Cafés e Blablablás_ Tudo Bem (1978)

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21/12/2015 Cafés e blablablás: Tudo Bem (1978) data:text/html;charset=utf-8,%3Ch3%20class%3D%22post-title%20entry-title%22%20itemprop%3D%22name%22%20style%3… 1/4 Tudo Bem (1978) Arnaldo Jabor pinta com cores vibrantes um apartamento chamado Brasil Um apartamento de classe média é o que basta para representar e conter as contradições de um Brasil gigantesco. Arnaldo Jabor, bebendo de fontes consagradas da nouvelle vague e tomando porres do neorealismo italiano, constrói um filme imaginativo, de lirismo absurdo, bemhumorado, e acima de tudo crítico. O antológico ator Paulo Gracindo (19111995) é Juarez Ramos Barata, um aposentado do IBGE, que revive as memórias do passado, com a amargura de ter vivido trinta anos de integridade. Nesta presente vida parada e sem prazeres, encantos e pecados, ele apela para os amigos do passado já falecidos: o integralista Alarico Sombra (Jorge Loredo, o impagável Zé Bonitinho), o dono de uma fábrica de macarrão Giulio Giacometti (Fernando Torres), o poeta verborrágico Penteado (Luiz Linhares). Juarez é sem sombras de dúvida a figura patética da decadência dos senhores da antiga casagrande, e também do velho amargurado que superdimensiona o passado com tons idílicos e lamenta o que poderia ter sido e não foi. Num apartamento cercado de Brasil onde índios do Xingu e o canto do uirapuru tocam na vitrola, e discursos políticos apaixonados pipocam da máquina datilográfica Juarez e sua família estão blindados, de certa maneira alienados do Brasil que realmente existe lá fora. Elvira (Fernanda Montenegro) é a esposa neurótica, que acredita piamente que o marido está a traindo, e imagina com nuance hollywoodiano todas as cenas do adultério. A filha deste estranho casal, Vera (Regina Casé), é uma baranga fútil, que vibra, sonha e sofre com os cafajestes

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Tudo Bem (1978)

Arnaldo Jabor pinta com cores vibrantes um apartamento chamadoBrasil

Um apartamento de classe média é o que basta para representar e conter ascontradições de um Brasil gigantesco. Arnaldo Jabor, bebendo de fontesconsagradas da nouvelle vague e tomando porres do neo­realismo italiano,constrói um filme imaginativo, de lirismo absurdo, bem­humorado, e acima detudo crítico.

O antológico ator Paulo Gracindo (1911­1995) é Juarez Ramos Barata, umaposentado do IBGE, que revive as memórias do passado, com a amargura de tervivido trinta anos de integridade. Nesta presente vida parada e sem prazeres,encantos e pecados, ele apela para os amigos do passado já falecidos: o integralistaAlarico Sombra (Jorge Loredo, o impagável Zé Bonitinho), o dono de uma fábricade macarrão Giulio Giacometti (Fernando Torres), o poeta verborrágico Penteado(Luiz Linhares). Juarez é sem sombras de dúvida a figura patética da decadênciados senhores da antiga casa­grande, e também do velho amargurado quesuperdimensiona o passado com tons idílicos e lamenta o que poderia ter sido enão foi.

Num apartamento cercado de Brasil ­ onde índios do Xingu e o canto do uirapurutocam na vitrola, e discursos políticos apaixonados pipocam da máquinadatilográfica ­ Juarez e sua família estão blindados, de certa maneira alienados doBrasil que realmente existe lá fora. Elvira (Fernanda Montenegro) é a esposaneurótica, que acredita piamente que o marido está a traindo, e imagina comnuance hollywoodiano todas as cenas do adultério. A filha deste estranho casal,Vera (Regina Casé), é uma baranga fútil, que vibra, sonha e sofre com os cafajestes

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com quem namora ­ uma típica patricinha: mentalidade oca e sonhos estreitos.Tem também o filho Zé Roberto (Luís Fernando Guimarães), um funcionário decarreira ascendente no funcionalismo público, cuja figura cheira a corrupção.

Em outras palavras, figuras patéticas mostradas com ares documentais em todasas suas fragilidades, preconceitos, ambições e paranoias.

É num tenso e dividido café da manhã dessa família excêntrica que as obras dereforma do apartamento começam. Ali dentro se inicia então o tráfego de um sem­número de tipos, tipos esses que encantam e chocam o pasteurizado lirismonacionalista de Juarez ­ um lirismo cristalizado adquirido pelo excesso alienantede cultura. O peão que sofre a miséria mas ri das próprias desgraças; a puta que sefaz de empregada experiente para engrossar os cobres; a outra empregada,mística, benzedeira­macumbeira, tida por muitos como uma santa...

O apartamento é de fato um Brasil.

O filme é construído com retratos, com alegorias. O som horrível e a imagemquase sempre escura não podem ser tratados como pontos de demérito para ofilme, até porque precariedade assim era uma constante nos filmes da épocaEmbrafilme. A câmera é estática, os enquadramentos chegam a ser cansativos,pois a própria performance dos atores ­ emotiva e exagerada em certos pontos ­conferem um ar cênico, de teatro. Seria um defeito se Jabor não tivesse ao seufavor um elenco notável (talvez o melhor já reunido numa produçãocinematográfica), e um enredo que necessitava tanto de potencial dramático,dirigido com uma forma competente. O filme assume em muitos pontos um DNAesgarçado do Maestro Fellini (1920­1993).

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O filme é um retrato desconcertante do Brasil, confinado naquele pedaço demundo que é o caótico apartamento de Juarez... A decadência da intelectualidade?A hipocrisia da classe mérdia? O sincretismo religioso? O gosto e o vício pelacorrupção? O apartheid social? Os imigrantes nordestinos? A invasão do CapitalEstrangeiro? A ressaca do Milagre Econômico? Tudo está lá, devidamenteapresentado. Essas contradições, essas idiossincrasias, esse jogo complexo decrenças e descrenças, esse olhar clínico de uma época conturbada de nossa história(final dos anos 70), são tratados com bastante humor e uma poesia de certa formaexaltada, intensa, sentimental e colorida, como num desfile barroco. E de umaatualidade impressionante.

O cordão carnavalesco feito pela empregada e os operários, batucando a marmita efazendo da vassoura com pano de chão uma porta­estandarte (menção à alegriairreverente do brasileiro?); a reforma caótica e conturbada do apartamento (ou daeconomia nacional no entra­e­sai de governo?); são pontos que, no filme, comuma beleza inebriante, nos convida a pensar, a refletir, a ver que nada mudou. E ahipocrisia dos donos da casa com a família de Piauí (José Dumont), que irá morarna rua por causa de despejo do barraco? Os donos da casa se compadecem, seemocionam por eles terem criança pequena, e oferecem parte do apartamento emreforma para a família de Piauí morar temporariamente. O incrível é que Juarez,Elvira, Vera e Zé Roberto se aborrecem depressa daqueles "entes estranhos" aperturbarem a estética da casa nascente, e chamam o síndico para, numaencenação forçada e já combinada, forçá­los a sair, sem que transpareça nisso avontade dos donos. O choque é tamanho quando se vê que o despejo de fato

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aconteceu porque Juarez não antecipou o vale para Piauí pagar o aluguel.Hipocrisia forte.

Juarez talvez seja o mais sensível de todos para perceber que tudo ao seu redor soacomo um ensaio dramático sobre o Nada. Acompanhado de seus três amigosfantasmas, tomando já por verdadeira a figura da amante lasciva imaginada pelaneurose da mulher, Juarez tenta ainda abraçar utopias, memórias românticas,putas antigas, caindo na bebedeira. A morte (assassinato) do poeta Penteado ésimbólica, e nada gratuita.

Nas relações humanas, resta esse estranho vácuo. O corpo caído na sala de visitas,e o sangue anônimo manchando o carpete.

Arnaldo Jabor viveu a segunda fase do Cinema Novo, tornando­se um dos seusmais notáveis expoentes. Tudo Bem é o primeiro capítulo de sua 'Trilogia deApartamento', seguido por Eu Te Amo (1980) e Eu sei que vou te amar (1984).Barroco, lírico, absurdamente poético e grandiloquente, Tudo Bem é de fato umaobra­prima do cinema nacional de todos os tempos. Um musical excessivo,burlesco, verborrágico, à italiana, onde desfila um país de alma doente ementalidade esquizofrênica. Uma construção consciente de um pensamento, comonum cinema­ensaio, o qual não se traduz de forma alguma numa panfletagemmoral ou política. Um pensamento que nada mais é que um esforço totalizante ­diria hercúleo ­ de sintetizar esse Brasil horrível e maravilhoso, que sendo dois, éum só. Como um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem ­ como diriaNelson Rodrigues (1912­1980), uma forte e indelével influência em toda a película.Arnaldo Jabor também propõe um esforço plástico, estético de mediar tudo issoem um ritmo vigoroso.

Sem contar a ironia que permeia toda a película, a começar pelo próprio título.Tudo bem. Ufanismo? Otimismo de um Brasil que avança? Ou um 'tudo bem' deresignado, de quem engole sem reclamar, de um sem personalidade?

­ 'Tudo bem' o cacete! ­ é a conclusão que nos acomete muito antes dos créditos.

Tudo Bem, 110 min, 1978.Regina Casé, José Dumont, Stênio Garcia, Paulo Gracindo, LuizFernando Guimarães, Luiz Linhares, Jorge Loredo, FernandaMontenegro, Zezé Motta, Paulo César Peréio, Maria Sílvia, FernandoTorres, Anselmo Vasconcelos, Wellington Botelho, Alvaro FreireDireção: Arnaldo Jabor. Roteiro: Arnaldo Jabor e Leopoldo Serran