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TÍTULO: CaminhadaAUTOR: Ovídio Martins1.a Edição: Casa dos Estudantes do Império.
Colecção de Autores Ultramarinos. Lisboa 1963Composição e impressão: Editorial Minerva. Lisboa2.a Edição: União das Cidades Capitais de LínguaPortuguesa (UCCLA)A presente edição reproduz integralmente o texto da1.a edição.Artes Finais da Capa: Judite CíliaComposição e Paginação: Fotocompográfica. Almada.Impressão: Printer Portuguesa. Mem Martins.
Esta edição destina-se a ser distribuída gratuitamente peloJornal SOL, não podendo ser vendida separadamente.Tiragem: 45 000Lisboa 2015Depósito Legal: 378 496/14
Apoios Institucionais:
COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS
SÉRIE LITERATURA
N.o 1 — Amor (Poemas, 1960) de M. AntónioN.o 2 — A Cidade e a Infância (Contos, 1960) de Luandino VieiraN.o 3 — Fuga (Poemas, 1960) de Arnaldo SantosN.o 4 — Poemas de Viriato da Cruz (1961)N.o 5 — Poemas de Circunstância, de António CardosoN.o 6 — Terra de Acácias Rubras, de Costa AndradeN.o 7 — Kissange, de Manuel LimaN.o 8 — Poemas de Agostinho Neto (1961)N.o 9 — Poemas de António Jacinto (1961)N.o 10 — Poesia de Alexandre Dáskalos (1961)N.o 11 — Poesia Angolana, de Tomaz Vieira da CruzN.o 12 — Diálogo, de Henrique Abranches
SÉRIE ETNOGRAFIA
N.o 1 — Cancioneiro Popular Angolano, (subsídio) de Gonzaga Lambo.
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n ã o m e a p r i s i o n e m o s g e s t o s
Não me aprisionem os gestosa criança ainda não desertou
Ainda sonho cavalgadas de estrelase danças lúbricas de floresem madrugadas azuise jardins suspensos de ouroe crianças aladas a brincare gargalhadas de prata.
Não me aprisionem os gestosque o mar não cabe num dedale meus gestos têm a sugestão do maro mistério das ondas do mara comunicabilidade do mar
Levem-me a Lógicafiquem com a Políticaroubem-me a Metafísicatirem-me a roupae deixem-me morrer de fome
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Porém não me aprisionem os gestosque uma ave sem asas não é ave
E que diria o meu eu-adultoao meu eu-criança— o único afinal —que sabe viver em sonho e poesia?
Ah por favornão me aprisionem os gestosque a criança em mim não desertou ainda.
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o ú n i c o i m p o s s í v e l
Para Baltazar Lopes
MordaçasA um Poeta?
Loucura!
E por que nãoFechar na mão uma estrelaO Universo num dedal?Era mais fácilEngolir o marExtinguir o brilho aos astros
MordaçasA um Poeta?
Absurdo!
E por que nãoParar o vento
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Travar todo o movimento?Era mais fácil deslocar montanhas
com uma florDesviar cursos de água
com um sorriso
MordaçasA um Poeta?
Não me façam rir!...
Experimentem primeiroDeixar de respirarOu rimar... mordaçasCom Liberdade
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f l a g e l a d o s d o v e n t o l e s t e
Para Manuel Lopes poetae romancista patrício
Nós somos os flagelados do Vento-Leste!
A nosso favornão houve campanhas de solidariedadenão se abriram os lares para nos abrigare não houve braços estendidos fraternalmente
para nós
Somos os flagelados do Vento-Leste!
O mar transmitiu-nos a sua perseverançaAprendemos com o vento a bailar na desgraçaAs cabras ensinaram-nos a comer pedras
para não perecermos
Somos os flagelados do Vente-Leste!
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Morremos e ressuscitamos todos os anospara desespero dos que nos impedem
a caminhadaTeimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homensE as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas(quando pudermos!...)
Somos os flagelados do Vento-Leste!
Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãosE as vozes solidárias que temos sempre
escutadoSão apenas
as vozes do marque nos salgou o sangue
as vozes do ventoque nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhasestranha e silenciosamente musicais
Nós somos os flagelados do Vento-Leste!
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t u a a u s ê n c i a
Paira no ar a tua ausênciae nas coisas um sentido de inquietaçãoHá em tudo uma inércia opressivae vagamente uma ideia de silêncioOs homens parecem fantochese as mulheres não as vejoa ideia de ti não me deixa vê-lasNão consigo concentrar-menervoso estou sempre a rodear o lápise a olhar as escadasna esperança de te ver descer(Não há dúvida de que tenho uma necessidade
absoluta de coisas belas)
e é por issoque sem timeu espírito não atinge grandezaTua presença ela sósão sugestões de incitamentoe é por isso que a cada instante
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espero ver-te descer as escadaspara trazeres ao meu nervosismo à minha
desconcentração
o remédio eficazda tua presença e beleza...
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i g n o t o d e o
Há mil anosque silenciosamente te espero
Há mil anosque das esquinas do tempoansiosamente te espreito
Há mil anosque no cadinho da vidaforjei o metal raro do meu querer-te
Há mil anos!
E silenciosamenteansiosamentecontinuo a esperar-tesem um queixumepela demora da tua vindana certeza de que ao chegaresa nossa uniãoserá tão íntimaque terá o mistériodas alturas sem estrelase a forçados vendavais vagabundos.
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r e c u p e r a ç ã o
Ah! Os vestígios d’oiroque persegui no teu rastroE a lamacom que me sujaste o corpo!A estradanão era suficientemente longae teu coraçãoestava deserto de estrelasSombras!Desde então pairam sombrassobre mimem revoluções de agoiroE meu espírito tropeçaem pedras de morteem tombos confusosde assemelhar-se a um bêbedoCortinas de fogonum apagar-se de deusesCrepúsculo de medoem lágrimascontra mim
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Teu sangueesqueceu-se de continuar vermelhoe morreram para tias auroras da vidaOs vestígios d’oiroque persegui no teu rastroperderam o solembrulharam-se na noiteChovam bençãosno meu coração de amanhãe risose cantosnos lábios das madrugadas
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s e c a
Árvoresde ramos arreganhadosa pingarem suor e lágrimasTerracalcinadaaté à exaustão
da angústia
Almassideradasaté o cerne
das raízesÁrvoressem carneTerrade fogoHomensbloqueados(espantosamente bloqueados)
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p o e m a
Cobrirei de beijosteus olhos-anseios
e desfraldarei minha bandeiraQue voz me chama do fim da estradaQue luzes me acenam de mares que nem sei?Pairam no ar
certezas de batalhas— clarões quase —nos teus olhos
incendiados de vitóriasCobrirei de beijos
teus olhos-brasase te oferecerei um barco
berço de canções salgadasonde o mar e as vagas
soluçarão mistériosQue voz me chama do fim da estradaQue luzes me acenam de mares que nem sei?Minha bandeira és tu!E da dádiva dos teus lábiose da promessa do teu corpo
brotarão raízes líricasque me conduzirão ao triunfo
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p o e m a s a l g a d o
Eu nasci na ponta-de-praiaPor isso trago dentro de mim
todos os mares do mundo
Meu correio são as ondasque me trazem e levamrecados e segredos
E meus bilhetes(meus bilhetinhos de saudade)são suspiros salgadosque as sereias recolhemda crista das ondas
Nas conchas e búziosde todos os mares do mundoficaram encerradasminhas canções de amor
Que eu nasci na ponta-de-praiaPor isso trago dentro de mim
todos os mares do mundo
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c o m u n h ã o
Fecha os olhos moçae deixa vaguear o espírito pelas ondasO mar te diráaos teus ouvidos de encantadanão uma canção qualquermas a canção— a única —que jamais será repetidaFecha os olhos moçae deixa que o espírito das águasse irmane com o teuaté que sintas na bocao sabor a algas e a espumaFecha os olhos moçae deixa-te estar assim
nesse sonho de embalarem que o vaivém do maré o mensageiro ideal
das tuas esperanças(e das tuas angústias moça)O rochedo ao lado
olha-te com espanto
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no terror sem remédiode te ver petrificada
mesmo que o perfume das sereiasde todos os mares
cubram teu corpoescaldante de miragensFecha os olhos moçae deixa que eu te contemple assim
na tua pureza de sal...
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l a b i r i n t o
Eu ainda era noitee já sonhava madrugadasEu ainda era invernoe já sonhava primaverasEu ainda era botãoe já sonhava flores
Este todo o meu drama!
E se eu me perdiporque de mim me partià procura de mais-além
de que vale então viverSe indo com os outros me atrasoSe buscando ir mais além me perco!?
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a n t i - e v a s ã o
Ao camarada poetaJoão Vário
PedireiSuplicareiChorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chãoe prenderei nas mãos convulsaservas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
GritareiBerrareiMatarei
Não vou para Pasárgada
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v o z p a t r í c i a
Sei lá de onde me chegaesta voz marítimaesmagada de contornosEm que meandros de salte perderamvoz minhabloqueada até o ultraje?Voz minhavoz de marportadora de segredosrenovadora de certezasNum dia lúcidoque não vem longemeu coraçãose abrirá em estrelaspara recebertua pureza
E terás a forçadas coisas libertas!
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da vida e da morte dos teus beijos
Se a morte tem que vir nos teus beijosQue venha mas devagarTambém eu sei andarSobre carvões acesos — meus desejosQue não é morte é vidaA morte assim vividaSorver até à renúnciaO vinho puro do teu corpo nuMorro em tiDás-me vida para retardar a morteE se vivo a morte cada instanteNos beijos letais da tua bocaÉ que é vida a morte que me trazesE é morte a vida que me ofertas
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p e d i d o d e p e r d ã o d i v i n o
Quando na noite de cansaçoo homem berroue o braço armou(não quis mais ser palhaço)Deus não se comoveu
Quando na noite sem estrelasa mulher uivouda dor que a levoudo pobre catre sem velasDeus não se mexeu
Mas quando na noite de fomea criancinha gemeue empalideceudesesperos sem nome
Deusnão quis mais ser DeusHumildementedesceu à terrae pediu perdãoaos homens de Sua criação...
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b r i n q u e d o d e l u x o
Esperar meu amanhãno acordar de cada manhãé meu brinquedo de luxoPor enquanto apenassegreda-me baixinho
uma certezaE agarro-me aos sonhos
e pedaços de madrugadasna angústia do até-que-enfim!Chovem estrelas em minha alma
saudosa de novas aurorasChoram luas atraiçoadas
das carícias prostituídasÓ novo canto
na boca dos poetasó única certeza
no coração dos humildesNosso brinquedo de luxo
é já a gargalhadados homens livres
a derramar-sepor todos os cantos da terra
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n o s t a l g i a
É qualquer coisa lá do fundo das geraçõesque te faz assim dançarmulher de Cabo Verde
Qualquer coisa que te segredacomovidamente
segredos de séculos
nos sons extintosde bárbaras melopeiasque ficaram pairando
E abres os olhos(espantada)
E apuras os ouvidos(espantada)
E recuas o corpo(espantada)
— teu espanto nostálgico!... —
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t e u s o l h o s
Nunca serão teus olhosuma concha esvaziadaPara lá do mistériodo seu brilho superficialhá sempre uma saudade-de-mara murmurar-lhe nas entranhasE quando um diajá não pudessem imitar
as estrelase os horizontes de sargaçosnada mais dissessem
às tuas pupilasnão seriam ainda teus olhosuma concha esvaziada:a saudade-de-marque lhe murmura nas entranhasviraria a pouco e poucoesse anseio líquidonuma canção de chuva
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n o r o m p e r d e 1 9 5 8
Eu hei-de estrangular os soluçosnum dia de espanto
e soltarei as âncoras— todas as âncoras —Eu hei-de transformar o pranto
em carícias de vidae soltarei os barcos— todos os barcos —E de olhos no futuroserenamentesolicitarei ao maro presente da sua constâncianas ilhas salgadas
de seu amornas ondas salgadas
de minha esperança
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a p a l a v r a q u e e u n ã o d i s s e
Não te dissea palavra libertadora
E o desesperodesenhou-se na tua face
o sorrisonão encontrou teus lábios
a esperançadesertou teus olhos
Deixei-tecom tua fraqueza
e não deiapoio às tuas lágrimas
...a estrela escorreu-te dos dedos...
Ó meu coraçãoque esqueceste o caminho
que levava ao portoó espírito meu
que perdeste o contactocom a boa estrada
Bastava a palavra libertadoramas minha boca se fechou
...e a estrela escorreu-te dos dedos...
Possa teu perdão impossívelservir a minha reabilitação
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u m a m a n h ã p r o m e t e u - m e
Há um grito de vidana manhã que surge
triunfanteda sua luta com a noiteE na criança que brincao sorriso
é um arranque para o futuroAquela menina que passa
leva nos olhoso esplendor de quem
marcou encontro à felicidadeE até aquele cachorrinhoa correr feito malucoatrás da bola de meiaé uma certeza no dia
que despontaSó em mim há tristezauma tristeza líquidade coqueiros à beira-mare de botes varados nas praiasindiferentes ao luar...uma saudade povoada
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de tamareiras e acáciase de velas acenando
de dentro da baíaMas arredo para longe
a melancoliae sorrio para a mensagem
desta manhã promissora:a de uma manhã diferenteem que a estiagem e a fomeserão más recordaçõese os soluços dos abandonados
nas furnas solitáriase o cansaço dos vagabundos
nas estradas sem donoe a voz rouca de aguardente
dos operários desempregadosnão serão mais que contos de fadas
para meter menino medo
e em que não haverátanta garganta ressequida
no meio de tanta água...
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m i n h a d o r
Sonhocom a manhã clara
de teus seiose rendo-me humildediante da verdade
do teu corpo nuIdear-teé ofertar-me carícias proibidasir beber feito outro
na fonte longínquada minha dor
E minha dor é teu silêncio!...
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a n o i t e d e o u r o
Na noite de ouroo Poeta cantou
Pegou no violãoe monologou uma morna
à beira do mar
Na noite de ouroo Poeta amou
Uma mulata descalçacom jeito de rainha
de um reino perdidocriou a poesia necessária
Na noite de ouroo Poeta chorou
Chorou os sonhosque o mar lhe não trouxe
Chorou a vidaque a mulata lhe não deu
Chorou o poemaque não chegou a escrever
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d e s a f i o
Zomba da mortequando dobrares a esquinaHá uma nota musical
no teu gestoDistribui e liberta-te!Fontes te esperam puraspara o mergulho baptismalAo dobrares a esquinaalça a voz e canta!
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p o e m a
Tua bocaé uma ideia de frutocolhido nos ramos de um vendavale nós dois iremos
num sonho de pétalasdescobrir o mar
das luzes perdidasTe amarei
mornamentenuma paisagem
de coqueirose te deporei gloriosaà sombra de bananeirasTeu corpoé fruto sonhadonum barco de folhas
dentro da baíae nós dois iremos
em leito de ondasdescobrir a praia
das noites luarentas
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d e s c o b e r t a
Vou sómas fortepela estrada segurado meu silêncioÉ que desabaram sobre mimas chuvas de oiroda tua mensagem incorpóreaó meu silêncio redimido!Não amigo agora nãonão me interrompasem meu olhar para dentro de mimneste meu acto de purificaçãoOutro dia simsolicitareie aceitareia tua ajudamas hoje tem paciência...Que descobria força silenciosado meu examinar-mena estrada segurado meu silênciona estrada largada minha purificação
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p a r a a l é m d o d e s e s p e r o
Para Carlos AlbertoMonteiro Leite
Para além do desespero...
Apenas a criançaNuma paisagem de nadaA sua boca não ri(Nunca soube
Que uma boca de criançaFoi feita para rir)
Os seus olhos não choram(Não há lágrimas para além do desespero)
Os seus pésNão correm atrás de borboletasE as suas mãosNão abrem covas na areia(Não há borboletas nem areia
Numa paisagem de nada)
Para além do desespero...
Também minha revoltaCom cadeados nos pulsos
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d e s e s p e r a n ç a
Cinco séculos depoisdo
achamento de Cabo Verde
Sol ou marChuva ou música
Sejas tu uma cadênciaou uma noite que se perdeu
Traz nos teus braçosa distância
que nos separado sonho impossível
Olhos cheios de secase de oceanos
Cheios de mornase de pouco milho
As promessas viraram cansaçoe já nem as luas acreditam
Sol ou marChuva ou música
Para vós as glórias do achamentoPara nós os sonhos em ampulhetas
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p o r q u ê ?
Por que seriaque tua faceresplandeceucom uma ideia de luaquando teu sorrisorecusou a noite?
Por que seriaque eu te sonheiainda mais que sonhoquando teu gestoferiu as trevas?
Por que seriaessa aurora de floresquando teu corpoatravessouessa noite de punhais?
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c h u v a e m c a b o v e r d e
Choveu
Festa na terraFesta nas Ilhas
Soluçam os violinos choram os violõesnos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morenadança mulata
menininha sabe como vocês não tem»E elas sabinhas
dão co’as cadeirasdão co’as cadeiras
Choveu
Festa na terraFesta nas Ilhas
Já tem milho pa cachupaJá tem milho pa cuscus
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Nas ruas nos terreirospor toda banda
as mornas unem os paresnos bailes nacionais
Mornas e sambasmornas e marchasmornas mornadas
Choveu
Festa na terraFesta nas Ilhas
que cantam e dançame riem e choram de contentamentoSoluçam os violinos choram os violõesnos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morenadança mulata
menininha sabe como vocês não tem»E elas sabinhas
dão co’as cadeirasdão co’as cadeirasdão co’as cadeiras
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i n m e m o r i a m d e B e l a r m i n od e n h ô T a l e f
Na hora derradeiraAmigomelhor vislumbrareia intenção oculta de teus passose a grandeza da tua estrelasuperará todos os brilhos possíveisNa hora derradeira— ó companheiro desaparecido! —escutarei o lamento das ondasque sobre ti se fecharamquando tentavas escapar à morte(Que no teu caminho sem regresso— última etapa da tua estrada de angústias —não te foi permitido fixar os pésna terra da promissão)Na hora derradeira— ó irmão sepultado nos mares da Argentina! —pedirei um lugarzinho ao pé de tipara ouvir da tua bocaenvoltas em névoaas palavras de desesperopela luta travada em vão
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c a m i n h o l o n g e
Caminho longe....
Caminho obrigadocaminho trilhadonos braços da fome
Caminho sem nomecaminho de marum violão a chorar
Caminho traidorcaminho da doró lenta agonia
Caminho sem diacaminho sem féRoças de S. Tomé
Caminho longe...
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a l e r t a
Cuidado Companheironão te percas nos acenos da Terra-Longe
Terra-Longe tem roçaRoça tem desespero
Que as ilusões de fartura da Terra-Longenão prendam teus passos
E sobretudo Companheiro sobretudonão deixes que te impinjam
a mentira do contratoNão há Terra-Longe
que valha as lágrimas do teu remorsoE nenhuma Terra-Longe
comporá de novoos destroços do teu mundo ultrajado
Cuidado Companheiro cuidadoVira a cabeça para o ladoe deixa perderem-se no mar
os acenos suspeitosTerra-Longe tem roçaRoça tem desespero
E nunca mais Companheironunca mais permitas
que os teus sonhos sejam escarnecidos
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s e r v i ç a l
Tu vais e eu ficomas nos acordes do teu violão
há a morna que perduraMeu e teu
é o poema que soluçasde olhos fixos no marNem tua
nem minhaé esta culpa
esta traiçãoao sonho que se esvaià esperança que não torna
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c o n s o l a n ç a
Ah nha’rmontchá ága correbe pa cara bóxetchá ága liviobe coraçon
Roça traiçoobe na bo certeza’l robobe saúde
robobe ligriarobobe cretcheu
so’l ca robobe bo violãopa bo podê fcá c’bo tristezaAh nhá’rmon
tchá ága correbe pa cara bóxetchá ága liviobe coraçon
Planta pê na bo terrac’dor ô c’prazerc’tchuva ô c’sol quente
(Bo terra ê quê bo terra!)E ’gora
cantáme ’li baxinna tchore de bo violãobo morte na terra-longe
Sem saúdeSem ligria
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c a n t a a m i g o
Canta AmigocantaDeixa que se espraie
no teu coração doridoa morna que acalentaCanta AmigocantaNo fundo da senzala
não tens melhor companheiroque a dor e uma cançãoCanta AmigocantaMas evita que o teu canto
sejam lágrimas sem remédioTua terra deixas
num soluçoe num soluço a recordasTuas lágrimas na Terra-Longe
têm que ser de esperança
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v o l t a r á s s e r v i ç a l
Bendito sejasserviçal caboverdianoque teimas em verpara além da prisãoSabes bemque para lá dos teus olhoshá a terra de Cabo-Verdeque espera por tiSe tu cantasé que ainda te abraça
a esperançae não morreu dentro de tio desejo de matar a morteBendito sejasserviçal caboverdianoNão deixes que tuas pálpebrasamorteçam na dorÉ preciso enrijá-laspara o dia do regressoQue voltarásnão numa manhã de nevoeirode morbidez alquebrada
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mas num dia de sol quenteébrio de saudade
da terra que ficousedento do perdão
da terra que entregastesòzinha quase nas mãos dos Cains
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a n o i t e d e s . t o m é
O mar já não se reflectenos nossos olhos
e as canções morreramnas gargantas
Há a noite de S. Tomé...
Os violões já não soluçamconfissões de amor
e os cretcheus não trocam beijosnas madrugadas
Há a noite de S. Tomé...
e homens vendidos que parteme bocas com fome atraiçoadas
As mornas já não aconchegama gente crioula
e as juras de amortêm um sabor a blasfémia
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Há a noite de S. Tomé
e homens que partem para a mortea confirmar uma vez maisa história de Abel e de Caim
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e m i g r a ç ã o
Silêncio Caboverdianos!
Choram irmãos nossosnas roças de S. Tomé
E há perigos e ameaçasna noite
grávida de punhais
Prepara o braçoserviçal!
Dos olhos do poetarolam lágrimas
cor de sangue
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q u e i x u m e
Tu minha terradá-me dedos novospara dedilhar a lira quebrada
e dá-me um espírito novopara apreciar a estrela que se apagou
Roubaram meu brinquedomeu brinquedo mais rico
aquele que sempre trouxerano mais fundo de mim
Depois disseram-meque era para meu bem
mas eu sei que não é verdadeDondê a esperança
que animava meu espíritonos momentos de crise
Dondê a esperançaque me dava forças
nos anos de secaRoubaram meu brinquedo(deixaram-me sem nada)
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Dá-me minha terradá-me dedos novospara dedilhar a lira quebrada
e dá-me um espírito novopara apreciar a estrela que se apagou
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l i b e r d a d e
Vente sabiá más fôrtemar exaltámonte spriguiçá
Spia Cab’verde ta arguicretcheu
spiá bô torpe ta arri
Sol lumiá más cloreLua de nôte desmaiáe ’tê tchuva tchuvê
Spia Cab’verde ta arguicretcheu
da’l bô torpe ta arri
Morna v’rá más sabedança más pertódenês dia de Liberdade
Spia Cab’verde ta arguicretcheu
e nós coraçon ta arri
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n ô s m ô r t e
Quem ê q’morrêqond quel navio
desaparecêna mar de canal?
Nós tude morrê um c’zinha
Quem ê q’morrêqond quel bôtetcheu de pêscadorperdê na nôte?
Nós tude morrê um c’zinha
E quel carta de lutequem ê q’morrêqond tchgá noticiade Son T’mê
Nós tude morrê um c’zinha
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h o r a
Hora tita tchgánhas gente
Hora d’alvantáquel mon
de cendêquel luz
de gritáquel grite
que sô nôs sabê
Hora tita tchgánhas gente.
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n ô t a b á j u n t e
Bô ca devê parceme assimflor squiva ta tchorá bo sinaBô devê bem c’bô coraçom contentelua ta saltá na bos oi de mofina
Vida ê curte pa nó leva’l c’tristezae tchôre ca ta ’jdóne subi subidaCamin ê longe cretcheu, camin ê longeabrime bôs broce pa nô ganhá vida
Ah cretcheu, ó c’ma és camin ê longema c’nôs ’ligria e nôs morabezanô ta bá junte p’ês ’strada foramon na mon c’amor e c’certeza
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c a n t á n h a P o v e
Canta nha Povecantá vitóriaque ja bô t’ta sperásem inda bô oialCantá
dia que ta mata nôte’ligria que ta mata tristezamidje que ta mata fômetchuva que ta mata sede
Cantá nha Poveabri bôs broce pa Liberdadee bêjal moda um cretcheu
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c r e t c h e u
Calá, ca bô tchôra más’n ta tróbe um morninhaque ta dobe ’ligria e pazque ta pobe sorrise na boca
Calá ca bô tchora másnha amor ê forte carditáe nha violão ê más doceq’cónte de seréna ta pintiá
Calá ca bô tchora másbô ê morna morna ê bôe s’m perdebe mi era capazde perdê tine perdê nha vida.
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u m s p a d a n a m o n
Cobrime nha terrabtáme bô sombra de cima’m ta lvantá dia que forqond bô mestê de mim
Corpe q’ê froqueta joelhá depressaSpirte q’ê forteca tem midida
Cobrime nha terrabtáme bô sombra de cimamá pôme um spada na monpa dia qu’m alvantá.
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s o n e t r a n q u i l
Dormi bô sonetranquil
nês folha de bananêraTchá tempe passá
sem horaTchá hora passá
sem relôgeE qond bô cordá
ca bô squecêqu’m gardóbe bô sone
bô sone tranquilnês folha de bananêra
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c o m p a r a ç o n
Bejôde um vezca ta squecideBoca de cretcheurosa cindide
Assim ê Liberdadecunchide êlca grade ôte côsaê moda mel
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b r i n c a d ê r a
Nôte sem strelaDor de cretcheuDia de solAmor más tcheu
Farol na marLuz de nha vidaNavio na terraMatáme corrida
Bô boca ê sabemoda goiabacabode de trá de
goiabêraBôs oi ê monsemoda nôs marnum nôte clore
de lua cheia
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c o n c i é n ç a
Tonte faca por ribatonte faca por bóxe
corpe ta cansódej’al ca podê más
Tranquilidadena hora de certezatrazême cretcheuconfiança na nôs terra
Tonte faca por ribatonte faca por bóxe
corpe qrê ftcháj’al ca podê más
Spirte forçodena dstine que nô qrêsem mêde de môrteque môrte ja nô tem
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’ n s a b ê l a !
’N sabê lase qzê bô ta pensáqond vente ta passáta bem caime na coraçon!
’N sabê lase qzê q’m ta pensáta spiá pa marta bá falóbe na coraçon!
’N sabê las’algum fada marcác’sê varinha de condondstine de nôs coraçon!
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u m r ’ b ê r a p a m a r
Tem um r’bêra ta corrê pa mar...R’bêra sem ága
má tcheu de dor e raivade desuspêre e agoniaEl ta tcheu de sperança inganódee de promessa inrolóde na fumeTem um r’bêra ta corrê pa mar
R’bêra sem ágama’l tem sangue
Sangue daquês que morrê na terra-longena traboi scróve
Sangue daquês q’caí de rotchapa ca morrê de fôme
Sangue d’irmon que matá irmonpa inganá és dstine de sécadstine qu’ês marrónemá dstine que nó ca qrê
Tem um r’bêra ta corrê pa mar...
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d s t i n e
És bô cabêl cumprideés dos oi de bossaés boquinha doce
Ontenha tristeza
Hojenha trublaçonnha môrte
hm dês dia
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m o r a b e z a
’M tá gostá de bô serum spêce de porte d’abrigueQond tempôral b’tasse mim
dum conte pa ote’m tá tem certézana bô morabéza:
dôs bróce quente pa quecêmedôs oi monse pa serenómee um boca doce pa calentóme