Café Tortoni

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Café Tortoni. “The oldest coffee shop in the whole country.” Ao único Leandro que existe; Ergue-se, imponente, rasgando os céus, a marca inequívoca de uma cidade que, tantas vezes, se confunde com o mundo. O Obelisco, construído em 1936, postal de Buenos Aires, mais parece uma espécie de centro de tudo, ponto de partida e de chegada de nada. Esta é uma cidade assim. De diferenças, contradições, quase de sedução implícita. As suas ruas não têm fim, nem princípio, cruzam-se apenas no soar dos dias, na beleza monumental do passado que perdura, na apreensão do futuro que não chega. As pessoas, em passo apressado, tomam malte ao ritmo do seu andar, e dirigem-se a todo o lado, dirigem-se a parte nenhuma. Há tristeza no olhar de quem vê a vida sem a sentir. Buenos Aires só sabe ser assim. Uma cidade de contrastes, distâncias, quase de tentação escondida. As suas ruas guardam segredos que em tempo algum serão revelados, e são uma metáfora da modernidade que inspira um país imenso. As pessoas carregam o fardo pesado dos dias que sentem não passar, e quase esquecem as raízes que as ligam. Há tristeza no olhar de quem sente a história sem a sentir. E junto ao Porto Madero, nas margens do Rio Plata, surge um oásis inesperado do caos que emana beleza numa cidade de 10 milhões de caras iguais. A música ecoa nas frinchas das casas coloridas, retrato que reconstrói tempos idos. O Tango de Carlos Gardel pelas tábuas de madeira, um dia barcos, um dia tornadas casa de tantas cores pelos emigrantes vindos de Itália. Cheira a Europa, e nunca se esteve tão longe dos europeus. É no Caminito que o ambiente festivo devolve a vida ao sentir adormecido. Nos passeios, as danças pelo som de Gardel conduzidas, o homem sem mãos que pinta em pormenores perfeitos a arte que os seus pés descobriram um dia, os turistas que eternizam em fotografias o que as palavras não sabem dizer. E as casas, sempre as casas, tão diferentes, todas entre si tão iguais, são um arco-íris que justifica uma aura qualquer que envolve os corações e os ressuscita na agitação típica que só ali o é. A cada canto, no meio da estrada, por entre vielas, em todo o lado, existem casais que mostram a magia do Tango a quem os quiser ver, a quem passa e não pode deixar de vê-los, mesmo que não queira. Elas são quase todas bonitas, vestem quase todas vestidos decotados, vermelhos, brancos, pretos, não importa a cor, e calçam quase todas sapatos de salto alto, pretos, enormes. Eles são quase todos feios, vestem quase todos camisa branca e calças azuis, ou camisa vermelha e calças pretas, sem se preocuparem na harmonia de roupa com a parceira, a harmonia existe nos pés, e calçam neles sapatos de verniz, pretos, enormes. Dançam e seguem o ritmo sem sequer o ouvirem. Os movimentos são de instinto, são programados, são treinados, são improvisados. Convidam os turistas a dançar. Alguns dançam sem saber, outros sabem e não dançam. A dançarina cega nunca dança com ninguém. É velha, não é bonita e o vestido não tem cor, não importa a cor. Os sapatos de salto alto há muito estão gastos, apertados, usados. Ela

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Conto por Filipa Lopes

Transcript of Café Tortoni

Café Tortoni.

“The oldest coffee shop in the whole country.”

Ao único Leandro que existe;

Ergue-se, imponente, rasgando os céus, a marca inequívoca de uma cidade que, tantas vezes,

se confunde com o mundo. O Obelisco, construído em 1936, postal de Buenos Aires, mais

parece uma espécie de centro de tudo, ponto de partida e de chegada de nada.

Esta é uma cidade assim. De diferenças, contradições, quase de sedução implícita. As suas ruas

não têm fim, nem princípio, cruzam-se apenas no soar dos dias, na beleza monumental do

passado que perdura, na apreensão do futuro que não chega. As pessoas, em passo apressado,

tomam malte ao ritmo do seu andar, e dirigem-se a todo o lado, dirigem-se a parte nenhuma.

Há tristeza no olhar de quem vê a vida sem a sentir.

Buenos Aires só sabe ser assim. Uma cidade de contrastes, distâncias, quase de tentação

escondida. As suas ruas guardam segredos que em tempo algum serão revelados, e são uma

metáfora da modernidade que inspira um país imenso. As pessoas carregam o fardo pesado

dos dias que sentem não passar, e quase esquecem as raízes que as ligam. Há tristeza no olhar

de quem sente a história sem a sentir.

E junto ao Porto Madero, nas margens do Rio Plata, surge um oásis inesperado do caos que

emana beleza numa cidade de 10 milhões de caras iguais. A música ecoa nas frinchas das casas

coloridas, retrato que reconstrói tempos idos. O Tango de Carlos Gardel pelas tábuas de

madeira, um dia barcos, um dia tornadas casa de tantas cores pelos emigrantes vindos de

Itália. Cheira a Europa, e nunca se esteve tão longe dos europeus. É no Caminito que o

ambiente festivo devolve a vida ao sentir adormecido. Nos passeios, as danças pelo som de

Gardel conduzidas, o homem sem mãos que pinta em pormenores perfeitos a arte que os seus

pés descobriram um dia, os turistas que eternizam em fotografias o que as palavras não sabem

dizer. E as casas, sempre as casas, tão diferentes, todas entre si tão iguais, são um arco-íris que

justifica uma aura qualquer que envolve os corações e os ressuscita na agitação típica que só

ali o é.

A cada canto, no meio da estrada, por entre vielas, em todo o lado, existem casais que

mostram a magia do Tango a quem os quiser ver, a quem passa e não pode deixar de vê-los,

mesmo que não queira. Elas são quase todas bonitas, vestem quase todas vestidos decotados,

vermelhos, brancos, pretos, não importa a cor, e calçam quase todas sapatos de salto alto,

pretos, enormes. Eles são quase todos feios, vestem quase todos camisa branca e calças azuis,

ou camisa vermelha e calças pretas, sem se preocuparem na harmonia de roupa com a

parceira, a harmonia existe nos pés, e calçam neles sapatos de verniz, pretos, enormes.

Dançam e seguem o ritmo sem sequer o ouvirem. Os movimentos são de instinto, são

programados, são treinados, são improvisados. Convidam os turistas a dançar. Alguns dançam

sem saber, outros sabem e não dançam.

A dançarina cega nunca dança com ninguém. É velha, não é bonita e o vestido não tem cor,

não importa a cor. Os sapatos de salto alto há muito estão gastos, apertados, usados. Ela

nunca os tira. Nunca se queixa. Não pode ver e não parece que sinta falta do que nunca viu.

Mas todos os dias ouve a música. E todos os dias, sem excepção, veste as roupas das noites de

glória e vai ao Caminito ouvir os aplausos dos outros. Os aplausos para os outros quando já

ninguém dança com ela.

O pintor sem mãos parece não saber há quanto tempo existe. Todas as palavras que diz, são as

mesmas que disse no dia anterior. Está sempre a desenhar, sempre a desenhar, sempre a

desenhar. Reproduz rostos, ou as casas do Caminito, ou nada. Mas desenha, sempre. Não sabe

fazer outra coisa. Hoje nota-se-lhe frenesim nos traços da tela. Olha inquieto para o grupo

quase infinito de gentes que lhe faz perguntas a que não sabe responder. Todas as palavras

que diz, e que são as mesmas que disse no dia anterior, são em espanhol. Parece não conhecer

as outras línguas. Se calhar, nem sabe que elas existem. O pintor sem mãos conhece a

dançarina cega. Nunca falou com ela, e ela nunca o viu. Mas ele conhece-a e todos os dias a vê

sem lhe falar. Já a desenhou. Imaginou-a nova, e desenhou-a. Desenhou-a bonita e com um

vestido colorido, quase tão colorido como as casas que os envolvem, que envolvem o colírio de

corpos que todos os dias passeiam no Caminito, e não sabem quem eles são. E desenhou-a tão

bonita que gostava que ela um dia se pudesse ver.

Num beco não muito longe dali, tão perto dali, num cruzar de vozes e risos, reclamações e

surpresas, há um corpo franzino que brinca com uma bola de trapos. Ninguém o vê, ninguém o

quer ver, e o miúdo continua a dar toques, sem os contar, parece não querer saber quantos já

deu. Dá toques na bola porque é assim que o sorriso traquina lhe surge na seriedade do rosto.

Dá toques na bola porque gosta e todas as palavras que diz, são as que a bola lhe permite

dizer. A bola que se tornou voz dos sonhos que se lhe lê nos olhos e que guarda no peito. Os

sonhos que alguém conseguiria ler, se olhasse para ele. Mas ninguém olha. Ali, naquele bairro

de tantas cores, os olhares fundem-se uns nos outros. E ninguém vê aquele pequeno, que não

tem mais que 8 anos, que se calhar até tem menos. Também ele não vê mais nada senão o

rolo de panos que lhe permite sonhar. Talvez a família não tenha dinheiro para lhe comprar

uma bola a sério, talvez ele nem sequer a queira, e sinta que qualquer uma, qualquer bola,

mesmo uma que não o é, lhe chega para sonhar. Também ele não vê o pintor sem mãos, nem

a dançarina cega, nem vê ninguém. Só vê a bola elevar-se tão alto no céu e voltar a cair direita

no seu pé.

Todos os dias são assim. Todos os dias a dançarina cega ouve os aplausos dos outros, todos os

dias o pintor sem mãos desenha rostos, casas, nada, e pensa na dançarina cega, todos os dias

o corpo franzino brinca com a bola e a leva tão alto quanto os sonhos que carrega e que todos

saberiam que carrega se alguém o visse.

O infinito grupo que fazia perguntas a que o pintor sem mãos não sabia responder parece

agora ter-se desvanecido no horizonte. Já ninguém bate palmas e a dançarina cega procura o

caminho da casa onde mora, colorida e que ela nunca viu, mas sente dela. O corpo franzino

segura a bola sob o pé, leva-a à cabeça, devolve-a depois ao chão. Repete o movimento vezes

sem conta. O pintor sem mãos, com a sensibilidade que a perda de que nunca fala lhe deu, faz

um esforço agreste para arrumar as tintas que espalhou no chão durante os inúmeros retratos

que fez durante o dia. Também não deve saber quantos. Provavelmente, nem sabe contar.

São os três tão diferentes.

O pintor sem mãos toma uma decisão que decidiu há já muito tempo. Levanta-se, oferece o

retrato à dançarina cega. A dançarina cega pressente no tacto do pintor sem mãos a diferença

que os une.

- Tu não tens mãos.

- Tu não vês e vês-me como mais ninguém.

O corpo franzino não se apercebe de nada. Ouve a voz da mãe que o chama para jantar.

Chama-se Leandro. E Leandro sonha, mas jamais imaginará os sonhos que um dia poderá vir a

viver.