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CAMILA EVARISTO DA SILVA Protagonistas no palco do cotidiano: Mulheres da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, Balneário Camboriú, Santa Catarina Mestrado em História Social Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRA em História Social, sob orientação do Professor Doutor Amailton Magno Azevedo. São Paulo 2016

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CAMILA EVARISTO DA SILVA

Protagonistas no palco do cotidiano:

Mulheres da Comunidade Quilombola do Morro do Boi,

Balneário Camboriú, Santa Catarina

Mestrado em História Social

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de

MESTRA em História Social, sob

orientação do Professor Doutor Amailton

Magno Azevedo.

São Paulo

2016

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CAMILA EVARISTO DA SILVA

PROTAGONISTAS NO PALCO DO COTIDIANO:

MULHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO MORRO DO BOI,

BALNEÁRIO CAMBORIÚ, SANTA CATARINA

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRA em

História Social.

Banca Examinadora:

Orientador:

___________________________________________________

Prof. Dr. Amailton Magno Azevedo (PUC-SP)

Membro:

___________________________________________________

Profª. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci (PUC-SP)

Membro:

___________________________________________________

Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso (UDESC)

São Paulo, 23 de maio de 2016.

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Às mulheres e aos homens da Comunidade Quilombola do Morro do Boi.

À minha mãe, Rosane Evaristo.

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Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq) pelas bolsas concedidas.

Processo Nº 152188/2014-2

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, que sempre esteve e está comigo. Tive muita sorte em crescer em

uma família tão grande e unida. Em especial à minha mãe Rosane, aos meus avós Irma e

Arnaldo, ao meu irmão Henrique e à minha madrinha Rejane por todo o carinho e apoio e

compreensão pelas minhas escolhas.

Professor Amailton, grata por ter confiado em mim de bate-pronto, pela paciência e pela

parceria.

Karla, Willian, Helenice, Heitor, Heck, Antonio, família Nunes, Liliane, Iuri, Mirelly,

Edmundo, Norma, Danilo. O que seria de minhas aventuras na cidade sem vocês?

Agradeço aos professores e às professoras da PUC-SP que contribuíram com a minha

formação, em especial, às professoras Antonieta e Heloisa que contribuíram de forma mais

decisiva para esta pesquisa. Estendo o agradecimento ao professor Acácio e ao amigo Egnaldo

por suas leituras e contribuições.

Cris Mare, obrigada pelas conversas sobre as coisas do mundo e pelo companheirismo.

Josefa, valeu por todo o apoio!

Dona Cida, eterna gratidão por ter me acolhido em sua casa enquanto estava juntando

dinheiro para ir a São Paulo, agora posso lhe visitar.

Susu, César, Caleb, Dani Belen, Dani Brandão, Amanda, Karol, Bruninha, Guille, Starke,

Wellington, Zâmbia, Simone, Ana. Obrigada por existirem.

Alaize, Cristopher, Pett, Nicolas, Lucas, vocês fizeram de minha estadia em Balneário um

pouco menos depressiva e solitária.

Ana Elisa, valeu pela força.

Agradeço às pessoas que fazem ou fizeram parte do grupo que me formou, NEAB-UDESC,

vocês foram imprescindíveis! É uma família tão grande que não quero correr o risco de citar

nomes e injustamente esquecer alguém.

Professor Paulino, o senhor que possibilitou tudo isso. Desconheço um modo de expressar a

minha gratidão.

Dona Guida, Sueli, Sayonara, Acácio, Michele, Altair, Laurete, Cláudia, Karina, Sabrina,

Adelair, Zarúbia, Almiro, Reginalda, Patrícia, obrigada por me receberem em suas casas.

Por fim, agradeço aos brasileiros e às brasileiras que financiaram esta pesquisa.

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A vida era um tempo misturado do antes – agora – depois – e – do – depois – ainda.

A vida era mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos

que viriam a ser.

Conceição Evaristo

Ponciá Vicêncio

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RESUMO

EVARISTO da SILVA, Camila. Protagonistas no palco do cotidiano: Mulheres da

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, Balneário Camboriú, Santa Catarina. Dissertação

(Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo:

PUC-SP, 2016.

Este trabalho apresenta considerações acerca das experiências das mulheres da Comunidade

Quilombola do Morro do Boi em Balneário Camboriú/SC, tendo como foco cenas das

trajetórias de três mulheres: Sueli Marlete Leodoro, a filha, Margarida Jorge Leodoro, a mãe,

e Sayonara Nancy Leodoro Siqueira, a neta. Possui como recorte temporal um tempo não

contabilizado em epistemologias ocidentais: o tempo da matriarca. Através de suas trajetórias,

são analisadas questões que transcendem as suas experiências, comuns aos/às demais

atores/atrizes daquela Comunidade, particulares a cada geração. Propomos utilizar, enquanto

fontes, depoimentos orais, auxiliados por pesquisa de campo, produções do movimento negro

expostas virtualmente, leis, produções audiovisuais, fotografias e o relatório antropológico da

Comunidade do Morro do Boi. Pretendemos compreender como se configura e é

experienciada a lida política em torno de demandas por melhores condições de qualidade de

vida e como estão guardados e vividos os valores e signos culturais que configuram as micro-

áfricas na Comunidade Quilombola do Morro do Boi sob uma perspectiva de gênero.

Palavras-chave: História – mulher – quilombola – memória - Balneário Camboriú.

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ABSTRACT

EVARISTO da SILVA, Camila. Protagonists in the daily stage: Women from Quilombola

Community of Morro do Boi, Balneário Camboriú, Santa Catarina. Thesis (History Thesis) -

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo: PUC-SP, 2016.

This paper presents considerations about women experiences in the Quilombola Community

of Morro do Boi, in Balneário Camboriú/SC, focusing on scenes of three women trajectories:

Sueli Marlete Leodoro, the daughter; Margarida Jorge Leodoro, the mom; and Sayonara

Nancy Leodoro Siqueira, the granddaughter. It happens in a period not counted in western

epistemologies: the period of matriarch. Through their trajectories, issues that transcend their

experiences are analyzed, common to other actors/actresses of that community, particular of

each generation. We propose to use as sources, oral testimony, aided by field research, the

black movement productions exhibited virtually, laws, audiovisual productions, pictures and

the Anthropological Report of Morro do Boi Community. We aim to understand how political

deals about better life conditions are configured and experienced and how the micro-Africas

in the Quilombola Community of Morro do Boi are preserved from a gender perspective.

Keywords: History - woman - quilombola - memory - Balneário Camboriú.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 10

CAPÍTULO PRIMEIRO - SUELI, A PRESIDENTA: A vinda de Dandara .................................. 26

O Balneário …..........................................................................................................................27

Tem um quilombo na Maravilha do Atlântico Sul....................................................................35

E vamos à luta...........................................................................................................................42

Preto no branco.........................................................................................................................45

CAPÍTULO SEGUNDO - GUIDA, A MATRIARCA: Guardiã das Micro-Áfricas ...................... 53

Para quando África?..................................................................................................................56

A memória seletiva....................................................................................................................63

Lavei muita roupa, lavei bastante roupa...................................................................................70

CAPÍTULO TERCEIRO - SAYONARA, A JUVENTUDE: Desafios e Perspectivas .................... 74

Novíssimas personagens entram em cena.................................................................................76

Conflitos com a monocultura....................................................................................................79

Desafios e perspectivas.............................................................................................................88

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 95

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 100

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INTRODUÇÃO

Vozes Mulheres Conceição Evaristo

A voz de minha bisavó ecoou

criança nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha

recorre todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje - o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.1

A presente pesquisa busca investigar os papéis experienciados pelas mulheres da

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, localizada em Balneário Camboriú, Santa

Catarina, tendo como enredo cenas da trajetória de três mulheres: Sueli Marlete Leodoro, a

filha, Margarida Jorge Leodoro, a mãe, e Sayonara Nancy Leodoro Siqueira, a neta. Através

de suas trajetórias são analisadas questões que transcendem as suas experiências, comuns às

demais atrizes e atores daquela Comunidade, e particulares a cada geração. Em verdade,

decidir por tal método de narrativa significa uma contraposição a um universo branco e

1 EVARISTO, Conceição. Vozes Mulheres. Disponível em:

<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/prosaepoesia/0151.html>. Acesso em: Ago./2015.

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também masculino.

Margarida Jorge Leodoro, Sayonara Leodoro Siqueira e Michele Leodoro Siqueira. Imagem: Leonel

Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

As histórias de Dona Guida e de suas/seus ancestrais2 e descendentes estão

ausentes na majoritária memória institucional do Município e do Estado. O que é recorrente

também na conjuntura da historiografia brasileira. Tenho em mãos o livro História Global:

Brasil e Geral, de Gilberto Coltrim, publicado em 2005 pela editora Saraiva, um livro

didático para o Ensino Médio. Poderia também ser outro, com mesmo título ou similar,

publicado em outra data, por outra editora e por outro autor. O que este exemplar ilustra é que

há uma lacuna nos estudos relativos ao pós-abolição, tendo em conta que ainda merece maior

destaque a história da população de origem africana como escravizada, refletida nos livros

didáticos.

O Professor Paulino Cardoso inicia sua tese de doutorado Negros em Desterro: as

2 Utilizamos aqui a palavra “ancestral” ao invés de “ascendente” ou “antecessor” pelo seu significado mítico,

apropriado pelo Movimento Negro no Brasil, no sentido de os ancestrais ainda atuarem no mundo dos vivos,

sendo referências nas labutas cotidianas. (GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Ancestralidade e oralidade nos

movimentos negros de Pernambuco. XXVII Simpósio Nacional de História (Anpuh): Conhecimento

histórico e diálogo social. Natal – RN, 22 a 23 de julho de 2013. Anais. Disponível em:

<http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364666404_ARQUIVO_Ancestralidadeeoralidadeanpu

h.pdf>. Acesso em: Dez./2015.)

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experiências das populações de origem africana na cidade de Florianópolis na segunda

metade do século XIX com a citação de Virgílio Várzea, poeta catarinense, escrita em 1900:

De sorte, pode afirmar-se, o povo catarinense é essencialmente ariano, com

particularidade nos centros alemães ou italianos, como Joinville, Blumenau,

Brusque, Nova Trento, Orleães [sic] e Nova Veneza, cidades e vilas que foram

outrora colônias, e cujas populações hão de ser, no futuro, o fator de um novo tipo

de brasileiro interessante, superior e perfeito […].3

Nos últimos doze anos, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do

Estado de Santa Catarina (NEAB-UDESC), ao qual pertenço, formado por Paulino Cardoso,

protagonizou a produção acadêmica acerca das populações de origem africana em Santa

Catarina4 trazendo novos elementos à memória deste Estado - especialmente na região

litorânea - outrora tido como branco e europeizado5. Estas últimas imagens ainda são

predominantes não apenas na literatura acadêmica, mas também na memória oficial do Estado,

e reverberam na grande mídia, nas políticas públicas e na atual ojeriza a migrantes nordestinos

e a imigrantes haitianos e do continente africano. O que estes últimos têm em comum? A

insígnia da cor. Cardoso historiciza tal memória, alvo de grande investimento político em

Santa Catarina: “[...] esta luta contra os preconceitos da imaginação sobre nosso passado é

primordial, diante do volume e da intensidade da obra modernizadora e suas referências

fundamentais, que são as teorias racistas do século XIX”.6

Estes saberes propostos pelo NEAB-UDESC estão consonantes com a virada

epistemológica ecoada internacional e nacionalmente. A partir do pós Segunda Guerra

3 Virgílio Várzea apud CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: as experiências das

populações de Desterro na segunda metade o século XIX. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). São Paulo, 2005, p. 17. 4 Não deixamos por olvido o pioneirismo do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas da

Universidade Federal de Santa Catarina (NUER-UFSC), liderado pela Professora Ilka Boaventura Leite.

Segundo a pesquisadora associada ao NUER, Raquel Mombelli, “Os estudos sobre comunidades negras em

Santa Catarina ganharam força a partir dos anos de 1980 por meio das pesquisas realizadas pelo NUER

(Núcleo de estudos de Identidade e Relações Interétnicas) com o objetivo de pensar a questão da presença da

população negra e o acesso à terra, onde prevaleciam argumentos sobre sua inexpressividade numérica e

papel menor na história de um Sul ‘embranquecido’ pela colonização europeia”. (MOMBELLI, Raquel.

Invernada dos Negros: identidade negra e acesso à terra. In: II Seminário Internacional – Educação

Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais (Anais). Florianópolis: MOVER/UFSC, 2003). Especificamente

a respeito de pesquisas acerca de populações de origem africana no litoral norte de Santa Catarina, onde a

Comunidade Quilombola do Morro do Boi está localizada, o pesquisador José Bento Rosa da Silva muito

contribuiu para estes estudos, sendo manifestas tais pesquisas, por exemplo, nas seguintes publicações:

Caetanos & Caetanos: tradição oral e história (em preto e branco). Blumenau: Nova Letra, 2008; A Itajahy

do século XIX: história, poder e cotidiano. Itajaí: UDESC; Casa Aberta, 2008; Negras Memórias. Itajaí:

Gráfica Reis – Prefeitura Municipal de Itajaí, 1996. Currículo Lattes:

<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4762025A4>. 5 Entendemos aqui o conceito de “europeizado” como um conjunto de valores que negligencia e invisibiliza

demais culturas que não lhe pertencem. 6 CARDOSO, 2008, p. 20-21.

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Mundial, período das independências das antigas colônias do continente africano, os estudos

sobre a diáspora africana e aquele continente vêm se consolidando sob uma perspectiva de

desvencilhamento das chagas do colonialismo, igualmente, saberes emergentes do Sul Global

eclodem nas praças acadêmicas. Muito embora estes estudos ocupem um espaço não

hegemônico entre as epistemologias que povoam as universidades. Os chamados subalternos,

ressentidos ou otimistas da vontade7 vêm questionando o paradigma eurocêntrico, são autoras

e autores das epistemologias do sul8, discutindo as interlocuções entre África e Diáspora sem

fazer escala em teorias cânones do ocidente, o que pode ser entendido como uma grande

novidade epistemológica. Desse modo, na contramão da metodologia científica inventada

pelos obcecados pela razão, as reflexões destas mentes subalternas partem das experiências

mais ordinárias de seus cotidianos, ou seja, de suas experiências de ser e estar no mundo,

buscando compreender as relações sociais travadas no dia a dia, visando desconstruir as teias

de significados que permitem o sofrimento de aquelas e aqueles não detentores das mais

variadas dimensões do poder.

De modo que é a partir desta comunidade de valores que nossa análise é feita, que

só poderia ser possível por miolo fêmeo e a partir de encontros e trocas de experiências. Entre

o período de 2012.2 e 2013.1 tive a oportunidade de desenvolver pesquisas propostas pelo

projeto Experiências das Populações de Origem Africana no Pós-Abolição: Culturas

Políticas e Sociabilidades, finalizado em 2013.1, vinculado ao grupo de pesquisa

Multiculturalismo: Estudos Indígenas, Africanos e da Diáspora (NEAB-UDESC). Tal projeto,

iniciado em 2005, sob coordenação do Professor Paulino Cardoso, tendo contribuições de

diversas/os pesquisadoras/es - graduandas/os e pós-graduandas/os, objetivava dar visibilidade

às populações de origem africana em Santa Catarina. Em 2010 o estudo passou a incorporar

um novo eixo de investigação que se fez necessário e urgente: “apreender aspectos das

experiências de comunidades negras rurais, atualmente denominadas Comunidades

Quilombolas, particularmente, a localizada no Morro do Boi, Balneário Camboriú, SC”9. Este

estudo, iniciado em 2010, resultou em 2012 no Trabalho de Conclusão de Curso de Mariana

Schlickmann, intitulado Entre o campo e a cidade: memórias, trabalho e experiências na

7 Referência às obras: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2010 e BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001. 8 Referência à obra SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul.

São Paulo; Editora Cortez. 2010. 9 Projeto de pesquisa Experiências das Populações de Origem Africana no Pós-Abolição: Culturas Políticas e

Sociabilidades (NEAB-UDESC).

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comunidade do Morro do Boi, Balneário Camboriú – SC10 e em 2013 em meu Trabalho de

Conclusão de Curso, intitulado Natal sem batucada não é natal: festas, morte e cura na

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, Balneário Camboriú – SC11. Schlickmann em seu

trabalho investigou as memórias das moradoras e moradores da comunidade perpassadas

pelas mudanças externas. Em meu TCC refleti sobre práticas particulares à Comunidade

Quilombola do Morro do Boi, como suas festas, seus modos de cura e rituais de morte.

As moradoras e moradores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi foram

sujeitos de estudos acadêmicos. Mas antes de discorrermos sobre tais estudos e sobre como

definimos nosso tema de pesquisa, gostaríamos de narrar o início desta história. Mariana

Schlickmann faz esta narrativa, que começou com o envolvimento de sua mãe, Ana Elisa

Ribeiro de Souza Schlickmann, com Sueli Marlete Leodoro, no ano de 2007, quando se

conheceram, Ana Elisa sendo estudante de Direito da Universidade do Vale do Itajaí

(UNIVALI), Universidade localizada no munícipio de Itajaí, limítrofe a Balneário Camboriú:

Ana Elisa Ribeiro de Souza Schlickmann [...] mora há mais de trinta anos em

Balneário Camboriú. Ana é uma mulher de classe média, de convicções políticas de

esquerda e engajada nos debates sobre movimentos sociais. [...] Em parceria com a

Profª. Ma. Dalva Marisa Ribas, que na época ministrava a disciplina de sociologia

jurídica no curso de direito do campus de Balneário Camboriú da Univali, e com o

apoio do Prof. Dr. José Bento Rosa da Silva, Ana apresentou o projeto de extensão

intitulado Cidadania e Autonomia para a Comunidade do Morro do Boi, projeto este

com atividades programadas para o biênio 2007/2008.12

Em 2015, Ana Elisa Schlickmann junto com a Professora Dalva Marisa Ribas

Brum lançaram o livro Da rua dos pretos à Comunidade Quilombola do Morro do Boi,

financiado pela Fundação Cultural de Balneário Camboriú13. Nesta obra, Ana Elisa nos conta

os resultados de oito anos de trabalho junto à Comunidade através das falas das moradoras e

moradores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, que continuou atuando junto em

suas demandas mesmo após o término do referido projeto de extensão. Neste período diversas

oficinas com o intuito de formação políticas foram realizadas para as/os moradoras/es da

10 SCHLICKMANN, Mariana. Entre o campo e a cidade: memórias, trabalho e experiências na comunidade do

Morro do Boi, Balneário Camboriú - SC. Monografia (Graduação em História) - Universidade do Estado de

Santa Catarina (UDESC). Florianópolis,2012. 11 EVARISTO da SILVA. Natal sem batucada não é natal: festas, morte e cura na Comunidade Quilombola do

Morro do Boi, Balneário Camboriú - SC. Monografia (Graduação em História) - Universidade do Estado de

Santa Catarina (UDESC). Florianópolis,2013.

12 SCHLICKMANN, 2012, p. 9-11. 13 BRUM, Dalva Marisa Ribas; SCHLICKMANN, Ana Elisa Ribeiro de Souza. Da rua dos pretos à

Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Balneário Camboriú: Fundação Cultural de Balneário

Camboriú, 2015. Edital 001/2013 da Fundação Cultural de Balneário Camboriú, em cumprimento à Lei de

Incentivo à Cultura.

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Comunidade, o que resultou na constituição legal da Associação Quilombola do Morro do Boi,

fato que será melhor narrado ao longo do texto. As autoras ainda expõem a participação da

Comunidade em diversos eventos, como a II e a III Conferência Nacional de Promoção de

Igualdade Racial (CONAPIR), em Brasília. Este importante trabalho resultou ainda na

realização anual da Feijoada promovida Pela Associação Quilombola do Morro do Boi, que

objetiva angariar fundos para a Associação e divulgar a Comunidade. Em 2010, Ana Elisa

Schlickmann também realizou seu Trabalho de Conclusão de Curso em Direito a respeito de

questões jurídicas em relação ao pleito quilombola e à Comunidade Quilombola do Morro do

Boi, intitulado Direito fundamental das comunidades remanescentes de quilombos sobre a

propriedade no artigo 68 do ADCT/88.14

Capa do livro de Ana Eliza Schlickmann e Dalva Brum.

Como será explicitado mais adiante, em 2008 a Comunidade Quilombola do

Morro do Boi, representada por sua Associação, entrou com processo administrativo junto ao

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para fins de reconhecimento,

demarcação e titulação de suas terras, direito constitucional nos termos do artigo 68 dos Atos

e Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, mais seus artigos 215 e

216, regulamentados pelo Decreto 4.887 de 2003, trâmites que serão destrinchados em

seguida. Nesse sentido, para o andamento do processo, coube a realização do Relatório

Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-Cultural da Comunidade

14 SCHLICKMANN, Ana Elisa Ribeiro de Souza. Direito fundamental das comunidades de remanescentes

de quilombos sobre a propriedade no artigo 68 do adct/88. Monografia (Graduação em Direito) –

Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Balneário Camboriú, 2010.

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Quilombola do Morro do Boi, publicado em 2012, depois de dois anos de pesquisa, sob

responsabilidade do antropólogo Rafael Palermo Buti. Tal trabalho trouxe um minucioso

estudo a respeito de questões genealógicas, históricas e culturais que apresentaremos ao longo

do texto.15

A presente pesquisa, mais que trazer à tona memórias e contranarrativas que estão

nas dobras da sufocante tentativa de europeizar Santa Catarina, pretender contar tais

contranarrativas tendo as mulheres como protagonistas. Buscamos compreender como se

configura e é experienciada a lida política em torno de demandas por melhores condições de

qualidade de vida e como estão guardados e vividos os valores e signos culturais que

configuram as micro-áfricas na Comunidade Quilombola do Morro do Boi sob uma

perspectiva de gênero, entendendo o conceito de gênero como instrumento para a

compreensão de expectativas sociais de comportamento16.

Para entender estes papéis de protagonismos, é necessário compreender as

opressões e exclusões socioeconômicas, de gênero e de raça, dimensões imbricadas em suas

raízes históricas e, igualmente, relacionadas em suas reverberações no cotidiano do tempo

presente. Muitos são os Brasis, muitas são as mulheres negras, no entanto, estes sistemas

excludentes produzem experiências comuns. A população negra no Brasil - muito embora os

avanços da luta antirracista nas últimas décadas, tais como a Lei de Cotas nas Universidades

Federais (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012), a criminalização do racismo (Lei nº 7.716,

de 5 de janeiro de 1989), a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-

brasileira nos sistemas de ensino (Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003) e a própria

legislação favorável às comunidades remanescentes de quilombos – que será explorada ao

longo do texto, ainda que colidam com os trâmites burocráticos e de racismo institucional -

não se vê com representatividade na tevê, nos anúncios publicitários, nas revistas, nos bancos

universitários e nos espaços de empoderamento em geral e, como explicitado, em Balneário

15 BUTI, Rafael Palermo; RAMOS, Diego Faust. Relatório Antropológico de Caracterização Histórica,

Econômica e Sócio-Cultural: Comunidade Remanescente de Quilombo Morro do Boi (Balneário

Camboriú/SC). Curitiba: ECODIMENSÃO Meio Ambiente e Responsabilidade Social Ltda., 2012.

Contratante: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/ Superintendência Regional de

Santa Catarina. Contratada: Ecodimensão Meio Ambiente e Responsabilidade Social Ltda. Coordenação e

Pesquisa Antropológica e Histórica: Rafael Palermo Buti. Pesquisa Antropológica: Diego Faust Ramos.

Raquel Mombelli a respeito dos relatórios antropológicos, afirma que “A antropologia tem elaborado uma

série de discussões em torno das questões teóricas, metodológicas e éticas que envolvem a produção de

relatórios de identificação étnica e laudos, visando a aplicação dos direitos constitucionais das comunidades

negras rurais considerados ‘remanescentes de quilombos’”. (MOMBELLI, 2003, p. 2). 16 Joan Scott, importante teórica sobre o uso da categoria gênero em história, afirma que é recente o uso da

palavra “gênero” pelas feministas no sentido de “referir-se à organização social da relação entre os sexos”.

(SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New

York, Columbia University Press. 1989.)

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Camboriú não é diferente. Tais exclusões sistêmicas de raça e classe, somadas a um recorte de

gênero, revelam um quadro – no mínimo – perturbador para a mulher negra brasileira.

Segundo Meira, Nunes e Silva:

A especificidade da mulher negra e trabalhadora se apresenta, com certa

regularidade ora nos dados estatísticos que revelam a situação com que a mesma se

encontra na base da pirâmide social [...], ora nos estereótipos e representações que as

cercam e que, de algum modo, justificam os lugares e não-lugares a elas conferidos

no mercado de trabalho, em que a “boa aparência”, por exemplo, torna-se fator de

seletividade; para além da questão fenotípica, agregam-se elementos da ordem da

“racialização da sexualidade [...] efeito de gerações de abusos sexuais seguido de

calúnias contra a reputação das mulheres negras” (BANKOLE, 2009, p. 260) que as

tornam para além de fenotipicamente “inferiores”, também, moralmente.17

Ainda a dialogar com as autoras, percebemos que um feminismo ocidental que

bradou contra a proteção paternalista às mulheres não atende às especificidades da pauta de

reivindicações das mulheres negras. Enquanto o feminismo ocidental invocava pelo direito de

trabalhar, quituteiras, prostitutas, vendedoras, empregadas domésticas, babás, roceiras e

lavadeiras experimentavam tal direito como um dever. Em trabalho doméstico, de suas casas

ou dos outros, rural, assalariado ou informal, é que se empregam as mulheres do Morro do

Boi, tarefas impostas às mulheres negras desde os tempos coloniais. Neste sentido, tornam-se

heroínas de si mesmas e dos/as seus/suas em seus cotidianos, elegendo para si os papéis de

protagonistas, comumente legado às personagens masculinas e brancas, resistindo e se

contrapondo ao hegemônico, às opressões de gênero, raça e classe, construindo a manhã

desejada, com a estranha mania de ter fé na vida18. De acordo com Gonçalves:

Esta real situação, socioeconômica, confirma sob o signo dos números a maneira

como a educação formal inexiste, teve passagem curta ou, então, veio a acontecer de

forma tardia nas suas vidas; as demais instâncias prioritárias à vida humana

(trabalho, moradia, saúde corporal e mental) encontram-se indisponíveis, como

consequência da cor de um corpo que se revela, ainda, como “defeito”.19

17 NUNES, Georgina Helena Lima. Mulheres negras em seu protagonismo: paradoxos em relação ao gênero. In:

MICHELON, Francisca F.; SENNA, Nádia da Cruz; SILVA, Úrsula da. (Orgs.). Gênero, arte e memória:

Ensaios Interdisciplinares. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2010, p. 10 18 Luiza Bairros, ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Governo

Federal, entre 2011 e 2015, a respeito da especificidade da mulher negra em relação ao feminismo, traz mais

elementos para compreendermos a questão: “Num determinado momento os conceitos foram uteis para

definir uma coletividade e seus respectivos interesses assim justificando o estabelecimento de uma

organização política independente. Mas por outro lado mostraram-se inconsistentes quando usados para

definir o que nos une a todas enquanto mulheres. [...] certos feminismos desconsideram categorizações de

raça de classe social e de orientação sexual favorecendo assim discursos e práticas voltados para as

percepções e necessidades de mulheres brancas heterossexuais de classe média”. (BAIRROS, Luiza. Nossos

Feminismos Revisitados. Revista Estudos Feministas, V.3, nº 2 , 1995, p.459.) 19 NUNES, 2010, p. 1-2.

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De fato, a proposta deste trabalho apenas foi possível neste momento histórico,

em que remanescentes de quilombo entram em cena, como protagonistas, indo além: como

protagonistas femininas. A Constituição Federal de 1988 garante às comunidades quilombolas,

comunidades compostas pelas/os remanescentes das comunidades de quilombos, a

propriedade definitiva e coletiva de suas terras. Reivindicações do Movimento Negro ao

longo do século XX que foram contempladas após a abertura democrática. Hoje,

remanescentes de quilombos não necessariamente são descendentes daquelas pessoas

escravizadas que resistiram à escravidão por meio da fuga, como sugere o imaginário que se

tem sobre quilombos. O termo “remanescentes de comunidades de quilombos” abriga uma

diversidade de grupos constituídos por diferentes processos.

Tal imaginário que figura no censo comum a respeito do conceito de comunidades

quilombolas é explicado historicamente pelo antigo conceito de quilombo, conforme a

definição estabelecida pelo Conselho Ultramarino Português à Coroa Portuguesa em 1740:

“Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em partes despovoados, ainda que

não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões neles”20. Tal definição, portanto, não

abriga a diversidade de formas de acesso e permanência à/na terra pela população afro-

brasileira tanto no pré como no pós-abolição. O imaginário a respeito das comunidades

quilombolas remente, desse modo, a exemplos como o lendário Quilombo dos Palmares,

palco de resistência por quase um século no período colonial, localizado na Serra da Barriga,

atualmente pertencente ao Estado de Alagoas. Cabe acrescentar que os filmes de Cacá

Diegues, Ganga Zumba (1964) e Quilombo (1984), ambos com enredo a respeito de Palmares,

contribuíram para tal percepção. Conforme Nunes:

A história dos quilombos comporta muitas dimensões, mas pode-se afirmar que,

desde a sua gênese, a proposta sempre foi de contraposição à ordem vigente no que

tange à relação com o/s poder/es instituído/s. Como lugar de acolhida àqueles(as)

cuja força opressora do sistema vigente ou os empurraria para o risco de tempo que,

tal qual uma mercadoria, teria “uso” até imediatamente ser trocada.21

Desde a definição cunhada pelo Conselho Ultramarino Português, o conceito de

quilombo foi se modificando com o passar dos tempos, no contexto da abertura democrática

do final dos anos oitenta o termo quilombo foi designado “para se referir às áreas territoriais

20 LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Revista Etnográfica, v.

4, n.2, 2000, p. 336 21 NUNES, Georgina Helena Lima; MEIRA, Mirela Ribeiro; SILVA, Márcia Alves da. Mulheres Negras e

Quilombolas: Trabalho, resistência e identidades na diáspora afro-brasileira. In: Márcia Alves da Silva;

Mirela Ribeiro Meira. (Orgs.). Mulheres trabalhadoras: olhares sobre fazeres femininos. Pelotas: Editora

Universitária, 2012.

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onde passaram a viver os africanos e seus descendentes no período de transição que culminou

com a abolição do regime de trabalho escravo, em maio de 1888”22. A Constituição Federal de

1988, vigente atualmente, data do centenário da abolição do regime escravista, esta abrigou os

significados do “boom revisionista sobre a história da escravidão e de sua abolição no Brasil,

trazendo as relações raciais e as condições sociais do negro brasileiro para a pauta dos debates

públicos como nunca antes havia acontecido”23. Está presente no Artigo 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos

quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo

o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”24.

A Constituição Federal de 1988 incorpora ainda em seus artigos 215 e 216, pela

primeira vez na história das constituições brasileiras, “a matriz africana em termos de herança

cultural e discrimina-se o negro enquanto membro do corpo social”25. Preceituam os artigos:

215 “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da

cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”

e 216 “Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas

dos antigos quilombos”26.

Não é possível falar deles sem adjetivá-los. Seja por meio da fórmula legal que lança

mão de “remanescentes”, ou das tentativas de ajuste desta, por meio de

“contemporâneos”. Seja ainda por que são necessárias distinções entre estes, quando

se usa “urbanos” ou “rurais”. Ou, quando se quer tipificá-los, por meio de “agrícola”,

“extrativista”, “nômade” etc. Ou, finalmente, quando se fala em “históricos”, de

forma complementar ou concorrente àquelas formas anteriores, já que falar em

“quilombos históricos” tem servido tanto para especificar quanto para deslegitimar

os “quilombos contemporâneos”.27

Assim definiu Arruti a necessidade da discussão em torno do conceito, ainda

segundo o mesmo autor, trata-se de uma categoria em disputa, “mas uma disputa em torno de

como o plano analítico se conecta com os planos político e normativo”28, pois “Está em jogo

22 LEITE, Ilka Boaventura; FERNANDES, Ricardo Cid. Fronteiras territoriais e questões teóricas: a

antropologia como marco. Boletim Informativo NUER/ Núcleo de Estudos de Identidade e Relações

Interétnicas. v. 3, n.3 Florianópolis. NUER-UFSC, 2006. 23 ARRUTI, J. Mauricio. Mocambo. Antropologia e História do processo de formação quilombola. São Paulo.

Edusc/Anpocs, 2006, p. 28. 24 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Ago./2015. 25 CONSORTE, Josildeth Gomes. A questão do negro: velhos e novos desafios. São Paulo: São Paulo em

perspectiva, v. 5. n. 1, 1991, p. 92. 26 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Ago./2015. 27 ARRUTI, J. Mauricio. Quilombos. Universidad del Magdalena: Revista Jangwa Pana, 2008, p. 102. 28 ARRUTI, 2008, p. 102.

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o quanto de realidade social o conceito será capaz de fazer reconhecer. Qual parcela da

realidade ganhará, por meio deste” 29 . A partir da garantia da permanência na terra,

estabelecida pelo Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi

necessária a discussão do conceito das comunidades de quilombo para a efetivação e

instrumentalização jurídica do mesmo. Tendo por referência o documento do extinto Grupo de

Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA),

resultado da reunião da referida Associação em 199430, podemos traçar um histórico a partir

deste ponto, tal ponto teve início quando foram necessárias “respostas à crescente demanda

por uma definição judiciosa e de caráter científico que permitisse sustentar as ações que

começavam a ser movidas no campo jurídico tendo em vista a aplicação dos novos

dispositivos da Constituição Federal sobre o tema”31. A antropóloga Ilka Leite, que esteve

presente no encontro do grupo de trabalho, assim sintetizou posteriormente em artigo

publicado em 2000, a proposta ressemantizadora do termo quilombo expressa no documento

resultado daquele encontro:

O documento procurou desfazer os equívocos referentes à suposta condição

remanescente, ao afirmar que “contemporaneamente, portanto, o termo não se

referia a resíduos arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação

biológica”. Tratava-se de desfazer a idéia de isolamento e de população homogênea

ou como decorrente de processos insurrecionais. O documento posicionava-se

criticamente em relação a uma visão estática do quilombo, evidenciando seu aspecto

contemporâneo, organizacional, relacional e dinâmico, bem como a variabilidade

das experiências capazes de serem amplamente abarcadas pela ressemantização do

quilombo na atualidade. Ou seja, mais do que uma realidade inequívoca, o quilombo

deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente

situada na formação social brasileira.32

Desse modo, podemos inferir que comunidades quilombolas ou comunidades

remanescentes de quilombos, um conceito atual, mas não acabado ou solidificado, podem ser

entendidas como oriundas de diversos processos, como mediante doação de terras a pessoas

escravizadas ou libertos por parte de seus proprietários ou ex-proprietários, antes ou depois da

promulgação da abolição do sistema escravista em 188833. Moura coloca ainda que:

As possíveis origens das chamadas terras de preto envolvem terras conquistadas, os

29 ARRUTI, 2008, p. 102. 30 Estavam presentes Ilka Boaventura Leite, Neusa Gusmão, Lúcia Andrade, Dimas Salustiano da Silva, Eliane

Cantarino O’Dwyer e João Pacheco de Oliveira. Ibidem, p. 103. 31 Ibidem. 32 LEITE, 2000, p. 341-342. 33 HARTUNG, Miriam; SANTOS, Tiago; BUTI, Rafael. Relatório Antropológico de caracterização histórica,

econômica e sócio-cultural. Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha. Florianópolis.

UFPR/UFSC/INCRA, 2008.

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quilombos, terras doadas ou obtidas em pagamento por prestação de serviços ao

Estado como também resultam de compra ou simples ocupação de áreas devolutas

em diferentes momentos da história nacional.34

No entendimento de Georgina Helena Nunes, trata-se de uma artimanha da

branquitude35 estar fora da nomeação, pois isso significa a ausência de direitos36. De tal

maneira, para a efetivação do Artigo 68 do ADCT, este precisou ser regulamentação, a fim de

lançar a instrumentalização jurídica para sua implementação. Em 2001, sob o governo de

Fernando Henrique Cardoso, foi promulgado o Decreto Nº 3912 de 10 de setembro, que em

seu primeiro artigo, preceitua: “somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que

(…) eram ocupadas por quilombos em 1888”37, desse modo, demarcando um retrocesso e

significando a restrição das comunidades poderiam buscar a regulamentação das terras como

permite o Art. 68 do ADCT, de tal maneira, comunidades formadas no pós-abolição estariam

excluídas do processo.

Em 20 de novembro de 2003, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi

promulgado o Decreto Nº 4887/03, que revogou o Decreto anterior, lançando novas diretrizes

para a regulamentação do procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação e

titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos tratadas no

Art. 68 do ADCT38. A proposta deste novo em muito se distanciou do conceito adotado pelo

Decreto anterior:

34 GUSMÃO. Neusa Maria Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres: terra, mulher e raça num bairro

rural negro. Brasília: MINC/Fundação Cultura Palmares, 1995, p. 11.

35 Aqui entendemos o conceito de “branquitude” de acordo com o Professor Lourenço Cardoso, ou seja, “[...]

pertença étnico-racial atribuída ao branco. Podemos entendê-la como o lugar mais elevado da hierarquia

racial, um poder de classificar os outros como não-brancos, dessa forma, significa ser menos do que ele. Ser

branco se expressa na corporeidade, isto é, a brancura, a expressão do ser, e vai além do fenótipo. Ser branco

consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais. Ser branco significa mais do que

ocupar os espaços de poder. Significa a própria geografia existencial do poder. O branco é aquele que se

coloca como o mais inteligente, o único humano ou mais humano. Para mais, significa obter vantagens

econômicas, jurídicas, e se apropriar de territórios dos Outros. A identidade branca é a estética, a

corporeidade mais bela. Aquele que possui a História e a sua perspectiva. No ambiente acadêmico ser branco

significa ser o pesquisador, o cientista, o cérebro, aquele que produz o conhecimento.” CARDOSO,

Lourenço. A branquitude e o branco pesquisador do negro tema. Ciclo de Palestras Africanidades, Cultura

e Cidadania. Florianópolis: Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB-UDESC), 2014. (Palestra).

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8NuDSEwNmWg&nohtml5=False>. Acesso em:

Jan./2016. 36 NUNES, Georgina Helena Lima. Comunicação Oral, Mesa Redonda. VIII Congresso Brasileiro de

Pesquisadores/as Negros/as – VIII COPENE. Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as –

ABPN. Universidade Federal do Pará - UFPA. Belém, 2014. 37 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto 3.912 de 12 de dezembro de 2001. Regulamenta as disposições

relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e

para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles

ocupadas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm>. Acesso em:

Ago. 2015. 38 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 4.887 de 20 de Novembro de 2003. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: Ago./2015.

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Art. 2 o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins

deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com

trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com

presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica

sofrida.

§ 1 o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das

comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria

comunidade.

§ 2 o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as

utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

§ 3 o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração

critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos

quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas

para a instrução procedimental.39

Desse modo, o Decreto Nº 4.887/03 trouxe uma grande novidade: a

autoidentificação. Parafraseando Georgina Helena Nunes, uma afronta para a sociedade que

nomeia os outros40.

Nesse sentido, as principais fontes para este trabalho são entrevistas realizadas

com as moradoras e moradores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Em 2008, Ana

Elisa Schlickmann e José Bento Rosa da Silva realizaram uma entrevista com a senhora

Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, seu filho Altair Leodoro e seu genro, esposo de

Sueli, Acácio Siqueira, no Morro do Boi. No mesmo ano, Ana Elisa Schlickmann ainda

realizou entrevista com o Senhor Fabriciano Cristino da Graça, irmão de Dona Guida e a

senhora Natividade Maria Mattos, agora ancestral, ambas em Itajaí. A partir do projeto

iniciado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa

Catarina (NEAB-UDESC), foram realizadas mais entrevistas com as moradoras e moradores

da Comunidade, dos quais, valemo-nos de entrevista de Dona Guida concedida à Mariana

Schlickmann (2011) e entrevistas de Sueli Leodoro e Acácio Siqueira concedidas a Paulino

Cardoso e Mariana Schlickmann (2012). Em 2014, tendo já iniciado a pesquisa de mestrado,

realizei um questionário socioeconômico com as famílias do núcleo de Dona Guida,

procurando saber escolaridade, renda, condições de saneamento básico e energia elétrica e

eletrodomésticos em casa41. E, em 2015, já tendo definido os objetivos da pesquisa, realizei

mais uma entrevista com Sueli Leodoro.

Nas leituras das entrevistas, que também podem ser entendidas como depoimentos,

dada a liberdade narrativa das interlocutoras e interlocutores, descobrimos histórias ausentes

39 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 4.887 de 20 de Novembro de 2003. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: Ago./2015. 40 NUNES, Georgina Helena Lima. Comunicação Oral, Mesa Redonda. VIII Congresso Brasileiro de

Pesquisadores/as Negros/as – VIII COPENE. Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as –

ABPN. Universidade Federal do Pará - UFPA. Belém, 2014. 41 O referido questionário não foi realizado para uso desta pesquisa, mas para fins de projetos de extensão a

serem realizados pelo NEAB-UDESC.

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na cultura escrita. No dizer de Ecléa Bosi: “com certeza seus erros e lapsos são menos graves

em suas consequências que as omissões da história oficial” 42 . De modo semelhante,

pretendemos uma história elaborada com a delicadeza da lembrança. Versa Portelli: “Recordar

e contar já é interpretar” 43 . Não entendemos aqui o testemunho como uma verdade do

ocorrido, mas o testemunho como verdadeiro.

As leitoras e leitores observarão que os capítulos que seguem estão permeados

pelo debate veiculado nas mídias virtuais. Este é um tema recente que necessita de mais

pesquisas, mas, por ora, podemos afirmar que para além dos muros acadêmicos, o debate

também está no mundo virtual. Assim, mesmo não participando dos movimentos sociais de

maneira direta, pude me nutrir de novos conceitos deflagrados por estas mídias, espaços

alternativos aos meios de comunicação hegemônicos.

Observarão ainda que o trabalho está recheado de imagens das moradoras e

moradores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi elaboradas pelo fotógrafo

publicitário Leonel Tedesco. Trata-se da exposição A Rua dos Negros, Comunidade

Quilombola do Morro do Boi, patrocinada pela Lei Municipal de Incentivo e Fomento à

Cultura de Balneário Camboriú. Inaugurada em maio de 2014, na Galeria Municipal de Arte

do município.

Na imagem de divulgação, Altair Leodoro, filho de Dona Guida, irmão de Sueli. Imagem: Leonel Tedesco,

Exposição A Rua dos Negros, 2014.

42 Em sua obra, Ecléa Bosi trabalha com depoimentos de habitantes da capital paulista. (BOSI, Ecléa. Memória

e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37.) 43 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas

fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2, 1996, p. 2.

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Também nos utilizamos de três produções audiovisuais. A saber, a gravação do

lançamento da exposição A Rua dos Negros, em 2014, quando a presidenta Sueli Leodoro

discursa e há apresentação de maracatu por parte da Comunidade Quilombola do Morro do

Boi44. O curta Remanescentes Quilombolas, Morro do Boi Balneário Camboriú, produzido

pela francesa Enya Gemard, lançado na França em janeiro de 2015, em que Sueli Leodoro

versa sobre identidade quilombola45. Por fim, o vídeo institucional de Balneário Camboriú,

onde discutimos a “vocação turística” do município bem como que perfil de público é bem

recebido46. Tais audiovisuais foram principalmente utilizados para reflexões no capítulo

primeiro. De modo que se organiza como exposto a seguir.

O Capítulo Primeiro, intitulado SUELI, A PRESIDENTA47: A vinda de Dandara,

procura investigar como se configura e é experienciada a lida política de Sueli Marlete

Leodoro, como mulher, negra, quilombola e presidenta da Associação. Para tanto, fez-se

necessário percorrer um sinuoso caminho entre imagens, mídias e produções locais,

audiovisuais e entrevistas em que a Presidenta expressa seu discurso, e também com a ajuda

de censos, de um estudo socieconômico realizado na Comunidade, e do Relatório

Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-Cultural da Comunidade do

Morro do Boi. Para tal investigação, também se fez necessário buscar o entendimento para

outra questão: como compreender a narrativa de Sueli Leodoro que destoa do espaço de

hegemonia racial branca e masculina onde está inserida?

O Capítulo Segundo, intitulado GUIDA, A MATRIARCA: Guardiã das Micro-

Áfricas, desenrolando o novelo ao contrário, ou seja, recuando no tempo, pretende narrar os

atos encenados por Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, em sua trajetória. Sendo a sua

vida limite temporal desta pesquisa, mas não apenas o limite marcado pela data de seu

44 Lançamento da exposição A Rua dos Negros, do fotógrafo Leonel Tedesco. Registrado em Projeto Rua dos

Negros - Lei de Incentivo à Cultura de Balneário Camboriú. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=yTaajTkF24I>. Acesso em: Ago./2015. 45 Remanescentes Quilombolas, Morro do Boi Balneário Camboriú, vídeo apresentado na França no dia 10

de Janeiro de 2015 na Cidade de Nantes, por Enya Gemard. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=ADbUoAgeW0c>. Acesso em: Ago./2015. 46 VÍDEO INSTITUCIONAL DE BALNEÁRIO CAMBORIÚ. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=wWK2NurZMqc>. Acesso em: Ago./2015. 47 O ineditismo de uma mulher ascender ao cargo máximo do Poder Executivo da República Federativa do

Brasil, a posse de Dilma Rousseff como presidenta em 2011, deflagrou o debate em torno do termo

“presidenta”, assim, flexibilizado para o gênero feminino. Sendo a língua também um campo de disputa

política e ideológica, opositores da presidenta – tanto pelo projeto de país que ela representa quanto por sua

condição de mulher – alegaram que o termo “presidenta” estava incorreto. Para além de argumentar que

amarras para a linguagem são de uma ortodoxia contradizente ao cotidiano, purista e conservadora, cabe

mencionar que desde o século XIX o vocábulo “presidenta” ocorre nos dicionários da língua portuguesa a

significar “mulher que preside”. (E-PROINFO. A língua, a mulher e a presidenta. Disponível em:

<http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/a-lingua-a-mulher-e-a-presidenta.html>. Acesso em:

ago. /2014.)

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nascimento, mas os limites que recorda e transmite através de sua oralidade, as memórias de

suas/seus ascendentes, seja por suas lembranças, seja por seu modo de vida e visão de mundo.

O capítulo busca como estão guardadas as micro-áfricas – termo cunhado pelo Professor

Amailton Magno Azevedo48 para designar a experiência social em Diáspora – refletidas nos

patrimônios de tradição viva, por meio de uma resistência secular, reverberada também, tal

resistência, no trabalho designado à mulher negra. Enveredando pelas questões: Como é

experienciado o papel de liderança desempenhado pela matriarca Margarida Jorge Leodoro?

Como estão guardadas as micro-áfricas na Comunidade Quilombola do Morro do Boi? Como

se reinventam e se interagem tais saberes diversos às epistemologias ocidentais? Através dos

depoimentos da matriarca e de demais moradoras e moradores da Comunidade do Morro do

Boi e produções teóricas que nos ajudam a compreender como se travam as relações sociais

em nossa sociedade em relação à população de origem africana.

O Capítulo Terceiro, intitulado SAYONARA, A JUVENTUDE: Desafios e

Perspectivas, volta ao presente, procura investigar quais os desafios e as perspectivas para a

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, percebendo na personagem Sayonara Nancy

Leodoro Siqueira, filha de Sueli Marlete Leodoro e neta de Margarida Jorge Leodoro, um

marco geracional. Através das demandas da Comunidade Quilombola do Morro do Boi,

percebidas através dos depoimentos das moradoras e moradores, e de uma análise de

conjuntura atual no cenário nacional pesquisada através das mídias alternativas, refletindo

historicamente sobre os marcos das políticas públicas para a população negra, pretende

compreender, do micro para o macro, o estágio atual das políticas públicas existentes para as

comunidades remanescentes de quilombos no Brasil em interface com os desafios e

perspectivas da Comunidade Quilombola do Morro Boi, também refletidos na figura da

jovem Sayonara Leodoro Siqueira, que representa o futuro.

48 AZEVEDO, Amailton Magno. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas em São

Paulo (1927-1995). Tese (Doutorado em História Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUC/SP). São Paulo, 2006.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

SUELI, A PRESIDENTA:

A vinda de Dandara49

Sueli Marlete Leodoro. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

“Boa noite a todas e todos”, é assim que a presidenta da Associação Quilombola

do Morro do Boi, Sueli Marlete Leodoro, inicia sua fala nos espaços públicos. Com uma

agenda política intensa, Sueli busca construir a manhã desejada daquelas e daqueles a quem

representa, a Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Desse modo, este capítulo procura

investigar como se configura e é experienciada a lida política de Sueli Marlete Leodoro, como

49 O título faz referência à canção de Jorge Ben Jor Eu quero ver quando Zumbi chegar (Disco A Tábua de

Esmeralda, 1974), quando ainda Jorge Ben. “Eu quero ver// Quando Zumbi chegar/ o que vai acontecer/

Zumbi é senhor das guerras/ É senhor das demandas/ Quando Zumbi chega é Zumbi/ É quem manda”.

Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, é ícone de luta das populações de origem africana em diáspora, em

especial no Brasil. No entanto, sem a intenção de deslegitimar o que Zumbi representa, optamos por

visibilizar Dandara dos Palmares que, assim como Zumbi, seu esposo, liderou mulheres e homens, pegou em

armas, resistiu à escravidão e lutou contra o sistema escravocrata no século XVII. (REVISTA FÓRUM. E

Dandara dos Palmares, você sabe quem foi? Disponível em:

<http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2014/11/07/e-dandara-dos-palmares-voce-sabe-quem-

foi/>. Acesso em: ago. /2015; JORNAL CUCA LIVRE. Dandara: a face feminina de Palmares. Disponível

em: <http://jornalcucalivre.blogspot.com.br/2007/08/dandara-face-feminina-de-palmares-eu.html>. Acesso

em: ago. /2015).

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mulher, negra, quilombola e presidenta da Associação. Para tanto, fez-se necessário percorrer

um sinuoso caminho entre imagens, mídias e produções locais, audiovisuais e entrevistas em

que a Presidenta expressa seu discurso, e também com a ajuda de censos, de um estudo

socioeconômico realizado na Comunidade, e do Relatório Antropológico de Caracterização

Histórica, Econômica e Sócio-Cultural da Comunidade do Morro do Boi. Para tal

investigação, também se fez necessário buscar o entendimento de outra questão: como a

narrativa de Sueli Leodoro destoa do espaço de hegemonia racial branca e masculina onde

está inserida?

Sueli Marlete Leodoro na ocasião do lançamento da exposição fotográfica A Rua dos Negros. Imagem:

Celso Peixoto, 2014.

O Balneário

Figure o/a leitor/a uma rodovia. Uma rodovia asfaltada e duplicada, abrindo

caminho entre a Mata Atlântica. Por esta rodovia passam diariamente caminhões cargueiros e

de frete, ônibus, motos e carros transitando de norte a sul pelo litoral norte do Estado de Santa

Catarina. A construção e duplicação desta rodovia neste trecho ilustrado ocorreu ao longo da

segunda metade do século XX, com força e suor de mãos trabalhadoras. Ela se chama

Rodovia Governador Mário Covas, ou BR-101, e corta a costa litorânea leste do Brasil desde

o município de Touros, Estado do Rio Grande do Norte, até o município de São José do Norte,

Estado do Rio Grande do Sul. Quem transita por esta estrada, na velocidade do dia a dia do

mundo contemporâneo, é raro que reflita sobre os impactos que causou tal empreitada que

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significou “desenvolvimento” e “progresso” e que, ao mesmo tempo em que acudiu as

demandas da economia, transformou vidas sem pedir licença.

A localização da BR-101 no Brasil (em destaque: Balneário Camboriú). Imagem: Banco de Informações e

Mapas de Transportes – BIT; edição: Camila Evaristo.

No litoral norte de Santa Catarina, a BR-101 corta a cadeia de montanhas

chamada Morro do Boi, essa região está em torno das praias localizadas ao sul do município

de Balneário Camboriú e ao norte do município de Itapema, além de divisar com o município

de Camboriú50. Neste trecho, à altura do km 140, sentido norte-sul, subindo uma rua íngreme

perpendicular à BR-101 chegamos à Comunidade Quilombola do Morro do Boi, no limite dos

municípios de Balneário Camboriú e Itapema, pertencente ao primeiro, no bairro Nova

Esperança. Esta rua se chama Almiro Leodoro, uma homenagem a este ancestral da

Comunidade. Ali de cima vislumbramos o horizonte do Oceano Atlântico que banha o

município de Balneário Camboriú.

50 BUTI, Rafael Palermo. Sobreposições do Estado, posições do grupo: o caso da Comunidade Quilombola do

Morro do Boi-SC. Ruris. Volume 7, Número 2, setembro de 2013. p. 91-92. Disponível em:

<http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1891/1370>. Acesso em: Ago./2015.

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À esquerda BR-101, à direita entrada para a Rua Almiro Leodoro. Imagem: Google Maps, 2015.

Cadeia de Montanhas Morro do Boi em relação aos municípios de Balneário Camboriú, Camboriú e

Itapema. Imagem: Mapcarta.

A Comunidade se localiza a 6km da Sede do Município de Balneário Camboriú,

“o Balneário”, um dos destinos turísticos mais procurados do sul do país, tendo em vista todo

o seu aparato urbano e natural. O chamado ao turismo está, inclusive, expresso no hino do

Município, que revela uma caricatura de belezas naturais, hospitalidade, festas, diversão e

tradição cristã:

Hino de Balneário Camboriú Letra e Música: Mário Carlos Gonçalves

Balneário Camboriú

De belas praias altaneiras

Seus recantos verdes montes

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Orgulho dos brasileiros

Onde suas águas mais azuis

Enchem de encanto

O mundo inteiro

Com seu povo alegre e amigo

Recebe a todos o ano inteiro

Com o Cristo Luz em amplo abraço

Abençoando os passageiros

Suas noites são festivas

E aproximam corações

Cidade hospitaleira

Quem a conhece

Nunca mais a esquecerá

Princesa do meu Brasil

Cidade de belezas mil.51

Localização do Morro do Boi em relação à Sede do Município de Balneário Camboriú/SC. Imagem:

Google Maps.

Balneário Camboriú é um jovem e pequeno município, fundado em 1964 com a

nomenclatura Balneário de Camboriú, emancipando-se do município de Camboriú52. Além do

município de Camboriú, Balneário Camboriú é limítrofe aos municípios de Itajaí e Itapema.

Desde a sua gênese, devido às suas belezas naturais que lhes são características, foi forjada

uma “vocação turística”. Em meio século viu sua infraestrutura crescer exponencialmente,

sendo caracterizado como um município urbano desde a sua fundação. Segundo o Censo

Demográfico promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1970

51 PORTAL OFICIAL DA PREFEITURA DE BALNEÁRIO CAMBORIÚ. Hino de Balneário Camboriú.

Disponível em: <http://www.balneariocamboriu.sc.gov.br/simbolos_hino.cfm>. Acesso em: Ago./2015.

52 Através da Lei Estadual Nº 960 de 8 de abril do mesmo ano. O nome “Balneário Camboriú” provém da Lei

Estadual Nº 5630 de 20 de novembro de 1979. (IBGE. Balneário Camboriú, Santa Catarina. Disponível em:

<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/santacatarina/balneariocamboriu.pdf>. Acesso em:

Ago./2015.)

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sua população correspondia a 10.839 pessoas, destas, 71% residiam em área urbana53.

Segundo o último Censo Demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, a população do

município é de 108.089 pessoas, o que lhe confere o status de 12º município mais populoso

do Estado de Santa Catarina e o maior em densidade populacional, em virtude de ser o 2º

menor município do Estado em extensão territorial (46,244 km2)54. Da população atual 100%

reside em área urbana, segundo o IBGE, devido à “prefeitura do município não considera

existir área rural em sua base territorial, permitindo-se, dessa maneira, cobrar o Imposto

Predial e Territorial Urbano (IPTU), imposto bem mais caro do que o Imposto sobre a

Propriedade Territorial Rural (ITR)” 55 . Tal ideário desenvolvimentista é expresso na

Mensagem do Sr. Prefeito Municipal de Balneário de Camboriú, Higino J. Pio no transcurso

do 4º Aniversário de Emancipação Política:

No ensêjo do 4º aniversário de emancipação política do município de Balneário de

Camboriú, cujo mandato de Prefeito Municipal, a mim outorgado e que com muita

honra desempenho esta missão, venho através desta mensagem, dirigir me a tôda

população do nosso município, a todos aquêles que de uma maneira ou de outra,

vem prestando relevantes serviços a nossa comunidade, a aquêles desbravadores,

que implantaram o progresso, aos empreendedores, ao Comércio e Indústria, ao

operariado, cujo trabalho dignifica esta realidade que torna nosso município um

dos mais progressistas em todo o território Brasileiro, a todos êstes o meu

reconhecimento e do Poder Executivo.56

Higino Pio alude para o progresso e para o empreendedorismo, palavras que

evocam o constante crescimento reverberado na atualidade, crescimento que se alimentou do

turismo. Esta imagem urbana aliada às belezas naturais, que configuram o apelo turístico,

pode ser exemplificada com uma produção audiovisual disponível no youtube, intitulada

Vídeo institucional de Balneário Camboriú57, promovida pela prefeitura do mesmo Município.

Belas praias, festas, shoppings, hotéis de luxo, arranha-céus, pessoas brancas com alto poder

aquisitivo são elementos que compõem o audiovisual, que ainda traz slogans como “onde

você quer estar agora?” e “o seu melhor lugar”. Definitivamente, um paraíso. A este lugar, as

moradoras e moradores do Morro do Boi se referem como “O Balneário”.

53 BUTI; RAMOS, 2011, p. 12-13

54 IBGE. Balneário Camboriú, Santa Catarina. Disponível em:

<http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=420200>. Acesso em: Ago./2015.

55 BUTI; RAMOS, 2011, p. 12.

56 PIO, Higino João. A Voz do Litoral. Ano I. Sábado 20 de julho de 1968 – Balneário de Camboriú – Santa

Catarina. Número 1. Mensagem do Sr. Prefeito Municipal de Balneário de Camboriú, Higino J. Pio no

transcurso do 4º Aniversário de Emancipação Política. Arquivo Público Municipal de Balneário Camboriú.

57 VÍDEO INSTITUCIONAL DE BALNEÁRIO CAMBORIÚ. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=wWK2NurZMqc>. Acesso em: Ago./2015.

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“O seu melhor lugar”. Imagem: Vídeo Institucional de Balneário Camboriú, 2013.

O Balneário também é conhecido como “Miami brasileira” e “Maravilha do

Atlântico Sul”, e tem sua economia impulsionada pelo turismo, o que reverbera na prestação

de serviços, no comércio e na construção civil. Andando pelas badaladas Avenida Brasil e

Avenida Atlântica e suas ruas perpendiculares é impossível não visualizar algum edifício em

construção. Neste espaço, o barulho do mar é abafado pelo som da serra elétrica e da furadeira.

Por toda a extensão da Avenida Atlântica, requintados restaurantes. Ao longo da Avenida

Brasil abundam lojas. Expresso tal atmosfera com um poema:

multicores

apenas em neon

imprópria

água pra banho

cores neutras

dos edifícios

e de toda

sua urbe, bc

cores neutras

já tingiram

o mar

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Prédios que cobrem e tingem o mar. Captura: Alaize Dall'Orsoletta, edição: Camila Evaristo, 2015.

Edifício em construção. Imagem: Camila Evaristo, 2015.

No centro de Balneário Camboriú, de arquitetura contemporânea e requintada de

neutras cores, diuturnamente e noite adentro, é varrida a calçada da Avenida Atlântica e são

recolhidas as bitucas de cigarro da areia da praia que circunda a mesma avenida, assim como,

as mãos que retocam a tinta das canchas de bocha e cotidianamente guardam os canteiros de

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marias-sem-vergonha das mesmas canchas, tal qual pintam as telhas dos pontos de ônibus,

não permitem que as ações do tempo, do vento e da maresia deixem suas marcas de

deterioração.

Loteamento Jardim Denise, Balneário Camboriú. Imagem: Thiago Santos, 2014.

Na mesma Balneário Camboriú, o Loteamento Jardim Denise, bairro Nova

Esperança, um espaço não destinado ao turismo, aguarda pavimentação. A localidade

encontra-se na divisa dos municípios Balneário Camboriú e Camboriú, um espaço não

destinado ao turismo, onde o poder público não aplica as verbas municipais com a mesma

destreza que cobre de tinta as intervenções com tinta spray no Centro. É sintomático que na

imagem58 que capta o contraste entre o Centro e o Loteamento figure uma mulher negra59. No

entendimento de Gusmão:

A relação entre grupos sociais diversos e, quase sempre antagônicos, no âmbito do

sistema global, revela uma dinâmica cultural não homogênea. Isso mostra que o

capitalismo não dá conta da diversidade social, étnica e racial existente no interior

da proposta homogeneizadora. O fato, visível na questão indígena, é também

comum ao segmento negro, apesar das diferenças históricas existentes entre eles.60

58 A imagem fez parte da Exposição Coletiva da Câmara Setorial de Fotografia, na Biblioteca Pública de

Balneário Camboriú em 2015. A captura é do fotógrafo documental Thiago Santos, contato:

[email protected].

59 A população de Balneário Camboriú com renda, de acordo com os critérios de cor e raça estabelecidos pelo

IBGE, está configurada da seguinte maneira: Amarela 2%; Indígena 0,15%; Branca 86%, Parda 10% e Preta

2%. Dados aproximados de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010. IBGE. Balneário

Camboriú, Santa Catarina. Disponível em:

<http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=420200&idtema=90&search=santa-

catarina%7Cbalneario-camboriu%7Ccenso-demografico-2010:-resultados-da-amostra-caracteristicas-da-

populacao->. Acesso em: Out./2015.

60 GUSMÃO, 1995, p. 17.

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Ou seja, as desigualdades sociais no Município estão marcadas por um recorte

racial, que, por exemplo, se revela na insígnia da cor daqueles e daquelas que caminham pela

Avenida Atlântica com as suas roupas fitness - as mesmas que figuram nas vitrines a custar

mais de 3 dígitos de cifrões cada peça - junto com seu cão com pedigree, por um lado, e

daqueles que recolhem o lixo nas madrugadas, por outro. Os primeiros trazem consigo mais

que suas vestes de grife, trazem em seu corpo as marcas do trabalho na academia, a pele alva

e as bochechas rubras e o andar com um compasso despreocupado, ou preocupado com os

efeitos estéticos da caminhada que está a fazer. Os segundos têm as suas vestimentas

uniformizadas, mas não uniformizadas de acordo com o que dita a moda, é o uniforme laranja

do Departamento de Limpeza Urbana do município; as marcas em seus corpos são as mãos

ásperas, os lábios grossos, as raízes dos cabelos que se encrespam umas às outras, a pele

escura e o andar apressado, que em um salto atinge a traseira da caçamba do caminhão em

movimento.

Tem um quilombo na “Maravilha do Atlântico Sul”61

“Existo porque existimos e, já que existimos, então existo”, assim ironiza o

filósofo queniano John Samuel Mbiti o cogito ergo sum de Descartes62. René Descartes,

filósofo francês do início dos tempos modernos, em “Discurso do Método” expressa as bases

do pensamento racionalista, fundamentando a ideologia moderna. Do outro lado, John Samuel

Mbiti propõe outra episteme, a episteme de aquelas e aqueles que não compartilham das

discussões teóricas ocidentais, não celebra o indivíduo, celebra o grupo. Da mesma maneira, a

principal porta-voz da Comunidade Quilombola do Morro do Boi nos espaços onde a

branquitude exerce seu poderio, a presidenta da Associação Quilombola, Sueli Marlete

Leodoro, tem a sua narrativa sempre na primeira pessoa do plural. Comunidade é a palavra

usada para se definirem enquanto grupo, o grupo que compartilha de relações de parentesco,

afinidade, solidariedade e que comunga de momentos de festividades e de dores há mais de

um século.

Sueli Marlete Leodoro é descendente de um dos primeiros casais que chegaram à

61 Título de artigo do professor José Bento Rosa da Silva. Tem um quilombo na “Maravilha do Atlântico

Sul”. Disponível em: <http://bchistoriaememoria.blogspot.com.br/2011/02/tem-um-quilombona-maravilha-

do.html>. Acesso em: Ago./2015.

62 MONGA, Celestin. Niilismo e Negritude. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 133.

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região do Morro do Boi entre o fim do século XIX e início do século XX, o casal Joaquina e

Delfino. Os atuais moradores e moradoras da Comunidade Quilombola do Morro do Boi são

descendentes deste casal, assim como do casal Tomas Jovito Rebello e Ana Guilhermina

Siqueira63. A senhora Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, liderança da Comunidade, mãe

de Sueli, esposa de Almiro Leodoro, e suas/seus descendentes é que requerem o

reconhecimento de suas terras como comunidade quilombola. Embora apenas o núcleo

familiar de Dona Guida seja representado pela Associação Quilombola, a Comunidade

Quilombola do Morro do Boi é definida também pelos demais núcleos familiares

descendentes dos primeiros casais do Morro do Boi. Nesta pesquisa, o enfoque está voltado

para o núcleo familiar de Dona Guida. Cabe mencionar que casas de terceiros também foram

erguidas na base espacial do Morro do Boi ao longo da Rua Almiro Leodoro, mas com um

diferencial: as suas cercas. Estas cercas são marcos do que definimos aqui como Comunidade

Quilombola do Morro do Boi.

Da Rua Almiro Leodoro, que durante muito tempo foi conhecida como “Rua dos

Negros”, na alvorada de segunda a sábado, desce para trabalhar no Balneário, Sueli Marlete

Leodoro, assim como suas irmãs, seus primos e primas, sobrinhos e sobrinhas, grupo que

chama a si de Comunidade, a Comunidade Quilombola do Morro do Boi, para retornar ao seu

território depois que o último raio de Sol já se extinguiu no horizonte. A “Maravilha do

Atlântico Sul” abriga uma comunidade negra rural com práticas dissonantes das que a

envolvem, mas que também dialoga de forma ativa com o seu entorno. O tempo, outrora

marcado pelo ritmo da natureza, agora cede ao ritmo do relógio. No Morro do Boi, não

existem mais engenhos de farinha e açúcar.

63 BUTI; RAMOS, 2001, p. 11

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Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Imagem: acervo pessoal de Mariana Schlickmann.

Segundo o levantamento em campo socioespacial realizado em 2014, no chamado

Lote da Dona Guida distribuem-se oito casas. A casa onde habita a matriarca, junto com seus

filhos Altair Almiro Leodoro e Laurete Almiro Leodoro. Três casas onde seus filhos Almiro

Leodoro Filho, Eliete Almiro Leodoro e Reginalda Leodoro Fidel vivem com suas famílias.

Duas casas onde suas filhas Aldair Maria Leodoro e Adelair Leodoro residem sozinhas, e duas

casas onde suas netas Zarúbia Alexsandra Leodoro, filha de Adelair, e Patrícia Leodoro Fidel,

filha de Reginalda, vivem com suas famílias. Sueli Marlete Leodoro e sua família também

habitam o Morro do Boi, mas não no lote de Dona Guida, Sueli é casada com seu primo,

Acácio Siqueira, descendente do casal Tomas Jovito Rebello e Ana Guilhermina Siqueira.

A aguerrida Sueli Marlete Leodoro é a atual presidenta da Associação Quilombola

do Morro do Boi. Sueli é uma mulher de 51 anos, quarta filha de dez irmãos, com três filhos.

Nascida em sexta-feira de carnaval, parto em casa, no Morro do Boi, quando não havia luz,

em 20 de fevereiro de 1965. Organiza as reuniões da Associação em torno do pleito

quilombola e de demandas por melhorias em infraestrutura, qualidade de vida, direitos e

cidadania junto ao poder público, além de possuir um diálogo constante com as demais

comunidades do Estado de Santa Catarina, e participa de reuniões em torno da igualdade

racial em Santa Catarina. É uma das muitas mulheres que não precisou ler Simone de

Beauvoir para desconstruir a noção sexista que atravessa as relações sociais.

Não sou aquilo que minha mãe foi. É dividir igual. Se tiver que lavar a roupa, vai

lavar a roupa, se tiver que pendurar a roupa, vai pendurar a roupa. Não tem essa!

“Ah, porque o homem tem que ser o que vai lá fora buscar pra trazer pra dentro de

casa e chegar em casa, deitar e botar a perna pra cima”. Não! Desde que eu

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namorava com ele, ele é que me levava café na cama. Ele saia daqui e me levava

café na casa da minha mãe pra mim. Aí um dia a minha mãe falou pra mim: “Ai,

mas isso aí tá errado porque é a mulher que tem que levar café na cama”. Como

assim? Quem disse isso? Onde tá escrito? Não tá! Então por que a gente tem que

ser sempre submissa, cordeirinha, se a gente pode ter a voz ativa também?

[...]

Na casa das minhas irmãs eu vejo também a mesma coisa, as mulheres não se

dobram, entendeu? É uma maneira da gente mostrar que aquela coisa que a mulher

nascia, crescia pra serviço doméstico e dizer sempre sim para o marido... isso tá

errado! Acabou! Já era! Então a gente tem que evoluir, se a gente tem que evoluir, a

gente tem que fazer o homem também aprender. Porque não adianta nada a gente

evoluir sem ensinar. O meu marido nunca tinha trocado frauda de filhos. Aprendeu.

Trocou da Sayonara, da Michele, fazia mamadeira, ele aprendeu. 64

Com um tom de voz altivo, característico daquelas que lutam contra as diversas

opressões estabelecidas pelo status quo, Sueli Leodoro abandona a submissão que se dava de

modo mais marcante nas gerações anteriores, demarcando a emancipação feminina no

universo familiar. Opõe-se à noção de "macho provedor", confundindo os papeis socialmente

construídos a homem e mulher: “Se nós mulheres, a gente consegue fazer o serviço deles,

porque eles não podem fazer o nosso?”65. Ao mesmo tempo em que acredita num movimento

de educação dos homens, de modo que estes dispam-se de seus privilégios: “não é só questão

de moldar o homem pra gente, mas sim, pra vida”66.

Por que o homem tem que ganhar mais que a mulher? Não tem essa (…). Hoje em

dia tem elas aqui, que são jovens e tal. Elas podem, de repente: 'ah, eu não quero

fazer isso', pronto e deu! 'Eu não quero ser simplesmente uma dançarina, eu quero

ser uma pedreira da vida', 'eu quero ser uma advogada', porque até então advogada

era coisa de homem, mulher não podia ser advogada. Então é nesse lado da

discussão que tem que ser, é dessa maneira assim que eu penso, mesmo.67

Sueli Leodoro questiona o rendimento financeiro das mulheres em relação aos

homens, que historicamente no Brasil - mesmo as mulheres desempenhando a mesma função

que os homens - recebem salários inferiores. Tal desigualdade de renda se torna mais

acentuada quando analisamos os dados de rendimento mensal sob o viés de um recorte racial.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (gráfico a seguir), observamos que no

final da década de 1990 as mulheres negras recebiam em torno de um terço da renda dos

homens brancos. Em 2009, estavam recebendo pouco mais de 50%68. Reflexo de centenas de

64 LEODORO, Sueli Marlete. Entrevista concedida a Camila Evaristo da Silva. Balneário Camboriú, 2015.

Entrevista. 65 Ibidem. 66 Ibidem.

67 Ibidem. 68 LIMA, Márcia; RIOS, Flavia; FRANÇA, Danilo. Articulando gênero e raça: a participação das mulheres

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anos de espoliação da população de origem africana somada à condição histórica de mulher

como segundo sexo 69 , reverberada na disparidade de oportunidades, até o momento,

condicionada a construções de gênero e raça.

Fonte: PNAD-IBGE. Elaboração: LIMA; RIOS & FRANÇA70.

Ainda que exerçam as mesmas funções, mulheres recebam menos que homens, há

que se registrar também que estão legadas aos homens brancos as carreiras de maior prestígio

social71, o que vai de encontro à crítica de Sueli Leodoro quando coloca que as jovens podem

ser advogadas, se quiserem, por exemplo, questionando as profissões comumente legadas às

negras no mercado de trabalho (1995-2009). In: MARCONDES, Mariana Mazzini et al (orgs.). Dossiê

mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013, p. 74. 69 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 70 LIMA; RIOS & FRANÇA, 2013, p. 74. 71 Corroboramos com o entendimento de Edilza Correia Sotero para conceituar o que avaliamos como “prestígio

social” em seu estudo sobre o acesso ao Ensino Superior no Brasil sob a perspectiva de gênero e raça.

Segundo a autora, “se compreende prestígio como uma categoria de análise sociológica, portanto, um valor

socialmente atribuído e compartilhado em relação aos cursos e carreiras no ensino superior. Longe de se

tomarem por base parâmetros pessoais, são estabelecidos critérios que se mostram relevantes na

determinação do prestígio dos cursos – mesmo que variem muito nos diferentes estados brasileiros e nas

categorias administrativas das IES –, como concorrência para o ingresso, e remuneração e vagas no mercado

de trabalho.” (SOTERO, Correia Edilza. Transformações no acesso ao ensino superior brasileiro: algumas

implicações para os diferentes grupos de cor e sexo. In: MARCONDES, Mariana Mazzini et al (orgs.).

Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013,

p. 47.

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mulheres, em suma, está consonante com o entendimento do feminismo contemporâneo que

brada: “lugar de mulher é onde ela quiser”.

Perguntada se se considera feminista, responde “bastante!”, embora acuse que o

conceito seja rotulado de radicalismo, e não se julga como radical. A questão que se coloca

não é uma disputa com os homens, mas o entendimento de que a superioridade patriarcal deve

ser desconstruída. Afinal, em “comunidade negra” mulheres não aparecem. Nesse sentido,

Sueli Leodoro e suas irmãs colocam-se como protagonistas no palco do cotidiano, a liderar as

suas famílias – sozinhas ou ao lado de seus companheiros, as chefas de família. Desconstroem

os papéis socialmente determinados a homens e mulheres: aos primeiros o zelo pelo sustento

da família e às mulheres o cuidado da casa e dos filhos. Levando em consideração que Dona

Guida têm seis filhas que moram no Morro do Boi – uma delas consigo – e dois filhos – um

deles consigo, percebemos que o papel feminino é determinante nas lidas do dia a dia. O que

não significa que o papel desempenhado pelos homens seja apagado. Nas reuniões da

Associação Quilombola do Morro do Boi, Altair Leodoro segura a ata e a caneta para o

registro dos encontros.

Adelair Leodoro. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

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Zarúbia e sua filha Beatriz. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

Sueli Marlete Leodoro, assim como suas/seus familiares de sua geração, não

concluiu o Ensino Fundamental quando adolescente. Outro dado que chama a atenção diz

respeito ao fato de que, excetuando-se seus familiares, todos os seus colegas de escola eram

brancos. Relata sua relação e dos seus com os demais colegas: “quebrava pau, brigava porque

diziam que a gente não tomava banho, porque a gente era negrinha, só molhemos as mãos e os

pés”72. O que nos faz refletir sobre alguns dos motivos por ela e suas/seus familiares não

terem concluído o Ensino Fundamental. Efeitos do racismo, o que vai de encontro com o

elevado número de defasagem da população negra nos sistemas escolares brasileiros. Nilma

Gomes73 chama a atenção para a ausência de discussões sobre questões raciais tanto nos

espaços de ensino, como na formação de docentes, o que desencadeia na perpetuação de

representações negativas sobre a população negra, a reverberar em sentimentos de complexo

de inferioridade, experienciados por estudantes vítimas de racismo, tendo em vista que a

escola não é um espaço onde a estética do corpo negro e signos culturais de matriz africana

são valorizados, pelo contrário. Sueli parou de estudar aos treze anos para trabalhar como

empregada doméstica em Itajaí/SC. Recentemente concluiu o Ensino Médio pelo sistema de

Educação de Jovens e Adultos – EJA, e almeja cursar uma faculdade, além de ser a principal

motivadora para que as/os suas/seus voltem a estudar.

72 LEODORO, Sueli Marlete. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana

Schlickmann. Balneário Camboriú, 2012. Entrevista. 73 Nilma Lino Gomes foi a relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola, o que

será melhor discutido no capítulo terceiro, atualmente ocupa o cargo de chefia do Ministério da Cidadania.

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo

negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003, p. 176.

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E vamos à luta

Raymond Williams, intelectual britânico influente no movimento da New Left

(Nova Esquerda) - oposição crítica às experiências reais de socialismo no século XX, chamou

de “mediação” o potencial transformador das pessoas frente ao poder hegemônico74. Mulheres

e homens da Comunidade Quilombola do Morro do Boi exercem tal mediação a todo o

momento em seus cotidianos, em um universo que é ocidental, capitalista, urbano, do trabalho,

da escola, branco - mas negro também -, dos movimentos sociais e, inclusive, quilombola. Em

2007 foi fundada a Associação Quilombola Morro do Boi75, e, desde então, Dona Guida e

suas/seus descendentes pleiteiam a propriedade definitiva e coletiva de suas terras, conforme a

legislação. O que observamos no atual cenário é que a luta transcende a questão fundiária, ou

seja, a luta (essa é a palavra usada) é pela quebra das engrenagens que fazem rodar o motor

excludente que sobremaneira atinge a vida das pessoas da Comunidade Quilombola do Morro

do Boi. Mais que isso, a luta também transcende a Comunidade Quilombola do Morro do Boi,

a luta pela quebra das engrenagens do sistema é por todas e todos que são atingidos por elas.

Muito embora, para tal luta, seja necessário também fazer alianças com as rodas mais

progressistas do sistema. É o que observamos na narrativa da Presidenta da Associação

Quilombola do Morro do Boi, Sueli Marlete Leodoro.

Como já mencionado, a Comunidade do Morro do Boi é composta pelas/os

descendentes dos primeiros casais - Tomas Jovito Rebello e Ana Guilhermina Siqueira e

Joaquina e Delfino, que ali chegaram entre fins do dezenove e início do vinte. Parte desses/as

descendentes, a família da matriarca Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, “entrou, no ano

de 2008, com abertura do processo administrativo junto ao INCRA, para finalidade de

reconhecimento, demarcação e titulação das terras que tiveram legadas por herança”76.

Mediadas/os por atrizes/atores externas/os, tendo destaque o papel de Ana Elisa Schlickmann,

a Associação Quilombola do Morro do Boi foi fundada. Em 2008, a Associação encaminhou à

Fundação Cultural Palmares o pedido de emissão da certidão de autorreconhecimento

enquanto comunidade remanescente de quilombo:

Nós, moradores da localidade denominada Morro do Boi, herdeiros da população

descendentes de africanos, nos reconhecemos como Comunidade Quilombola, por

74 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 102

75 BUTI; RAMOS, 2011, p. 28

76 BUTI; RAMOS, 2011, p. 10.

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termos em comum os antepassados que aqui viveram produzindo subsistência,

praticando cultura de matriz africana, por termos laços de parentesco e, sobretudo

por termos herdados as terras que a eles pertenceram, vínculo de união entre o

passado presente e futuro.

Desde que identificamos nossas raízes a partir da tradição oral e das memórias dos

mais idosos da comunidade, passamos a nos identificar como quilombolas, pelas

razões acima mencionadas.

Neste sentido, solicitamos o reconhecimento legal desta comunidade como

remanescentes de quilombo, dentro das normas estabelecidas pelo governo da

União.77

Em 2009, a Fundação Cultural Palmares emitiu a certidão de autodefinição como

remanescente de quilombo da Comunidade do Morro do Boi78. E em 2011 se iniciaram os

trabalhos de pesquisa antropológica para a elaboração do “Relatório Antropológico de

Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-Cultural: Comunidade Remanescente de

Quilombo Morro do Boi (Balneário Camboriú /SC)”, publicado em 2011. Atualmente o

processo de titulação encontra-se em fase de contestação, segundo Sueli: “eles fizeram a

demarcação, agora vão publicar, no Diário Oficial, aí vai ver quem tem alguma contestação,

se não tiver, tudo ok, mas isso vai levar mais ou menos uns 10 anos, eu acho. Não vai ser do

dia pra noite”79. Nesta história, ainda cabe sublinhar a participação da advogada Flávia

Cristina Oliveira dos Santos, assessora jurídica da Associação, e do Prof. Dr. Paulino

Cardoso80, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), assessoria política.

77 SCHLICKMANN, 2010, p. 74-75

78 DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. 05/05/2009. Disponível em:

<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/640576/pg-16-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-05-05-2009>.

Acesso em: Ago./2015.

79 LEODORO, 2015.

80 Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). Membro da Comissão

Assessora de Diversidade para Assuntos Relacionados a Educação dos Afro-Brasileiros (CADARA-MEC),

membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR-SEPPIR).

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Acácio Siqueira, Sueli Leodoro, Sayonara Siqueira e Ana Elisa Schlickmann. Festival de Frutos do Mar,

Balneário Camboriú, 2015. Imagem: Acervo Pessoal Ana Elisa Schlickmann.

Os responsáveis pela elaboração do relatório antropológico em sua pesquisa

identificaram que, apesar de apenas uma das famílias lançarem-se em direção ao pleito

quilombola, esta caminhada apenas foi possível porque as demais famílias consentiram:

“indica algo que de algum modo organiza as relações sociais entre parentes e vizinhos no

Morro do Boi: o respeito ao que é do outro, o respeito à liberdade do outro”81. As demais

famílias não vislumbram os benefícios do processo, afinal, está em jogo a propriedade que

possuem: a sua terra, onde estão fincadas suas raízes. Cabe mencionar que a Comunidade

Quilombola do Morro do Boi já sofreu diversas investidas contrárias aos seus interesses em

relação às suas terras. Outrora grande parte destas foi subtraída por conta da construção e a

duplicação da BR – 101, décadas de 60 e 90, respectivamente, além das casas danificadas sem

indenização. Antes da construção, a grande maioria vivia com a agricultura de subsistência, e

também havia a prática da caça. Depois que a BR – 101 perpassou suas terras, a comunidade

teve sua rotina substancialmente alterada. Grande parte das/os moradoras/es foi procurar

trabalho fora, alguns deles trabalharam na própria rodovia. A cachoeira, onde as mulheres

lavavam roupas para si e para fora, secou. Registramos ainda que houve mortes de moradores

por atropelamento na Rodovia, Valdivino, Armelindo, Aldemir, Sebastião, Olávio e Fernando,

foram para junto dos ancestrais82. Interessa a discussão que esta recusa pode ser entendida

devido à desconfiança que conferem ao Estado, que tirou e agora pretende dar.

81 BUTI; RAMOS, 2011, p. 32.

82 BUTI; RAMOS, 2001, p. 103.

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Preto no branco83

Me Gritaron Negra Victoria Santa Cruz

Tenía siete años apenas,

apenas siete años,

¡Que siete años!

¡No llegaba a cinco siquiera!

De pronto unas voces en la calle

me gritaron ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

“¿Soy acaso negra?” – me dije ¡SÍ!

“¿Qué cosa es ser negra?” ¡Negra!

Y yo no sabía la triste verdad que aquello escondía. Negra!

Y me sentí negra, ¡Negra!

Como ellos decían ¡Negra!

Y retrocedí ¡Negra!

Como ellos querían ¡Negra!

Y odié mis cabellos y mis labios gruesos

y miré apenada mi carne tostada

Y retrocedí ¡Negra!

Y retrocedí…

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

Y pasaba el tiempo,

y siempre amargada

Seguía llevando a mi espalda

mi pesada carga

¡Y cómo pesaba! ...

Me alacié el cabello,

me polveé la cara,

y entre mis cabellos siempre resonaba

la misma palabra

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!

Hasta que un día que retrocedía,

retrocedía y que iba a caer

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!

¿Y qué?

¿Y qué? ¡Negra!

Sí ¡Negra!

Soy ¡Negra!

Negra ¡Negra!

83 Título de poema de Cristiane Sobral. SOBRAL, Cristiane. Preto no Branco. In:___. Só por hoje vou deixar

meu cabelo em paz. Brasília: Ed., 2014.

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Negra soy

¡Negra! Sí

¡Negra! Soy

¡Negra! Negra

¡Negra! Negra soy

De hoy en adelante no quiero

laciar mi cabello

No quiero

Y voy a reírme de aquellos,

que por evitar – según ellos –

que por evitarnos algún sinsabor

Llaman a los negros gente de color

¡Y de qué color! NEGRO

¡Y qué lindo suena! NEGRO

¡Y qué ritmo tiene!

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO

Al fin

Al fin comprendí AL FIN

Ya no retrocedo AL FIN

Y avanzo segura AL FIN

Avanzo y espero AL FIN

Y bendigo al cielo porque quiso Dios

que negro azabache fuese mi color

Y ya comprendí AL FIN

Ya tengo la llave

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO

¡Negra soy!84

A peruana poeta Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra (1922-2014) em Me

Gritaron Negra traduz em palavras o sentimento diante do tratamento racista direcionado à

população negra. Em um primeiro momento o eu lírico acata os xingamentos, recuando,

retrocedendo, buscando máscaras brancas, para, por fim, abandonar as máscaras, o que era

xingamento se metamorfoseia em escudo, se metamorfoseia em afirmação, afirmação

positivada da identidade negra. O poema de Victoria Santa Cruz nos serve como metáfora

para a compreensão dos significados de se autorreconhecer ou não enquanto remanescente de

quilombo. De um lado, o peso do estigma trazido no fenótipo que sempre acompanhou as

pessoas da Comunidade do Morro do Boi, declarar-se enquanto quilombola, também seria

rememorar o passado escravista. De acordo com Nilma Gomes, “construir uma identidade

negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que

para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros

84 CRUZ, Victoria Santa. Me Gritaron Negra. Disponível em: <http://arquivo.geledes.org.br/atlantico-

negro/afrolatinos-caribenhos/peru/21235-me-gritaron-negra-a-poeta-victoria-santa-cruz>. Acesso em:

Ago./2015.

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brasileiros”85. No dizer de Nunes, Meira e Silva:

[o] que significa ser negra e quilombola em uma sociedade que tão pouco sabe o que

significa um quilombo que não comporta as concepções demarcantes e restritivas

que o veem como um grupo de negros e negras fujonas, que vivem isoladamente,

alijados de lógicas que lhes atribuem, pejorativamente, a ideia de serem resquícios,

sobras da escravidão.86

Entendendo aqui o conceito de identidade não como estável ou essencialista, mas

construído em locais históricos específicos.87Por outro lado, declarar-se enquanto quilombola

é abandonar as máscaras brancas. A carta enviada à Fundação Cultural Palmares traz o

autorreconhecimento de Dona Guida e suas/seus descendentes enquanto remanescentes de

quilombos. Mencionam-se como “herdeiros da população descendente de africanos” e

praticantes da “cultura de matriz africana”, além de identificarem suas raízes “a partir da

tradição oral e das memórias dos mais idosos da comunidade, passamos a nos identificar

como quilombolas”. Sueli Marlete Leodoro, em sua fala sempre no plural, sempre no coletivo,

apresenta-se enquanto quilombola, perguntada sobre o que significa “identidade quilombola”,

responde (grifo nosso): “Eu vejo como uma maneira da gente estar buscando os nossos

direitos, porque com essa questão de quilombo a gente já pode brigar [‘brigar’ é o verbo]

muito além da conta, com vários governantes”88. O poder da lei faz as pessoas se declararem

enquanto quilombolas, mas independente das leis existe a luta que configura em significados

para o ser quilombola, luta que não cabe ao Estado, no entendimento de Abdias do

Nascimento, uma práxis afro-brasileira89, resistência localizada fora do mundo branco, ou

seja, não é pela força da lei que comunidades quilombolas se tornam comunidades

quilombolas. Sueli Leodoro, questionada se tem orgulho de ser quilombola (grifos nossos),

responde:

Ah, eu tenho! Hoje em dia a gente tá participando mais devido várias reuniões que a

gente faz e também a questão das crianças participarem mais, então é muito mais

fácil. Antigamente, quando o meu pai começava a contar a história a gente não

ouvia muito. Preferia não ouvir o que a gente tinha como sofrimento [sofrimento é

o sentimento]. Então a gente se desviava, me falaram que de repente era sentimento

85 GOMES, 2003, p. 171.

86 NUNES; MEIRA; SILVA, 2012.

87 HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a

perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 108–109.

88 Sueli Marlete Leodoro em depoimento em Remanescentes Quilombolas, Morro do Boi Balneário

Camboriú, vídeo apresentado na França no dia 10 de Janeiro de 2015 na Cidade de Nantes, por Enya

Gemard. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ADbUoAgeW0c>. Acesso em: Ago./2015.

89 NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo (Panamá, 1980). In: NASCIMENTO, Abdias do. Quilombismo:

documento de uma militância pan-africanista. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares /OR Editor

Produtor, 2002, p. 265.

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de vergonha, não sei bem se era vergonha, era mais sentimento, assim, de raiva

[raiva é ao sentimento], porque um colega falava uma piadinha, tipo “você é negra

porque Deus fez todo mundo branco, mas a maioria tomou banho” e a gente não

tomou [...]. Quando você escuta as dores gritantes [em grifo, porque grita!] da sua

família, é diferente, quando você começa a ouvir umas histórias mais coloridas,

mais bonitas, ela se torna diferente.90

Desse modo, Sueli Marlete Leodoro escolhe outra narrativa para a história de seu

grupo, não a narrativa imposta pela ideologia do branqueamento, mas uma narrativa que

preenche páginas brancas com alguns escurecimentos necessários91, sensível, empoderada,

libertadora, que está, inclusive, em sua vestimenta.

Porque quando falava “negro” era sempre negativo, era sempre uma coisa para

machucar, quando meu pai me contava a história do negro, a história do escravo, a

gente não aceitava também, porque sempre tinha sofrimento, sempre tinha dor.

Quando a Ana subiu, começou a mostrar uma coisa diferenciada, todo mundo parou

pra ouvir. E quando se fala em cota, quando se fala em um monte de coisa, todo

mundo fala “ai, é mais um racismo”. Eu não acho! Eu acho que é uma conquista, e

é a mesma coisa que a conquista que nós estamos conquistando aqui hoje. Eu acho

que a gente tem que lutar por todo esse espaço que a gente tem. Porque hoje vendo

tudo isso, vendo estas imagens numa galeria, vendo um trabalho do Leonel, vendo a

nossa participação em tudo que a gente já participou, eu acho que realmente nós

somos um quilombo. São coisas que tá valorizando, tá valorizando pra nós como

seres humanos, como negros e negras, eu queria frisar bem isso, porque a gente tem

que ter orgulho da nossa pele [é ovacionada pelo público], não deixar ninguém

pisotear em cima de nós, nós temos que lutar por qualquer fomento, porque tudo o

que a gente faz é sempre através de luta. Então quando alguém chega pra qualquer

uma pessoa, de preferência negro, e diz simplesmente, “você é morena”... Você não

é morena, você é negra! Você tem que assumir a sua cor, tem que assumir a sua

raça, porque, se não, não adianta nada. Você tem esse tom de pele que todo mundo

fica falando: “Seu tom de pele é lindo, maravilhoso, queria ter igual”. Pra que você

quer ter igual? Se a gente fica se escondendo atrás dos supostos nomes de morena,

de mulata. Nós não somos mulatas, nós somos negras e negros. É isso o que a gente

tem que botar para as nossas crianças, para os nossos adolescentes, que tem que

assumir isso como identidade.92

“Mudou pra melhor”93. Uma palavra que Sueli Marlete Leodoro sempre pronuncia

pelo grupo a quem representa é “luta”, mais que a luta pela terra, a luta trouxe mais conquistas

- através do pleito quilombola, vislumbrou-se um modo mais eficiente de trazer benesses para

o cotidiano “a gente conheceu mais coisas, a gente teve mais oportunidades” - e parcerias:

90 Sueli Marlete Leodoro em depoimento em Remanescentes Quilombolas, Morro do Boi Balneário

Camboriú, vídeo apresentado na França no dia 10 de Janeiro de 2015 na Cidade de Nantes, por Enya

Gemard. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ADbUoAgeW0c>. Acesso em: Ago./2015.

91 Verso de Cristiane Sobral, poema “Preto no Branco”. Disponível em:

<http://cristianesobral.blogspot.com.br/2013/01/preto-no-branco.html>. Acesso em: Ago./2015.

92 Sueli Marlete Leodoro em depoimento na ocasião do lançamento da exposição A Rua dos Negros, do

fotógrafo Leonel Tedesco. Registrado em Projeto Rua dos Negros - Lei de Incentivo à Cultura de Balneário

Camboriú. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTaajTkF24I>. Acesso em: Ago./2015.

93 LEODORO, 2015.

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[…] a Professor Paulino, ele tá sempre com a gente.

[…] a gente tem a Ana Elisa sempre por trás. A gente tem a advogada, doutora

Flávia. Tem o presidente da Fundação Cultural também que tudo o que eu preciso

eu peço pra ele também, o Anderson Beluzzo. Então só porta que abriu, são portas

que abriram que a gente pode tá se misturando ali.

[...]

O grupo Afro de Itajaí, a gente aprendeu a conhecer todo esse grupo, o professor

Bento. Todas essas pessoas que a gente nunca tinha visto na vida, que, na realidade,

tem todo mundo a mesma causa, a mesma luta.

Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Brasília, 2013. Imagem: Sinclair Biazotti.

Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Brasília, 2013. Imagem: Sinclair Biazotti.

Entre 2007 e 2008, fruto do projeto de extensão intitulado Cidadania e Autonomia

para a Comunidade do Morro do Boi da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), foram

realizadas as atividades de confecção de Abayomis, com o objetivo de complementação de

renda. Trabalho iniciado com a oficina da Professora Renata Garcia Fernandes do Núcleo de

Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB-UDESC),

mediado por Ana Elisa Schlickmann. Nas palavras de Sueli Leodoro:

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A Abayomi me conquistou. Primeiro, quando a gente começou a fazer, era um

simples retalho amarrado, mas não é só uma boneca amarrada, mas sim a história

contada, que essas bonecas vieram das negras do navio negreiro, que rasgavam a

sua roupa e faziam de presente para os seus filhos, ficarem calmos e tranquilos para

não seres jogados no mar.94

Abayomi. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

Abayomi é atlântica, feita nos porões dos navios negreiros, com retalhos de

roupas, sem costura, boneca feita de nós, “de muitos nós”95. Não é à toa que o símbolo

escolhido para representar a Associação Quilombola do Morro do Boi seja uma abayomi,

além de toda simbologia que representa, uma figura feminina.

94 Sueli Marlete Leodoro em depoimento em Remanescentes Quilombolas, Morro do Boi Balneário

Camboriú, vídeo apresentado na França no dia 10 de Janeiro de 2015 na Cidade de Nantes, por Enya

Gemard. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ADbUoAgeW0c>. Acesso em: Ago./2015. 95 Trecho do poema Chamego de Abayomi, de Thiane Neves Barros: “Boneca de pano/ feitas de nós/ e de

muitos NÓS/ pluralidade, identidade, acalento/ (re)encontros, presente// Que a cada saudade/ a cada banzo/

uma nova Abayomi nos traga a certeza da não solidão/ porque sim, nós não andamos sós/ nossos passos

veem de longe”. BLOGUEIRAS NEGRAS. Abayomis: por amor, por afeto, dou a você meu presente

predileto. Disponível em: < http://blogueirasnegras.org/2015/05/11/abayomis-por-amor-por-afeto-dou-a-

voce-meu-presente-predileto/>. Acesso em: Jan./2016.

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Banner da Associação Quilombola do Morro do Boi. Imagem: Camila Evaristo, 2012.

Em novembro de 2013, no mês da consciência negra, a Fundação Cultural de

Balneário Camboriú concedeu a loja 12 da Vila do Artesanato para a Associação Quilombola

do Morro do Boi comercializar as bonecas abayomi, entre outros produtos.96

Em nome da Associação Quilombola do Morro do Boi, Sueli Marlete Leodoro recebe a chave da Loja de

Artesanato das mãos de Anderson Beluzzo, secretário de cultura do município de Balneário Camboriú,

2013. Imagem: Reiner Wolff.

96 SCHLICKMANN, 2015.

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Identidade Visual da Loja de Artesanatos elaborada em projeto desenvolvido pelo Serviço Brasileiro de

Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Estado de Santa Catarina (SEBRAE-SC). 2013.

Abayomi exposta na Loja de Artesanatos. Imagem: Camila Evaristo, 2015.

“Não adianta eu ir lá brigar pelo meu quilombo, tem que brigar por todos os

quilombos, inclusive, o quilombo ali de Porto Belo97, que tá à mercê, não tem ninguém.”98 O

que se revela é que a luta transcende os limites geográficos do Morro do Boi, integrando a

pauta de objetivos dos movimentos sociais que buscam destruir os significados em que está

forjada a supremacia racial branca. Como já descrito, a luta é pela quebra das engrenagens

que fazem rodar o motor excludente do sistema.

97 Comunidade Quilombola Sertão do Valongo, Porto Belo-SC.

98 LEODORO, 2015

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CAPÍTULO SEGUNDO

GUIDA, A MATRIARCA:

Guardiã das Micro-Áfricas

Ela é uma heroína.

Sueli Marlete Leodoro a respeito de sua mãe, Dona Guida.

Margarida Jorge Leodoro. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

A senhora Margarida Jorge Leodoro, também conhecida por Dona Guida, a quem

este capítulo é dedicado, é a matriarca da Comunidade Quilombola do Morro do Boi. A

senhora passou a morar no Morro do Boi após o seu casamento com o já falecido Almiro

Leodoro, aos 25 anos de idade. Natural de Camboriú/SC, município limítrofe de Balneário

Camboriú/SC, onde a comunidade do Morro do Boi está localizada. Em 2015, Dona Guida

completou 84 anos, mãe de dez filhas/os, avó, bisavó, carrega em seu corpo as memórias de

suas/seus ancestrais, as histórias do Morro do Boi, as marcas de uma vida de trabalho entre os

mundos rural e urbano99. De modo que este trabalho - na contramão do padrão eurocêntrico

hegemônico, que tende a marcar o tempo em algarismos – possui como recorte temporal um

99 Leitura da Professora Maria Antonieta Antonacci, expressa em seu livro “Memórias Ancoradas em Corpos

Negros”: “Seus processos de renovação e incorporações culturais, vibrantes, dramáticos, celebratórios,

vivenciados entre pares do presente e do passado, em explosões de cores, gestos, ritmos, deixaram rastros.

Silenciados, folclorizados, estetizados ou demonizados por concepções de vida e história predominantes no

Ocidente, seus sinais iluminam memórias ancoradas em corpos negros.” ANTONACCI, Maria Antonieta.

Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ, 2015, p. 18.

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tempo não contabilizado em epistemologias ocidentais: o tempo da matriarca, o tempo de

Dona Guida100.

Visita a Região de Macacos, Camboriú/SC. 2012.

Desenrolando o novelo ao contrário, ou seja, recuando no tempo, este capítulo

pretende narrar os atos encenados por Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, em sua

trajetória. Sendo a sua vida limite temporal desta pesquisa, mas não apenas o limite marcado

pela data de seu nascimento, mas os limites que recorda e transmite através de sua oralidade,

as memórias de suas/seus ascendentes, seja por suas lembranças, seja por seu modo de vida e

visão de mundo. O capítulo busca refletir sobre como estão guardadas e vividas os valores e

signos culturais que configuram as “micro-áfricas” – termo cunhado pelo Professor Amailton

Magno Azevedo 101 para designar a experiência social em Diáspora – refletidas nos

patrimônios de tradição viva102, por meio de uma resistência secular, reverberada também, tal

resistência, no trabalho designado à mulher negra. Refletindo sobre o papel de liderança

feminina desempenhado pela matriarca Margarida Jorge Leodoro e sobre como estão

guardadas e vividas os valores e signos culturais que configuram as micro-áfricas na

100 Nesse sentido, vale o entendimento de Antonacci: “Nesta e na outra margem atlântica, em híbridas e

renovadas encenações, africanos recortaram, enfrentara, interromperam estruturas e poderes excludentes

com ironia, astúcia e anuência de seus ancestrais. Revelando incoerências de discursos cronológicos,

deixaram latências de histórias e geografias esquecidas, como suportes de memorização em tempos trans-

históricos.” ANTONACCI, 2015, p. 17.

101 AZEVEDO, 2006. 102 HAMPATÉ BA, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (org.). História Geral da África:

Metodologia e pré-história da África. V.1. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1980.

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Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Sendo necessária a pergunta: Como se reinventam

e se interagem tais saberes diversos às epistemologias ocidentais? Através dos depoimentos da

matriarca e de demais moradoras e moradores da Comunidade do Morro do Boi e produções

teóricas que nos ajudam a compreender como se travam as relações sociais em nossa

sociedade em relação à população de origem africana.

Destacar africanidades nos modos de viver em comunidade, nas relações

marcadas pelos laços de família e pela oralidade não exprime a permanência de uma cultura

pura e intacta.103 É chover no molhado dissertar que as relações sociais mudam conforme o

lugar, as fases da lua e o tempo, seja ele linear ou em espiral. Nesse sentido, compactuamos

com Stuart Hall:

Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os

negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na

cultura popular, nós continuamos a ver nossas figuras e repertórios, aos quais a

cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua

expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada

atenção à fala, em suas inflexões vernáculas e locais, em sua rica produção de

contranarrativas, e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a

cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e

contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é

diferente – outras formas de vida, outras tradições de representação.104

Por outro lado, negar a diversidade e sucumbir ao padrão hegemônico significa

afirmar que a ideologia eurocêntrica devastou e atingiu todos os campos do pensamento. Falar

em micro-áfricas neste lado do Atlântico e neste século XXI, mais que uma constatação

científica evidenciada no dia a dia à brasileira, é uma escolha política no sentido de visibilizar

o conjunto de valores de matriz africana, escamoteados dos bancos escolares, das grandes

mídias e das universidades, onde predominantemente o que remete ao continente africano dá

lugar a imagens exóticas e relativas à pobreza. O que propomos é que a Comunidade

Quilombola do Morro do Boi traz em seus modos de vida, uma resistência secular de

cosmologias de culturas africanas, patrimônios de tradição viva, ainda que esteja perpassada

pelas mudanças externas: a expansão econômica do município que a abriga, as relações de

trabalho assalariado no centro urbano, antenas parabólicas, açúcar refinado e, de uma maneira

mais direta, as consequências da construção e duplicação da BR-101.

103 AZEVEDO, 2006.

104 HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 24

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Casa de Dona Guida. Imagem: Camila Evaristo, 2012.

Para quando a África?105

Doentes houve que sararam com as garrafadas de Nêngua Kainda, levantaram-se

da cama e tempos de vida tiveram para pecar outras vezes.

Conceição Evaristo

Ponciá Vicêncio

“Eu não sei muita coisa”106 disse o senhor Acácio Siqueira em depoimento. As

lentes do eurocentrismo, do colonialismo, da modernidade, da racionalidade, do imperialismo

sob as quais nossas maneiras de ver e interpretar o mundo nas Américas foram forjadas,

impediu-nos e ainda nos impedem de ter acesso a outros campos de visão, a outras cores. A

leitura monocromática, característica da racionalidade, que lança sentidos sobre as culturas

africanas nas Américas – que se fizeram resistir desde quando aqui aportaram – observa

apenas o que a estas culturas lhe carecem, ou seja, uma apropriação sem sucesso dos modos

de vida advindos da Europa, sendo necessário interrogar “para interromper análises que

amarraram o mundo africano ao pé do Ocidente, que se autoconcebeu umbigo do mundo”107.

Esta história tem longa data, conforme Meneses pontua, teve início do outro lado do

105 Referência ao título da obra do historiador de Burkina Faso Joseph Ki-Zerbo. KI-ZERBO Joseph. Para

quando a África? Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: PALLAS, 2006.

106 SIQUEIRA, Acácio. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana

Schlickmann. Balneário Camboriú, 2012. Entrevista.

107 ANTONACCI, 2015, p. 30.

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Atlântico, quando as potências europeias despedaçaram o mundo 108 de populações do

continente africano, legitimadas pelo conhecimento científico, que permitiu a transformação

dos saberes do “outro” em saberes inferiores109.

A hegemonia crescente do conhecimento científico moderno na Europa foi

sinônimo, em grande parte do espaço colonial, da missão de organizar e disciplinar

as populações autóctones. A ciência moderna, com o sentido ou ordem e poder,

tornou-se um meio de regular as relações entre os “civilizados” e os

“insubordinados” (Meneses, 2007).110

A autora complementa que “o conhecimento e a compreensão do mundo

tornaram-se a explicação do mundo através do prisma monocultural da ciência moderna”111.

Tal prisma monocultural 112 permitiu a marginalização de tudo o que não lhe pertencia.

Serrano e Waldman também trazem elementos a essa discussão: “Tal como o viés criado pelo

discurso da necessidade de escravizar os africanos e pelos obstáculos de efetivá-lo com os

índios (considerados rebeldes, agressivos e/ou refratários aos trabalhos agrícolas), constrói-se

uma nova visão sobre o africano escravizado”113. Cabe à academia – também um espaço onde

a monocultura é dominante – debater, compreender e desconstruir tal visão, que possibilitam

as teias da monocultura institucionalizada. E, em especial, à História compreender como tais

relações foram forjadas. Meneses pontua ainda que “[...] os encontros culturais têm dimensões

não apenas políticas, mas também epistemológicas. Ambas essas dimensões convergem,

enquanto lutam para conseguir aquilo a que Ngũgĩ wa Thiong'o (1986) chama ‘a

descolonização da mente’.”114

Segundo a definição atual de quilombo, expressa no artigo segundo do Artigo 68

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constitucionais Transitórias da

Constituição Federal de 1988:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste

Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com

108 ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

109 MENESES, Maria Paula. Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de

conhecimentos no Moçambique contemporâneo. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria

Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010.

110 Ibidem, p. 225

111 Ibidem.

112 O termo monocultura é aqui utilizado de acordo com Meneses: “Descrever a ciência como sendo o epítome

de uma monocultura do pensamento não significa que a ciência não seja internamente diversa. Pelo contrário,

esta qualidade ‘monocultural’ é aqui descrita nas suas relações com uma vasta gama de modos de

conhecimento e experiência que a ciência moderna considera e classifica como subalterna do uso dos

adjetivos 'locais', 'leigos', 'indígenas' e 'tradicionais’. ” (MENESES, 2010, p. 226).

113 SERANO, C. & WALDMAN, M. Memória d’África: a temática africana em sala de aula. São Paulo:

Cortez, 2007, p. 144.

114 MENESES, 2010, p. 244-245.

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trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com

presunção de ancestralidade negra relacionada com à resistência à opressão histórica

sofrida.

Ou seja, podemos interpretar o quilombo como um espaço de resistência fora do

mundo branco, bem como os espaços de terreiros o são115. Obviamente que não se tratam de

locais isolados, conservadores de uma cultura pura, mas locais onde as africanidades se

mostram de modo mais saliente, onde as micro-áfricas resistem, onde as comunidades

resistem. O Professor Amailton Azevedo, que teorizou a respeito do conceito de micro-áfricas,

assim conceitua: “Desse modo, essas micro-áfricas podem ser compreendidas como vivências

dissonantes que desobedeceram certos limites estabelecidos do que deveria ser a cidade, para

construir e operar outras cidades e outras memórias”.116 Nesse sentido, mais que restringir às

questões normativas e fundiárias que envolvem as populações quilombolas – questões

ocidentalizadas -, importa perceber como se perpetuaram, se refizeram e se expressam

mananciais de cosmologias africanas na Comunidade Quilombola do Morro do Boi.

O continente africano possui uma vasta extensão territorial117 e igualmente vasta é

sua diversidade, salientam Serrano e Waldman: “nada mais incorreto do que sinonimizar o

amplo rol de culturas e de civilizações que o compõe, borrando as diferenças existentes entre

as sociedades pertencentes a esse conjunto”118. Ao mesmo tempo em que:

Assinale-se que num continente [...] crivado pela pluralidade e por uma vigorosa

heterogeneidade de manifestações culturais, o conceito de sociedade tradicional

constitui poderoso instrumento de compreensão, permitindo identificar os tentames

que compõem o núcleo mais peculiar da africanidade, assegurando uma visão

unificadora do continente.119

O que chamamos aqui de sociedade tradicional, um conjunto de epistemologias e

formações sociais africanas, deslegitimadas desde a modernidade, estão resistidas não apenas

no continente africano, mas também entre seus descendentes na diáspora. Estão resistidas na

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, expostas em sua constituição enquanto

comunidade, em seus conhecimentos de cura, em sua oralidade, no respeito aos mais velhos,

em seus modos de vida120. Frisamos mais uma vez que não se trata de uma cultura pura, mas

115 Referência às aulas ministradas pela Professora Maria Antonieta Antonacci nas disciplinas: Seminário

Temático “Áfricas no Novo Mundo” e Atividade Programada “Conhecimento desde dentro”, Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Programa de Pós-Graduação em História, 2014.

116 AZEVEDO, 2006, p. 34.

117 A área territorial do continente africano é de 30.220.000 km².

118 SERANO; WALDMAN, 2007, p. 127.

119 Ibidem, p. 126. 120 Ver EVARISTO da SILVA, Camila. Se foi trazido pelos pretos ou pelos brancos também não sei: celebrações

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modos de vida reformulados neste lado do Atlântico ao longo dos anos.

A senhora Margarida Jorge Leodoro e seu filho, o senhor Altair Almiro Leodoro,

através da narração sobre a coivara, contam-nos um pouco sobre este viver e estar em

comunidade, bem como lançam sentidos para o significado de “família”:

Coivara era uma roça bem grande, falavam vamos fazer uma coivara, ai iam lá

derrubavam mato, hoje não pode, mas naquele tempo podia, ai deixavam secar e

iam cuidar de outra roça, mais pequena, ai quando tava seco, eles iam lá e

plantavam de tudo, milho, feijão, mandioca, de tudo. Aquilo se chamava coivara,

todo dia a gente ia lá.121

Conforme maior a família, maior a coivara, se a família era de dez por exemplo, na

hora de capinar, ia todos. Não deixavam uma pessoa ir sozinha derrubar mato,

sempre ia em três ou quatro. Íamos plantar pra colher uns dez sacos de feijão, uns

quatro pra vender, o resto se comia em casa.122

Quando a urbanização ainda não havia visitado a Comunidade Quilombola do

Morro do Boi na figura do asfalto da BR-101, mulher, homem, filhos e filhas iam para a roça

fazer o que Dona Guida e seu filho Altair chamam de “coivara”, de maneira a melhor

aproveitar a terra e dali tirar o seu sustento. Serrano e Waldman, referindo-se às populações

africanas, argumentam que “[...] a sua identidade está, em primeiro lugar, centrada no núcleo

familiar. A família constitui o cerne da vida social no continente, conotando-o com suas cores

mais características.”123 Modos de suportar séculos de agressões.

Como sublinhado ao longo do texto, não é nossa intenção verificar na

Comunidade Quilombola do Morro do Boi aspectos de uma África mítica, mas aferir como

cosmologias características de epistemologias do continente africano se fizeram resistir na

Comunidade, tais como a musicalidade, reminiscências de culturas orais. Dona Guida nos

conta sobre seu avô materno, Leandro Cristino da Graça, cego das duas vistas, que era

músico: “Ele tocava gaita, saia. Os filhos trabalhavam e ele saia de um lado para outro.

Porque ele não enxergava para apanhar café, nem pra capinar, porque ele era cego”124.

Segundo Serrano e Waldman:

[…] em muitas sociedades tradicionais, a comunicação fruía por intermédio da

na Comunidade do Morro do Boi. In:____. Natal sem batucada não é natal: festas, morte e cura na

Comunidade Quilombola do Morro do Boi, Balneário Camboriú - SC. Monografia (Graduação em História)

- Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, 2013.

121 LEODORO, Margarida Jorge, Balneário Camboriú, 2008.

122 LEODORO, Altair Almiro. Entrevista concedida a Ana Elisa de Souza Ribeiro Schlickmann e José

Bento Rosa da Silva. Balneário Camboriú, 2008.

123 SERANO; WALDMAN, 2007, p. 129.

124 LEODORO, Margarida Jorge. Entrevista concedida a Mariana Schlickmann e Paulino Cardoso.

Balneário Camboriú, 2011.

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oralidade. Ademais, é necessário enfatizar que, em muitas das sociedades que

conheciam a escrita, formas não-orais de comunicação eram entendidas como

parciais e incompletas.125

Dona Guida, matriarca da Comunidade, a quem chamamos aqui de guardiã das

micro-áfricas, transmite histórias, as que vivenciou por própria experiência bem como as

histórias dos mais antigos: “De quem eu ouvi? Do pessoal que morava aqui, o pessoal antigo

que morava, a avó do meu marido, tudo aqui, nesse centro”126. A avó do seu falecido marido,

Almiro Leodoro, foi uma mulher chamada Catharina Clara de Jesus, filha de Delfino e

Joaquina, um dos primeiros casais a se estabelecerem no Morro do Boi. Infelizmente, não há

registros de seus sobrenomes, o que é recorrente para a população negra no Brasil. Segundo a

pesquisa realizada para o Relatório Antropológico se Caracterização Histórica, Econômica e

Sócio-Cultural:

Muito embora os ex-escravos Joaquina e Delfino fossem os progenitores de pelo

menos quatorze filhos (dentre os quais oito nascidos escravos) os atuais moradores

do Morro do Boi são os descendentes de apenas um deles: Catharina Clara de Jesus,

ou Catharina Joaquina dos Santos. Catharina (conhecida pelos atuais moradores

como a “mãe velha”) fora casada com Laurentino Pereira da Silva, de cujo

matrimônio resultou no nascimento de sete filhos, todos nascidos no Morro do Boi,

dentre os quais Maria Margarida de Jesus no ano de 1900.127

Importante destacar que percebemos uma hereditariedade feminina: Joaquina e

Delfino que legaram as terras à Catharina Clara de Jesus, que legou à Maria Margarida de

Jesus. Maria Margarida de Jesus se casou com Eleodoro Pedro José e tiveram seis filhos:

Alício Pedro da Silva, Maria Margarida, Armelindo José, Deari dos Santos, Catarina Maria

José e Almiro Leodoro128. Este último fora casado com Dona Guida, sendo a senhora e seus

filhos que pleiteiam a área legada a Almiro Leodoro, parte da área onde está inserida a

Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Atualmente, a guardiã das micro-áfricas, a

matriarca Dona Guida, é a liderança da Comunidade Quilombola do Morro do Boi.

Não sabemos em que circunstâncias ocorreu a hereditariedade feminina

mencionada acima, tampouco se as circunstâncias que levaram Dona Guida à liderança da

Comunidade dizem respeito a uma matrilinearidade feminina presente em muitas sociedades

africanas e percebidas igualmente no Brasil, mas podemos afirmar que as mulheres foram e

ainda são presenças marcantes no Morro do Boi. Protagonistas. Podemos afirmar ainda que

125 SERRANO; WALDMAN, 2007, p. 145.

126 LEODORO, Margarida Jorge, Balneário Camboriú, 2008.

127 BUTI; RAMOS, 2011, p. 17.

128 Ibidem, p. 18.

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Dona Guida é entendida como liderança da Comunidade Quilombola do Morro do Boi por ser

a pessoa mais velha:

Esse sistema estabelece uma hierarquia de estruturas baseadas em critérios de

ancianidade, uma qualidade social referendada por esta mesma visão ontológica.

[…]

Nessa concepção, um dos aspectos mais relevantes reside na importância do chefe

da comunidade. Ele é o intermediário obrigatório entre o mundo visível e o

invisível, intercedendo junto aos ancestrais.129

Podemos perceber esta função intermediária a que Serrano e Waldman se

reportam na anedota que Dona Guida nos conta:

A mãe e o pai, eles passaram sete anos sem vir aqui, sem vir na minha casa. Aí a

minha sogra diz assim: “Ah, teu pai não vem aí, nem a tua mãe”, aí: “Não, é

porque eles não podem, quando ele dá na cabeça dele vir, ele vem”. Quando chegou

uma sexta-feira, o Armindo tinha saído. Eu disse: “Vai demorar muito?, ele disse:

“Não”, eu: “É, porque papai vai vir aqui hoje”, ele disse “Oh, faz uma cama e vai

te deitar que teu pai não vem é nada”. Começou a rir do nada. Eu: “É, daqui a

pouco eles tão chegando aí”. Eu acabei de falar, ele saiu, meu pai chegou e a minha

mãe. Quando ele me veio, eu disse: “Olha, não disse pra ti?”. Ele começou assim:

“No que tu trabalha?”. Digo: “Eu, nada”.130

Revela seu saber, um saber que, no entanto, a ciência moderna despreza, expondo

um conhecimento do que Serrano e Waldman chamaram na citação anterior como “mundo

invisível”. Os autores ainda colocam que “Muitas das supostas ‘crendices’ das sociedades

tradicionais africanas possuem – visto serem resultantes de um conhecimento empírico que

não pode ser desprezado enquanto forma de saber sistematizado – eficácia real” 131 . A

matriarca também é conhecedora do poder curativo das plantas - elementos do meio natural –

e das artes de benzer, conhecimento passado por seu avô:

Ele [seu avô, Leandro] também era benzedor, ele benzia. Ele benzia, dava remédio.

Não tinha doença que ele não curasse. Ele era treinado, já era espiritismo, essas

coisas. [...]

Ah, ele dava, ele fazia a garrafada de remédio e dava pra pessoa tomar. A pessoa

tomasse, se melhorasse, voltasse lá e pegava outra garrafada, e, se fizesse mal,

então não tomava mais. Compreende? Mas que, todo o remédio que ele dava, eles

melhoravam.132

Neste mundo da racionalidade moderna, tais saberes, que possuem real eficácia,

são estigmatizados e entendidos apenas naquilo que não possuem, em suas ausências,

129SERANO, WALDMAN, 2007, p. 137.

130 LEODORO, 2011.

131 SERANO, WALDMAN, 2007, p. 138

132 LEODORO, 2011.

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ausência daquilo que possui a sofisticada medicina moderna, que elege os comprimidos

vendidos nas drogarias ao invés da garrafada. Na contramão desse sofisticado e impessoal

modelo de cura, as bênçãos e as curas por meio dos elementos da natureza ainda persistem no

Morro do Boi, principalmente através da matriarca Dona Guida.

Também estigmatizados ao longo da história no Brasil foram os elementos de

religiosidade de matriz africana. Embora o catolicismo tenha sido a religião oficial no Brasil

até as vésperas da República, quando, oficialmente, o país passou a admitir a liberdade de

culto133, mesmo no século XX e ainda no século XXI o homem branco cristão é o privilegiado

da sociedade. Em Balneário Camboriú, o monumento Cristo Luz também lança sentidos para

questionarmos se a Igreja Católica Apostólica Romana ainda não abandonou o seu status de

religião oficial, que, inclusive, está presente no hino do município: “Com o Cristo Luz em

amplo abraço/ Abençoando os passageiros”.

Cristo Luz, Balneário Camboriú. Imagem: <cristoluz.com.br>.

Na Itajahy do século XIX, “As práticas religiosas de matriz africana foram as

‘vítimas preferenciais’ da Fiscalização das Câmaras Municipais”134:

[…] um corpo de funcionários públicos municipais, tais como Chefe de Polícia,

Inspetores de Quarteirão, Delegados, Subdelegados, dentre outros. Estes, tinham o

dever de zelar pelo bom andamento da ordem pública. O secretário da Câmara,

Francisco Vitorino da Silva, por exemplo, não titubeou em chamar a atenção do

preto Francisco, escravo do senhor Natividade, por ter ouvido dizer que este era

133 SILVA, José Bento da. A Itajahy do século XIX: história, poder e cotidiano. Itajaí: UDESC; Casa Aberta,

2008, p. 38.

134 Ibidem, p. 49.

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feiticeiro.135

As práticas religiosas de matriz africana ainda são as vítimas preferenciais do

aparato jurídico do Estado. Em 2015 pulularam Projetos de Lei que proibiam sacrifícios de

animais em rituais praticados por alguns seguimentos de religiões de matriz africana no

Brasil136. Interessante observar que mesmo aqueles que comem carne, obtida com requintes

de crueldade quanto ao abate dos animais, tornam-se defensores dos animais, mas apenas se

os animais em questão são os sacrificados nos rituais de matriz africana.

Não cai bem se dizer umbandista, mas cristão. “Na América Latina, a identidade

nacional muitas vezes foi oficialmente articulada como híbrida e sincrética através de

ideologias integracionistas hipócritas que sutilmente ignoraram certas hegemonias raciais”137.

O sincrético escamoteia a violência, nesse sentido, corroboramos com Kabengele Munanga:

“Ele [o sincretismo] tentou assimilar as diversas identidades existentes na identidade nacional

em construção, hegemonicamente pensada numa visão eurocêntrica”138.

Na Comunidade Quilombola do Morro do Boi, suas moradoras e moradores se

declaram enquanto cristãos, a casa de Dona Guida está permeada de imagens católicas. No

entanto, o cerceamento aos elementos de matriz africana não foram de todo eliminados.

Percebemos as micro-áfricas, por exemplo, na narração de Dona Guida sobre o natal: “Vamos

dizer que o natal, não tendo batucada e não tendo um Terno de Reis, não é natal. (…) Eles

pegavam um violão, cavaquinho, pegava o tambor, caixa e assim vão tocar. Era batucada.”139

A memória seletiva

Dona Guida habitava uma região chamada Vila Conceição, também conhecida

como Macacos, denominada assim devido à presença de pessoas de origem africana na região.

135 Ibidem, p. 48.

136 SUL21. Povos de terreiro conquistam maioria para derrubar pl que proíbe sacrifício de animais.

Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/povos-de-terreiro-conquistam-maioria-para-derrubar-pl-

que-proibe-sacrificios-de-animais/>. Acesso em: Dez./2015.; ANDA. Projeto que proíbe exploração de

animais em rituais religiosos é aprovado. Disponível em: <http://www.anda.jor.br/15/09/2015/projeto-que-

proibe-exploracao-de-animais-em-rituais-religiosos-e-aprovado>. Acesso em: Dez./2015.

137 SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Do eurocentrismo ao policentrismo. In: ___. Crítica da imagem

eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 81.

138 MUNANGA, Kabengele. Mestiçagem como símbolo da identidade brasileira. In: ___. Rediscutindo a

mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 100

139 LEODORO, 2011.

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Natureza humana posta em dúvida. Imagem: Camila Evaristo, 2015.

“Macacos” é como foi e ainda é chamada a região onde Dona Guida nasceu, em

1931, Camboriú-SC, e viveu sua juventude até quando se mudou para o Morro do Boi, na

ocasião de seu casamento com Almiro Leodoro, em 1956, aos 25 anos de idade. Hoje em dia a

localidade se chama Vila Conceição, mas a denominação “Macacos” se perpetua. Titula,

inclusive, a unidade de saúde da região (imagem). Nas tensas relações raciais brasileiras é

comum atribuir às pessoas de origem africana termos que atinjam o seu sentido de

humanidade ou que distingam a sua humanidade da humanidade das pessoas brancas, ainda é

uma maneira de colocar em dúvida a humanidade das pessoas de origem africana que

habitaram e habitam a região. O Senhor Fabriciano Cristino da Graça, irmão de Dona Guida,

conta-nos sobre o tempo da escravidão: “Idalício, Bilica, Martinho morava no tempo dos

escravos, ali era morada no tempo dos escravos. Desmancharam as casas. […] Quando ele

nasceu, foi no tempo dos escravos, meu avô Leandro”140.

140 GRAÇA, Fabriciano Cristino. Entrevista concedida a Ana Elisa de Souza Ribeiro Schlickmann. Itajaí,

2008.

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Vista da Igreja Imaculada Conceição. Vila conceição. Imagem: Camila Evaristo, 2012.

Vila Conceição ainda reserva seu ar bucólico. Imagem: Camila Evaristo, 2012.

Especulação imobiliária, Private Village chega à Vila Conceição. Imagem: Camila Evaristo, 2015.

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Certidão de casamento de Margarida Jorge Leodoro e Almiro Leodoro.

Quando falamos em micro-áfricas nos referimos aos modos de vida da população

de origem africana perpetuados e refeitos na diáspora, revelados nos corpos desta população e

nos modos de se relacionarem no cotidiano, fontes que são consideradas frágeis para uma

escola histórica com premissas eurocentradas141. Porém, nesta história, tanto para a população

negra da Vila Conceição, como para a população negra do Morro do Boi, perdeu-se até

mesmo o direito de saber de que África estamos falando, ou seja, quem são os antepassados

da população de origem africana no Brasil? O adjetivo pátrio “africana” aglutina e

homogeneíza grupos populacionais de um continente inteiro.

141 Antonacci aponta para a necessidade de diversificar as fontes: “Se diversificar arco de documentos históricos

faz repensar museus, acervos, abordagens, conceitos atribuídos a povos de línguas orais, interagir com seus

códigos de produção/transmissão de saberes certamente revigora fontes e recursos de vida em Terra

esgotada”. ANTONACCI, 2015, p. 22.

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Não sendo uma característica particular à região onde a Comunidade está

localizada, tampouco ao Estado de Santa Catarina, são enaltecidas as origens europeias, em

oposição às demais origens que não sejam advindas do Velho Continente. É comum saber-se o

ano em que o ascendente europeu aportou no Brasil, o brasão da família, como a grafia do

sobrenome de muitas consoantes e poucas vogais mudou ao longo dos anos (este último

exemplo particularmente no caso dos descendentes de alemães), dizer-se “italiano” ou

“alemão”, além de torcer para as seleções destes países em tempos de Copa do Mundo. Por

outro lado, por vezes, estes mesmos descendentes de imigrantes europeus, não sabem

justificar ou dizer de onde veio o cabelo mais enrolado e escuro, o nariz mais largo, ou mesmo

o porquê que a pele bronzeia com facilidade ao sol, não ficando rubra. As origens africanas e

indígenas – estas últimas chamadas pejorativamente de “bugras” - são escamoteadas,

esquecidas, enterradas, não surgem à tona, as dificultam de entrar para a história, seja no meio

privado, da família ou da comunidade, ou no meio institucional. Afinal, as instituições

públicas têm cor.

A abolição da escravidão no Brasil data de 1888. Antes disso, leis que atenuavam

o sistema escravista foram sancionadas, como a Lei Eusébio de Queiróz (1850), que proibiu o

tráfico de escravos142, a Lei do Ventre Livre (1871), que permitiu a condição de livre para os

filhos e filhos das mulheres escravas nascidos a partir da data da Lei 143 , e a Lei dos

Sexagenários (1885), que outorgou a condição de livre para aqueles e aquelas na condição de

escravo que tinham mais de 65 anos de idade144. A chamada Lei Áurea, que declarou extinta a

escravidão no Brasil, tem apenas dois artigos145 e foi assinada apenas depois que todos os

países das Américas terem o feito. “Este processo visou antes atender os interesses da elite

branca da época, do que os ex-escravos. Em outras palavras, um serviço de brancos para

brancos”146.

A promulgação da Lei Áurea não veio acompanhada de políticas públicas que

142 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CASA CIVIL, SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei Nº

581, de 04 de setembro de 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM581.htm>. Acesso em: Nov./2015.

143 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CASA CIVIL, SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei Nº

2.040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso em: Nov./2015.

144 SENADO FEDERAL, SECRETARIA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA. Lei Nº 3.270, de 28 de

setembro de 1885. Disponível em:

<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550>. Acesso em: Nov./2015.

145 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CASA CIVIL, SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei Nº

3.353, de 13 de maio de 1888. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM3353.htm>. Acesso em: Nov./2015.

146 SILVA, José Bento Rosa da. Negras Memórias. Itajaí: Gráfica Reis - Prefeitura Municipal de Itajaí, 1996. p.

19

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pudessem reparar os anos que a população de origem africana foi submetida à escravidão. O

que observamos ainda, é que mesmo antes de 1888, os setores públicos coibiam corpos e

modos de vida advindos do outro lado do Atlântico, tanto para pessoas escravizadas, como

para libertas. E na região do litoral norte de Santa Catarina não foi diferente. José Bento Rosa

da Silva, em seu trabalho intitulado A Itajahy do século XIX, deflagra uma série normativa

que atuou sobre corpos negros. A pesquisar entre as Correspondências Expedidas do Fundo

Câmara Municipal de Itajaí, ano 1867, no Arquivo Público do mesmo município, Silva relata

o seguinte excerto jurídico:

Todo vendeiro que consentir dentro de seu armazém, taberna ou casa de quitanda,

vadios e escravos por mais tempo que o necessário para comprar e vender nas ditas

casas de negócio ou quitandas, ou suportar ajuntamentos deles, danças ou qualquer

vozerio; será pela primeira vez multado em dez mil réis; pela segunda em vinte mil

réis, pela terceira em trinta mil réis ou em tantos dias de cadeia quanto forem os mil

réis da multa pecuniária.147

Além de impedida a condição cidadã às pessoas escravizadas, também era

questionada a condição de humanidade, sua presença incomodava nos espaços públicos. Na

ausência do feitor 148 , cabia aos funcionários públicos controlarem estes corpos. Danças,

vozerios, feitiçarias, presença reprimidos. Mais de um século depois tais práticas repressoras

perpetuam, mesmo após a abertura democrática em 1985 e todas as conquistas dos

Movimentos Negros ao longo do século XX, terreiros de umbanda e candomblé são

destruídos, os sentidos de resistência são retirados do samba e da capoeira e toda a verdade

emana da racionalidade científica. A força policial continua a vigiar e punir preferencialmente

os corpos negros. Bezerra da Silva já traduziu a quem a Lei serve nos seguintes versos “Se

Leonardo dá vinte porque eu não posso dar dois?”149.

Se a simples presença de corpos negros era suficiente para aguçar os sentidos dos

homens da lei do dezenove, por outro lado, bem-vindos à Vila de Itajahy150 eram os corpos

brancos, advindos da Europa. “A presença de imigrantes na Vila de Itajaí, a partir do ano de

1850, data da grande imigração, era significativa. Os imigrantes desembarcavam no porto de

147 SILVA, José Bento da. A Itajahy do século XIX: história, poder e cotidiano. Itajaí: UDESC; Casa Aberta,

2008, p. 48. Artigo 36 do Código de Postura do Município, aprovado em 28 de junho de 1866. Arquivo

Público de Itajaí. Fundo Câmara Municipal de Itajaí. Série: Correspondências Expedidas. Caixa nº 1. Ano:

1867. Grupo Secretaria, folha 55v.

148 ALGRATI, Leila Mezan. O feitor ausente: Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis:

Vozes, 1998.

149 Bezerra da Silva, Se Leonardo da Vinte (Disco Bezerra da Silva – Ao vivo, 1999).

150 Itajaí é município limítrofe de Balneário Camboriú, em 1850 o território atual deste último município

pertencia ao primeiro.

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Itajaí visando adentrar o Vale, mas, alguns, fixavam residência na Vila” 151 . Desejo de

higienização, desejo de modernização. Desejo de o Brasil ser Europa, progresso e

desenvolvimento. O que mudou?

Um exemplo trata-se do livro Famílias de Itajaí: mais de um século de história,

das autoras Marlene Dalva da Silva Rothbarth e Lindinalva Déolla da Silva, publicado pela

Editora e Gráfica Odorizzi, Itajaí, 2001, que traz em sua dedicatória: “É dedicado às

famílias152 que tiveram confiança no potencial desta terra e aqui aportaram para abrir os

caminhos do progresso.”; “E, também, dedicado aos primeiros imigrantes, principalmente

àqueles que nos receberam para as entrevistas, contribuindo, de maneira efetiva, para a

construção do nosso trabalho.”153 Cabe acrescentar que a edição teve como patrocinadores

descendentes das famílias descritas no livro, em suma, políticos, empresários e funcionários

públicos, famílias adjetivadas como “ilustres”. O que nos leva a refletir por dimensões muito

maiores: Para quem e sobre quem a história é escrita? Quem são os donos dos meios de

produção? A quem o poder pertence e se perpetua? Quem são os letrados donos de capital

cultural? Negar o recorte racial a responder estas questões é possibilitar a continuidade da

violência a que as populações de origem africana no Brasil estão sujeitas, mais que isso, é

fazer permanecer uma única visão de mundo, a do colonizador.

Como já pontuado na introdução, mentes questionadoras do status quo,

questionadoras do poder branco, vêm refletindo, debatendo e produzindo nos espaços

acadêmicos, do mesmo modo em que vêm ocupando estes espaços. Uma destas mentes é o

Professor José Bento Rosa da Silva154, que muito pesquisou, escreveu e publicou sobre a

diáspora africana no litoral norte de Santa Catarina:

É bom lembrar que na Vila do Itajaí a presença de escravos africanos era uma

realidade. Basta consultar os registros de compra e venda de imóveis onde estavam

inscritas as propriedades, com como os processos cíveis e criminais. Ali se

encontravam escravos de nação (denominação generalizada para os escravos

africanos), Benguelas, Congos, Minas, da Costa e Monjolos.155

Em contraposição à literatura uniforme, padronizada, institucionalizada:

151 SILVA, 2008, p. 40

152 Família Carlos Frederico Seára, Família Ângelo Rodi, Família João Gaya, Famílias Samuel Heusi, Família

Alberto Pedro Werner, Família João Ferreira de Macedo, Família Alexius Reiser, Família Nicolau Malburg,

Famílias Ulisses Machado Dutra, Família José Henrique Flores, Família Marcos Konder Sênior e Família

Bruno Schmitt.

153 ROTHBARTH, Marlene Dalva da Silva; SILVA, Lindinalva Deólla da. Famílias de Itajaí: mais de um

século de história. Itajaí, 2001. Editora e Gráfica Odorizzi. p. 3

154 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco, atualmente professor da mesma

Universidade. Lattes: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4762025A4>.

155 SILVA, 2008, p. 121

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O presente livro […] é uma preciosa contribuição à história de Itajaí, através da

história das famílias, onde se movimentam personagens no nosso universo, que

reconhecem suas fronteiras, que ousam superá-las – e o fizeram – deixando rastros

jamais esquecidos e mandando-nos divisa com que enaltecem os pelotões itajaienses

na marcha para o futuro.156

Outra constatação importante para esta discussão é que as 13 famílias as quais o

livro Famílias de Itajaí se dedica estão referenciadas por seus patronos masculinos. Homens,

brancos, imigrantes, ricos, empreendedores, nada de novo no fronte: o poder patriarcal.

Lavei muita roupa, lavei bastante roupa157

Ele era um homem de bem e de bens, era um Garcia, seu clã emprestou seu nome

para o lugarejo, a Vila Garcia158, que hoje é o Centro do Município de Camboriú-SC, e ele

emprestou o nome próprio para rua no mesmo Município e para escola em Itapema-SC159, seu

ascendente, Thomaz Francisco Garcia, foi o maior escravocrata de Camboriú160, e também foi

homenageado com nome de escola, em Balneário Camboriú. Ele se chama Bento Elói Garcia,

homem, branco, rico, empreendedor.

Escola Básica Municipal Bento Eloi Garcia, Itapema-SC. Imagem: Panoramio, 2009.

156 Rosa de Lourdes Vieira Silva, na apresentação do livro: ROTHBARTH; SILVA, 2001, p. 12.

157 LEODORO, Margarida Jorge. Entrevista concedida a Ana Elisa de Souza Ribeiro Schlickmann e José

Bento Rosa da Silva. Balneário Camboriú, 2008. Entrevista.

158 Vila Garcia era o Centro de Camboriú. Interessante observar que em entrevista, perguntada se a Vila

Conceição pertence à Camboriú, Dona Guida responde: “Macaco, Camboriú tá embaixo”. Lugares

diferentes, a cidade é outro lugar.

159 Município limítrofe de Balneário Camboriú.

160 BUTI; RAMOS, 2011, p. 46

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Tinha uma família de Camboriú que é o tal de Bibi Garcia que ele tinha uma

torrefação. Eu me lembro muito bem, tinha moenda de café, então comprava de

outro cara que pegava nós aqui da região e ali continuava. […] Era um baixinho,

um grande comerciante em Camboriú. Aqui tão fabricando, construindo uma

Marina após a ponte, que ele era o proprietário. Onde tem a polícia rodoviária

também era deles.

[...]

Em Itapema. Tem muito terreno em Camboriú que é deles. Que nem no Balneário

também.161

Nasceram na Guerra do Pica-Pau162, eles foram pro mato, no Garcia, Camboriú,

onde tinha cartório, igreja, onde os rico morava, meu avô ia na cidade pra pega

comida pra elas que moravam no mato, a mulher do Garcia dava.163

Quem comandava aqui era Ana Garcia, ela que tinha escravos. O tio da minha mãe

tinha um terreno que Ana Garcia deixou para ele.164

Acima, depoimentos do senhor Acácio Siqueira, 68 anos, da já falecida senhora

Natividade Maria de Mattos, que em 2016 completaria 89 anos e do senhor Altair Almiro

Leodoro, 59 anos, respectivamente. Em seus depoimentos percebemos que os Garcia são

constantemente lembrados como os abastados da região, donos dos meios de produção,

articulados comerciantes, proprietários de terras, escravocratas e, por fim, caridosos.

Ela, por sua vez, perante o mundo que não a pertence, tem seus costumes,

tradições e modos de vida vistos como supersticiosos e atrasados. Ela e seus irmãos cursaram

apenas os primeiros anos do Ensino Fundamental. Trabalhou para se manter, para manter os

seus, trabalhando para os outros. Seus ascendentes foram escravizados, agarrados do

continente africano, também tido como atrasado. Seu nome não inspirou nenhuma rua,

tampouco escola. Ela é filha de Cristino Jorge da Graça e Martina Izabel da Conceição, se

chama Margarida Jorge Leodoro, Dona Guida, mulher, negra, quilombola. Sua mãe, a quem

chamava carinhosamente “mamãe”, lavava roupa para o sujeito homem branco descrito

anteriormente:

A vida deles [pais de Dona Guida] era o dia todo na roça. Nos dias de semana, e no

domingo... No domingo mesmo eles folgava, a mamãe era na fonte lavando roupa,

161 SIQUEIRA, Acácio. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana

Schlickmann. Balneário Camboriú, 2012.

162 A senhora Natividade por “Guerra do Pica-Pau” se refere à Revolução Federalista (1893-1895), conflito

entre os federalistas (maragatos) e os republicanos (pica-paus). Cabe mencionar que na disputa pelo poder

que envolveu maragatos e pica-paus a população de origem africana estava ausente, o que nos faz lembrar da

sentença da feminista negra Sueli Carneiro: “entre direita e esquerda, eu sou preta”. REVISTA FÓRUM.

Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2010/11/16/quando-as-negras-sao-

transformadas-em-tia-nastacias/>. Acesso em: Dez. 2015.

163 MATTOS, Natividade Maria. Entrevista concedida a Ana Elisa Ribeiro de Souza Schlickmann. Itajaí,

2008.

164 LEODORO, Altair Almiro. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. [et a...] (Org.). Nova Cartografia

Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil: Quilombolas do Morro do Boi, Santa Catarina.

Manaus: UEA Edições, 2011, p. 3

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essas coisas. […] [Lavava roupa] pra fora. [...] Ela lavava para mulher do Bento

Elói Garcia e pra mulher do Joaquim Garcia.165

Dona Guida, assim como sua mãe, lavou roupa para os outros, em troca de uns

tostões, além da lida na roça, também trabalhou em sorveteria e foi empregada doméstica.

Suas filhas, Sueli e Laurete Leodoro, também trabalham como empregadas domésticas.

Alternativa também comum à mãe do senhor Acácio Siqueira 166 : “a mãe era da roça,

doméstica, empregada”167, também comum à senhora Natividade Mattos168: “fui trabalhar

em Itajaí (…), pra trabalhar na casa, a mulher ia ter neném”169, comum às mães pretas.

Ocupação sobremaneira definida por gênero e raça, o serviço doméstico pode ser lido como

uma herança da escravidão “por se tratar de um trabalho manual, pouco remunerado, com

forte presença da informalidade, pessoalidade, sem perspectiva de ascensão na carreira”170.

Nesse sentido, vale o entendimento de Angela Davis, muito embora direcionado à sociedade

estadunidense:

O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras segue um

padrão estabelecido nos primeiros dias da escravidão. Como escravas o trabalho

compulsório obscurecia todos os outros aspectos da existência das mulheres. Parece

pois que o ponto de partida para uma investigação da vidas das negras sob a

escravidão seria uma avaliação de seus papeis como trabalhadoras.171

O direito de trabalhar, reivindicação das primeiras feministas do século XX, o

feminismo ocidental, para a mulher negra, pensando no Brasil, desde sempre, foi e ainda é um

dever, como já pontuado na introdução. Mais que um dever, uma condição de sobrevivência.

Desse modo, observamos que a condição de liderança de Dona Guida, o respeito que lhe é

devotado, assim como das mulheres da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, as

aguerridas chefas de família, a obediência dos filhos e filhas para com suas mães, são

estratégias articuladas perante as imposições da sociedade.

É comum nas sociedades ocidentais, onde o patriarcado impera, os corpos

envelhecidos masculinos serem símbolo de sabedoria e os corpos envelhecidos femininos

165 LEODORO, Margarida Jorge. Entrevista concedida a Mariana Schlickmann. Balneário Camboriú, 2011.

166 O Senhor Acácio Siqueira, esposo e primo de Sueli, é bisneto do casal Tomaz Jovito Rebello e Ana

Guilhermina Siqueira, um dos primeiros casais a se estabelecerem no Morro do Boi.

167 SIQUEIRA, Acácio. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Mariana

Schlickmann. Balneário Camboriú, 2012.

168 Natividade Maria Mattos foi neta de Delfino e Joaquina, que, junto com Tomaz Jovito Rebello e Ana

Guilhermina Siqueira, foram os primeiros casais a se estabelecerem no Morro do Boi.

169 MATTOS, 2008. 170 LIMA; RIOS & FRANÇA, 2013, p. 73. 171 Excerto de Women Race and Class, de Angela Davis, presente na epígrafe de bell hooks: HOOKS, b.

Intelectuais Negras. Revista Estudos Feministas, V.3, nº 2 , 1995, p.465.

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serem símbolo de inutilidade. À mulher, é exigida a beleza eterna, sendo crime envelhecer,

engordar. Aos homens, tais padrões estéticos não são exigidos com a mesma intensidade.

O ideal de juventude e de magreza que leva muitas mulheres no Ocidente a lotar

academias de ginástica e controlar ciosamente a alimentação é combatido com

discrição em certas sociedades em que o corpo é vestido com simplicidade e assume

tranquilo sua velhice e suas limitações.172

A Comunidade Quilombola do Morro do Boi tem uma matriarca, a senhora

Margarida Jorge Leodoro, Dona Guida. Como já mencionado, Dona Guida é viúva de Almiro

Leodoro, que emprestou seu nome à Rua que atravessa o Morro do Boi. Não se trata de uma

Comunidade necessariamente matriarcal, mas o que queremos destacar aqui é a figura de

liderança de Dona Guida, o que destoa da uniformidade dos patronos masculinos. Referência

na Comunidade, é rezadeira, benzedeira, conhecedora das ervas medicinais. Apenas com a sua

permissão e benção é que foi possível dar início e continuidade à movimentação em torno do

pleito quilombola: “A velhice não é sentida como maldição nem como sinal de incompetência

social. Um corpo envelhecido é, ao contrário, uma marca de sabedoria, símbolo de uma vida

bem vivida, digna de respeito”173.

172 MONGA, 2010, p. 140.

173 Ibidem, p. 141.

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CAPÍTULO TERCEIRO

SAYONARA, A JUVENTUDE:

Desafios e Perspectivas

A voz de minha filha

recorre todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje - o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo Vozes Mulheres

Sayonara e Michele Leodoro Siqueira. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos Negros, 2014.

Sayonara e Michele Leodoro Siqueira, nascidas em 1998 e 1999, respectivamente,

carregam em seus nomes a descendência das/os primeiras/os moradoras/es do Morro do Boi

que ali chegaram entre fins do século XIX e início do século XX, os casais Tomas Jovito

Rebello e Ana Guilhermina Siqueira e Joaquina e Delfino, recém-libertos. As adolescentes são

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filhas do casal Sueli Marlete Leodoro e Acácio Siqueira. Sueli Leodoro é tataraneta do casal

Delfino e Joaquina. E Acácio Siqueira é bisneto do casal Tomaz Jovito Rebello e Ana

Guilhermina Siqueira.

As linhas de descendência das famílias Leodoro e Siqueira (Sueli Leodoro é filha de Almiro Leodoro).

Elaboração: Rafael Palermo Buti, 2013.174

A Comunidade Quilombola do Morro do Boi, desde a fundação da Associação

Quilombola Morro do Boi em 2007, vem lutando através do pleito quilombola por melhores

condições de vida. Como o título alude, o capítulo procura investigar quais os desafios e as

perspectivas para a Comunidade Quilombola do Morro do Boi, percebendo na personagem

Sayonara Nancy Leodoro Siqueira, filha de Sueli Marlete Leodoro e neta de Margarida Jorge

Leodoro, um marco geracional. Através das demandas da Comunidade Quilombola do Morro

do Boi, percebidas através dos depoimentos das moradoras e moradores e de uma análise de

conjuntura atual, refletindo historicamente sobre os marcos das políticas públicas para a

população negra, pretende compreender, do micro para o macro, o estágio atual das políticas

públicas existentes para as comunidades remanescentes de quilombos no Brasil em interface

com os desafios e perspectivas da Comunidade Quilombola do Morro Boi, também refletidos

na figura da jovem Sayonara Leodoro Siqueira, que representa o futuro.

174 BUTI, 2013, p. 92.

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Novíssimas personagens entram em cena175

A Cantora do Milênio é Mulher, Negra, Brasileira e Feminista: Elza Soares é o

título do artigo da blogueira travesti e transfeminista Aria Rita, publicado no site da Revista

Capitolina, republicado pelo blogueiro, ativista e militante do Movimento Negro, Douglas

Belchior em seu blog pertencente ao site da Revista Carta Capital176. Em outubro de 2015, este

ícone como artista e como mulher lançou um disco com canções inéditas aos 78 anos de idade.

O disco de Elza Soares é emblemático para pensarmos o momento em que estamos vivendo, é

o disco de uma mulher negra, empoderada e feminista, chamado A Mulher do Fim do Mundo,

cantado em primeira pessoa, mulher negra, “a pele preta e a minha voz”177.

2015 também foi o ano da Marcha das Mulheres Negras. Realizada no dia 18 de

novembro, em Brasília. Em torno de 50 mil mulheres negras ocuparam as ruas da capital deste

país. Segundo Cidinha da Silva, um trabalho que só foi possível “depois de mais de três anos

de mobilização e articulação política, mudanças na data de realização, e muito, muito

trabalho”178. Suas reivindicações estão em primeira pessoa:

Somos meninas, adolescentes, jovens, adultas, idosas, heterossexuais, lésbicas,

transexuais, transgêneros, quilombolas, rurais, mulheres negras das florestas e das

águas, moradoras das favelas, dos bairros periféricos, das palafitas, sem teto, em

situação de rua.

Somos trabalhadoras domésticas, prostitutas/profissionais do sexo, artistas,

profissionais liberais, trabalhadoras rurais, extrativistas do campo e da floresta,

marisqueiras, pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras, culinaristas, intelectuais,

artesãs, catadoras de materiais recicláveis, yalorixás, pastoras, agentes de

pastorais, estudantes, comunicadoras, ativistas, parlamentares, professoras,

gestoras e muitas mais.

Na condição de protagonistas oferecemos ao Estado e a Sociedade brasileiros

nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica

de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do

sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da

175 O título do tópico faz referência ao livro Quando os novos personagens entraram em cena, de Eder Sader.

Os personagens que inspiraram Eder Sader foram os trabalhadores urbanos da Grande São Paulo das

décadas de 70 80, no contexto da redemocratização, sendo protagonistas dos movimentos sociais. Para esta

pesquisa, as personagens que vêm protagonizar são as mulheres negras. SADER, Eder. Quando novos

personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-

80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

176 A Cantora do Milênio é Mulher, Negra, Brasileira e Feminista: Elza Soares. Disponível em:

<http://www.revistacapitolina.com.br/a-cantora-do-milenio-e-mulher-negra-brasileira-e-feminista-elza-

soares/>/ <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/a-cantora-do-milenio-e-mulher-negra-brasileira-e-

feminista-elza-soares/>. Acesso em: Dez./2015.

177 Verso da canção que empresta seu título ao álbum: Mulher do Fim do Mundo.

178 DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO. Para onde caminha a Marcha das Mulheres Negras. Disponível

em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/para-onde-caminha-a-marcha-das-mulheres-negras-por-

cidinha-da-silva/>. Acesso em: Dez./2015.

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humanidade de mulheres e homens negros.179

Imagem: Fanpage 2015 – Marcha das Mulheres Negras.

Marcha das Mulheres Negras. Imagem: Thais Mallon, 2015.

Em 2015 também ocorreu retrocessos para a luta antirracista. Em julho, a Câmara

Legislativa Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição Federal - PEC 171/93,

projeto que determina que a Maioridade Penal seja reduzida de 18 para 16 anos. A proposta

deve voltar a ser discutida com o retorno dos trabalhos na esfera legislativa em 2016, quando

deverá ser submetida à votação no Senado Federal180. Sabemos a cor dos jovens alvos da PEC

171/93, sabemos a cor dos jovens alvos dos disparos da Polícia Militar. Às mães pretas, eterna

vigília. Nesse sentido, por estas e outras reivindicações também marcham as mulheres negras:

[…] nós Mulheres Negras estamos em Marcha para exigir o fim do racismo e da

violência que se manifestam no genocídio dos jovens negros; na saúde, onde a

179 MARCHA DAS MULHERES NEGRAS. Carta Marcha 2015. Disponível em:

<http://www.marchadasmulheresnegras.com/>. Acesso em: Dez./2015.

180 SENADO FEDERAL. Redução da maioridade penal deve voltar a ser discutida com retorno dos

trabalhos legislativos. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2016/01/reducao-da-

maioridade-penal-deve-voltar-a-ser-discutida-com-retorno-dos-trabalhos-legislativos>. Acesso em:

Jan./2016.

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mortalidade materna entre mulheres negras está relacionada à dificuldade do

acesso a esses serviços, à baixa qualidade do atendimento aliada à falta de ações e

de capacitação de profissionais de saúde voltadas especificamente para os riscos a

que as mulheres negras estão expostas; da segurança pública cujos operadores e

operadoras decidem quem deve viver e quem deve morrer mediante a omissão do

Estado e da sociedade para com as nossas vidas negras.181

Sayonara Leodoro Siqueira, assim como sua irmã mais nova Michele Leodoro

Siqueira, faz parte da geração de mulheres negras que escolheram outros papéis para

representar, outros papéis além daqueles comumente destinados às mulheres negras. Jovens

politizadas, inseridas no movimento social. Sayonara segue os passos de sua mãe, Sueli

Leodoro. Assim diz a presidenta da Associação sobre sua filha: “[Sayonara] ama tudo que é

de religião afro, adora o maracatu, adora xangô, iansã, ela gosta, mas também não deixa a

imagem de Nossa Senhora de lado”. Sayonara escolheu para si ingressar em uma carreira

universitária, em 2015 realizou vestibulares para a Universidade do Estado de Santa Catarina

(UDESC) e Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), enquanto também foi membro em

Balneário Camboriú do Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE) e se apresentava no

maracatu182.

Maracatu na Comunidade Quilombola Morro do Boi. Imagem: Leonel Tedesco, Exposição A Rua dos

Negros, 2014.

181 MARCHA DAS MULHERES NEGRAS. Carta Marcha 2015. Disponível em:

<http://www.marchadasmulheresnegras.com/>. Acesso em: Dez./2015.

182 Em março de 2014, o grupo de maracatu Encanto do Sul, de Itajaí, iniciou uma série de oficinas de maracatu

com as moradoras e moradores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi.

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Maracatu na Comunidade Quilombola Morro do Boi. Imagem: Leonel Tedesco, 2014.

Conflitos com a monocultura

Fabriciano Cristino da Graça, irmão de Dona Guida, pinta uma tela, a tela de

Balneário Camboriú de outros tempos, quando ainda nem era assim chamada, quando ainda

sofisticados modelos da monocultura dominante – os arranha-céus e o asfalto – ainda não

haviam feito visita a este trecho do litoral norte de Santa Catarina:

Aquele Balneário Camboriú, quem vinha do Garcia pra cá, da Vila de Camboriú

pra cá, tinha só a entradinha, um caminhozinho estreito, tinha uma vendinha de

madeira, totonga, era só mato, a praia, quando chegava no verão, o pessoal ia pra

ver cavalo, só dava o pessoalzinho no inverno, no tempo da tainha e da corvina,

acabou, não tinha ninguém de ponta a ponta, lá de dentro do mato, a gente via, não

tinha nada, uma casinha, um lampiãozinho. E como era bom, na praia de

Camboriú, eu com 15 anos.183

183 GRAÇA, 2008.

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Edifícios em construção que fazem sobra à beira-mar de Balneário Camboriú. Imagem: Camila Evaristo,

2015.

Os arranha-céus de Balneário Camboriú. Imagem: Camila Evaristo, 2015.

Da mesma maneira que o asfalto e os arranha-céus mudaram a paisagem que faz a

vista do Morro do Boi, a energia elétrica, o açúcar refinado, o óleo transgênico e os óculos do

camelô mudaram o cotidiano das moradoras e moradores da Comunidade Quilombola do

Morro do Boi. Se hoje o leite vem em caixa, bananas, folhas verdes e mandioca ainda são

cultivadas. Se a água não corre mais na cachoeira com a mesma força de outrora, a água que

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abastece a comunidade ainda nasce no Morro do Boi.

Herança da monocultura também foram as relações sociais marcadas pela

impessoalidade e pela urbanização em oposição a todo um manancial cultural considerado

“atrasado” pouco a pouco sendo engolido pela rapidez do mundo contemporâneo, herdeiro do

mundo moderno, quando estabelecidos os modelos europeus como modelos universais. Tais

imagens expressas no Centro de Balneário Camboriú – o progresso, a urbanização, o requinte

– são oriundas da modernização, e, por conseguinte, desafricanização, instaurada na Primeira

República. Desse modo, hábitos citadinos são hábitos europeus. O projeto modernizante é um

grande embuste, revelado na pobreza e exclusão social vividas pelas populações de origem

africana184. Notadamente perceptível na imagem do Bairro Jardim Denise (Capítulo Primeiro)

e também lançando efeitos sobre as moradoras e moradores da Comunidade Quilombola do

Morro do Boi, assalariadas e assalariados do centro urbano, cujas micro-áfricas consistem em

suas experiências de redefinir práticas culturais, reveladas no viver e estar em comunidade,

estratégia para lidar com os novos padrões que a cidade impunha. Como percebemos no

depoimento de Altair Leodoro, tio de Sayonara, irmão de Sueli, filho de Dona Guida:

Hoje em dia tem essa estrada ai, mas antigamente isso aqui era uma estrada de

carro de boi, não passava dois carro junto. Ah, tinha carro de boi então, aí depois

não, depois que o pessoal aí começaram a cortar pedra aqui pra cima, eles foram

alargando a estrada pra poder descer com o caminhão. Mas, no começo, não. No

começo era só aquele trilho ali. Quando ali passava um carro de boi, era e tu

trabalhava daquele jeito, sem carro, era tudo carro de boi pra puxar mandioca,

puxar feijão, puxar banana, era tudo na base do carro de boi. Então pra que a

estrada muito larga? Era mais fácil de conservar, já não derrubava tanto.185

De um modo mais concreto, material e estruturante, podemos dizer que o projeto

modernizante perpassou sobre as vidas das moradoras e moradores da Comunidade

Quilombola do Morro do Boi na figura na BR-101. Como já narrado no Capítulo Primeiro, na

segunda metade do século XX, foi construída a Rodovia Mário Covas, a BR-101, cortando a

costa litorânea leste brasileira do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. Neste caminho,

também corta a cadeia de montanhas Morro do Boi. Tal empreitada desenvolvimentista –

assim como o projeto modernizante, um grande embuste para a população de origem africana,

neste caso, para a Comunidade Quilombola do Morro do Boi – mais a duplicação da Rodovia

no litoral norte de Santa Catarina e a construção do túnel que perpassa o Morro do Boi não

184 AZEVEDO, 2006, p. 32

185 Altair Almiro Leodoro para: DAMBROWSKI, GARROTE; SANTOS; SEVERINO; SILVA. Quilombo do

Morro do Boi (Balneário Camboriíu – SC): relação histórica entre a comunidade e o meio ambiente.

Revista identidade!, São Leopoldo, RS, v. 15, n. 2, jul-dez, 2010, p. 59

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significou progresso para suas moradoras e moradores. Subtração do território, casas

danificadas sem indenização, mortes por atropelamento na Rodovia, a necessidade de ir

trabalhar para os outros. Segundo Rafael Palermo Buti, antropólogo coordenador do Relatório

Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-Cultural: Comunidade

Remanescente de Quilombo Morro do Boi (Balneário Camboriú /SC):

Tal conjuntura [a instauração da Rodovia] marcou rupturas irreversíveis vividas

pelos membros comunitários, seja porque diretamente a malha viária incidiu sobre a

área tradicionalmente ocupada, seja pelas mudanças no contexto macroeconômico

regional, que sofreu adensamento populacional, aquecimento dos setores

imobiliário, da construção civil e do turismo, além de o Morro do Boi passar a ser o

principal lócus de extração de minério.

[…]

Do período que percorre a data de construção da BR-101 (1966) à sua duplicação

(em 1998), três empresas trabalharam nas obras de execução dos serviços ligados ao

megaprojeto. Necessariamente, todas elas usaram as áreas ocupadas pelos moradores

do Morro do Boi como base operacional para suas atividades, ali instalando fábricas

e usinas de asfalto, dormitórios dos trabalhadores, almoxarifado de explosivos e

materiais, pedreiras e laboratórios de análise do material necessário para sua

execução.

[...]

A partir dessa época, os moradores passaram a conviver com inúmeras explosões

decorrentes da abertura da malha viária, acompanhadas pelo aumento do raio de

abrangência das áreas utilizadas pela empresa para a construção e os cuidados com a

BR, aumento esse que ao longo dos anos determinou a saída de algumas famílias do

local. À época, parte da área usada pelos moradores serviu como depósito das pedras

que se acumulavam pelo entorno da rodovia, quando não servida de eixo da própria

BR-101, que ocupou áreas de pasto e cafezal, inviabilizando a colheita.186

186 BUTI, 2013, p. 94-95.

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Túnel Morro do Boi. Imagem: Panoramio, 2015.

Tal episódio que diz respeito às espoliações sofridas pela Comunidade já foi

narrado tanto pelo mesmo autor como por Schlickmann187, importa aqui para refletir como tal

conjuntura externa atingiu e ainda atinge sobremaneira a vida das moradoras e dos moradores

da comunidade, implicando assim na necessidade de se inserir no movimento social

quilombola, lutar e resistir.

Na iminência da construção da rodovia, em meados dos anos sessenta, as famílias

locais tiveram regularizados pelo IRASC [Instituto de Reforma Agrária de Santa

Catarina] seus domínios dos territórios ocupados. Tal feita fora impulsionada pelos

próprios órgãos governamentais responsáveis pela construção da malha viária, que

tinha trechos de seu projeto inicial sobrepostos ao terreno da família de Eleodoro.

Muito embora a regularização do terreno tenha sido feita como procedimento para a

indenização, tal medida compensatória do Estado – nas versões locais, conhecida

como “usucapião” – diminuiu o tamanho da área ocupada pelos moradores.188

Mesmo tendo regularizados seus territórios, as famílias da Comunidade

Quilombola do Morro do Boi jamais receberam a indenização relativa às espoliações e

subtração do território, consequência da construção e duplicação da BR-101, bem como da

construção do túnel.189 A este respeito, a presidenta da Associação, Sueli Leodoro, perguntada

187 BUTI; RAMOS, 2012; BUTI, 2013; SCHLICKMANN, 2012.

188 BUTI, 2013, p. 97

189 Tais idas e vindas burocráticas foram detalhadas por BUTI, Rafael Palermo. Sobreposições do Estado,

posições do grupo: o caso da Comunidade Quilombola do Morro do Boi-SC. Ruris. Volume 7, Número 2,

setembro de 2013. Disponível em: <http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1891/1370>.

Acesso em: Ago./2015.

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se ainda é possível recebê-la, responde: “Não se vai ficar para os meus bisnetos, para os meus

tataranetos, não sei, mas um dia ela vai sair”.

Coivara era uma roça bem grande, falavam vamos fazer uma coivara, ai iam lá

derrubavam mato, hoje não pode, mas naquele tempo podia, ai deixavam secar e

iam cuidar de outra roça, mais pequena, ai quando tava seco, eles iam lá e

plantavam de tudo, milho, feijão, mandioca, de tudo. Aquilo se chamava coivara,

todo dia a gente ia lá.190

Trouxemos novamente a narrativa de Dona Guida a respeito da coivara para

refletirmos por outras questões. Quando Dona Guida diz que hoje não pode mais derrubar

mato, a senhora se refere à proibição ambiental fiscalizada pelo Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pelo Instituto Chico Mendes de

Conservação e Biodiversidade (ICMBio) devido a região do Morro do Boi ser instituída como

Área de Preservação Permanente de Topo do Morro (APP), ficando assim, as moradoras e

moradores, impossibilitados de ocuparem parte de suas terras, mais um impasse relativo à

privação da Comunidade em lidar com a sua terra. Acompanhamos o depoimento da

presidenta Sueli Leodoro a respeito:

A gente nem sabia que era uma APP. Aí quando a gente começou a participar da

APA (Área de Preservação Ambiental), aí começaram a falar que o Morro era uma

área de APP, proteção ambiental, ok, vamos respeitar! (…) Meus irmãos já não

trabalhavam mais na pedra, então já não tinha mais desmatamento, já tava tudo

voltando ao normal. Só que assim, agora faz umas duas semanas que eu fiquei

sabendo que tem um cara cortando no Morro do Encano. Lá no Morro do Encano

os caras vêm e tão saindo aqui já. Morro do Encano é uma rua que dá acesso a

Camboriú. Aí tem um cara que simplesmente... dizem que comprou ali e tá

desmatando por trás. Diz que tá pegando uma parte da nossa área. Essa semana eu

denunciei. Não vi ainda, não estive lá. Mas o rapaz que comprou lá atrás da mãe da

Cláudia falou que tá bastante devastação, o pai dele até (…), ele ia avisar a polícia

e tal só que eu ouvir dizer que o cara é um juiz, não sei se é. E diz que a mulher dele

é do meio ambiente, não sei se é. Qual meio ambiente? De Itapema? Qual meio

ambiente? De Balneário Camboriú? De Camboriú? Aí eu liguei pro meio ambiente

e falei assim, assim, assim, eu não tenho acesso lá, não cheguei lá, mas o genro do

meu marido entrou e saiu aqui, ele saiu aqui! De carro! Então tá estrada aberta pra

ele sair aqui. Então é assim a gente não pode, a gente não pode roçar, a gente não

pode capinar e a gente não pode plantar. Quem tem grana pode. Isso é certeza. Eu

vejo aqui, por exemplo, assim, pra o meu irmão fazer a casa dele foi um auê (…).191

Sueli Leodoro, no excerto exposto, resume uma prática costumeira no Brasil

relativa à regularização fundiária, a prática do Estado de obstaculizar, através de leis, o acesso

e permanência à terra à população negra e pobre ao mesmo tempo em que o Estado – aqui

entendido como todas as esferas públicas do poder – atua junto aos abastados da nação para

190 LEODORO, Margarida Jorge, 2008.

191 LEODORO, 2015

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facilitar os seus interesses – ainda que sejam contra a lei vigente ou aprovando leis para este

fim. Data de 1850 a Lei de Terras que, entre uma de suas finalidades, estava a de impedir ex-

escravizados de ascender à propriedade da terra. Preceitua seu artigo primeiro: “Ficam

proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra”192. Em

seu artigo segundo, é como se lêssemos o relato de Sueli Leodoro, relativo ao impedimento

em torno da Área de Preservação Permanente (APP):

Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derrubarem matos ou

lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitorias, e de mais

sofrerão a pena de dois a seis meses de prisão e multa de 100$, além da satisfação do

dano causado.193

A história se repete, mudam os personagens, mas não muda o status social a que

estes personagens fazem parte. A este respeito, o professor José Bento Rosa da Silva, em seu

estudo relativo à região de Itajaí no século XIX, comenta:

Os que solicitavam à Câmara o desejo de comprar terras eram sempre os mesmos,

ou seja, constituíam uma categoria de proprietários de terras, além de outros

negócios que, não raras vezes, já possuíam. Não se tratava apenas de terras para a

subsistência, mas para especulação, pois a terra já havia se metamorfoseada em

mercadoria.194

[...]

Os litígios relacionados com a questão agrária, tão presente na história do Brasil,

desde a doação das capitanias hereditárias, podem ser considerados, usando uma

expressão de Braudel -, um “fenômeno de longa duração”, ou seja, está

intrinsecamente relacionado com a metamorfose da terra em mercadoria que, no

caso do Brasil, remete à chegada e a tomada de posse oficial por parte dos europeus

a partir do final do século XV e, posteriormente, com a Leis de Terras de 1850.195

A necessidade da compreensão sobre os significados da instituição da Lei de

Terras de 1850 também é importante para compreendermos as movimentações políticas do

presente voltadas à regularização fundiária das terras quilombolas. Em 2003, com a

ascendência de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República Federativa do Brasil, foi

criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Resultado da luta

de gerações de mulheres e homens de origem africana envolvidos com a luta antirracista e

com o Movimento Negro, que foi possível com a emergência de um partido progressista – o

Partido dos Trabalhadores (PT) – no cenário executivo nacional. Desde 2003, a Secretaria tem

192 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CASA CIVIL, SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei No

601, de 18 de setembro de 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-

1850.htm>. Acesso em: Dez./2015.

193 Ibidem.

194 SILVA, 2008, p. 218.

195 Ibidem, p. 225.

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trabalhado no fomento de políticas públicas à população negra, nesse sentido, igualmente à

população quilombola. No entanto, em 2015, ao assumir seu segundo mandato, a atual

presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhados, herdeira do legado de Lula, cortou

dez ministérios, a chamada Reforma Ministerial, entre eles, a SEPPIR, que foi incorporada ao

Ministério da Cidadania, junto com a Secretaria de Políticas para Mulheres e a Secretaria de

Direitos Humanos. A ex-ministra da SEPPIR, Nilma Gomes, assumiu o Ministério da

Cidadania. Corroboramos com Dennis de Oliveira, que avalia que mesmo com Nilma Gomes

na chefia do ministério, uma representante do Movimento Negro, aglutinar as Secretarias em

uma pasta única é reduzir a visibilidade e, por conseguinte, as ações voltadas às políticas de

promoção de igualdade racial:

Do ponto de vista de uma concepção de racismo estrutural, isto é retrocesso. O

racismo se manifesta em todas as dimensões da vida social – no trabalho, na saúde,

na educação, nos direitos sociais –, se expressa nas instituições (o chamado racismo

institucional) e se legitima ideologicamente (o racismo ideológico). Isto exige um

compromisso firme por meio de políticas de Estado (e não apenas de governo) no

sentido de combater tenazmente o racismo. Transcende, portanto, a concepção de

direitos civis e de cidadania.

Ainda que de forma tímida, a visibilidade que a temática racial foi ganhando no

campo institucional com o funcionamento da Seppir e suas articulações com outros

ministérios, possibilitou que a temática fosse contaminando outras áreas. Cito, como

exemplo, a campanha feita na área da saúde contra o racismo no atendimento

médico-hospitalar

[…]

Se a presidenta Dilma não cedeu totalmente a este discurso conservador, minimizou

o problema do racismo. Reduziu-o ao âmbito dos direitos humanos e civis. O

racismo não é um problema que se ataca na perspectiva da individualidade cidadã ou

humana. É uma questão de ordem política e estrutural que exige uma repactuação

social. Necessita de uma profunda transformação institucional do Estado e da

sociedade brasileira. Não tinha expectativa que em apenas um ou dois governos isto

acontecesse. Isto exigiria um processo longo. Mas é fato que a decisão tomada é um

passo atrás.196

O presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e

Negras (ABPN), Paulino Cardoso, avalia que, dada a ameaça de todas as conquistas

esmorecerem, seja necessária a desvinculação do alinhamento automático com partidos

políticos, voltando às formações de base: “Nós, companheiros e companheiras, usando uma

imagem judaica, subimos a montanha e vimos a terra prometida. Nossa tarefa: parir a geração

que a frente do nosso povo, tornará esse país uma terra de homens e mulheres livres.”197

196 OLIVEIRA, Dennis de. Mesmo com Nilma Gomes ministra da Cidadania, extinção da Seppir é

retrocesso. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/quilombo/2015/10/02/mesmo-com-nilma-

gomes-ministra-da-cidadania-extincao-da-seppir-e-retrocesso/>. Acesso em: Dez./2015.

197 PORTAL ÁFRICAS. Os negros e a conjuntura atual. Disponível em:

<http://www.portalafricas.com.br/v1/os-negros-e-a-conjuntura-

atual/?fb_ref=c88eee96921b495b93ad6b5e09d7d6ab-Facebook>. Acesso em: Dez./2015.

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Este cenário atenuante de políticas de promoção da igualdade racial não é a única

investida que ameaça às conquistas do Movimento Negro e coíbem as ações futuras nas três

esferas do poder nesse sentido. As ameaças mais viscerais estão dadas no cenário legislativo

da esfera nacional. Especificamente, em relação às políticas públicas que visam atingir às

populações quilombolas, o poder hegemônico, na figura da bancada ruralista e dos

estatutários do capital, arma-se de estratégias para frear o (pouco) que vem sendo feito no que

diz respeito à demarcação de terras quilombolas.

Em 11 de novembro de 2015 foi criada pela Câmara dos Deputados uma

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que visa investigar o que a mesma chama de

“fraudes” na elaboração dos laudos antropológicos, condição necessária para a demarcação de

terras quilombolas como também de terras indígenas. Esta Comissão é presidida pelo

Deputado da bancada ruralista, Alceu Moreira, do Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB).198 Assim sendo, notório o interesse do capital e do agronegócio.

Nesse sentido, também se aguarda a retomada do julgamento pelo presidente do

Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/04.

Fruto do Partido Democrata (DEM), antigo partido da Frente Liberal (PFL), a ação visa

questionar o Decreto Nº 4887 de 20 de novembro de 2003, que “regulamenta o procedimento

para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas

por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o Art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias”. A principal oposição do partido requerente diz

respeito “à possibilidade aberta pelo Decreto de reconhecimento das pessoas, por

autoatribuição, da sua condição de remanescente das comunidades quilombolas e à

demarcação das terras por indicação dos próprios interessados”199. Assim preceitua o referido

Decreto:

Art. 2 o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins

deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com

trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com

presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica

sofrida. 200

198 G1. Deputado ruralista do PMDB é eleito presidente da CPI da Funai e do Incra. Disponível em:

<http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/11/deputado-ruralista-do-pmdb-e-eleito-presidente-da-cpi-da-

funai-e-do-incra.html>. Acesso em: Dez./2015.

199 CONECTAS DIREITOS HUMANOS. ADI 3239 – Quilombos. Disponível em:

<http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/ADI%203239%20-%20resumo%20-

%20STF%20em%20Foco(3).pdf>. Acesso em: Jan./2016.

200 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto Nº 4.887, de 20 de Novembro de 2003. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: Ago./2015

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Como já mencionado na introdução, repito as palavras de Georgina Helena Nunes

no que diz respeito à novidade da autoatribuição: uma afronta para a sociedade que nomeia os

outros201. Nesse sentido, em 2007 foi fundada a Associação Quilombola Morro do Boi202, e,

desde então, Dona Guida e suas/seus descendentes pleiteiam a propriedade definitiva e

coletiva de suas terras, conforme o Decreto 4887/2003.203

Desafios e Perspectivas

Podemos dizer que as principais reivindicações das comunidades quilombolas

giram em torno das demandas fundiárias, a demarcação e titulação dos territórios. No entanto,

segundo a Fundação Cultural Palmares há em todo o país 2.606 comunidades que se

autodeclararam enquanto quilombolas e que receberam a Certidão de Autodefinição expedida

pela mesma instituição204. Destas, 158 estão na Região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul,

Santa Catarina e Paraná) e 13 no Estado de Santa Catarina205. De todas as comunidades

certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos, para apenas

217 comunidades foram emitidos os títulos de propriedade definitiva e coletiva, segundo os

dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)206. Ainda segundo o

INCRA, em Santa Catarina apenas a duas comunidades foram emitidos os títulos de

propriedade definitiva e coletiva em nome de suas associações: Família Thomaz, localizada

no município de Treze de Maio, e Invernada dos Negros, localizada no município de Campos

201 NUNES, Georgina Helena Lima. Comunicação Oral, Mesa Redonda. VIII Congresso Brasileiro de

Pesquisadores/as Negros/as – VIII COPENE. Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as –

ABPN. Universidade Federal do Pará - UFPA. Belém, 2014.

202 BUTI; RAMOS, 2011, p. 28. 203 Importante destacar que, conforme o estudo realizado para o relatório antropológico, “A especificidade do

caso do Morro do Boi é que a área pleiteada pela associação [iniciada em 2008, com processo administrativo

junto ao INCRA] não diz respeito nem aos territórios ocupados pelos núcleos familiares dos Leodoro e dos

Siqueira [...] e nem a um deles inteiramente: trata-se de um sexto do território que o IRASC regularizara, em

1968, em nome de Eleodoro Pedro José que, com o falecimento do titular na década de oitenta, está

fracionado e loteado entre as famílias de seus seis filhos (e herdeiros), como procedimento da transmissão da

herança e do direito sucessório sobre ela”. (BUTI, 2003, p. 102).

204 FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas às Comunidades Remanescentes de

Quilombos (CRQs) atualizada até a Portaria Nº 84, de 8 de junho de 2015. Disponível em:

<http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/Lista-das-CRQs-Certificadas-Portaria-

n%C2%B0-84-08-06-2015-Recebido-em-20.07.15.pdf>. Acesso em: Ago./2015.

205 FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Quadro geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos

(CRQs). Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/Lista-das-CRQs-

Certificadas-Quadro-por-Regi%C3%A3o-Atualizada-02-07-2015.pdf>. Acesso em: Ago./2015.

206 INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Quilombolas. Disponível em:

<http://www.incra.gov.br/quilombola>. Acesso em: Ago./2015.

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Novos207. Tais quadros revelam que, apesar do aparato jurídico, os títulos de propriedade às

comunidades quilombolas estão sendo emitidos a conta-gotas.208 Dados que refletem que a

regularização fundiária não está nas prioridades do Estado, em 15 anos desde que o Decreto

Nº 4887/03 foi sancionado e em 27 anos de Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido que 158 entidades dos movimentos sociais assinaram a carta

intitulada “Nenhum direito a menos, democracia se faz com diálogo e participação”209 frente

a Reforma Ministerial. Dentre tais direitos estabelecidos pela Seppir está o Programa Brasil

Quilombola, lançado em 12 de março de 2004, cujas ações voltadas às Comunidades

Quilombolas estão estabelecidas em quatro eixos, quais sejam: Acesso à terra,

Infraestrutura e Qualidade de Vida, Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local e

Direitos e Cidadania:

Eixo 1: Acesso À Terra – execução e acompanhamento dos trâmites necessários para

a certificação e regularização fundiária das áreas de quilombo, que constituem título

coletivo de posse das terras tradicionalmente ocupadas.

Eixo 2: Infraestrutura e Qualidade de Vida – consolidação de mecanismos efetivos

para destinação de obras de infraestrutura (saneamento, habitação, eletrificação,

comunicação e vias de acesso) e construção de equipamentos sociais destinados a

atender as demandas, notadamente as de saúde, educação e assistência social;

Eixo 3: Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local - apoio ao desenvolvimento

produtivo local e autonomia econômica, baseado na identidade cultural e nos

recursos naturais presentes no território, visando a sustentabilidade ambiental,

social, cultural, econômica e política das comunidades;

Eixo 4: Direitos e Cidadania - fomento de iniciativas de garantia de direitos

promovidas por diferentes órgãos públicos e organizações da sociedade civil, junto

às comunidades quilombolas considerando critérios de situação de difícil acesso,

impacto por grandes obras, em conflitos agrários, sem acesso à água e/ou energia

elétrica e sem escola.210

Para além da regularização fundiária, outra bandeira importante do movimento

negro quilombola diz respeito à Educação. Em 2012 foram aprovadas as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola na Educação Básica, cuja relatoria

207 INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Incra Reconhece

Comunidade Quilombola em Santa Catarina. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/noticias/incra-

reconhece-comunidade-quilombola-em-santa-catarina>. Acesso em: Ago./2015.

208 FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas às Comunidades Remanescentes de

Quilombos (CRQs) atualizada até a Portaria Nº 84, de 8 de junho de 2015. Disponível em:

<http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/Lista-das-CRQs-Certificadas-Portaria-

n%C2%B0-84-08-06-2015-Recebido-em-20.07.15.pdf>. Acesso em: Ago./2015; INSTITUTO NACIONAL

DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Quilombolas. Disponível em:

<http://www.incra.gov.br/quilombola>. Acesso em: Ago./2015.

209 PORTAL GELEDÉS. Nenhum direito a menos, democracia se faz com diálogo e participação.

Disponível em: <http://www.geledes.org.br/nenhum-direito-a-menos-democracia-se-faz-com-dialogo-e-

participacao/>. Acesso em: Dez./2015.

210 Guia de Políticas Públicas para as Comunidades Quilombolas, Programa Brasil Quilombola, Brasília,

2013. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/arquivos-pdf/guia-pbq>. Acesso em:

Dez./2015.

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pertence à atual Ministra da Cidadania, Nilma Gomes. É ancorada pela Lei Federal

10.639/2003, que altera os artigos 26-A e 79-B da Lei 9.394/1996 da Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (LDB), instituindo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura

africana e afro-brasileira nos sistemas de ensino deste país fruto de uma longa jornada de

reivindicações do Movimento Negro, pertencente ao programa de ações afirmativas na

educação brasileira nos seus diferentes níveis, cuja implementação vem sendo realizada desde

2003, muito embora não de maneira ideal e totalmente efetiva.

O ponto central, tanto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das

Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (que

instrumentalizam a Lei Federal 10.639/2003) como das Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação Quilombola na Educação Básica, diz respeito ao questionamento da educação

formal, cujo currículo está mergulhado nos padrões eurocêntricos, reflexo da sociedade em

que vivemos e dos processos históricos que consolidaram os cânones eurocentrados como

cânones universais, que ignora a diversidade que caracteriza a sociedade brasileira, assentada

no mito da “democracia racial”, ou seja, de que não existem desigualdades raciais neste país.

Partindo deste princípio, o currículo que se propõe universal é monocultural, a cultura do

colonizador. O universal escamoteia a diversidade.

Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares para a Educação Quilombola na

Educação Básica são a concretização escrita e regulamentada de demandas do Movimento

Negro e Quilombola para suprir este déficit de diversidade na Educação formal, que se

reverbera no rendimento das estudantes negras e negros e, consequentemente, em sua evasão

escolar, mais que isso, se reverbera na perpetuação do racismo, condição estruturante das

relações sociais travadas no dia a dia à brasileira, revelada na cor de quem ocupa os mais

variados espaços de poder. Desse modo, as Diretrizes para a Educação Escolar Quilombola na

Educação Básica propõem que as instituições educacionais devem se informar e se alimentar:

a) da memória coletiva;

b) das línguas reminiscentes;

c) dos marcos civilizatórios;

d) das práticas culturais;

e) das tecnologias e formas de produção do trabalho;

f) dos acervos e repertórios orais;

g) dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio

das comunidades quilombolas de todo o país;

h) da territorialidade.211

211 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO

BÁSICA. Resolução Nº 8, de 20 de Novembro de 2012. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/portal-

antigo/arquivos-pdf/diretrizes-curriculares>. Acesso em: Dez./2015. Define Diretrizes Curriculares

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O que se mostra revolucionário, do ponto de vista de que os saberes não são

dádivas exclusivamente advindas da herança da racionalidade iluminista eurocentrada. Como

já mencionado anteriormente, resultado da luta secular de gerações mulheres e homens

preocupados com a luta antirracista neste país. O que não significa que sua prática se dê de

maneira efetiva. A palavra “luta”, por sua etimologia, revela a disputa de forças antagônicas.

Tal disputa não é diferente em Balneário Camboriú, onde o poder público está alicerçado

nestes modelos monoculturais ditos universais. A secretaria de educação do mesmo município

negligencia ambas as diretrizes, o que é agravado pelo fato de no município, conhecido como

a “Maravilha do Atlântico Sul”, haver uma Comunidade Quilombola, a Comunidade

Quilombola do Morro do Boi. Três escolas municipais em Balneário Camboriú atendem as/os

jovens da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, a saber: o Centro Educacional

Municipal de Taquaras, o Núcleo de Educação Infantil Brilho do Sol e o Centro Educacional

Municipal Professor Armando Cesar Ghislandi, além da Estadual Escola de Educação Básica

Maria da Glória Pereira. No caso da Educação Escolar Quilombola, a Resolução prevê que:

deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino localizados em comunidades

reconhecidas pelos órgãos públicos responsáveis como quilombolas, rurais e urbanas,

bem como por estabelecimentos de ensino próximos a essas comunidades e que

recebem parte significativa dos estudantes oriundos dos territórios quilombolas.212

Aqui se faz necessário negritar que as políticas públicas voltadas à Educação

Básica, e também, de modo específico, no que se refere às políticas públicas quilombolas, o

Programa Brasil Quilombola, dependem de gestões descentralizas que necessitam de parcerias

com as esferas estaduais e municipais, sendo ideal a interlocução com os órgãos estaduais e

municipais de Promoção de Igualdade Racial (PIR) e em Balneário Camboriú não há

Conselho de Igualdade Racial.

Não apenas o currículo da Educação Básica está maculado com o discurso do

colonizador, é no Ensino Superior que a ciência impõe o seu lugar como único saber aceitável.

As Universidades, no caso do Brasil, principalmente as públicas, são espaços de poder,

espaços de poder onde os discursos dos vencedores, dos colonizadores, são perpetuados,

chegando, assim, à Educação Básica. Em 2012 foi aprovada a Lei Federal 12.711/12, a

chamada Lei de Cotas, que, em seu artigo primeiro, prevê:

As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.

212 Ibidem

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reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por

curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes

que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.213

Destas vagas:

Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º

desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e

indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na

população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o

último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).214

Uma grande vitória do Movimento Negro, pois significa ocupar os espaços

universitários, os espaços de poder. O Professor Paulino Cardoso, através de sua experiência e

militância, narra os desejos do Movimento Negro dos anos 80 e, consequentemente, as suas

desilusões:

Nós acreditávamos (e acreditamos) que os núcleos de estudos afro-brasileiros

poderiam qualificar a luta antirracista. Entretanto, nós subestimamos a capacidade

de cooptação dos sistemas educacionais, marcados por modelos eurocêntricos e

coloniais, que torna muito de nós cativos de nossos currículos, nosso pertencimento

e aceitação pelos coronéis brancos da acadêmica (bonzinhos ou não). Academia que

desorienta nossos jovens que tendem a tornar-se “negros-ilhas” (pretos cercados de

brancos por todos os lados), ou odiar seus pouquíssimos professores negros.215

“Em 1984, quando cheguei à Universidade, éramos três. Hoje são dezenas de

filhos de parentes, amigos e conhecidos, todos pretos e pobres” publicou dia 18 de janeiro de

2016 o Professor Paulino Cardoso em seu perfil pessoal no Facebook. Hoje, a população de

origem africana e a população pobre vêm ocupando cada vez mais os espaços acadêmicos, os

chamados subalternos, ressentidos, ou os otimistas da vontade - ainda que as resistências

coloniais se perpetuem entendida também como “racismo institucional” - apoiados por seus

pares, tomam para si o desafio de desmantelar a episteme do colonizador como única forma

de conhecimento, a enfrentar a fúria deste sistema que lança mão de todas as suas cartas para

permitir a continuidade das opressões, dada, por exemplo, na insistência da Universidade de

São Paulo (USP) em negar a política de cotas, dada nas rejeições sofridas pelos cotistas para

213 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CASA CIVIL, SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei Nº

12.711, de 29 de agosto de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: Jan./2016.

214 Ibidem.

215 PORTAL ÁFRICAS. Os negros e a conjuntura atual. Disponível em:

<http://www.portalafricas.com.br/v1/os-negros-e-a-conjuntura-

atual/?fb_ref=c88eee96921b495b93ad6b5e09d7d6ab-Facebook>. Acesso em: Dez./2015.

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permanecer nas Universidades216.

“Negro só se for na cozinha do RU. Cotas não!”. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

2007.

Eles tentam fazer a gente acreditar que a cota é uma humilhação, eu não vejo como

humilhação.

Eu acho que a cota vai ajudar, vai ajudar muito. Vai da gente seguir em frente. Vai

da gente fazer as coisas funcionar, mas pra gente fazer as coisas funcionar, também,

você vai ter que bater em muitas portas, e muitas portas vão fechar.217

Sueli Marlete Leodoro também quer ocupar estes espaços até então hegemônicos

e de pouca diversidade cultural, apesar do nome: “Universidade”. Sua filha, Sayonara

Leodoro Siqueira segue os passos de sua mãe, e se vale de sua força e da força e coragem de

sua avó, a Dona Guida, para fazer parte da geração de mulheres negras empoderadas a

povoarem as Universidades. É sintomático que Sayonara e Michele Leodoro Siqueira estejam

quebrando o ciclo de empregadas domésticas, que sua avó, sua bisavó e sua mãe foram. As

adolescentes Michele e Sayonara, assim como suas primas, as irmãs Karina e Sabrina Marçal,

permeando culturas orais e escritas, fazem parte da geração de mulheres escolarizadas do

Morro do Boi, fazem parte da geração de mulheres negras que almejam romper e estão

rompendo com o ciclo de trabalhos e empregos comumente destinados a elas, às mulheres

216 Outro dado alarmante diz respeito ao número de professores/as negros/as nas Universidades públicas

brasileiras, segundo o estudo da Professora Josefa Neves Rodrigues: “Entre USP, UNICAMP, UFRJ e

UFRGS a porcentagem de professores negros não ultrapassa 0,2%, da UFSCAR 05% e da UFMG 07% [...],

resumindo, de todas as universidades pesquisadas, que são consideradas referência nacional, o número de

professores negros não pode chegar a 1%”. RODRIGUES, Josefa Neves. As cotas no processo de ação

afirmativa para o negro nas universidades públicas brasileiras, por que são necessárias?. Monografia

(Lato Sensu – Ciências Sociais – História, Sociedade e Cultura). Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo (PUC/SP). São Paulo, 2013, p. 52.

217 LEODORO, 2015

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negras.

E o maracatu entrou na Fundação Cultural de Balneário Camboriú, naquela sala

fria, sem cor, branca, e de brancos – que sempre ocuparam os espaços públicos dessa cidade

e região – entrou impondo outras cores, outros ritmos, outros sons, fazendo barulho.

Reunindo estas três gerações de mulheres, Dona Guida canta, fechando os olhos, a segurar

um abê: “Pra louvar a voz, virgem do rosário, aqui estamos nós, todos reunidos, pra louvar a

voz”, enquanto Sueli Leodoro e Sayonara Leodoro Siqueira cantam, dançam e tocam como

símbolo de luta e resistência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Protagonistas no palco do cotidiano: Mulheres da Comunidade Quilombola do

Morro do Boi, Balneário Camboriú, Santa Catarina são o conjunto de palavras que definimos

como título desta pesquisa. Negando, o cotidiano, como Marilena Chauí já o negou como um

espaço-tempo onde nada acontece218, mas mostrando o que e o quanto aí acontece quando,

como nos disse Eder Sader, “movimentações que antes podiam ocorrer de modo silencioso...

passam a ser valorizadas enquanto sinais de resistência, vinculadas a outras num conjunto que

lhes dá a dignidade de um acontecimento histórico”219.

É nesse sentido que também trouxemos para título desta pesquisa as mulheres

quilombolas do Morro do Boi como protagonistas. Mais perto de uma grande crônica do que

de um texto científico. Uma grande crônica que teve como enredo cenas da trajetória de três

mulheres: Sueli Marlete Leodoro, a filha, Margarida Jorge Leodoro, a mãe, e Sayonara

Leodoro Siqueira, a neta.

Através de um caminho errático e sinuoso que também foi para além das

experiências destas mulheres, passando por questões transversais, comuns às demais atrizes e

atores da Comunidade Quilombola do Morro do Boi, e entrando nas avenidas específicas de

cada geração. Avenidas que se entrecruzam.

“A vida era um tempo misturado do antes – agora – depois – e – do – depois –

ainda. A vida era mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que

viriam a ser”. As palavras de Conceição Evaristo, publicadas em seu romance Ponciá

Vicêncio, feitas de epígrafe na dissertação são o prelúdio que anuncia como o texto da

dissertação está estruturado, ou seja, o caminho de desvios muito distante de linhas retas, que

não coube em um único eixo, que não entrou nos eixos. Que fugiu da disciplina para a

confusão de ideias e sentimentos que rodeiam as pessoas. Há muitas ideias nas dobras do

dizer, nas entrelinhas, para as leitoras e leitores interpretarem. Por vezes, feitas de propósito,

por vezes, não. Ideias que figuram também nas metáforas. Anuncia também, a epígrafe, a falta

de explicação numérica na definição do recorte temporal, que optamos por ser o tempo da

matriarca, o tempo de Margarida Jorge Leodoro, a Dona Guida, mas não apenas o tempo que

viveu, mas o tempo que ouviu que viveram outras e outros antes dela, a mistura de todos e de

218 Marilena Chauí em prefácio à obra: SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena:

experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2001. 219 SADER, 2001.

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tudo, que não cabem em números.

Tem muito de muitas pessoas neste trabalho. E agora vejo que é como se tivesse

juntado esse muito de muitas pessoas em uma narrativa. E quem são essas pessoas? A

população preta e pobre, as mulheres e homens quilombolas, as roceiras e roceiros, as/os

intelectuais que pensaram e sentiram as diversas opressões, a minha mãe, meus professores e

colegas do Neab e da Puc. Quem briga, e brigar é o verbo, quem briga contra as opressões em

suas mais diversas nuances. De modo que este trabalho faz parte de uma disputa pela

memória, dissonante da memória hegemônica que se perpetua em Santa Catarina e Balneário

Camboriú. Memória que só podia ser narrada através de depoimentos e lembranças e na

primeira pessoa do plural.

Há também reflexões desta caminhada de pesquisa que não figuram no texto.

bell hooks220 já traduziu em palavras o sentimento de despertencimento que

experimentamos em nossas próprias comunidades, no seio de nossa própria família (no meu

caso, comunidade rural em Criciúma, Santa Catarina, que ao longo da minha existência foi

deixando as roças e abraçou o lema que dita ordem e progresso). É com estranhamento que o

ninho onde nascemos e estão fincadas nossas raízes encara erudição e intelectualidade. Neste

mesmo ensaio intitulado intelectuais negras a autora sugere que “intelectual é alguém que lida

com ideias transgredindo fronteiras discursivas porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-

lo”221. Recorri a bell hooks, ou fui inspirada por ela, porque comigo aconteceu de questões e

problemas surgirem sem convite. Questões que sempre me incomodavam e ainda me

incomodam e que sempre fiz de tudo para fugir. Nestes anos passei a questionar muito a

minha identidade racial, e não tenho respostas até hoje. Stuart Hall já anunciou sobre esse

sintoma: “o sujeito previamente vivido dentro de uma identidade unificada e estável está se

tornando fragmentado; composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes

contraditórias e não resolvidas”222.

Durante toda a pesquisa sempre me questionei a respeito do que eu enquanto não

quilombola tenho a dizer sobre estas mulheres e homens que compartilham do universo da

Comunidade Quilombola do Morro do Boi. Porém, a cada vez que me deparo com situações

cotidianas que refletem os processos históricos que culminaram nas opressões e exclusões de

gênero, raça e classe visceralmente sentidas nos tempos atuais, posso compreender o meu

papel enquanto pesquisadora.

220 Assim, em minúsculas, rompendo com o euromórfico. 221 HOOKS, 1995, p. 468. 222 HALL, 2000.

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Certa vez, tive uma conversa com um senhor mui simpático, dotado de polidez e

boa educação, um senhor branco de classe média, cidadão de Santa Catarina, com quem dividi

o mesmo espaço em um torneio de xadrez. Depois de lhe contar sobre a minha pesquisa, o

meu interlocutor expressou em poucos minutos todo o legado da expansão colonialista sobre

o continente africano, permitindo-se dizer que os africanos e seus descendentes não possuíam

história, pois não possuíam escrita. O que revela não apenas o desconhecimento a respeito das

sociedades letradas do continente africano, mas também o seu julgamento como “inferior” –

palavra dele – das sociedades orais. “Inferior” e “superior” foram palavras constantes nestes

minutos, quando meu interlocutor expressava suas ideias de dualidade entre “europeu” e

“africano”. “Quem são os poetas dos quilombos?”, este questionou.

Buscamos uma escrita afinada com os problemas reais e concretos do nosso

tempo, consonante com as reivindicações quilombolas. Preencher a lacuna do conhecimento a

respeito do continente africano e educar para a diversidade, indo além da universalização

excludente, são tarefas emergenciais que precisam se fazer presentes nas escolas, nas ruas,

campos, construções. Porém, os donos dos meios de produção, a branquitude ou o patriarcado

resistem à diversidade, impondo barreiras, tendo como aparato o domínio das leis, revelado na

recusa do poder público de Balneário Camboriú em inserir as temáticas de gênero e

diversidade étnico-racial nos sistemas de ensino do Município.

E reforçamos as implicações do patriarcado quando pontuamos sobre a resistência

do poder à diversidade. Afinal, homens cis, héteros e brancos que compõem a maioria nos

poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Homens que comandaram e articularam a

expansão colonialista, escravizando corpos de homens e mulheres.

A proposta da pesquisa foi tratar sobre as questões imbricadas que envolviam

gênero, raça e classe, percebidas no protagonismo das mulheres da Comunidade Quilombola

do Morro do Boi. No entanto, enveredamo-nos por questões transversais a estas, entendendo

que a leitura dos significados das relações sociais não está fragmentada em nichos de

conhecimento. A “indisciplina acadêmica”, como sugeriu a Professora Maria Antonieta

Antonacci em seu curso nesta Instituição – PUC/SP. Além de temas transversais, também

pulamos os muros da metodologia da história, se é que eles existem, mania da racionalidade

em fragmentar o conhecimento.

Cabe dizer ainda que não escrevi este trabalho sozinha, represento e sou

representada por um grupo que, embebido dos problemas do tempo presente, busca através da

história e da academia desconstruir aquilo que chamei de “teias de significados que permitem

o sofrimento de aqueles e aquelas não detentores das mais variadas dimensões do poder”. A

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disputa é pelas memórias contra as invenções sobre o nosso passado.

Poetiza Conceição Evaristo em Vozes Mulheres:

A voz de minha filha

recorre todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje - o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

Sayonara Leodoro faz parte das novíssimas personagens que entram em cena, que

são as mulheres negras que escolhem o empoderamento como estratégia de luta e resistência.

Marilena Chauí, em seu prefácio à obra de Eder Sader Quando os novos personagens

entraram em cena questiona: “Por que sujeito novo?”, questão que ela mesma responde:

Antes de mais nada, porque criado pelos próprios movimentos sociais populares do

período: sua prática os põe como sujeitos sem que teorias prévias os houvessem

constituído ou designado. Em segundo lugar, porque se trata de um sujeito coletivo e

descentralizado, portanto, despojado das duas marcas que caracterizam o advento da

concepção burguesa da subjetividade: a individualidade solipsista ou monádica

como centro de onde partem ações livres e responsáveis e o sujeito como

consciência individual soberana de onde irradiam ideias e representações, postas

como objetos domináveis pelo intelecto. O novo sujeito é social; são os movimentos

sociais populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados,

passam a definir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas. Em

terceiro lugar, porque é um sujeito que, embora coletivo, não se apresenta como

portador da universalidade definida a partir de uma organização determinada que

operaria como centro, vetor e telos das ações sócio políticas e para a qual não

haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens da máquina organizadora.

No dia 18 de novembro de 2015 novas personagens entraram em cena, entraram

em cena marchando na capital do país, Brasília, a Marcha das Mulheres Negras. Os

significados da Marcha reverberam, reverberam hoje. Este texto foi escrito antes do

afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e do que ela representa da presidência do

Executivo Nacional, quando a oposição figurada nos partidos de direita e na grande mídia

arquitetou seu impedimento como presidenta. De modo que aqui cabem novas considerações,

problema dos historiadores do tempo presente.

Como a oposição poderia aceitar os/as descendentes das lavadeiras nos bancos

universitários? Como a oposição poderia aceitar a população preta e pobre com água, luz e

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energia elétrica? Como a oposição poderia aceitar as empregadas domésticas, para além dos

deveres, com direitos? Como a oposição poderia aceitar mulheres negras marchando em

Brasília? Como a oposição poderia aceitar Sayonara quebrando o ciclo das empregadas

domésticas? A difícil luta destas mulheres e da população quilombola narrada no capítulo

terceiro, agora, torna-se mais árdua, com mais obstáculos. Aqui finalizamos o texto, mas a

história continua com as próximas cenas.

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