caminhada - uccla.pt · E que diria o meu eu-adulto ... Gritarei Berrarei Matarei Não vou para...

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caminhada

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c a m i n h a d a

TÍTULO: CaminhadaAUTOR: Ovídio Martins1.a Edição: Casa dos Estudantes do Império.

Colecção de Autores Ultramarinos. Lisboa 1963Composição e impressão: Editorial Minerva. Lisboa2.a Edição: União das Cidades Capitais de LínguaPortuguesa (UCCLA)A presente edição reproduz integralmente o texto da1.a edição.Artes Finais da Capa: Judite CíliaComposição e Paginação: Fotocompográfica. Almada.Impressão: Printer Portuguesa. Mem Martins.

Esta edição destina-se a ser distribuída gratuitamente peloJornal SOL, não podendo ser vendida separadamente.Tiragem: 45 000Lisboa 2015Depósito Legal: 378 496/14

Apoios Institucionais:

COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

OVÍDIO MARTINS

c a m i n h a d a

L I S B O AMCMLXII

COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

SÉRIE LITERATURA

N.o 1 — Amor (Poemas, 1960) de M. AntónioN.o 2 — A Cidade e a Infância (Contos, 1960) de Luandino VieiraN.o 3 — Fuga (Poemas, 1960) de Arnaldo SantosN.o 4 — Poemas de Viriato da Cruz (1961)N.o 5 — Poemas de Circunstância, de António CardosoN.o 6 — Terra de Acácias Rubras, de Costa AndradeN.o 7 — Kissange, de Manuel LimaN.o 8 — Poemas de Agostinho Neto (1961)N.o 9 — Poemas de António Jacinto (1961)N.o 10 — Poesia de Alexandre Dáskalos (1961)N.o 11 — Poesia Angolana, de Tomaz Vieira da CruzN.o 12 — Diálogo, de Henrique Abranches

SÉRIE ETNOGRAFIA

N.o 1 — Cancioneiro Popular Angolano, (subsídio) de Gonzaga Lambo.

Para Meus Paise

Meus Irmãos

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n ã o m e a p r i s i o n e m o s g e s t o s

Não me aprisionem os gestosa criança ainda não desertou

Ainda sonho cavalgadas de estrelase danças lúbricas de floresem madrugadas azuise jardins suspensos de ouroe crianças aladas a brincare gargalhadas de prata.

Não me aprisionem os gestosque o mar não cabe num dedale meus gestos têm a sugestão do maro mistério das ondas do mara comunicabilidade do mar

Levem-me a Lógicafiquem com a Políticaroubem-me a Metafísicatirem-me a roupae deixem-me morrer de fome

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Porém não me aprisionem os gestosque uma ave sem asas não é ave

E que diria o meu eu-adultoao meu eu-criança— o único afinal —que sabe viver em sonho e poesia?

Ah por favornão me aprisionem os gestosque a criança em mim não desertou ainda.

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o ú n i c o i m p o s s í v e l

Para Baltazar Lopes

MordaçasA um Poeta?

Loucura!

E por que nãoFechar na mão uma estrelaO Universo num dedal?Era mais fácilEngolir o marExtinguir o brilho aos astros

MordaçasA um Poeta?

Absurdo!

E por que nãoParar o vento

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Travar todo o movimento?Era mais fácil deslocar montanhas

com uma florDesviar cursos de água

com um sorriso

MordaçasA um Poeta?

Não me façam rir!...

Experimentem primeiroDeixar de respirarOu rimar... mordaçasCom Liberdade

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f l a g e l a d o s d o v e n t o l e s t e

Para Manuel Lopes poetae romancista patrício

Nós somos os flagelados do Vento-Leste!

A nosso favornão houve campanhas de solidariedadenão se abriram os lares para nos abrigare não houve braços estendidos fraternalmente

para nós

Somos os flagelados do Vento-Leste!

O mar transmitiu-nos a sua perseverançaAprendemos com o vento a bailar na desgraçaAs cabras ensinaram-nos a comer pedras

para não perecermos

Somos os flagelados do Vente-Leste!

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Morremos e ressuscitamos todos os anospara desespero dos que nos impedem

a caminhadaTeimosamente continuamos de pé

num desafio aos deuses e aos homensE as estiagens já não nos metem medo

porque descobrimos a origem das coisas(quando pudermos!...)

Somos os flagelados do Vento-Leste!

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãosE as vozes solidárias que temos sempre

escutadoSão apenas

as vozes do marque nos salgou o sangue

as vozes do ventoque nos entranhou o ritmo do equilíbrio

e as vozes das nossas montanhasestranha e silenciosamente musicais

Nós somos os flagelados do Vento-Leste!

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t u a a u s ê n c i a

Paira no ar a tua ausênciae nas coisas um sentido de inquietaçãoHá em tudo uma inércia opressivae vagamente uma ideia de silêncioOs homens parecem fantochese as mulheres não as vejoa ideia de ti não me deixa vê-lasNão consigo concentrar-menervoso estou sempre a rodear o lápise a olhar as escadasna esperança de te ver descer(Não há dúvida de que tenho uma necessidade

absoluta de coisas belas)

e é por issoque sem timeu espírito não atinge grandezaTua presença ela sósão sugestões de incitamentoe é por isso que a cada instante

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espero ver-te descer as escadaspara trazeres ao meu nervosismo à minha

desconcentração

o remédio eficazda tua presença e beleza...

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i g n o t o d e o

Há mil anosque silenciosamente te espero

Há mil anosque das esquinas do tempoansiosamente te espreito

Há mil anosque no cadinho da vidaforjei o metal raro do meu querer-te

Há mil anos!

E silenciosamenteansiosamentecontinuo a esperar-tesem um queixumepela demora da tua vindana certeza de que ao chegaresa nossa uniãoserá tão íntimaque terá o mistériodas alturas sem estrelase a forçados vendavais vagabundos.

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r e c u p e r a ç ã o

Ah! Os vestígios d’oiroque persegui no teu rastroE a lamacom que me sujaste o corpo!A estradanão era suficientemente longae teu coraçãoestava deserto de estrelasSombras!Desde então pairam sombrassobre mimem revoluções de agoiroE meu espírito tropeçaem pedras de morteem tombos confusosde assemelhar-se a um bêbedoCortinas de fogonum apagar-se de deusesCrepúsculo de medoem lágrimascontra mim

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Teu sangueesqueceu-se de continuar vermelhoe morreram para tias auroras da vidaOs vestígios d’oiroque persegui no teu rastroperderam o solembrulharam-se na noiteChovam bençãosno meu coração de amanhãe risose cantosnos lábios das madrugadas

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s e c a

Árvoresde ramos arreganhadosa pingarem suor e lágrimasTerracalcinadaaté à exaustão

da angústia

Almassideradasaté o cerne

das raízesÁrvoressem carneTerrade fogoHomensbloqueados(espantosamente bloqueados)

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Irmãosno cataclismo

periódicoda falta de águaJá sem forçaspara mandarem

calaro mar

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p o e m a

Cobrirei de beijosteus olhos-anseios

e desfraldarei minha bandeiraQue voz me chama do fim da estradaQue luzes me acenam de mares que nem sei?Pairam no ar

certezas de batalhas— clarões quase —nos teus olhos

incendiados de vitóriasCobrirei de beijos

teus olhos-brasase te oferecerei um barco

berço de canções salgadasonde o mar e as vagas

soluçarão mistériosQue voz me chama do fim da estradaQue luzes me acenam de mares que nem sei?Minha bandeira és tu!E da dádiva dos teus lábiose da promessa do teu corpo

brotarão raízes líricasque me conduzirão ao triunfo

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p o e m a s a l g a d o

Eu nasci na ponta-de-praiaPor isso trago dentro de mim

todos os mares do mundo

Meu correio são as ondasque me trazem e levamrecados e segredos

E meus bilhetes(meus bilhetinhos de saudade)são suspiros salgadosque as sereias recolhemda crista das ondas

Nas conchas e búziosde todos os mares do mundoficaram encerradasminhas canções de amor

Que eu nasci na ponta-de-praiaPor isso trago dentro de mim

todos os mares do mundo

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c o m u n h ã o

Fecha os olhos moçae deixa vaguear o espírito pelas ondasO mar te diráaos teus ouvidos de encantadanão uma canção qualquermas a canção— a única —que jamais será repetidaFecha os olhos moçae deixa que o espírito das águasse irmane com o teuaté que sintas na bocao sabor a algas e a espumaFecha os olhos moçae deixa-te estar assim

nesse sonho de embalarem que o vaivém do maré o mensageiro ideal

das tuas esperanças(e das tuas angústias moça)O rochedo ao lado

olha-te com espanto

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no terror sem remédiode te ver petrificada

mesmo que o perfume das sereiasde todos os mares

cubram teu corpoescaldante de miragensFecha os olhos moçae deixa que eu te contemple assim

na tua pureza de sal...

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l a b i r i n t o

Eu ainda era noitee já sonhava madrugadasEu ainda era invernoe já sonhava primaverasEu ainda era botãoe já sonhava flores

Este todo o meu drama!

E se eu me perdiporque de mim me partià procura de mais-além

de que vale então viverSe indo com os outros me atrasoSe buscando ir mais além me perco!?

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a n t i - e v a s ã o

Ao camarada poetaJoão Vário

PedireiSuplicareiChorarei

Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chãoe prenderei nas mãos convulsaservas e pedras de sangue

Não vou para Pasárgada

GritareiBerrareiMatarei

Não vou para Pasárgada

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v o z p a t r í c i a

Sei lá de onde me chegaesta voz marítimaesmagada de contornosEm que meandros de salte perderamvoz minhabloqueada até o ultraje?Voz minhavoz de marportadora de segredosrenovadora de certezasNum dia lúcidoque não vem longemeu coraçãose abrirá em estrelaspara recebertua pureza

E terás a forçadas coisas libertas!

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da vida e da morte dos teus beijos

Se a morte tem que vir nos teus beijosQue venha mas devagarTambém eu sei andarSobre carvões acesos — meus desejosQue não é morte é vidaA morte assim vividaSorver até à renúnciaO vinho puro do teu corpo nuMorro em tiDás-me vida para retardar a morteE se vivo a morte cada instanteNos beijos letais da tua bocaÉ que é vida a morte que me trazesE é morte a vida que me ofertas

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p e d i d o d e p e r d ã o d i v i n o

Quando na noite de cansaçoo homem berroue o braço armou(não quis mais ser palhaço)Deus não se comoveu

Quando na noite sem estrelasa mulher uivouda dor que a levoudo pobre catre sem velasDeus não se mexeu

Mas quando na noite de fomea criancinha gemeue empalideceudesesperos sem nome

Deusnão quis mais ser DeusHumildementedesceu à terrae pediu perdãoaos homens de Sua criação...

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b r i n q u e d o d e l u x o

Esperar meu amanhãno acordar de cada manhãé meu brinquedo de luxoPor enquanto apenassegreda-me baixinho

uma certezaE agarro-me aos sonhos

e pedaços de madrugadasna angústia do até-que-enfim!Chovem estrelas em minha alma

saudosa de novas aurorasChoram luas atraiçoadas

das carícias prostituídasÓ novo canto

na boca dos poetasó única certeza

no coração dos humildesNosso brinquedo de luxo

é já a gargalhadados homens livres

a derramar-sepor todos os cantos da terra

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n o s t a l g i a

É qualquer coisa lá do fundo das geraçõesque te faz assim dançarmulher de Cabo Verde

Qualquer coisa que te segredacomovidamente

segredos de séculos

nos sons extintosde bárbaras melopeiasque ficaram pairando

E abres os olhos(espantada)

E apuras os ouvidos(espantada)

E recuas o corpo(espantada)

— teu espanto nostálgico!... —

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t e u s o l h o s

Nunca serão teus olhosuma concha esvaziadaPara lá do mistériodo seu brilho superficialhá sempre uma saudade-de-mara murmurar-lhe nas entranhasE quando um diajá não pudessem imitar

as estrelase os horizontes de sargaçosnada mais dissessem

às tuas pupilasnão seriam ainda teus olhosuma concha esvaziada:a saudade-de-marque lhe murmura nas entranhasviraria a pouco e poucoesse anseio líquidonuma canção de chuva

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n o r o m p e r d e 1 9 5 8

Eu hei-de estrangular os soluçosnum dia de espanto

e soltarei as âncoras— todas as âncoras —Eu hei-de transformar o pranto

em carícias de vidae soltarei os barcos— todos os barcos —E de olhos no futuroserenamentesolicitarei ao maro presente da sua constâncianas ilhas salgadas

de seu amornas ondas salgadas

de minha esperança

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a p a l a v r a q u e e u n ã o d i s s e

Não te dissea palavra libertadora

E o desesperodesenhou-se na tua face

o sorrisonão encontrou teus lábios

a esperançadesertou teus olhos

Deixei-tecom tua fraqueza

e não deiapoio às tuas lágrimas

...a estrela escorreu-te dos dedos...

Ó meu coraçãoque esqueceste o caminho

que levava ao portoó espírito meu

que perdeste o contactocom a boa estrada

Bastava a palavra libertadoramas minha boca se fechou

...e a estrela escorreu-te dos dedos...

Possa teu perdão impossívelservir a minha reabilitação

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u m a m a n h ã p r o m e t e u - m e

Há um grito de vidana manhã que surge

triunfanteda sua luta com a noiteE na criança que brincao sorriso

é um arranque para o futuroAquela menina que passa

leva nos olhoso esplendor de quem

marcou encontro à felicidadeE até aquele cachorrinhoa correr feito malucoatrás da bola de meiaé uma certeza no dia

que despontaSó em mim há tristezauma tristeza líquidade coqueiros à beira-mare de botes varados nas praiasindiferentes ao luar...uma saudade povoada

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de tamareiras e acáciase de velas acenando

de dentro da baíaMas arredo para longe

a melancoliae sorrio para a mensagem

desta manhã promissora:a de uma manhã diferenteem que a estiagem e a fomeserão más recordaçõese os soluços dos abandonados

nas furnas solitáriase o cansaço dos vagabundos

nas estradas sem donoe a voz rouca de aguardente

dos operários desempregadosnão serão mais que contos de fadas

para meter menino medo

e em que não haverátanta garganta ressequida

no meio de tanta água...

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m i n h a d o r

Sonhocom a manhã clara

de teus seiose rendo-me humildediante da verdade

do teu corpo nuIdear-teé ofertar-me carícias proibidasir beber feito outro

na fonte longínquada minha dor

E minha dor é teu silêncio!...

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a n o i t e d e o u r o

Na noite de ouroo Poeta cantou

Pegou no violãoe monologou uma morna

à beira do mar

Na noite de ouroo Poeta amou

Uma mulata descalçacom jeito de rainha

de um reino perdidocriou a poesia necessária

Na noite de ouroo Poeta chorou

Chorou os sonhosque o mar lhe não trouxe

Chorou a vidaque a mulata lhe não deu

Chorou o poemaque não chegou a escrever

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d e s a f i o

Zomba da mortequando dobrares a esquinaHá uma nota musical

no teu gestoDistribui e liberta-te!Fontes te esperam puraspara o mergulho baptismalAo dobrares a esquinaalça a voz e canta!

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p o e m a

Tua bocaé uma ideia de frutocolhido nos ramos de um vendavale nós dois iremos

num sonho de pétalasdescobrir o mar

das luzes perdidasTe amarei

mornamentenuma paisagem

de coqueirose te deporei gloriosaà sombra de bananeirasTeu corpoé fruto sonhadonum barco de folhas

dentro da baíae nós dois iremos

em leito de ondasdescobrir a praia

das noites luarentas

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d e s c o b e r t a

Vou sómas fortepela estrada segurado meu silêncioÉ que desabaram sobre mimas chuvas de oiroda tua mensagem incorpóreaó meu silêncio redimido!Não amigo agora nãonão me interrompasem meu olhar para dentro de mimneste meu acto de purificaçãoOutro dia simsolicitareie aceitareia tua ajudamas hoje tem paciência...Que descobria força silenciosado meu examinar-mena estrada segurado meu silênciona estrada largada minha purificação

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p a r a a l é m d o d e s e s p e r o

Para Carlos AlbertoMonteiro Leite

Para além do desespero...

Apenas a criançaNuma paisagem de nadaA sua boca não ri(Nunca soube

Que uma boca de criançaFoi feita para rir)

Os seus olhos não choram(Não há lágrimas para além do desespero)

Os seus pésNão correm atrás de borboletasE as suas mãosNão abrem covas na areia(Não há borboletas nem areia

Numa paisagem de nada)

Para além do desespero...

Também minha revoltaCom cadeados nos pulsos

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d e s e s p e r a n ç a

Cinco séculos depoisdo

achamento de Cabo Verde

Sol ou marChuva ou música

Sejas tu uma cadênciaou uma noite que se perdeu

Traz nos teus braçosa distância

que nos separado sonho impossível

Olhos cheios de secase de oceanos

Cheios de mornase de pouco milho

As promessas viraram cansaçoe já nem as luas acreditam

Sol ou marChuva ou música

Para vós as glórias do achamentoPara nós os sonhos em ampulhetas

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p o r q u ê ?

Por que seriaque tua faceresplandeceucom uma ideia de luaquando teu sorrisorecusou a noite?

Por que seriaque eu te sonheiainda mais que sonhoquando teu gestoferiu as trevas?

Por que seriaessa aurora de floresquando teu corpoatravessouessa noite de punhais?

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c h u v a e m c a b o v e r d e

Choveu

Festa na terraFesta nas Ilhas

Soluçam os violinos choram os violõesnos dedos rápidos dos tocadores

«Dança morenadança mulata

menininha sabe como vocês não tem»E elas sabinhas

dão co’as cadeirasdão co’as cadeiras

Choveu

Festa na terraFesta nas Ilhas

Já tem milho pa cachupaJá tem milho pa cuscus

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Nas ruas nos terreirospor toda banda

as mornas unem os paresnos bailes nacionais

Mornas e sambasmornas e marchasmornas mornadas

Choveu

Festa na terraFesta nas Ilhas

que cantam e dançame riem e choram de contentamentoSoluçam os violinos choram os violõesnos dedos rápidos dos tocadores

«Dança morenadança mulata

menininha sabe como vocês não tem»E elas sabinhas

dão co’as cadeirasdão co’as cadeirasdão co’as cadeiras

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i n m e m o r i a m d e B e l a r m i n od e n h ô T a l e f

Na hora derradeiraAmigomelhor vislumbrareia intenção oculta de teus passose a grandeza da tua estrelasuperará todos os brilhos possíveisNa hora derradeira— ó companheiro desaparecido! —escutarei o lamento das ondasque sobre ti se fecharamquando tentavas escapar à morte(Que no teu caminho sem regresso— última etapa da tua estrada de angústias —não te foi permitido fixar os pésna terra da promissão)Na hora derradeira— ó irmão sepultado nos mares da Argentina! —pedirei um lugarzinho ao pé de tipara ouvir da tua bocaenvoltas em névoaas palavras de desesperopela luta travada em vão

CAMINHO DA PERDIÇÃO

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c a m i n h o l o n g e

Caminho longe....

Caminho obrigadocaminho trilhadonos braços da fome

Caminho sem nomecaminho de marum violão a chorar

Caminho traidorcaminho da doró lenta agonia

Caminho sem diacaminho sem féRoças de S. Tomé

Caminho longe...

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a l e r t a

Cuidado Companheironão te percas nos acenos da Terra-Longe

Terra-Longe tem roçaRoça tem desespero

Que as ilusões de fartura da Terra-Longenão prendam teus passos

E sobretudo Companheiro sobretudonão deixes que te impinjam

a mentira do contratoNão há Terra-Longe

que valha as lágrimas do teu remorsoE nenhuma Terra-Longe

comporá de novoos destroços do teu mundo ultrajado

Cuidado Companheiro cuidadoVira a cabeça para o ladoe deixa perderem-se no mar

os acenos suspeitosTerra-Longe tem roçaRoça tem desespero

E nunca mais Companheironunca mais permitas

que os teus sonhos sejam escarnecidos

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s e r v i ç a l

Tu vais e eu ficomas nos acordes do teu violão

há a morna que perduraMeu e teu

é o poema que soluçasde olhos fixos no marNem tua

nem minhaé esta culpa

esta traiçãoao sonho que se esvaià esperança que não torna

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c o n s o l a n ç a

Ah nha’rmontchá ága correbe pa cara bóxetchá ága liviobe coraçon

Roça traiçoobe na bo certeza’l robobe saúde

robobe ligriarobobe cretcheu

so’l ca robobe bo violãopa bo podê fcá c’bo tristezaAh nhá’rmon

tchá ága correbe pa cara bóxetchá ága liviobe coraçon

Planta pê na bo terrac’dor ô c’prazerc’tchuva ô c’sol quente

(Bo terra ê quê bo terra!)E ’gora

cantáme ’li baxinna tchore de bo violãobo morte na terra-longe

Sem saúdeSem ligria

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Sem cretcheuAh nha’rmon

tchá ága correbe pa cara bóxetchá ága liviobe coraçon...

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c a n t a a m i g o

Canta AmigocantaDeixa que se espraie

no teu coração doridoa morna que acalentaCanta AmigocantaNo fundo da senzala

não tens melhor companheiroque a dor e uma cançãoCanta AmigocantaMas evita que o teu canto

sejam lágrimas sem remédioTua terra deixas

num soluçoe num soluço a recordasTuas lágrimas na Terra-Longe

têm que ser de esperança

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Canta Amigocantae põe no teu canto

o encantode qualquer crioula

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v o l t a r á s s e r v i ç a l

Bendito sejasserviçal caboverdianoque teimas em verpara além da prisãoSabes bemque para lá dos teus olhoshá a terra de Cabo-Verdeque espera por tiSe tu cantasé que ainda te abraça

a esperançae não morreu dentro de tio desejo de matar a morteBendito sejasserviçal caboverdianoNão deixes que tuas pálpebrasamorteçam na dorÉ preciso enrijá-laspara o dia do regressoQue voltarásnão numa manhã de nevoeirode morbidez alquebrada

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mas num dia de sol quenteébrio de saudade

da terra que ficousedento do perdão

da terra que entregastesòzinha quase nas mãos dos Cains

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a n o i t e d e s . t o m é

O mar já não se reflectenos nossos olhos

e as canções morreramnas gargantas

Há a noite de S. Tomé...

Os violões já não soluçamconfissões de amor

e os cretcheus não trocam beijosnas madrugadas

Há a noite de S. Tomé...

e homens vendidos que parteme bocas com fome atraiçoadas

As mornas já não aconchegama gente crioula

e as juras de amortêm um sabor a blasfémia

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Há a noite de S. Tomé

e homens que partem para a mortea confirmar uma vez maisa história de Abel e de Caim

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e m i g r a ç ã o

Silêncio Caboverdianos!

Choram irmãos nossosnas roças de S. Tomé

E há perigos e ameaçasna noite

grávida de punhais

Prepara o braçoserviçal!

Dos olhos do poetarolam lágrimas

cor de sangue

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q u e i x u m e

Tu minha terradá-me dedos novospara dedilhar a lira quebrada

e dá-me um espírito novopara apreciar a estrela que se apagou

Roubaram meu brinquedomeu brinquedo mais rico

aquele que sempre trouxerano mais fundo de mim

Depois disseram-meque era para meu bem

mas eu sei que não é verdadeDondê a esperança

que animava meu espíritonos momentos de crise

Dondê a esperançaque me dava forças

nos anos de secaRoubaram meu brinquedo(deixaram-me sem nada)

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Dá-me minha terradá-me dedos novospara dedilhar a lira quebrada

e dá-me um espírito novopara apreciar a estrela que se apagou

CAMIN CRIOL

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l i b e r d a d e

Vente sabiá más fôrtemar exaltámonte spriguiçá

Spia Cab’verde ta arguicretcheu

spiá bô torpe ta arri

Sol lumiá más cloreLua de nôte desmaiáe ’tê tchuva tchuvê

Spia Cab’verde ta arguicretcheu

da’l bô torpe ta arri

Morna v’rá más sabedança más pertódenês dia de Liberdade

Spia Cab’verde ta arguicretcheu

e nós coraçon ta arri

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n ô s m ô r t e

Quem ê q’morrêqond quel navio

desaparecêna mar de canal?

Nós tude morrê um c’zinha

Quem ê q’morrêqond quel bôtetcheu de pêscadorperdê na nôte?

Nós tude morrê um c’zinha

E quel carta de lutequem ê q’morrêqond tchgá noticiade Son T’mê

Nós tude morrê um c’zinha

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h o r a

Hora tita tchgánhas gente

Hora d’alvantáquel mon

de cendêquel luz

de gritáquel grite

que sô nôs sabê

Hora tita tchgánhas gente.

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n ô t a b á j u n t e

Bô ca devê parceme assimflor squiva ta tchorá bo sinaBô devê bem c’bô coraçom contentelua ta saltá na bos oi de mofina

Vida ê curte pa nó leva’l c’tristezae tchôre ca ta ’jdóne subi subidaCamin ê longe cretcheu, camin ê longeabrime bôs broce pa nô ganhá vida

Ah cretcheu, ó c’ma és camin ê longema c’nôs ’ligria e nôs morabezanô ta bá junte p’ês ’strada foramon na mon c’amor e c’certeza

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c a n t á n h a P o v e

Canta nha Povecantá vitóriaque ja bô t’ta sperásem inda bô oialCantá

dia que ta mata nôte’ligria que ta mata tristezamidje que ta mata fômetchuva que ta mata sede

Cantá nha Poveabri bôs broce pa Liberdadee bêjal moda um cretcheu

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c r e t c h e u

Calá, ca bô tchôra más’n ta tróbe um morninhaque ta dobe ’ligria e pazque ta pobe sorrise na boca

Calá ca bô tchora másnha amor ê forte carditáe nha violão ê más doceq’cónte de seréna ta pintiá

Calá ca bô tchora másbô ê morna morna ê bôe s’m perdebe mi era capazde perdê tine perdê nha vida.

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u m s p a d a n a m o n

Cobrime nha terrabtáme bô sombra de cima’m ta lvantá dia que forqond bô mestê de mim

Corpe q’ê froqueta joelhá depressaSpirte q’ê forteca tem midida

Cobrime nha terrabtáme bô sombra de cimamá pôme um spada na monpa dia qu’m alvantá.

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s o n e t r a n q u i l

Dormi bô sonetranquil

nês folha de bananêraTchá tempe passá

sem horaTchá hora passá

sem relôgeE qond bô cordá

ca bô squecêqu’m gardóbe bô sone

bô sone tranquilnês folha de bananêra

73

c o m p a r a ç o n

Bejôde um vezca ta squecideBoca de cretcheurosa cindide

Assim ê Liberdadecunchide êlca grade ôte côsaê moda mel

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b r i n c a d ê r a

Nôte sem strelaDor de cretcheuDia de solAmor más tcheu

Farol na marLuz de nha vidaNavio na terraMatáme corrida

Bô boca ê sabemoda goiabacabode de trá de

goiabêraBôs oi ê monsemoda nôs marnum nôte clore

de lua cheia

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c o n c i é n ç a

Tonte faca por ribatonte faca por bóxe

corpe ta cansódej’al ca podê más

Tranquilidadena hora de certezatrazême cretcheuconfiança na nôs terra

Tonte faca por ribatonte faca por bóxe

corpe qrê ftcháj’al ca podê más

Spirte forçodena dstine que nô qrêsem mêde de môrteque môrte ja nô tem

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’ n s a b ê l a !

’N sabê lase qzê bô ta pensáqond vente ta passáta bem caime na coraçon!

’N sabê lase qzê q’m ta pensáta spiá pa marta bá falóbe na coraçon!

’N sabê las’algum fada marcác’sê varinha de condondstine de nôs coraçon!

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u m r ’ b ê r a p a m a r

Tem um r’bêra ta corrê pa mar...R’bêra sem ága

má tcheu de dor e raivade desuspêre e agoniaEl ta tcheu de sperança inganódee de promessa inrolóde na fumeTem um r’bêra ta corrê pa mar

R’bêra sem ágama’l tem sangue

Sangue daquês que morrê na terra-longena traboi scróve

Sangue daquês q’caí de rotchapa ca morrê de fôme

Sangue d’irmon que matá irmonpa inganá és dstine de sécadstine qu’ês marrónemá dstine que nó ca qrê

Tem um r’bêra ta corrê pa mar...

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d s t i n e

És bô cabêl cumprideés dos oi de bossaés boquinha doce

Ontenha tristeza

Hojenha trublaçonnha môrte

hm dês dia

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m o r a b e z a

’M tá gostá de bô serum spêce de porte d’abrigueQond tempôral b’tasse mim

dum conte pa ote’m tá tem certézana bô morabéza:

dôs bróce quente pa quecêmedôs oi monse pa serenómee um boca doce pa calentóme