Ir ao camarote, se deitar e dormir?Junto à porta do camarote, apoiado com as costas na parede do corredor, estava

Chulkov.— Estou te esperando, Alexandre Vitalievich... Chulkov inclinou o gorro a trás. A

cara redonda do rapaz expressava alarme.— Entres, Ígor. — Kravtsov deu passagem a Chulkov. — O que aconteceu?— Alexandre Vitalievich, — Chulkov começou a dizer rapidamente em voz baixa —

é um assunto desagradável. Há muito que os rapazes da brigada de Parkinson se afastam de nós, se reúnem em sua sala e cochicham. Há meia hora, por casualidade ouvi umas das conversas. Isso sucedeu, e perdoes, na latrina. Não me viram. Era Fletcher e outro que, sabe, está sempre rindo, como se lhe fizessem cócega, e a quem chamam Guilherme Risonho.

— Sim, já me lembro.— Pois escutes. Eu, claro, não sou muito forte em inglês. Aqui aprendi um pouco.

Em resumo, como entendi, é que pensam ir embora. Amanhã, quando chegar o barco de transporte com o combustível, pensam em se apoderar dele: Imediatamente abater a guarda e assaltar o barco e... Adeus! À América.

— Compreendeste bem isso?, Ígor.— Attack the transport. O que há aqui difícil compreender?— Então, vamos. — Kravtsov saiu, como uma flecha, do camarote e correu no

corredor.— Alexandre Vitalievich, assim não se pode fazer. — Disse, apressadamente,

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Chulkov correndo atrás dele. — São muitos.Kravtsov não o escutava. Descendo as escadas a salto, irrompeu na coberta E e abriu

bruscamente a porta da sala atrás da qual se ouvia riso.Imediatamente se fez silêncio. Através da cortina cor-de-chumbo da fumaça do

tabaco, dezenas de olhos cravaram em Kravtsov. Fletcher estava sentado nas costas dum sofá, apoiando os pés calçados com altas botas negras no assento. Esticando o lábio inferior, soltou, ruidosamente, uma baforada de fumaça. Disse, semicerrando os olhos:

— Olá, engenheiro. Como estás?, mister engenheiro.— Quero falar convosco, rapazes. — Disse Kravtsov, recorrendo os montadores com

o olhar. — Sei que pensais fugir do Fukuoka-maru.Fletcher saltou do sofá e perguntou, cum sorriso maligno.— Como sabes?, sir.— Tentareis assaltar amanhã o barco de transporte. — Disse Kravtsov, com

prudência.— Não conseguireis isso, rapazes.— Não conseguiremos?— Não. Aviso francamente.— E aviso, sir: Não queremos morrer aqui convosco.— Donde foste buscar isso?, Fletcher.— Kravtsov procurava falar com tranqüilidade.— Por que nos pagais um soldo triplo pra nada fazer? Digo a verdade?, rapazes.— Exato! — Responderam, com alvoroço, os montadores. — Não é por nossa linda

cara. sabem que morreremos!— A coluna negra irradia átomo!— As bolas-de-fogo passam nos camarotes!— Macpherson está morrendo dos raios cósmicos e em breve morreremos também!Kravtsov ficou boquiaberto. Uma multidão vociferante se inclinava em cima e ele

estava só: Chulkov desaparecera. Viu que no divã do canto estava sentado Parkinson, que, indiferentemente, olhava uma revista colorida cuma loura em traje de banho na capa acetinada.

— Não é verdade! — Gritou Kravtsov. — Vos enganaram! O caso de MacPherson é um enfarto. Os raios cósmicos aqui nada têm a ver. Os cientistas estão investigando como eliminar a coluna negra e devemos estar preparados.

— Os cientistas que vão ao Diabo! — Bramou Fletcher.— É deles que provêm todas as desgraças!— Se os deixarmos, os cientistas liquidarão a todos!— Amanhã chegará o barco de transporte e nada nos deterá! Varreremos os

japonesinhos!Os montadores cercaram Kravtsov, que via semblantes exaltados, bocas gritando,

olhos cheios de ódio.— Não permitiremos desertar! — Gritou, tentando se fazer ouvir.Fletcher, com o semblante descomposto pela ira, avançou a ele. Kravtsov ficou

tenso, esperando.Parkinson atirou a revista e se levantou.Nesse momento a porta se abriu ruidosamente e na sala irromperam os montadores

das brigadas de Ali-Ovsad e de Jorge. Chulkov, sufocado pela correria, agilmente se interpôs entre Kravtsov e Fletcher. Disse ao texano:

— Ê! Ê! Não te atrevas!— Recues!— Isso é o que veremos. — Lançou Fletcher.

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— Com que então defendendo os teus... Rapazes, vos atirai aos vermelhos! — Gritou de repente, saltando a trás e chegando a mão à algibeira traseira.

— Alto! — Jim Parkinson segurou a mão de Fletcher, que deu um puxão tentando libertar a mão mas Jim a sujeitou firmemente. Subiu o sangue em Fletcher:

— Bem, soltes.— Assim já é entrar na razão. — Disse Parkinson, com a sua voz lânguida habitual.

— Vos retirai, rapazes. Minha brigada ficará sossegada, senhor Kravtsov. Esperemos até que nos dêem trabalho.

Ali-Ovsad entrou na sala com passo rápido.— Por que não me chamastes? — Disse a Kravtsov, ofegando ruidosamente. —

Quem quer aqui peleja?— Bem, Ali-Ofsait. — Disse Jim. — Bem. Ordem.— Este? — Disse Ali-Ovsad, apontando o dedo a Fletcher, que continuava

esfregando a mão. Eshshek balasy, kiull bashyna!32 — Começou a ralhar. — És homem ou o quê?

26Jantaram os três numa mesa: Kravtsov, Olovianikov e Ali-Ovsad. O velho mestre

mastigava o rosbife e contava uma história, muito comprida, de como o irmão agrônomo vencera os burocratas de Azervintrest (Truste de uva e vinho do Azerbaijão) e melhorou consideravelmente a qualidade de duas espécies de uva. Kravtsov o escutava indeciso entre beber cerveja e olhar os lados.

— Há pouco — disse Olovianikov, quando Ali-Ovsad se calou — fui testemunha involuntária da seguinte cena. Tokunaga estava junto da amurada. Ao que parece fora tomar ar puro. Eu queria o fotografar sem que notasse e decidi mudar a objetiva da câmara. De repente vi que o japonês tirou do pulso uma pulseira, a olhou e atirou ao mar. Nesse momento Morozov se aproximou e perguntou: O que atiraste ao mar?, Masao-san. Será o anel de Polícrates?33 Tokunaga, com seu triste sorriso respondeu: Infelizmente não tenho anel. Atirei uma pulseira magnética. Sabeis, essas pulseiras magnéticas que usam muitas pessoas de idade, sobretudo os hipertônicos...

— Ouvi dizer. — Kravtsov concordou.— Pois, olhai. — Continuou Olovianikov. — Morozov ficou sério. Não

compreendo o curso de teu pensamento, Masao-san. Achas que não conseguiremos? Tokunaga respondeu: Não. Não. Devolveremos aos ímãs suas propriedades mas não sei se chegarei a ver... Masao-san, não sejas assim. Morozov pôs a mão no ombro dele, e o japonês disse: Não faças caso, Morozov-san. Os japoneses somos um pouco fatalistas.

— E depois o que aconteceu? — Kravtsov perguntou.— Foram embora. Parece que Tokunaga tem uma doença incurável.— Sim. Não é muito alegre essa história. Verdade seja dita.Durante um momento continuaram comendo em silêncio.— Que fantoche é esse de bigode encanecido? — Kravtsov perguntou em voz baixa,

apontando um homem pequeno, que jantava na mesa de Morozov.— Esse fantoche é professor Bernstein. — Respondeu Olovianikov.

32 Eshshek balasy, kiull bashyna!: Filho de asno, que te caia cinza na cabeça 33 O anel de Polícrates é um conto grego. Polícrates, tirano de Samos, tinha sorte exagerada. Tudo lhe saía bem. Seu amigo Amásis, rei do Egito, disse que isso não era bom, que tendo demasiada sorte agora terá muito azar no futuro e sugeriu que se desfizesse de algo muito precioso como foram de esconjurar o mal. Polícrates atirou um diamante ao mar mas um pescador pegou um peixe grande e decidiu presentear o tirano. Ali estava o diamante, de volta ao dono. Sabendo disso Amásis decidiu romper a aliança com Polícrates, que teve fim trágico: Morreu crucificado de ponta-cabeça. A pergunta irônica de Morozov é se o marujo estaria tentando afastar o azar atirando um anel ao mar. Nota do digitalizador

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— Bolas!, homem. — Kravtsov se sentiu confuso pela denominação de fantoche. — Nunca acreditaria que era...

— Tão pouca coisa? Leram os jornais ianques como se comportou em Princetão? Se entrincheirou em seu laboratório e criou um potente campo magnético em sua volta. Tirava a energia dum gerador eletrostático acionado por um motor eólico. Os bandidos começaram a trepidar como no baile de são Vito e quase nem tiveram tempo de se mexer. Permaneceu seis dias fechado no laboratório com dois empregados, tendo só água como alimento. Olhai quem é!

— Sabes tudo. — Disse Kravtsov.— Essa é minha profissão.— A propósito, Chulkov me disse que foste pedir informação acerca de mim. Pra

quê?— Um charlatão é esse Chulkov. Simplesmente me interessei como sufocara o

motim.— Nada parecido cum motim, homem. — Kravtsov sorriu.— Quer escrever algo a teu respeito. — Interveio Ali-Ovsad. — Quer escrever

assim: Kravtsov estava em pé, junto à coluna negra.Olovianikov estendeu a mão ao mestre, rindo, e ele, com benevolência, lhe tocou a

palma da mão com as pontas dos dedos.— Há um mês inteiro que andamos ao redor da coluna. — Disse Kravtsov.— Observamos, medimos. Vamos com precaução. Estou, farto. — Terminou de

beber a cerveja e limpou a boca cum guardanapo de papel. — É evidente que tinha que se lhe zumbir cuma bomba atômica.

Morozov se voltou, olhando Kravtsov de soslaio. Certamente ouvira. À luz opaca das lâmpadas a querosene suas cã se assemelhava a cobre.

O camareiro japonês se aproximou sem ruído e amavelmente propôs um sorvete com fruta.

— Obrigado. Não quero. — Kravtsov se levantou. — Verei Macpherson.Ali-Ovsad olhou o relógio:— Dentro de 1h o armênio irá a meu camarote, pra beber chá. Tenho 1 hora.— Que armênio? — Perguntou Olovianikov.— Continuas teimosamente chamando Bramulla de armênio. —Kravtsov riu —

Porém vejo que lhe fizeste tomar o gosto ao chá, Ali-Ovsad.— No domingo Bramullan e eu faremos dzhizbiz.34 O cozinheiro me prometeu as

tripas dum carneiro.— Irás ver Macpherson? — Perguntou Olovianikov — Não te importas que eu te

acompanhe?

27Há já uns dias que o médico permitira que Will movesse os braços e se voltasse dum

lado a outro. De vez em quando um trejeito de dor lhe desfigurava o semblante, sobressaindo de maneira peculiar a queixada inferior, e Norma Hampton corria, horrorizada, procurando o médico.

Contudo o perigo parecia ter passado. Will esculpia figuras de plasticina e quando se fartava de modelar pedia a Norma que lhe lesse o jornal ou suas preferidas Notas de Perigring Pickle. Ele a escutava respirando regularmente e com os olhos fechados e Norma, o vendo, nem sempre podia determinar se a escutava, estava pensando em algo seu ou simplesmente dormia.

— Quando te restabeleceres — disse, certa vez — te levarei à Inglaterra.Will nada disse.

34 Dzhizbiz: Prato azerbaijano

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— O que achas da idéia de nos estabelecermos em Chéster, entre tojais?35 — Perguntou noutra ocasião.

Tinha de responder e disse:— Prefiro Cumberlândia.— Muito bem. — Concordou imediatamente. E de repente seu rosto se iluminou. —

Cumberlândia. Claro, passamos ali a lua-de-mel. Meu-deus!, já faz quase 25 anos. Me alegro muito, querido, que tenhas te lembrado.

— É em vão que pensas que me recordei de nossa lua-de-mel. Simplesmente, ali há montanhas rochosas e mar. — Disse tranquilamente. — É melhor que me leias essa história tonta das tartarugas.

E Norma começou a ler a novela Os senhores da profundidade, publicada em série no Daily Telegraph, novela interminável e animada das manadas de certos galápagos-de-fogo que surgiram do interior da Terra, se estendendo no planeta, queimando e destroçando todas as coisas vivas, até que o chefe se enamorou da bela Mod, esposa dum vendedor de querosene.

A paixão do chefe de fogo alcançara a apogeu, quando bateram à porta e entraram Ali-Ovsad, Kravtsov e Olovianikov.

— Parece que tens razão, Will. — Disse Kravtsov, se sentando junto à cama do escocês. — Tem de se cortar a coluna com a bomba atômica.

— Sim. — Respondeu Will. — Uma bomba atômica de ação dirigida. Assim pensava antes.

— E agora?— Agora penso o seguinte: Se cortarmos a coluna com uma explosão atômica o

campo magnético voltará a ser normal mas a coluna continuará crescendo, de todas as formas, e alcançará outra vez a ionosfera e outra vez teremos o curto-circuito.

— Exatamente. — Disse Kravtsov. — Que-diabo! Como a deteremos?— Certamente parará por si. — Disse Ali-Ovsad. — A pressão da fricção extrairá

todo o material e a fará parar.— Não se pode confiar nisso, Ali-Ovsad.— Anteontem — disse Olovianikov — os jornalistas apanharam Stamm no salão, o

puseram num canto e lhe exigiram notícia. É evidente que nada conseguiram tirar dele. É um homem de cimento armado. Mas Stamm começou a expor sua teoria predileta. Sacha, ouviste algo sobre a teoria da expansão da Terra?

— Ouvi algo. No instituto já discutimos sobre isso.— Stamm disse coisas muito estranhas: Que a Terra durante o paleozóico era pouco

mais ou menos de um diâmetro três vezes menor do que agora. Isso é a sério ou o tio Stamm está brincando?

Kravtsov sorriu.— Não digas palermice, Lev, Stamm antes... bem, não sei que dizer.. antes te morder

do que dizer um gracejo. Existe essa hipótese, uma entre muitas. Que o núcleo da Terra é o resto duma substância sideral muito densa, da qual se formou em devido tempo a Terra. Que esse núcleo vai se tornando cada vez menos denso e as partículas passam, pouco a pouco, às capas superficiais e... Bem, em resumo, as vão expandindo. Tudo isso, como é evidente, se processa muito lentamente.

— Sim, Stamm disse, se não entendi mal, que no interior da Terra surgem novas partículas pesadas, prótons e nêutrons, e aumentam a massa da Terra. Mas donde surgem essas novas partículas?

— Eis a essência da questão. — Disse Kravtsov — Agora não me lembro muito bem, mas então discutíamos raivosamente essa hipótese. Durante certo período tivemos como

35 Tojo: Nome vulgar de vários arbustos espinhosos que crescem nos terrenos áridos. Nota do digitalizador

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professor um aluno de Kirilov, autor dessa teoria... Donde saem as novas partículas... Me lembro duma conversa sobre a transformação mútua do campo e da substância, diferentes formas qualitativas da matéria e precisamente este caso origina a impressão de seu surgimento... Em resumo, aqui ocorre uma ação conjunta dos campos gravitacional, eletromagnético e outros desconhecidos O que dizer acerca disso? Só uma teoria do campo unitário nos abriria os olhos.

— Não quererás dizer, senhor Kravtsov, — se ouviu a voz trocista do escocês — que nossa querida coluna consta de substância protônica e neutrônica?

— Não, senhor Macpherson. Simplesmente estou pensando na hipótese que nosso querido Stamm aconselha.

— E o que aconselha?— Papas de trigo sarraceno, Will. Sabes disso muito bem. — Kravtsov apanhou da

mesa um aviãozinho de plasticina e lhe deu várias voltas na mão — Vejo que em suas composições tem um novo assunto.

— Dês cá. — Macpherson lhe tirou a figura e a comprimiu, transformando numa bola.

— De qualquer maneira, Will, foi muito acertado que te tornares engenheiro de perfuração e não escultor.

— Sabes sempre o que está bem e o que está mal. És um jovem Sabichão.— Olhes, homem, não pensei que te ofendesses. — Se admirou Kravtsov.— Isso são palermices. — Disse o escocês — Não me ofendo, rapaz. Só que não

gosto quando te metes em rixas com os ianques.— Não me meti, Will. Não sou tão brigão quanto pensas.Guardaram um momento de silêncio. A chama da lâmpada a querosene pestanejava e

na habitação deslizavam sombras.— Agora tenho grande vontade de dormir. — Ali-Ovsad disse de repente. — Antes

dormia pouco. Agora ando sempre com vontade a dormir. Naturalmente é porque o campo magnético não é normal.

— Agora, a propósito de tudo se culpa o campo magnético. —Kravtsov sorriu — ou gravitacional.

— Gravitação. — Continuou Ali-Ovsad — Todos falam da gravitação. Antes não conhecia esta palavra. Agora durmo e sonho com a gravitação. O que é isso?

— Mas já te explicou, Ali-Ovsad...— Ai balam, explicaste mal. Digas sem rodeio: É peso ou força? Fiz muitas

perfurações na Terra. Sei que no interior há uma grande força.— Quem discute?— Não é em vão que nos contos russos a chamam mãe-terra. — Observou

Olovianikov.— Te lembras, Sacha, da epopéia de Mikula Selianinovitch?— Epopéia? Contes, faças o favor.— Como gosta de conto. — Pensou Kravtsov. — Até lhe faz crescer água na boca.— Pois bem. — Começou Olovianikov, com prazer. — Era uma vez um lavrador. O

chamavam Mikula Selianinovitch. Certa vez estava lavrando perto do caminho e pusera a bolsa com a comida no chão. Lavrou e tornou a lavrar e, de vez em quando, olhava o sol e pensava: Oxalá tenha tempo. Nesse momento passou ali o gigante Vollgá num potente cavalo, pensando: Não tenho onde aplicar minha grande força, uma vez que tudo é fácil e débil pra mim. Mikula Selianinovitch ouviu como o gigante se gabava e disse: Tentes levantar minha bolsa. Bolas pruma coisa tão importante, a bolsa! O gigante Vollgá se inclinou sem apear do cavalo, apanhou a bolsa cuma mão e... não pôde com ela. Teve que se apear e a agarrar com as duas mãos e... nem por sombra.

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O gigante se enfureceu e deu tal empurrão na bolsa que submergiu na terra até os joelhos, mas não a levantou! E Mikula Selianinovich explicou que o peso dela vem da mãe-terra.

— Um bom conto. — Aprovou o escocês.— O pequeno conto tem um subtil sentido social. Mikula personifica o trabalho

pacífico, enquanto que o gigante Vollgá...— Pode ser que assim seja. E pode ser também que teus inteligentes antepassados

sentissem a invencibilidade da gravidade da terra. Olhes, onde começam as fantásticas suposições de nosso tempo... Mikula... como?

— Mikula Selianinovich.— Sim. A bolsa e o cavorita36 de Wells. O que vos parece?, cavalheiros.— Agora narrarei um conto. — Declarou Ali-Ovsad, passando o dedo na pequena

mancha negra do bigode na covinha do lábio superior. — Há muito tempo vivia um tal Rustam-bajadur.37 Quando andava os pés se afundavam profundamente na terra.

— Era assim tão pesado? — Perguntou Olovianikov.— Por que pesado? Eu disse que era pesado? Só que era extremamente forte. Tão

forte que andava com todas as precauções e de todas as maneiras os pés se afundavam meio metro na terra. Então, Rustam foi ver um espírito maligno e lhe disse: Tomes metade de minha força e a escondas. Quando for velho virei a buscar.

Kravtsov se levantou e deu uns passos no camarote. As sombras refletidas nas paredes começaram a se mover e a saltar.

— O que fazer — disse, parando diante da cama de Will — pra que a força da coluna a obrigue a se meter, por si, na terra? Só sua força a pode vencer.38

— Queres dar a volta à coluna negra? — Ali-Ovsad riu — Eia!, valente.

28Kravtsov se consumia de impaciência à entrada do salão. Dentro se celebrava a

reunião conseqüente dos cientistas. O rumor das vozes no outro lado da porta ora se elevava ora se abaixava. No vidro opaco da porta passava regularmente uma sombra: Algum cientista passeava no salão dum lado a outro.

— Que-diabos faço aqui? — Pensava Kravtsov. — Já têm bastante problema, como me atenderão? Os melhores geofísicos se reuniram aqui. Capacidades laureadas com todos os prêmios que existem. E me meterei com minha idéia despropositada? Aproveitar a força da própria coluna, bolas à idéia!

Em foro íntimo Kravtsov evidentemente sabia que só lhe faltava um pretexto pra falar com Morozov. Era insuportável essa espera. Sim. Ousará perguntar, sem rodeio, a Morozov: Quanto tempo temos de esperar?

Um camareiro cuma bandeja cheia de garrafa e sifão deslizou ao salão. Na momentânea abertura formada ao se abrir a porta, Kravtsov viu uma grande calva e mãos que sustinham uma folha de papel de rascunho. Ouviu um pouco duma frase russa mal pronunciada: Não se poderá colocar essa instalação.

Instalação! Olá! Já se fala de certa instalação.Kravtsov às vezes se sentava no sofá, às vezes se observava a ante-sala debilmente

iluminada. O tempo decorria fastidiosamente, se aproximando das 2h da madrugada.Enfim se abriu a porta e do salão começaram a sair os cientistas falando entre si.

Tokunaga, com aspecto cansado, escutava Stamm, que tentava o convencer dalgo. Bramulla saiu limpando a calva cum lenço. Professor Bernstein, homem pequeno, de 36 Cavorita: H. G. Wells, em sua obra O primeiro homem na Lua, existe a cavorita, um material sólido desenvolvido por um excêntrico e genial cientista, que possui a propriedade de barrar o efeito da gravidade. Com isso se construi uma cápsula capaz de isolar da atração da Terra e subir até a Lua. http://www.xr.pro.br/fc/fcprehistor.html nota do digitalizador37 Bajadur: Gigante (em azerbaijano)38 É o princípio do caratê: Usar a força do adversário contra ele. Nota do digitalizador

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bigode encanecido, passou rodeado duns cientistas desconhecidos. Um levava um turbante hindu. Enfim, entre as nuvens de fumaça de tabaco apareceu a figura alta e reta de Morozov, cuma grande pasta de papel embaixo do braço.

Os olhos penetrantes de Morozov perceberam que Kravtsov, que estava de pé, afastado num canto, o saudou cuma inclinação de cabeça e ao passar disse, com ironia:

— Com que então uma bomba atômica! Hem?Kravtsov se aproximou:— Víctor Konstantinovich, me permites umas palavras?— Não tenho tempo, meu caro. Eu próprio há tempo que quero falar contigo mas o

tempo me aperta. Contudo... — Abraçou Kravtsov nos ombros e o levou no corredor. — Se a conversa não for muito longa comeces.

— Sabes, — disse Kravtsov, com emoção — nos surgiu a idéia... Não se poderia aproveitar a força da própria coluna? Melhor dizer, variar a direção de seu campo.

— Entendo. Entendo. — Morozov riu. — É melhor que me contes como lutaste com os texanos.

— Dizer o quê? Houve uma pequena disputa e fizemos a paz. Víctor Konstantinovich, perdoes se te incomodo. Simplesmente queria perguntar: Quanto tempo ainda teremos de esperar?

— Espero que pouco, meu caro. Temos que nos apressar muito, mas muitíssimo, porque... Numa palavra, tem que se determinar todas as dificuldades. O projeto, realmente já está pronto. Faltam só os cálculos de verificação.

Kravtsov ficou contente.— É só dizer, pronto...— Pronto. — Morozov parou à porta de seu camarote. — Cuma bomba atômica é

que querem cortar a coluna? — Perguntou de novo.— Essa idéia é de Macpherson. Mas a coluna, de qualquer maneira, vai aumentando

de novo e alcançará a iono...— Entres. — Interrompeu Morozov e lhe deu passagem ao espaçoso camarote, ou

melhor dizendo, gabinete de trabalho com mesas cheias de desenho. — Te sentes. — disse enquanto se sentava junto a uma mesa. — Digas, camarada Kravtsov, conheces bem a plataforma, compartimentos e corredores?

— Sim.— Olhes este esquema. Reconheces?— A coberta média da plataforma.— Exatamente. Em quanto tempo achas que se pode abrir aqui um corredor circular?

— Morozov descreveu uma circunferência sobre a plataforma, com o lápis.— Um corredor circular? —Kravtsov perguntou, arqueando as sobrancelhas e

esfregando sob a orelha cum dedo.— Olhe. Tomes o esquema e penses como é devido. Um corredor circular, fechado,

de6m de largura e não menos de 4,5m de altura.— Pensarei, Víctor Konstantinovich.— Perfeitamente. Amanhã na noite, um pouco tarde, venhas com a resposta.

29Minha querida MarinkaAnteontem um oportuno correio aéreo me trouxe duas cartas tuas e muito a

tempo, porque já começava a me inquietar. Me perguntas por que não irei, se nada há a fazer aqui. Não sei, me acredites, porque estou aqui todo o mês sem fazer algo. Tem sido sempre esperar e esperar, pensando: Pode ser que hoje, talvez amanhã... Enfim chegou a hora de agir. O projeto já está feito e aprovado pela comissão internacional. Se chama operação Coluna Negra.

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Certamente saberás via jornal, mais e antes do que via minha carta, em quê consiste. Explicarei a ti brevemente. Se criou- o projeto duma instalação que deterá a coluna negra. A ti, como professora de física da escola secundária, é evidente que interessará saber os detalhes. Digo francamente que é tão complicado que não entendo tudo. Os cientistas, ao que parece, determinaram em quê consiste o campo da coluna, e a instalação sobreporá determinada combinação de potentes campos de força. Se supõe que a ação mútua com o campo da coluna impedirá o movimento ascendente.

É evidente que primeiramente tem de se cortar a coluna pra eliminar o curto-circuito formado, restabelecer a estrutura normal do campo magnético e dar corrente à instalação quando começar a funcionar.

A própria instalação estará na plataforma, à qual estamos abrindo, através dos compartimentos interiores, um corredor circular. E nisso que estou ocupado. É de notar que faz muito calor na plataforma mas isso é nada. Há já tempo que nos habituamos à tempestade, e mesmo aos relâmpagos. Não te preocupes, porque a coluna é uma espécie de pára-raio.

Que tempo durará a operação? Não sei, querida. Como deves compreender, queria terminar o quanto antes e ir ver a ti e a Vova. Sinto muito vossa falta. Percebes? E que Vova, com a mãozinha, me envie algumas garatujas. Escreverei em todas as oportunidades.

— Á! Sim. Me perguntaste como cortaremos a coluna. Olhes como...Kravtsov não terminou a carta. O chamaram à porta do camarote. Chulkov deixou

ver a cabeça e disse:— Alexandre Vitalievich, o terceiro turno tem de ir.Kravtsov meteu a carta sem terminar na gaveta da mesa e correu à lancha.

30A operação Coluna negra começou.Toda a flotilha de barcos se colocou em volta da plataforma. Ali estavam o porta-

avião Fewries, com sua enorme pista de pouso, a base flutuante mecânica Ivã Kulibin, gabarras automotrizes e gruas flutuantes. Grandes lanchas a vapor, exalando fumaça de carvão, andavam continuamente entre a plataforma e os barcos. O estado-maior da operação continuava no Fukuoka-maru.

Nas fábricas da União Soviética, de Estados-Unidos, do Japão e de muitos outros países se produziam peças e grupos de blocos dum núcleo anular de tamanho nunca visto. Nos porões dos vapores sob a bandeira azul da ONU, nas barcaças dos dirigíveis de transporte com turbina a vapor, se transportavam, até a plataforma, estruturas metálicas, blocos de painéis de alta freqüência, jogos de colossais isoladores e fardos com jogos de barras coletivas. Chegavam barcos petroleiros, barcos carregados de madeira, de víver e grandes navios com operários montadores, engenheiros e comissões governamentais.

O pessoal, com traje de proteção, trabalhava dia e noite sem cessar. Era necessário se apressar porque (e isso os cientistas sabiam) o fluxo mortífero dos raios cósmicos penetrava cada vez mais nos estratos inferiores da atmosfera.

Entretanto a coluna negra, rodeada por um anel de relâmpago e envolta numa capa de vapor, corria a cima, através das nuvens, se inclinando e dando a volta à Terra.

31Às 21h, seu turno, o engenheiro Kravtsov subiu na escada metálica em ziguezague à

coberta média da plataforma. Ali estavam os montadores das já conhecidas brigadas de Ali-Ovsad, Parkinson e do romeno Jorge.

Kravtsov recebeu as novidades do setor de trabalho da parte do chefe de turno, que

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acabara de trabalhar suas correspondentes 5h.— Bem... Já montaste o compartimento, César. — Disse, olhando as vigas cortadas e

as estreitas passarelas, sob as quais se via o vazio escuro.— Aqui o nível é maior e tivemos de cortar todo o estrado. — Respondeu o

engenheiro italiano, secando, com a toalha, a cara morena. — Olhes a linha de referência.

E deu a Kravtsov o desenho.— Sei. Mas aqui, sob nós, está a central atômica.— Que não funciona.— Mas funcionará. E deitastes o estrado sobre o teto. — Kravtsov iluminou o fundo

com sua lanterna de bolso.— O que queres de mim?, Alessandro.— É preciso levantar o estrado. Sobre o reator não deve haver mais que o teto.Tanto o italiano quanto Kravtsov eram esperantistas e se entendiam facilmente. Os

montadores de ambos os turnos assistiam a conversa, procurando os compreender. As lâmpadas de acetileno distribuíam luz azulada sobre as costas nuas e brilhantes de suor.

— Adiantamos hoje 7m além da norma. O principal é terminar o corredor o quanto antes, e se embaixo ficar algum escombro...

— Mas não aqui. Bem, César, leves o turno. — Acrescentou, já falando inglês. — Teremos que pôr um sistema de polia e limpar um pouco o escombro.

— O que é isso? — De repente se ouviu uma voz rouca. — Os italianitos sujaram e temos de limpar?

— Quem disse isso? — Kravtsov se voltou bruscamente.Durante uns segundos reinou o silêncio no compartimento. Só em cima se ouvia o

costumeiro retumbar da tempestade. Olovianikov, que também estava ali, traduziu a frase ouvida a Ali-Ovsad:

— Ai, ai, ai! — Ali-Ovsad meneou a cabeça e chasqueou com a língua.— Quem disse? — Repetiu Kravtsov. — Jim, foi um dos seus.Jim Parkinson, pendurado, pelo comprido braço, numa viga dupla em T, do teto, se

calava, abatido.Nesse momento, o texano se adiantou do grupo.— Bem, fui eu quem disse. — Resmungou, olhando Kravtsov de soslaio. — E o

quê? Não penso trabalhar por outro.— Eu bem me parecia. Agora mesmo peças desculpa ao turno italiano, Fletcher.— Não faltava mais! — Fletcher ergueu a cabeça. — Que peçam desculpa.— Nesse caso, te destituo do trabalho. Desças e com primeira lancha que saia, vás ao

Fukuoka. Amanhã serás despedido e receberás teu salário.— Me importa bem teu trabalho! — Gritou Fletcher. — Que vá tudo ao Diabo. Não

quero brigar mais neste calor infernal!Cuspiu e, saltando de passarela a passarela, foi no corredor que dava ao patamar da

escada.Os montadores começaram a falar todos ao mesmo tempo e o compartimento se

encheu de voz.— Silêncio! — Gritou Kravtsov. — Rapazes, trabalhamos aqui coletivamente porque

só em coletivo se pode realizar um trabalho desta envergadura. Podemos discutir e não estar de acordo com alguém, mas nos respeitaremos mutuamente! É verdade o que digo?

— Verdade! — Soaram vozes.— Que vá ao Diabo! Vamos ao trabalho! Não tem o direito de o despedir!— Tens razão!, engenheiro.

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— Silêncio! — Kravtsov levantou bruscamente os braços. — Digo sem rodeio: Enquanto eu dirigir este turno ninguém ofenderá impunemente uma pessoa doutra nacionalidade. Todos entenderam o que eu disse? É tudo. Ponde os escafandros!

César se aproximou de Kravtsov e, sorrindo, abertamente lhe deu umas palmadas no ombro. Os italianos, cansados e banhados em suor, se afastaram até a saída em fila indiana. Iam falando e gesticulando vivamente.

Kravtsov mandou pôr o sistema de polia.— Quem desce pra prender as chapas do estrado?— Venham elas. Irei. — Chulkov respondeu imediatamente.Das penumbras do compartimento vizinho de repente apareceu a figura do

engenheiro italiano e atrás uns quantos de seus montadores.Alessandro. — Disse, saltando a passarela e se encaminhando a Kravtsov — Meus

rapazes decidiram trabalhar um pouco mais. Limparemos ali embaixo.

32No calor infernal e umidade dos compartimentos da plataforma, as cinco horas

pareciam muito maiores. O zumbido da chama do maçarico cortador, o golpear contínuo do cabrestante a vapor, o chiar das chapas de aço, o som da soldadura... Metro após metro, adiante! Já faltavam poucos metros. Em breve se fecharia o corredor circular rodeando o piso médio da ilha flutuante. Os revestidores que iam atrás dos montadores cobriam as paredes e o teto do corredor cum plástico branco resistente ao calor, e os eletricista já instalando os blocos do gigantesco núcleo anular. A diante! A diante!, montadores.

No amanhecer o turno de Kravtsov regressou ao Fukuoka-maru. Só tiveram força pra chegar e ficar sob a água temperada da ducha.

Depois, dormir! Se vê que o cansaço é excessivo, e Kravtsov, quando está extenuado leva muito tempo a adormecer. Se volta dum lado a outro na estreita cama, tenta contar até cem mas o sono não chega. Perante seus olhos, fechados ou não, bailava o conjunto de viga, os ouvidos silvavam, ouvindo a chama dos maçaricos cantando. E não podia evitar!

Quase inconscientemente estendeu a mão aos fósforos e acendeu a lâmpada a querosene. Ler jornal? Á!, olhes o que fará: Acabar de escrever a carta!

...Como ontem não tive tempo, termino hoje a carta. Que raio de vida levamos!, Marinka. Não há tempo pra respirar. É que estamos fartos de viver sem eletricidade e por isso nos esforçamos ao máximo. Muito em breve terminará isso!

Entendes? Enquanto se corta a coluna os ímãs recuperam as propriedades magnéticas e os turbogeradores da central atômica fornecerão corrente às bobinas dos estimulantes do núcleo anular. A combinação dos campos sobrepostos entra na reação instantaneamente com o campo da coluna e ela se detém.

A coluna possui uma solidez fenomenal mas, segundo os cálculos, a explosão dirigida por uma bomba atômica a cortará. Recordas? Escrevi a ti a dizer que a coluna atrai e levou a caixa com o instrumento. Pois, olhes...

Se ouviu um suave bater na porta e apareceu a cabeça de Jim Parkinson.— Perdão, sir, mas vi luz em teu camarote...— Entres, Jim. Por que não estás dormindo?— Não pude dormir depois da ducha. Além disso, Fletcher não me deixa, por nada

deste mundo.— Fletcher? O que quer?— Pede que não o despeçam, sir. Enfim, em nenhum lugar pagam como aqui.

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— Ouças, Jim, posso desculpar muitas coisas, mas isto...— Compreendo. És pela igualdade, etc., etc... Está disposto a pedir perdão ao

engenheiro italiano.— Está bem. — Kravtsov disse, com cansaço, que enfim sentiu vontade de dormir,

os olhos começavam a se fechar — Que amanhã apresente desculpa a todo o turno italiano na presença de nossos rapazes.

— Direi. — Disse Jim, com dúvida — Boa noite. — E foi embora.A caneta caiu da mão de Kravtsov. Com esforço de vontade chegou à cama e

adormeceu profundamente.

33A grua a vapor retirou da ampla coberta do Ivã Kulibin o último bloco do núcleo

anular e depois de o suster no ar o desceu lentamente e o colocou na barcaça. A lancha a vapor arrastou a barcaça até a plataforma.

Os montadores descansavam deitados em todas as partes da coberta do Kulibin fumavam e falavam de seus assuntos. Como se esse dia fosse igual aos outros e não se diferenciasse da comprida série dos já passados.

Contudo esse dia não era comum, pois se terminaria a montagem do núcleo anular. Esse tinha que rodear a plataforma formando um cinturão eletromagnético e os estimulantes apontariam a coluna, prontos ao assalto.

Morozov saiu dos compartimentos interiores à coberta superior do Kulibin e consigo o pequeno Bernstein, Bramulla, num grande impermeável, e vários engenheiros eletricistas. Pararam no lado de estibordo esperando a lancha que os levaria à plataforma.

Kravtsov atirou borda afora a ponta do cigarro que fumava e se aproximou de Morozov.

— Víctor Konstantinovich, ouvi dizer que amanhã nos trarão o pirilampo, é verdade?Alguém chamara pirilampo à bomba atômica de ação dirigida, que cortaria a coluna

e o apelido pegara.— A trazei. — Respondeu Morozov — Quase todo o conselho de segurança a

acompanhou.— Se pudesse ver. Nunca vi bomba atômica.— Nem verás. Isto não é pra ti.— Claro. Minha obrigação é abrir poço. — Morozov semicerrou os olhos e olhou

Kravtsov.— O que queres de mim?, Alexandre Vitalievich.— Nada. — Kravtsov afastou o olhar ao outro lado — O que tenho de querer?

Terminar o quanto antes tudo isso e ir a casa.— Ei! Não! Por tua cara vejo que pensaste nalgo.— Olhes que não, Víctor Konstantinovich!...— Pois meu caro, advirto de antemão: Não peças nem tentes. Muitos já pediram. O

começo da operação é encomendado aos especialistas, técnicos em energia nuclear. Entendido?

Ali os especialistas nada têm a fazer. Se liga o mecanismo de relógio e se vem embora tranquilamente à lancha.

— De toda maneira pediu em vão.— Não peço. Só que, a meu entender, o direito de o pôr em ação é, antes de tudo, dos

que fizeram a última vigilância.— O direito do descobridor?— Suponhamos que é assim.— Como Macpherson está doente, fica Kravtsov. Ora, com que habilidade o

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delineaste. — Morozov riu e olhou o relógio. — Porque não vem a lancha?Junto a eles Ali-Ovsad falava com Bramulla sobre altas matérias. O chileno

compreendia muito pouco as explicações do velho mestre mas por respeito dizia que sim com a cabeça, seguia a corrente e soltava, da boca e nariz, baforada de fumaça de tabaco. Morozov perguntou:

— O que te preocupa?, Ali-Ovsad.— Perguntava quem faria girar este núcleo anular.— Ninguém o fará girar.— Há uma roda e não girará? — Disse Ali-Ovsad, perplexo — Então, não

funcionará?— Porque não funcionará?— A máquina deve girar. — Disse o mestre, com convicção. — Funciona quando

gira. Todo mundo sabe disso.— Nem sempre, Ali-Ovsad. Nem sempre. —Morozov sorriu — Olhes, por exemplo,

o receptor de rádio não gira.— Como não gira? Ali há ponteiros-aponteiros — Ali-Ovsad insistia

inflexivelmente na sua — E a corrente elétrica? O próton-elétron. Tudo gira.Morozov queria explicar ao velho como funcionaria o núcleo anular, mas naquele

momento chegou a lancha. Os cientistas zarparam até a plataforma.Em pé, na popa da lancha, Morozov semicerrava os olhos devido ao vento e olhava

pensativamente a plataforma que se aproximava:— A máquina deve girar. Pois olhes, tens muita razão. Se no momento de cortar a

coluna a plataforma com o núcleo anular girar em volta dela, se poderia passar sem os enormes transformadores que, a propósito seja dito, estarão preparados depois de todo o resto. A coluna será o estator e a plataforma com o núcleo, o rotor. Tem de se pensar, calcular. Se poderia economizar um montão de tempo, amarrar um barco à plataforma e pôr a máquina em movimento.

Se voltou a Bernstein.— Colega, o que me dizes duma idéia ainda não madura mas muito curiosa?

34...Que carta interminável que te escrevo! Como se estivesse falando

contigo, minha querida, e isso me agrada mas estão me interrompendo a todo o momento.

Aqui está como Deus é Cristo. O caso é que trouxeram a bomba atômica, que chamamos pirilampo, e chegaram tantos diplomatas e militares que, de olhos fechados apontas com o dedo e com certeza tropeças num. Já sabes que depois da proibição das provas de armas nucleares este é o primeiro caso em que há necessidade de fazer explodir uma. É natural que o conselho de segurança se alarmara e mandara àqui seus representantes. No Fukuoka há tanta gente como num domingo de verão na praia de Kuntsevo. Te lembras que passeamos no barco a motor? Era no tempo feliz, quando a esfera terrena tinha uma capa magnética normal.

A instalação com o pirilampo se colocará na plataforma rodante e será empurrada em direção à coluna e...

Vamos, outra vez me interrompendo. Morozov me chamou e me pediu pra o ver. E olhes que já passa de meia-noite. Boa noite!, Marinka.

35Will estava sentado na poltrona e esculpia figurinha. Os dedos compridos

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modelavam a bolita39 amarela de plasticina. Norma Hampton estava sentada à mesa e cosia, estendeu a mão e desceu a mecha da lâmpada cuja chama fumegava.

— O que faremos com Howard?, querido. — Perguntou ela.— O que quiseres — Respondeu Will. — Se dirige a ti.— Se me pedisse, como antes, 20 ou 30 libras, não me deteria a perguntar. As

enviaria em paz. Mas o rapaz pede aqui.— O rapaz tem 24 anos. — Interrompeu Will. — Em sua idade eu não pedia esmola

a meus pais.— Will, escreveu que se não conseguir essa soma perderá uma ocasião decisiva na

vida. Juntamente com dois jovens de famílias muito respeitáveis, quer fundar um scratch-club,40 que está muito na moda. Espécie de cavaleiros com armadura e lança mas não a cavalo, lambreta.

— Á!, pensei que era a cavalo. Bem, já que é a lambreta envies o cheque sem falta.— Peço pra não te enganares. Se enviar essa soma ficarei com nada pra mim.— Consideres o assunto com seriedade, Will. É nosso filho.— Nosso filho! Se envergonha de que o pai fora um simples perfurador de poço.— Will, peço...— Sou teimoso e avarento, como todos os terraltinos.41 Nem um pêni. Ouviste? Nem

um pêni recebe de mim esse vadio!— Está bem, querido, mas não te exaltes, não te irrites.— Que espere! — Will disse em voz muito baixa, depois de muito tempo em

silêncio. — Em meu testamento está seu nome. Que espere e depois que funde o clube, maldito seja!

Norma suspirou, sacudiu a adorada melena e começou a coser de novo. A plasticina nas mãos de Will se transformou numa cabeça de face estreita e queixada inferior extremamente saliente. Will pegou um canivete e modelou os olhos, as aberturas do nariz e a boca.

Bateram à porta do camarote. Kravtsov entrou. Tinha um aspecto como se acabasse de ganhar o primeiro prêmio da loteria: O casaco desabotoado e a cabeleira castanha, como um matagal de bosque.

— Boa tarde! — Deu um salto da porta e, retendo dificilmente as notas alegres da voz, exclamou. — Will, me felicites! Senhora Hampton, me felicites!

— O que aconteceu?, rapaz. — Perguntou o escocês.— O começo da operação foi entregue a mim! — Riu feliz. — Formidável! No fim

de conta convenci o velho! A mim e a Jim Parkinson. É formidável! Hem?, Will.— Te felicito. — disse Will entredente. — Embora não compreendo porque te dá

tanta alegria.— Compreendo. — Sorriu Norma, estendendo a mão a Kravtsov — Te felicito,

senhor Kravtsov. É evidente que isso é uma grande honra. Mandarei uma informação ao jornal. E quando começará?

— Em dois dias.— Não há quem reconheça a senhora Hampton. — Pensou Kravtsov — Tão enérgica

que era, se inteirava das notícias antes de todos. E agora nada quer além de ficar sentada aqui.

— Á! dentro de dois dias! — Norma deixou a costura e se endireitou — Sim, terei de escrever. Ao menos a Reuter enviou certamente o comunicado oficial à Inglaterra.

Como não havia comunicação via rádio com o resto do mundo as grandes agências

39 Bolita: Bolinha-de-gude. Nota do digitalizador40 Scratch: Prova ciclística na qual se tem de completar tantas voltas na pista. Nota do digitalizador41 No texto original highlanders: Os habitantes das terras altas da Escócia. Nota do digitalizador

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de informação se encarregaram de difundir as notícias em seus aviões-a-jato.Kravtsov confirmou que o avião da agência Reuter, como sempre, decolara naquela

manhã da coberta do Fewries e Norma começou de novo a coser.— Experimentarão dois dias mais. — Kravtsov disse, animadamente — E depois,

senhoras e senhores, levantaremos o pirilampo e despedaçaremos a coluna.— Pra que-diabo te metes nesse assunto? — Disse Will. — Que o façam os próprios

especialistas de energia nuclear.— Fazem. Tudo está preparado mas o mecanismo de relógio Jim e eu ligaremos.

Convenci Morozov dificilmente. Tokunaga não se opunha, e o conselho de segurança aprovou.

— Bom, vás! Procures fazer algo pros jornais. Antes de começar digas algo que seja proverbial.

— Will, é verdade que pensas assim? — Kravtsov se alarmou um pouco e sua alegria se apagou. — É possível que acredites que faço isso por...?

Kravtsov se calou. Will não respondeu. Os dedos apertavam com força a bola de plasticina amarela. Kravtsov disse:

— Então boa noite!

36Vento e bandeiras numa manhã fresca.Ondeavam bandeiras de cores diferentes nos barcos da flotilha. Entre relâmpagos

tremulavam ao vento bandeiras vermelhas, de franjas com estrelas, brancas cum círculo vermelho e muitas mais e, como é evidente, as azuis da ONU.

Retumbava a tempestade sobre o oceano e as nuvens se amontoavam. Havia muito tempo que ali as pessoas não tinham visto mais a luz solar. Mas agora, breve, muito breve...!

Junto à amurada branca do Fukuoka-maru balançava no marulho uma lancha de perfil ligeiro. Rapidamente Alexandre Kravtsov e Jim Parkinson se meteram nela. Entretanto a bordo da nau-capitânia davam as últimas instruções.

— Recordais tudo bem? — Disse o engenheiro-chefe dos especialistas em energia nuclear.

— Senhores, desejo êxito! — Disse, solenemente, o majestoso representante do conselho de segurança.

— Lastimo não me terem deixado ir contigo. — Acrescentou Ali-Ovsad.— Não vos entretendes, meus caros. Após ligardes o mecanismo, voltai

imediatamente à lancha e a casa. — Disse Morozov.— Boa viagem! — Tokunaga disse em voz baixa.Dentro dos escafandros azul-acinzentados, Kravtsov e Parkinson desceram à lancha.

A lancha se afastou rapidamente deixando a trás seu branco rastro. Da coberta do Fukuoka as pessoas lhes gritavam agitando as mãos e nas cobertas superiores dos outros barcos se via uma quantidade de gente que também os saudava gritando e agitando as mãos. Entretanto, a bordo do Fewries ecoaram os instrumentos de sopro da orquestra militar e do Ivã Kulibin se ouviu um prolongado e potente hurra.

— Jim, tiveste ocasião de passar revista? — Kravtsov tentava esconder sob zombaria a alegre emoção que o embargava.

— Sim, sir — Jim, como sempre é invulnerável e um pouco desdenhoso. — Quando era rapaz trabalhava como vaqueiro dum rancheiro louco, que no rancho organizava revista às vacas.

Atrás do curvo horizonte do oceano se elevava a plataforma. Primeiramente se viu o extremo superior, depois emergiu todo o corpo, que havia tempo perdera o festivo aspecto branco: Fumegante, cortada em todos os lados com o maçarico de autógeno,

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com hematomas dos golpes sofridos. A alta borda da plataforma já tapou o céu e o mar. A plataforma girou lentamente em volta da coluna, à qual se amarrou um barco com leme fixo em posição de virar. Evacuaram a tripulação e as caldeiras foram mantidas por um fogareiro automático.

A lancha se deteve junto ao cais. Alguém da brigada, enganchando com agilidade o gancho ao ferro do parapeito, disse num mau inglês.

— Hoje é um grande dia.E sorriu respeitosamente.Kravtsov e Parkinson subiram ao cais. A cada passo rangia a fibra-de-vidro dos

escafandros. Através dos visores dos capacetes refratários tudo o que os rodeava parecia pintado de amarelo.

Subiram na escada em ziguezague. Era difícil sem elevador: 30m. Os estreitos degraus de aço vibravam sob os pés. Os dois avançavam se encarrapitando. Paravam cada vez com mais freqüência, nos patamares da escada, pra tomar alento. Ali de cima a branca lancha sobre a água cinzenta parecia um brinquedo de plástico pra menino.

Enfim chegaram à coberta superior.Foram lentamente ao longo do terraço despovoado da sala de oficial, ao longo da fila

de camarotes com portas abertas junto aos montes de andaimes de madeira e metal, colocados desordenadamente e já desnecessários. A grua a vapor, com seu comprido pescoço inclinado, parecia os cumprimentar.

A vista se turvava com o interminável fulgor dos relâmpagos, que se chocavam de encontro à coluna sobre as cabeças, estalando.

— Parece que se ampliou. — Pensou Kravtsov acerca do misterioso campo da coluna e, premeditadamente, deu uns passos até o centro da plataforma e depois em direção contrária, até a borda. Em direção contrária, se realizava com mais dificuldade.

Aumentou. O aparelho de controle instalado num poste junto ao estrado o confirma.Chegaram à plataforma. A enorme caixa de embalagem instalada na plataforma

parecia um torpedo. E foi assim que Kravtsov não viu a bomba atômica. Transportaram o pirilampo à plataforma numa caixa de embalagem especial cum dispositivo que dirigiria a explosão segundo o plano horizontal. Na parte exterior só se viam os arames dos instrumentos cobertos com redes de cobre. O olho mágico de segurança estava aceso com a luz verde, o mesmo que no dia anterior na tarde, depois dum comprido e duro dia de prova, sintonização e verificação.

Sob o estrado havia um tubo cheio de anéis prensados de combustível sólido pra foguete: O mais simples motor a reação. No dia anterior uma plataforma igual a essa, sem bomba mas com uma barra de aço, impulsionada por um motor igual, deslizou nos carris até o centro da plataforma, cada vez mais acelerada. A coluna a atraía e se chocando de encontro a sua negra superfície, se elevou juntamente com ela na velocidade dum avião de passageiro.

Foi um espetáculo horroroso.Kravtsov e Parkinson ligaram as pilhas de alimentação do aparelho de comunicação.

Nos capacetes laringofônicos surgiu o sussurro habitual.— Me ouves? — Perguntou Kravtsov.— Sim. Comecemos?— Comecemos!Em primeiro lugar tem que se tirar os calços. Mas aconteceu que não era tão fácil: A

plataforma os apertava com as rodas. Tiveram que apanhar umas barras e, as empregando como alavanca, fazer retroceder um pouco a plataforma.

Tiraram os calços. Depois Kravtsov pôs cuidadosamente as agulhas do primeiro mecanismo de relojoaria unido ao detonador do motor a reação. Fez um sinal a Jim, que

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apertou o botão de arranque.Se apagou o olho mágico verde e se acendeu o vermelho.E já está tudo. Exatamente dentro de 4h funcionará o mecanismo de

relojoaria e o motor a reação ao se movimentar arrastará o estrado até a coluna negra Ao chocar contra a parede porá em movimento o segundo mecanismo ligado à espoleta da bomba atômica. Ele regula a espoleta com atraso de 7min. Em 7min a coluna levará a caixa de embalagem com a bomba à altura de 60km, e então acionará a espoleta, e o pirilampo estalará como é de lei. A explosão dirigida destroçará a coluna, interromperá o curto-circuito e imediatamente se ligarão os dispositivos automáticos. Os potentes campos-de-força criados pela instalação se combinarão com o da coluna segundo o calculado, e a obrigarão a mudar de direção. A coluna parará. A parte superior cortada da coluna ficará no espaço, uma vez que já formou mais de uma volta em redor da Terra. Fará mal a ninguém.

E hoje na tarde, em todas as cidades do mundo, se acenderá a iluminação. Oxalá pudesse voltar a Moscou ainda nesta tarde!

Tudo está feito e podemos ir embora. Em 4h não só se pode chegar ao Fukuoka-maru na lancha, como beber chá com Ali-Ovsad.

Kravtsov não tinha pressa. Levantou a viseira do capacete refratário pra comprovar ao ouvido se funcionava o mecanismo de relojoaria. Jim também levantou a viseira. O ar quente lhes queimava a cara.

Tic-tac, tic-tac, tic-tac...O mecanismo de relojoaria a bordo da plataforma despovoada vai contando os

segundos diligentemente e com clareza.— Bem, vamos, Jim.E de repente, no tique-taque do mecanismo de relojoaria, se introduziu um novo som.

Era também outro tique-taque, mas não coincidia com o primeiro. Era de tom mais baixo e mais rápido, com ligeira toada musical.

Nunca alguém soube por que o cronômetro da espoleta da bomba atômica se ligou por si. Devia se ligar depois de 4h, ao chocar o estrado com a coluna negra. Mas naquele momento...

Kravtsov olhou, estupefato, a Parkinson, que retrocedia pouco a pouco. Os lábios tremiam, os olhos refletiam horror.

7min! Só 7min e a carga explosiva fará chocar com força dois pedaços de plutônio. Uma explosão violenta varrerá a plataforma e, juntamente com ela, a instalação...

Enquanto a coluna negra, a 250m daqui talvez nada sofra. A explosão não a alcançará: A bomba tem de estar junto dela!

Tic-tac, tic-tac, tic-tac...O tique-taque do cronômetro se cravava na cabeça. Desmontar o mecanismo, o

parar?... Em 7min? É uma patetice.Fugir, se lançar a baixo, até a lancha? Não temos tempo pra nos afastarmos a uma

distância que nos proteja.Não há salvação possível. Não há salvação possível.O que poderão fazer depois, sem nós, sem a plataforma?Construir uma plataforma nova, uma nova instalação?.. Mas os raios cósmicos não

estarão esperando.Não!Não!Quanto tempo já passou? Meio minuto? Tic-tac...Kravtsov, de súbito, se lançou contra a parte posterior do estrado o empurrando com

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força.— Venha, Jim, depressa!As mãos de Jim estavam junto das dele. Tentaram deslocar a pesada plataforma, que

não cedia. Um empurrão, outro...— Vamos!... — Kravtsov gritava asperamente. — Vamos! Empurrai com força!Deslizes!O estrado se moveu e deslizou nos carris. Eles correram, empurrando com as mãos.

Mais depressa!Já não se pode respirar. O ar queimava como fogo a garganta. Não tiveram tempo de

baixar a viseira.O estrado começou a se acelerar e a coluna o atraía. Um pouco mais e deslizará só, a

coluna o recolherá e elevará a cima em velocidade de quase 9km/min. Kravtsov viu a esfera do intervalômetro. Só se perderam 2min. Têm tempo. A bomba explodirá bem no alto!

Se não a 60km ao menos a 40km...A nós nada sucederá, taparemos as caras com os escafandros herméticos e

deitaremos de bruços sobre a coberta.A irradiação? Temos os escafandros herméticos e os da lancha também.Nada sucederá! Só que se tem de acelerar mais. Venha outro empurrão!Não quero morrer.Se ouviu a voz afogada de Jim.— Basta. Deslizará sozinha.— Um pouco mais! Vamos!Correria desenfreada! Jim tropeçou na cabeça saliente dum parafuso, caiu de

comprido e sentiu uma dor aguda na mão.— Alto! — Gritou, quase se afogando.Mas Kravtsov corria.— Alexandre, pares!— O que aconteceu? Por quê?Um pensamento horroroso passou na cabeça de Jim.— Á-a-a-a!Freneticamente começou a bater com a mão sã no carril, se arrastou e, com os olhos

fixos, olhava o escafandro de Kravtsov, que se afastava.Kravtsov já não corria atrás do estrado. Não podia se desgrudar nem se despender

dele. E os pés deslizavam, sem querer, na coberta.É uma queda horizontal. O mesmo que cair num precipício.— Alexa-a-a-a...Os espasmos estrangulando Jim.A plataforma alcançou a nuvem de vapor junto à base da coluna. Apareceu durante

um instante o escafandro azul-acinzentado. Um golpe seco. Jim fechou os olhos abrasados.

De repente, teve a idéia de avisar e salvar as pessoas que estavam na lancha. Jim se levantou, cum salto, e correu, ofegante, ao extremo da plataforma.

Dobrando o corpo sobre o lado de bombordo, abriu e fechou a boca sem emitir som. Nenhum grito saía. Não podia recobrar o alento.

Os japoneses da lancha o viram. O observavam com a cabeça levantada.— Todos a baixo! — Pronunciou Jim por fim. — Sob a coberta! Fechar as

escotilhas! Fechar os escafandros! De bruços!Ali em baixo começaram a correr.Jim, cum puxão, abriu a tampa da escotilha da coberta. Gritando com a dor aguda da

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mão, se introduziu, cum salto, na escotilha. Escuridão e calor sufocante.Fechou a tampa.Nesse momento a plataforma estremeceu. Se ouviu o ruído longínquo e surdo duma

explosão, ruído prolongado e baixo.

37Nos barcos da flotilha se arriaram as bandeiras a meio-pau.O salão do Fukuoka-maru estava inundado de luz elétrica. Ali estavam reunidos

todos nossos conhecidos, os heróis desta narrativa.Só estavam ausentes Will e Norma Hampton. Certamente estavam no camarote.Também estava Jim Parkinson. Quando se produziu a labareda no céu e ecoou a

explosão, foi à plataforma o barco de socorro, com engenheiros especialistas em energia nuclear e uma tripulação voluntária. Encontraram no diminuto camarote da lancha três assustados marinheiros japoneses que só sabiam que antes da explosão aparecera em cima um homem com escafandro e lhes gritara palavras de advertência pra se porem a salvo. Os voluntários, com trajes protetores, subiram e percorreram, procurando, toda a coberta da plataforma. Os contadores gáiguer pregados aos escafandros, indicavam que o nível de irradiação não era tão grande. Estiveram procurando durante várias horas e quando já perderam a esperança de encontrar Kravtsov e Parkinson, o voluntário Chulkov, ao levantar bruscamente a tampa duma escotilha e iluminar com a lanterna, viu um homem com escafandro. Parkinson jazia em profundo estado de inconsciência.

Recobrou os sentidos na volta, no camarote do barco de socorro, mas não disse palavra e os olhos olhavam com expressão de demente. Só no hospital do Fukuoka-maru, Jim se recobrou um pouco da emoção e recordou o que acontecera. Então cessaram de procurar Kravtsov. Engessaram o braço partido de Jim.

Alexandre Kravtsov já não existia.No salão reinava o silêncio. De vez em quando o camareiro trazia numa bandeja

negra envernizada, montões de telegramas e os colocava na mesa perante Morozov e Tokunaga. Choviam felicitações de todos os continentes. Felicitações e pêsames. Morozov olhava os radiogramas e lia alguns a meia-voz. O acadêmico japonês permanecia imóvel, sentado no cadeirão, tapando os olhos com a mão. Hoje, sobretudo tinha um aspecto enfermiço.

A porta se abriu ruidosamente de par-a-par. No portal apareceu Will Macpherson, com a camisa desabotoada no peito e o casaco caído nos ombros de qualquer maneira. A queixada inferior avançava obstinada e provocadoramente.

— Olá! — Disse, abarcando com olhar ameaçador o salão. A voz era mais alta que de costume. — Boa tarde!, senhores.

Foi à mesa onde estavam sentados os dirigentes da operação. Se apoiou na mesa com as mãos e disse a Tokunaga, o envolvendo com o hálito de vapor de rum:

— Como estás?, sir.O japonês levantou lentamente a cabeça, mostrando uma cara cansada de cor branca

amarelada, sulcada por uma densa rede de ruga.— O que desejas? — Disse Tokunaga, com voz também enfermiça.— Desejo... Desejo perguntar... Por que-diabos enviaram esse rapaz a uma morte

certa?!Reinou um momento de silêncio mortífero.— Como te atreves?!, senhor Macpherson. — Morozov se ergueu, colérico. —

Como te atreves?— Te cales! — Bramou Will, e com uma palmada fez cair da mesa os impressos dos

radiogramas. — Te fechar a chave é o que se devia ter feito.— Te acalmes!, Macpherson. Serenes e imediatamente peças desculpa ao acadêmico

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Tokunaga.Tokunaga tocou na manga de Morozov.— Não tem importância. — Disse, em voz alta. — Senhor Macpherson tem razão.

Eu não devia ter consentido. Devia ter ido eu mesmo, porque... Porque o que mais pode me dar a vida?

A voz foi se debilitando e de novo tapou os olhos com a mão.Nesse momento Norma Hampton irrompeu na sala.— Will! Meu-deus! O que aconteceu contigo? — Lhe tirou as mãos da mesa e o

levou à porta. — Ficaste louco? Queres te matar?No umbral Will se encostou à guarnição da porta e as costas tremiam devido aos

gemidos. Norma ficou junto dele, o acariciando com a mão.Ali-Ovsad se aproximou de Will.— Não se deve chorar, ínglis. — Lhe disse, severamente — Não és uma moça. És

um homem. Kravtsov era meu amigo. Era amigo de todos nós.Ele e Norma pegaram no braço de Will e o levaram. E de novo reinou o silêncio no

salão.O estridente ringue-ringue do telefone estremeceu Tokunaga nervosamente. Morozov

pegou o telefone e atendeu à chamada.— Comunicação com Moscou. — Disse, se levantando.Tokunaga também se levantou e saiu do salão juntamente com Morozov.Na cabina de rádio Olovianikov foi ao encontro.— Ela está em nossa redação do Izvestia — Disse, em voz baixa, lhe estendendo o

telefone.— Marina Sergueievna? Fala Morozov. Me ouves? Marina Sergueievna, sei que aqui

não servem palavra de consolo mas permitas a este velho dizer que estou muito orgulhoso de teu marido.

●E é tudo.Certamente parece estranho que pra cortar a coluna negra o homem tivesse que

recorrer a tão velho e perigoso monstro como é a bomba atômica. Mas não vos esqueceis de que esta história aconteceu há meio século e então não havia emissora graviquântica. Além disso, sobre a essência do campo unitário, o homem começava então a o conceber.

O que houve depois? Se vos esquecerdes ligai a gravação acústica seguinte, do texto pro quarto ano da escola. Essa gravação vos recordará que os cosmonautas Micheliaev e Herrera saíram ao anel formado pela coluna negra que gira em volta da Terra e que depois recebeu o nome de anel de Kravtsov. Esses cosmonautas igualaram a velocidade da nave à do anel, saíram ao espaço com escafandro e fixaram nos extremos separados do anel os primeiros receptores das estações automáticas.

Agora no anel de Kravtsov estão montadas as estações cósmicas pros conjuntos de foguete, postos de comunicação cósmica e muitas outras coisas. Sabeis muito bem.

Agora, depois de termos conhecido Alexandre Kravtsov mais de perto, olhai outra vez o retrato no capítulo que se fala do anel de Kravtsov, no manual de geofísica. É um rapaz como outro qualquer. Não pensava ser herói.

Simplesmente, se esquecia com facilidade de si quando pensava nos outros.

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Os caranguejos andam na ilhaAnatólio Dneprov

1

–Ê!–Ê! Vão com cuidado! — Cookling gritou aos marinheiros.

Tinham água até a cintura. Depois de porem na borda do barco um pequeno caixote de madeira tentavam o arrastar ao longo.

Era o último caixote dos dez que o engenheiro trouxera à ilha.— Que calor danado! É um inferno! — Se lamentou Cookling, secando o pescoço

roliço e vermelho cum lenço colorido. Despiu a camisa empapada em suor e a deitou sobre a areia. — Te dispas, Bad. Aqui não há civilização.

Olhei melancolicamente a veloz escuna que se movia lentamente sobre as ondas a uns 2km da costa. Devia voltar por nossa causa no fim de vinte dias.

— Mas por que-diabos nos metemos neste inferno solar com tuas máquinas? — Disse a Cookling, enquanto tirava a roupa. — Com este sol, amanhã se pode enrolar tabaco com tua pele.

Não tem importância. Sol nos faz muita falta. A propósito, olhes: É exatamente meio-dia e o temos verticalmente sobre a cabeça.

— No equador é sempre assim, — resmunguei sem deixar de olhar a Paloma —segundo o descrevem todos os livros de geografia.

Os marinheiros se aproximaram e pararam silenciosamente diante do engenheiro, que, pausadamente metia a mão na algibeira da calça e tirou um molho de nota de banco.

— Chega? — Perguntou, lhes dando umas tantas.Um disse que sim com a cabeça.— Nesse caso, estais livres. Podeis regressar ao navio. Recordai, a capitão Gale, que

o esperamos dentro de vinte dias.— Mãos à obra, Bad — Cookling me disse. — Estou impaciente pra começar.O olhei fixamente.— Falando claramente, não sei pra quê viemos. Compreendo que no almirantado

talvez tivesses dúvida em me dizer tudo. Agora creio que o podes fazer.A face de Cookling se contraiu num esgar e olhou o solo.— Claro que se pode... E lá diria a ti se tivéssemos tempo.Pressenti que mentia mas nada disse. Entretanto Cookling, em pé, esfregava o

pescoço vermelho-púrpura com a roliça palma da mão.Sabia que quando ele mentiria. Sempre fazia isso.Agora confirmava.— Vejas, Bad, se trata duma experiência divertida pra verificar a teoria desse, como

se chama? — Se interrompeu e cravou os olhos nos meus, com olhar penetrante.— De quem?

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— Desse sábio inglês. Que-diabo! Me fugiu da cabeça o sobrenome... Á! Já sei! Charles Darwin.

Me aproximei até o tocar e pus a mão no ombro nu.— Ouças, Cookling. Naturalmente pensas que sou um rematado idiota e que não sei

quem é Charles Darwin. Deixes de mentira e digas claramente pra quê desembarcamos nesta parcela de areia ardente no meio do oceano. E peço que não me mintas mais com Darwin.

Cookling soltou uma gargalhada, abrindo a boca e mostrando os dentes postiços. Se afastou uns cinco passos e disse:

— E apesar de tudo és um pateta, Bad. Precisamente, comprovaremos aqui a teoria de Darwin.

— E pra isso trouxe dez caixotes cheios de ferro? — Perguntei, me aproximando de novo dele. Me queimava o sangue de ódio por esse gorducho reluzente de suor.

— Sim. — Disse, deixando de sorrir — E no que se refere a tuas obrigações, primeiro tens de abrir o caixote número 1 e tirar a tenda de campanha, a água, as conservas e o instrumental necessário pra abrir o resto dos caixotes.

Cookling falou como o fizera no polígono, quando mo apresentaram. Então, estava de uniforme militar tal com eu.

— Está bem. — Resmunguei, entredente, e me aproximei do caixote número 1.Em duas horas armamos ali mesmo, na beira-mar, a tenda de campanha.

Introduzimos nela a pá, a alavanca, o martelo, várias chaves-de-fenda, um corta-frio e outros instrumentos de ferreiro. Ali mesmo colocamos cerca de uma centena de latas de diferentes conservas e os reimplantes com água doce.

A pesar de ser chefe Cookling trabalhava como louco. Na verdade estava impaciente pra começar. Ao trabalharmos nem nos demos conta de que o Paloma levantara âncora e desaparecera além da linha do horizonte.

Depois de almoçarmos, começamos com o caixote número 2. Nele havia um carrinho vulgar de duas rodas, parecido aos usados nos cais de estação ferroviária pra transportar bagagem.

Me aproximei do terceiro caixote, mas Cookling me deteve.— Examinemos primeiramente o mapa. Teremos que distribuir e levar a diferentes

lugares o resto da carga.O olhei com assombro.— É necessário prà experiência. — Me explicou.A ilha era circular, como um prato voltado a baixo, com uma pequena baía ao norte,

precisamente onde desembarcamos. A bordejava uma praia de areia de cerca de 50m de extensão. Na continuação da faixa de areia começava um pequeno planalto de pouca elevação cum matagal de pouca altura e ressequido devido ao calor.

O diâmetro da ilha não passava de 3km.No mapa havia sinais com lápis encarnado: Uns ao longo da praia, outros no interior.O que tiraremos agora, temos de distribuir nestes lugares. — Disse Cookling.— O que é isto? Instrumentos de medição?— Não. — Disse o engenheiro e começou a rir. Tinha o costume exasperante de rir

quando alguém ignorava o que ele sabia.O terceiro caixote pesava terrivelmente. Supus conter uma máquina maciça de

ferramenta. Quando saltaram as primeiras tábuas pouco me faltou pra gritar de assombro. Dele deslizaram e caíram pranchas e barras metálicas de diversas dimensões e formas. O caixote eslava cheio de peças metálicas.

— Como se tivéssemos que jogar a paciência com cubos! — Exclamei, tirando os pesados lingotes: Paralelepípedos cúbicos, circulares e esféricos.

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— Qual quê! — Respondeu Cookling e começou com o caixote seguinte.O caixote número 4 e todos os seguirdes, até o 9, estavam cheios do mesmo: Peças

metálicas.Estas peças eram de três tipos: Cinzentas, vermelhas e prateadas. Sem grande

dificuldade distingui que eram de ferro, cobre e zinco.Quando começaria com o décimo e último caixote, Cookling disse:— Este abriremos após distribuir as peças na ilha.Nos três dias seguintes nos dedicamos a distribuir o metal na ilha. As peças ficavam

em pequenos montões. Uns sobre a areia, outros por indicação do engenheiro, enterrávamos. Nuns montões havia barras metálicas de todos os tipos, noutros, só dum tipo.

Quando terminamos tudo isso voltamos à tenda de campanha e nos aproximamos do caixote número 10.

— Abras, mas com cuidado. — Cookling ordenou.Esse caixote era muito mais leve que os outros e de menor dimensão.Nele havia serradura bem calcada, e no meio um pacote envolto em feltro e papel de

cera. Desembrulhamos o pacote.O que apareceu perante nós era um aparelho de forma estranha.À primeira vista parecia um grande brinquedo metálico pra menino, semelhante a um

caranguejo do mar. Todavia não era um caranguejo comum e corrente. Além das seis patas articuladas, na frente tinha mais dois pares de finos braços-tentáculos cujos extremos estavam escondidos no focinho entreaberto do horroroso animal. Numa cavidade do dorso do caranguejo, brilhava um pequeno espelho parabólico de metal polido cum cristal vermelho escuro no centro. A diferença do caranguejo brinquedo é que o do espelho tinha dois pares de olhos: Um na frente e outro atrás.

Durante longo tempo fiquei olhando, perplexo, o bicho.— Gostas? — Cookling me perguntou, depois dum largo silêncio.Encolhi os ombros.— Parece que na realidade só viemos pra brincar de quebra-cabeça de cubo e jogo

pra menino.— Isso é um brinquedo perigoso. — Pronunciou Cookling, com presunção — Agora

verás. O levantes e ponhas na areia.O caranguejo era leve. Não teria mais que 3kg.Na areia, se manteve com bastante estabilidade.— E o quê mais?— Perguntei, ironicamente, ao engenheiro.— Esperemos um pouco, que se aqueça.Nos sentamos na areia observando o monstro metálico. Ao cabo duns minutos

observei que o espelho das costas girava lentamente ao sol.— Ó! Parece que se anima! — Exclamei e me levantei.Quando fiquei em pé minha sombra caiu casualmente sobre o mecanismo e o

caranguejo, subitamente, começou a caminhar com suas patas e foi outra vez ao sol. Com todas essas coisas inesperadas dei um grande salto, me deitando ao lado.

— Bolas, ao brinquedo! — Cookling gargalhou — O quê? Te assustaste? Sequei o suor da testa.

— Digas, por amor-de-deus, Cookling: O que faremos aqui? Pra quê viemos?Cookling também se levantou e, se aproximando de mim, disse seriamente:— A comprovar a teoria de Darwin.— Mas essa é uma teoria biológica de seleção natural, evolução, etc. — Resmunguei.— Precisamente. A propósito, olhes: Nosso herói beberá água.Eu estava aniquilado. O brinquedo se aproximou da beira de água e deixando cair

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uma pequena tromba, absorvia água. Uma vez saciado, voltou outra vez ao sol e ficou imóvel.

Olhei essa pequena máquina e senti uma mescla de repugnância e medo. Durante um instante me pareceu que o torpe caranguejo me fazia lembrar algo, o próprio Cookling.

Depois de certa interrupção, perguntei ao engenheiro:— Foste quem inventou isto?— Isso mesmo. — Quase bramou, admitindo, e se deitou na areia.Também me deitei e, calado, pus os olhos no estranho aparelho, que parecia

inanimado.Me arrastei, de bruços, até o aparelho e comecei a o observar.O dorso do caranguejo era a superfície dum semicilindro de bases planas tanto na

frente como atrás. Em cada uma havia duas aberturas afastadas, parecidas com os olhos. Essa impressão era acentuada pelo brilho duns cristais que havia no interior do corpo. Sob o corpo se viu uma plataforma plana, o ventre. Um pouco acima do nível da plataforma, e no interior do corpo, saíram três grandes pares e dois pequenos pares de tentáculos com pinça.

O interior do caranguejo não se podia ver.Olhando esse brinquedo eu tentava compreender por que o almirantado lhe concedia

tanta importância, a ponto de equipar um barco especial pra o transportar à ilha.Cookling e eu continuávamos deitados na areia até que o Sol baixou, no horizonte,

tanto quanto a sombra dos arbustos que cresciam ao longe e chegou a cobrir um pouco o caranguejo metálico. E quando isso sucedeu começou a se mover ligeiramente e de novo se pôs ao sol. Mas a sombra o alcançou ali também. Então o caranguejo se arrastou ao longo da costa, se aproximando cada vez mais da água, que ainda continuava iluminada pelo Sol. Parecia que o calor solar lhe era imprescindível.

Nos levantamos e lentamente fomos atrás da máquina.Assim pouco a pouco demos a volta à ilha até aparecermos na parte ocidental.Aqui, junto à beira-mar, havia um dos montões de barras metálicas. Quando o

caranguejo ficou a cerca de 10m do montão, subitamente, e se esquecendo do sol, se lançou precipitadamente a ele e ficou imóvel junto a uma das barras de cobre.

Cookling me tocou o braço e disse:— Agora vamos à tenda do campanha. O interessante será amanhã na manhã.Na tenda de campanha jantamos sem dizer palavra e nos envolvemos depois, cada

um numa ligeira manta de flanela. Me pareceu que Cookling estava satisfeito por eu não lhe ter feito pergunta. Antes de adormecer ouvi que se virava dum lado a outro e às vezes ria. Sabia algo que ninguém conhecia.

2No dia seguinte, no início da manhã, fui tomar banho. A água estava temperada e

nadei durante bastante tempo no mar, contemplando como no oriente, sobre a superfície da água, apenas alterada pelas ondas, se elevava a purpúrea aurora. Quando voltei a nosso refúgio e entrei na tenda, o engenheiro militar já não estava.

— Deve ter ido contemplar seu monstro mecânico. — Pensei, e abri uma lata de ananás.

Ainda não comera três pedacinhos, quando se ouviu ao longe, no princípio debilmente e depois cada vez mais potente, a voz do engenheiro.

— Tenente, venhas correndo! Depressa! Corras àqui!Saí da tenda e vi Cookling que, no mato, agitava a mão.— Vamos! — Disse, ofegando como uma locomotiva. — Vamos! Depressa!— Aonde?, engenheiro.— Ande deixamos ontem nosso simpático brinquedo.

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O Sol já estava bastante alto quando chegamos ao montão de barras metálicas, que resplandeciam vivamente e a princípio nada pude perceber.

Quando não faltavam mais de dois passos pra chegar ao montão, percebi fios finos de fumaça azulada que se elevavam, e depois me detive como paralisado. Esfreguei os olhos, mas a visão não desapareceu. Junto ao montão de metal havia dois caranguejos exatamente iguais ao que tiráramos do caixote no dia anterior.

— Será possível que um estivesse enterrado na sucata metálica? — Exclamei.Cookling ficou várias vezes de cócoras e riu, esfregando as mãos.— Ao menos uma vez deixes de bancar o idiota! — Gritei — Donde surgiu o

segundo caranguejo?— Nasceu! Nasceu nesta noite.Mordi o lábio e, sem dizer palavra, me aproximei dos caranguejos, de cujos dorsos se

elevavam finos fios de fumaça. No começo me pareceu uma alucinação: Os dois caranguejos trabalhavam com zelo!

Sim, trabalhavam, como se costuma dizer, escolhendo o material com movimentos rápidos dos finos tentáculos dianteiros, que tocavam as barras metálicas e, criando nas superfícies um arco voltaico, como na soldadura elétrica, fundiam pedaços de metal. Os caranguejos metiam o metal nas largas bocas. No interior desses bichos metálicos ronronava algo. As vezes caía crepitando das fauces um feixe de chispa, depois, o segundo par de tentáculo tirava do interior as peças elaboradas.

Essas peças, por ordem determinada, se amontoavam na pequena plataforma que saía, pouco a pouco, sob o caranguejo.

Na plataforma dum dos caranguejos já estava quase montada a cópia acabada do terceiro caranguejo, enquanto no segundo apenas começavam a se perfilar os contornos. do mecanismo. Eu estava terrivelmente assombrado com o que via. Exclamei:

— Mas estes bichos construem outros semelhantes a si!— Exatamente. O único objetivo desta máquina é construir outras semelhantes. —

Disse Cookling.— Mas isso é possível? — Perguntei, já sem poder compreender.— Por que não? Qualquer máquina de ferramenta, por exemplo o torno, pode

elaborar peças pra outro torno igual. E me ocorreu fazer uma máquina-autômato que pode se reconstruir do princípio ao fim. O modelo desta máquina é meu caranguejo.

Fiquei pensativo, procurando compreender o que o engenheiro dissera. Nesse momento as fauces do primeiro caranguejo se abriam e dali deslizou uma larga cinta metálica, que envolveu todo o mecanismo montado na plataforma, assim formando o dorso do terceiro autômato. Quando o dorso estava montado as rápidas patas dianteiras soldaram as paredes anterior e posterior com os orifícios e o novo caranguejo já estava pronto. Tal como os irmãos, numa cavidade das costas brilhava o espelho metálico com o vidro vermelho no centro.

O caranguejo produtor retirou a plataforma sob o ventre e o filho ficou em sobre as quatro patas na areia. Notei que o espelho do dorso começou a girar lentamente buscando sol. Um pouco depois o caranguejo foi à beira-mar e saciou a sede. Em seguida ficou ao sol, imóvel, se aquecendo.

Pensei que era tudo um sonho.Estava observando o recém-nascido, quando Cookling disse:— Já está pronto o quarto.Voltei a cabeça e vi que nascera o quarto caranguejo.Entretanto, os dois primeiros continuavam com a mesma coisa no montão de metal, o

cortando e tragando, repetindo o já feito antes.O quarto caranguejo também foi beber água.

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— Que-diabo! Por que bebem água?— Pra carregar o acumulador de eletrólito. Enquanto há sol a energia se transforma

em eletricidade devido ao espelho do dorso e à bateria de silício. Essa energia basta pro trabalho diurno e pra recarregar o acumulador. Na noite o autômato se alimenta da energia armazenada no acumulador durante o dia.

— Então os bichos trabalham dia e noite?— Sim. Dia e noite sem descansar.O terceiro caranguejo começou a se agitar e também se arrastou ao montão de metal.

Trabalhavam já três autômatos, enquanto o quarto se carregava de energia solar.— Mas não há material pràs baterias de silício nestes montões de metal. — Objetei,

procurando compreender a tecnologia da monstruosa autoprodução mecânica.— Nem faz falta. Aqui há a que se quiser. — Cookling atirou, toscamente, com o pé

um pouco de areia. — A areia é um óxido de silício. No interior do caranguejo, devido à ação do arco elétrico, se consegue obter silício puro.

Na tarde regressamos à tenda de campanha, quando no montão de metal já trabalhavam seis autômatos e dois se aqueciam ao sol. Perguntei a Cookling, durante o jantar:

— Pra quê tudo isso?— Pra guerra. Esses caranguejos são uma horrível arma de sabotagem. — Disse,

sinceramente.— Não compreendo, engenheiro.Cookling terminou de mastigar o guisado e, sem pressa, explicou:— Imagines o que aconteceria se ficassem escondidos em território inimigo.— E então? — Perguntei, deixando de comer.— Sabes o que é progressão?— Suponhamos que sei.— Ontem começamos com 1 caranguejo, agora já há 8. Amanhã haverá 64, depois

de amanhã 512, e assim sucessivamente. Dentro de dez dias haverá mais de 10 milhões. Pra isso fazem falta 30.000t de metal.

Ao ouvir estas cifras fiquei mudo de assombro.— Sim, mas...— Os caranguejos, em certo espaço de tempo, podem comer todo o metal do

inimigo, todos os carros blindados, canhões, aviões, etc. Todas as máquinas de ferramenta, mecanismo, instalação. Todo o metal do território. No fim duns meses nem 1g fica de metal resta em toda a esfera terrena. Todo o metal se converte na produção dos caranguejos. Tenhas em conta que durante a guerra o metal é o material estratégico mais importante.

— Então é por isso que o almirante está tão interessado em teu brinquedo!— Exatamente. Mas isso é só o primeiro modelo. Quero o simplificar

consideravelmente e com ele acelerar o processo de reprodução automática. O acelerar, digamos, em duas ou três vezes. Fazer uma construção mais estável e rígida. Os fazer mais móveis. Elevar a sensibilidade dos localizadores de metal. Então, durante a guerra, meus autômatos serão piores que a peste. Quero que o inimigo perca todo o potencial metálico em dois ou três dias.

— Mas quando os autômatos devorarem todo o metal do território inimigo se arrastarão até seu território!

— Isso é outra questão. O trabalho dos autômatos se pode codificar, e sabendo a chave, o interrompemos quando aparecerem em nosso território. A propósito, assim se pode trazer a nosso território todas as reservas de metal do inimigo.

Nessa noite tive sonhos horríveis. Avançavam, se arrastando até mim, legiões de

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caranguejos metálicos, fazendo ruído com os tentáculos e com finas colunas de fumaça azul subindo do corpo.

3Os autômatos de engenheiro Cookling no fim de quatro dias povoaram toda a ilha.Segundo seus cálculos havia mais de 4000.Os corpos reluzentes ao sol se viam em toda parte. Quando acabava o metal dum

montão, começavam a procurar na ilha e encontravam novos montões.No quinto dia, no pôr-do-sol, fui testemunha duma cena horrorosa: Dois caranguejos

lutavam por um pedaço de zinco.Isso sucedeu na parte sul da ilha, onde enterráramos várias barras de zinco. Os

caranguejos que trabalhavam em lugares diferentes iam periodicamente àli pra elaborar a peça de zinco correspondente. E aconteceu que se apresentaram na cova de zinco ao mesmo tempo umas duas dezenas de caranguejos e começou um verdadeiro tumulto. Os mecanismos se importunavam mutuamente. Disso tudo se destacava um caranguejo mais ágil que os outros e, segundo me parecia, mais sem-vergonha e forte.

Empurrando os irmãos e se arrastando sobre eles, tentava apanhar do fundo da cova um pedaço de metal. Quando já alcançara a meta outro caranguejo agarrou o mesmo pedaço com as pinças. Ambos os mecanismos puxavam a seu lado. O que segundo apareceu era mais ágil e arrancou o pedaço do adversário. Contudo o primeiro não se conformou em ceder o troféu e, correndo atrás do outro, se sentou em cima e lhe meteu os finos tentáculos na boca.

Os tentáculos do primeiro e do segundo autômatos se enredaram e com força descomunal começaram a se destroçar.

Nenhum mecanismo ao redor prestou atenção. Todavia entre esses dois se desenrolou uma luta mortífera. Vi que o caranguejo que estava encima de repente caiu de costas e a plataforma de ferro deslizou abaixo, deixando a descoberto a entranha. Nesse momento o inimigo começou a cortar o corpo dele com o arco elétrico. Quando o corpo da vítima se desfez em partes o vencedor começou a arrancar as barras, carretes, condutores e a os meter rapidamente na boca.

À medida que as peças conseguidas assim iam ao interior do rapinador a plataforma começou a se deslocar rapidamente a diante, se realizando nele a febril montagem dum novo mecanismo.

Uns minutos depois o novo caranguejo deslizou da plataforma à areia.Quando contei a Cookling tudo o que vira, se limitou a dar seu risinho.— Isto é precisamente o que faz falta.— Pra quê?— Já disse que quero aperfeiçoar meus autômatos.— E depois? Tomes os planos e penses como os refazer. Pra quê essa guerra civil?

Assim, se comerão mutuamente.— É isso mesmo! E sobreviverão os mais perfeitos.Depois de pensar, objetei:— O que significa os mais perfeitos? Se todos são iguais, segundo entendi, se

reproduzem por si.— O que achas? Se pode elaborar uma cópia igual ao original? Certamente deves

saber que inclusive na produção de bola pra chumaceira não se podem fazer duas bolas exatamente iguais. Contudo ali é mais fácil conseguir. Aqui, o autômato produtor tem um sistema comparador, o qual compara a cópia a fazer com sua construção. Imagines o que aparecerá se cada cópia seguinte se elabora segundo a cópia anterior e não segundo o original? No fim de conta pode resultar um mecanismo distinto do original.

— Mas se não se parecer com o original não cumprirá a função fundamental de se

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reproduzir.— E depois? Com seu cadáver outro autômato fará cópias mais acertadas. As cópias

acertadas serão precisamente as em que de maneira estritamente casual se acumulam as particularidades construtivas que as fazem mais vitais. Assim devem surgir cópias mais fortes, mais rápidas e mais simples. Eis porque não penso quebrar a cabeça com os planos. Só me resta esperar que os autômatos devorem todo o metal e comecem a guerra entre si, se devorando mutuamente e se reproduzindo. Assim surgirão os autômatos que me fazem falta.

Nessa noite estive muito tempo sentado na areia diante da tenda, olhando o mar e fumando. Será possível que Cookling tenha realmente tentado um empreendimento de grave conseqüência à humanidade? Será que nesta pequena ilha perdida no oceano tenhamos cultivado uma terrível peste capaz de devorar todo o metal da esfera terrena?

Enquanto eu estava sentado pensando em tudo isso passaram junto a mim vários bichos metálicos. Caminhavam sem cessar de trabalhar incansavelmente, com o chiar dos mecanismos. Um dos caranguejos tropeçou em mim e eu, com repugnância, lhe dei um pontapé. O caranguejo se voltou e ficou impotente, de barriga a cima. Quase momentaneamente se lançaram sobre ele outros dois caranguejos e, na escuridão, refulgiu faísca elétrica que cegavam.

Cortavam eletricamente o infeliz em pedaços! Pra mim aquilo era o cúmulo. Rapidamente fui à tenda de campanha e tirei do caixote uma barra. Cookling já estava roncando. Cautelosamente me aproximei do grupo de caranguejo e com toda força bati com a barra num deles. Não sei por quê mas pensei que isso espantaria os outros. Porém nada parecido sucedeu. Sobre o caranguejo que eu destroçara se lançaram outros e de novo refulgiu faísca.

Reparti uns quantos golpes mais mas isso só aumentou a quantidade de faísca elétrica. Do interior da ilha acudiram uns quantos bichos mais.

Na escuridão só via os contornos dos mecanismos e nesse tumulto me pareceu que um era particularmente grande.

Fiquei branco. Contudo, quando a barra tocou suas costas dei um grito e saltei ao lado: Recebera uma descarga elétrica através da barra! O corpo desse bicho, não sei por quê, tinha um alto potencial elétrico. A frase Proteção originada pela evolução atravessou minha mente.

Com o corpo tremendo me aproximei do ruidoso grupo de mecanismo pra recuperar minha barra. Quem poderia dizer que estava lá? Na escuridão, à luz irregular de muitos arcos elétricos, vi como cortavam a barra em pedaço. Aquele que com mais obstinação o fazia era o autômato maior, o que eu queria destruir.

Regressei à tenda de campanha e me deitei na cama.Durante um tempo pensei cair em sono pesado. Mas, ao que parece, não durou

muito. O despertar foi repentino: Sentia que em meu corpo se arrastava uma coisa fria e pesada. Me levantei cum salto. O caranguejo (no primeiro momento não refletira sobre isso) desapareceu no interior da tenda. No fim dalguns segundos vi uma deslumbrante faísca elétrica. O maldito caranguejo viera aonde estávamos procurando metal. Seu eletrodo estava cortando a lata de água doce.

Sacudindo rapidamente Cookling, o despertei e desoladamente expliquei o caso.— Todas as latas ao mar! A provisão e a água ao mar! — Ordenou.Começamos a transportar as latas ao mar e as colocar no fundo arenoso, onde a água

nos chegava à cintura. Levamos também até lá todo nosso instrumental.Encharcados e sem força, permanecemos sentados na beira-mar sem dormir, até o

amanhecer. Cookling ofegava e eu, no íntimo, me alegrei de que lhe tocasse a conseqüência de sua ação. Naquele momento o odiava e lhe desejava ansiosamente um

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castigo maior.

4Não me recordo quanto tempo passara desde que chegamos à ilha. Só sei que num

magnífico dia Cookling declarou, solenemente:— O mais interessante começará agora. Todo o metal se esgotou. Efetivamente,

corremos todos os sítios onde estava o material metálico e ali nada restava. Ao longo da costa e entre os matos se viam buracos vazios.

Os cubos, lingotes e barras metálicas se converteram em mecanismos que em grande quantidade corriam dum lado a outro na ilha. Seus movimentos já eram rápidos e impetuosos. Os acumuladores estavam carregados a mais não poder e não gastavam energia no trabalho. Estupidamente corriam procurando na costa, se arrastavam no mato da elevação, se chocavam entre si e freqüentemente conosco.

Os observando me convenci que Cookling tinha razão. Os caranguejos efetivamente eram diferentes. Se diferenciavam pela magnitude das pinças, pelo volume da boca-oficina. Uns eram mais ágeis, outros menos. Pelo visto havia grandes diferenças no mecanismo interno. Cookling disse:

— Então já é hora de começarem a lutar.— Disseste a sério?— Claro. Pra tal é suficiente lhes dar a provar um pedaço de cobalto. O mecanismo

está construído de tal maneira que se introduzindo nele, ainda que seja uma quantidade insignificante deste metal, se desfaz (se assim podemos chamar) o respeito mútuo.

Na manhã seguinte Cookling e eu fomos a nosso armazém marinho. Do fundo tiramos a porção correspondente de conserva, água e quatro barras cinzentas e pesadas de cobalto, reservadas especialmente pelo engenheiro à etapa decisiva da experiência.

Quando Cookling voltou à praia, levando no alto as barras de cobalto, imediatamente o rodearam vários caranguejos, que não passavam do limite da sombra do engenheiro mas se notava que a aparição do novo metal os desassossegara. Eu estava a uns passos do engenheiro e observava, com assombro, que alguns mecanismos tentavam saltar desajeitadamente.

— Vejas que variedade de movimento! Como não se parecem com os outros. E nesta guerra civil a que os obrigaremos, sobreviverão os mais fortes e aptos, que darão uma geração mais perfeita.

Com essas palavras Cookling lançou os pedaços de cobalto, uns após outros, até os arbustos.

O que se seguiu a isso é difícil descrever.Sobre o metal caíram vários mecanismos ao mesmo tempo e, se empurrando

mutuamente, começaram a os cortar eletricamente. Outros se juntavam atrás, inutilmente tentando apanhar um pedaço de metal. Vários se encarrapitaram sobre as costas dos companheiros e se arrastaram, tentando chegar ao centro.

— Eis a primeira batalha! — Exclamou, alegremente, o engenheiro militar, aplaudindo.

Ao cabo duns minutos o lugar onde Cookling pusera as barras metálicas se converteu na arena duma horrível batalha à qual acudiam, correndo, novos e novos autômatos.

À medida que as partes cortadas dos mecanismos e o cobalto paravam nas mandíbulas de novas máquinas elas se transformavam em selvagens e intrépidas feras e imediatamente se lançavam sobre as parentes.

Na primeira fase da batalha os atacantes foram os que provaram cobalto e cortavam em partes os autômatos que vieram de todas as partes na esperança de adquirir o metal necessário. Contudo à medida que cada vez mais caranguejos provavam o cobalto a batalha ficava mais feroz. Nesse momento começaram a tomar parte no jogo os recém-

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nascidos, criados na contenda.Era uma assombrosa geração de autômatos! Menores e de velocidade colossal. Me

admirou que não necessitassem carregar o acumulador.Lhes era suficiente a energia solar captada pelos espelhos do dorso, muito maiores

que os correntes. sua combatividade era surpreendente. Atacavam ao mesmo tempo vários caranguejos e os cortavam em dois ou três duma só vez.

Cookling estava em pé na água e a fisionomia expressava satisfação sem limite. Esfregava as mãos e proferia:

— Bom! Muito bom! Imagino o que virá!No que se refere a mim, olhava essa luta mecânica com grande repugnância e horror.

O que surgirá como resultado dessa luta?Cerca do meio dia toda a praia junto a nossa tenda de campanha se convertera num

enorme campo de batalha. Vieram os autômatos de toda a ilha. A guerra decorria em silêncio, sem grito nem gemido, sem estrondo nem estampido de canhão. As faíscas dos numerosos eletrodos, zumbido e chiado dos corpos metálicos das máquinas acompanhavam a descomunal matança.

Ainda que a maior parte da geração que surgira então fosse de pouca estatura e muito ágil, já começaram a surgir novas espécies de autômato, que superavam consideravelmente os outros em tamanho. Os movimentos eram lentos mas se percebia uma grande força e se defendiam com êxito dos autômatos anões.

Quando o Sol começou a declinar, nos movimentos dos mecanismos pequenos de repente se iniciou uma mudança brusca: Todos se agruparam na parte ocidental e começaram a se mover com mais lentidão.

— Que-diabo! Toda esta companhia está sentenciada! — Disse Cookling, com voz rouca — Mas se não têm acumulador! Enquanto o Sol se põe sucumbem.

Efetivamente, quando a sombra dos arbustos se estendeu o suficiente pra cobrir a grande multidão de pequenos autômatos, ficaram imóveis. Já não era um exército de pequenos rapinadores agressivos mas apenas um enorme ferro-velho.

Sem se apressarem, se aproximaram deles os enormes caranguejos de mais de 0,5m de altura, e começaram a os devorarem uns atrás dos outros. Nas plataformas dos gigantes se viam os contornos duma geração ainda maior.

Cookling franziu o cenho. Estava à vista que essa evolução não lhe caía bem. Os caranguejos lentos e de grande tamanho eram um instrumento muito deficiente pra sabotagem na retaguarda inimiga.

Enquanto os caranguejos gigantes desfaziam a pequena geração, se restabeleceu na praia temporariamente a tranqüilidade.

Saí da água e o engenheiro me seguiu calado. Fomos à parte oriental da ilha, pra descansar um pouco.

Estava muito cansado e adormeci quase imediatamente ao me deitar à vontade na areia aquecida e macia.

5Na meia-noite um grito arrepiante me despertou. Quando fiquei em pé, cum salto,

nada mais vi além da franja cinzenta da praia arenosa e o mar que se unia ao céu negro semeado de estrela.

O grito se repetiu ao lado do matagal mas mais débil. Só então me dei conta de que Cookling não estava a meu lado. Corri aonde me parecia ter vindo sua voz.

O mar, como sempre, estava muito tranqüilo e as pequenas ondas só de vez em quando, com um chapinhar mal perceptível, deslizavam à areia. Contudo, parecia que a superfície do mar onde deixáramos no fundo a reserva de víver e recipiente de água doce se agitava. Algo mergulhava e chapinhava ali.

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Pensei que Cookling estava ali, ocupado nalgo.— Senhor engenheiro, o que fazes aqui? — Gritei, me aproximando de nosso

armazém submarino.— Estou aqui! — Ouvi inesperadamente. A voz vinha da direita.— Meu-deus! Onde estás?— Aqui. — Ouvi de novo a voz do engenheiro — Estou com a água até o pescoço,

venhas.Me meti na água e tropecei nalgo duro. Era um enorme caranguejo que se metera na

água e estava em pé sobre as grandes patas.— Por que te meteste por aí dentro? O que fazes aqui?— Me perseguiam e me obrigaram a me meter aqui. — Guinchou, compungido, o

gorducho.— Quem te perseguia?— Os caranguejos.— Não pode ser! Mas não me perseguem.De novo tropecei, na água, num autômato e dei uma pequena volta, o evitando.

Enfim cheguei junto ao engenheiro. Efetivamente estava com a água até o pescoço.— Digas o que aconteceu.— Nem eu compreendo. — Pronunciou, com voz trêmula — Quando estava

dormindo um dos autômatos, inesperadamente, me atacou. Pensava que fora uma casualidade e me afastei, mas de novo começou a se aproximar e me tocou na cara com a pinça... Então, me levantei e me afastei ao lado. O caranguejo atrás. Corri. O caranguejo detrás. Se uniu a outro. Depois outro. Um pelotão. E me encurralaram aqui.

— É estranho. Até agora nada acontecera parecido. Em todo o caso, se como resultado da evolução, o instinto anti-humano se desenvolveu, não me perdoariam.

— Não sei. No entanto tenho medo de ir à margem.— Tolice. — Lhe disse, pegando a mão. — Vamos até oriente, paralelamente à

costa. Te defenderei.— Como?— Agora nos aproximemos do armazém e pegarei em qualquer objeto pesado, por

exemplo, um martelo.— Te acauteles se for metálico! — Gemeu o engenheiro. — É melhor tirar uma

tábua dum caixote, algo de madeira.Deslizamos lentamente ao largo da costa. Quando chegamos ao armazém deixei o

engenheiro só e me aproximei da margem.Se ouvia um grande chapinhar na água e o conhecido chiar dos mecanismos.Os bichos metálicos despedaçaram as latas de conserva. Alcançaram nosso armazém

submarino. Gritei:— Cookling, estamos perdidos! Devoravam todas as latas de conserva.— Sim? — Exclamou, lastimosamente.— O que faremos?— Isso correrá por tua conta. A culpa é de teu imprudente empreendimento.

Escolheste o tipo de arma de sabotagem que gostavas. Agora desfaças a encrenca.Dei a volta, rodeando os autômatos, e saí à praia.Ali, na escuridão, me arrastando entre os caranguejos, recolhi, apalpando na areia,

pedaços de carne, ananases, maçãs e algumas outras conservas e os levei à elevação arenosa. A julgar pela quantidade que espalharam na praia, esses bichos trabalharam lindamente enquanto dormíamos. Não encontrei lata inteira.

Enquanto me ocupava em recolher os restos da provisão Cookling estava a uns vinte passos da margem, metido na água até o pescoço.

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Estava tão ocupado em recolher o resto e tão desgostoso, que me esqueci de sua existência. Contudo, breve me recordou com um grito agudo.

— Meu-deus! Bad, me ajudes! se aproximam!Me lancei à água e, tropeçando nos monstros metálicos, fui aonde estava Cookling. E

ali a uns cinco passos de si, tropecei no dito caranguejo.O caranguejo não fez caso de mim.— Com os diabos! Porque te odeiam tanto? Se tu, como quem diz, é teu progenitor!— Não sei. — Gemeu o engenheiro, com estertor — Faças algo, Bad, pra os

afugentar. Se aparecer um caranguejo mais alto que este estarei perdido.— Bolas à evolução. À propósito: Qual é o ponto mais vulnerável dos caranguejos?

Como danificar o mecanismo?— Antes partir o espelho parabólico ou tirar o acumulador do interior. Agora não sei.

Aqui faz falta uma investigação especial.— Maldito sejas com tua investigação. — Disse, entredente, e agarrei o delgado

braço anterior do caranguejo, estendido à cara do engenheiro.O autômato recuou. Agarrei o segundo braço e também o dobrei. Esses tentáculos se

dobravam facilmente, como um fio de cobre.Se notou claramente que o bicho metálico não gostou da operação e começou a sair

lentamente da água. O engenheiro e eu nadamos ao longo da costa.Quando amanheceu todos os autômatos saíram da água e durante certo tempo se

aqueceram. Durante esse tempo pude quebrar, a pedrada, os espelhos parabólicos do dorso de ao menos 50 monstros. Todos se paralisaram. Mas, por desgraça, isso não melhorou a situação: Foram vítimas doutros bichos e deles, com uma velocidade espantosa, começaram a sair novos autômatos. Romper as baterias de silício do dorso de todas as máquinas era superior a minhas forças. Várias vezes tropecei em autômatos sob potencial elétrico, o que debilitou minha decisão de lutar.

Durante todo este tempo Cookling continuava no mar.Em breve se encadeou de novo a luta entre os monstros e parecia que se esqueceram

completamente do engenheiro.Deixamos o campo de batalha e nos transferimos ao lado oposto da ilha. O

engenheiro estava com tanto frio das longas horas de banho de mar, que, batendo os dentes, se deitou de bruços e me pediu que o cobrisse com areia quente.

Depois regressei a nosso primeiro refúgio pra buscar roupa e o que ficara de nosso víver. Só então reparei que a tenda de campanha estava destroçada. Desapareceram as estacas de ferro cravadas na areia e os anéis metálicos com os quais se fixava a tenda às cordas.

Sob a lona encontrei a roupa de Cookling e a minha. Ali também se via o vestígio do trabalho dos caranguejos procurando metal. Desapareceram os colchetes de metal. Em seu lugar se via vestígio de tecido queimado.

Entretanto a batalha dos autômatos se transferira da beira-mar ao interior da ilha. Quando subi à elevação, vi que quase no centro da ilha, entre os arbustos se erguiam uns quantos monstros, quase da altura dum homem, de patas pinçadas. Se separavam, aos pares, a diferentes lados e depois investiam a grande velocidade.

Ao se chocarem se ouviram sonoros golpes metálicos. Nos lentos movimentos desses gigantes se sentia uma enorme força e grande peso.

Perante meus olhos vários mecanismos foram lançados a terra, sendo alguns imediatamente destroçados.

Mas já estava farto de ver esse quadro de batalha entre as loucas máquinas. Por isso, carregando tudo o que conseguira recolher de nosso antigo refúgio, andei lentamente aonde estava Cookling.

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O sol queimava sem compaixão e antes de chegar aonde Cookling estava dormindo, sem força, depois dos banhos noturnos, ao lado da elevação, entre os arbustos apareceu um enorme caranguejo.

Era de estatura maior que eu e as patas eram altas e maciças. Se deslocava com saltos irregulares, curvando de maneira estranha o corpo. Os tentáculos anteriores, de trabalho, eram demasiadamente compridos e se arrastavam na areia. A boca-oficina estava hipertrofiada de maneira excepcional, representando quase metade do corpo.

O ictiossauro, assim o batizei, descia distraidamente até a beira-mar e voltava o corpo a todos os lados como se reconhecesse o terreno. Maquinalmente agitei a lona da tenda em sua direção, como se faz quando se quer espantar um animal que se interpusera no caminho.

Não fez caso de mim, e de maneira estranha, se deslocando de lado e descrevendo um arco, começou a se aproximar do montículo de areia onde dormia Cookling.

Se eu supusesse que o monstro se dirigia ao engenheiro, acudiria rapidamente em sua ajuda. Mas a trajetória que seguia o mecanismo era tão indeterminada que, a princípio, pensei que se dirigia ao mar, e só quando tocou na água com os tentáculos e de repente se voltou e se dirigiu rapidamente ao engenheiro, atirei a carga ao lado e corri àli.

O ictiossauro parou junto a Cookling e se abaixou um pouco.Observei que os extremos dos largos tentáculos se moveram na areia diante da cara

do engenheiro.No seguinte instante, donde havia um montículo de areia, se elevou uma nuvem de

areia. Era Cookling que, como picado por uma vespa, ficou em pé cum salto e, em pânico, tentava fugir do monstro.

Mas era já tarde.Os finos tentáculos rodearam fortemente o gordo pescoço do engenheiro e, atirando a

cima, o elevaram até a boca do mecanismo. Cookling ficou impotente no ar, agitando os braços e as pernas.

Embora eu odiasse o engenheiro com toda a alma, não podia permitir que morresse na luta com um bicho metálico qualquer.

Sem pensar um segundo, me agarrei às altas patas do caranguejo e puxei com toda força. Mas era o mesmo que derrubar um tubo de aço profundamente cravado no solo. O ictiossauro nem se moveu.

Subi a pulso às costas. Durante um momento minha cara esteve na altura da desfigurada face de Cookling. Um pensamento atravessou minha mente:

— Os dentes! Cookling tem dentes de aço!Com todas a força de meu punho bati no espelho parabólico que brilhava ao sol.O caranguejo girou sobre o mesmo lugar. A cara azulada de Cookling, com os olhos

esbugalhados, estavam na altura da boca-oficina. Nesse momento aconteceu algo de horroroso. Uma faísca elétrica saltou diante do engenheiro à testa. Depois os tentáculos do caranguejo afrouxaram e o pesado corpo do criador da peste de ferro caiu na areia, sem sentido.

●Enquanto enterrava Cookling, na ilha, corriam vários caranguejos enormes se

perseguindo, sem nos prestarem atenção.Envolvi Cookling na lona da tenda e o enterrei no centro da ilha, num buraco de areia

não muito profundo. O enterrei sem compaixão. Em minha boca ressequida rangia a areia e mentalmente maldizia o morto por seu ruim empreendimento. Segundo a moral cristã, cometia um grande pecado.

Depois, passei vários dias deitado na praia, olhando o horizonte do lado donde devia aparecer a Paloma. O tempo decorria terrivelmente devagar e o sol implacável parecia

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que ter parado sobre minha cabeça. Às vezes me arrastava à água e submergia minha cara tostada.

Pra esquecer a fome e a sede ardente procurava pensar nalgo abstrato. Pensava que em nosso tempo muita gente inteligente gastava a força do intelecto pra causar prejuízo a outra gente. Por exemplo, a descoberta de Cookling. Estava certo que se podia utilizar pra fins nobres. Por exemplo, pra extrair metal. Se podia dirigir a evolução desses bichos de tal maneira que cumprissem a tarefa com máximo rendimento. Cheguei à conclusão de que com o correspondente aperfeiçoamento o mecanismo não se transformasse num volume ignóbil e gigantesco.

Uma vez tombou sobre mim uma enorme sombra circular. Com dificuldade levantei a cabeça e olhei o que me tapava o sol. Aconteceu que estava deitado entre as patas dum caranguejo de tamanho monstruoso. Se aproximou da beira-mar e parecia olhar o horizonte esperando algo.

Depois comecei a alucinar. Em meu cérebro excitado o caranguejo gigante se transformou num depósito de água doce, colocado a grande altura, aonde eu não podia chegar.

Despertei a bordo da escuna, e quando capitão Gale me perguntou se devia carregar ao barco o enorme e estranho mecanismo que havia na praia. Eu disse que no momento não fazia falta.

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Até logo!, marcianoRomão Yarov

rimeiramente ficou olhando entre as tábuas da paliçada. Depois, cum salto, se agarrou aos extremos agudos, se levantou a pulso e trepou na barra transversal. Era noite. O último resto do crepúsculo desapareceu atrás do horizonte. O menino

fechava os olhos e via se estender o caminho a diante, como uma pista de decolagem. O verde bosque se abria e tudo se fundia na treva da noite. E só num lugar do aprazível mundo havia claridade. A casa se elevava no cimo do monte, e longe, abaixo, onde confluíam o bosque, o céu e a estreita trilha, ardia o fogo. Uma grande chama amarela rodeada de escuridão, como as bordas duma taça, se estendia até encima e até os lados. A fumaça rodopiava encima.

PP

O menino voltou a cabeça. Ainda que confusa e vagamente, a casa ainda se via, e isso lhe infundia segurança. Se ouviu o ruído dum motor: Um avião cruzou o céu. O menino continuou observando atentamente o longínquo fogo. Procurando não fazer ruído, saltou da paliçada.

A casa estava no extremo da aldeia, e o caminho se estendia imediatamente até abaixo. A poeira do caminho, o frio encima, conservava no interior o calor do dia. Essa descoberta agradou ao menino. Durante certo tempo ficou pondo o quanto podia os pés no pó mas logo saiu do ensimesmamento. Se afastara bastante e ao voltar a cabeça não viu o cume da colina, sua casa nem as demais casas mais altas. O fogo que vira na frente, também desaparecera, outra colina o tapava. O garoto se deteve. Viu o céu com todas as pequenas estrelas tão limpo, que parecia um pouco úmido e brilhante, como uma imagem recente de decalque. Logo se lembrou do céu opaco e vítreo da grande cidade donde chegara e, sem vacilar, continuou avançando, olhando o alto, procurando localizar Marte. Recobrou a sensação de segurança e com isso a alegria.

Ainda não se sentia o calor mas já cheirava a fumaça seca. Esperava que atrás das árvores, na escuridão, aparecesse, de momento a outro, a tocha se extinguindo. Estava cansado dessas longas subidas e descidas, do horroroso bosque noturno, dos potentes galhos aveludados dos abetos, que quase cobriam o céu completamente, dos nós pontiagudos e dos galhos baixos, do matagal espinhoso e das torcidas raízes. As gotas de suor escorriam na cara e entravam no colarinho desabotoado da camisa.

Se apoiando cuma mão no quente tronco duma árvore, o menino estava de pé na orla dum clarão do bosque. No mesmo centro balançava uma esfera da altura duma casa de três andares. Da esfera se desprendia a auréola. O matagal que circundava o clarão do bosque fumegava e os galhos das árvores dirigidas até a esfera, se carbonizaram, mas o fogo já cessara. O garoto pensou:

— Uma nave interplanetária pode arder na atmosfera.A esfera esfriava rapidamente. Vendo tudo da colina, de longe, lhe pareceu uma

deforme bola alaranjada. Ao chegar, a esfera já era de rosa claro e persistia a variação cromática. Uns dias antes o menino esteve de excursão numa fábrica, e na oficina de forja se esfriavam da mesma maneira os pedaços de metal sacados da forja.

O revestimento da esfera ia empalidecendo e se estendiam, se confundindo nele, franjas de cor plúmbea. A luz rosa se extinguiu e tudo ficou escuro. Certamente a esfera

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já estava totalmente fria. Logo, na parte mais alta, se acendeu um refletor, e um raio de luz, mais brilhante que qualquer raio terreno, mas sem ferir a vista, começou a se mover como um raio gigantesco. Se aproximava, mas o menino não se movia, nem se afastou quando o raio se deteve nele. Na parte lateral da esfera apareceu uma fresta que rapidamente aumentava de tamanho. O menino compreendeu que era uma porta que se abria. O orifício era iluminado desde dentro. Dali apareceu uma passarela que, se desenvolvendo facilmente, alcançou a Terra.

— Utilizamos uma escada móvel.O garoto se aproximou mais e tocou a borda da passarela. Parecia como se não

tivesse acabado de se desenvolver, tal era a solidez que sentiu no tato.A luz, que saía do orifício, se intensificou e ele apareceu. Desceu lentamente na

passarela vertical. Sua figura, parecida à dum homem, era mais alargada, e dois braços, semelhantes aos humanos, pendiam de ambos lados da figura. Mas a cara não agradou ao garoto. Estava cheia de protuberâncias e rugas e não se parecia à dum homem. Chegou até o extremo da passarela e se deteve, esteve um momento pensando como se atendesse a algo antes de pisar a Terra, logo tirou a máscara.

— Te felicito pela feliz chegada. — O menino sorriu amistosamente — Sei por quê teu escafandro é tão feio. Há pouco li, num livro, por quê os morcegos têm rugas parecidas. É pra se orientar na escuridão usando ultra-som.

O desconhecido ficou calado, olhando o menino. Tinha uns olhos grandes, cerca de duas vezes maiores que os das pessoas. O olhar era afetuoso.

— Donde és?O menino tirou do bolso um seboso mapa do firmamento. Apenas o viu o recém-

chegado, levantou uma mão e na palma, como na dos ilusionistas, apareceu um objeto, que entregou ao menino. Era um modelo em volume do sistema solar. Era inconcebível como se mantinha tudo dentro da envoltura transparente, mas ali estava iluminando o Sol, e os planetas giravam ao redor segundo as órbitas correspondentes. O menino achou a órbita da Terra, e se assombrou da potência dos longínquos telescópios que viram na pequena esfera os contornos familiares dos oceanos, continentes e das grandes cidades. O longo e fino dedo do alienígena apontou o planeta Marte.

— És marciano! — Se alegrou o menino — Não sei por quê, assim me parecia. Pois então bem-vindo! Sou Sacha, habitante da Terra. — e se apontou com o dedo.

— U. — Disse o marciano, fazendo o mesmo.O menino estendeu a mão e o marciano também. O forte aperto de mão não doeu. — Vamos. — O menino chamou o marciano — A humanidade deve saber, o quanto

antes, de tua chegada. Certamente a nave foi vista. Não é possível a confundir com estrela cadente. Quiçá nos estejam buscando. Ouves o ruído de motor? Mas as árvores nada deixam ver desde cima. Não longe daqui há uma aldeia, ali há correio, telégrafo e muita gente.

Pegou um lápis, escreveu no dorso do mapa do firmamento Proibido tocar até a chegada do representante da academia científica, e o pendurou num espinho do matagal mais próximo. Depois olhou na última vez o clarão do bosque, lugar do acontecimento mais importante de sua vida, as escuras árvores deram passagem e viu as maiores cidades do mundo e a multidão correndo.

O marciano fez um movimento com o braço e a passarela se recolheu e desapareceu no buraco, a porta se fechou e se apagou a luz superior da esfera.

— Voltaremos logo. — O menino começou a andar e o marciano o seguiu.Na cabeça do menino as idéias se cruzavam como emulando. — Vim correndo, sem prestar atenção ao caminho, e pra mim era a mesma coisa

ficar arranhado ou não. Mas agora daremos a volta ao clarão do bosque até encontrar a

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trilha e que nenhum galhinho te toque. És um hóspede da Terra! Ó, como gosto de ti!, marciano. Como te esperei e estava convencido de que já estivestes antes aqui, mas, ao não encontrar seres semelhantes em raciocínio, foram embora! E outra vez aqui. Não és malvado, és bom, marciano. Não nos destruirás nem conquistarás, pois és uma pessoa de cultura elevada. Como te esperei!, marciano. E se não viesses, eu mesmo encontraria o caminho pra te ver. Dentro de 10, 15, 20 anos, eu vos iria ver. Talvez vamos juntos a outro lugar, a outra nebulosa.

Iam na trilha. O menino apartava os galhos, os retinha e cuidava que o marciano não tropeçasse nas raízes salientes. Começava a amanhecer, brilhava o rocio, os pássaros cantavam, dos barrancos do bosque se elevava a neblina e o menino olhava, de vez em quando, o marciano, desejando saber que impressão lhe produziam as flores, os odores, os sons da Terra.

Na orla do bosque, suspensos no ar, havia três helicópteros. Enquanto o garoto e o marciano saíram a um lugar aberto, os helicópteros começaram a descer, estenderam as escadas de corda, e a gente, militares e civis, começaram a descer. Desceu primeiro um homem de barrete negro de acadêmico, com grande barba branca se agitando ao vento. O menino pegou o marciano na mão e correu a encontro deles.

— Um marciano! — Conduziu o acompanhante e se retirou uns passos.O acadêmico tirou o barrete, os militares saudaram e as câmaras fotográficas

começaram a disparar. Disse o menino: — Sua esfera está ali, no bosque. Na noite ainda eu vi o resplendor. — Bravo! — O acadêmico tirou um grande caderno de nota com letra de ouro —

Quais são tu nome, sobrenome e endereço? Comunicarei a todos os jornais. Amanhã voltaremos com uma grande expedição e eu te chamarei via telégrafo. Agora, te retires.

O acadêmico mostrou a escada ao marciano, que assentiu com a cabeça e começou a subir. O acadêmico o seguiu. Os demais se foram cada qual a seu veículo. As hélices dos helicópteros começaram a girar com mais rapidez e o vento começou a ondular a grama. O menino levantou a cabeça:

— Até logo, marciano! Te espero! Até logo!Os helicópteros partiram em direção ao rubro sol poente, que cada vez era maior,

como visto a través dum iluminador duma nave cósmica, e espirais de fogo se atropelavam nas hélices dos helicópteros.

●...A expedição de resgate se organizou rapidamente. Seis homens empreenderam o

caminho até o bosque pra se dispersar ao chegar à orla buscando o menino. O dia era claro e o céu limpo. No caminho, levantando poeira, avançavam um atrás do outro uns camiões. Não tiveram que procurar muito tempo. Viram o menino no começo do bosque. Estava dormindo à sombra dum arbusto. A alta grama balançava sobre a cara não tostada de sol do habitante da cidade. Suas pernas, pois de calça curta, estavam cobertas de arranhão, as ligeiras sandálias estavam sujas de cinza. Respirava com irregularidade e, estremecia e arranhava a Terra com as mãos. O doutor se inclinou, o olhou e se levantou.

— É nada. Está dormindo, simplesmente.Os homens, todos com altas botas de goma, de pé, imóveis e sérios, o rodeavam. Não

sabiam se deviam despertar o menino e repreender ali mesmo, carinhosamente, ou se sentar e esperar, fumando um cigarro de palha. O pai ainda desconcertado mas já recobrando a capacidade de raciocinar:

— Não entendo. Não entendo! — Tiro férias, venho contigo e na terceira noite foges de casa. Aonde? Pra quê?

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— Coisa de criança! — O doutor encolheu os ombros — Quiçá o incêndio o atraíra. Nesta noite ardeu um palheiro no clarão do bosque. Enquanto fui e voltei... É verdade que apagaram bem rápido.

Quanto a este conto:Tradução ao castelhano: Manuel Gisbert T.

Publicado em Café molecular - Cuentos de ciencia ficciónEditora Mir, Moscou, 1968

Edição digital: UrijennyTradução do castelhano ao português: Mário Jorge Lailla Vargas

http://biblioteca.d2g.comConto extraído de Selección de relatos cortos de ciencia-ficción soviética

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Dos andarilhos e dos viajantesArcádio e Bóris Strugatski

água do fundo não estava muito fria mas, no fim da conta, sentia que me gelava. Eu estava sentado, submerso ao pé do alcantilado da orla, voltando, com precaução, a cabeça dum lado a outro durante uma hora, escrutando a verdosa e turva treva.

Havia de permanecer imóvel porque os septópodes são animais mui sensíveis e receosos. Se espantam com qualquer ruído ou movimento brusco, vão embora e não voltam até anoitecer. Então o melhor é não os encontrar.

AAA meus pés se movia uma enguia. Cerca de dez vezes passou e voltou a passar uma

arrogante perca com franja, que cada vez parava e cravava em mim os olhos redondos e estúpidos. Mal foram embora e apareceu uma cardume de peixinhos prateados, que organizou uma pastagem encima de minha cabeça. Os joelhos e os ombros se me intumesceram completamente. Temia que Macha se impacientasse com minha demora e se atirasse à água pra me buscar, acreditando eu estar em perigo. Imaginando como estaria me esperando sentada à orla, seu temor e os desejos que teria de se atirar pra me buscar, decidi, sair mas nesse momento saiu, dentre umas algas, a cerca de 20 passos à direita, o esperado septópode.

Era um exemplar bastante grande. Apareceu repentina e silenciosamente, como um fantasma, com seu corpo gris arredondado até a frente.

O manto branquicento pulsava suavemente e como sem vontade, absorvendo e expelindo água. Ao se mover o septópode balançava dum lado a outro. Os extremos dos tentáculos recolhidos se arrastavam, como farrapos dum imenso trapo velho. A fresta do olho entornado reluzia na treva. O septópode se deslocava como todos, lentamente durante o dia, com estranho e arrepiante aturdimento, sem saber aonde nem pra quê. Seguramente o guiavam os impulsos mais primitivos e sombrios. Quiçá os mesmos que regem os movimentos das amebas.

Lenta e suavemente levantei o marcador e mirei o cano apontando ao lombo inchado. Logo, o cardume de peixinhos prateados se agitou e desapareceu, e me pareceu ver estremecer a pálpebra do enorme olho vítreo. Apertei o gatilho e imediatamente, cum empurrão de pés, me separei do fundo, fugindo da sépia urticante. Quando olhei de novo, já não se via o septópode. Só uma densa nuvem azul-negricenta se espalhava na água cobrindo o fundo. Fui à superfície e nadei à orla.

O dia era quente e claro. Sobre a água flutuava uma débil névoa azulada, o céu estava limpo, branco, e além do bosque se levantavam, como torres, cúmulos plúmbeos de nuvens imóveis.

Na relva, ante nossa barraca de campanha estava sentado um desconhecido de tanga colorida e uma faixa na frente. Estava curtido ao sol e sem ser musculoso, era extremamente nervudo, como se tivesse trançadas grossas cordas sob a pele. Saltava à vista que era um homem excessivamente forte. Ante ele, de pé, estava minha Macha num traje de banho azul, longilínea, morena, com a mata de pêlo descolorido pelo sol sobre as salientes vértebras da espalda. Não estava sentada na beira dágua, esperando, aflita, o pai. Explicava, apaixonadamente, algo a esse homem feito de tendões e gesticulava energicamente com as mãos. Até me senti mal ela não notar minha

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presença. No entanto o homem a notou. Voltou rapidamente a cabeça, me olhou e, sorrindo, saudou agitando a mão. Macha se voltou e gritou com alegria:

— Enfim!Saí da água e me sentei na relva, tirei o visor e enxuguei a cara. O homem sorria ao

me ver. — Quantos marcaste? — Me perguntou Macha, diligentemente. — Um. — Articulei, pois se contraíam minhas mandíbulas. — Bolas!, cara. — Disse Macha.Me ajudou a tirar a aquastat e me estirei sobre a relva. — Ontem marcaste 2. — Explicou Macha — Anteontem, 4. Continuando assim

seria conveniente ir a outro lago.Ela pegou a toalha e começou a enxugar energicamente minhas costas. — Agora pareces um frango recém congelado. Te apresento Leônidas Andreyevich

Gorbovski. É astroarqueólogo. — E este é meu pai. Se chama Estanislau Ivanovich.O nervudo Leônidas Andreyevich assentiu, sorrindo. — Estás gelado? Aqui se está tão bem. Na relva, ao sol. — Agora voltarás a ti. — Disse Macha, me esfregando com toda a força — Em

geral é mui alegre, só que agora ficou muito gelado.Estava claro que dissera muitas coisas de mim e agora sustentava, de toda maneira,

minha reputação. Bom, que me defenda. Eu não estava pra isso. Não dava dente com dente.

— Macha e eu estávamos muito intranqüilos por ti. — Disse Gorbovski — Inclusive queríamos submergir, mas não sei mergulhar. Tu, certamente, por teu gênero de trabalho, nem imaginas alguém que não tenha de mergulhar. — Se deitou de costas e apoiou a cabeça na mão — Amanhã irei embora. — Nos comunicou confiadamente — E não sei quando terei outra ocasião de deitar na grama na beira dum lago, e a possibilidade de mergulhar com aquastat.

— Pois venhas.Olhou atentamente o aquastat e o tocou. — Sem falta — disse e se atirou de costas, colocou as mãos sob a cabeça e ficou me

olhando piscando lentamente com as ralas pestanas. Tinha algo irresistivelmente atrativo. Não sei precisamente o quê. Pode ser os olhos, confiados e um pouco tristes, ou a orelha que se lhe saía comicamente sob a venda. Depois de me olhar a gosto, afastou os olhos e os fixou numa libélula azul, que balançava na relva. Os lábios se alongaram e arredondaram carinhosamente — Libélula! Libélula, azul, lacustre, bela. Está religiosamente sentada , esperando a quem devorar. — Alargou a mão mas a libélula escapou e, descrevendo um arco, voou até um canavial. A seguiu com os olhos e depois se estendeu de novo. — Que bom está, amigos. — E Macha imediatamente cravou nele os olhos redondos — Olhes que perfeita e graciosa é a libélula e quão satisfeita está! Prela tudo se reduz a comer uma mosca, proliferar e morrer. Simples, elegante, racional. Sem mais consternação espiritual, sofrimento amoroso, consciência nem razão de ser.

— Uma máquina. — Disse Macha, de repente — Cíber chato!E disse isso minha Macha! Por pouco não caí na gargalhada mas me contive e parece

que só suspirei. Me olhou descontente. — Chato. — assentiu Gorbovski — Essa é a palavra. Agora, camaradas, imaginai

uma libélula amarelo-verdosa, com franjas transversais vermelhas, de asas de 7m de envergadura com baba repugnante nas mandíbulas. Já formastes a imagem? — Cerrou as sobrancelhas e nos olhou — Vejo que ainda não foi formada.

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Saí de repente ante elas, e isso que ia armado... E se pergunta um: O que há de comum nesses dois chatos cíberes?

— Essa verde era doutro planeta? — Claro. — De Pandora? — Precisamente de Pandora. — O que tem de comum? — Isso o quê? — É claro. O mesmo grau de elaboração da informação. Reação a nível instintivo.Gorbovski deu um suspiro. — Isso tudo são palavras. De fato, não vos enfadai, mas são apenas palavras. Isso

não me alivia. Tenho de buscar vestígio do entendimento no universo mas não sei o que é o entendimento. Me falam de diferentes graus de elaboração da informação, pois sei que meu nível é diferente do da libélula, mas se isso tudo é intuição! Me dizes: Encontrei um cupinzeiro. Isso é vestígio do entendimento? Em Leônidas encontraram edifícios sem janela, sem porta. São vestígios do entendimento? O que tenho a buscar? Ruínas? Inscrições? Pregos oxidados? Um parafuso heptagonal? Donde saberei quais vestígios deixam? E se o objetivo de sua vida é aniquilar a atmosfera ali onde a encontrem, construir anéis ao redor dos planetas, hibridar a vida ou criar a vida? E se essa libélula seja um aparato cibernético de auto-reprodução lançado em tempos imemoriais? Já não fala dos mesmos portadores do intelecto. Alguém pode passar vinte vezes junto a um espantalho escorregadio que está rosnando num charco, virar a cara com desprezo enquanto o espantalho o está olhando com olhos amarelos, e pensar:

— É curioso. Indubitavelmente é uma nova espécie. É preciso voltar àqui cuma expedição e caçar ao menos um exemplar.

Tapou os olhos com a palma da mão e começou a cantarolar. Macha o comia com os olhos e esperava. Eu também esperei e pensei compassivamente. É ruim trabalhar quando a tarefa não está claramente definida. É difícil trabalhar. Caminhas como na treva e não há alegria nem satisfação. Algo ouvi desses astroarqueólogos. Não os podemos levar a sério. Ninguém leva.

— E entendimento há no cosmo. — Disse, de repente, Gorbovski — Isso é indubitável. Eu, ao menos, agora sei que há. Mas não é como cremos. Não é o que esperamos. E o procuramos não como faz falta, ou não onde faz falta. E simplesmente não sabemos o que procuramos...

— Precisamente isso. — Pensei — Não é o que, onde, como. Mas isso não é sério, camaradas. Picuinha de cabo a rabo, buscar vestígio de idéias pairando no ar. Seja, por exemplo, a voz do vazio. A ouviste? Certamente que não. Há meio século se fala e escreve sobre isso e agora nem se menciona. Porque, segundo dizem, não se conseguiu algo positivo, e se nada se conseguiu pode ser que não exista tal voz? Por desgraça ainda há muitos pedantes desses que na ciência apenas entendem algo, por pirraça ou má-educação, mas que ouviram dizer que o homem é todo-poderoso. Onipotente e não consegue determinar o que é a voz do vazio! Ai, ai, ai! É uma vergonha. Não se pode permitir. Não falemos disso. Mas antropocentrismo que se desgasta!

— E o que é essa voz do vazio? — Perguntou Macha, em voz baixa. — Existe um efeito mui curioso. Em certas direções cósmicas, se conectando o

receptor de bordo na posição de auto-sintonia, cedo ou tarde sintoniza uma estranha transmissão. Se ouve uma voz tranqüila e equilibrada que repete a mesma frase num idioma de peixe. Muitos a ouviram e eu também, mas poucos são os que falam disso. Se lembrar disso não é mui agradável. A distância que a separa da Terra é inconcebível. O éter está vazio. Nenhuma interferência. Só débeis sussurros. E de repente essa voz. Um

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está de guarda, sozinho. Os outros dormem tranqüilamente. E essa voz! É arrepiante. Não é muito agradável que digamos. A voz foi gravada. Muitos quebraram a cabeça a decifrando e se continua decifrando, mas creio que é inútil. Há outros enigmas mais. Os astronautas poderiam dizer muitas coisas mas não lhes agrada falar. — Se calou um momento e acrescentou, com aflição e perseverança: — Precisamos entender mas não é tão fácil. Se não sabemos nem o que esperamos, nem o que esperar! Podemos nos encontrar com eles em qualquer momento. Cara-a-cara. E, acreditas, pode ser que tenham um desenvolvimento muito mais elevado que o nosso. Se fala de colisões e de conflitos, dos diferentes conceitos de humanismo e de bondade. No entanto não é isso o que temo. Temo a descomunal humilhação da humanidade, a enorme comoção psíquica. É que somos tão orgulhosos. Criamos um mundo magnífico, sabemos tanto, abrimos caminho até o grande universo, fazemos descobertas nele, estudamos, investigamos o quê? Preles este universo é a casa paterna. Milhões de anos viveram nele, como nós na Terra, e o único que podem fazer é se assombrar ao nos ver. Donde saíram esses bichos que vemos entre as estrelas?

De repente se calou e se levantou num salto, atendendo a algo. Estremeci. — É um trovão. — Disse Macha, em voz tênue. Ela o olhava com a boca entreaberta

— Um trovão. Logo chegará a tempestade.Ele continuava escutando e explorando o céu com os olhos. Enfim disse e se sentou

novamente: — Não é um trovão. É uma nave. Olhai. A vedes?No fundo formado pelas nuvens plúmbeas brilhou e desapareceu algo reluzente. E de

novo trovejou debilmente. Disse, enigmaticamente: — Agora sentemos e a esperemos.Me olhou sorrindo, mas nos olhos refletia tristeza e espera impaciente. Depois tudo

passou, e os olhos voltaram a ser confiados. — O que fazes?, Estanislau Ivanovich.Me deu a impressão de que queria mudar de tema e comecei a falar dos septópodes.

Que são da subclasse dos dibrânquios, da classe dos moluscos cefalópodes e formam uma espécie do gênero octópodes. Se caracterizam pela redução do terceiro braço esquerdo, par do terceiro da direita, que é hectocótilo, com três filas de ventosas nos braços, ausência de celoma, de corações venosos extraordinariamente desenvolvidos, com máxima concentração central do sistema nervoso e outras particularidades menos importantes. Há pouco foram vistos. Alguns indivíduos apareceram nas costas orientais e sudeste da Ásia. Mas um ano depois começaram a ser encontrados no caudal inferior dos grandes rios: Mecongue, Azul, Amarelo e Amur, e nos lagos muito afastados do litoral, por exemplo, neste lago. É surpreendente porque comumente os cefalópodes são estenalinos42 em alto grau e rejeitam até a água ártica, de pouca salinidade. Quase nunca saem a terra. No entanto os septópodes se sentem muito bem em água doce e saem a terra. Se metem nas barcas, sobem nas pontes e há pouco dois foram encontrados no bosque, a uns 30km daqui.

Como não era a primeira vez que eu o contava, Macha não parou pra me escutar. Entrou na barraca de campanha, tirou o pequeno receptor golosok (vozinha) e o pôs em auto-sintonia. Parece que lhe faltava tempo pra captar a voz do vazio.

Enquanto isso Gorbovski me escutava mui atentamente. — Ambos estavam vivos? — Não. Foram encontrados mortos. Aqui, no bosque, há uma reserva. Os

septópodes foram pisoteados e meio devorados pelos javalis. Mas a 30km da água ainda

42 Estenalino, estenoalino: adj biologia Organismo aquático incapaz de suportar grande variação de salinidade da água onde vive. http://www.dicio.com.br/estenalino/ Nota do digitalizador-tradutor

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estavam vivos! Os dois tinham cheia de alga a cavidade do manto. Parece que os septópodes providenciam assim a reserva necessária de água pra transitar em terra. As algas eram do lago. Os septópodes, indubitavelmente, se dirigiam desde esse lago até o sul, até o interior. Há que assinalar que todos os indivíduos caçados até agora são machos. Nenhuma fêmea, nenhum filhote. Certamente as fêmeas e os filhotes não podem viver em água doce nem sair da água.

— Tudo isso é muito interessante. Geralmente os animais oceânicos mudam bruscamente o modo de vida só no período da procriação. Então o instinto lhes faz ir a lugares inusitados. Mas nesse caso não se pode falar de procriação. Aqui rege outro instinto, quiçá mais primitivo e poderoso. Agora o mais importante pra nós é seguir o caminho da migração. Entro neste lago e fico embaixo dágua dez horas por dia. Hoje marquei um. Se tiver sorte, na tarde marcarei um ou dois mais. Na noite os septópodes são muito ativos e capturam tudo o que está perto. Inclusive houve casos de agressão ao homem. Mas só na noite.

Macha pôs seu receptor a todo volume e se deleitava com o potente som. — Não tão alto, Macha. — Ela abaixou o volume. — Ou seja, os marcas. — Disse Gorbovski — É curioso. E com quê? — Com geradores de ultra-som. — Tirei o pente do marcador e lhe mostrei uma

ampola — Com estas balas. Na bala há um gerador que se ouve embaixo dágua a uns 20km ou 30km.

Gorbovski pegou com cuidado uma ampola e a olhou detidamente. Seu rosto se entristeceu e envelheceu. Murmurou:

— Engenhoso. Simples e engenhoso.Continuou revirando a ampola com as mãos, a apalpando, depois a deixou ante mim

e se levantou. Seu movimento ficou lento e inseguro. Se afastou aonde estava sua roupa, a revolveu, pegou a calça e ficou imóvel com a calça nas mãos.

Eu o observava com vaga inquietude. Macha tinha o marcador preparado pra lhe explicar o manejo e também observava Gorbovski. As comissuras dos lábios se baixaram com gesto de aflição. Faz tempo que observei isso nela: Assume a expressão facial da pessoa observada.

Leônidas Andreyevich logo começou a falar em voz baixa e irônica: — É deveras curioso. Que analogia! Séculos inteiros estavam na profundeza, e agora

se elevaram e saíram à tona dum mundo alheio, inimigo. O que os empurra? Um instinto primitivo, dizes. Quiçá seja a maneira de processamento da informação que alcançou o nível de curiosidade insaciável? Mas se estariam melhor em sua casa, na água salgada! Não obstante algo os arrasta, os empurra até a margem. — Se repôs e começou a vestir a calça passada de moda, larga. Ao vestir saltitou num pé. — É verdade?, Estanislau Ivanovich. Há de supor que não são simples cefalópodes?

— De certa maneira, claro que sim.Não me ouviu. Voltara a cabeça ao receptor de rádio e cravou o olhar nele. Macha e

eu também fixamos o olhar no receptor. Dali saíam uns potentes sinais sonoros desacordes, parecidos às interferências produzidas por uma instalação de raio-x. Macha deixou o marcador. Disse, desconcertada:

— 6,08m. Certamente uma estação de serviço auxiliar. Não?Ele atendia ao sinal com os olhos cerrados e a cabeça inclinada a um lado. — Não. Não é estação de serviço. Sou eu. — O quê? — Sou eu. Emito esses sinais. Eu, Leônidas Andreyevich Gorbovski. — Pra... pra quê?Riu com tristeza.

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— Efetivamente, pra quê? Também quero saber. — Vestiu a camisa — Pra quê três pilotos e sua nave, de volta da viagem EH101-EH2657, se converteram num manancial de ondas hertzianas de 6,083m de longitude?

Obviamente Macha e eu nos calamos. Também se calou e se abotoou as sandálias. — Os médicos nos examinaram. Os físicos nos investigaram. — Se levantou e

sacudiu a areia e a erva da calça — Todos chegaram à mesma conclusão: É impossível. Era pra morrer de rir ver as caras de pasmo. E lá estávamos pra riso?! Tólia Obozov rejeitou a permissão e foi ao planeta Pandora. Disse que preferia irradiar onda longe da Terra. Vallkenstein foi a trabalhar numa estação submarina. Só eu continuo deambulando e irradiando onda. Sempre estou esperando algo. Espero e temo. Temo mas espero. Me entendeis?

— Não sei. — Disse e olhei Macha de soslaio. — Tens razão. — Pegou o receptor e, pensativo, o pôs na saliente orelha —

Ninguém sabe. Já faz um mês se sem debilitar, sem interrupção. Os mesmos sons ua-ui, ua-ui. Dia e noite, alegres ou tristes, fartos ou famélicos, trabalhemos ou estejamos ociosos. Sempre o ua-ui. No entanto a irradiação do Tariell diminui. Tariell é minha nave. Agora a retiraram, por precaução. Sua irradiação interfere no funcionamento duns aparatos instalados em Vênus. Dali pedem informe, se impacientam. Amanhã o levarei a longe. — Se ergueu e pôs as longas mãos nas ancas — Bom! Já é hora de ir embora. Até outra! Que tende sucesso. Até mais ver, Machenka! Não quebres a cabeça com isso. Não é uma simples adivinhação, creias.

Levantou a mão, saudou com a cabeça e se foi, longilíneo, deselegante. O seguimos com o olhar. Junto da barraca de campanha parou e disse:

— Sabes: Procures tratar com mais delicadeza esses septópodes. Senão, já vês, um vai marcando, marcando, e pro pobre marcado é só desgosto.

Foi embora. Continuei deitado de bruços e depois olhei a Macha, que continuava olhando na mesma direção. Em seguida se via que Leônidas Andreyevich lhe causara profunda impressão. A mm não. Não me comoveram seus argumentos de que os portadores do intelecto universal posam estar a um nível incomparavelmente mais elevado que o nosso. Que estejam! Creio que quanto mais elevado seja seu nível menos probabilidade teremos de ficar em seu caminho. É como o gobio,43 que não se importa com as redes de malha grande. No que se refere ao orgulho, humilhação, comoção, certamente o relevaremos. Ao menos eu o suportaria. Inclusive supondo que descobrimos e estudamos o universo habitado por eles há muito. Certo. Mas e daí? Pra nós é desconhecido! E pra nós nada mais são que parte da natureza que temos de descobrir e estudar, ainda tenham um nível de desenvolvimento três vezes maior que o nosso... São alheios a nós, exteriores. Ainda que, é claro, me marcassem, por exemplo, como marco os septópodes.

Olhei o relógio e me apressei. Havia de voltar a meu afazer. Escrevi o número da última ampola. Comprovei o aquastat, entrei na barraca de campanha, peguei o fonolocalizador de ultra-som e o pus no bolso da tanga.

— Me ajudes, Macha. — E comecei a pôr o aquastat.Macha continuava ante o receptor e escutava o inextinguível ua-ui. Me ajudou a pôr

o escafandro e juntos entramos na água. Embaixo dágua conectei o fonolocalizador, e começamos a ouvir os sinais: Meus septópodes marcados deambulavam, sonolentos, no lago. Nos olhamos significativamente e saímos. Macha cuspiu, apartou o cabelo da cara e disse:

43 Gobio é um gênero de peixe actinopterígeo, da família ciprinídea. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gobio Nota do digitalizador-tradutor

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— Mas, vamos, há diferença entre uma nave cósmica e o lodo úmido num saco branquial.

O mandei voltar à beira e mergulhei de novo. Eu não me afligiria tanto quanto Gorbovski. É mui pouco sério tudo isso, o mesmo que toda sua astroarqueologia. Vestígios de idéias. Uma comoção psicológica. Não haverá comoção. O mais provável é que uns não percebam a presença dos outros. Acreditas que sentirão nossa falta?

Quanto a este conto:Tradução ao castelhano: Manuel Gisbert T.

Publicado em Café molecular - Cuentos de ciencia ficciónEditora Mir, Moscou, 1968

Edição digital: UrijennyTradução do castelhano ao português: Mário Jorge Lailla Vargas

http://biblioteca.d2g.comConto extraído de Selección de relatos cortos de ciencia-ficción soviética

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A nossos leitoresMir edita livros soviéticos traduzidos a português, espanhol, inglês, francês, árabe e outros idiomas

estrangeiros. Entre esses livros estão as melhores obras de diversos ramos da ciência e engenharia: Manuais pra centro de ensino superior e escola técnica. Mir edita também monografia, livro de divulgação científica e de ficção científica, assim como livro dedicado a ciência natural e médica. Podeis enviar sugestão e opinião a Editora Mir, 1 Rijski per., 2, 129820, Moscou, 1–110, GSP, URSS.

A editora Mir publica em português1 - Naum Ioirich

As abelhas, farmacêuticas aladasO livro apresenta a síntese da longa atividade científica, médica e experimental do autor. Trata em

pormenor do grande papel das abelhas e dos produtos da apicultura na saúde, na capacidade ao trabalho e na longevidade. O leitor conhecerá os efeitos benéficos do trabalho rejuvenescedor do mel, do veneno de abelha, da geléia nutritiva, do pólen das flores, da própole e da cera. Naum Ioirich, médico soviético e apicultor, é conhecido no estrangeiro pelo livro As propriedades medicinais do mel e do veneno de abelha, traduzido a varias línguas. As abelhas, farmacêuticas aladas tem várias edições em russo. A obra apresenta bastante interesse não somente aos médicos mas também ao mais vasto público.

2 - M. Krasnov, A. Kisseliov, G. MakarenkoAnálise vetorial

Uma boa preparação matemática do engenheiro de hoje contribui, sem dúvida, ao desenvolvimento da técnica nos distintos ramos. A análise vetorial, uma das disciplinas matemáticas que revestem uma grande importância na formação de engenheiro, faz parte do curso obrigatório nas escolas técnicas superiores.

A presente coleção fornece um mínimo de problemas necessários à assimilação do curso de análise vetorial. No começo de cada parágrafo há uma exposição teórica ilustrada pela solução dum número considerável de problemas típicos. A uma centena de exemplos assim resolvidos se juntam 314 problemas propostos. Alguns problemas de caráter aplicado foram escolhidos de modo que a solução não implique conhecimento especial doutra disciplina.

O livro pode ser considerado um manual breve de análise vetorial no qual se expõem, sem demonstração, os fatos teóricos básicos amplamente ilustrados em seguida. Poderá ser utilizado não somente como meio de se exercitar em análise vetorial mas também como livro de texto útil ao leitor que deseja aprender a manipular o cálculo sem se aprofundar em demonstração.

3 - M. Krasnov, A. Kisseliov, G. MakarenkoEquações integrais

Traduzido em primeira vez ao português, o livro apresenta problema e exercício que ilustram os métodos mais variados de solução de equação integral.

Equações integrais de Volterra e Fredholm de 1ª e 2ª espécies, equações de Fredholm ao núcleo degenerado, métodos de determinação dos números característicos e funções próprias, métodos de solução aproximada mediante substituição por núcleo degenerado, determinação aproximada de números característicos, métodos de Ritz, dos traços, de Kellogg, é um apanhado incompleto dos assuntos abrangidos. Um capítulo inteiro é dedicado à utilização das transformações de Fourier e de Laplace.

No começo de cada capítulo, se dá, por comodidade, um resumo de teoria onde se formulam os teoremas básicos e se resolvem problemas típicos. Servindo ao estudo prático das equações integrais, o livro pode desempenhar ao mesmo tempo o papel de guia breve nesse domínio da matemática. Se responde a todos os problemas. Alguns são munidos de indicações susceptíveis de facilitar a solução.

Se constata que o livro preenche uma lacuna existente na literatura didática e fornece aos estudantes universitários um excelente instrumento de trabalho.

4 - A GulfiaevMetais e suas ligas

(Metalografia geral e estrutural)É um livro de texto fundamental pro curso de metalografia dos centros de ensino técnico superior

especializados em metalurgia, construção de máquinas e politécnicos. Nesse livro se expõe a teoria geral dos metais e das ligas metálicas, a teoria e a prática de seus tratamentos térmicos. Se descreve, na relação recíproca, a composição, a estrutura e propriedades dos aços e ligas padronizados e dos mais modernos

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aços ao carbono e com liga, incluídos os de construção, termorresistentes, inoxidáveis e outros aços e ligas, assim como as propriedades dos metais não-ferrosos e suas ligas, ligas de precisão, objetos compostos e bimetálicos e muitos outros materiais metálicos. Na União Soviética esse livro de texto é básico pro estudo da metalologia. Cada nova edição é ampliada e renovada em 20% ou 30% em comparação com a precedente, tendo em conta o desenvolvimento dessa ciência. Por isso a edição em português, que oferecemos, é a tradução direta da 5ª edição em russo e pode ser considerada a última palavra da ciência e da técnica no ramo metalológico. O autor do livro, A. Gulfiaev, é um cientista emérito da URSS, doutor em ciências técnicas e professor. Trabalha nesse ramo da ciência há mais de 40 anos e é um dos cientistas soviéticos mais célebres. Seus trabalhos são uma considerável contribuição à metalologia teórica e na prática do tratamento térmico serviram de base à criação de novas marcas de aço. Foi o primeiro a propor o tratamento a baixa temperatura de aço com liga, pra diminuir a quantidade de austenite, resíduo que se utiliza em toda parte. Lançou as bases da teoria de aleação de aço rápido, estabelecendo uma série de regularidades na transformação atérmica, e trabalha eficazmente no problema da fragilidade a frio de aço. No começo se dedicou à metalologia ferramental e de aviação e durante os últimos 20 anos, à siderurgia, dirigindo o trabalho científico do Instituto de Aço de Qualidade. O presente livro, pelo método de exposição, clareza de linguagem e alto nível científico, conquistou o primeiro lugar entre os livros recomendados nos institutos metalúrgicos e de construção de máquina.

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