CALAVIA SAEZ, Oscar. A terceira margem da história. Estrutura e relato das sociedades indígenas....

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ção da vida “pré-contato” – distribuição adequadaquando se tratava de grupos “aculturados” ou “in-tegrados” –; ou assumir a forma de um epílogo oude um necrológio, quando pelo contrário os pro-tagonistas eram donos de uma cultura distintiva eainda vigorosa, cujo crepúsculo mal se iniciavaperante os olhos melancólicos do etnógrafo.

Se o capítulo do contato, maior ou menor,prólogo ou epílogo, não perdeu sua importância,o florescimento da história indígena extravasoudecerto seus limites, fazendo da história uma di-mensão constante e interna das sociedades empauta. Essa redistribuição atendia a uma necessi-dade do movimento indígena que na época desa-brochava com força (Carneiro da Cunha, 1992).Povos que aspiravam a um futuro deviam ter tam-bém um passado, e assumir como própria, e nãomais como resultado de uma intromissão, a capa-cidade de mudança. O movimento da história in-dígena – e falo em “movimento” porque em vá-

A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA:estrutura e relato das sociedades indígenas*

Oscar Calavia Sáez

A história indígena no Brasil passou para oprimeiro plano do interesse dos antropólogos nosanos de 1980.1 O tema em si não era novo, mascostumava aparecer nas monografias na formade um capítulo específico, a saber, o contatocom a sociedade dos brancos que a rigor teria tra-zido a história para um lugar onde ela não se en-contrava previamente. A história seria uma soma-tória de externalidades: frentes de expansão,fricções interétnicas, políticas indígenas e indige-nistas, ações da sociedade nacional e reações na-tivas. Nas monografias, podia crescer até tomarconta da descrição e reduzir a prólogo a descri-

* Este artigo faz parte das atividades do projeto “Trans-formações indígenas: os regimes de subjetivaçãoameríndios à prova da história” (NUTI-PRONEX), de-senvolvido por equipes do MNRJ e da UFSC.

Artigo recebido em junho/2004Aprovado em novembro/2004

RBCS Vol. 20 nº. 57 fevereiro/2005

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rios sentidos ultrapassava os limites da academia,inserindo-se nas empresas do próprio movimentoindígena – tomou vários caminhos, alternativosou combinados. De um lado, promoveu uma re-cuperação e uma avaliação mais otimista do acer-vo documental produzido ao longo dos séculospelos agentes da sociedade colonial ou nacional,maior em quantidade e qualidade e muito menosperdido do que era de praxe considerar. Comessa revisão o movimento afirmava, ao mesmotempo, que o papel dos indígenas na constituiçãoda sociedade nacional era muito mais constante eprofundo do que os grandes relatos da “formaçãodo Brasil” deixavam entrever.

De outro, somando-se a uma tendênciamundial nos estudos sobre sociedades sem escri-ta ou sobre setores populares das sociedades le-tradas, o movimento adotou uma atitude renovadaem relação à tradição oral, aceitando seu valorde documento, ou mesmo realçando seu signifi-cado como visão alternativa à história oficial. Essanova legitimidade do oral coadunava-se com umaindagação sobre a percepção indígena da história,e, portanto, da abertura ao que poderia se chamarde “historicidades outras”, não necessariamenteem acordo com os padrões heurísticos ou crono-lógicos da historiografia acadêmica.

Em terceiro lugar, e confrontando uma dua-lidade central na antropologia, o movimento quenos ocupa se detinha sobre as relações entre es-trutura e história, debelando as versões estáticasda primeira e as versões entrópicas ou voluntaris-tas da segunda.

Cada uma dessas vertentes da historiografiados povos indígenas teve os seus inspiradores eseus autores emblemáticos, não necessariamenteafinados entre si, tributários e/ou renovadores detodos os paradigmas teóricos da antropologia. Emcomum, havia talvez uma valoração ética da histó-ria ou da historicidade. Afirmar que os índios têm –e sempre tiveram –, história, equivalia a uma rea-tualização de reconhecimentos anteriores; o de queeles têm, por exemplo, alma, ou racionalidade.

A afirmação da historicidade indígena assu-mia também a forma de uma revisão dos pressu-postos da antropologia, denunciando essa ficçãodos povos sem história cuja autoria era colocada

na conta do evolucionismo, do funcionalismo, doculturalismo ou do estruturalismo, dependendo dafiliação e das desafeições do crítico. É claro queessa ficção se apresentou de modos muito dife-rentes, que foram desde a caracterização dos pri-mitivos como um grau zero da humanidade (oude uma história que ainda não aconteceu), até adescrição de suas sociedades como formações es-táveis de fato ou por desígnio próprio, além daalegada impossibilidade de auferir uma história(entendida de modo estreitamente positivista) apartir dos dados disponíveis, ou ainda até o nãoreconhecimento da continuidade entre formas vi-gorosamente distintivas e híbridas surgidas da in-teração com o exterior. Os primitivos podiam serahistóricos por natureza, ou por vocação, ou pordefinição, ou por ignorância invencível acerca doseu passado. Por ser mais recente, ou mais suges-tiva, ou mais explícita, a fórmula levi-straussianada oposição entre sociedades frias e quentes –desdobrada em outras: relógios e máquinas a va-por, por exemplo (cf. Charbonnier, 1989, p. 30;Lévi-Strauss, 1987) – foi tomada em muitos casoscomo antagonista preferente dos arautos da histo-ricidade indígena, uma opção excessiva na medi-da em que se fazia dessa antinomia um resumodo conjunto das negações.

Deixando de lado, por enquanto, a injustiçadessa leitura do binômio levi-straussiano, é preci-so sublinhar que, na decisão desse novo status dahistória indígena com respeito à história universal,havia também muito dessa caça às dicotomias querivaliza com a sua formulação pela honra de sero passatempo preferido dos antropólogos. Dito deoutro modo, havia uma ênfase nas continuidadesem detrimento dos contrastes. Mesmo que se pos-tulasse a historicidade indígena como “outra his-toricidade”, era no termo “historicidade” e não notermo “outra” que recaia o acento, o que nãopode surpreender em uma tendência que reagiacontra o exótico.

Mas os estudos sobre história indígena jácontam com uma razoável maturidade, e pode seesperar que se libertem de alguns movimentos re-flexos dependentes de seu contexto de origem.Nem a afirmação de uma historicidade ecumêni-

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ca, nem a articulação de estrutura e história sãobandeiras que necessitem de mais defesa, muitoembora haja uma defasagem importante entre suaafirmação genérica e sua aplicação a descriçõesconcretas. A documentação sobre a história indí-gena passou a ser objeto de uma procura intensa.O movimento indígena vai assumindo como pró-pria – por exemplo, nos textos usados na educaçãoindígena diferenciada – uma historiografia que nemsempre se prende, porém, às pautas daquela “ou-tra historicidade” descoberta pelos etnohistoriado-res. Criado um consenso sobre generalidades, tal-vez seja o momento de se voltar sobre a históriaindígena e enfocar desta vez não já as suas conti-nuidades com um modo ocidental de palmilhar otempo, mas precisamente aqueles contrastes queem épocas anteriores permitiam imaginar a exis-tência de povos sem história.2

Os Yaminawa foram o tema da minha tesede doutorado (Calavia Sáez 1995), que tentou seaventurar pelas três vertentes da historiografia in-dígena antes citadas – o resgate da documenta-ção, a definição de uma outra historicidade e aarticulação de descrições estruturais e históricas.Em geral, os Yaminawa são um excelente pontode partida para um balanço. De um lado, estãomuito longe de representar aquele modelo crista-lino dos povos “sem história”, congelados ou se-guros na reprodução de suas estruturas. À pri-meira vista são evidentes sua instabilidade social,a alteração constante de seus assentamentos edos seus arranjos parentais e a sua mestiçagem.À primeira vista, também, é fácil se decantar poruma avaliação pessimista das suas relações como mundo em volta. Ao mesmo tempo, esses ín-dios desesperadamente históricos parecem enca-rar a história com alguma frialdade: fraco recordgenealógico, escassos vestígios – nomes própriosde personagens ou lugares do passado, marcostemporais – para servir de arcabouço a uma me-mória coletiva; pouco empenho na transmissãodos saberes. Nas páginas a seguir, pretendo deta-lhar essas características e traçar um balanço daminha experiência de escrita da história Yamina-wa, que pode se estender em alguma medida aoutros povos das terras baixas.

A eficácia documental

Em relação à primeira das vertentes da his-toriografia indígena – a da reavaliação das fontesdocumentais –, cabe dizer que o pessimismo quese aplicava ao conjunto dos povos indígenas de-veria se manter para um setor considerável destes.Uma busca insistente não conseguiu levantar arespeito dos Yaminawa senão notas jornalísticasesparsas, citações em longos listados de etnias, re-ferências de terceira ou quarta mão, relatos de umencontro fugaz ou estereótipos devidos a etniasvizinhas. Por muito proveito que possa se tirar desemelhante conjunto, trata-se de dados que nãonos situam no interior de uma sociedade Yamina-wa, mas no interior de um campo étnico no qualo termo Yaminawa ganha sentido. A rigor, dizem-nos muito mais da história de um nome do queda história de qualquer povo ligado a ele.

Sobretudo, falta o tipo de documentaçãodensa que podem produzir etnógrafos, missioná-rios ou agentes indigenistas. Essa falta – que per-siste até os dias de hoje – pode significar ainda as-sim alguma coisa, já que missionários, etnólogosou indigenistas têm produzido uma literatura con-siderável sobre quase todos os povos que encon-tramos em volta dos Yaminawa. É o caso dos Shi-pibo-Conibo, dos Piro, dos Kaxinawá. Que tipode acaso poderia determinar que os Yaminawanão tenham sido objeto dessa atenção? De fato,sabemos – embora os Yaminawa não lembrem –que há missionários católicos que os visitaramcom alguma freqüência na década de 1950. Maispróximos, e lembrados por eles, os missionáriosda missão Novas Tribos do Brasil – MNTB se es-tabeleceram cerca de vinte anos depois na AI Ma-moadate; ocuparam-se muito pouco dos Yamina-wa, preferindo concentrar seus esforços nosManchineri. A Funai, que só em 1975 se instalouno Acre, com meios humanos em geral escassos,constituiu um posto na aldeia Mamoadate, masnunca o fez na terra indígena das Cabeceiras doRio Acre, onde desenvolvi minha pesquisa. A do-cumentação sobre o grupo, mesmo nos últimosvinte anos, é escassa. Esse desinteresse persisten-te, provavelmente decorrente da constatação deque os Yaminawa são um grupo “difícil”, indica

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que missões religiosas ou leigas, produtoras porexcelência da documentação etnológica não pro-fissional mas de qualidade, fazem consciente ouinconscientemente uma seleção dos objetos desua descrição. A vasta e longa documentação so-bre os grupos Pano ribeirinhos elaborada pelosmissionários franciscanos ou seus visitantes (natu-ralistas, militares, geógrafos, aventureiros, artistas)trata, evidentemente, dos grupos que se instala-ram nas missões, e só de um modo muito indire-to daqueles que as evitavam permanente ou pe-riodicamente, e essa desatenção é a contrapartidado trabalho etnogenético que se dedica entretan-to aos seus vizinhos. As missões, em sentido am-plo, têm um papel importante na formação deetnias, e a fortiori da memória histórica dessas et-nias. Isso é importante especialmente para os po-vos Pano ribeirinhos que, parafraseando livre-mente a sugestão de Frank (1991), podem sermuito bem entendidos como híbridos de uma so-ciedade local e uma elite exótica. O mesmo pode-se dizer também, em um registro mais discreto,do papel que o Instituto Lingüístico de Verão –ILV cumpre com respeito aos Kaxinawá.3 No mí-nimo, cabe dizer que as etnias “selecionadas” pe-las missões têm, nesse diálogo com os seus diver-sos apóstolos, uma boa oportunidade parainventar a sua cultura, no sentido que Roy Wag-ner (1975) dá a essa noção, e que muito bem po-deria se estender à invenção da história.4 No má-ximo, pode-se supor que a acumulação de umatradição escrita externa consolida, ou eventual-mente cria, uma distinção entre povos “de refe-rência” – que atendem aos requisitos mínimos doque se considera ser uma etnia e uma história – epovos marginais a esse centro. O contraste entredocumentações ricas e pobres – sendo as ricas,necessariamente, aquelas em que os membros deuma etnia jogam um papel ativo, formulando suasmemórias – não é um simples gradiente quantita-tivo, mas o resultado de um processo que intro-duz divergências qualitativas e distribui papéis di-ferenciados no campo étnico. A produção, ou aco-produção de documentos é útil para elucidara história, mas não sem antes ser útil para fazê-la,muitas vezes, paradoxalmente, gerando esse tipode modelos cristalinos do passado que costuma-mos entender como a antítese da história.

O sujeito histórico

Essa questão vincula-se diretamente a umaoutra, aparentemente distante, que diz respeito àespecificidade da percepção Yaminawa da histó-ria. Qual seria o sujeito dessa história? O “nós” Ya-minawa – yura, yurawo, isto é, o “corpo”, o gru-po de parentes/co-residentes que troca alimentose substâncias corporais – é um sujeito sociológi-co, mas não um sujeito histórico. Não poderia sê-lo, porque uma sociedade cognática como a Ya-minawa necessariamente vê esse Yura se cindirou pelo menos se diluir geração após geração ca-minho ao passado; segmentos inteiros de uma so-ciedade “misturada”, que são partes constitutivasdo seu aqui e agora, formam o exterior no passa-do recente.

A rigor, nada há nisso de especificamente Ya-minawa, ou ameríndio. Qualquer história conscien-te do caráter construído das identidades enfrentaesse mesmo problema, trate-se de Yaminawa, daFrança, dos judeus ou dos ciganos. Mas no casoesse contraste entre uma história escrita na primei-ra ou na terceira pessoa do plural – essa tensãoentre o “nós” da atualidade e o “eles” de temposoutros – manifesta-se num limiar muito próximo àenunciação do relato. Para contar com esse sujei-to histórico estável, os Yaminawa deveriam, porexemplo, adotar uma norma de unifiliação – econtar sua história em nome de uma linhagem –ou se dar à empresa de criar uma identidade re-troativa. A segunda solução, padrão nas históriasnacionais, é a seguida por outros povos Panocomo os Shipibo-Conibo e os Kaxinawá, ora seidentificando com determinados padrões culturais(os da “civilização ucayalina”), ora definindo umcritério de identidade (os Huni Kuin, gente verda-deira, tem sua origem narrada num mito, se reco-nhecem por determinada organização das suas al-deias etc.). Os Yaminawa ignoraram ambas aspossibilidades: reconhecem-se num etnônimo quelhes foi atribuído pelos primeiros agentes da Funaique trataram com eles, mas acrescentam que nopassado eram Xixinawa e Yawanawa, ou antesMastanawa e Marinawa, ou Déianawa etc. etc.,sendo que todos esses nomes designam povos“outros”, diferentes entre si, distantes do narrador.

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Como historiador, minha tarefa foi rastrear emconjunto essas referências e as notícias esparsasem variadas fontes documentais, fazendo o relatonão tanto de um “povo”, mas de uma determina-da posição dentro do campo étnico.

Além dessa história construída por mim, osYaminawa possuem uma outra (trata-se de umoutro tipo de história) que me limitei a recolher ecomentar: as histórias dos antigos, chamadas she-dipawó. Os Yaminawa, que não se autodenomi-nam – são os outros que os nomeiam –, tambémnão contam sua história senão a de outros, – osantigos. Não obstante o termo shedipawó sugerirum elo de parentesco, podendo ser glosado como“os grandes avôs”, deve-se sublinhar que esse pa-rentesco não implica uma identificação. Os yuracompartilham netos (um único termo de paren-tesco engloba todos os indivíduos dessa geração),mas não necessariamente “avós”: os antigos nãosão imaginados como um bloco solidário de an-cestrais, mas como uma diversidade incontrolávelde eventuais inimigos. O melhor exemplo são osRwandawa que, se atendermos às interpretaçõesde um dos meus melhores informantes, perfazemuma das “metades” do atual povo Yaminawa, eque nos mitos aparecem constantemente no pa-pel de inimigos semi-monstruosos. De resto, os“grandes avós” não são uma manifestação de for-ça, sabedoria ou moral prístinas, mas protagonis-tas de um modo de vida insano, inviável; são ig-norantes, pobres, violentos (como são também,aliás, alguns contemporâneos. Antes que “ances-trais” são “marginais”. Essa falta de sujeito históri-co transcendental, ou, mais explicitamente, de umsujeito que seja a um só tempo narrador e agen-te da história, seria talvez uma característica dis-tintiva de uma história “fria”, mas que convivesem problemas com uma consciência de mudan-ça.5 Examinemo-los mais de perto.

Os shedipawó diferem consideravelmente deum padrão muito comum na história oral, que or-ganiza um continuum de proximidade/distânciatemporal. Atendendo à habitual taxonomia dasnarrações, todos eles são inequivocamente “mi-tos”, ou, para usar a econômica definição levi-straussiana, histórias do tempo em que os animaisfalavam. Não há separação entre esse tempo de

comunicação universal e um tempo exclusivamen-te humano. Cronologicamente os shedipawó sãoplanos: a única distinção entre o antes e o depoisfaz parte de um reduzido grupo de mitos “de ori-gem”. Antes do episódio narrado, os homens fa-ziam o amor na dobra do joelho, as mulheres nãosabiam parir, as sementes eram monopolizadas porum personagem sovina etc. Porém, esses mitos deorigem, capazes de traçar uma linha divisória en-tre o pretérito e a condição atual, não servem parafazer dessa linha um marco temporal de validadegeral; o antes e o depois se esgotam dentro decada narração. Não há um retrato diferenciado doque seria uma humanidade primeva em contrastecom a atual. Em particular, embora os mitos des-crevam o início de algumas capacidades importan-tes, eles em lugar nenhum descrevem o fim desseregime de transformações e de comunicação entreas espécies que serve de eixo ao conjunto das nar-rações. Em outras palavras, o fim dos tempos mí-ticos não faz parte desses relatos. Isso é com-preensível na medida em que os fatosextraordinários narrados, e que os Yaminawa sa-bem muito distantes da experiência cotidiana, seidentificam mais com uma distância sincrônica doque diacrônica; o tempo em que os animais falamé um outro tempo atual, o do xamanismo.

Se essa fraqueza de conjunto dos mitos de ori-gem neutraliza a dimensão cronológica dos shedi-pawó, ela reforça também uma característica queconvencionalmente marca os relatos históricos porcontraste com os míticos. Em poucas palavras, osshedipawó não são senão residualmente relatos pa-radigmáticos. São apresentados como episódios in-dividuais, que alguma vez aconteceram com umprotagonista individual e concreto: os títulos ou osresumos dos shedipawó falam sempre, por exem-plo, do homem que se transformou em queixada,ou do grupo que se transformou em queixada, nãoda origem das queixadas ou da sua caça. Há umaredução daqueles personagens que em outras mito-logias mostram um valor exemplar. Em numerosasocasiões, por exemplo, os mitos são protagoniza-dos por dois irmãos com características mais oumenos gemelares, mas não por isso existe um ciclode narrações dos gêmeos, nem estes assumem opapel de demiurgos pelo qual se destacam em ou-

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tras mitologias ameríndias. Os shedipawó apresen-tam-se como fatos que aconteceram uma vez – nãocomo fatos que aconteceram, por assim dizer, deuma vez e para sempre. A considerável liberdadecom que são expostos – sem requisitos ou restri-ções quanto aos narradores, à audiência, às circuns-tâncias da narração etc. – combina bem com o es-casso rendimento social que deles se obtém. Nãohá esforços para fazer deles histórias exemplares,para consagrar por meio deles hábitos ou normas.Embora o acervo dos shedipawó seja uma fonteinesgotável de referências para os cantos xamâni-cos ou amorosos, ou para comentários humorísti-cos sobre a personalidade de um vizinho (tão esfo-meado como Yurapibe, que devorou duas esposas,por exemplo), não existe uma atividade de exege-se socialmente demarcada que os eleve à categoriade história sagrada.6 Na sua textura mais existencialque essencial, os shedipawó aproximam-se parado-xalmente de um dos principais atributos com que afilosofia do ocidente identifica o histórico.

A mitificação dos fatos históricos representa,suponho, o caso que melhor alimenta a avidez dosdefensores da história oral. Depurar o mito desuas fantasias, localizar nele referências que oatrelem a uma narração fiel aos fatos, em suma ex-trair história do entulho mítico seria uma das tare-fas principais do etnohistoriador, e uma das maisprodutivas. O caso Yaminawa mostra, no entanto,que essa tarefa pode estar viciada por um pressu-posto ingênuo: o de que essa racionalização teriaficado à espera de um estudo formal, o de que ge-rações e gerações de nativos têm se limitado auma honesta acumulação de entulho mítico. Nadaimpede que a mitificação da história e a historiza-ção do mito tenham se sucedido regularmente aolongo dos séculos, e é muito provável que, domesmo modo em que se diz que a história é cons-tantemente inventada, possa se dizer que ela éconstantemente trazida à terra pela transformaçãode relatos paradigmáticos em relatos eventuais.

O homem branco

Mas estamos nos desviando justamente dotipo de relato que de praxe tem provocado as re-

flexões sobre a história indígena, isto é, aquele quediz respeito ao homem branco. Durante a minhapesquisa, de fato, o encontro com o homem bran-co me foi narrado com freqüência. Sempre me pa-receu claro, porém, que não se tratava de um rela-to shedipawó. Na ausência de uma diferenciaçãode gêneros narrativos – para a qual os Yaminawanão ofereciam nem muitos subsídios nem muito in-teresse7 –, esse relato parece constituir um gêneroem si. Trata-se, na verdade, de um único relatoque, com variações mínimas de detalhe, é repetidopor todos os narradores: no início, os Yaminawanão tinham sal, açúcar, machado de ferro; anda-vam nus, dispersos na floresta, sempre em movi-mento. Os brancos chegaram e os Yaminawa sen-tiram medo daqueles seres perigosos e talvezcanibais; os índios matavam brancos, os brancosmatavam índios; depois mudou (na versão maisdetalhada, trata-se de um menino Yaminawa rapta-do pelos brancos que, conhecendo as línguas deuns e outros, estabeleceu uma mediação) e desdeentão não há mais medo, os Yaminawa vão agoraà cidade, seus jovens vão estudar com os brancos;agora há sal, açúcar e ferro, há roupas.

Na sua aparente simplicidade, e na monoto-nia com que essa sóbria narração se repete deum enunciador a outro, podem passar desperce-bidos inúmeros vínculos com aspectos estratégi-cos para se entender a diversidade cultural Yami-nawa, como, por exemplo, o açúcar, o canibalismoe o machado de ferro. Além disso, o relato traz su-bentendido um paradoxo. Afinal, esse relato, quede certa forma oferece ao ouvinte estrangeiro umanarrativa histórica plausível dada sua absoluta ve-rossimilhança, apresenta, em contrapartida, um ca-ráter definitivamente paradigmático (e por isso,em certo sentido, ahistórico), já que, repetido semvariação apreciável de um narrador a outro, sejaqual for a origem deste, descreve não um encon-tro com os brancos, mas O Encontro, em sentidogenérico. Nada que individualize a “descoberta”dos Yaminawa entre centenas de episódios seme-lhantes, protagonizados por grupos indígenas dequalquer língua ou localização, por seringueiros,missionários ou agentes indigenistas. Poder-se-ia,talvez, alegar que de fato todos os encontros acon-teceram segundo esse mesmo roteiro: a narração

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monótona de uma história monótona. Mas não se-ria essa uma das razões que levaram Euclides daCunha a rotular a Amazônia como terra “à margemda história”? A reiteração dos mesmos episódios,das mesmas estratégias, das mesmas oposições sé-culo após século, não seria justamente o índice dafalta de história nas regiões afastadas dos grandescentros de poder do mundo – os palcos da histó-ria propriamente dita?

Talvez a historicidade desse relato ganhe ou-tro relevo se considerarmos que ele não só é, comefeito, uma narração sobre os brancos, mas sobre-tudo para os brancos.8

A primeira vez que o “relato do contato” mefoi apresentado – por Clementino, consensual-mente considerado o melhor conhecedor do acer-vo de shedipawó –, fiquei perplexo. A história daguerra e da paz com os brancos, da inicial carên-cia e posterior fartura de mercadorias, figuravacomo a segunda parte de um relato que descreviaa aquisição da sexualidade reprodutora: os ho-mens, que até então só tinham acesso à dobraposterior do joelho de suas companheiras, apren-deram do macaco prego a utilidade da vagina;desde então, os Yaminawa se multiplicaram.

Com esse relato híbrido, Clementino prova-velmente buscava definir, de um lado, a relaçãoentre os “relatos do contato” e o mundo dos she-dipawó; de outro, o lugar do branco na cosmolo-gia Yaminawa. Salta à vista o arranjo em paralelode duas narrações que, em conjunto, dariam con-ta da situação atual dos Yaminawa. Em lugar deintroduzir o “branco” como personagem em outrasnarrativas – isso nunca acontece –, em lugar decriar histórias manifestamente híbridas que pudes-sem ser lidas como mitificação da história ou his-torificação do mito, e em lugar de dedicar um re-lato a explicar a origem dos brancos, a soluçãoadotada foi propor um paralelo entre dois episó-dios que descrevem a aquisição de saberes bási-cos dos animais e desse outro importante persona-gem. A maneira pela qual Clementino apresentouseu relato cumpriria assim uma dupla função:como todos os outros relatos sobre o contato jogacom o reconhecimento do passado Yaminawa porparte dos brancos, com sua codificação das rela-ções em termos de diferencial de mercadorias, os

Yaminawa, ou seus ancestrais imediatos, inserem-se desse modo na história do ouvinte branco. Mascom o segundo segmento, o relato de Clementinoinsere também, metaforicamente, o branco dentroda tradição Yaminawa de fundar o mais íntimode sua vida na absorção de saberes e técnicas es-tranhos. A descoberta do sexo reprodutivo, quemduvidaria, não cede em radicalidade a todas as mu-danças que o homem branco introduziu. A vidados Yaminawa experimentou muitas novidades nosúltimos trinta anos; apenas a novidade em si é quenão era nova em absoluto para eles.

O relato do contato, centrado na aquisiçãode saberes estranhos, poderia ser mais bem en-tendido em conjunto com uma outra narrativa, di-rigida essencialmente ao interlocutor branco, eque poderíamos chamar de “relato do fim”. De-pois de falar eventualmente da perseguição, docativeiro e do esbulho dos Yaminawa pelos bran-cos, e sobretudo da “entrega” desses índios aosinvasores, tal narrativa centra-se no abandono desua cultura tradicional e em suas conseqüênciasprevisíveis. Declarações sobre a decadência cultu-ral dos Yaminawa acompanharam minha pesqui-sa desde o início, complementadas com previsõesbastante pessimistas acerca do futuro do grupo,que podem ser simbolizadas na seguinte frase:“daqui a trinta anos não haverá mais Yaminawa”.Como no “relato do contato”, é fácil reconhecernesse tipo de declaração uma avaliação plausível,neste caso sobre o futuro do grupo; novamente,essa plausibilidade depende do uso de conceitose diagnósticos bem conhecidos pelo ouvinte – umoutro ouvinte, desta vez, não mais o agente do in-digenismo oficial ou o patrão ou o seringueirobranco, mas o militante de uma ONG ou o antro-pólogo simpático às tradições alheias. Mais umavez, o relato abre um nicho para os Yaminawa nahistória do interlocutor, garante um diálogo e umaeventual colaboração. Entretanto, seu conteúdofactual merece algumas ponderações em virtudeda indefinição dessa “tradição” abandonada, assimcomo das condutas mais deletérias para o bom go-verno do grupo (brigas internas, constante deslo-camento, cisões) que, relatadas em outros mo-mentos como características dos “antigos”,parecem mostrar de modo mais evidente a conti-nuidade essencial dessa tradição “perdida”.

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Em suma, podemos dizer que o papel dobranco nos relatos shedipawó evoca em certo sen-tido o jogo que alhures as artes gráficas Pano es-tabelecem entre fundo e forma, o que permite aleitura de uma e outra trama no primeiro plano. Àprimeira vista, essas narrativas não fazem alusãoalguma ao homem branco, ao contrário, descre-vem um mundo livre de suas mercadorias, de seusdeuses. De outro lado, tratam dele constantemen-te, isto é, a todo momento aparecem os nawa, osinimigos, ora semelhantes ora monstruosos –“nawa” é o termo que designa os homens brancose que atualmente denomina os outros por exce-lência. À primeira vista, não mais que uma homo-nímia, embora tenazmente mantida: ao reproduziros relatos shedipawó ao idioma português, os Ya-minawa costumam traduzir “nawa” por “branco”,mesmo que isso tenha como resultado a apariçãode “brancos” atirando flechas ou compartilhando alíngua, os costumes ou os cordões penianos dosantigos. Mas será plausível supor uma simples ho-monímia quando se trata de um aspecto tão estra-tégico? Como já analisei em outro estudo (CalaviaSáez, 2002), o conjunto dos usos do termo “nawa”nos leva a uma conclusão contraintuitiva. Obceca-dos com a presença dos brancos, atraídos fatal-mente por suas cidades e suas mercadorias, os Ya-minawa não se deram ao trabalho de criar umacategoria nova para esse ser, mas optaram, antes,por lhe outorgar o usufruto de uma categoria cen-tral da sua cosmologia. Isso faz que o branco, deum lado, atraia para si a visão dos Yaminawa –como acontece em todas as avaliações que se es-tendem sobre a deculturação do grupo – ou se tor-ne invisível – como ocorre quando lemos o mun-do Yaminawa através dos relatos shedipawó. Emqualquer caso, não há um marco que permita fa-lar em antes e depois do branco; o nawa já exis-tia antes da chegado do homem branco. É eviden-te que isso não faz do universo Yaminawa umamónada surpreendentemente cega à ubiqüidadedos brancos – não haveria nenhum interesse emafirmar essa enormidade contra todo o senso co-mum. Trata-se, pelo contrário, de notar que o con-junto das categorias usadas para descrever as rela-ções possíveis no cosmos – que contava com aalteridade já em seu âmago – fica perfeitamentefrio ante essa presença.

Inventar a história

Devo reconhecer que a historificação dos re-latos shedipawó pode ser resultado do contextonarrativo, isto é, da pergunta acerca do passadoYaminawa que o motivou. Foi perguntando porhistória – e não, por exemplo, pedindo exegesesde tal ou qual prática – que obtive a coleção denarrações.9 Em outras palavras, minha pesquisaofereceu uma oportunidade – pela primeira vezpor escrito – para a invenção da história Yamina-wa. Já aludi às suas duas principais versões – a dosshedipawó e a do relato do contato. Mas houvemais uma versão de características muito diferen-tes, formulada por quem dispunha de maior fluên-cia na língua e nos modos discursivos do branco.O relato do chefe Correia, líder do grupo na oca-sião, foi essencialmente uma lista de lugares e vizi-nhos: em tal lugar, os Yaminawa convivem comShipibo, Piro e Catiana, em outro, com Sharanawa,Mastanawa e Marinawa; aqui, eles conhecem osperuanos, lá, ficam sabendo de índios selvagensque vivem escondidos na floresta. Entre uma e ou-tra localização, como motor contínuo dessa histó-ria, surgiram conflitos que determinaram a saídados ancestrais em direção a novos lares; em confli-to com outros índios, eles viram também se multi-plicar as divisões internas – os Yaminawa não sãosenão um conjunto de povos que só o homembranco tem decidido resumir nesse nome.

Pela ausência de elementos míticos e pelarelevância das informações e dos conceitos obti-dos no diálogo com indigenistas ou antropólogos(por exemplo, as noções sobre um tronco lingüís-tico Pano, ou os nomes dados aos antigos vizi-nhos peruanos), trata-se, sem dúvida, de um rela-to híbrido. Seria por isso um relato espúrio? Opróprio enunciador é, biográfica e funcionalmen-te, um mestiço que durante muito tempo transitouentre a aldeia, a cidade e os seringais e que tantoassumiu o papel de chefe indígena como de che-fe de posto. Mas deveríamos trazer para a histo-riografia indígena uma adaptação torpe da purezaétnica já descartada em outros âmbitos? Deveria ahistória indígena se limitar aos recursos da memó-ria, descartando o uso de informações obtidas di-reta ou indiretamente de uma tradição escrita? O

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A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 47

problema aqui não é se esse relato pode ou nãoser considerado a legítima história yaminawa. Issofoi ao menos garantido na medida e no tempo emque o chefe-historiador o socializou entre seus se-guidores. Mas ele é suficientemente “outro” paraoferecer uma contribuição original, ou não passade um reflexo, de uma reelaboração do escrito poroutros, do saber depositado nas bibliotecas? Comoem tantas outras ocasiões, a elucidação da históriaindígena recupera como problema um processoraramente tematizado, mas habitual em qualquerconsciência histórica, a saber, a transformação emmemória própria de informações obtidas de ou-trem.10 No caso indígena, a fronteira entre o pró-prio e o alheio, supostamente mais clara, sugereo paradoxo comum da fixação do factual median-te uma memória fictícia.

Cabe no entanto dizer que no relato de Cor-reia há ingredientes valiosos dessa história “outra”que cobiçamos para além de dados inéditos na bi-bliografia recopilados nas memórias dos seus se-guidores – o chefe é não só um narrador, mastambém um pesquisador. Refiro-me à ordenaçãodesses dados, os quais não se pode dizer que de-vam muito a qualquer uma das grandes narrativasda nossa historiografia, e menos ainda das que osnossos mediadores põem à disposição do histo-riador Yaminawa. Refiro-me em especial à defini-ção do protagonista não a partir de uma origem,mas em contraste com seus “outros”, que vão mu-dando de capítulo em capítulo: Shipibo, Catiana,Mastanawa etc. A narração do chefe Yaminawaapresenta um alto grau de sistematização: a histó-ria não é uma ilação de eventos, mas uma suces-são de estruturas – de relação interétnica – uni-das, ou mais precisamente separadas, por eventospontuais. Uma história em última análise conside-ravelmente fria, que leva as estruturas a gerar no-vas variantes de si mesma.11

Nem reis nem batalhas

Nenhum texto foi tão citado na bibliografiasobre história indígena dos anos de 1980 quanto osartigos de Marshall Sahlins sobre a história havaia-na, especialmente sobre a dramática identificação

entre o capitão Cook e o deus Lono. À parte de umargumento geral sobre a necessária articulação en-tre estrutura e história, Sahlins sublinha de modoprovocativo a capacidade de reis e batalhas (mar-cos da depreciada histoire évenementielle) de en-carnar e modificar estruturas duráveis. Tambémnessa rubrica a memória dos Yaminawa – à dife-rença da memória de muitos outros grupos indíge-nas – recusa oferecer satisfações imediatas ao pes-quisador. Nos relatos do passado não há nomespróprios, não há personagens heróicos, não hámonumentos; em suma, não há pontos de acumu-lação de informação que precisem ser reduzidos àestrutura. Mas esse perfil discreto em nada modifi-ca aquela articulação a que Sahlins se refere, pelocontrário, a leva a terrenos mais necessários.12

No caso dos Yaminawa pode-se rastrear empelo menos dois domínios clássicos do que cos-tumamos considerar estruturas, a saber, a mitolo-gia e o parentesco.

Quanto ao parentesco, não há dificuldadealguma em identificar a marca da história; massim, talvez, em reconhecer nela algum aspectoconstrutivo. É fácil perceber a diversidade de cri-térios no momento de classificar parentes, atribuirnomes, formular regras matrimoniais ou definir fi-liações ou agrupamentos. A precariedade dos da-dos genealógicos impede hierarquizar esses crité-rios ou medir sua efetividade. O parentesco seriaassim – não faltam exegeses nesse sentido no seiodo próprio grupo – um argumento em apoio dadesorganização cultural e étnica dos Yaminawa,uma estrutura não articulada na história, mas de-sagregada por ela. Entretanto, será que o modode articulação histórica das estruturas não estáprecisamente nesse contraste entre a ordem sem-pre discreta do passado (ou de um futuro postu-lado) e a pluralidade desordenada do presente?Quando se enuncia uma ordem autêntica, a auto-ridade moral do grupo – seja do chefe, seja dosvelhos, seja ainda “daqueles que sabem” – lançamão em primeiro lugar desse contraste entre tem-poralidades, baseando o discurso sociológico nodiscurso histórico. A suposta “imobilidade” dasestruturas advém de se identificar como “estrutu-ra” esse modelo legitimado (isto é, “tradicional”),e não o conjunto de variantes em que ele ganha

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sentido. O sistema de parentesco Yaminawa, queoscila entre modelos dravidianos, australianos oudakotas, não ilustra pois uma confusão entre or-dens, senão o aspecto de conjunto de uma estru-tura13 na ausência de uma autoridade capaz de ma-ximizar um desses aspectos sobre os outros, o que,em si, faz dos Yaminawa uma variante peculiardentro do conjunto Pano, dotado de exemploscristalinos de ordens “tradicionais”.14 As possibili-dades históricas da estrutura não residiriam na suacapacidade de responder a acontecimentos exter-nos, ou de se desdobrar neles, mas justamente nasua variabilidade interna, que permite, ou obriga,diversas leituras consecutivas. Os acontecimentoshistóricos – os reis e as batalhas de Sahlins – se-riam, assim, fundamentalmente pontos discretosde releitura de uma estrutura suscetível de mui-tas versões.

Quanto à mitologia, é evidente o seu caráterde obra aberta. Parece claro que determinadasnarrativas foram improvisadas para o pesquisador,com base em algumas fórmulas conhecidas quepermitiam faze-lo sem muito esforço. A compara-ção dos mitos Yaminawa com seus correlatos degrupos Pano muito próximos mostra, para alémde uma surpreendente continuidade de temas eargumentos, a facilidade com que esses mitosvêm se transformando, acompanhando alteraçõesem outros âmbitos, como o do parentesco e o daautoridade política. Em diversos artigos (CalaviaSáez, 2000, 2001, 2002, 2003) tenho tentado mos-trar como os mitos Yaminawa são capazes de sin-tetizar os contrastes que opõem esse grupo a ou-tros com os quais compartilha um mesmo acervonarrativo, tanto na montagem de episódios e nacaracterização de personagens, como no estilo eno contexto de enunciação. Em outras palavras,trata-se de uma mitologia inequivocamente yami-nawa, cuja coerência surpreende: coligidos de umnúmero elevado de informantes, procedentes degrupos diferentes e que poderiam fazer da orali-dade Yaminawa uma federação de tradições par-ticulares, esses mitos formam, pelo contrário, umacervo bastante consolidado. As variações quepodemos perceber entre as diversas versões, ape-sar da diferença de estilos entre os narradores,são mínimas, o que garante relatos homogêneos

em contraste com as narrativas de povos muitopróximos. Essa divergência ordenada em relaçãoa outras mitologias vizinhas sugere que os mitosYaminawa estão longe de representar um materialconservador. Muito pelo contrário, são especial-mente sensíveis ao curso da história e permitemao pesquisador detectar tendências pouco reco-nhecíveis em outros campos da vida social yami-nawa. Maleáveis para o narrador, mas submetidosa um processo de comunicação que descarta ounormaliza as novidades, isto é, que as estrutura.Não é surpreendente que, a partir de Lévi-Strauss,uma versão móbil da noção de estrutura que nãose opõe à mudança, mas que a exige como con-dição permanente, tenha se baseado precisamen-te nos mitos. Em última análise, que melhor lugarpara esse curso da história senão um modo cam-biante de contá-la? Os mitos Yaminawa são histó-ria não porque abarquem informações inéditas eirredutíveis sobre o passado, mas porque o refor-mulam constantemente. Fazem-no agora e nadaindica que não o tenham feito anteriormente.

A terceira margem

A história, submetida às condições do casoYaminawa, tem a possibilidade de recuperar algu-mas feições originais. E não porque permite gran-des aproximações entre nosso relato histórico eum relato histórico de outro tipo; antes, nos de-volve, reformulada, a distância estabelecida entreos povos com ou sem história. O que os Yamina-wa nos narram carece desses marcos que habi-tualmente têm servido como pedras de Rosetta nainterpretação das memórias indígenas como histó-ria: grandes acontecimentos, divisão em grandesperíodos. Além disso, a própria precariedade dosdocumentos referidos aos Yaminawa e a indeter-minação de uma identidade transtemporal impe-dem que pensemos o discurso Yaminawa sobre opassado como uma “tomada de consciência” deuma história já existente. Dirigidos ao homembranco, e elaboradas com um uso generoso de seustermos, as narrativas Yaminawa mostram freqüen-temente a história como invenção. Essa ausênciade uma historia “dada” – da qual o discurso his-

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A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 49

tórico construído seria um reflexo mais ou menosfiel – sublinha em contrapartida dois aspectos im-portantes que costumam não aparecer na historio-grafia dos povos “com história”. O primeiro dizrespeito ao papel relevante que saberes outrosadquirem nesses relatos, ou seja, a história enten-dida como narração de outros ou sobre outros. Osegundo concerne ao papel essencial que o dis-curso histórico assume na história em si: nãocomo reflexo dela, mas como fator de primeira li-nha na sua prática. A formulação da história dis-simula sua eficiência quando encomendada a umcorpo de especialistas distantes do palco político,e assim, paradoxalmente, à margem da história,mas se mostra a plena luz quando, em função deuma liderança política, passa a ser entendida comoum acontecimento central.15 Nesse ponto estraté-gico, o discurso histórico ocupa, para os povosindígenas, o mesmo lugar em que se encontra aabsorção de alteridade via a aliança matrimonial eo ingresso de mercadorias ou doutrinas, além deestar provavelmente sujeito aos mesmos filtroscosmológicos que regulam essas outras incorpo-rações. Os povos indígenas absorvem a históriaalheia não porque careçam dela, mas porque asubmetem ao mesmo regime de subjetivaçãoque é aplicado ao material sociológico, ideológi-co ou técnico.

Mas a ausência na história Yaminawa degrandes acontecimentos, de reis, batalhas e se-qüências temporais – em suma de motivos narrati-vos – serve para que a história se localize onde elaestá dada, antes da sua elaboração narrativa, istoé, na variabilidade mandatória das estruturas, quesó podem ser percebidas em seu contraste e emsua alteração. A alteração é, pois, o estado normal;ao contrário da estabilidade primitiva (entre os Ya-minawa sempre se espera que a autoridade de umchefe seja capaz de implementar na realidade ouna memória tal estabilidade), ela é um fruto sele-cionado da história que nem sempre amadurece.

Retomando o início deste artigo, lembremosque a reivindicação da história indígena se deuem duas frentes: a da historicidade objetiva dospovos indígenas (que não são imagens congela-das de um estado primitivo) e a da sua subjetiva-ção, isto é, a presença de um saber histórico e,

portanto, de uma consciência histórica peculiar.Parece claro que essas dimensões devem estar ar-ticuladas, isto é, a constatação de que a maneirapela qual os povos percebem e narram sua histó-ria é parte essencial dessa história. É nesse pontoque podemos perceber quão errada foi a leiturado binômio sociedades frias/sociedades quentescomo uma negação da história, quando deveriater sido considerado justamente a chave para aelucidação do contraste entre historicidades diver-sas. Apenas os relatos propagandísticos do Pro-gresso, das Luzes ou da Revolução – cuja impor-tância não deve ser desdenhada, pois cumpremum papel muito importante no percurso dos po-vos “com história” – fazem da distinção entrequente e frio uma questão de dados. Na prática,os dados só aparecem ordenados em relatos, quesão os que definem o seu valor. É assim que re-voluções se travestem de restaurações, e restaura-ções de revoluções; é assim que tudo muda paraque tudo permaneça igual, e que as grandes mu-danças atuam como velhas toupeiras socavandoum solo aparentemente imutável. Entretanto, so-mente a concepção de Lévi-Strauss16 tendia a fa-zer desse jogo não uma astúcia da história, masuma ação humana suscetível de versões alternati-vas. Para entender as manipulações da tempera-tura histórica é preciso perceber que, na versãolévi-straussiana, as estruturas são incapazes de darconta de ambos os feitos que se lhes atribui: o depermanecer incólumes (constituídas de contradi-ções entre os termos – sua estabilidade seria umacontradição nos termos) e o de abolir-se para darlugar a estruturas absolutamente novas (seus ter-mos são demasiado básicos para que se possa ima-ginar uma nova configuração que prescinda de-les). A comparação dos contrastes existentes norelato histórico é que torna possível perceber quea história, quer se trate de revoluções, quer se tra-te de permanências, é sobretudo um efeito de sen-tido, amplamente eficaz sobre a realidade.

A terceira margem da história é habitada poresse historiador orgânico que seleciona dados, rit-mos e direções, que determina o frio ou o calordo relato. Talvez, mais do que encontrar histórialá onde alguém supôs que ela não existisse, noestudo da história indígena é importante reencon-

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trar, na invenção do sujeito, na variação mítica, namimese de outros relatos, os traços vivos originaisda prática da história, tantas vezes apagados pelarotina da historiografia.

NOTAS

1 Estou pensando sobretudo em atividades como os

Grupos de Trabalho (GTs) sobre história indígena

nas reuniões da ABA e da Anpocs, a elaboração do

Guia de Fontes sobre a História Indígena no Brasil,

e em grupos especializados como o Núcleo de His-

tória Indígena e do Indigenismo, criado na USP por

Manuela Carneiro da Cunha. Contudo, muitas ou-

tras iniciativas individuais ou coletivas trilharam

esse campo nesse período, embaladas por um in-

teresse geral em relação a temas como, por exem-

plo, a memória e a história oral, considerando esta

um método e um movimento político-cultural.

2 Não cabe no espaço restrito deste artigo uma ava-

liação geral – de resto, muito necessária – da ex-

tensa bibliografia sobre história indígena produzi-

da nos últimos decênios. Ver mais detalhes da

revisão aqui esboçada em Viveiros de Castro et al.,

2003.

3 Somente depois de uma presença continuada de

pregadores/pesquisadores do ILV que aflora com

notável clareza um modelo Kaxinawá que não se

reconhecia em documentos mais antigos. Ver Cala-

via Sáez (2000, pp. 25-27).

4 Uma boa oportunidade não é necessariamente a

única oportunidade. Qualquer reconstrução de

longo prazo do passado Pano (ver Lathrap et al.,

1985) adverte a existência de contatos muito ante-

riores ao dos brancos e, sem dúvida, não menos

dramáticos.

5 Esse sujeito impossível da história Yaminawa acres-

centa uma nova dimensão às discussões sobre a

possibilidade de uma história ou de uma agência

histórica “sem sujeito” (cf. Palti, 2004); a alternati-

va sujeito/não sujeito estaria “na história” e não so-

mente na teoria da história.

6 De maneira significativa, o xamanismo, tão intima-

mente ligado a esses relatos, é uma atividade afas-

tada da esfera pública.

7 Algo parecido acontecia com os relatos protagoni-

zados exclusivamente por animais, que de um lado

pareciam ficar fora do campo dos shedipawó stric-

to sensu, mas que ao mesmo tempo acabavam se

alinhando a eles, na falta de uma categoria especí-

fica na qual se pudesse inseri-los.

8 O destinatário, e o contexto que ele aporta, é raras

vezes levado em consideração ao se tratar de his-

tória indígena. O trabalho de Gow (2001) é uma

exceção notável, útil também para apreciar a rele-

vância do improviso nesse diálogo histórico.

9 No entanto, é preciso dizer que, durante a pesqui-

sa, foram oferecidas também oportunidades ao dis-

curso exegético, mas não se obteve resultados

apreciáveis. A historificação das narrativas não se

deu às custas de um hábito exegético recalcado.

Ademais, a exegese acontecia eventualmente por

meio da historificação – uma restrição alimentícia,

por exemplo, deveria ser um costume dos antigos,

porque havia um relato que fazia tal referência.

10 Em contrapartida, a oralidade eminente atribuída

naturalmente à história indígena dissolve um outro

problema que na historiografia escrita se deixa cap-

tar melhor, a saber, o do esquecimento. Saber quais

dados foram apagados da memória pode ser tão re-

velador quanto a memória preservada em si. Essa

vertente da historiografia indígena continua inédita,

embora não faltem dados para explorá-la.

11 Vale dizer, porém, que no relato em pauta essas va-

riações tinham uma direção definida: a do progres-

sivo isolamento e desagregação dos Yaminawa.

12 Segundo uma crítica recente de Peter Gow (2001, p.

18), as análises de Sahlins mostram mais a possibili-

dade de dar valor antropológico a acontecimentos

históricos do que um modo de se fazer história a

partir de estruturas.

13 Sobre a possibilidade, ou a necessidade, de convi-

vência desses sistemas, cf. Viveiros de Castro, 1995.

14 O que equivale a sugerir (seguindo a referência clás-

sica de Leach sobre a Alta Birmânia) que esse con-

junto deve ser lido como um sistema de situações

políticas, e não só como um agregado de etnias.

15 Essa situação se equivalente, no nosso caso, se a

presidentes e reis correspondesse constitucional-

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A TERCEIRA MARGEM DA HISTÓRIA 51

mente a enunciação da história oficial. Algo, afinal,

não tão longe assim da nossa experiência: basta

lembrar que a primeira História General da Espa-

nha leva a assinatura do rei Alfonso X, que Thiers

foi um historiador importante e que o imperador

Pedro II teve um papel relevante na formulação de

uma história do Brasil. A desatenção para os elos

entre acontecimento e estrutura, porém, podem le-

var o estudioso a imaginar tais empresas como uma

espécie de atividade de lazer.

16 O binômio de Lévi-Strauss parte da textura socio-

lógica das sociedades, e não da percepção e do

relato da história. Estes últimos são abordados

principalmente na sua polêmica com Sartre (Lévi-

Strauss, 1962).

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 203

A TERCEIRA MARGEM DAHISTÓRIA: ESTRUTURA E RE-LATO DAS SOCIEDADES INDÍ-GENAS

Oscar Calávia Sáez

Palavras-chaveTeoria antropológica; História;Etnohistória; Sociedades frias;Yaminawa.

A partir dos resultados da pesquisa

realizada pelo autor entre os Yami-

nawa do Acre, este artigo faz uma

investigação histórica a respeito dos

povos indígenas no Brasil. É possível

formular algumas questões sobre o

papel que cabe a essa historiografia

no quadro teórico geral da antropo-

logia. A história dos povos indígenas

veio nos dizer algo novo a respeito

deles, ou veio, antes, afirmar algo

sobre uma antropologia que, duran-

te muito tempo, se apoiou, de modo

mais ou menos explícito, na distin-

ção entre uma humanidade “com” e

outra “sem” história? Assistimos, sim-

plesmente, à dissolução de mais

uma falsa dicotomia, ou talvez essa

dicotomia era demasiado produtiva

para não desaparecer sem deixar

atrás de si uma modificação profun-

da dos seus termos?

THE THIRD SHORE OF HIS-TORY: STRUCTURE AND NAR-RATIVE OF THE INDIGENOUSSOCIETIES

Oscar Calávia Sáez

KeywordsAnthropological theory; History;Ethnohistory, Cold societies; Yaminawa.

From the point of view of my own

research among the Yaminawa of

the Acre River, this paper examines

the latest historiography on the indi-

genous peoples in Brazil – a rather

new discipline, since these peoples

were viewed as “out of history” not

long ago. It brings some questions

on the role that the historicity of in-

digenes plays in the broader theore-

tical frame of anthropology. Does it

tell us anything new about “natives”

or about this anthropology that has

been leaned, more or less explicitly,

in the distinction between humanity

“with” and “without” history? Have

we either faced the dissolution of

another false dichotomy or perhaps

such dichotomy used to be too

much productive not to have disap-

peared without leaving behind a

profound modification of its terms?

LA TROISIÈME RIVE DE L’HIS-TOIRE: STRUCTURE ET RÉCITDES SOCIÉTÉS INDIGÈNES

Oscar Calávia Sáez

Mots-clésThéorie anthropologique; Histoire; Ethnohistoire; Sociétésfroides; Yaminawa.

À partir des résultats des recherches

développées parmi les indiens Ya-

minawa, de l’État brésilien de l’Acre,

l’auteur propose une investigation

historique des peuples indigènes au

Brésil. Quelques questions se po-

sent à propos du rôle de cette histo-

riographie dans le cadre théorique

de l’anthropologie: l’histoire des

peuples indigènes nous enseigne

quelque chose de nouveau en ce

qui les concerne ou, plutôt, sur une

anthropologie qui, pendant long-

temps, s’est fondée, de façon plus

ou moins explicite, sur la distinction

entre une humanité “avec” et une

autre “sans” histoire? Sommes-nous

tout simplement face à la dissolution

d’une autre fausse dichotomie, ou

cette dichotomie était-elle trop pro-

ductive pour ne pas disparaître sans

laisser derrière elle un changement

profond dans son contenu?