Camargo emerson zíngaro - revendo a música sertaneja

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REVISTA USP, São Paulo, n.64, p. 58-67, dezembro/fevereiro 2004-2005 58 N brasil rural dossiê

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Revendo a

música sertaneja

WAL

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YR C

ALDA

S

Para Christiane, pura beleza e ternura.

No início dos anos 70, mais precisamente

em 1973, quando comecei a pesquisa sobre a

música sertaneja, nosso país vivia uma realida-

de sociopolítica e econômica muito diferente

do momento atual. Dito dessa forma, esse as-

pecto parece não ter nenhuma importância.

Posso dizer, no entanto, que tem tudo a ver.

Naquela época, vivíamos mais um perío-

do cíclico e crítico da sinuosa trajetória política

do país. Os militares que tomaram o poder à

força em 1964 reinavam soberanos, estabele-

cendo as regras de tudo, incluindo a produção

cultural. A literatura, o cinema, o teatro e a

WALDENYR CALDASé professor de Sociologiada Cultura Brasileira daECA-USP e autor de, entreoutros, Literatura daCultura de Massa (Musa)

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música, entre outras manifestações,necessariamente, passavam pelo crivo dacensura militar.

Com a música sertaneja, é claro, nãofoi diferente. Aliás, já não o era, desde ostempos do Estado Novo de Getúlio Var-gas. Naquela época, a dupla Alvarenga eRanchinho foi presa diversas vezes, porcantar músicas do seu repertório, critican-do os desmandos autoritários do presidenteVargas.

Esse fato histórico, porém, perdeu-seno tempo. Só os pesquisadores, eventual-mente, o comentam em seus escritos ou con-ferências. Mas talvez haja uma razão paraisso, e ela é muito simples. Os grandescontestadores Alvarenga e Ranchinho nãoresistiram ao “fascínio” do establishment.Foram cooptados pelo governo com muitafacilidade e passaram a fazer shows no Pa-lácio do Catete para Vargas e seus amigos.Mas há uma estranha ironia nessa trajetó-ria. As mesmas músicas, o mesmo repertó-rio que levaram a dupla à prisão por criticaro governo agora teriam efeito inverso. Em

suas apresentações no palácio, Alvarengae Ranchinho arrancariam muitas gargalha-das e aplausos de Vargas e seus amigos.Alguns eram integrantes do seu governo,outros não.

Nos anos 70, com a devida diferença detempo e espaço, teríamos a reedição dessefato. Algumas duplas sertanejas, já plena-mente inseridas na lógica de mercado daindústria cultural, introduziam temas polí-ticos em seus repertórios. Só que agora asituação torna-se mais diversificada. Se, porum lado, surgiam canções sertanejas decontestação à política dos militares, à for-ma como conduziam nosso país, é verdadetambém que havia outras canções elogiosase de grande exaltação àquele governo.

Apenas para ilustrar, quero citar o casoda dupla Davi e Durval, intérprete da mú-sica “Lei Agrária”, grande sucesso daque-la época. Seus autores, Goiá e FranciscoLázaro, tornar-se-iam verdadeiros apolo-getas do governo Médici. No texto poéti-co dessa canção, há um resumo daquiloque pretensamente esse governo teria rea-lizado, ou seja: “amparo ao caboclo brasi-leiro”, alfabetização do homem rural, atra-vés do Mobral, extensão da Lei da Previ-dência, avanço da tecnologia, entre outrasrealizações. Como exemplo do ufanismoda época, vale a pena a transcrição dessacanção:

“LEI AGRÁRIA

Lá nas alturas, o Senhor OnipotenteDeu ao nosso Presidente a sublime

[inspiraçãoDe dar amparo ao caboclo brasileiro,O querido herói-roceiro, que não tinha

[proteção.Com o Mobral, nossos caros lavradoresJá conhecem bem as cores da Bandeira da

[Nação.

Você, caboclo, neste sesquicentenário,Foi o beneficiário, com a Lei do Lavrador:Daqui pra frente, não será mais um meeiro,Ninguém vai ganhar dinheiro explorando

[seu suorE seu produto, tendo preço tabelado,

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madas mais letradas do país e, talvez porisso mesmo, seja tão desconhecido nesseuniverso. Durante muito tempo (e isso ain-da sobrevive um pouco), intelectuais e pes-quisadores não se interessavam por temasculturais consagrados pelo grande público.Refiro-me às baixas camadas da popula-ção. Esses temas eram e ainda são conside-rados inexpressivos em seus valores e con-formações estéticas. Essa é uma discussãoque, infelizmente, pela exigüidade do es-paço, não posso aprofundar neste ensaio.De qualquer modo, é importante registrarque, tanto quanto a música popular brasi-leira convencional, a música sertaneja tam-bém teve seus compositores e cantores queresistiram e enfrentaram o período do auto-ritarismo militar em nosso país. Esse dado,a meu ver, ganha ainda mais importância,se algum futuro pesquisador se interessarpor esse período da música sertaneja. As-sim, reitero o que já disse anteriormente.Ela não teve, naquela época (e atualmentetambém), um discurso somente alienado.Teve também seu segmento bastante politi-

Você não será lesado pelo astuto[comprador.

A Lei Agrária, que por nós era esperada,Foi agora assinada pelo Chefe da Nação.E na doença vem a Lei da Previdência,Você vai ter assistência e também sua

[pensão.Irmão do campo, brindo aqui o seu

[sucesso!Viva o Brasil-Progresso! Viva a

[Revolução!

Doce Brasil, manancial de poesia,Sua tecnologia já tem fama mundial,Coisas sublimes acontecem nesta terra,Onde a paz venceu a guerra e o bem

[ganhou do mal.Como me orgulho de você, Brasil querido,O exemplo a ser seguido para a paz

[universal!”.

Convém agora, um registro significati-vo: nessa época, em que pese a predomi-nância de um discurso ufanista no universoda canção sertaneja, é bom esclarecer queele era também contestado por um grupode compositores não alinhados àquele ufa-nismo. Aliás, ao contrário. A exemplo doque ocorreu com a chamada música popu-lar brasileira nessa ocasião, a música serta-neja também cindiu-se em dois grupos: os“alienados” e os “engajados”.

A rigor, esses termos não dão conta darealidade dos fatos. Isso porque não haviapropriamente alienados ou engajados, tan-to na música popular brasileira quanto namúsica sertaneja. Havia, isto sim, compo-sitores, cantores e artistas contrários ao au-toritarismo e aos desmandos políticos dosmilitares. Perseguidos de forma implacá-vel pela censura, eles reagiam denuncian-do a interferência direta em seu trabalho e,mais do que isso, levando ao grande públi-co, através de suas canções, as mazelas dasociedade brasileira. Essa era a tônica daépoca em todos os segmentos da culturabrasileira.

A música sertaneja não fugiu à regrageral. A única diferença é que esse estilomusical nunca dirigiu seu discurso às ca-

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zado, principalmente se considerarmos origor da repressão desencadeada pelo Es-tado. Temas como, por exemplo, desem-prego, acidentes do trabalho, subemprego,falta de liberdade, mendicância, entre ou-tros, aparecem no cancioneiro sertanejodessa época. Apenas como registro, vale apena conhecer a canção “Levanta Patrão”,de Lourival dos Santos e Tião Carreiro,interpretada pela dupla Tião Carreiro ePardinho.

“LEVANTA PATRÃO

Um pobre trabalhadorPara melhorar de vidaDeixou a terra queridaSeguiu pra lugar distanteA fim de ganhar dinheiroChegou na cidade grandeOnde o progresso se expandeDinheiro corre bastanteTrazendo rica esperançaNa sua pobre bagagemSaúde e muita coragemUma força de giganteÉ de cortar o coraçãoCoitado não teve sorteO seu prêmio foi a morteNuma firma importante.

O caboclo tinha raçaCom seus dois braços roliçoNo seu primeiro serviçoTarracou de unha e denteHomem de sangue na veiaHonrado e trabalhadorDerramava seu suorSorrindo sempre contentePara Deus ele diziaEstou fazendo seu gostoCom o suor do meu rostoGanho o pão honestamentePerdemos um companheiroNo serviço trabalhandoQuem ficou, ficou chorandoMeu Deus quem é que não sente?

Levanta, patrão! Levanta!Pra ver o enterro passando(Falado)

Perdemos um companheiroNo serviço trabalhando

Quase sempre ele diziaMinha estrela ainda brilhaVou rever minha famíliaMinha mãezinha doenteFoi tudo por água abaixoO sonho deste coitadoHoje vai ser enterradoDistante dos seus parentesLevanta, patrão! Levanta!Pra ver um brasileiro mortoProcurando seu conforto!Morreu firme no batenteAmanhã tem outro diaTenho que mandar o malhoChorando vou pro trabalhoTocar o serviço pra frente.”

Em que pese a singeleza do texto dacanção, sem nenhuma pretensão artístico-literária, subjaz em seus versos a intençãode denúncia contra a falta de segurança dotrabalhador braçal. Mesmo assim e guar-dadas, evidentemente, as devidas propor-ções, recursos técnicos e qualidade literá-ria, essa canção nos faz lembrar de “Cons-trução” (talvez a canção brasileira mais bemrealizada poeticamente), de Chico Buarque.Não tem sentido estabelecer comparaçõesestéticas entre ambas. Não é esse o caso,nem meu objetivo. Convém observar, po-rém, que são canções contemporâneas en-tre si (1971) e tratam do mesmo tema. Comoa grande maioria das letras de música ser-taneja, “Levanta Patrão” também conta umahistória. Aqui, uma das partes do tema fazalusão ao êxodo rural, àquelas pessoas quevieram para a cidade grande, atraídas peloprocesso de industrialização, mas que nãotiveram um final feliz. Como diz o própriotexto, “[...] coitado não teve sorte, o seuprêmio foi a morte”.

Mas seria ainda na década de 70 que amúsica sertaneja passaria por uma granderevolução, estendendo-se até nossos dias.Estou me referindo às inovações técnicas,sonoras, instrumentais, e até mesmo aoselementos da narrativa poética. Tudo isso,a partir de 1969, tomaria uma direção intei-

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ramente nova e diferente daquela até entãoconhecida no universo da música sertane-ja. Estou pensando no lançamento do discointitulado Os Hippies do Mundo Sertanejo,da dupla Léo Canhoto e Robertinho, daRCA Camdem S.A. Pode-se mesmo dizerque esse disco é uma espécie de divisor deáguas na história da música sertaneja. Eletem a mesma importância do disco de JoãoGilberto, Chega de Saudade, na época domovimento Bossa Nova, ou ainda de Ale-gria, Alegria, de Caetano Veloso em 1967,no Segundo Festival Record da MúsicaPopular Brasileira. Em outras palavras,podemos dizer o seguinte: a música “OsHippies do Mundo Sertanejo”, de Léo Ca-nhoto e Robertinho é, por assim dizer, o

1 “Conferência Sobre Lírica e So-ciedade”, in Os Pensadores,São Paulo, Editora Abri l,1975, vol. XLVIII, p. 174. Nes-se ensaio Theodor Adorno as-sinala que a verdadeira obrade arte é aquela que adquireparticipação universal.

2 Ernest Fischer, A Necessidadeda Arte, Rio de Janeiro, ZaharEditores, 1966, p. 142.

“marco zero” do que hoje chamamos denova música sertaneja. Não sei se para obem ou para o mal (não vem ao caso nestemomento), mas o fato é que ela não temquase nenhuma identidade com a músicasertaneja produzida até 1969.

Um aspecto, com certeza, não há comonegar: a revolução estética e o impactotransformador (até mesmo transgressor) damúsica de Léo Canhoto e Robertinho de-ram novo alento e estímulo a esse gêneromusical. A viola portuguesa, símbolo míti-co da canção sertaneja, cede espaço para aguitarra elétrica. A forma nasalada de can-tar, influência da herança indígena, rapida-mente desapareceria, a instrumentaçãomusical se transforma e ganha característi-cas técnicas e timbrísticas diferentes do queera, aproximando-se muito da música popinternacional. Hoje há uma identidade cadavez maior entre esses dois gêneros. Atessitura musical e os componentes formaisda canção sertaneja já não são mais osmesmos desde 1969. A redundância dodiscurso, a predominância da tonalizaçãohorizontal, a linha melódica repetitiva, asformas harmônica e métrica também pas-sariam por sensíveis transformações. Oreducionismo estético já não é mais tãorecorrente. A própria estrutura estético-formal já não tem mais nada a ver com amúsica sertaneja pré-69 e, muito menos,com o universo do cancioneiro caipira.

A nova música sertaneja, dessa forma,toma a direção de uma linguagem maisuniversal, eliminando as convergênciascom as origens caipiras e aumentando suasdistinções. Com isso, evidentemente, nãoestamos deduzindo que esse gênero musi-cal tenha “participação no universal” (1)como produto cultural. De qualquer modo,permanece uma das questões mais polêmi-cas sobre os produtos da indústria cultural:ser ou não obra de arte. Embora não seja otema central deste ensaio, não podemostambém passar em branco sobre essa ques-tão. Theodor Adorno e Ernst Fischer (2),por exemplo, em suas respectivas obras,apontam diferenças fundamentais entre aobra de arte e um produto da indústria cul-tural. Para o primeiro, a obra de arte nos

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leva à reflexão e tem, sobretudo, um cará-ter transformador e até mesmo revolucio-nário do status quo.

Já um produto da indústria cultural nãoé arte. Sua reprodução industrial não obje-tiva a satisfação social e sim o lucro. Oproduto torna-se mercadoria e, como tal,passa a ser trabalhado pelas sofisticadas téc-nicas de marketing, sem que haja qualquerpreocupação com a qualidade estética da-quilo que se oferece. Para Adorno, os pro-dutos da indústria cultural não oferecemnada, senão a mesmice e o déjà vu. Nessamesma direção, mas com outro discurso,Ernst Fischer acrescenta que “[…] a fun-ção da arte não é a de passar por portasabertas, mas a de abrir portas fechadas” (3).Aqui, mais uma vez, destaca-se o caráterrevolucionário que, segundo os autores,deve ter a obra de arte. “Abrir portas fecha-

das” significa, em outros termos, trazer eapresentar novidades, romper com a mes-mice, inovar, renovar, introduzir realmen-te algo inabitual, inusitado.

De nossa parte, não se trata propriamentede discordar dos autores, mas de tornar odiscurso do binômio arte industrial/cultu-ral mais contemporâneo. Quando os auto-res publicaram seus trabalhos, nas décadasde 30 e 40, o panorama sociopolítico e eco-nômico internacional era muito diferentedos nossos dias. Esses trabalhos, que nodecorrer do tempo tornaram-se muito im-portantes, são clássicos indispensáveis paraos estudos de sociologia da arte. De qual-quer modo, é preciso entendermos que hojevivemos uma nova ordem mundial. Não hácomo se sustentar o discurso de ambos emnossos dias, senão através da ideologização.É precisamente na análise ideológica que3 Idem, ibidem.

A dupla LéoCanhoto e

Robertinhoprotagonizou,

nos anos 70, amaior revolução

estética damúsica

sertaneja

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reside a força dos argumentos de Adorno eFischer, isto é: a arte nos leva à reflexão eos produtos da indústria cultural nos con-duzem ao universo cinzento da redundân-cia e da mesmice.

Pois bem, agora quero retomar o traba-lho da dupla Léo e Robertinho. No decor-rer de toda a história da música sertaneja,desde 1929 até 1969, nada aconteceria designificativo, especialmente no plano esté-tico. Nos outros também não. É só comessa dupla, como já vimos anteriormente,que a música sertaneja passa realmente poruma transformação estética. Não estou mereferindo a aprimoramento estético e sim atransformação estética. Não é o caso deentrarmos na subjetividade da teoria esté-tica, para a qual todo julgamento estéticoindica apenas gostos individuais. E mais:convém registrar que essa transformação aque me refiro não ficou apenas no planodos componentes técnicos e formais dacanção sertaneja.

Da mesma forma que ocorreu no Tro-picalismo, em 1967, nessa modalidade mu-sical também, em 1969, há todo um com-portamento cênico e gestual inteira-mente inovador. Até porque, antes disso,as duplas cantavam convencionalmenteparadas diante dos microfones, sem esbo-çar qualquer outro gesto que não aquelesprevisíveis, necessários e esperados, isto é:o dedilhar da viola, o sorriso quase proto-colar e o aceno de mão se despedindo dopúblico no final da sua apresentação.

Esse contexto, nem cênico, nem gestuale quase estático, está circunscrito ao passa-do da música sertaneja. A imagem bemcomportada cede espaço a toda uma trans-formação gestual das duplas sertanejas, cujagênese está nos anos 70, com Léo Canhotoe Robertinho. A rigor, suas apresentaçõesnão se resumiam apenas a cantar. Até por-que a temática das suas canções fugia doconvencional, ou seja: a colheita da lavou-ra, o amor traído, a infelicidade e a tristeza,entre outros temas recorrentes, já não erammais cantados. Em outras palavras, a partirdesse momento, o verbo torna-se dissonanteno cancioneiro sertanejo.

Temas como a violência no meio urba-

no-industrial, a mendicância, a prostitui-ção, o desemprego, a notória influência dacountry music norte-americana e os fil-mes de bang-bang italianos mudaram osdestinos da nossa música sertaneja. Agestualidade e a presença no palco, espe-cialmente, dariam a essa modalidade mu-sical um perfil essencialmente performá-tico. Muito próximo, aliás, dos grandesconjuntos da música pop internacional, emque a parafernália cênica tem espaço fun-damental no show.

O aspecto cênico passou a ser tão im-portante que algumas canções da dupla LéoCanhoto e Robertinho, além de cantadaspara seu público, teriam ainda versões aserem apresentadas como peças de teatro.São os casos, por exemplo, das “peças-can-ções”, “A Polícia”, “Rock Bravo ChegouPara Matar”, “O Valentão da Rua Aurora”,“Delegado Lobo Negro”, “Buck Sarampo”,“Os Hippies do Mundo Sertanejo”, “Ama-zonas Kid”, entre outras. Não há qualquerdúvida de que a imagem do cowboy ameri-cano substituirá, no cancioneiro sertanejo,a figura solitária e desolada do caipira bra-sileiro. Mas convém esclarecer ainda que afonte inspiradora dessa transformação pas-sa também pela presença marcante do su-cesso dos bang-bangs italianos na décadade 70 em nosso país. Tanto é assim, que opróprio Léo Canhoto naquela ocasião medisse o seguinte: “a minha fonte de inspira-ção são os filmes de bang-bang. E eu querofazer um filme no gênero. Vou até contra-tar um diretor italiano no gênero, isso por-que o cinema brasileiro é muito fraco”.

Afora a ingenuidade e a desinformação,que não vêm ao caso neste momento, o fatoé que, de lá para cá, isto é, depois de LéoCanhoto e Robertinho, a música sertanejamudou, e mudou radicalmente. Com ou semdiretor italiano, com ou sem filme idealiza-do pela dupla, de concreto mesmo o quetemos na história desse gênero musical éum movimento de inteira transformaçãoestética. Uma coisa no entanto é certa: elenão foi pensado, não foi algo conscienterealizado por essa dupla. Surgiu da espon-taneidade, da procura de originalidade, mastambém, é claro, do desejo de fazer suces-

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so, de conquistar esse mercado e consoli-dar seu nome nesse segmento musical.

De outra parte, é inegável que houvetoda uma sustentação publicitária, de téc-nicas de marketing e outras formas de ape-lo ao público. Mas isso não é bom nemruim. É apenas parte integrante da lógicada sociedade de consumo. Esse mesmo fe-nômeno ocorreu também com o movimen-to tropicalista. Torquato Neto, Capinam,Tom Zé, Caetano Veloso, entre outros, ini-ciaram a Tropicália sem ter consciência doque estavam efetivamente fazendo. Emseguida, por se tornar um sucesso, passoutambém a receber toda uma cobertura pu-blicitária transformando-se num fenôme-no de massa. A rigor, movimentos dessamagnitude têm, a meu ver, o grande méritode reciclar, de dar nova energia ao produtocultural, objeto dessas transformações es-téticas. Foram os casos da música popularbrasileira em 1967, com a Tropicália (4), eem 1969, com a música sertaneja.

Esse gênero musical durante muito tem-po ficou circunscrito à imagem do homemdo interior e do meio rural brasileiro. Apartir da década de 70, essa mesma ima-gem ganha a dimensão de algo moderno edefinitivamente ligado ao meio urbano-in-dustrial. E mais: a indumentária, o linguajare a aparência visual procuravam agora iden-tidade com a juventude urbana e com osjovens ídolos da música pop. Atualmente,a chamada música sertaneja tem esse per-fil. As novas duplas lançadas no mercadodiscófilo, através da televisão, de shows nacapital e no interior, entre outros recursos,são formadas por jovens plenamente fami-liarizados com a vida urbana. Eles já nãofalam mais o “r” puxado do caipira paulistae, mais do que isso, suas canções não co-metem erros gramaticais intencionais comoocorria em outras épocas. Basta ouvir, porexemplo, duplas como Leandro e Leonar-do, Theodoro e Sampaio, Chitãozinho eXororó, João Paulo e Daniel, Ralph e Reno,Márcio e Marcel, entre tantas outras.

Em nossos dias, no entanto, é bastantedifícil estabelecer com precisão uma dife-rença clara entre o que se convencionouchamar de música popular brasileira e mú-

sica sertaneja. Estou pensando naquele seg-mento da MPB mais dirigido ao públicomenos letrado e que antes não consumia amúsica sertaneja. Hoje já não é mais assim.Ele consome, indistintamente, a músicasertaneja e a música popular brasileira. Aprimeira, aliás, em termos mercadológicos,vai bem melhor do que a segunda. Pelomenos é o que indicam as planilhas de ven-das das gravadoras.

Devemos entender, por outro lado, oseguinte: ora, se não houve propriamenteum aprimoramento estético da música ser-taneja, em todo esse processo de sua trans-formação, ocorreu, seguramente, um gran-de aumento de público consumidor, queconsolidou esse gênero (ou novo gênero)musical no mercado discófilo. É bastanteprovável que, no decorrer do tempo, essanova música sertaneja, hoje execrada, ouquase, pelos críticos, venha a se tornar umproduto cult da cultura musical brasileiradaqui a algum tempo. Isso não ocorreriapela primeira vez na história da músicapopular brasileira. Durante muito tempo,Luiz Gonzaga teve status secundário nocancioneiro brasileiro, até ser descobertopelos tropicalistas. O mesmo ocorreu comCartola, Wilson Batista, Ismael Silva, entreoutros. Hoje, todos eles gozam de prestí-

4 Sobre o tropicalismo, convémconsultar a obra de CelsoFavaretto, intitulada Tropicália:Alegoria, Alegria (São Paulo,Kairós, 1979). É um dos tra-balhos mais completos sobreesse movimento musical que,a rigor, não se restringe ape-nas à canção popular. ATropicália envereda por diver-sos segmentos da arte no Bra-sil, tendo como ponto de par-tida a obra de Oswald deAndrade.

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gio e suas obras fazem parte do universocult da música popular brasileira. Paraencerrar este ensaio, quero citar mais doiscasos semelhantes.

A dupla sertaneja Pena Branca e Xavan-tinho, ídolo desse gênero musical, não eraconhecida pela intelligentzia da música po-pular brasileira até gravar canções de ChicoBuarque. Hoje goza de grande prestígio entreos críticos. As prestigiosas chanchadas car-navalescas da Atlântida como Nem Sansãonem Dalila, Matar ou Correr, entre tantasoutras, fazem parte do universo cult do cine-ma brasileiro. Mas nem sempre foi assim.Durante muito tempo, a chanchada foi ridi-cularizada por essa mesma intelligentzia quehoje a tem em alto conceito. O caso de NemSansão nem Dalila de Carlos Manga, porexemplo, é bastante significativo para en-tendermos essas transformações. O críticode cinema Luiz Carlos Merten, ao escreverpequena resenha para o jornal O Estado deS. Paulo, em 11 de novembro de 2004, sobreesse filme, reconhece a mudança de opiniãoda crítica. Diz ele: “a Dalila de Manga é umacabeleireira. E o Sansão é Oscarito, que via-ja no tempo para encarnar o herói cuja forçaestava nos cabelos. Dá para rir com Oscarito.Era impagável. E hoje se pode ver a chan-chada sem preconceito. O que na época era,

para a crítica, só imitação de mau gosto, hojeé entendido (e aceito como resistência aHollywood)”.

Os casos aqui citados como exemplosnão são fatos isolados. Vicente Celestino,seus filmes e suas canções, hoje são des-taque na história da cultura lúdica do nos-so país. Orlando Silva, o cantorgrandiloqüente da famosa “era do rádio”,ganhou até uma peça de teatro (OrlandoSilva, o Cantor das Multidões) que procu-ra dar conta da sua vida e obra. Trata-se deum trabalho de muita pesquisa e compe-tência associadas. Diante de tantos casosjá ocorridos, não seria exagero imaginarque talvez, um dia, pesquisadores mais àvontade e em outro contexto histórico-cultural possam, por meio de um estudobem feito, promover a nova música serta-neja ao status de produto cult.

Seja como for, entendo que, antes demais nada, é imprescindível ao estudioso,ao pesquisador estar sempre receptivo àstransformações estéticas ocorridas na so-ciedade, especialmente no tocante aos pro-dutos culturais. Quando falo de receptivi-dade isso não significa, necessariamente,aceitar as transformações. Significa, istosim, analisar o fenômeno sem preconceito,sem critérios estéticos a priori concebidos.Não é correto, muito menos justo, avaliarum movimento musical, teatral, ou até mes-mo uma obra isoladamente, com critériosestéticos subjetivos.

Nesse caso, quase sempre prevalecemos valores estéticos individuais da pessoa(uma coisa extremamente subjetiva), alia-dos fortemente à cultura de classe a quepertence. Assim, a tendência não é outrasenão a pessoa reproduzir seus valores decultura de classe para analisar a qualidadeestética de um produto que nada lhe diz,nenhuma identidade tem com ela, com seuuniverso e sua classe social. É preciso “de-sarmar o espírito”, desideologizar o dis-curso. É preciso, sobretudo, ser receptivo,sereno e ter a boa vontade do verdadeiroaprendiz. Assim é mais fácil viver o pre-sente e entender melhor o futuro. É de no-vas experiências que se aprimoram a arte,a técnica e a ciência.