Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

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Uma jovem pioneira, um forte índio lakota e uma terra onde os dois precisam começar um legado O índio bateu no peito com a mão fechada e repetiu: Conhecer Deus aqui. Abrindo a mão, tocou a têmpora: Precisar Deus aqui. Missionário fala esse livro ensinar Deus, Você ensinar. Capturada por um sioux lakota, numa campina do Nebraska, Jesse King se perguntava como iria adaptar-se à vida entre os índios: Mas como ela ora por uma fé sustentadora, descobre a misericórdia compassiva de Deus em sua amizade com uma índia e em seu amor pelo valente sioux, Cavalga o Vento. Encontrando uma paz inesperada e um senso de pertencer à tribo, Jesse aprende que os sioux lakotas têm uma linda cultura. E ao aprender a amar essa cultura, torna-se para sempre dividida entre dois mundos. Este livro é uma narrativa extraordinária de uma pioneira que ama, sofre e triunfa em sua fé. Caminhando nas Chamas leva você de um carroção na campina a uma tenda, de um forte na fronteira a uma nova capital do estado em crescimento. Primeiro de uma série, Caminhando nas Chamas é uma linda e sensível história de amor, bem como uma aventura emocionante.

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Uma jovem pioneira, um forte índio lakota e uma terra onde os dois precisam

começar um legado

O índio bateu no peito com a mão fechada e repetiu: — Conhecer Deus aqui. —

Abrindo a mão, tocou a têmpora: — Precisar Deus aqui. Missionário fala esse livro ensinar

Deus, Você ensinar.

Capturada por um sioux lakota, numa campina do Nebraska, Jesse King se

perguntava como iria adaptar-se à vida entre os índios: Mas como ela ora por uma fé

sustentadora, descobre a misericórdia compassiva de Deus em sua amizade com uma

índia e em seu amor pelo valente sioux, Cavalga o Vento.

Encontrando uma paz inesperada e um senso de pertencer à tribo, Jesse aprende

que os sioux lakotas têm uma linda cultura. E ao aprender a amar essa cultura, torna-se

para sempre dividida entre dois mundos.

Este livro é uma narrativa extraordinária de uma pioneira que ama, sofre e triunfa em

sua fé. Caminhando nas Chamas leva você de um carroção na campina a uma tenda, de

um forte na fronteira a uma nova capital do estado em crescimento.

Primeiro de uma série, Caminhando nas Chamas é uma linda e sensível história de

amor, bem como uma aventura emocionante.

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Disponibilização e Revisão: Marisa Helena

Digitalização: Marina

Copyright © 1996 de Stephanie Grace Whitson

Título do original em inglês: WALKS THE FIRE

Tradução: Elaine Sant'Anna

Editora Candeia.

Prólogo

Lisbeth olhou fixamente, com dúvida, a colcha de retalhos que caiu ao chão, do colo

de sua mãe. Estudou as mãos que a seguravam, percebendo pela primeira vez como o

tempo as tinha envelhecido. Rugas profundas aumentavam ainda mais cada junta

inchada. O que um dia tinha sido uma pequena quantidade de sardas tornara-se manchas

escuras. — Manchas da idade — mamãe as chamava. As mãos que haviam sempre

trabalhado com deliberada calma agora contorciam-se nervosamente ao apertar a colcha.

Finalmente, Lisbeth olhou nos olhos da mulher que a havia gerado.

Jesse já não era mais apenas mamãe. Com a história da colcha ela tinha-se tornado

uma mulher que havia amado e sofrido, mantido sua fé, crescido e triunfado em seu

próprio e silencioso caminho.

O silêncio tornou-se muito pesado. Jesse o quebrou:

— Então, Lisbeth, é assim que você veio ao mundo— Enquanto falava, os olhos de

Jesse procuravam ansiosamente a face de sua filha.

Como poderei um dia casar-me com Mackenzie? Lisbeth pensou. Agora que sei,

como poderei algum dia desposar um homem respeitável...

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Capítulo 1

O bom desejo do meu coração e a oração a Deus... é para sua salvação.

Romanos 10:1

Ele tinha visto a cólera dizimar o povo da caravana do comércio de peles em

Bellevue, e tinha resistido à zombaria dos homens rudes da montanha. Tinha lutado para

ficar em cima de sua mula, quando a doença o fizera tão fraco que não mais podia montar

sem ajuda. Sua pulsação tinha disparado ao sinal dos galopes de índios aproximando-se

da caravana do oeste — e, em seguida, voltado ao normal novamente quando eles

atiraram para o ar a fim de mostrarem suas intenções amigáveis.

Eleja havia-se medicado, sofrido, passado fome e orado. Mas nada disso havia

preparado Marcus Whitman para a cena de um campo indígena com dois mil habitantes.

A vila estendia-se por milhas ao longo do Rio Laramie, bem acima do lugar onde ele

desaguava no Platte. O encontro dos dois rios era uma esquina natural onde

comerciantes de peles tinham construído o Forte Laramie. A caravana de peles deveria

parar ali, em sua viagem ao grande lugar do encontro no Rio Green.

Whitman e seu colega missionário, o reverendo Samuel Parker, tinham-se juntado à

caravana de peles em Bellevue, Nebraska, e viajariam com ela até seu destino em

Oregon. Eles tinham ouvido que os índios naquela terra desejavam saber sobre o Deus

do homem branco. No local do encontro, eles teriam oportunidade de investigar a

veracidade de tais rumores. Então eles viajariam ao Oeste para levar o evangelho — Até

aos confins da terra.

A chegada da caravana de peles causou uma grande comoção na tribo lakota. As

crianças saíam pulando das tendas, saudando com gritos estridentes e fazendo muitas

perguntas. Os cachorros juntavam-se ao desfile tumultuado, ganindo nos cascos da mula

teimosa de Whitman até que o animal escoiceasse com fúria. Ao alcançar o forte,

Whitman desmontou cuidadosamente, grato pela recuperação de suas forças.

Ele sorvia famintamente cada detalhe da cena à sua frente, cheio de compaixão pela

vasta nação de almas não alcançadas. Porém, mais tarde, quando os barris de uísque

foram trazidos e a bebedeira prevaleceu, à compaixão do missionário misturou-se o

desgosto. Ao chegar a noite, os lakotas divertiram seus visitantes brancos com a dança

do búfalo, saltando alto na fogueira, cambaleando num êxtase bêbado.

Quando Whitman se retirava para a privacidade de sua tenda, sua atenção voltou-se

para um belo guerreiro pele-vermelha, parado à beira da fogueira. Brincos grandes de

metal pendiam das orelhas do guerreiro e penas de águia enfeitavam suas tranças

grossas e escuras. Um colar de garras de urso decorava o pescoço musculoso.

Whitman ficou pensando por que o índio não se juntava aos seus amigos naquela

celebração selvagem. Ele estudou sua face. Olhos escuros e inteligentes observavam de

soslaio, examinando cada movimento dos dançarinos. Descansando uma mão no ombro

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de uma linda e jovem índia ao seu lado, ele gesticulava e cochichava. Os cantos de sua

boca bem formada moveram-se num meio sorriso. Algumas rugas na testa alta e no canto

dos olhos faziam-no parecer mais velho que a mulher. Ela continuava a olhar para ele

com expectativa e com certeza divertindo-se com suas atenções.

Enquanto Whitman olhava, o índio virou para o lado e deu um passo em direção à

sua mulher. As sombras da fogueira acentuaram seu maxilar quadrado e o buraco do

queixo. De repente o meio sorriso desapareceu. O guerreiro apertou o maxilar e sacudiu a

cabeça para os lados, desviando o olhar da fogueira. Sua mão caiu do ombro da mulher

para o seu lado. Apertou a franja no lado de uma perneira.

Então, o doutor viu: a perneira direita tinha sido rasgada até o joelho, revelando uma

perna amarrada fortemente com tiras de couro do tornozelo ao joelho. Enquanto Whitman

olhava com curiosidade, o índio se afastava do fogo, pressionando seus lábios e maxilar,

com a dor que sentia a cada passo que dava. Ele mancava na escuridão e Whitman virou-

se saindo também, pensando no índio machucado.

Os comerciantes de pele e também os nativos gemeram e reclamaram, madrugada

adentro, dos efeitos da celebração noturna. Arrumaram-se para continuar até o lugar de

encontro no Rio Green, censurando uns aos outros pelo comportamento na noite passada

e contando piadas sobre o encontro do ano anterior, para se encorajarem a viajar

rapidamente. As perguntas de Whitman sobre o guerreiro machucado e sua graciosa

companheira foram deixadas sem respostas.

Após doze dias, a caravana de peles e os missionários chegaram ao Rio Green. Os

comerciantes armaram barracas para mostrar os tecidos, os galões, as contas para

colares, as facas e os machados que haviam transportado de tão longe para trocar pelas

peles.

Whitman sentia repugnância pelo espetáculo dos bêbados em Fort Laramie, mas a

devassidão neste local de encontro deixou-o sem fala. índios, homens da montanha e

comerciantes bebiam e deleitavam-se, gritavam e brigavam até desmaiarem. Eles

dormiam apenas para recomeçar o ciclo novamente, tão logo acordavam.

Numa noite, já tarde, enquanto Whitman, assentado, esforçava-se para ler, com sua

fogueira já quase se apagando, um menino acenou-lhe para segui-lo pelo acampamento

até outra fogueira. Lá, esperando pelo doutor, estava um homem da montanha assentado

e alguns outros comerciantes. O homem não se levantou, mas falou arrastado e

grosseiramente:

— O menino aqui diz que tem médico neste lugar.

Whitman concordou com a cabeça:

— Eu sou médico, senhor.

Levantando sua camisa com franjas e virando suas costas p aia a fogueira, o

homem disse:

— Vê este caroço no ombro? Carrego isto há quase três anos. Cabeça da flecha de

Blackfoot. Dói que nem o inferno. Será que você arranca?

O médico examinou o local.

— Eu posso tirar, mas não tenho anestésico.

O homem tirou um frasco de seus pertences e tomou um longo gole.

— Estou com meu anestésico bem aqui, doutor. Arranca.

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Whitman voltou para sua barraca para pegar seus instrumentos cirúrgicos. Voltando

para a fogueira do comerciante, começou a cirurgia. A cabeça da flecha estava coberta

com uma grossa camada de gaze e Whitman desculpou-se por cortar a ferida,

concentrando-se para ser bem-sucedido. Finalmente, puxou a ponta para fora. O

comerciante suspirou apenas uma vez. Também ficou sentado imóvel enquanto o médico

desempenhava sua cirurgia grosseira. Acabada a operação, Whitman deu um passo atrás

e limpou o suor de sua testa.

— Tudo certo comigo, doutor. O que posso lhe dar pelo serviço?

— Estou feliz por ter sido útil, senhor — foi tudo o que o missionário pôde dizer. Ele

olhava espantado, enquanto o comerciante, vestindo sua camisa, estremeceu um

pouquinho, levantou-se e virou sua cabeça de um lado para o outro vagarosamente,

então meneou seus ombros como se nada tivesse acontecido.

O comerciante entrou em sua barraca e saiu novamente com duas peles de castor,

as quais deu para Whitman.

— Ouvi dizer que o senhor tem esposa. Isto dará para ela fazer uma bonita manta...

Diga para ela que sou grato ao marido dela.

Falou de um modo grosseiro, mas a sinceridade brilhava em seus olhos. Com umas

poucas instruções sobre a limpeza da ferida, Whitman pegou as peles e retornou à sua

fogueira, ignorando o fato de que suas capacidades para operar já estavam sendo

rapidamente comentadas pelo acampamento. Logo ele se tornou o centro das atenções e

uma fila formou-se do lado de fora de sua barraca, esperando que o médico tratasse de

vários ferimentos e enfermidades.

Já era tarde quando Whitman pôde descansar. Enquanto se deitava, fatigado, em

seu couro de dormir, a porta de sua barraca foi puxada silenciosamente. Quase antes de

ele poder olhar, a figura imponente de um índio encheu a entrada. O valente usava um

colar de garras de urso e perneiras de pele de veado.

Silenciosamente, ele se assentou em frente a Whitman e começou a desembrulhar

uma perna que estava toda envolta em apertadas tiras de couro do tornozelo ao joelho.

Whitman reconheceu o índio do Forte Laramie.

Ele fez um movimento para ajudar a desembrulhar sua perna, mas o guerreiro

acenou-lhe para afastar-se. Sua testa transpirou. Ele resmungou, e suas mãos tremeram,

mas ele persistiu. As peles encostadas na perna estavam encrustradas com sangue seco.

Por fim, ele as tirou e Whitman deu um suspiro seco com o cheiro pútrido do ferimento,

que se espalhou pela barraca. Ofegando com o esforço, o índio estirou a perna na frente

do médico e inclinou-se para trás, apoiando-se nas mãos, esperando. Os olhos negros

encontraram os de Whitman numa súplica silenciosa.

O médico viu que havia uma infecção. Ele se movimentou rápido para limpar o

ferimento. Seu paciente gemeu, mas, de alguma forma, controlou a vontade de gritar.

— A luz do dia posso fazer isso melhor — Whitman explicou, desesperado com a

barreira da linguagem. Tinha feito tudo o que podia com a luz do fogo. Mas palavras não

eram necessárias para manter o índio em sua barraca. Com os últimos cuidados do

médico, ele deu um pequeno grito agonizante e dormiu.

De manhã, o índio foi carregado para fora, onde Whitman começou o processo de

retirada do tecido morto. O homem recusou o uísque oferecido como anestésico,

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apertando os lábios e virando a face rígida para longe do vidro.

— Diga-lhe que tenho de quebrar a perna dele novamente — , disse Whitman. O

comerciante convocado para ser o intérprete contou-lhe a má notícia. O índio olhou

prolongadamente a face de Whitman. O olhar firme do missionário não vacilou.

Fazendo uma pergunta, esperou enquanto o comerciante interpretava:

— Por que você tem de quebrar o que já foi quebrado e curado?

Whitman explicou:

— A quebradura não se consertou corretamente. O osso ainda está muito saliente e

isto tem causado o inchaço e a infecção. Preciso quebrá-lo, consertá-lo e então juntar a

pele com pontos para sarar corretamente".

O intérprete repetiu a informação para o índio, que interrompeu com uma pergunta:

— Ele quer saber se o senhor vai deixá-lo em condições de andar bem novamente. Ele

diz que anda como um búfalo machucado agora". O comerciante voltou-se abruptamente

para Whitman e deu a sua própria opinião: — O nome deste companheiro é Cavalga o

Vento. Eu o vi no último encontro. Ele dança muito bem quando está em forma.

Conquistou sua esposa, dançando para impressioná-la. Ele não estará pronto a deixá-lo

quebrar sua perna outra vez, a não ser que isto o ajude a dançar novamente".

O comerciante piscou para o médico:

— Até os peles-vermelhas gostam de impressionar as moças, doutor".

Whitman limpou sua garganta e umedeceu os lábios secos antes de responder. —

Cavalga o Vento— disse ele olhando diretamente o guerreiro, — Sou o Dr. Marcus

Whitman. Vim para esta terra para contar a seu povo sobre o Deus que criou todos nós.

Eu lhe digo por Ele que não sei se você poderá dançar de novo. Mas eu sei que, se não

fizer isto, você perderá esta perna. Poderá mesmo morrer".

O olhar honesto de Whitman não se desviou dos olhos do índio enquanto falava.

Sua voz era suave, cheia de compaixão.

O comerciante interpretou e, quando terminou, houve um longo silêncio. Cavalga o

Vento ponderou o conselho do médico. Ele olhou para o outro lado por um momento,

então voltou-se novamente para Whitman e, gravemente, concordou.

Muitos dos homens lakotas foram convocados para segurar o guerreiro enquanto

Whitman apertava e torcia a perna machucada. O barulho nauseante do osso estralando

causou um murmúrio entre o grupo de homens. Cavalga o Vento quebrou em dois

pedaços a vara que apertava com os dentes e desmaiou. Whitman aproveitou a chance

para limpar bem, retirar o tecido infectado e dar pontos na perna.

Um dos comerciantes contribuiu com o tecido limpo que Whitman usou para prender

a perna. Trabalhou rápido e eficientemente e, quando voltou a si, Cavalga o Vento viu que

sua perna, que doía mais que antes, estava envolta num tecido limpo e entre dois galhos

retos de árvore. Foi carregado para sua tenda, onde sua esposa e o curandeiro da tribo

cuidaram dele.

No dia em que Whitman começou a arrumar a bagagem para ir para o Oeste, o

comerciante que tinha servido de intérprete o chamou para a tenda de Cavalga o Vento.

Inclinando-se, o médico entrou na tenda onde Cavalga o Vento estava sozinho, deitado

sobre uma manta de pele de búfalo. Enquanto o médico assentava-se sobre outra manta

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de búfalo, o índio olhou firme em seu rosto e disse vagarosamente:

— Você tem remédio".

Whitman espantou-se emudecendo, enquanto as palavras em inglês eram

pronunciadas.

O comerciante arreganhou os dentes:

— Ele tem vindo aos encontros há muito tempo. Entende mais do que parece. Bem

esperto para o seu próprio bem, provavelmente. Por alguma razão ele decidiu que não há

problema deixar o senhor saber que ele fala um pouco a língua do homem branco".

Whitman sorriu calorosamente e, voltando-se para Cavalga o Vento, disse:

— Sim, eu tenho remédio".

O índio apontou para sua perna:

— Faça forte".

— Vai levar bastante tempo, mas ficará forte novamente. No entanto, temo que você

ande sempre mancando.— O índio franziu a testa e voltou-se para o comerciante, que

interpretou o que Cavalga o Vento não podia decifrar.

Impaciente com a fala primária, Cavalga o Vento retornou à sua própria língua,

falando rapidamente. Finalmente o comerciante levantou suas mãos, interrompendo a fala

comprida.

— É , doutor — começou. — Parece que o senhor impressionou bem este índio. Ele

está dizendo que o senhor tem remédio bom. Ele quer que o senhor se assegure de que

sua perna será bem curada. Diz que vai viajar com o senhor até ter certeza de que ela vai

ficar boa.

Whitman interrompeu:

— Mas ele não pode andar a cavalo".

Compreendendo, Cavalga o Vento interpôs-se, bravo. O comerciante arreganhou os

dentes e balançou a cabeça:

— Ele diz que, mesmo com uma perna quebrada, sempre pode montar melhor que

homem branco. Ele veio a cavalo de Forte Laramie".

Whitman virou-se, olhando o valente, e viu o desafio em seus olhos escuros. O índio

apertou o braço de Whitman, sua mão grande deu volta no antebraço fino do médico,

enquanto dizia:

— Eu cavalgo, você fala — Então Cavalga o Vento falou de novo ao comerciante,

rapidamente, e gesticulou para ele traduzir.

— Ele quer que o senhor cuide de sua perna, doutor.— Enquanto Cavalga o Vento

falava, o comerciante parou e colocou de volta seu chapéu. — Bem, eu estarei..."

— Que é isso?— Whitman apressou-se.

— Ele diz que quer aprender melhor a fala de homem branco. E diz que quer ouvir

mais sobre aquele Deus de quem o senhor falou, na noite em que consertou sua perna.

Aquele que o senhor disse que criou todas as coisas."

O comerciante deu uma gargalhada.

— Parece que o senhor conseguiu um provável convertido, doutor.— Sua voz saiu

sarcástica. — Só tenha a certeza de que ele não o escalpe, quando descobrir que o seu

Deus diz que ele deve amar o pawnee que assassinou seu pai no último inverno."

Whitman mostrou-se à altura do desafio. — O meu Deus morreu até pelos inimigos

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dele, senhor."

O comerciante não se impressionou.

— Economize isto, doutor. Eu não estou comprando. De qualquer forma, este índio

diz que está indo junto. Assim, o senhor pode treinar seus sermões com ele.— O

comerciante abruptamente deixou Whitman sozinho com Cavalga o Vento.

Com uma oração por sabedoria, Whitman falou devagar:

— Você vem. Cuidarei de sua perna". Cavalga o Vento concordou com um

movimento de cabeça. Whitman acrescentou: — Falarei de Deus". De novo o índio

concordou. Como Cavalga o Vento se esforçasse para levantar-se, Whitman tentou

ajudar, mas o bravo lakota meneou a cabeça e empurrou o médico. Com grande esforço,

conseguiu levantar-se, pondo todo seu peso sobre a perna esquerda sã.

Enquanto Whitman olhava, ele pegou a faca e a bainha da flecha, dependuradas

num mastro próximo. Amarrando-as juntas, ele apanhou uma vara, cortada há pouco, que

estava apoiada no mastro. Usando-a como bengala, Cavalga o Vento mancou até a

entrada da tenda. Gesticulando para Whitman ir à frente, ele abaixou-se incomodamente

e investiu para fora, quase caindo e ofegando com o esforço para permanecer firme. Sua

esposa aproximou-se. Cavalga o Vento falou rapidamente com ela, que, em obediência,

correu a cumprir suas ordens.

— Vá. Eu vou— foi tudo o que disse para Whitman. O missionário foi em direção à

sua própria fogueira para arrumar as malas, olhando sobre os ombros para ver Cavalga o

Vento entrar em sua tenda novamente.

Quando a caravana de peles saiu do acampamento naquela manhã, a mula de

Whitman era seguida por um potro indígena, carregando um caçador sioux ferido.

Cavalga o Vento permaneceu com a caravana até que sua perna quebrada ficasse

completamente curada. A caravana tinha há tempo entrado no território habitado pelos

inimigos dos sioux. Cavalga o Vento parecia indiferente. Com determinação ardente ele

aprendera a falar a — Língua do homem branco". Com a mesma determinação, ele ouvira

e perguntara, quando Whitman contara, noite após noite, sobre o Deus que o tinha

enviado para os índios.

Quando, por fim eles partiram, Whitman colocou uma Bíblia nas mãos do guerreiro.

— Este livro fala sobre Deus, Cavalga o Vento. Eu lhe dou pela nossa amizade.—

Era um presente excêntrico, Whitman sabia. Cavalga o Vento não sabia ler. Mesmo assim

o missionário sentira-se impulsionado a dá-lo.

Cavalga o Vento tirou o colar de garras de urso de seu pescoço e deu-o ao

missionário. Ele segurou a Bíblia no peito e ficou olhando Whitman afastar-se. Quando

finalmente perdeu de vista o missionário, Cavalga o Vento embrulhou a Bíblia

cuidadosamente numa pele de veado.

Após seu retorno ao grupo, ele guardou — O livro sobre o Deus que criou todas as

coisas em sua bolsa de couro. Ele sempre a desembrulhava, virando as páginas de beiras

douradas, cuidadosamente, admirando os desenhos estranhos em cada página,

desejando poder saber seus significados.

Sua perna estava curada, mas ainda torta. Cavalga o Vento não podia dançar mais

era volta da fogueira. Sua amável esposa insistia que isso não era problema para ela.

Mas Cavalga o Vento via que, dentro da alma dela, o fogo que houvera queimado por ele

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agora se ofuscava.

Quando Águas Dançantes atreveu-se a caçoar das coisas estranhas que ele ouvira

do missionário e lhe contara, Cavalga o Vento reagiu com uma raiva imprópria e lhe

ordenou que tivesse mais respeito. Ele sempre meditava nas imagens que Whitman

havia-lhe contado — um homem e uma mulher em um lindo lugar... o fruto proibido

comido — o Deus-homem morrendo em um tipo de árvore... o mesmo homem vivendo

novamente. Ele ansiava por alguém que pudesse contar-lhe o mistério do presente do

missionário, mas não falava sobre isso.

A centenas de milhas dali, um fervoroso missionário orava: De alguma forma,

Senhor, envie alguém para que algum dia Cavalga o Vento vossa conhecê-lo.

Capítulo 2

A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda.

Provérbios 16:18

Jesse King estava no balcão da venda na cidade Independence, no Missouri,

esperando para pedir as provisões para a jornada para o Oeste. Ela esperava

pacientemente atrás de uma mulher alta e magra, na fila comprida. O cabelo escuro e

grosso da mulher estava preso no alto da cabeça. Um chapéu grande amarelo pendurado

em seus ombros balançava enquanto a mulher fazia seu pedido energicamente e em voz

alta. Ela examinava cada item cuidadosamente e então instruía um menino a levar suas

coisas para o carroção estacionado bem em frente ao da família King, à porta da loja.

Jesse ficou atrás até que a mulher terminasse. Virando-se rapidamente, a mulher

deu um encontrão em Jesse e exclamou:

— Minha nossa, me desculpe! Ó, espero não ter acordado o querido nenê! Meu

nome é Lavínia Wood. Você faz parte da caravana também? — As palavras saíram aos

trambolhões, enquanto Jesse arrumava o nenê dormindo e tirava sua própria lista do

bolso. Jesse respondeu: — Não, não, você não perturbou o Jacob . Ele dorme até

debaixo d'água, graças a Deus — Enquanto desdobrava sua lista cuidadosamente escrita,

respondeu ao restante das perguntas de Lavínia. — Sim, estamos indo para o Oeste. Sou

Jesse King."

"King— Lavínia repetiu. — É sua carroça lá fora? Cavalos bons..." Quando Jesse

concordou, ela acrescentou: — Bem, nossa junta de bois e o carroção estão bem à sua

frente. Talvez nos vejamos na viagem... a não ser que você tenha escolhido outro

carroção para acompanhá-la".

Jesse balançou a cabeça:

— Não, acabamos de entrar na cidade e Homer não é de muita conversa. Ele estava

ocupado ajudando-me a fazer a lista de compras...".

A atenção da mulher foi desviada por vozes irritadas lá fora.

Todos que conheciam Homer King em Illinois sabiam que, quando ele metia uma

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idéia na cabeça, ninguém podia tirá-la. E era o que havia acontecido.

— Eu suei sangue fazendo o melhor carroção para atravessar o território. E eu não

terei esses bichos sarnentos atrelados em minha carruagem! Dê-os para outra pessoa, é

isto que digo! — Ele permaneceu em pé na rua poeirenta e encarou o chefe da caravana.

— Nossos cavalos farão bem o serviço. Por que eles ganharam o primeiro lugar no ano

passado no carroção que retornou?" Homer dava tapas na anca larga de Gabe para

enfatizar seu ponto de vista. O cavalo, pacientemente, balançava a cabeça, meio

dormindo, apesar da algazarra ao seu redor.

De dentro da venda Jesse ouvia ansiosamente. A voz de Homer tinha uns tons

agudos que ela aprendera a conhecer. As palavras saíam bruscamente. Cada frase

terminava numa explosão baixa, as palavras prolongavam-se para dar ênfase. Jesse nem

precisava olhar para saber que seu queixo estava rígido, sua cabeça inclinada para um

lado. Os olhos cinza estariam parcialmente fechados num olhar apertado.

Marshall Applegate, no entanto, não cederia como Jesse sempre fizera. Sua voz

veio forçada, mas firme, descompromissada:

— Sr. King, se os seus cavalos fugirem não vou gastar o tempo precioso dos outros

para ajudar o senhor a recolhê-los. Se eles mancarem o senhor terá de dar lugar a outro

carroção. Bem, senhor, tenho mais coisas para fazer. Eu o aconselho, esta caravana não

é lugar para cavalos. Compre alguns bois". Dado o último aviso, Applegate saiu.

Jesse inconscientemente apertou o nenê dormindo e virou-se para o funcionário,

pedindo as últimas mercadorias. Lavínia apressou-se a mudar de assunto:

— Bem, então, não vai ser uma aventura? Quando meu George perguntou o que eu

achava de ir para o Oregon, respondi na hora: 'George Wood, não consigo pensar em

nada mais excitante para fazer!'".

Jesse respondeu:

— Homer nunca conversou muito comigo sobre seus planos. Por mim, ficaríamos

perto de casa. Mas depois que o Sr. Whitman falou em nossa igreja, a cabeça de Homer

não pensou em outra coisa. Não havia mais nada além disso. Ele fez o carroção, vendeu

a criação e aqui estamos nós...— A criança levantou a cabeça de seu ombro e então

aconchegou-se de novo. Lágrimas de saudade começaram a sair dos olhos de Jesse,

mas ela as segurou, levantando seu queixo tenazmente e sorrindo um sorriso apertado,

forçado, que quase nem levantava o canto da boca. "...e o pequeno Jacob terá a chance

de fazer seu caminho num mundo totalmente novo. Para isto é que vale cruzar as

planícies — imagino eu."

Lavínia deu um tapinha em seu ombro, ao passar. — Bem, querida, fique perto de

mim e dançaremos o tempo todo até Oregon! — Ela apressou-se para a porta gritando

por cima do ombro para Jesse: — Meu nome é Lavínia, mas, para os amigos, Vinnie.

Portanto, chame-me de Vinnie e vamos agradecer a Deus por ficarmos amigas tão no

começo da viagem!".

Jesse concordou, balançando a cabeça agradecida.

E Homer King firmou o queixo e deixou os cavalos nos arreios.

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Capítulo 3

Não estejais inquietos por coisa alguma... as vossas petições sejam em tudo

conhecidas diante de Deus.

Filipenses 4:6

Jesse e Homer estavam em Independence há poucos dias quando Homer começou

a resmungar sobre o que denominava — Atrasos desnecessários".

— Eles dizem que temos de esperar — a grama está bem baixa para alimentar o

gado. Se eles não tivessem de levar o amaldiçoado rebanho junto, haveria muita grama.

Ele reclamou com amargura sobre a organização da caravana: — Quinze pelotões

de quatro carroções cada... como se estivéssemos novamente no exército. E a forma

como elegeram os líderes dos pelotões, então! Todos amontoados como um bando — os

'capitães' em fila, marchando à frente. Então o resto dos tontos saem correndo em fila

atrás de uma chance para serem capitães... Hum!! Um monte de homens barbados

parecendo escolares brincando de 'marcha-soldado'!".

— E que fila você escolheu, Homer?— A voz de Jesse estava calma, delicada. — O

George Wood ganhou um lugar?"

Homer não se acalmava. — Escolher? Eu? Hum! Deixe eles escolherem! Eu não

sou moleque de escola! Tenho quarenta e dois anos e não me importo com tamanha

besteira. Nós vamos fazer do nosso jeito!"

Marshall Applegate não ganhara nem o respeito nem a confiança de Homer. Sua

insistência para que Homer trocasse Beau e Gabe por bois não fora o último desacordo.

Quando Applegate percebeu que Homer estava determinado a manter seus cavalos,

ignorando a organização da caravana, voltou insistindo que Homer comprasse ração.

Homer resistiu e Applegate perdeu o controle.

— O homem que não aceita o conselho dos que estão à sua frente é um tonto!

Estou-lhe dizendo, pela última vez, King, a grama da campina comum é muito seca para

animais que precisam de muito alimento. Eles ficarão pesteados com insetos e também

pegarão monquilho nas águas do Rio Platte. Se você não transportar grãos para ajudá-

los, eles jamais terminarão a viagem. É melhor você levar ferraduras, preguinhos e muitos

grampos também...e, se eles não conseguirem, nós deixaremos vocês! — Applegate,

agitado, decidiu ficar o mais longe possível deste emigrante rabugento.

Jesse não estava desatenta à lógica de Applegate. Ela arriscou uma opinião: — Hoje

ouvi dizer que o gado não está caro, Homer — só $50 a cabeça. O Gabe e o Beau não

poderiam ir juntos, puxados pelo nosso carroção?— Acrescentou convincentemente: —

Assim eles estarão em forma para lavrar a terra no Oregon!".

— Nós não vamos comprar bois!" Homer respondeu bruscamente. — E ficarei

agradecido se você se lembrar que tem apenas vinte e um anos e não conhece nada,

absolutamente nada fora de Illinois. Só cuide do seu trabalho de mulher, e não se meta no

que não é da sua conta! — Ele despejou sua frustração com Applegate em cima dela,

inspecionando cada coisa que ela havia arrumado para a viagem. Implicou com os

supérfluos que ela comprara. — Pão, bacon e café é tudo do que um homem precisa para

atravessar uma planície, mulher! Não sei por que você tem de levar pêssegos e maçãs

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desidratados. Não haverá festas durante a viagem."

— Eu só achei que uma torta de pêssego ou de maçã é muito saborosa, Homer—

Jesse replicou. — E será como uma lembrança de casa quando nos sentirmos saudosos."

Homer replicou que ele planejava estar ocupado demais para sentir-se saudoso e

que era melhor ela ter uma idéia mais realística da vida na caravana.

A medida que a hora da partida aproximava-se, o humor de Homer piorava. Jesse o

evitava o máximo possível e orava por paciência para lidar com seu humor instável. Jacob

enfrentava a aventura rindo à toa e tagarelando diante de tudo o que via. A família estava

acampada logo do lado de fora de Independência, esperando a hora de partir.

Finalmente, após uma reunião com o Dr. Whitman, ficou decidido que partiriam no

dia vinte e dois de maio.

— Até que enfim! — disse Homer, — Também já era hora!".

— Até que enfim— Jesse cochichou, com temor no coração e uma oração em seus

lábios.

O sol nasceu, os chicotes estalaram, os homens gritaram e a poeira levantou

enquanto a caravana de carroções pôs-se em direção ao Oeste. Acabrunhada diante da

grande multidão de emigrantes, Jesse apertou Jacob e inclinou-se para trás no banco do

carroção. Passaram por uma mocinha vestida com roupa de domingo, passeando

devagar na estrada poeirenta, com um livro aberto à sua frente. Jesse ficou imaginando

se ela estaria realmente lendo. A moça percebia os olhares de admiração de muitos

rapazes, um do quais gritou: "Ó ninfa, nas vossas preces, sejam lembrados todos os

meus pecados!".

Jesse corou com o atrevimento dele e encostou-se um pouco mais em Homer que o

usual.

Eles estavam viajando na grande trilha de Santa Fé. Eles sempre passavam por

caravanas de mercadores com carroções cheios de mercadorias, em direção ao México.

Em poucas horas haviam atravessado a fronteira Oeste do estado e entrado no território

dos índios shawnee. A terra era linda e fértil e muitos dos shawnees tinham fazendas

boas e casas confortáveis. Alguns até mesmo falavam inglês, mas isto em nada

confortava Jesse, que via os índios como criaturas sem Deus, que deviam ser temidas e

evitadas a todo custo.

Jesse logo desistiu da idéia de viajar dentro do carroção para o Oregon. Os

solavancos e pulos dele tornavam isso impossível. Tão logo cuidara de Jacob, Jesse

pulou do carroção e andou ao lado, durante a manhã. Ao meio-dia, quando a caravana

parou para "descansar — ela estava mais cansada do que jamais estivera em sua vida.

Beau e Gabe foram desatrelados e levados até a água e grama fresca para almoço.

Homer averiguou o arreio, engraxou os eixos do carroção e se assentou para ver Jesse

fazer o fogo e preparar o almoço. O tempo passou rápido e logo eles estavam indo aos

solavancos novamente.

Jesse carregou Jacob um pouco, mas ele parecia nem se importar com os

solavancos da carruagem e gritava com alegria a maior parte do dia, espiando Jesse de

trás da carruagem, mostrando os pássaros e coelhos que apareciam subitamente, saindo

por trás dos arbustos e pedras.

Eles viajaram quase vinte milhas naquele dia. Ao entardecer, quatro pelotões

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ficaram em círculo, formando um curral. Os animais foram desatrelados e o varal de cada

carroção foi amarrado nas rodas traseiras do carroção vizinho. Os bois e cavalos

puderam pastar até o pôr-do-sol, quando foram levados para o curral.

Jesse pensara que estivesse cansada ao meio-dia, mas ao anoitecer estava quase

chorando de tanta exaustão. Homer parecia estar mais bem-humorado. Beau e Gabe

tiveram um belo desempenho naquele dia, galopando levemente à frente dos outros

carroções. Comparados aos passos dos bois, os cavalos se moviam com elegância, e

muitos olhares de admiração eram lançados a eles. Homer via os olhares e sua

severidade e austeridade abrandavam-se um pouco. Ao anoitecer, ele sentiu que sua

decisão em manter Gabe e Beau fora reconhecida. Homer falou alegremente com Jesse e

até aceitou o convite de George Wood para ficar ao lado deles pelo resto da viagem.

Lavínia assegurou-se de que Homer não visse sua piscada para Jesse, quando o

convite fora feito e aceito. Jesse sorriu em retorno, envergonhada.

Finalmente as tarefas da noite terminaram. Jesse afundou no colchão de pena,

dentro do carroção, agradecida. Jacob estava dormindo há horas. Quando Jesse tentou

acordá-lo para alimentá-lo, ele mamou, meio dormindo, só por uns segundos. Jesse

sentiu-se sonolenta mesmo enquanto abotoava seu corpete. Homer continuou a olhar de

debaixo do carroção/ para que seus cavalos não fossem machucados por algum boi

briguento.

Com o passar dos dias, a terra tornou-se mais árida. As faixas de bosques ainda

preenchiam as margens dos ribeiros e riachos, mas havia no lugar um silêncio que enchia

o coração de Jesse com saudade de casa. O pavor do desconhecido aumentava. Homer

estava decidido sobre Oregon. Parecia não ter saudade do que haviam deixado. Toda

manhã, quando acordava, Jesse ouvia o grasnar familiar dos gansos de sua mãe ou o

grito alegre do cardeal. Ali, na campina não havia nada disso. A luz do nascente trazia

apenas o silêncio quebrado pelo som dos carroções e seus animais.

Somente Jacob enchia o grande vazio ao redor e dentro dela. Jesse caminhava

sozinha grande parte do dia. Ela cuidava de Jacob, preparava as refeições para Homer,

remendava suas roupas e dormia exausta, quando, então, sonhava apenas com o que

estava atrás dela. Acordava para se lembrar de que sua casa estava muito longe, para

andar em colinas áridas e desconhecidas e para sentir saudade das matas profundas que

costeavam a fazenda de seu pai.

Junto à solidão da campina estava o terror de índios. Jesse ouvira muitas lendas em

volta das fogueiras noturnas. Eles tinham então deixado a terra dos pacíficos shawnees e

estavam no território dos kansaz, que viviam em cabanas feitas de troncos e cascas de

árvores. De alguma forma eles curvavam o telhado e Jesse achava que suas moradias

pareciam panelas de ferro viradas de cabeça para baixo. Ela viu, com horror, que estes

índios ficavam quase totalmente nus.

— Eles são ladrões— George Wood expôs, acrescentando: — E eles adoram

crianças, especialmente crianças loiras". Lavínia o fez calar-se, mas, depois disto, sempre

que os kansaz aproximavam-se, Jesse entrava no carroção cheio e empurrava Jacob

para baixo, ao seu lado.

— Não estejais inquietos por coisa alguma— ela lia, — Antes as vossas petições

sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças. E

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a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os

vossos sentimentos em Cristo Jesus". Jesse lia e relia a passagem bíblica à luz da

fogueira, cada noite. Isto a confortava o suficiente para poder dormir. De fato, cada novo

dia trazia medos renovados.

Jesse estava quase no desespero no dia em que sua amizade com Lavínia foi

firmada. Lavínia estivera muito envolvida com. sua ninhada para pensar em Jesse. Os

carroções tinham estado um ao lado do outro e de fato Lavínia pouco tinha feito para

contactar Jesse, exceto por alguns gritos de encorajamento a ela, uma risada de vez em

quando para Jacob e, freqüentemente, um olhar carrancudo para Homer.

Finalmente Lavínia tinha organizado sua família num pelotão. Emily, a mais velha,

ficou responsável por Esther, o bebê.

— Mantenha a menina longe das rodas da carruagem e de cobras, e eu tentarei não

pedir muito mais— Lavínia ordenou.

Amanda, a próxima da fila, cuidava da vaca, enquanto a mãe fazia o almoço. Eles

haviam trazido só uma vaca, mas ordenhando-a pela manhã e pendurando o balde de

leite atrás da carruagem, eles tinham manteiga para o jantar.

Amélia e Ophélia eram as gêmeas de quatro anos. Elas ajudavam a recolher lenha,

estendiam a roupa de cama para arejar e cumpriam tarefas que deixavam Jesse

admirada, enquanto ela assistia a tudo de sua própria fogueira.

Todos os dias os Woods acendiam o fogo e almoçavam antes dos outros. À noite,

quando todos os outros na caravana pareciam estar da cor do pó, um marrom que cobria

tudo e todos, Lavínia tinha uma energia sem fim. Ela limpava, e remendava, e cozinhava,

e ainda tinha tempo para rir e brincar com suas meninas.

Jesse ficava pensando em sua coragem. Homer a chamava de — Aquela mulher

intrometida e arrogante — Ao observar Lavínia e George, Jesse não podia evitar admirá-

los. Eles pareciam ser amigos. Jesse ficava imaginando como seria estar casada com o

melhor amigo.

Tarde da noite, na segunda semana, houve uma tempestade. O céu tornou-se preto

e a chuva caiu em torrentes a noite toda. A densa escuridão só era interrompida pelos

clarões de relâmpagos estonteantes. Os trovões continuaram num barulho constante e

nem mesmo Jacob podia dormir, agarrando-se à sua mãe, aterrorizado. Jesse foi incapaz

de confortá-lo. Seu coração batia forte e ela ficava pensando se os animais não iriam abrir

caminho no curral feito de carroções. Num momento, num intervalo entre trovões, ela

ouviu a voz de Homer chamando sua parelha de cavalos, mas o vento soprava tão forte

que era impossível saber exatamente onde ele estava. Jesse temeu que o carroção

pudesse tombar.

Pela manhã o solo começou a inundar com água. Jesse viu que vários carroções

tinham, de fato, perdido suas coberturas com o vento. O Rio Big Blue, que deveriam

atravessar naquele dia, tinha suas margens inundadas. Ele se revolvia e rugia, mas

Homer e os outros homens não seriam barrados. Eles sentiram a urgência de continuar e

acharam que poderiam flutuar os carroções e famílias para o outro lado a salvo.

Applegate não estava tão certo:

— Mas se alguém pudesse atravessar e amarrar uma corda naquele grande choupo

do outro lado, nós conseguiríamos montar uma balsa".

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Os choupos estavam cortados, caídos e amarrados juntos. Vigas cruzadas eram

colocadas de forma que as rodas dos carroções podiam ser escoradas nelas. Os objetos

de cada carroção foram descarregados para serem atravessados separadamente.

Jesse ficou horrorizada, quando Homer anunciou-se como voluntário para atravessar

a violenta correnteza com Beau.

— Nós amarraremos uma corda naquele choupo distante e daí atravessaremos os

objetos — ele explicou. Então acrescentou: — Beau consegue fazer isso, Jesse. Ele é

forte. Ele consegue".

Jesse sabia que não seria bom contestar. Ela queria encorajá-lo, mas a água lhe

inspirava tamanho medo que ela não podia encarar a idéia de Homer nessa correnteza.

Ela chorou e implorou que ele não fosse. Ele ficou bravo e saiu a passos largos.

Lavínia tinha presenciado essa discussão de uma certa distância. Tão logo Homer

saiu, ela chegou:

— Querida Jesse, você faria a bondade de ajudar-me a descarregar meu carroção?

Eu não conseguirei fazê-lo rápido o suficiente de forma que agrade o George".

Jesse sabia que Lavínia estava inventando uma necessidade de ajuda, mas ela

estava grata por ficar no meio de outras pessoas. Emily, a de dez anos, correu pegar

Jacob e levou-o para procurar minhocas na lama deixada pela tempestade da noite.

Jesse ajudou Lavínia a descarregar, ouviu-a tagarelar sobre as maravilhas do

Oregon e a excitação da viagem e tentou relaxar. Mas o aperto em seu estômago não

parava. Suas mãos tremiam e, finalmente, ela ficou mal fisicamente e curvou-se

soluçando.

Lavínia a enlaçou, num grande abraço maternal. Ela conduziu Jesse para o outro

lado do carroção, de forma que a visão do rio ficasse bloqueada. Homer montado em

Beau, corda na mão, apressava-o nas águas agitadas. Então Lavínia fez a única coisa

que poderia para aliviar o medo de Jesse. Lavínia orou.

— Querido Senhor — ela cochichou, de forma que Jesse pudesse escutá-la, —

Ajude-nos. O Senhor sabe que eu estou com medo também. Eu apenas reajo

diferentemente. Mas, aqui está a Jesse, e ela precisa de uma graça especial. Seu marido

está na água e sabemos que o senhor prometeu estar conosco. Por isso, por favor

Senhor, mantenha o Homer seguro. O Senhor sabe que a Jesse precisa do marido dela.

Salve-o, Senhor".

Jesse não ouviu exatamente cada palavra, tão submersa estava em seus

pensamentos. Mas nos braços de Lavínia pôde sentir o cuidado dela. Como sua atenção

se voltasse para o céu, para Aquele que dominava o fluxo da correnteza, ela sentiu-se

confortada. Suas mãos tremeram menos e o nó de seu estômago relaxou.

Jacob veio cambaleando, gritando alto, alegre. Ele trouxe uma minhoca comprida e

grossa para Jesse olhar. Ela ajoelhou-se e o abraçou, admirou a minhoca e louvou ao

Senhor quando ouviu vozes gritando:

— Ele atravessou! Ele conseguiu!".

De fato Homer tinha conseguido. Enquanto Jesse espiava de trás do carroção, viu

Homer e Beau chacoalhando a água do rio Big Blue do corpo.

A caravana ficou três semanas nas margens inundadas do Big Blue. Passar horas e

horas trabalhando com animais amedrontados, desatolando carruagens, tentando manter

Page 16: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

as roupas secas e colocando comida na boca de todos esgotava a paciência de qualquer

um. Faziam-se inimigos, mas boas amizades também; ao final de três semanas, Jesse

King e Vinnie Wood eram grandes amigas.

Lavínia era impetuosa e corajosa. A timidez de Jesse acalmava-a e tornava-a mais

delicada. Jesse era tímida e solitária. A personalidade expansiva de Lavínia conquistou-a

e ela começou a rir novamente. Ela até se convenceu a participar da reunião de louvores

com hinos da família Wood. Homer recusava-se a cantar uma nota sequer, mas em seu

interior sentia-se orgulhoso da bela voz de sua esposa, assim ele ia junto e segurava

Jacob enquanto todos os outros cantavam.

Jesse e Lavínia descobriram duas coisas em comum. Ambas amavam o Senhor e

ambas adoravam fazer colchas de retalhos. Todas as mulheres haviam feito colchas para

a viagem, mas Lavínia e Jesse particularmente amavam a tarefa. Elas conversavam

sobre modelos e seus planos de novas colchas horas a fio.

— Não sei em que eu estava pensando quando empacotei os retalhos para esse

aqui — Lavínia disse um dia, mostrando a Jesse uma pilha de chita e musselina. —

Imagina que eu achei que pudesse emendar um pouco... mas a terra, o carroção

sacudindo assim, e à noite estamos todos tão quebrados..."

— Eu entendo— Jesse concordou. — Tenho retalhos também, para a Arvore da

Vida, mas são tão pequenos..."

— Jesse King!— Lavínia exclamou, — Você me disse que o Homer inspecionou

cada centímetro do carroção e tirou a maior parte do que você queria trazer. Então como

você conseguiu trazer seus retalhos da Arvore da Vida? Ele nunca aprovaria, minha

querida!".

Jesse piscou e sorriu com recato: " Homer não inspecionou o saco de farinha. Ele

achou que estivesse completamente cheio., .de farinha".

George Wood e Homer King mantinham respeitosamente uma distância. Homer não

era inclinado a cultivar nenhuma aproximação. Suas razões para ir para o Oregon

incluíam a independência total, e ele não via necessidade de criar vínculos que

pudessem, em qualquer momento, incorrer em obrigações de sua parte.

Quando chegou a vez de as famílias Kinge Wood atravessarem o Rio Big Blue, Deus

tinha graciosamente acalmado as águas. Os carroções deslizaram sem nenhum

problema, e Jesse louvou a Deus, do fundo do coração, quando seus pés tocaram a

margem oposta.

Após a travessia do Big Blue,a paisagem mudou rapidamente. As colinas pareciam

apenas grandes pilhas de areia. Havia boa relva para a criação, mas também abundância

de cactos espinhosos. Homer dirigia com cuidado, temendo que os espinhos

machucassem as patas dos cavalos.

Em abril e maio o frio fora desagradável. Agora o clima estava moderado e Jesse se

desesperava tentando espantar os pernilongos de Jacob. Apesar de seus esforços, ele

parecia o tempo todo estar com sarampo. A poeira, às vezes, era tão grossa que Jesse

tinha dificuldade em ver o primeiro carroção. Nos dias de vento, o pó atingia fortemente

seu rosto e mãos. Quando ela não suportava mais essa aflição, abrigava-se dentro do

carroção, até que os solavancos e sacudidelas se tornassem insuportáveis. Então ela

pulava para fora e carregava Jacob até que a poeira a fizesse voltar novamente.

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Levaram apenas um dia para atravessarem a charneca entre o Big Blue e o Rio

Platte, onde então se dirigiram para o Oeste. Era noite e a visão panorâmica do Platte

deixava até os viajantes mais acostumados estupefatos.

— Eu vi isto pela primeira vez em 35 — o Dr. Whitman compartilhou — mas eu ainda

fico fascinado".

O vale grande e reluzente do Platte se estendia para além deles, numa planície

vasta que parecia totalmente nivelada.

— Eu afirmo— Observou Homer — parece que a água está flutuando sobre a terra...

parece uma fita amarelada esticada no vale".

O rio parecia mais largo que o Mississipi, mas não havia mata em suas margens.

Era diferente de qualquer rio que já tinham visto antes. Enganoso em sua aparência, tinha

apenas três ou quatro pés de profundidade e puderam atravessá-lo facilmente. Eles

tinham que começar a juntar estéreo para as fogueiras. Jesse estava surpresa ao

aprender que estrume seco de búfalo dava uma fogueira boa, quente. Ela preparou sua

torta de pêssego naquela noite. Homer parecia ter-se esquecido de suas reclamações

anteriores sobre as ―Besteiras" dela e comeu três pedaços.

No dia seguinte, viram um grande número de animais de caça. Mas o Dr. Whitman

explicou que, sendo a terra tão plana, eles teriam dificuldade de se aproximarem de

qualquer um o suficiente para atirarem. Homer falou dos que tentavam, como idiotas, e

disse para George Wood:

— Eu penso muito em meus cavalos para sair caçando animais, depois de eles

terem puxado o carroção o dia todo. Eles ganham a noite de descanso e não vou fazê-los

correr como bobos atrás de caça que não conseguimos pegar".

Groselha, cerejas silvestres e frutos de sorveira eram abundantes ao longo das

margens do Rio Platte, e Jesse se alegrava acrescentando-os às suas comidas rotineiras.

Lavínia colheu as verdes e ensinou a Jesse como prepará-las para Jacob, para prevenir o

escorbuto. A criança fez careta quando viu a substância verde, mas bebeu-a de boa

vontade após o encorajamento da — Tia Vinnie.

A viagem tornou-se monótona. Andando milhas por dia, Jesse caía na cama exausta

e acordava tão dolorida que se lamentava ao descer do carroção cada manhã. Lavínia

estava desesperada com suas mãos, que, segundo ela, estavam — Mais ásperas do que

uma folha de cicuta".

— Como vou fazer colchas de novo, Jesse?— ela perguntou. — Minhas mãos estão

tão doloridas que eu mal posso manter as roupas remendadas... e pensar— ela observou

— que eu me orgulhava de dar doze pontos por polegada!".

— Nós vamos ter uma festa das colchas de verdade, assim que chegarmos no

Oregon!— Jesse falou. — Não vai ser bacana?"

Foi no final de um dia terrivelmente quente e empoeirado que Lavínia ouviu, por

acaso, Homer reclamando das refeições serem sempre iguais.

— Bacon, café e bolachas, é só o que nós comemos! — disse ele. — Já que eu luto

e me desgasto com rodas de carroções quebradas e cavalos o dia todo, seria muito bom

ter algo especial para comer de vez em quando. Agora tenho de engraxar o arreio e não

dá para eu ficar olhando o Jacozinho o tempo inteiro, também. Você me chama assim que

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tiver algo comestível pronto."

Lavínia se apressou:

— Veja lá, Jesse, tome uma atitude com esse homem! Se o George tentasse falar

umas besteiras dessas para mim, ele teria bolachas e carne seca para o jantar até que

endireitasse".

Jesse riu só de pensar na Lavínia servindo — O George dela — Com esse tipo de

jantar. — A coisa não é tão ruim assim, Vinnie. O Homer tem boa intenção. Ele está é

cansado. E também preocupado com o Gabe e o Beau.— Aparelha tinha começado

amostrar-se extenuada com a viagem, bem como Applegate tinha previsto. Homer se

recusara a comprar grãos, apesar do conselho de Applegate. A forragem era, de fato,

insuficiente. As costelas dos cavalos estavam começando a aparecer um pouco, e seus

pêlos haviam perdido aquele brilho d o qual Homer tanto se orgulhava. De nada adiantava

perceber que seus animais estavam-se desgastando. Ele até mesmo mencionou a

possibilidade de deixar o fogão do lado da trilha.

Lavínia se recusou a ser compassiva.

— Cansado! Acorda, mulher! Você também não está cansada?— explodiu. — Puxa

vida, nós não estamos todos cansados!? Caramba, estou tão dolorida que mal posso me

mexer. — Então, animando-se acrescentou: — Bem, queridinha, as meninas colheram

groselhas hoje e assim teremos torta de groselha esta noite. Vocês estão convidados".

Apressou-se, para começar o jantar, acrescentando por sobre os ombros: — E eu

suponho que você possa trazer aquele verme do seu marido, como você mesma diz.

Quem sabe a groselha com bastante açúcar possa adoçá-lo um pouco!".

Capítulo 4

O Senhor é o meu pastor: nada me faltará.

Salmo 23:1

No dia seguinte, Jesse e Lavínia andaram juntas após o café da manhã. Não

conversaram muito, compartilhando um silêncio gostoso durante toda a manhã. Como o

meio-dia chegava, começaram a recolher estéreo de búfalo para o fogo. Após quase uma

hora, as mulheres perceberam que dois dos carroções estavam parados. A poeira baixou

e elas notaram, com um nó na garganta, que eram seus próprios carroções que haviam

saído da trilha. Então viram que toda a caravana começara a parar. Um agrupamento se

formara em volta de um carroção. Jesse jogou o monte de estéreo que tinha em seu

avental e começou a correr. Enquanto corria, carrapichos grudavam na barra de seu

vestido. O vento e o pó queimavam sua garganta, mas continuou a correr, até que,

chegando ao ajuntamento, ela o viu.

No chão estava Jacob, com um braço sobre sua cabeça. Ao seu lado ajoelhado, Dr.

Whitman. Ao ver Jesse chegar, levantou-se e aproximou-se dela.

— Senhora King, sinto muito. Não podemos fazer nada. Ele está com Deus agora.

— O rosto fechado do missionário encheu-se de lágrimas. Jesse olhou ao redor,

descontroladamente, e seu olhar parou em Homer. Curvado, sem o chapéu, a aba da

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camisa caída, aproximou-se dela. — Meu Deus, Jesse, meu Deus. Ele acordou e veio

sentar-se comigo... e antes de eu perceber o que acontecia, ele caiu. Tentei pegá-lo... eu

rasguei sua roupinha tentando pegá-lo... eu o peguei, mas então...— Sua voz sumiu —

..então o carroção deu uma guinada, eu o soltei... as rodas... — Ele não conseguiu

continuar, somente parado à sua frente, virando o chapéu sem parar, pelas abas.

Jesse queria gritar, mas os sons paravam em sua garganta. Todas essas pessoas,

todos esses estranhos olhando... Sua dor era profunda, muito grande para dividir com

eles. Deu uma respirada e levantou o queixo. Apertou a mão de Homer. Ele derrubou o

seu chapéu e apertou as mãos dela. Ele apertou tanto que doeu.

— A caravana precisa mover-se, Dr. Whitman— Jesse ouviu-se falando. — Quantas

vezes eu o ouvi dizer: 'À frente... precisamos sempre nos mover para a frente'. E

começamos tarde. Por favor, diga a essas pessoas para nos deixarem com nossa dor.

Podemos segui-los mais tarde."

O Dr. Whitman colocou a mão sobre seus ombros.

— Mas minha querida senhora King, a senhora não quer que fiquemos para oferecer

nossas orações nesta hora?"

Jesse respondeu melancolicamente:

— Nenhuma oração vai trazê-lo de volta... vocês todos podem orar por nós, nos

carroções, enquanto continuam— Então, abaixando um pouco a voz, ela suplicou: — Por

favor, Homer... faça todos irem embora. Podemos despedir-nos do Jacob sozinhos.

Homer, estes estranhos olhando...— Sua voz falhou, mas o tom de súplica trouxe

resultado. A caravana partiria.

As pessoas começaram a se dispersar em grupinhos, cochichando, enquanto se

afastavam. Apenas Lavínia ficou.

— Jesse querida— cochichou, — venha olhar o Jacob. Parece que ele está só

dormindo".

Durante o tempo interminável em que a multidão se dispersou, Jesse e Homer

permaneceram estáticos, cabeças baixas, esperando. De alguma forma Lavínia tinha

arrumado uma bata limpa para o nenê. Jesse se permitiu olhar e um grito fraco escapou

de sua garganta. Ajoelhada ao lado do corpinho sem vida, ela o pegou em seus braços e

delicadamente embalou o bebê. As lágrimas deixavam o rasto na face empoeirada.

Lavínia se ajoelhou ao lado de Jesse, na poeira, com os braços ao redor de seus ombros

encurvados.

Homer deixou Jesse às suas lágrimas, parando perto do carroção e esperando-a

acabar. Nervosamente, torcia o chapéu em suas mãos. Finalmente, Jesse agarrou-se à

criança perdida.

Lavínia afastou-se, enquanto Jesse levantava-se entorpecida, foi para o lado de

Homer e esperou-o falar.

Finalmente, ele colocou um braço no ombro de Jesse e repetiu:

— Eu o tinha pego...e então...".

Jesse interrompeu-o:

— Não foi sua culpa, Homer. Isto poderia acontecer com qualquer um".

Parecia que as palavras aliviavam algo dentro do homem. Enquanto seu corpo

balançava com uma onda de alívio, ele suspirou. Afastou-se de Jesse, encolhendo os

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ombros, e pegou uma pá no carroção. Ele falou quase com um resmungo:

— Posso não tê-lo agarrado para salvá-lo... mas quero ter a certeza de que os

coiotes perigosos vão deixá-lo em paz agora".

Furiosamente começou a cavar uma pequena sepultura. A pá cavou fundo, bem

fundo a campina dura, até que, exausto, ele sentou-se à beira da sepultura. Olhou para

Jesse de novo e encontrou-a ainda parada ao lado do carroção, onde a deixara. Quando

os olhos dela encontraram seu olhar, rapidamente ele falou, olhando o horizonte distante:

— Acho que é melhor acabar com isso logo".

— Espere um pouco, por favor.— Jesse relutou, com o corpo de Jacob, nos braços,

mas conseguindo entrar no carroção. Homer ouviu o barulho das coisas sendo mexidas lá

dentro. Parecia um tempo grande, mas ele não conseguia juntar-se a ela no carroção. De

alguma forma, seria muito intimidador fechar-se com ela agora, bem quando ela tinha

perdido seu filho.

Jesse saiu de dentro, carregando Jacob enrolado no acolchoado de bebê azul e

branco, o qual Homer não tinha mais visto desde que Jacob havia começado a andar. Ele

nem tinha percebido que ela o havia trazido na viagem.

Jesse tentou limpar a poeira do rosto de Jacob, enquanto o passava para Homer.

Ele colocou o corpo na sepultura e hesitou, não sabendo bem o que fazer. — Parece que

é necessário dizer algo..."

Jesse entrou mais uma vez no carroção e voltou com sua Bíblia. Desta vez, Homer

não fechou a cara com a aparição do livro. No passado, ele havia acusado Jesse de

negligenciar seu trabalho para ler esse livro velho.

— Querido Homer — ela falara suavemente: — Eu posso trabalhar muito melhor e

ser muito mais útil a você, após gastar tempo com o Senhor— Era a única área de sua

vida na qual ela parecia segura de ter seu próprio caminho. Homer, com relutância, cedeu

à sua "fraqueza feminina" e deixou-a ler a Bíblia. Mas hoje parecia certo ela ler o livro. Ele

estava grato por ela ter o livro e saber o que ler.

Jesse sabia mesmo o que queria ler. Não que fosse ajudar de alguma forma seu

precioso Jacob, mas seu próprio coração dolorido precisava do conforto de palavras

conhecidas. E, assim, ela abriu na passagem querida e começou a ler: — O Senhor é o

meu pastor: nada me faltará— Ela leu baixo, com dignidade, sua voz falhando um pouco

quando leu a parte: — Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria

mal algum— mas o restante leu firme. Ao final do salmo, ela curvou a cabeça. Homer a

imitou e ouviu enquanto Jesse conversava com o Deus dela.

— Senhor— ela disse delicadamente, — Não sabemos por que o Senhor levou

nosso único filho, mas sabemos que o Senhor nos ama e que o Senhor reverterá isto a

nosso favor... Senhor, ajuda-nos a confiar mesmo agora quando nossos corações estão

quebrados— Ela queria dizer mais, mas sentiu que não podia. Nem falou baixo —

Amém— mas virou-se e fugiu para a carruagem. Arremessou-se então no colchão, onde,

longe de qualquer olhar, podia demonstrar seu desespero.

Quando Jesse mais tarde olhou para fora, viu que Homer tinha enchido a pequena

cova e coberto com muitas camadas de pedras grandes. Ele estava sentado ao lado da

sepultura, enxugando sua testa. Vagarosamente, levantou-se e caminhou em direção ao

carroção. Seu passo, antes forte, estava agora transformado no passo arrastado de um

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homem velho. Foi então que Jesse percebeu que, a seu próprio modo, Homer estava

sofrendo também. Talvez mais, ela pensou, ele não tem o conforto do Senhor.

O sol estava-se pondo e Homer mexeu-se, acendendo uma fogueira. Jesse juntou-

se a ele e preparou o jantar. Comeram em silêncio e dormiram um sono quebrado, Jesse

dentro do carroção e Homer esticado fora dele, com o rifle ao seu lado.

Capítulo 5

Seja para correção... ou para beneficência, que a faça vir.

Jó 37:13

Á primeira luz da aurora, Homer apressou-se a arrear Gabe e Beau. Segurando no

lado do carroção, ele subiu, agarrou as rédeas e gritou para os cavalos: — Eia!". O

arranque do carroção tirou Jesse de um sono artificialmente profundo. Ela sentou-se e

fitou confusamente a pequena pilha de pedras, que começava a sair da sombra do

carroção. À medida que os cavalos moviam-se pesadamente para a frente, as pedras

misturavam-se à paisagem, até que finalmente elas desapareceram, e ela podia apenas

fitar o lugar no horizonte onde elas tinham estado. O rangido das rodas que ontem mesmo

parecia uma música ritmada de promessa assumiu tons agourentos.

Quando seu corpo demandava a alimentação da criança que partira, Jesse orava.

Senhor, eu não entendo... mas com a sua ajuda vou crer que isto de alguma forma nos

trará bem. Sua voz cortava-se enquanto cochichava mais alto: "Ô Senhor, mas ele era

tão... — ela soluçava — pequenininho...".

Quando eles pararam para o descanso do meio-dia, Homer apareceu ao fundo do

carroção. Ele não falou logo, mas alcançou e apertou suas mãos fechadas. Os calos nas

mãos dele eram grossos, mas ele envolveu as mãos de Jesse delicadamente, traçando

as veias finas e azuis,que passavam embaixo de sua pele.

Jesse olhou atentamente aquelas mãos, então fitou dos antebraços fortes à camisa

xadrez e finalmente a cabeça abaixada. Seriam lágrimas umedecendo os cílios? A

possibilidade de Homer sentir tal emoção tirou o pensamento da pequena sepultura.

— Preciso começar a acender o fogo— ela falou, mas suas palavras não

importavam, pois continuou sentada, agarrada às mãos fortes em seu colo.

— Tudo bem, Jesse— Homer quase cochichou. Então, limpando a garganta

acrescentou: — Você sabe, eu não queria deixá-lo lá...".

Jesse interrompeu:

— Mas Homer, nós não tínhamos escolha". O abismo de dor que os tinha separado

parecia fechar-se.

Jesse moveu-se, pegando o saco de farinha. Homer a tirou para fora do carroção.

Era um gesto que muitos teriam como gratidão, mas Homer King não era um homem de

tais gestos. Jesse tinha sempre entrado e saído do carroção sozinha. Ela tinha feito

amigos sozinha na caravana e adaptado sua vida o melhor que pudera. Essa

demonstração pequena de carinho confortou-a.

Page 22: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Nós os alcançaremos à noite— Homer assegurou a Jesse, — Eu não vou

desatrelar a parelha hoje... mas só dar-lhes um descanso rápido".

Acabado o almoço, Homer, com os olhos semicerrados, fitou o horizonte.

— Parece que vem uma tempestade. Vamos continuar."

Os dois trabalharam rápido, Jesse tentando escutar o barulho do trovão ao longe.

Num vislumbre, descobriu uma nuvem escura no horizonte.

"Ó meu...— sua voz parou na garganta. Ela colocou a mão no ombro de Homer, e, à

medida que levantava, apagado já o fogo, ela apontou a nuvem com desânimo.

O estrondo do estouro dos búfalos alcançou seus ouvidos e Homer

instantaneamente voou para o carroção. Saltando para o assento, arrumou os arreios.

Gritando para Gabe: — Eia!— ele fez um sinal brusco para que Jesse subisse. O tom

desesperado de sua voz e o movimento das rédeas comunicou o perigo aos cavalos.

Irrequietos já com o som longínquo do estouro, Gabe e Beau resfolegaram e arfaram para

a frente.

Jesse derrubou seu xale na grama, agarrou-se no lado do carroção e pulou para o

lado de Homer. Seu chapéu foi para as costas e, enquanto o carroção aos trancos

atravessava a pradaria, seu cabelo soltou-se, balançando-se como uma correnteza

vermelha, tingindo suas costas. Homer gritou:

— Vá para dentro, é mais seguro— enquanto apressava os cavalos. Seus olhos

procuravam na paisagem uma pedra grande ou algumas árvores juntas — qualquer coisa

que pudesse servir de abrigo contra essa correnteza de animais.

Jesse rolou sobre o assento para a cama no carroção. Estava uma bagunça de

barris e sacos. A cada soco do carroção, ela sentia uma pancada de algum objeto fora do

lugar. Numa olhadela para fora viu, com um grito de horror, o perigo se aproximando.

Homer dirigia com perspicácia, mas os búfalos vinham vindo, ganhando terreno. Ele

procurou em vão por um abrigo próximo. Ele teria de manter seus cavalos correndo e

esperar que a manada corresse na mesma direção e que não batessem na carruagem.

Beau e Gabe saltavam para a frente, puxando com todas as suas forças. Suas ancas

estavam molhadas. Dos freios voava espuma. Gabe tropeçou, então investiu para a

frente, respondendo aos gritos desesperados de Homer. A terra tremia com o aproximar

dos búfalos.

Jesse assistia, como numa versão de câmara lenta da realidade. Através da poeira

ela viu a mão de Homer levantar o chicote — o que ele havia sempre recusado a usar em

sua parelha. Sua mente gravou a imagem do chicote parado no ar, numa silhueta contra o

céu. Então o chicote desceu, de novo e de novo contra o lombo da parelha tão laboriosa.

O ruído dos búfalos estava diminuindo agora, [esse tentava agarrar em alguma coisa

para se segurar dentro do carroção, que dava guinadas contínuas. Rastejando para o

fundo, ela deu com o olhar de uma fera grande. O animal olhava firme para a frente, as

narinas dilatadas, a língua balançando para fora de um lado da boca. Viram-se num mar

retumbante de cascos estrondantes, e corpos, e pêlos marrom-escuros eriçados.

O som daqueles cascos batendo pesadamente abafou os gritos de Homer para sua

parelha esgotada. Gabe e Beau vacilaram e caíram. Jesse, instintivamente, saltou para

trás, para mais longe da correria que se aproximava. Sua mão bateu em algo duro.

Escuridão e trovão e o som de madeira lascando se misturaram para dentro de um

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silêncio não natural.

Capítulo 6

...Não temas, crê somente.

Marcos 5:36

Estava quente. E silencioso. Tão silencioso que Jesse podia ouvir o zumbido fino de

uma mosca ao redor de sua cabeça. Mas não, ela pensou, eu ouvi Gabe e Beau

perambulando em volta também. E... uma sombra caiu em sua face. O calor do sol a fez

abrir os olhos. Alguém estava em pé, à sua frente, mas o brilho do sol vindo por trás

tornava impossível enxergar o rosto. Homer? Não, Homer não. Seu cabelo não é tão

comprido.

Então, de uma vez só Jesse lembrou-se. O estouro dos búfalos. Recordou-se

daqueles últimos e terríveis segundos e com esta lembrança veio a certeza de que aquele

homem não era Homer. Ela estava olhando o rosto de um guerreiro Sioux.

Onde está Homer? Jesse permanecia deitada, silenciosa em seu terror. Ó, ser salva

por isto? Nas mãos destes selvagens, que será de mim?

— Não temas,... pois o SENHOR Deus está contigo, por onde quer que andares.—

As palavras vieram sem parar: — Não temas... Não temas...Não temas".

Jesse entregou-se aos cuidados de seu Pai e, sem articular qualquer palavra

conscientemente, Jesse orou.

Enquanto seus pensamentos se dirigiam ao céu, o índio abaixou-se para investigar o

brilho do ouro em seu pescoço. Jesse agarrou a cruz da corrente de sua mãe. O índio

insistiu. Ele arrancou a cruz de sua mão, mas, para surpresa de Jesse, não tirou de seu

pescoço. Ao contrário, ele examinou-a cuidadosamente, largou-a e deu um passo para

trás.

Jesse sentou-se. Cada músculo doía. Ela estava tensa, dolorida e com sede. Mas

nem um osso parecia quebrado. Olhou ao seu redor para o que havia restado do

carroção. E então, em direção à frente do carroção, seus olhos pegaram um lance de uma

flanela vermelha balançando com a brisa. Homer? Não, não era mais o Homer, de fato

tinha sido o Homer somente uns momentos atrás. Gabe e Beau estavam lá também. Seus

esforços valiosos para fugirem dos búfalos foram sua última luta penosa.

Jesse percebeu que estava sozinha e aos cuidados dos índios que estavam parados

ao redor, olhando os destroços, enquanto seus potros pastavam aqui e ali numa grama

ruim. Era um bando de índios silenciosos, fazendo um ou outro comentário sobre o que

encontravam nos destroços e examinando, com curiosidade, o fogão de ferro. A farinha,

os grãos e toda a reserva de comida estava espalhada, misturada no pó e perdida.

Somente uma roda do carroção estava inteira. O restante estava estraçalhado de tal

forma que o carroção retorcido no chão parecia um potro recém-nascido com suas pernas

compridas esticadas.

— Não temas... Não temas...— As palavras continuavam retumbando na mente de

Jesse, enquanto ela olhava os índios andando em volta. Eles a ignoraram um bom tempo

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e, então, aquele que tinha visto sua cruz voltou-se para ela. Ela percebeu pela primeira

vez que ele era mais alto que seus companheiros — ou teria sido, não fosse uma perna

ruim. Aparentemente ele quebrara aquela perna no passado e ela tinha sido mal

consertada, pois agora ele mancava, e a cada passo suas tranças balançavam. Tinha o

rosto pintado de vermelho, cada bochecha com três riscos pretos e círculos amarelos

brilhantes ao redor dos olhos.

Seu rosto estava carrancudo quando se aproximou de Jesse e ela se encolheu,

afastando-se de suas mãos. Mas ele a empurrou para baixo e, com isso, a dor nas costas

e pernas a fez gritar. Ela vacilou, tentou levantar-se, mas não conseguiu. O guerreiro

pegou-a rudemente pela cintura e, meio carregando, meio empurrando, levou-a para seu

potro branquíssimo. Ele era forte e colocou-a no potro em pêlo, sem esforço. Jesse

agarrou-se, amedrontada com o meneio do potro, e preparou-se para ser levada embora.

Mas o índio corajoso saltou para a garupa dela. Ele cheirava suor e tinta da pintura

feita para batalha. O estômago de Jesse embrulhou. Ela respirou fundo, orando: Deus,

me segure neste potro. Com certeza não era para eu morrer aqui, assim — sozinha —

Deus, me ajudei.

Jesse tentou olhar os destroços. Surpreendeu-se quando o índio virou o potro para

que ela pudesse olhar. Como sobrevivi a isto?, Pensou admirada enquanto via a cena.

Algo branco chamou sua atenção e viu que sua melhor colcha estava agora na garupa de

outro potro. Era uma colcha toda branca, na qual tinha trabalhado firme por alguns meses

antes de seu casamento com Homer. Ela a tinha emendado meticulosamente, enchendo

as aplicações, de forma que as flores e festões saltavam do fundo pontilhado. Homer

tinha reclamado, mas Jesse insistira em trazê-la.

— Não interessa onde possamos viver, Homer — ela disse com respeito, mas

firmemente, — Se eu puder pôr esta colcha em minha cama aos domingos, sentirei que

estou em casa". Desta vez tinha sido Jesse que insistira e Homer aquiescera.

Agora a colcha brilhava com o sol quente. Estava empoeirada, mas parecia ter

sobrevivido à tragédia, sem dano. Jesse sorriu sinistramente, pensando se ela teria tal

sorte quando os selvagens a levassem para seu acampamento — ou onde quer que eles

a levassem.

— Não temas... Não temas... Não temas...— As palavras estavam retumbando em

seu coração no ritmo do galopar dos potros sobre a campina. Pareciam estar cavalgando

há horas, saindo das planícies e subindo os penhascos distantes. As pernas de Jesse

doíam e seu coração saltava a cada movimento brusco do potro.

Eles vadearam um pequeno riacho e os índios desceram para tomar água. O

capturador de Jesse tirou-a do potro e empurrou-a em direção à água. Ela sorveu a água,

espirrando em seu rosto quente e lavou suas mãos trêmulas na água clara. Seus olhos

procuraram sinais, na distância, de algum grupo de pessoas. Será que os da caravana

viriam?

O índio puxou-a do riacho, pelo braço. Ele gesticulou, parecendo acenar com a mão,

e então apontou para ela. Colocou a palma direita para cima enquanto mexia de um lado

para o outro na altura do abdômen. Jesse olhou sem entender e ficou imóvel com medo

de se mexer. O índio repetiu os três movimentos com mais força. Então ela entendeu. Era

a língua de sinais que tinha visto Dr. Whitman usar com outros índios durante a viagem.

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Mas os movimentos nada significavam para ela. Ela balançou a cabeça, com nervosismo,

temendo a reação. O índio pouco reagiu, exceto para pegar, numa bolsa ao seu lado, um

pedaço duro de carne seca, que ele lhe ofereceu a seguir. Jesse pegou obedientemente e

forçou-se a morder um pedaço. Mas seu estômago recusou a oferta.

Lavando de novo a boca no riacho, deu uma olhada com medo. O índio colocou-a no

potro de novo e trotaram, agora à frente do bando de guerreiros. Foi uma caminhada

longa, torturante. Jesse agarrava-se à crina branca do potro, entorpecida demais para

orar, cansada demais para ficar com medo de novo. Finalmente, o bando parou, à noite,

deixou os potros pastarem e fez uma fogueira. Várias galinhas da campina que eles

haviam matado durante o dia foram assadas. Seu capturador repetiu os gestos do início

do dia e então ofereceu uma porção a Jesse. Desta vez ela pegou avidamente. Abaixou-

se devagar, exausta, no chão e adormeceu tão logo acabou de comer.

Um trovão fraco e uma brisa fria súbita acordou-a num momento, durante a noite.

Rolando na pradaria vasta, uma tempestade violenta chegou. Os índios pegaram os

cavalos e os seguraram fortemente, enquanto se esticavam no chão, sem defesa contra o

ataque furioso da chuva torrencial.

Raios rasgavam o céu, iluminando os arredores com uma luz grotesca. Uma grande

quantidade de água caía sobre eles e ainda assim os índios ficaram deitados na campina,

simplesmente esperando a tempestade passar. O potro branco, o qual ela havia sido

forçada a montar, ficou parado perto de seu dono, com o focinho no chão, agüentando

calmamente o aguaceiro.

Jesse tremia de medo e agachou-se com a cabeça nos joelhos. Abraçando as

pernas, balançava-se para a frente e para trás. Ela lembrou-se das tempestades em casa,

em Illinois, quando, ainda criança, corria para dentro e trepava na cama de corda dos

pais, escondendo-se debaixo da pilha de acolchoados, até que a tempestade passasse.

Ela quase conseguira imaginar-se lá, quando uma luz brilhante de um raio golpeou algum

lugar próximo.

O riacho tinha crescido e ela ouviu suas águas apressadas chegarem perto. Então

ela sentiu a barra de sua saia encharcada sendo puxada. Mais um raio e ela gritou alto.

Uma mão forte puxou-a fora da água. Um antebraço encharcado esticou-a na terra. Ela foi

apertada na terra por aquele braço e ficou deitada lá, rosto para baixo, por um tempo que

pareceu horas.

Finalmente a tempestade começou a acalmar. Estava indo para o Leste. O braço

atravessado em suas costas levantou-se e ela empurrou-o, levantando a cabeça para ver

que as nuvens estavam separando-se. Estrelas piscavam nas partes visíveis do céu. Por

fim, a lua trouxe uma luz brilhante sobre a paisagem encharcada. A luz lúgubre, o potro

branco parecia um fantasma quando se mexia pastando.

Quando o dia raiou, somente o volume maior do riacho podia provar que a noite

havia sido violenta. Os índios montaram cedo e Jesse mais uma vez foi forçada a montar

o potro branco dançante. Com surpresa percebeu que a tempestade havia limpado todos

os resquícios da viagem deles. Nenhum grupo de busca poderia encontrá-la.

No segundo dia de viagem, ao entardecer, o bando de índios subiu uma elevação e

Jesse viu um acampamento de tendas de índios na campina abaixo. O ritmo das batidas

de seu coração ficou tão veloz quanto o barulho das patas do potro e ela agarrou sua

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crina pensando: O que vai acontecer agora?.

Todos no acampamento vieram encontrar os caçadores e as crianças gritavam

saudações. Enquanto passavam pelas tendas que davam para o lado leste, mulheres

curiosas encaravam Jesse com admiração. Entorpecida pelo cansaço e medo, Jesse

encarava o vazio no alto. Logo isto acabará, ela pensou. Vou morrer aqui e isto acabará.

A morte traria o alívio esperado da tortura de cavalgar e cavalgar, com todos os músculos

agonizando a cada passada mais larga que balançava seu corpo fraco.

Finalmente, o potro parou diante de uma tenda grande/ e o bravo índio pulou para o

chão. Ele agarrou Jesse rudemente, como se fosse jogá-la ao solo. Mas seu braço forte,

na verdade, impediu-a de cair, fazendo Jesse chegar suavemente à porta de sua tenda. A

voz dele estava brava ao acenar para que ela entrasse. As mulheres e crianças olhavam

em silêncio. Uma índia cochichou alguma coisa à sua companheira e elas concordaram e

riram uma para a outra. Jesse segurou sua saia e se apressou para dentro.

O índio entrou mancando após ela e abaixou a aba na entrada da tenda.

Instantaneamente, seu comportamento mudou. Jesse olhou-o tirando suas armas. Ele

voltou-se para ela, que se afastou. Ele esperou até que ela olhasse dentro de seus olhos.

Seu cenho relaxou. Seria possível que ele não planejasse matar-me depois de tudo isso?

Mas então... não, a morte seria preferível a outras coisas.

O índio virou-se abruptamente, resmungando para uma velha que se acocorava ao

lado da fogueira balançando alguma coisa dentro de um tipo de sacola pendurada em um

tripé feito de galhos. Ela cacarejou alguma resposta e o homem saiu, deixando a porta

aberta. A luz do sol entrou na tenda e, com a claridade, Jesse pôde entender a razão de

ter sido trazida para ali.

De cima de uma prancha que era um suporte de bebê, dois olhos escuros cintilavam

enquanto olhavam a velha se mexer. Jesse ouviu um chorinho que logo cresceu até um

grito de dor intenso/ e a velha arrastou-se até a prancha. Gentilmente ela apertou as

narinas da criança e um suspiro para respirar interrompeu o grito. A velha começou a

trabalhar rapidamente, amassando grãos e acrescentando líquido para fazer um mingau

ralo. Cada vez que o nenê começava a gritar, ela apressava-se a repetir os apertos nas

narinas até que o suspiro parasse o choro novamente. Por fim, a mulher começou a

molhar os dedos no mingau e levá-los à boca do nenê. Ele chupou avidamente os dedos

dela, mas logo começou a berrar de novo, frustrado.

Jesse sentiu seu corpo responder ao choro do nenê e olhou para baixo, embaraçada

com a umidade começando a aparecer no corpete do seu vestido. Ela cruzou os braços e

os apertou sobre os seios, mas a velha tinha visto. Ela não hesitou em desembrulhar o

nenê e carregá-lo, cruzando a tenda, até Jesse.

Jesse olhou de lado, fingindo não entender, mas o choro persistia e ela olhou de

novo a criança. Momentaneamente o choro parou, quando os olhos da criança

encontraram os dela. Jesse cochichou:

— Eu não sou quem você quer— mas, mesmo enquanto falava, ela instintivamente

acariciou sua bochecha aveludada. A cabecinha virou, procurando seus dedos para

sugar.

O instinto ganhou. Jesse pegou o nenê, embalou-o em seu colo enquanto abria o

corpete. Colocada no seio, a criança procurou-o e começou a mamar avidamente. Ele

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ficou quase imóvel, sua mãozinha escura contra a pele clara dela. Então ele parou,

olhando para cima. Enquanto seus olhos fitavam o rosto dela, o leite escorria de sua

boca. Ele arrotou alto e começou a mamar novamente.

A fraqueza tomou conta de Jesse e ela sentou-se, olhando ao redor abobalhada.

Através da entrada da tenda, ela percebeu olhares de índios se movimentando enquanto

o crepúsculo se aproximava. O fogo no centro da fogueira estava baixo. Uma fumaça

preguiçosa subia em círculos e saía pelo buraco, no alto da tenda. Os olhos de Jesse

seguiram a fumaça até em cima e ela viu uma estrela brilhando no céu que, rapidamente,

escurecia.

A velha veio novamente e tirou o nenê dos braços de Jesse. Carregando-o para

perto do fogo, ela desembrulhou-o e o colocou numa manta de pele de búfalo, perto do

fogo. As pernas e os braços balançavam-se no ar. Jesse olhou a mulher cuidando do

bebê, murmurando suavemente enquanto massageava seu corpinho com algum tipo de

loção.

Então a velha deixou o recém-nascido e foi para o lado da tenda oposto a Jesse.

Resmungando alto, ela arrastou um couro de dormir até onde Jesse se assentava.

Voltando ao outro lado de novo, ela desenrolou mais duas peles, obviamente preparando

camas para os habitantes da tenda.

Quando a escuridão chegou, o índio voltou. Ele deu uma olhada para o lado de

Jesse e virou-se abruptamente para falar macio com a velha. Inclinou um odre pendurado

em um mastro perto do centro da tenda. Água fresca foi derramada, ele lavou suas mãos,

então bebeu bastante. Jesse olhou timidamente quando a cabeça dele se levantou para

beber. O pescoço volumoso saía de uns ombros largos e fortes. As mãos que seguravam

os odres eram grandes. Na escuridão crescente, o brilho do fogo tornava a pele do índio

de um vermelho extraordinário. Jesse estremeceu quando ele acabou de beber e virou-se

em sua direção.

Mas era o nenê que chamava sua atenção. Ajoelhando-se ao lado da criança, ele

alisou o cabelo escuro, cantando delicadamente:

a wa wa wa Inila istinma ma a wa wa wa wablenica.

Ele encheu uma pele com alguma coisa branca e fofa, tirada de uma sacola de

couro. Então embrulhou o nenê no cueiro de pele e o devolveu a Jesse. Ele gesticulou a

ela que se deitasse no couro de búfalo que a velha havia desenrolado. Jesse deitou-se,

agradecida, com o nenê ao seu lado. Apesar de seus temores, o sono veio. O nenê

dormiu em seus braços, acordando para mamar avidamente muitas vezes naquela

primeira noite.

De manhã, quando a velha tentou acordá-la, Jesse estava vagamente consciente de

ter sido chamada para acordar, mas sem conseguir responder. As feridas e os músculos

doloridos, o medo e a noite da tempestade sem dormir deixaram-na prostrada. O nenê

adormecido foi levado delicadamente e seu cueiro, trocado. Jesse King dormiu quase o

primeiro dia inteiro como cativa na aldeia lakota.

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Capitulo 7

...faze-me saber o caminho que devo seguir, porque a ti levanto a minha alma.

Salmo 143:8

Desde que podia lembrar-se, a vida tinha sido dura para Lobo Uivante. Seu pai fora

morto em um ataque à tribo Brule. O novo marido de sua mãe tinha instantaneamente

desgostado de Lobo Uivante, perseguindo-o até que o jovem desistisse de voltar e

vivesse sua própria vida. Ele conseguiu sobreviver, mas sempre sem sorte alguma. Uma

vez, ele tinha conseguido adquirir uma égua boa, mas ela ficou manca logo na manhã

seguinte ao dia em que ele a roubara do Pawnee. Montado em potros ruins e velhos,

Lobo Uivante raras vezes saía-se bem numa caçada de búfalos. Sua tenda era pequena e

pouco equipada. Ele tinha só dois potros. Mas era um bonito guerreiro pele-vermelha.

Arrojado e violento nas batalhas ganhara o respeito e a admiração de muitos de seus

companheiros.

Lobo Uivante geralmente escondia a amargura em seu coração. Mas os mais velhos

da tribo viam suas fúrias rápidas e balançavam suas cabeças em desagrado. Quatro

Céus apostava no comportamento de Lobo Uivante.

— Tenho certeza de que o tempo acalmará seu coração — e aqui Quatro Céus

parava e piscava para aqueles ao se redor, — O tempo e uma boa mulher". Os outros

mais velhos encolhiam os ombros e esperavam que Quatro Céus estivesse certo.

Conforme ia ficando mais velho, a sorte de Lobo Uivante não mudou muito. Parecia

que ele tinha sempre apenas o suficiente para atravessar cada inverno, mas nunca

abundância. Ele permanecia descontente e violento, ansiando alcançar o sucesso do

vento e tornar-se o líder de seu povo. Quando Flor do Campo lançou seu primeiro olhar

de mulher na direção dele, Lobo Uivante ficou estarrecido. Ela era a filha de um ancião

bem respeitado.

O pai de Flor do Campo preveniu-a sobre o temperamento inconstante de Lobo

Uivante, mas ela tornou-se ainda mais determinada em cortejá-lo. Ela fora conquistada

tanto por sua beleza quanto por sua natureza rebelde e arrojada. O encanto dela

aumentou a grosseria de Lobo Uivante o suficiente para que ele a envolvesse em sua

manta de búfalo, do lado de fora da tenda do pai dela, e a reivindicasse como sua noiva.

A exuberância jovem deles logo desgastou-se. Flor do Campo tornou-se a desculpa

para a má sorte de Lobo Uivante. Ele a ridicularizava e a culpava, destruindo sua afeição

jovem, antes mesmo de amadurecer e transformar-se em amor, o que a faria agüentar

seus ataques de temperamento. Quando ele voltava de alguma caçada só com uma

pobre caça, ela a pegava sem uma palavra de reclamação. Ele interpretava seu silêncio

como uma acusação e punha a culpa de sua caçada fraca no potro manco — ou em

qualquer outra coisa em que pudesse pensar. O fato de ele ter levantado tarde ou ter sido

impaciente e espantado a caça nunca vinha à tona,e Lobo Uivante entrou pela vida afora

culpando outros por seus próprios infortúnios.

Flor do Campo tentara ser uma mulher zelosa por muito tempo, mesmo depois de

sua afeição pelo marido ter acabado. Sua mãe era um grande conforto, encorajando-a a

continuar firme em seus deveres, pois Lobo Uivante um dia iria acalmar-se e apreciá-la.

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Mas dia após dia ele continuava a falhar. A falha transformou-se em amargura, e a grande

beleza de sua esposa tornou-se uma lembrança de suas próprias falhas. Lobo Uivante foi

pego em um espiral descendente, do qual Flor do Campo recusou-se a compartilhar. E

ele a odiou por isto.

Foi no final de seu primeiro ano de casados que Flor do Campo finalmente percebeu

que tinha cometido um engano terrível. Seu pai, Fala Muito, concordou, mas deu-lhe o

mesmo conselho de sua mãe — fique com o Lobo Uivante e dê-lhe tempo para crescer.

Fala Muito também acrescentou a versão lakota do discurso

— Não te falei?— ao seu conselho. Flor do Campo determinou-se a não mais levar

desapontamentos para os pais.

No outono daquele primeiro ano, algo que iria mudar a vida de Flor do Campo para

sempre aconteceu. A mulher de Cavalga o Vento morreu, deixando-o com um filho recém-

nascido para ser criado. Uma semana mais tarde, Flor do Campo viu, juntamente com

suas amigas, quando ele chegou à aldeia trazendo uma mulher branca em seu potro.

Lobo Uivante trouxe à sua mulher uma estranha coberta branca que, segundo dissera,

havia encontrado no meio dos destroços de uma carroça de um homem branco. Flor do

Campo não disse nada, mas Lobo Uivante viu-a dando uma olhadela para a tenda de

Cavalga o Vento enquanto ela recebia a coberta. Ela pensou:Cavalga o Vento traz uma

mulher... Lobo Uivante traz um pedaço de pano branco sujo. E vai ser sempre assim.

Lobo Uivante sempre trará o que ninguém quer.

Lobo Uivante olhou com ciúmes quando Cavalga o Vento mandou a mulher branca

entrar na tenda. Quando ela rastejou para dentro da tenda, ele sorriu, divertindo-se ao

imaginar o que iria acontecer.

Mas Cavalga o Vento voltou para fora e saiu da tenda tão logo deixou a mulher lá

dentro. Lobo Uivante assistiu a isso quase não acreditando, e então empurrou a própria

esposa para dentro de sua pequena tenda para ordenar o pagamento de seu presente.

Na manhã seguinte, Flor do Campo riu,com as outras mulheres, enquanto falavam a

respeito da nova mulher.

— Como ela é?— alguém perguntou quando Velha juntou-se a elas na colheita de

frutos silvestres.

Velha encolheu os ombros.

— Você viu. Ela é branca.

— Ela vai ficar?— perguntaram.

— Meu filho diz que é uma mulher para alimentar seu filho.— A velha acrescentou:

— Ela foi encontrada em uma das carroças esquisitas dos brancos. Cavalga o Vento diz

que eles encontraram coisas de um bebê. O grupo de caçadores viu quando essa mulher

e seu marido colocaram o bebê na terra".

— Eles o pusera na terra?— As mulheres estavam horrorizadas.

— Ele foi pisado pela própria carroça esquisita. Eles põem seus mortos na terra.

As mulheres murmuravam incrédulas. Tinham, ouvido falar dessas coisas, mas, até

então, nenhuma delas havia jamais presenciado tal fato.

Flor do Campo falou:

— Então, se o bebê dela foi para a outra terra, ela deve ter leite para a criança de

Cavalga o Vento".

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A velha concordou e tagarelou:

— Ela tem muito leite. Ela não queria, mas eu a fiz dar de mamar. Os olhos da velha

se enterneceram. Eu acho que ela gosta da criança. Cavalga o Vento deu-lhe o nome de

Duas Mães. Ela vai ficar— Então, a velha acrescentou: — Chega! Vocês mesmas a

verão. Então decidam o que pensam dela. Eu já falei muito e meu filho não vai ter comida

se eu não trabalhar".

Foi no começo da tarde que a velha finalmente conseguiu acordar Jesse.

Gesticulando para que a seguisse, ela pegou o nenê e saiu da tenda. Jesse seguiu a

velha até um riacho perto dali, onde viu a mulher desembrulhar o nenê e dar-lhe banho.

Após o banho, o corpinho firme foi massageado com folhas. A velha apontou para uma

planta, ali perto. Jesse apanhou uma folha. Instantaneamente sentiu um perfume doce,

acre.

Quando a mulher acabou de cuidar do nenê, ela renovou o enchimento do cueiro de

pele de carga com tufos de felpas de algodãozinho do campo, embrulhou-o novamente

nele e deu-o para Jesse. A fragrância da planta silvestre ficou no ar. Jesse aconchegou o

nenê em seus braços, com saudade dos olhos azuis sorridentes de Jacob e de sua

saudação feliz.

A velha olhava interessada. Ela viu o sorriso de Jesse, enquanto lágrimas saíam ao

piscar dos olhos cinza. Deu um tapinha delicado no braço de Jesse.

O nenê procurava mamar e Jesse aquiesceu, sentando-se à beira da água,

desatenta às idas e vindas de Velha. Quando a fome da criança acabou, Jesse ouviu

passos atrás. Olhou e viu Velha abrindo uma roupa de pele de alce sobre um arbusto de

sorveira ali perto. Mocassins foram colocados abaixo da roupa.

Jesse curvou-se olhando seu reflexo na água e ficou horrorizada com o que viu. Seu

rosto estava imundo, os cabelos empastados de poeira.

Velha pegou o nenê e Jesse ajoelhou-se à beira da água, afundando suas mãos na

corrente e espirrando a água fria na face.

Forçando uns passos na água, ela foi até um Lugar onde galhos pendentes

permitiam alguma privacidade e olhou, enquanto tateava desajeitada mente para abrir os

botões e os espartilhos molhados. A água molhou sua pele. Ela massageou com força o

cabelo e voltou para perto da margem, para rapidamente vestir a roupa limpa.

Vadeando de volta, para restaurar suas próprias roupas, ela lavou-as o melhor que

pode e espalhou todas as anáguas para secarem ao sol.

Bem, Pai, ela pensou, aqui estou eu, a pequenina Jesse King... empregada de

índios. Ela sorriu com a figura ridícula que devia ser, com o vestido de pele de alce trazido

pela Velha. Ainda assim, estava grata por qualquer coisa limpa e contente com o conforto

da roupa. Sem espartilhos apertando sua cintura e anáguas enroscando na grama

enquanto andavam de volta para a tenda, Jesse sentiu-se quilos mais leve.

De volta à tenda, Velha fez um tipo de pente esquisito, com espinhos de ouriço.

Ficou olhando Jesse esforçar-se para usá-lo por alguns momentos e então tirou-o das

mãos inexperientes e, pacientemente, penteou o cabelo comprido e grosso até deixá-lo

liso e sedoso.

Velha disse algo novamente e gesticulou para Jesse trançar seu cabelo. Com a

tarefa acabada, Jesse rapidamente saiu da tenda e correu para a beira do riacho para

Page 31: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

olhar-se de novo. Ela deu uma risadinha com a mulher estranha que apareceu na água.

Sua pele era branca, seus olhos ainda cinza, mas o cabelo ruivo estava trançado

elegantemente e caído nos ombros. O castanho-amarelado do vestido que usava fazia

seu cabelo brilhar.

Bem, então Senhor, sabes o número de fios de cabelo em minha cabeça... então o

Senhor deve ser capaz de me reconhecer, mesmo nesta vestimenta inacreditável. O

vestido de chita e as anáguas ainda estavam espalhados nos arbustos. As mulheres

começaram a se juntar e a exclamar, em volta das anáguas. Jesse ficou horrorizada ao

vê-las ajudando-se a vestir qualquer uma que as encantasse. Ela pretendia ficar com as

suas roupas, mas, incapaz de comunicar-se e com medo de defender suas posses,

assistiu ao desaparecimento de cada peça, uma a uma, para dentro das tendas das

outras mulheres.

O jantar — cozido feito no fogo da tenda — foi preparado em silêncio pelas duas

mulheres. O pai do nenê não apareceu. — Não temas "parecia ser cochichado pelo vento

enquanto Jesse se arrumava na cama de pele de búfalo, naquela noite. O nenê, que não

era Jacob, aconchegou-se e Jesse dormiu profundamente.

Na manhã seguinte, após o café, Velha prendeu o suporte de bebê às costas de

Jesse. Esta a seguiu obediente mente para fora da tenda, com o coração disparado. Elas

se juntaram a um grupo de mulheres numa expedição à procura de alimentos.

Desacostumada ao peso de um suporte de bebê nas costas, Jesse tropeçava pelo

caminho, fascinada com o conhecimento das mulheres sobre as plantas da campina. Elas

desenterravam raízes e colhiam frutos até suas sacolas de pele ficarem cheias. Jesse

começou a enxergar a campina sob uma nova luz. Na caravana ela tinha admirado as

flores, mas a grandeza da paisagem logo se tornara uma mesmice. De fato, uma ou duas

vezes até Homer tinha dormido enquanto dirigia, por causa da monotonia do cenário.

— Olha só isto, Jesse. Vê alguma coisa para a qual valha a pena olhar? Não há

madeira para construirmos — com que um homem pode construir uma casa aqui? Nada

para construir uma cerca decente, nada — nem mesmo pedras suficientes para isso. Não

há rios por onde transportar cereais para o mercado. Não há como estabelecer o

comércio. É deserto, Jesse — um deserto sem serventia. Deixem os índios possuírem

isto, é o que acho!"

Homer, Jesse pensou. Ela se questionava sobre sua falta de emoção ao pensar

nele. Ele tinha sido seu marido, mas tinha partido agora, e ela se encontrava em tal

situação inacreditável que todas as suas forças eram guardadas para enfrentá-la. O índio

obviamente queria que ela ficasse e alimentasse sua criança. É claro que os outros nos

procurarão, ela pensou. Mas talvez não. Exceto por George e Lavínia, não tínhamos

amigos lá... e a tempestade... Seus pensamentos rodavam e rodavam até que a criança,

no suporte, chorava para ser alimentada e ela parava para amamentá-lo.

As mulheres pararam ao seu redor em um círculo dando risadinhas. Uma menina

insolente cutucou o braço de Jesse, apertando cada pinta de sua pele, manchada pelo

sol. Velha finalmente chegou expulsando, repreendendo e enxotando todas elas,

protegendo Jesse de seus olhos curiosos, com o suporte do nenê. Jesse olhou a face

enrugada.

— Obrigada — disse ela. Velha não podia entender a língua, mas o tom de

Page 32: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

apreciação significava muito. Velha apontou a criança e disse: "Wablenica". Jesse repetiu

a palavra. Ela apontou com um dedo para si mesma e disse: "Wakanka". Jesse repetiu a

palavra.

Flor do Campo assistiu a essa cena e algo agitou-se dentro dela. A mulher branca

estava tentando. Estaria solitária? Com certeza parecia desnorteada. De fato, ela não

tinha-se esquivado quando elas cutucaram e apertaram sua pele branca, estranha, com

manchas marrons. Ela tinha olhado para elas com seus olhos frios, cinza.

Quando a criança acabou de mamar, Velha ajudou Jesse a prender a criança de

novo e pegar o carregador mais uma vez. Flor do Campo deixou o grupo de mulheres que

ria da mulher branca desajeitada e aproximou-se de Jesse para oferecer-lhe sua

cavadeira. Jesse pegou-a, mas olhou ao redor, confusa. Não tinha idéia do que cavar.

Flor do Campo andou, mostrando as plantas, ensinando-lhe onde e qual arrancar. Logo

Jesse começou a encontrar suas próprias plantas e raízes. Flor do Campo a encorajava.

— Tinpsila— disse ela, apontando uma raiz em sua sacola. Jesse tentou falar a

palavra, mas os sons novos eram difíceis. Flor do Campo continuou, pacientemente.

Arrancando outra raiz, ela disse: — Fangi". Jesse encontrou uma e gritou: — Powgayl—

As mulheres olharam e riram dela, mas Flor do Campo a corrigiu e sorriu, encorajando-a.

Jesse lembrou-se de apenas uma coisa naquele primeiro dia entre as mulheres. Elas

podiam ser incrivelmente cruéis, rindo e caçoando dela. Mas Wakanka — a Velha — era

boa. E a outra, bonita, de olhos bondosos, parecia gostar dela.

Naquela noite Velha ensinou Jesse a cozinhar o que haviam, colhido. Cavalga o

Vento chegou, comeu e saiu, sem nenhuma palavra para elas. Parecia que ele nem via

Jesse, exceto por seus grunhidos de satisfação ao vê-la amamentar seu filho.

Era tarde quando a porta-aba da tenda se abriu e ele entrou. Jesse, que estivera

dormindo, acordou quando ele tocou em seu ombro. Sentou-se, com o coração

disparando; mas o índio apenas caminhou para o outro lado da tenda, abriu uma caixa

feita de peles e voltou para seu lado, colocando um pacote em seu colo. Gesticulou para

que abrisse e ela obedeceu, ficando boquiaberta com o que viu. As bordas douradas de

suas páginas brilhavam à luz da fogueira. Era uma Bíblia pequena.

Jesse pegou-a com um grito abafado de alegria e apertou-a contra o corpo. Abaixou

sua cabeça e uma lágrima rolou em sua face. Ó Senhor, ela orou, como poderei

agradecer-lhe por este milagre?

Parecia, porém, que esta seria uma noite de milagres, pois o índio abruptamente

sentou-se à sua frente e disse em voz baixa: — Você contar palavras no livro?".

Jesse estava atônita. Será que tinha mesmo ouvido sua própria língua? Não, ela

pensou, era apenas o vento... ou um sonho meu... ou...

— Você contar palavras no livro?— ele repetiu, dando ênfase nas palavras

diferentes, pois pensou que ela não o tivesse entendido.

Jesse olhou o índio com espanto. Ela não respondeu à sua pergunta, mas gaguejou:

— Você fala inglês?".

O índio concordou com um rápido balanço de cabeça.

— Muitas luas atrás. Eu esqueci muito." Deu uma pausa antes de dizer: — Em sua

língua eu sou Cavalga o Vento— Ele apontou para Jesse.

"King— ela gaguejou, — Eu sou Jesse King".

Page 33: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

O índio alcançou e segurou a cruz dourada ainda no pescoço de Jesse.

— Jess-e-king conhecer livro?"

Jesse afirmou com a cabeça.

— Jess-e-king conhecer Jesus?"

Novamente afirmou com a cabeça.

Ele pegou a Bíblia e abriu, apontando a página:

— Você contar livro".

Jesse só conseguia ficar sentada, olhando estarrecida a mão que cobria metade do

livro aberto. As veias apareciam bem saltadas nas costas da mão. Os dedos eram

compridos e as unhas, quebradas e grossas.

Enquanto ela permanecia em silêncio, Cavalga o Vento fechou a mão e a colocou no

coração. Falou vagarosamente. Sua voz era calma e baixa. Jesse lembrou-se da forma

como seu pai havia falado certa vez, quando eles encontraram um veado numa clareira.

Sua voz, geralmente ríspida, tinha-se tornado suave, pois ele tentava não assustar o

veado desconfiado.

O índio bateu no peito com a mão fechada e repetiu:

— Conhecer Deus aqui— Abrindo a mão, tocou a têmpora: — Precisar Deus aqui.

Missionário fala esse livro ensinar Deus. Você ensinar".

Jesse manuseou as páginas da Bíblia usada, orando por direção. Cavalga o Vento

esperou pacientemente. As páginas se abriram no Salmo 1. Jesse finalmente começou a

ler com a voz trêmula:

Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se

detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes

tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Pois será como a

árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas

folhas não caem, e tudo quanto fizer prosperará.

Parou de ler e ficou folheando as páginas do livro.

Cavalga o Vento também ficou quieto por um momento. Então disse:

— Arvore ao lado do ribeiro cresce forte".

Jesse concordou com um movimento da cabeça.

Ele pegou a Bíblia dela, embrulhou-a cuidadosamente nas peles e devolveu para

Jesse. — Quando as estrelas vêm de novo, você contar livro para Cavalga o Vento?"

Jesse concordou.

Depois de um tempo, ele perguntou: — Jess-e-kingter irmãos?".

— Não."

— Irmãs?"

— Sim, tenho uma irmã."

Ele começou a falar e então parou abruptamente, esforçando-se para encontrar as

palavras certas. Finalmente, perguntou:

— Irmã de Jess-e-king sentir ela estar com lakota?".

Jesse pensou na pergunta. Betsy lamentaria? Passariam anos até que Betsy

percebesse que algo estava faltando. Além dos Woods, ela e Homer não tinham tido

amigos na caravana. Homer não tinha família. Não, ninguém sentiria falta dela. A verdade

machucou-a muito, mas ela disse a Cavalga o Vento a verdade:

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— Não, ela não sentirá. Ela não saberá".

Ele ficou em silêncio por um bom momento, então disse: "Wicatokapa precisa leite.

Jess-e-king tem leite. Cavalga o Vento precisa mais Deus. Jess-e-king conhece livro-

Deus. Você dar leite para meu filho? Você ensinar livro?".

— Como crianças recém-nascidas desejam o leite genuíno da palavra.— As

palavras do apóstolo vieram em seu pensamento, enquanto ponderava a questão. Na

escuridão, ela sorriu da forma singular como poderia obedecer ao mandado, caso ficasse.

Se eu ficar, ela pensou, Senhor, estou realmente tendo uma escolha?

Como se fosse uma resposta aos seus pensamentos, Cavalga o Vento disse:

— Jess-e-king querer ir, Cavalga o Vento levar para o povo dela.

Senhor, como posso tomar tal decisão quando tantas coisas aconteceram? Ela

estava desanimada pela impossibilidade de decidir naquela noite. Então ficou contente de

perceber que estava realmente considerando ficar, em vez de instantaneamente pedir

para ser levada de volta para seu povo.

Como posso estar considerando a idéia de ficar com estes selvagens? ela pensou.

Mas, se eu voltar, para onde irei? Lembranças dolorosas vieram-lhe à mente de como

seus pais tinham ficado aliviados quando ela finalmente se casara.

Cavalga o Vento esperou.

Jesse evitou responder diretamente.

— Você é Cavalga o Vento. A criança tem um nome?"

— Lakotas o chamam Wablenica — 'Mãe se Foi'. Eu o chamo Wicatokapa —

'Primeiro Filho'. Ele terá um novo nome se Jess-e-king ficar."

— Um novo nome?— Jesse perguntou suavemente.

— Se Jess-e-king ficar, Wicatokapa será chamado Duas Mães."

A criança mexeu-se dormindo e, quando Jesse começou a amamentá-la, o barulho

feito pela boca faminta encheu a tenda. Ele aconchegou-se na pele quente de Jesse. Ao

pegar a mãozinha dele, Jesse sentiu cinco dedos apertarem forte o seu polegar. O nenê

não largou. Jesse cochichou:

— O nome dele será Duas Mães".

Cavalga o Vento sorriu e se retirou para a sua cama, do outro lado da tenda.

Você deveria sorrir mais vezes, Jesse pensou,eu não fico com tanto medo quando

você sorri.

Na manhã seguinte, Jesse acordou quando Cavalga o Vento saía da tenda.

Levantando-se imediatamente, ela atiçou o fogo. Velha acordou de repente, sorrindo em

aprovação a Jesse. Juntou-se a Jesse nos deveres matinais, corrigindo suas tentativas

desajeitadas para fazer a refeição da manhã. Vendo o fogo saindo pelo buraco no alto da

tenda, Cavalga o Vento retornou a sua casa, cumprimentou com a cabeça as mulheres,

comeu sem nenhuma palavra e saiu.

Quando as mulheres da aldeia encontraram-se novamente para colher raízes e

frutos, uma delas usava a anágua que Jesse tinha gastado horas adornando com laços

feitos à mão. As outras mulheres caçoavam e riam entre si, e a da anágua logo tirou-a

desgostosa, pois ela ficava grudando nas plantas enquanto elas colhiam.

Mais uma vez a índia jovem e bela desempenhou o papel da professora. Ensinou

Page 35: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jesse a falar Flor do Campo em lakota e ficou, com certeza, contente ao ver que Jesse

tinha-se lembrado da aparência de algumas plantas e raízes. Pacientemente repetiu o

nome das plantas até que Jesse pudesse decorar os nomes de algumas plantas novas.

Uma vez, quando Jesse foi cavar para arrancar uma planta, a jovem deteve-a, agarrando

sua mão e fazendo uma careta. Jesse encontrou outro tipo diferente do que ela pensava

que estivesse desenterrando e a nova amiga cuidadosamente mostrou as diferenças nas

folhas das duas plantas. A que era comestível tinha o talo mais comprido do que a outra.

Jesse entendeu e balançou a cabeça.

Velha não tinha vindo nesta expedição e, quando Jesse voltou à tenda,

orgulhosamente presenteou-a com sua pequena contribuição para a próxima refeição.

Tirou as plantas, uma a uma, tentando lembrar seus nomes lakota se cuidadosamente

corrigindo sua pronúncia quando Velha a corrigia. Naquela noite comeram sozinhas, pois

Cavalga o Vento tinha saído novamente com um grupo de caçada e ficaria fora por vários

dias. Ele tinha falado para Jesse na língua dela, mas com o mínimo de palavras possível:

— Jess-e-king, eu vou caçar. Vou muitos dias. Velha, Flor do Campo ensina você".

Jesse esperava sua volta, tentando o tempo todo encaixar-se em seu novo papel.

Para cada gesto bondoso de Velha e Flor do Campo, havia centenas de chacotas e

gozações cruéis das outras mulheres. Incapaz de se comunicar, a não ser por gestos,

com suas duas amigas, Jesse ansiava pelo retorno de Cavalga o Vento. Em sua

ausência, ela lia a pequena Bíblia, hora após hora, procurando passagens que tivessem

significado para ele. Ela se perguntava sobre a capacidade dele em compreender a

linguagem tradicional da Bíblia e se desesperançava com suas próprias habilidades para

explicar qualquer coisa.

Ela orava, pedindo a Deus direção por palavras certas, pedindo paciência para com

as mulheres ruins da aldeia e,por favor, Senhor, acrescentava a cada oração, ajude-me a

não ser tão tola e lerda com as coisas novas que preciso aprender. Ajude-me a entender

o que elas dizem e a imitar o que elas fazem, deforma que eu possa servir enquanto

estiver aqui. Ela sabia que iria embora tão logo Duas Mães não mais precisasse dela,

mas estava desejosa de encaixar-se bem até esse tempo.

O quanto ela tinha de aprender tornou-se visível dois dias mais tarde, quando a

aldeia de repente tornou-se uma colméia em atividade. As mulheres gritavam, as crianças

berravam, os cachorros latiam, e todos se movimentavam apressados enquanto as

tendas eram derrubadas, os fogos, apagados e as coisas, empacotadas. Velha, de

alguma forma, fez Jesse entender que toda essa correria tinha a ver com alimentação,

mas Jesse continuou ignorante, andando às tontas, atrapalhando, até que Velha,

frustrada, forçou-a a sentar-se em um suporte puxado pelo potro e segurar Duas Mães.

Capitulo 8

já aprendi a contentar-me com o que tenho.

Filipenses 4:11

Page 36: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

As mulheres e as crianças correram para fora do acampamento. Tão logo Velha

terminou de empacotar, gesticulou para Jesse segurar a corda e puxar o cavalo. Jesse

recuou com medo. Velha insistiu, prendendo o suporte do bebê ao lado do animal, de

forma que a criança pudesse ver todo o movimento ao seu redor.

Jesse ainda hesitou. Finalmente, Velha prendeu a corda do cavalo em si mesma e,

desgostosa, começou a cruzar a campina. Jesse seguiu, humilhada, mas incapaz de

dominar o medo que sempre tivera de cavalos.

Elas tinham andado apenas umas poucas milhas quando chegaram ao lugar de

caçada de búfalos. Velha carregou o suporte do potro e começou a reerguer a tenda.

Primeiro ela pegou os quatro mastros mais compridos, colocou-os no chão e prendeu-os

com uma tira de couro. Com a ajuda de Jesse, ela levantou os quatro mastros e separou

as extremidades. A base da armação da tenda ficou pronta e as duas mulheres

acrescentaram outros mastros, completando uma armação circular. Velha mostrou a

Jesse como era o processo, de tal forma que os mastros se encaixaram um no outro.

Quando os mastros foram colocados, Velha trouxe a cobertura da tenda. Ela havia sido

dobrada de tal forma que era fácil jogar a parte do meio para o último mastro pelas tiras

costuradas no comprimento da cobertura. Feito isto, Jesse e Velha levantaram o último

mastro e o colocaram no lugar. Cada uma delas pegou uma dobra de cobertura e andou

em volta da armação dos mastros, encontrando-se onde a abertura da porta seria. Acima

da abertura, as beiradas da cobertura eram colocadas juntas. Finalmente, uma estaca foi

enfiada numa alça na extremidade de cada lado da abertura da porta e no chão.

Jesse afastou-se para examinar seu trabalho manual. Velha deu uns tapinhas em

seu ombro e sorriu, encorajando-a. Ambas levaram as peles de búfalo, que lhes serviam

de cama, para dentro, prepararam um buraco para a fogueira, arrumaram a bolsa de

Cavalga o Vento e seus outros poucos pertences e logo estavam preparadas para se

juntar a ele, ao lado de seu búfalo morto e fresco.

Jesse ficou parada, sem saber o que fazer para ajudar. Num momento, Velha

gesticulou para ela e riu. Cavalga o Vento virou seu rosto para o outro lado, mas Jesse

pegou uma expressão de descrédito em sua face.

Cavalga o Vento tirou a pele do búfalo; antes, porém, cortou-lhe o lado e, abrindo e

enfiando a mão dentro, removeu o fígado do animal que para o horror de Jesse, mordeu

com gosto. Ele lhe ofereceu um pedaço, mas ela meneou a cabeça e virou-se. Ele deu de

ombros e continuou sua refeição antes de acabar de talhar o búfalo, colocando cada

pedaço de carne no couro. Quando o trabalho acabou, ele pegou os quatro cantos do

couro, usando-o como um saco no qual carregou sua presa de volta ao acampamento.

Correndo à frente para a aldeia, Jesse se apressou para dentro da tenda. Ansiosa

para ajudar, havia decidido que ia começar o primeiro fogo. Ela tinha visto a Velha fazê-lo

muitas vezes e, apesar de Velha usar gravetos em vez de pedra-de-fogo e ferro, como ela

usara na caravana, ela ainda se sentia confiante em poder cumprir essa tarefa simples.

Procurou a bainha comprida que guardava os gravetos de fazer fogo e esvaziou-a.

Colocando a palha de cedro estreita no chão, segurou-a bem firme com um pé. Pegando

o arco pequeno ela raspou o graveto no tendão forte e colocou uma ponta do graveto na

palha de cedro. Com a mão esquerda colocou uma pedra oca em cima do graveto e

começou a esfregar com o arco, pretendendo rodar o graveto como tinha visto Velha

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fazer. No primeiro movimento do arco, sua mão balançou, o graveto escapuliu da

reentrância da pedra e foi para o ar.

Jesse repetiu de novo a seqüência, mudando a direção do graveto ao esfregá-lo no

tendão. Ele ficou no lugar — até sua mão balançar e o graveto novamente escapar da

pedra.

Pacientemente, ela arrumou toda a parafernália novamente. Desta vez, como ela

esfregasse com o arco, tudo ficou no lugar, mas a franja da barra de seu vestido ficou

enroscada no tendão. Ela ofegou com impaciência. Algo a fez virar-se. Muitas mulheres

da aldeia estavam espiando pela abertura da tenda. Elas davam risadinhas abafadas

apontando para ela e conversando entre si.

Jesse ficou vermelha de raiva e vergonha. Jogou os gravetos e virou-se para

encará-las, mas elas se foram em disparada quando Cavalga o Vento colocou sua carga

de carne de búfalo fora da porta. Jesse sentou-se na poeira, os gravetos do lado, fazendo

força para segurar as lágrimas. Ela olhou para cima brava, pegou os gravetos e os

entregou.

— Queria ajudar, mas não consigo— falou derrotada.

Cavalga o Vento pegou os gravetos e, com paciência, ensinou-lhe a arte de acender

o fogo. Enquanto isso, ela perguntou o que elas estavam falando.

Cavalga o Vento deu de ombros e ignorou-a.

— Eu quero saber. — Ela estava ajoelhada próxima a ele, tentando fazer o que ele

havia ensinado com os gravetos.

Pegando a mão que segurava a pedra, Cavalga o Vento disse devagar:

— As mulheres lhe deram um nome".

— Eu tenho um nome. Meu nome é Jesse King."

— Este não é lakota. Não tem significado."

— Então, que nome elas me deram?"

— Mulher Que Não Faz Fogo. — Jesse encolheu-se e virou-se para esconder as

lágrimas que teimavam em rolar.

Cavalga o Vento não a consolou. Ele continuou a demonstrar o começo do fogo.

Jesse esfregou o arco rápido, com raiva, e a força de sua raiva trouxe sucesso. Uma

chama pequena, brilhante, finalmente criou-se na base da palha de cedro. Cavalga o

Vento habilmente sacudiu-a no pavio na cova e assoprou firme, fazendo a chama crescer.

Em poucos momentos, a fumaça saía pela abertura da tenda.

As mulheres viram a fumaça, mas não mudaram o nome de Jesse . Algumas das

jovens mais qualificadas ficavam imaginando quanto tempo ainda demoraria até que

Cavalga o Vento percebesse o erro e levasse de volta para seu povo a mulher

desajeitada.

Pássaro Amarelo falou alto:

— A criança não precisa dela. Eu a alimentaria com sopa de búfalo e geléia de

cereja. Ela cresceria forte. Ela precisa de uma mãe do povo, não dessa mulher que lhe

ensinará coisas estranhas".

Flor do Campo surpreendeu-se ao defender Jesse:

— Se Cavalga o Vento quisesse uma mulher da aldeia, ele poderia ter tido uma.

Muitas esperavam que ele embrulhasse sua manta de couro de búfalo nelas. Mas ele não

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o fez. É nosso costume sermos bons para os fracos. Nós deveríamos ajudá-la se ela quer

aprender nossos costumes. Vocês têm visto que ela tenta. Ela cuida bem do nenê de

Águas Dançantes e Cavalga o Vento. Eu tenho visto o choro dela por sua própria criança.

Flor do Campo respirou e olhou para Pássaro Amarelo, enquanto acrescentava: — Pense

em como seria se você estivesse no meio dos brancos, Pássaro Amarelo".

Pássaro Amarelo replicou:

— Cavalga o Vento não a embrulhou em sua manta. Não houve festa. Ela não é sua

esposa! Ela é apenas uma escrava. E Flor do Campo— ela acrescentou veemente, — Eu

preferiria morrer a ter de ficar com um povo estranho!".

Flor do Campo respondeu:

— Eu não sei por que ela fica. Talvez Cavalga o Vento não a deixe ir. Talvez ela não

tenha para onde ir. Ela não parece ligar para ele. Mas ela fica. Se ela quer aprender

nossos costumes, eu a ajudarei!".

Pássaro Amarelo e suas amigas já estavam saindo de perto de Flor do Campo,

apressando-se para suas próprias tendas para começar o trabalho de corte e cozimento

de suas caças. A defesa de Flor do Campo acabou abruptamente quando Lobo Uivante

puxou-a, repreendendo-a por não ter levantado o suporte sobre o fogo para cozinhar a

carne de búfalo. Ele mesmo tinha levantado o suporte e posto para dentro a pequena

pança de búfalo. Cheia de água, a pança estava dependurada no suporte sobre o fogo.

Logo acrescentou-se carne, que foi colocada para cozinhar.

Enquanto uma parte de sua carne cozinhava, Velha mostrou a Jesse como cortar

tiras fininhas, que eram dependuradas num grande suporte para secarem ao sol.

Apontando para a carne secando, ela disse — Papa — e Jesse repetiu a palavra. Mais

tarde, naquele dia, elas moeram tiras de carne com tutano e frutinhas de arônea:

"Wakapapi— foi o nome dado por Velha. Jesse surpreendeu-se ao perceber que gostara

daquilo.

Naquela noite houve uma grande festa. Dançaram e cantaram noite adentro. Jesse

observou como Cavalga o Vento se assentava no meio dos amigos, contando alguma

história do dia da caçada, suas mãos balançando no ar, enquanto recriava uma cena para

todos eles.

Lobo Uivante estava assentado à beira do grupo, ouvindo num silêncio sepulcral.

Quando o grupo brincou, comparando o tamanho da caça de Cavalga o Vento com a de

Lobo Uivante, este levantou-se rigidamente e saiu a passos largos sem uma palavra

sequer. Quando Cavalga o Vento protestou e foi atrás dele, Lobo Uivante recusou a mão

amigável.

Ainda assim havia grande alegria na aldeia, e todos comeram até não agüentar

mais. Jesse assistia à dança com vivido interesse. Em seus melhores vestidos, as

mulheres ficavam à beira da fogueira pulando da esquerda para a direita e da direita para

a esquerda. Cada dançarina dava um passo com o pé esquerdo e então arrastava o

direito até o outro, então revertia-se a direção. Os homens, assentados em círculo no

meio dos que dançavam, tocavam tambores, dando o ritmo para a dança.

Ela viu Velha com um bando de velhas encarquilhadas e Flor do Campo sorrindo

suavemente com o segredo de um cochicho de uma amiga. Em silêncio, ela saiu de perto

da fogueira para a tenda de Cavalga o Vento. Duas Mães dormia, mas ela o aconchegou

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de qualquer forma. Quando Cavalga o Vento sentiu sua falta e largou a celebração para

procurá-la, ele a encontrou, dormindo quieta, com a cabecinha de Duas Mães aninhada

no seu braço.

No dia seguinte Jesse aprendeu que quase o búfalo inteiro era aproveitado pelos

lakotas. Dos chifres faziam-se conchas e xícaras, o pêlo do couro raspado era recolhido e

usado para encher travesseiros. As costelas eram guardadas como brinquedos para

crianças e Velha pediu a bexiga para uma bolsa para guardar as ervas preciosas.

A curtição do couro acabou com as forças de Jesse. Primeiro a pele era esticada

numa armação grande para secar ao sol. Quando os pêlos estavam secos, as mulheres

começavam a descarnar o couro, raspando a gordura e o tecido com um raspador de

chifre de alce. Jesse trabalhou muito, ignorando a dor nos músculos do ombro por causa

do novo serviço. Feita a primeira raspagem, a pele era colocada para secar novamente, e

em poucas horas transformava-se num couro cru seco, duro. Mais raspagem era

necessária para remover todos os pêlos do couro.

Jesse interiormente recusou o processo seguinte de curtição, mas tentou não

demonstrar. O miolo do búfalo foi cozinhado e, quando frio, espalhado sobre a pele até

ela ficar totalmente coberta com a pasta. Então, pedras redondas, lisas, eram usadas

para trabalhar a mistura dentro da pele. Finalmente, tudo era coberto com o caldo no qual

os miolos haviam sido cozidos e deixado para curtir o resto do dia. As peles, então, eram

mergulhadas numa mistura de água com raízes de iúca. Elas ficavam com um cheiro

adocicado. Recolocadas nas armações, as peles eram esticadas de novo e a água se

evaporava.

Com as instruções de Velha, Jesse esticou e secou o couro várias vezes. Seus

ombros e braços doíam e ela ofegava com o esforço, mas ainda assim Velha a instruiu a

continuar trabalhando o couro. Finalmente, as duas mulheres puxaram e esticaram o

couro seco sobre um cordão forte de búfalo trançado que tinha sido atado a um galho alto

de árvore e esticado em uma estaca fincada fundo no solo. As duas mulheres puxaram e

esticaram fortemente o máximo que puderam, pois o couro estava secando. Para a

admiração de Jesse, quando finalmente secou, a pele estava tão macia quanto veludo.

Finalmente, Cavalga o Vento pegou o couro macio e pôs na estaca sobre um fogo

fraquinho. Quando ficou defumado; o couro tornou-se marrom-claro. Ele explicou a Jesse

que a fumaça o manteria macio se ele ficasse úmido.

Jesse ajudou Flor do Campo a costurar muitas peles juntas, usando os tendões

compridos das costas do búfalo como linha. Lobo Uivante sorriu com a possibilidade de

uma tenda nova e começou a decorar a parte externa com pictogramas desenhados.

Jesse estava tão encantada com tal habilidade artística que sua opinião sobre ele

abrandava-se à medida que aumentava a beleza da tenda. Certamente um homem com

tamanho talento artístico deve ter algo bom.

Jesse via e aprendia com as mulheres da aldeia a transformar seus couros de búfalo

em coberturas de tendas, mocassins, blusas, vestidos, perneiras e suportes de bebês.

Penas, espinhos de porco-espinho, tinturas feitas de frutos ou raízes estavam sempre à

vista, pois as mulheres trabalhavam para criar coisas bonitas para suas famílias. Couro

cru servia para sola de sapatos e bolsas para guardar coisas. Enquanto trabalhavam,

algumas vezes assavam um osso grande de búfalo em um fogo de casca de choupo. De

Page 40: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

minutos em minutos, alguém virava o osso de forma que ele assasse inteiro e por igual.

Quando ficava pronto, as mulheres o quebravam e comiam o tutano marrom, saboroso.

Certa manhã, Flor do Campo deu a Jesse a tarefa de começar um par de

mocassins. Jesse concordou, mexendo a cabeça, e tornou-se uma aluna disposta. No

entanto, quando chegou a hora de decorar os mocassins, ela rapidamente exibiu seus

dotes artísticos, manejando o sovela facilmente e criando um desenho com contas,

intrincado, para Flor do Campo admirar.

Quando os mocassins ficaram prontos, Flor do Campo sorriu recatadamente e

sugeriu que Jesse os desse à Velha. Ela aceitou o presente com um sorriso caloroso e

palavras boas. Apontando p ar a Jesse naquela noite, quando Cavalga o Vento juntou-se

a elas, Velha mostrou-lhe os mocassins e gesticulou para que ele traduzisse o que ela

dizia.

— Entre nosso povo, é costume que uma esposa nova faça mocassins para a mãe

do marido. Quando a mãe aceita o presente/ ela dá as boas-vindas à nova esposa para

entrar na família.

Jesse ficou vermelha com a mensagem transmitida por seu presente inocente à

velha senhora. Cavalga o Vento olhou Jesse cuidadosamente, enquanto concluía:

— Minha mãe aceita o presente que você lhe deu, diz que você é bem-vinda como

minha esposa".

Seus olhos escuros encontraram os dela rapidamente, mas então ele pegou Duas

Mães e disse:

— Meu filho e eu vamos dar boa-noite para o sol agora". Jesse foi deixada atrás,

olhando Velha calçar seus mocassins novos, cacarejando sua apreciação.

Com o passar dos dias, tornou-se um hábito Cavalga o Vento assentar-se perto de

Jesse, fora da tenda, bem ao pôr-do-sol. Segurando Duas Mães, ele pedia a ela que lesse

o — Livro de Deus".

Jesse lutava para saber o que ler, até que Cavalga o Vento solucionou o problema.

Certa noite, como as mulheres da aldeia percebessem e rissem entre elas, quando Jesse

manuseava as páginas da Bíblia, Cavalga o Vento cobriu a mão dela com a sua.

— Não é tudo isso de Deus?"

Jesse respondeu:

— Sim, tudo é de Deus".

— Então, você fala isso tudo."

Assim, Jesse começou lendo: — No princípio criou Deus os céus e a terra".

Cavalga o Vento ouvia atentamente. Jesse não tinha como saber o que ele entendia

ou não, pois ele nunca a interrompia. Obedientemente, ela lia até que ele se levantasse

abruptamente e dissesse: — É suficiente".

Então ele lhe passava Duas Mães, punha a Bíblia na bolsa e saía para olhar os

cavalos. Ele geralmente retornava à tenda bem depois de Jesse dormir.

Capitulo 9

Escarva a terra, e folga na sua força... Ri-se do temor...

Page 41: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jó 39:21-22

Algumas semanas mais tarde, certa noite, Jesse estava quase dormindo quando

Cavalga o Vento entrou na tenda, sentou-se ao seu lado e perguntou-lhe de repente:

— Por que é que você tem medo de cavalo?".

Como ela não respondesse, ele disse:

— O cavalo de Velha é um potro manso e bom. Velha disse que você tem medo

dele. Por que você tem medo?".

Jesse lembrou-se da risada de Velha, quando ela e seu filho tinham retalhado o

búfalo. Ela lembrava-se do olhar de descrédito no rosto de Cavalga o Vento.

— Algum cavalo já machucou você?"

— Não."

— Sua família?"

Jesse balançou a cabeça e disse:

— Eu sempre tive medo — sem razão — Ela encolheu os ombros, sentindo-se tola

por seus medos infundados.

O índio examinava sua face, tentando entender. Seja o que for que tenha visto, não

disse nada mais e recolheu-se para sua própria manta de búfalo. Virando-se de costas

para ela, pareceu ter caído no sono na hora.

Na manhã seguinte, Jesse tinha acabado de alimentai Duas Mães quando Cavalga o

Vento entrou, pegou em sua mão e levou-a para fora. Andaram rápido pela beira do

acampamento. Parecia que Cavalga o Vento estava tentando evitar que o vissem. Jesse

o seguiu, sem perguntas, sua curiosidade excitada pelo comportamento incomum dele.

Foram para fora do acampamento. A relva alta balançava-se ao sol da manhã.

Cavalga o Vento abaixou-se rapidamente, puxando Jesse para baixo ao seu lado.

Ele apontou para uma colina longe, chamando sua atenção para muitos alces, pastando

tranqüilos. Ele cochichou:

— Logo trarei para você peles de alce bonitas".

Mas Cavalga o Vento não tencionava caçar nesse dia. Umas poucas jardas

cruzando a planície no seu lado oposto estava o objetivo de seu interesse. Seu próprio

cavalo pastava mansamente e não longe dele estava uma linda egüinha. Jesse não sabia

admirar a amplitude de seu peito, o ângulo de seus jarretes ou a pequenez de suas patas,

tudo isso que, combinados, faziam deste potro uma montaria segura, veloz. Ela, no

entanto, notou a crina vermelha caindo e o rabo deixando tudo mais brilhante pelo

contraste das manchas brancas espalhadas no pescoço forte e, atrás, num desenho

intrincado. Uma estrela escura quase escondida pelo topete explicava o nome do potro.

Cavalga o Vento assobiou, num tom baixo que crescia gradualmente, até que os

cavalos levantaram suas cabeças e foram em sua direção. Vendo Jesse, os dois potros

pararam uns poucos metros longe e olharam Cavalga o Vento. Como ele não se mexeu,

eles abaixaram suas cabeças para pastar de novo. Segurando a mão de Jesse,

aproximou-se dos dois cavalos. Ele sentiu Jesse enrijecer-se nervosamente.

— Você tem medo porque não entende como o cavalo pensa. Eu ensinarei você.

Seu medo vai acabar. — Ele acrescentou solenemente: — As mulheres da aldeia não vão

rir".

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Pegando duas rédeas da bolsa de couro ao seu lado, Cavalga o Vento deu uma a

Jesse, demonstrando como deveria ser segurada. Em silêncio, andou para o lado de seu

próprio cavalo, levantando a cabeça do potro, e pôs a rédea. O potro dançou um pouco,

em antecipação à corrida da manhã. Jesse ficou mais tensa.

— Vento é um cavalo de caça— Cavalga o Vento explicou. — Ele é ligeiro e pronto a

fazer o que seu cavaleiro desejar. Ele dança pela alegria da corrida, não porque queira

machucar você. Nós somos amigos, ele e eu. Logo Estrela Vermelha será sua amiga

também."

Jesse tentou acalmar seus medos e aproximou-se da égua. Para sua surpresa,

Estrela Vermelha logo, de bom grado, levantou sua cabeça e ficou quieta, enquanto Jesse

desajeitadamente tentava colocar a rédea. Cavalga o Vento tinha posto a rédea em

Vento, num movimento rápido. Jesse tentou várias vezes até conseguir passar o laço

sobre o focinho de Estrela Vermelha e sobre o seu pescoço. Mesmo assim, com toda a

falta de jeito, Estrela Vermelha permaneceu parada.

Jesse relaxou. Estrela Vermelha virou a cabeça para Vento, olhando-o enquanto ele

resfolegava e batia com as patas no chão. Jesse ficava imaginando-a dizer:

— Calma, sua boba. Não vê que esta mulher está nervosa?".

Jesse deu um tapinha no pescoço de Estrela Vermelha. Para seu prazer, a mula

curvou sua cabeça em volta do braço de Jesse. Jesse sorriu radiante, com prazer, e

Cavalga o Vento disse:

— Ela é uma égua inteligente. Disse para você não ter medo. Ela diz: — Vamos ser

amigas".

Cavalga o Vento demonstrou como montar em pêlo. Estrela Vermelha ficou parada

enquanto Jesse tentava pular em seu lombo. Depois de várias tentativas, ela conseguiu.

As lições de montaria começaram. Montando Vento, Cavalga o Vento pegou a rédea

de Jesse, explicando:

— Eu a guiarei. Você precisa aprender a sentir o seu movimento. Senti-la virar".

Jesse concentrou-se no movimento de Estrela Vermelha, enquanto Cavalga o Vento as

guiava num círculo grande.

— Veja como ela se move neste caminho— ele disse, e fizeram um segundo círculo

grande na direção oposta. Por quase uma hora, Cavalga o Vento guiou Estrela Vermelha,

instruindo Jesse a apertar seu potro com os joelhos, explicando como pressionar os lados

da égua para dar-lhe sinal para virar.

Finalmente, Cavalga o Vento desmontou, dando a rédea para Jesse e ordenando

que ela se afastasse dele, guiando a égua somente com a pressão da perna. Para

desânimo de Jesse, Estrela Vermelha parecia não entender nada. Por mais que tentasse,

Jesse não conseguia fazer a égua ir para onde ela queria. Sinalizando uma virada para

uma direção, ela desanimou ao ver a cabeça virar para o lado oposto.

Ordenando uma parada, Jesse começou de novo. Mais uma vez a égua virou na

direção oposta. A frustração de Jesse aumentou, pois Estrela Vermelha continuava a

revelar o que parecia ser um temperamento obstinado. Tentando fazer a égua parar, ela

conseguiu apenas fazê-la afastar-se. Ao tentar fazer a égua girar à esquerda, nada pôde

fazer quando ela começou um círculo largo à direita. Finalmente, a raiva explodiu.

— Vire à direita, seu cavalo tonto, direita. — Jesse gritava, chutando os flancos da

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égua.

Estrela Vermelha obedeceu ao chute e deu um galope. Jesse foi jogada na poeira.

No momento em que sentiu que Jesse saíra de suas costas, Estrela Vermelha parou,

abaixou a cabeça e começou a pastar.

Cavalga o Vento correu para Jesse. Ela sentou-se, a testa no joelho.

— Você está machucada?— ele perguntou, com preocupação na voz.

Ela levantou a cabeça e ele viu lágrimas em suas faces.

— Não!— ela exclamou.

— Então você precisa tentar de novo."

Com os ombros tensos, Jesse levantou-se vagarosamente, os olhos fuzilando de

raiva.

— Eu odeio cavalos!— ela gritou, — Eu odeio cavalos e não consigo aprender a

montar!". Virou-e, afastando-se a passos largos. Ele colocou uma mão em seus ombros e

insistiu.

— Você precisa tentar de novo. — Então, com mais bondade, acrescentou: — Você

pode aprender. Tente de novo".

Jesse começou a chorar. Cavalga o Vento cruzou os braços e esperou que ela

parasse. Finalmente ela levantou a cabeça. Olhando o horizonte, deu vazão às

frustrações das últimas semanas.

— Estou tão impotente— ela reclamou. — Não posso cozinhar sem a ajuda da

Velha. Não consigo achar comida sem Flor do Campo. Não consigo montar a tenda. Tudo

é difícil. Tudo é novo. Sou tratada como uma criança, e elas estão certas. Eu sou uma

criança. Não sei nada de seus costumes. Nem mesmo posso conversar, porque não sei

sua língua. Velha precisa ensinar-me a cozinhar. E você precisa ensinar-me a andar a

cavalo para eu não envergonhá-lo. Estou cansada de ser tola! — Sua voz tremia

enquanto lágrimas ameaçavam correr novamente.

Cavalga o Vento apertou seus ombros fortemente e falou devagar:

— É verdade, você tem muito para aprender. Mas, se você quiser, você aprenderá.

Aprenderá a andar a cavalo, a cozinhar e a falar minha língua. Eu aprenderei sobre Deus,

enquanto você lê o livro para mim— E acrescentou: — Duas Mães vai chamar você de

Ina — 'mãe', em sua língua. Se você quiser ser parte do meu povo, volte para Estrela

Vermelha e aprenda a montar".

Jesse olhou dentro dos olhos negros, severos. As penas dependuradas em sua

trança balançavam com a brisa. Ele baixou suas mãos de seus braços sem tirar os olhos

dela.

Jesse voltou para Estrela Vermelha. Por fim, algumas viradas foram executadas com

sucesso. Quando suas pernas doeram até ela pensar que não agüentaria mais, Cavalga o

Vento veio para o seu lado.

— É suficiente. — Ele ordenou que ela descesse e voltasse para a aldeia a pé. —

Nós não precisamos de olhos nos espreitando enquanto você aprende."

Jesse assentiu com a cabeça obedientemente e voltou para a aldeia. Ela colheu

algumas flores no caminho, esperando que o buquê explicasse a razão de sua caminhada

tão de manhã. Algumas mulheres fizeram comentários enquanto ela andava e, desta vez,

Jesse estava contente por não entender.

Page 44: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Quando ela entrou na tenda, Velha deu uma risadinha e convidou Jesse para

descansar suas pernas cansadas, sentando-se perto dela.

Jesse pensou: Como pode ser, Velha, que a senhora sempre sabe meus segredos?

Ela gesticulou até Velha entender. Velha arreganhou os dentes, revelando os espaços

pela falta de dois deles. Franzindo o nariz, ela fez Jesse entender que ela cheirava a

cavalos. As duas mulheres riram juntas e compartilharam o primeiro de muitos segredos.

Durante os dias seguintes, Jesse e Cavalga o Vento saíam do acampamento cedo,

todas as manhãs. Jesse aprendeu a montar, descobriu que seus músculos adaptaram-se

rapidamente, e a dor logo desapareceu. Ela não percebeu quando a mudança aconteceu,

mas numa manhã descobriu, de repente, que o conhecimento de animais grandes não

mais inspiravam dificuldade a ela. Ao contrário, desejava antecipadamente as lições

matinais. Se era a companhia do homem ou do animal que a agradava,... ela não

pensava a respeito.

Numa manhã especial, Estrela Vermelha levantou sua cabeça e relinchou uma

saudação. Foi um ronco baixo, delicado, que mal a alcançou do outro lado da campina,

pois a manhã estava diferente, com vento. Mas, pelo barulho, Cavalga o Vento disse:

— Agora vocês são amigas. Estrela Vermelha saúda você — Ao som de sua voz,

Vento levantou sua cabeça do gramado, balançou-a e trompeteou uma saudação

animada.

Naquele dia, enquanto Jesse, a meio galope leve, fazia o círculo grande ao redor de

Cavalga o Vento, este disse:

— Você conseguiu a amizade de sua égua. — Olha as orelhas dela. Ela vai lhe dizer

o que ela vê, escuta ou cheira. Você precisa montar todos os dias até saber o que ela

está-lhe dizendo. Preste atenção, sempre, às coisas que podem assustá-la. Ela tem uma

forma de se proteger — fugir correndo. Não tenha medo. Entenda".

Cavalga o Vento estava em pé no gramado, enquanto falava. De repente, ele deu

um assobio agudo. Vento correu para ele, com a crina e a cauda voando. Jesse assistia a

tudo, admirada, enquanto Cavalga o Vento correu uns poucos passos, agarrou a crina de

Vento e lançou-se no ar. Suspenso pelo movimento do cavalo correndo, Cavalga o Vento

foi carregado para as costas de seu potro. O potro correu para longe de Jesse e Estrela

Vermelha, com seu corpo esticando-se quando as patas marcavam o solo.

Cavaleiro e potro trabalharam juntos, suavemente, até que Vento deu um giro rápido

e Cavalga o Vento desapareceu de vista. Vento virou, rapidamente de novo, mostrando

seu cavaleiro grudado ao seu lado, com uma das mãos enroscada na crina pendente e a

ponta de um pé enganchada nas costas do potro.

Quando os dois corredores passaram por Jesse, Cavalga o Vento voltou à posição

normal de novo, somente para escorregar para o outro lado. Vento rodopiou

abruptamente e correu em direção a Jesse, detendo-se a apenas alguns pés de onde ela

se assentava com uma perna de cada lado de Estrela Vermelha.

Cavalga o Vento deu uma respirada e segurou Vento com a rédea apertada,

enquanto prevenia Jesse:

— Saiba o que você pode fazer. Saiba o que não pode. Então você fará o que é

melhor para você e sua potranca".

Eles voltaram a cavalo para o acampamento naquela manhã, Jesse trotando com

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Estrela Vermelha, ao lado de Vento. Enquanto desfilavam pelo meio do acampamento,

ela se divertia muito com os olhares das mulheres, que não podiam acreditar. Deu uma

olhada para Cavalga o Vento. Ele percebeu seu olhar. Ela achou ter visto um rápido

vislumbre de sorriso.

Será que está orgulhoso de mim?, pensou. Ela recusou o pensamento, lembrando a

si mesma que ela era ali no acampamento apenas uma conveniência para alimentar seu

bebê e ler o livro pelo qual estava curioso.

Pararam fora da tenda de Cavalga o Vento. Quando desceram, Flor do Campo

correu e deu tapinhas no seu braço, falando e sorrindo encorajadoramente. Ela pediu que

Cavalga o Vento traduzisse.

Sem nenhuma expressão, ele disse:

— A mulher disse que você ganhou minha égua preferida".

Jesse olhou para ele:

— É verdade?".

Cavalga o Vento deu de ombros:

— Estrela Vermelha é uma boa égua. Se é minha preferida, não posso dizer— Antes

que Jesse pudesse agradecer-lhe, ele pegou a rédea da Estrela Vermelha das mãos dela

e saiu, virando sua enorme silhueta para o grupo de mulheres, que davam risadinhas

inoportunas e apontavam para eles.

Capítulo 10

Eis que o nosso Deus, a quem nós servimos, é que nos pode livrar; ele nos

livrará do forno de fogo ardente.

Daniel 3:17

Com o passar do tempo, Jesse cresceu no conhecimento do modo de vida do povo.

Aprendeu a pensar mais neles como lakotas do que como índios. A língua apresentava

uma cadência familiar, e ela se descobria imitando os sons quando estava sozinha. Em

obediência repetia tudo o que a Velha ensinava, e lembrava-se de muitas palavras, mas

sua timidez inata a impedia de tentar dizer do seu jeito. Aprendeu muito mais a entender

do que a falar.

Se eles soubessem o quanto eu entendo — ela pensou —não seriam tão cruéis.

Queria acreditar nisso e, de fato, era o que imaginava. Aquela zombaria aberta tinha

diminuído desde que ela ganhara Estrela Vermelha de Cavalga o Vento. No entanto, nas

primeiras tentativas de conversar com elas, começavam a rir. Somente Flor do Campo e

Velha eram boas de verdade. Seu amor por elas aumentou e a amizade crescente delas

consolava Jesse.

Duas Mães começou a fazer barulhinhos e a sorrir com satisfação quando a via. Ela

continuava a ler a Bíblia para Cavalga o Vento. Ele era paciente e bondoso para ela. Nos

dias em que não caçava, com muita boa vontade cuidava de Duas Mães, carregando-o

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orgulhosamente pelo acampamento. Jesse via que Cavalga o Vento era respeitado por

seu povo. Ela também percebia os olhares irritados de algumas jovens solteiras, quando

ele lhes dava as costas e saía mancando. Se não fosse pela perna torta, Cavalga o Vento

seria muito desejado pelas jovens de sua tribo.

O calor e a secura do verão aumentaram e o acampamento mudou de novo,

procurando água fresca e pastagem para a manada considerável de potros que tinham.

Jesse ficava grata pela sombra da tenda. Sua pele fina queimava e descascava, e

descascava e queimava outra vez, até deixá-la desesperada com a aspereza. Velha

colheu uma planta e ensinou Jesse a mascá-la, formando uma pasta para espalhar na

pele áspera, inflamada. Isto ajudava, mas Jesse continuava à procura do abrigo da tenda

sempre que possível. Ansiosa por não aparentar preguiça, ela trabalhava duramente para

amaciar os couros dos búfalos que Cavalga o Vento matava. Ela trabalhava nisso hora

após hora, até que Velha mandava parar, antes que ela gastasse a pele de tanto raspar.

— Mas Velha, eu não sei nada. Eu não faço nada. As pessoas me chamam de

wagluhe. — Jesse recuou ao pensar em como a língua estava mal falada e como devia

soar infantil.

Velha entendeu e, dando uma agulha a mostrou como emendar as peles.

Certa manhã, Jesse estava trabalhando em seu projeto de costura, quando ouviu

vozes preocupadas fora da tenda. Flor do Campo correu para dentro e puxou-a para fora

para ver o horizonte. O que ela viu a fez apertar a mão de Flor do Campo com as suas e

gritar de medo.

Uma onda de fumaça preta saltava para o céu e aproximava-se rapidamente deles.

Foi dado o alarme. Os meninos mais velhos cercaram os potros que estavam pastando

para os levarem ao outro lado do riacho. Os potros, assustados pelo cheiro da grama

queimada, obedeceram, indo rapidamente, e os garotos voltaram depressa para ajudar no

acampamento.

Apressadamente as mulheres ajuntaram os pertences que conseguiram antes de se

dirigirem ao riacho. Jesse agarrou Duas Mães, deu-o à Velha, gesticulando em direção à

água, e correu de volta à tenda. Pegou a bolsa de Cavalga o Vento, saiu correndo. De

fato, eles podiam ver labaredas atravessando o gramado em direção a eles.

À frente as mulheres estavam cruzando o riacho, algumas carregando couro de

búfalo, outras de mãos vazias. Jesse olhou e localizou , do outro lado, Velha e Duas Mães

salvos na margem oposta. Segurando alto a bolsa, ela foi saltando na água e caiu na terra

do lado de Velha, arfando para respirar e abraçando Duas Mães. O cheiro forte do campo

queimado entrava por suas narinas, fazendo sua garganta arder.

Então, do amontoado de mulheres veio um grito agudo. Uma jovem índia, que Jesse

sabia chamar-se Chuva, levantou-se e ergueu suas mãos para os céus em espanto.

Desatento ao inferno atrás de si, seu filho estava sentado, no outro lado, escolhendo

pedrinhas de uma pilha bem arrumadinha.

Era Não Escuta. Ele estava separado do grupo e Chuva, ocupada com seus gêmeos

pequenos, não percebeu que este, já aprendendo a andar, tinha saído do lado dela.

Agora ele estava assentado, sem consciência das chamas que já haviam começado a

queimar o outeiro acima dele.

De repente, o vento soprou, levando uma rajada de fumaça e calor que rodopiou

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sobre ele. Ele olhou ao redor e, em um só movimento, estava em pé. Em seu rostinho

percebia-se a força que fazia ao tentar controlar o impulso de gritar com terror. De fato, o

valor da coragem havia sido firmado em sua mente. Olhos bem abertos, foi em direção à

margem do riacho, procurando um caminho para atravessar. Sua mãe, dominada pelo

medo, só conseguia ficar parada, com as mãos levantadas para o céu, gritando seu nome

num gemido, sem parar.

Jesse nunca se lembrou de ter jogado Duas Mães na grama, nem se recordou de ter

saltado o riacho, mas de repente ela estava subindo a colina, correndo em direção a Não

Escuta. Uma fumaça grossa queimava sua garganta. O mau cheiro de cabelo queimado

enchia suas narinas, mas ainda assim corria. Finalmente ela alcançou Não Escuta e,

apanhando-o num lance em seus braços, ela debruçou-se sobre ele, para protegê-lo o

máximo possível. As chamas estavam. neles, enquanto ela corria para o riacho. Estava

sentindo a dor da queimadura em seus ombros.

Mãos alcançaram Não Escuta e Jesse despencou na grama, sem perceber a pele de

búfalo sendo atirada em seu corpo para apagar as chamas que tinham consumido a parte

de trás de seu vestido.

E agora Jesse vivia em um novo mundo. Ouvia seus próprios gritos ecoando no

túnel longo e escuro da dor. Ela foi engolida nesse túnel e carregada nele até sentir-se

afogando. Então, quando se sentiu afogando, pela misericórdia, desmaiou. Mas na agonia

havia algo mais — vozes baixas e mãos macias, música e o som de chocalhos, então a

dor novamente, quando alguma coisa fétida lambuzou seu ombro queimado.

Vezes e mais vezes ela ouviu a voz do Falcão Curandeiro, cantando em tom

monótono a canção do sol:

Wanka tan han he ya u we Io

Wanka tan han he ya u we Io

Müa wi cohan topa wan Ia

Ka nu we he ya u we Io

Anpe wi kin he ya u we Io

A ye ye ye yo.

Ela agonizou por dias enquanto batalhava para sair do túnel da dor. Velha

carinhosamente cuidou dela. O Falcão Curandeiro vinha invocar seus deuses para curar a

mulher corajosa que tinha salvado a criança. As mulheres da aldeia cuidavam de Duas

Mães. Cavalga o Vento caçava com uma energia selvagem, matando búfalos para uma

tenda nova. Retornando tarde à aldeia, cada dia, ele se curvava ao lado de Jesse,

retorcida, e ficava olhando Velha curar as feridas. Ele trazia água fresca aos lábios de

Jesse e punha a cabeça dela em suas mãos enquanto ela bebia. E ele orava, pedindo a

seu Deus que curasse essa mulher.

Quando finalmente chegou esse dia, Cavalga o Vento cavalgou, na alvorada, para

agradecer ao seu Deus. Levantando suas mãos aos céus, ele gritou sua alegria e cantou

as primeiras palavras que ela havia lido para ele do livro santo. Ele chamou o mensageiro

da aldeia para que anunciasse a festa de celebração. Quando retornou, Jesse estava

sentada, com as mãos dedilhando o bordado com contas, primoroso, em um par de

mocassins em seu colo. Ela olhou para cima e sorriu, fraca, explicando:

— Da Chuva".

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Cavalga o Vento assentiu e disse:

— Você dançou com a morte por Não Escuta".

— Eu só me lembro de seus olhos aterrorizados. Então, estávamos no fogo.— Jesse

esquivou-se enquanto alcançava a bebida que ele oferecia. — Onde está Duas Mães?...

Quanto tempo?"

— O sol escondeu-se dez vezes desde o fogo. Duas Mães está bem. Outra tenda

será a casa dele até que você possa acender o fogo."

Cavalga o Vento abruptamente acabou a conversa, levantando-se para sair. Ele

estava na porta da tenda, quando ouviu um choro baixo. Virando-se, viu que Jesse estava

triste com o cabelo chamuscado em seu couro cabeludo. Seus olhos se encheram de

lágrimas, enquanto murmurava:

— Meu cabelo...".

Cavalga o Vento atravessou a tenda de volta. Ajoelhando-se à sua frente, ele

segurou seu queixo, com a mão em concha, e levantou seu rosto de forma que seus

olhos se encontrassem.

— Ele vai crescer de novo. Até então, mantenha a cabeça alta, para todos verem

que Caminhando nas Chamas deu muito de si para tornar-se uma de nós."

— Caminhando nas Chamas?"

— Você ganhou um novo nome entre as pessoas ."

As palavras foram ditas com ternura, e o coração de Jesse até mudou de ritmo ao

ver aquele corpo poderoso avançando para a abertura da tenda. Ele se abaixou para sair,

mas então virou-se um momento. A luz do sol atravessou seu rosto, iluminando a face

bronzeada e a trança negra. Uma brisa suave balançou as penas de águia que pendiam

de seu cabelo. Mas Cavalga o Vento não disse nada e, num movimento silencioso, saiu.

Capítulo 11

Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti.

Rute 1:16

Flor do Campo era a anunciadora das notícias. Quando ela disse aquilo, Jesse a

encarou, não acreditando. Flor do Campo repetiu, sem ter certeza de que Jesse havia

entendido.

Jesse negou:

— Ele não gosta de mim. Ele me trouxe para a aldeia para alimentar o filho dele".

— Ele deu Estrela Vermelha para você."

Jesse rejeitou tal significado:

— Era só assim que eu não o envergonharia".

— Ele trouxe um monte de peles para uma tenda nova. Trouxe peles de alce para

um vestido novo para você."

Jesse explicou:

— Nós precisamos destas coisas por causa do fogo. Todos precisaram de tendas

novas, de roupas novas".

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— Ele se assenta com você todas as noites fora da tenda.

— Isso é para eu poder ler o livro."

Flor do Campo foi ficando impaciente: — Caminhando nas Chamas, eu lhe digo a

verdade! Cavalga o Vento quer que você seja sua esposa. Você não sabe nada dos

costumes lakotas. Eu vou lhe contar!".

Jesse começou a protestar, mas Flor do Campo interrompeu.

— Não! Você escuta! Quando um homem quer mostrar que ele deseja uma mulher,

ele se veste com sua melhor roupa e vai até ela, fora de sua tenda. Eles se assentam e

conversam. Ele dá um presente p ara os pais dela. Como você não é uma jovem lakota,

nem todos os costumes são seguidos. Mas vou-lhe dizer; Cavalga o Vento gosta de você.

— Depois do fogo, quando o Falcão Curandeiro veio — quando você estava como

morta — você não o viu. Eu o vi. Cavalga o Vento não comia. Ele não dormia. Ele só

pensava em Caminhando nas Chamas. Ele procurava ervas medicinais. Ele caçou alce

para o seu vestido. Ele levou Duas Mães para a tenda da Pássaro Amarelo para que seu

choro não atrapalhasse seu descanso. Ele não confiava em ninguém, exceto em Velha,

nele mesmo e em mim para cuidar de você."

Jesse escondeu seu rosto, dobrando suas pernas e abaixando a cabeça,

encostando a testa nos joelhos.

Finalmente ela cochichou, tão baixo, que Flor do Campo quase não conseguiu ouvir

as palavras:

— Você é minha amiga, Flor do Campo. Se eu lhe contar o que tenho em meu

coração, você promete não dizer a ninguém?".

Flor do Campo colocou a mão no ombro de Jesse, tirando-a rapidamente quando a

amiga encolheu-se de dor.

— Eu não vou trair minha amiga.

Respirando fundo, Jesse levantou a cabeça:

— Quando Cavalga o Vento está perto de mim, meu coração canta. Mas eu não

acredito que ele goste de mim. Eu sou desajeitada em todas as coisas que uma mulher

lakota precisa saber. Eu não consigo falar a língua dele sem cometer erros como de

criança. E...— Jesse colocou a mão em seu cabelo curto, — Eu não sou nada, para ser

olhada. Eu não sou...".

Flor do Campo ficou zangada:

— Eu já disse que ele gosta de você. Você não percebe?".

Jesse balançou a cabeça negativamente.

Flor do Campo falou o que não se fala:

— Então, se você não pode ver que ele gosta de você naquilo que ele faz, você

precisa ver o que ele não fez. Você tem estado na tenda dele. Águas Dançantes foi-se há

muitas luas".

— Pare!— Jesse exigiu. — Pare com isso! Eu... não fale mais nada! — Ela levantou-

se e correu para fora da tenda — e entrou na de Cavalga o Vento, que estava voltando do

rio, onde tinha ido buscar água.

Jesse arrancou os odres das mãos dele. A água espirrou e ela gaguejou um pedido

de desculpas, e então abaixou-se meio travada para pegar os odres, estremecendo com o

esforço.

Page 50: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Eu faço isso, Caminhando nas Chamas." Com a voz macia, falou e dobrou-se

para pegar os odres dela.

Jesse protestou:

— Isto é o trabalho da esposa". Ficou vermelha ao perceber que tinha usado a

palavra errada — a palavra para esposa em vez da palavra para mulher.

Cavalga o Vento interrompeu-a antes que ela pudesse corrigir-se:

— Caminhando nas Chamas não é a esposa de Cavalga o Vento".

Jesse enrubesceu e ficou quieta. Uma mão tomou as mãos dela e Cavalga o Vento

disse:

— Venha, sente-se— Ele ajudou-a a sentar-se do lado de fora, perto da porta da

tenda. As mulheres da aldeia perceberam que ele entrou e saiu com uma manta de pele

de búfalo. Assentando-se perto de Jesse, ele colocou a manta no chão e começou a falar.

— Eu vou lhe dizer como funciona entre os lakotas. Quando um homem deseja uma

esposa... — Ele descreveu como os lakotas faziam a corte. Enquanto falava, Jesse viu

que tudo que Flor do Campo tinha dito parecia ser verdade. Ele tinha, de fato, feito quase

tudo o que envolvia o ritual de uma corte.

Mesmo assim, ela falou a si mesma, há uma explicação boa e perfeita para tudo o

que ele fez.

Cavalga o Vento continuou a descrever a festa de casamento. Jesse continuou a

ponderar consigo mesma, enquanto ele falava. Então percebeu que a voz havia parado e

ele tinha repetido a pergunta.

— Como é isso entre os brancos? Como um homem conquista uma esposa?"

Embaraçada, Jesse descreveu uma corte e um casamento simples. Cavalga o Vento

ouvia com atenção. Quando ela acabou, ele disse:

— Há uma coisa que um bravo lakota que deseja uma esposa faz, que eu não

descrevi". Puxando Jesse a seus pés, ele continuou: — Numa noite, quando ele anda

com sua mulher...— Ele pegou a manta de búfalo. Estava consciente de que as mulheres

da aldeia estavam olhando com atenção.

— Ele abre seus braços...— Cavalga o Vento abriu seus braços, abrindo a manta de

búfalo totalmente, — E envolve sua mulher com ela". Cavalga o Vento virou-se para

Jesse e a envolveu — de forma que ambos ficam dentro da manta de búfalo— Ele

abaixou os olhos para Jesse, tentando ler sua expressão. Quando viu que nada havia em

seus olhos cinza, abruptamente derrubou os braços.

— Mas não é hoje e suas feridas não estão curadas. Eu já disse o suficiente. Você já

viu como acontece com os lakotas."

Como Jesse ainda não dizia nada, ele continuou:

— Você falou de uma celebração com um mi-nis-tro. É uma palavra que eu não

conheço. O que é um mi-nis-tro?".

— Um homem que crê na Bíblia.

— E se não houver um ministro e um homem e uma mulher desejam casar-se?"

Jesse sentiu-se mais desconfortável.

— Suponho que eles esperariam até vir um ministro."

Cavalga o Vento insistiu:

— E se um ministro não vier?".

Page 51: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Eu não sei. Nunca pensei sobre isto."

Cavalga o Vento entrou na tenda e trouxe a Bíblia.

— Leia o que Deus diz sobre o homem e a mulher."

Eles sentaram-se novamente e Jesse leu cada passagem que podia encontrar

enquanto ele escutava.

— Não ouvi nada de minis-tro."

Ela pôs-se na defensiva:

— Não, mas Deus diz para obedecer ao costume do povo. Entre os brancos, o

costume das pessoas é com um ministro".

Cavalga o Vento pegou a Bíblia da mão de Jesse e segurou-a enquanto disse,

honestamente:

— Você vive entre os lakotas, agora. Será que Deus diria que você não pode ser

uma esposa sem um ministro?— Ele respondeu a sua própria pergunta: — Acho que

Deus diria que um homem e uma mulher foram feitos para serem um. Acho que Deus

encontraria um caminho sem um ministro".

Cavalga o Vento, de repente, jogou a Bíblia e a manta de búfalo dentro da tenda,

pegou os odres de água e, a passos largos, dirigiu-se ao riacho.

Pássaro Amarelo viu e sorriu para si mesma, esperançosamente.

Velha ouviu e cacarejou com pesar.

Flor do Campo viu e suspirou, exasperada.

Jesse ficou olhando Cavalga o Vento sair andando, com uma canção no coração.

Ele gosta de mim... ele gosta de mim... Flor do Campo estava certa... Ele gosta!

Várias noites depois, quando o fogo já estava baixo, Jesse, deitada e acordada,

tentava arranjar suas emoções confusas. Duas Mães tinha voltado para a tenda e dormia

ao seu lado, respirando com um assobio ritmado. Pelo buraco, no alto da tenda, Jesse

podia ver as estrelas. Um salmo veio à sua mente: Quando vejo os teus céus, obra dos

teus dedos,...Que é o homem mortal para que te lembres dele?.

De fato, Senhor, ela pensou, o que sou eu para que o Senhor pensasse em mim?

Na verdade, tens sido sempre por mim. Quando o pequenino Jacob morreu, deste-me

conforto através de Homer. E quando senti que perderia tudo, colocaste-me na tenda de

Cavalga o Vento. De verdade o Senhor tem-se preocupado comigo, mas por caminhos

tão inesperados! E agora, Senhor, o que eu devo fazer? Não há ministro, nunca haverá.

Há algum caminho?

Jesse levantou-se em um cotovelo para olhar a criança inteira, dormindo. Era

diferente da criança que ela tinha, mas de fato a existência desta criança de muitas

formas tinha-lhe trazido a sanidade de volta e sua fé num Deus de amor. Certamente,

Senhor, há um caminho.

Ela sentia a presença de Cavalga o Vento do outro lado da tenda. Suas ações

comprovaram que ele gostava dela. Agora, enquanto ela estava deitada na tenda dele,

percebeu que se sentia em casa. Adão e Eva não tiveram ministro, Senhor. Se eu seguir

sua Palavra— se nós fizermos os votos— o Senhor não poderia nos abençoar?

Em silêncio, ela cruzou a tenda escura compassadamente em direção a Cavalga o

Vento. Os tições de fogo projetaram sua sombra nas paredes de couro. Sem querer,

chutou a bolsa dele. Cavalga o Vento ficou em pé instantaneamente, a faca na mão, um

Page 52: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

grito de aviso em sua garganta, que morreu lá mesmo ao fitar os olhos de Jesse. Ela

sorriu bobamente e encolheu os ombros com embaraço.

Do outro lado da tenda, Duas Mães mexeu-se e então aquietou-se. Chamas saíram

da fogueira iluminando o interior. Cavalga o Vento ainda fitava Jesse.

Num repente, ela percebeu que a chance para uma felicidade inexplicável estava à

sua frente. Palavras de inspiração vieram à sua mente:

E disse o Senhor Deus. Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora

que esteja como diante dele. E o Senhor Deus... formou... uma mulher: e trouxe-a a

Adão... Portanto deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se á à sua mulher, e

serão ambos uma só carne.

Quando as palavras soaram no coração de Jesse, a incerteza se foi. Ela cochichou

para Cavalga o Vento:

— Eu acho que, se não há ministro, Deus entenderia, tão logo Ele faça parte da

celebração. Sabendo todos que o homem e a mulher prometeram para a vida toda

estarem juntos — em seu nome".

Achegando-se mais perto dele, ela encostou-se em seu peito. O coração dele bateu

rápido enquanto ficaram juntos. A pele dele estava quente. Ele colocou um braço em volta

da cintura dela e afagou seu cabelo curto. Abaixando-se para pegar sua própria manta de

búfalo, Cavalga o Vento a embrulhou nela e a segurou perto, cochichando:

— Nós encontraremos uma forma de agradar a Deus, Caminhando nas Chamas".

De repente, ele derrubou a manta de búfalo e afastou-se.

— Eu não posso ficar aqui na tenda esta noite. — Agarrou suas armas e fugiu.

Na manhã seguinte, a aldeia inteira acordou para ver Cavalga o Vento levando

Estrela Vermelha para sua tenda. A crina e a cauda da égua estavam trançadas e em seu

pescoço havia uma guirlanda de girassóis.

Flor do Campo cruzou rapidamente o lugar, com uma trouxa debaixo do braço.Ela

pulou em frente à porta da tenda.

— Cavalga o Vento, você espera aqui!— ordenou enquanto desaparecia lá dentro.

Jesse ouviu as palavras bem quando acabava de alimentar Duas Mães.

Flor do Campo deu uma risadinha e anunciou:

— Há um bravo lakota lá fora com um potro. Ele pretende levar você, mas eu lhe

disse que não pode, pois você não está pronta. Você precisa usar estas coisas— Ela

hesitou e se desculpou: — Não foram feitos para você — como é nosso costume —, mas,

mesmo assim, são lindos".

Jesse perdeu o fôlego, quando Flor do Campo desenrolou a trouxa e apareceu um

lindo vestido de noiva e perneiras, decorados com esmero. Do outro lado da tenda, Velha

chamou:

— Eu estava preparando seu vestido, Caminhando nas Chamas, mas meu filho é

impaciente. Acordou-me nesta manhã e disse que ia haver uma festa hoje... pois ele a

tomaria como esposa".

Flor do Campo exclamou:

— Então, viu só, Caminhando nas Chamas? Seu coração canta quando ele está

perto e o coração dele responde à canção. Você não acreditou em mim, mas é verdade".

As mulheres ajudaram Jesse a vestir-se e a conduziram para fora da porta da tenda.

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Cavalga o Vento colocou-a em Estrela Vermelha e preparou-se para conduzi-la pela

aldeia. De repente ela escorregou para o chão de novo e pôs seu rosto no ombro dele,

cochichando:

— Eu não posso".

Ele não entendeu. O povo tinha-se juntado em antecipação e agora ele estava

vermelho de vergonha. Jesse puxou-o para dentro da tenda.

— Você não quer ser minha esposa?— perguntou bruscamente.

— Eu quero. Mas ser levada na frente da aldeia toda... todo mundo assistindo...—

Jesse abraçou os ombros largos. — Eu lhe dei meu coração. Mas não posso dizer à

aldeia toda como me sinto. Está aqui dentro. — Ela pôs a palma da mão dele sobre seu

coração. — É para você saber. Não para eles. — Ela fitou-o, seus olhos implorando.

Cavalga o Vento foi para fora e ela ouviu-o dizer: — Vocês viram quando

Caminhando nas Chamas veio para a aldeia. Eu a trouxe em meu potro como um

guerreiro traz o que ele toma do inimigo. Eu a trouxe para cuidar do filho de Águas

Dançantes. Eu a trouxe para me ensinar sobre o Deus que criou todas as coisas. Ela fez

isso. Ela salvou Não Escuta. Ela ganhou um lugar entre nosso povo. Hoje eu lhes digo

que ela não é mais apenas a mulher que cuida do fogo na tenda. Mitawicu. Eu tomo esta

mulher como esposa".

Houve murmúrios de aprovação.

Cavalga o Vento continuou:

— Eu vou caçar por muitos dias. Haverá uma festa".

Ele entrou e chegou-se a Jesse:

— Agora as pessoas estão satisfeitas. Nós seguimos o costume. O que podemos

fazer para agradar a Deus?".

Jesse buscou a Bíblia. Abrindo em Gênesis, leu sobre a criação do homem e da

mulher. Virando para Efésios, leu os deveres do homem e da mulher.

Por último abriu em Rute, lendo o texto querido:

— Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti: porque aonde quer

que tu fores irei eu, e onde quer que pousares à noite ali pousarei eu; o teu povo é o meu

povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei

sepultada."

Quando ela acabou, Cavalga o Vento pediu que ela repetisse. Pediu que ela

repetisse o texto três vezes. Então, pondo a Bíblia do lado, pegou as mãos dela nas suas

e, sem tirar os olhos dela nenhuma vez, falou:

Onde Caminhando nas Chamas for, eu irei. Onde Caminhando nas Chamas pousar,

ali pousarei. O povo dela será meu povo. O Deus dela será meu Deus.

Olhando para cima, ele disse:

— Deus criador de todas as coisas, agradeço por mandar Caminhando nas Chamas.

Eu a tomo como minha esposa. Peço que o Senhor se agrade. O Senhor fez todas as

coisas. Fez o coração dela cantar por mim. Fez meu coração responder. Deu o Seu Filho

para morrer por nós. Não temos mi-nis-tro, mas o Senhor conhece. Somos lakota. Somos

marido e mulher. Somos do Senhor".

Assim, Cavalga o Vento e Caminhando nas Chamas se juntaram no santo

matrimônio. E não havia ministro, mas Deus estava lá. E se agradava. E os dois

Page 54: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

tornaram-se um.

Poucos dias após a celebração do casamento, Jesse caminhou passo a passo pela

tenda para atender aos resmungos de Duas Mães. Retornando à cama de Cavalga o

Vento, ela se cobriu com a manta de búfalo dele. Duas Mães deitou-se entre eles,

fazendo barulhinho ao mamar até cair no sono. Jesse, deitada e acordada, ficou ouvindo

a alva. Apoiada em um cotovelo, ela contemplou a face cor-de-canela ao seu lado,

acariciando a bochecha macia. Num ímpeto de emoção, baixou-se para beijar a testa lisa,

sentindo o cheirinho da criança.

— Que toque estranho é este?"

Com um sobressalto, Jesse percebeu que Cavalga o Vento tinha acordado. Ele

ficara deitado olhando-a bem de perto. Com vergonha, ela puxou a manta de búfalo até

bem embaixo do queixo, respondendo delicadamente:

— Meu povo diz 'beijo'".

— E quem dá este 'beijo'?"

— Pais nos filhos, marido na mulher."

— Mostre-me. — Enquanto disse isso, debruçou-se sobre Jesse que,

obedientemente, deu um beijo na face áspera embrutecida pelo vento.

Ele manteve o rosto perto dela e seus olhos negros procuraram os dela. Então, um

sorriso conhecido curvou os cantos de sua boca.

— Quando Marcus Whitman encontrava Urso Corredor e os comerciantes, Cavalga

o Vento estava lá. Eu vi muita coisa. Eu vi este toque que você chama 'beijo' entre homem

e mulher. Não era aqui— tocou sua face — mas aqui". Com o dedo mostrou sua boca.

Jesse sentiu seu rosto enrubescer e ficou pensando se a claridade da manhã

revelaria seu embaraço. Ela assentiu:

— Sim, para alguns é assim".

— Jesse King e Homer tocavam-se desse jeito?"

Jesse olhou firme nos olhos que escrutavam. Eles se entreolharam, com

sinceridade.

— O meu povo não fala dessas coisas."

Cavalga o Vento ficou quieto por um momento, ponderando a resposta dela:

— Se o homem branco não fala do que está aqui— ele pôs uma mão aberta no peito

dourado, — Ele deve ser muito triste". Cavalga o Vento vestiu-se e saiu.

A luz estava entrando pela porta e Velha tinha acordado para atiçar o fogo e

preparar a refeição matinal antes de ele voltar. Jesse vestiu-se e saiu. Debruçando-se

sobre o riacho, ela lavava o rosto. Não ouviu Cavalga o Vento aproximar-se, mas, com as

ondulações na água, ela começou a ver o rosto dele olhando para baixo dentro da água,

ao lado do seu.

Ele sentou-se para trás, na terra, incomodamente, em cima da perna quebrada, que

ele dobrou. Jesse percebeu uma bolsa em sua mão. Estava ornamentada com contas,

obviamente o serviço de uma mulher hábil. Vendo os olhos dela sobre a bolsa, Cavalga o

Vento abriu-a, tirando o conteúdo e espalhando na grama.

Primeiro, ele pegou duas agulhas de osso. "Águas Dançantes usou isto para decorar

o suporte do bebê que iria nascer. — Ele colocou-as de volta e segurou uma ferramenta

de cavar.

Page 55: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Enquanto Cavalga o Vento caçava, ela usava isto para juntar comida.

Jesse perguntou:

— O que aconteceu a ela?— Ela olhou seu rosto atentamente enquanto ele

preparava a resposta. Não revelava nada de seus sentimentos.

Ele respondeu:

— Quando a criança veio, ela estava silenciosa. Não sabemos como isso a

machucou. Velha cuidou bem dela, mas ela não se levantou mais".

Após um momento Jesse mexeu-se para retornar à tenda, mas Cavalga o Vento a

deteve. Tirando o último item da bolsa, ele parou atrás dela e começou a pentear seu

cabelo curto. Então, de outra bolsa presa ao cinto, em sua cintura, ele tirou um tipo

estranho de faixa para a cabeça, decorada com penas e contas. Ele colocou-a ao redor

da cabeça dela.

Jesse se entregava às suas manifestações de carinho, grata por qualquer coisa que

escondesse seu cabelo chamuscado. Quando Cavalga o Vento terminou, colocou as

ferramentas de volta na bolsa e entregou a ela. Tirou uma faca pequena, pendurada perto

do pescoço, e colocou-a sobre a cabeça dela.

— Quando Águas Dançantes era a mulher de Cavalga o Vento, estas coisas

pertenciam a ela. Agora são de Caminhando nas Chamas."

Jesse debruçou-se sobre a água de novo para ver seu cabelo arrumado. Deu uma

risadinha, embaraçada com o reflexo estranho.

Cavalga o Vento perguntou asperamente:

— É isso que Caminhando nas Chamas acha de meu presente?".

Ela virou-se e viu dor em seus olhos negros, embora seu maxilar estivesse tenso

com uma raiva aparente. Uma sombra aparecera sob cada osso maxilar.

— Não— ela protestou. Colocando a mão em seu braço, ela sentiu os músculos

relaxarem.

Olhando para o outro lado do riacho, para as colinas distantes, Jesse respirou fundo

e começou a falar coisas que nunca havia compartilhado com nenhuma outra pessoa.

— É que Cavalga o Vento fez-me sentir como jamais me senti no meio de meu povo.

Eu... — tremeu os lábios e não pôde continuar. Vendo a fumaça sair pelo buraco em cima

da tenda, ela disse: — Velha está cozinhando. Duas Mães pode precisar de mim".

— Velha não vai esperar você tão cedo." Como Jesse começasse a protestar,

falando sobre Duas Mães, ele acrescentou: — Ele espera. Agora você fala sobre como é

isto com seu povo".

Seu pedido gentil abriu uma correnteza de lembranças e Jesse lutou para organizar

seus pensamentos. Então, começou de novo.

— Eu não sou o tipo de falar sobre estas coisas, é difícil para mim. Eu ri porque você

me fez sentir bonita. E de fato eu sei que não sou. Quando chegou a hora de me casar,

os homens não me procuravam. — Seu rosto corou ao admitir isso e sua voz tremeu de

vergonha ao deixar escapar seu segredo. — Homer King somente me pediu em

casamento porque minha irmã o recusou. Ele precisava de uma mulher para ajudá-lo no

caminho para o Oeste. Quando Betsy disse não, ele me pediu. Meu pai ficou feliz com a

chance de me entregar em casamento. Foi assim que me tornei a Senhora Homer King."

Uma vez terminado, ela olhou para ele desafiadoramente:

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— Eu sei que não sou bonita. Eu ri de mim mesma por pensar nessa coisa

impossível".

Cavalga o Vento ficou quieto por tanto tempo que ela ficou pensando se seu

despencar de palavras tinha ido além das capacidades dele no inglês. Mas bem quando

ela começou a questioná-lo, ele virou seu próprio rosto para o horizonte, de forma que ela

só via o perfil dele.

— Quando Cavalga o Vento era jovem, ele dançava em volta da fogueira como

nenhum outro bravo. Foi então que Águas Dançantes tornou-se sua mulher. Ela assistia e

seus olhos dançavam com as chamas. Mas um dia Cavalga o Vento foi caçar. Seu potro

caiu e quebrou sua perna. Marcus Whitman consertou a perna, mas ela nunca mais

endireitou. Cavalga o Vento não podia dançar mais. O fogo morreu nos olhos de Águas

Dançantes. — Ele a envolveu em seus braços antes de continuar. — Caminhando nas

Chamas vê quando Cavalga o Vento anda como um búfalo machucado. Ela vê, mas o

fogo em seus olhos não morre. A beleza está aqui — ele colocou a mão dele sobre o

coração dela — por isso não ria quando pensar que é bonita. Cavalga o Vento vê o fogo

em seus olhos. E, para ele você é linda".

Jesse pegou a mão dele e, segurando com a palma para cima, deu um beijo nela.

Ele resmungou: "...e então, dê-me mais dos costumes dos brancos".

Num momento de abandono atípico, Jesse ficou na ponta dos pés e deu um beijo

menos casto na boca de seu marido. Ela sorriu, apesar do rubor em sua bochecha,

pegando o cabelo dele e dando um puxão como em uma criança.

Então, para encanto e espanto dele, ela falou em lakota:

— Mihigna — meu marido — Caminhando nas Chamas é uma esposa obediente. Se

ele quiser que ela pare com seus toques estranhos, deve dizer-lhe. Caminhando nas

Chamas obedecerá".

Cavalga o Vento pegou sua mão e eles começaram a voltar para a tenda. Ao

subirem a colina juntos, ele falou:

— Muitos dos costumes de homem branco devem ser esquecidos para se viver

entre meu povo... mas não todos".

Capítulo 12

Não te aflijas por causa dos malfeitores... Porque o maligno não terá galardão

algum, e a lâmpada dos ímpios se apagará.

Provérbios 24:19-20

E na primavera de novo. Jesse estava com Cavalga o Vento há dois anos.

Finalmente ela falava lakota bem o suficiente para traduzir a Bíblia enquanto lia,

esperando que Velha mostrasse interesse pela mensagem também.

Duas Mães andava por perto, tagarelando enquanto misturava pedras na areia.

Certa vez ele chegou muito perto do fogo e Jesse rapidamente quis tirá-lo para evitar que

se queimasse. Velha aproximou-se e deteve-a:

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— É preciso aprender, a partir de uma queimada no fogo, a ficar longe dele".

Jesse ficou olhando Duas Mães andar cada vez mais perto do fogo. Finalmente, um

dedo chegou bem perto e ele fez uma choradeira, com dor. Jesse lavou a queimadura e

espalhou uma pasta para curar, tomando cuidado em não chamar mais atenção para a

ferida do que o necessário. Duas Mães precisava aprender a ser corajoso, a agüentar a

dor com a mínima reclamação possível. Algum dia a salvação de seu povo poderia

depender de sua capacidade de ficar em silêncio na chegada de um perigo ou

desconforto.

A amizade entre Jesse e Flor do Campo crescia. O ressentimento de Lobo Uivante

por Cavalga o Vento continuava. A amizade de sua esposa com Caminhando nas

Chamas o irritava. As duas mulheres dividiam cada tarefa possível, desde limpar pele

nova de búfalo a procurar alimentos. Quase todos os dias alguma coisa acontecia que

enfatizava a diferença entre os dois maridos e, portanto, a diferença entre suas vidas. Flor

do Campo era estóica quanto à sua infeliz escolha de um marido. Ela fazia tudo o que

podia para tornar Lobo Uivante feliz. Sofria seus abusos sem reclamação e trabalhava

arduamente. Lobo Uivante não valorizava isso. Infelizmente, os filhos não chegaram.

Como era impossível chamar sua esposa de preguiçosa e atribuir ao fato sua baixa

estima na aldeia, ele a culpava por não terem filhos.

— Sem filhos— ele dizia, — Somos desgraçados no meio do povo."

Todos sabiam que a própria preguiça de Lobo Uivante e sua pouca disposição

tinham-lhe dado esta má posição na tribo. Ainda assim, recusava-se a aceitar como sua a

responsabilidade. Cavalga o Vento tentou ajudar, caçando com ele. Os dois, junto com o

pequeno grupo de bravos, cavalgaram pelo Desfiladeiro do Búfalo e logo encontraram

uma trilha de um bando grande de alces. Seguiram a trilha por muitos dias e Lobo Uivante

aprendeu, olhando Cavalga o Vento, a interpretar as trilhas.

— O líder está machucado— ele disse, mostrando a Lobo Uivante como uma perna

estava-se arrastando levemente enquanto a fera caminhava.

— Ele foi confrontado por um gamo novo aqui. Olha como a neve mostra uma

grande batalha.

— Você pensa que eu não sei nada?, falou asperamente Lobo Uivante.

Cavalga o Vento recusou-se a entrar numa briga.

— Lobo Uivante, eu sei que você não teve pai para ensiná-lo. Não é culpa sua. Se

você não sabe, eu gostaria de ajudá-lo. Você é um guerreiro impetuoso — muito melhor

do que eu. Você pode ensinar-me na guerra. Eu posso ensiná-lo na caçada.

Lobo Uivante apaziguou-se, mas, quando se aproximaram do bando de alces, ele

cutucou seu potro para correr à frente, ávido para matar o alce maior e receber a honra

para si mesmo. Ele já enxergava o retorno triunfante à aldeia, as mulheres cantando em

volta da fogueira. Elas cantarão uma música para mim, ele pensou, assim:

Venham ver o Lobo Uivante

Venham ver, escutem todos,

O grande caçador retoma

Ele capturou seu irmão, o alce,

E todos nós festejaremos

Lobo Uivante retorna Venham ver, venham ver.

Page 58: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Lobo Uivante deu um sorriso largo para si mesmo ao pensar nas mulheres da aldeia

honrando-o com suas canções. Ele afundou seus calcanhares no potro e subiu a colina

galopando avidamente à frente de seus companheiros. Cavalga o Vento olhou, com

desagrado, e virou-se de volta ao Desfiladeiro do Búfalo.

Quando os outros do grupo o chamaram, ele gesticulou, bravo, mostrando Lobo

Uivante:

— Aquele corre como um tonto. Ele vai assustar o alce e hoje não se matará nada.

Deixe-o ir, eu volto para a aldeia. Voltaremos com mãos vazias e nossas crianças e

mulheres ficarão com fome". Cavalga o Vento apressou Vento em direção à aldeia.

Sua predição cumpriu-se. Perdido em sua visão de grandeza, Lobo Uivante ordenou

ao potro que subisse a colina e chegou ao bando de alces. Surpreso por estar tão

próximo, despreparado para atirar... Os alces fugiram soltando espumas pelas narinas.

Nenhum foi morto naquele dia, ainda que os outros caçadores tentassem cercá-los numa

segunda tentativa. A ameaça de uma tempestade de neve forçou-os todos a desistirem da

caçada, e voltaram para a aldeia de mãos vazias e bocas fechadas.

As mulheres ficaram imaginando o que havia acontecido. Somente Flor do Campo

sabia a resposta, pois Lobo Uivante não estava entre os que chegaram à luz do dia. Ele

esperou escurecer para esgueirar-separa dentro da aldeia e para a cama. Ele reclamou

mais uma vez da falta de filhos, da falta de sorte e da mulher irresponsável.

Certa manhã bem cedo, não muito tempo após a caçada frustrada, Flor do Campo

estava fora da tenda trançando seu cabelo. Lobo Uivante ainda dormia e ela estava

ansiosa por juntar-se a Jesse e às demais mulheres. Hoje elas iriam começar a decorar

suas roupas novas com contas, cascas de nozes e espinhos de porco-espinho. Jesse

prometera mostrar a Flor do Campo um desenho de seus dias no mundo dos brancos.

Flor do Campo há tempo admirava a habilidade de Jesse com a agulha. Por seu lado,

Jesse agradeceu a oportunidade de retribuir a Flor do Campo por sua grande bondade.

Ensinar a Flor do Campo um desenho novo para o bordado com contas, o que a

agradaria, era algo tão simples! As duas mulheres haviam planejado encontrar-se o mais

cedo possível, de forma que a manhã fosse dedicada a esse projeto.

Ao olhar o sol nascendo enquanto fazia as tranças, Flor do Campo viu Águia Branca

perambulando. Ele lhe lançava muitos olhares. Nesse dia ele parou.

— Lobo Uivante não foi verificar os potros dele esta manhã."

— Está dormindo."

Águia Branca deu um sorriso significativo. Estendeu as mãos, alcançando uma das

tranças dela.

— Se eu tivesse uma mulher tão linda em minha tenda, não dormiria enquanto ela

trançasse seus cabelos." Continuou seu caminho sem nenhum outro olhar. Mas Flor do

Campo pensou nele o dia inteiro. Cada vez que o rosto dele aparecia em sua mente, ela

tentava expulsá-lo, mas o sorriso insolente de Lobo Uivante era sempre sobreposto pelo

lindo rosto de Águia Branca.

Flor do Campo fez um bordado feio naquele dia. As mulheres da aldeia perceberam

que sua mente não estava no trabalho. Jesse temeu que ela estivesse doente, mas Flor

do Campo balançou a cabeça quando Jesse a pressionou para dividir seus pensamentos.

Era noite da Lua em que as cerejas silvestres amadurecem— quando Cavalga o

Page 59: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Vento acordou Jesse. Colocando os dedos nos lábios dela, ele a conduziu para fora da

tenda e para a campina. Enquanto andavam em silêncio, para longe do brilho fraco das

fogueiras da aldeia, ele cochichou:

— Você precisa ver o céu... está em fogo".

Ele puxou Jesse para baixo, ao seu lado, e ficaram deitados de costas, com toda

atenção voltada para cima. O céu da noite estava num brilho intenso de estrelas e tão

claro que até mesmo o lado mais escuro da via láctea estava visível. Colocando a mão da

esposa na dele, Cavalga o Vento cochichou:

— Conte mais uma vez as palavras do Livro de Deus sobre os céus".

Jesse falou de cor:

— Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas... Que é o

homem mortal para que te lembres dele?. Enquanto ela citava o salmo familiar a Cavalga

o Vento, uma luz cruzou o céu. Apenas alguns segundos após, outras luzes apareceram e

o casal ficou perplexo.

Os dois já estavam ali há quase uma hora quando Cavalga o Vento sentou-se, virou

a cabeça para um lado e pôs-se a escutar. Jesse ouviu também; vinha de perto do rio.

Levantaram-se com cautela, e moveram-se furtivamente pela grama alta em direção ao

som.

Quando viram o bando de potros pastando tranqüilamente, os dois relaxaram um

pouco. Os potros não sossegariam se um inimigo estivesse por perto.

Ao se aproximarem do rio, o barulho parou. Então, vindo de trás de uma macega

grossa que cresce ao longo das margens, eles viram a fonte do barulho. Águia Branca e

uma índia jovem foram rapidamente para a aldeia.

Cavalga o Vento não se esforçou para alcançar os dois amantes. Colocou seu braço

em volta da mulher e levou-a para a tenda deles numa caminhada lenta.

Jesse relaxou em seu braço, louvando a Deus por enviá-la a um homem que se

encaixasse tanto à sua própria natureza. Ele é tão solene em público, ela pensou. Flor do

Campo tinha um pouco de medo dele. Jesse dava risada ao ver sua amiga, sempre tão

expansiva e amigável, ficar quieta e reticente perto de Cavalga o Vento. Na verdade, ela,

no íntimo, gostava de saber que parte de Cavalga o Vento pertencia somente a ela — e a

Duas Mães e a Velha. O restante do povo via apenas o caçador hábil, dedicado à

provisão de comida para a tribo, acordando bem cedo cada manhã, incapaz de participar

das danças de celebração, que não procurava amizade profunda com nenhum outro

valente.

Eles sabiam que ele adorava contar histórias, mas se o tivessem visto recontando

suas expedições para a família ficariam admirados. O rosto duro se abrandava, o

contorno dos olhos enrugava-se, com sorrisos largos. Ele se divertia entretendo seu filho

com histórias de caçadas. Engatinhando, ele raspava o chão e bufava como um búfalo,

investindo em Duas Mães e fazendo-o virar cambalhotas. O pai e o filho lutavam em cima

do couro de búfalo até Duas Mães perder o fôlego e implorar ao pai para parar. Então

Cavalga o Vento virava para Velha, pedindo respeitosamente seu conselho sobre algum

projeto novo. Para Jesse ele reservava toda sua ternura. O amor de Deus encontrara um

vaso desejoso em Cavalga o Vento, de onde fluía para Jesse.

Na manhã seguinte à do meteoro, Flor do Campo e Jesse tinham acabado de

Page 60: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

começar o trabalho com os espinhos de porco-espinho, na parte da frente de um novo

vestido de pele de alce, quando Lobo Uivante irrompeu no meio do círculo de mulheres.

Gritando e xingando, agarrou Flor do Campo pelo braço e puxou-a. O rosto dela ficou

pálido e ela tentou livrar-se. Irado, Lobo Uivante dava bofetadas em seu rosto, gritando

acusações sobre Águia Branca.

As mulheres se dispersaram imediatamente. Jesse correu para Cavalga o Vento. Ela

o encontrou trabalhando com o novo potro. Ele tinha levado o potro para o riacho e, com a

água na altura do peito, estava preparando-se para montá-lo pela primeira vez.

Puxando o ar para respirar, Jesse gritou:

— Precisamos fazer alguma coisa! Lobo Uivante...". Deu os detalhes, terminando

com uma súplica para que Cavalga o Vento interviesse. Ele continuou a acalmar o potro

nervoso e não se moveu em direção à aldeia.

Após um silêncio longo, Cavalga o Vento disse:

— É um problema entre Lobo Uivante e Flor do Campo".

Jesse protestou:

— Mas ele está muito bravo... ele pode matá-la!".

— Acho que nem mesmo Lobo Uivante seria tão bobo. Flor do Campo é uma mulher

bonita. É a única coisa boa que ele tem. Ele não vai matá-la.

— Mais ele deu tantos tapas nela, tão fortes!"

— Sim, e isto é seu direito. Este é o costume do povo."

Ele montou no lombo do potro. Este refugou, como louco na água, virando os olhos

e tentando empinar, mas a água funda o impedia de derrubar Cavalga o Vento. A

espirração doida durou uns poucos momentos, mas não muito. O potro era inteligente e

logo percebeu que seu cavaleiro era determinado e capaz de permanecer em suas

costas. Por fim, ele parou de refugar e ficou tremendo na água. Cavalga o Vento

escorregou de seu lombo, deu uns tapinhas no seu pescoço. Cochichou na orelha dele e

ficou dando tapinhas no seu lado até que o tremor acalmasse e o potro ficasse quieto,

cabeça baixa.

Cavalga o Vento virou-se para Jesse:

— Flor do Campo precisa decidir o que fará. Lobo Uivante precisa decidir o que fará.

Eu não posso fazer nada. Eles é que têm de decidir".

Ele acabou a conversa abruptamente, levando o potro pardo para a margem do rio e

de volta para a tropa. Jesse apressou-se de volta à tenda, zangada.

Bem quando Velha começara a explicar a visão do lakota, Flor do Campo entrou

correndo na tenda. Ela estava gritando de dor, as mãos no rosto, o sangue saindo entre

os dedos. Jesse agarrou-a e puxou-a para um couro de búfalo. A mulher sacudiu-se

violentamente e gritou de dor.

Velha instruiu Jesse a segurar Flor do Campo no chão. Jesse escarrapachou-se

sobre a amiga, no chão, segurando um pulso em cada mão, forçando o corpo que saltava,

com todo o seu peso. Finalmente, Flor do Campo ficou imóvel, tremendo e chorando de

dor.

Velha limpou o sangue, aparecendo assim um corte profundo no cavalete do nariz.

Limpando a ferida, pressionou até quase o sangue parar. Então, sem nenhuma palavra

para Flor do Campo, pegou seu estojo de costura e fez o melhor que pôde para fechar o

Page 61: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

corte. Apesar do maior esforço de Velha, isso foi feito de maneira rústica, e deixaria uma

cicatriz horrível no rosto antes lindo da jovem.

Jesse perguntou: — Lobo Uivante fez isso em você?".

Flor do Campo não respondeu. Gemendo, virou seu rosto para a parede da tenda e

Velha interveio.

— O marido tem o direito de vingar-se se a mulher for infiel. A aldeia sabia há muitas

luas já que Águia Branca pretendia roubar Flor do Campo de Lobo Uivante. Lobo Uivante

soube disto e puniu sua mulher. — Velha falou as palavras sem emoção.

Jesse recusou-se acreditar nisso. Repetia para Flor do Campo:

— Lobo Uivante fez isso em você?".

Com o rosto ainda virado, Flor do Campo cochichou:

— Sim.".

— Então ele precisa ser punido."

Jesse correu para fora, montou na Estrela Vermelha e saiu, pensando sem parar na

selvageria de Lobo Uivante. Ele deveria ser punido. Ele não podia livrar-se, tendo tratado

assim sua amiga.

Naquela noite, Flor do Campo retornou à sua tenda. Jesse viu quando ela atirou

todos os pertences de Lobo Uivante para fora.

— A tenda é minha— ela gritou para toda a aldeia ouvir, — E eu digo que Lobo

Uivante se vá!". Não demorou muito para limpar o interior de qualquer traço de Lobo

Uivante. A última coisa que Flor do Campo agarrou para jogar foi a colcha de retalhos

branca que ele havia trazido no dia em que Jesse fora arrastada para a aldeia.

Flor do Campo ia jogando, mas alguma coisa chamou sua atenção. Ela reconheceu,

na colcha, o desenho que Jesse tinha ajudado a bordar no vestido novo. Flor do Campo

olhou e disse:

— Caminhando nas Chamas fez isto?".

Jesse assentiu. Flor do Campo dobrou a colcha e falou baixinho:

— Então Flor do Campo guardará— Ela esvaziou a maior bolsa de roupas de Lobo

Uivante, que foram jogadas para fora, e guardou a colcha dentro dela. Satisfeita por ter-se

livrado do marido cruel, Flor do Campo começou a preparar a refeição.

— Você deve ir agora, Caminhando nas Chamas. Nunca esquecerei Lobo Uivante,

mas eu fui louca ao achar que ele iria mudar. Meu pai me aconselhou a não me casar

com ele— disse com tristeza. Jesse desejou muito confortá-la, mas não havia palavras.

Finalmente, voltou para casa, onde exigiu, de novo, que Lobo Uivante fosse punido.

Cavalga o Vento ficou inacessível às suas exigências.

— É o costume do povo— ele respondia mais e mais vezes. — Eu não vou interferir.

Lobo Uivante fez o que achou que devia para conservar a esposa.

Jesse estava inconformada:

— E se eu olhasse para outro guerreiro bonito, Cavalga o Vento iria cortar meu

nariz?.

Cavalga o Vento fitou-a solenemente:

— O livro de Deus diz que você deve ser fiel a mim. Nós não vivemos como Lobo

Uivante e Flor do Campo". Depois de um momento, acrescentou: — E se você fosse infiel

a mim, eu cortaria o seu cabelo vermelho lindo, não o seu nariz. É o seu cabelo que a

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deixa linda".

Jesse recusou-se a desviar a conversa. Finalmente, Cavalga o Vento exasperou-se

com a insistência dela.

— Caminhando nas Chamas, chega— ele quase gritou. — Você diz que Lobo

Uivante deve ser punido. Ele será punido. Todos os dias de sua vida terá de olhar para a

cicatriz que deixou em sua mulher. Todos os dias de sua vida terá de sofrer com a tristeza

que causou. E todos os dias de sua vida Flor do Campo vai-se lembrar de quando era

jovem e bela. Águia Branca foi embora. Acabou. Nós temos de orar por eles, pois eles

não têm Deus para ajudá-los. Mas eu não vou punir Lobo Uivante por ter feito o que é

certo entre os lakotas. Ele vai responder para Deus pelo que fez. Ele não tem de

responder para mim."

Cavalga o Vento levantou-se da beira da fogueira e saiu, voltando só quando tinha

certeza de que todos estavam dormindo. Mas Jesse não estava. Ela ficou acordada por

horas, orando para que pudesse entender a decisão de seu marido. Por fim, dormiu, sem

resposta para suas questões.

Capítulo 13

...o Pai das misericórdias... que nos consola em toda a nossa tribulação, para

que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação,...

2 Coríntios 1:3-4

Na tenda de Lobo Uivante, Hepzibah Miller sentou-se tremendo. Era um dia lindo de

primavera, mas, para Hepzibah, o mundo havia-se tornado um lugar escuro e terrível. Ela

apenas havia pretendido colher algumas flores naquela manhã. Levantando-se antes de

sua família, tinha-se vestido e saído furtivamente do acampamento, empolgada pela

aventura de uma jornada na campina selvagem.

— Vocês ficarão uma perto da outra— Elder Smith tinha avisado antes de deixarem

o acampamento de inverno. — Uma vez fora dos estados, os índios não são muito

pacificadores. Um homem branco sozinho é um alvo fácil. Uma mulher sozinha... — Elder

Smith não terminou sua sentença. O olhar ameaçador sob as sobrancelhas grossas

bastou.

Hepzibah tinha recebido o aviso como um desafio. O impulso antigo de ser livre de

todas as regras agitou-se novamente. Ó, por que, ela pensou, por que não consigo ser

dócil como Melinda? Hepzibah deu uma olhada em sua querida irmã, assentada, na

reunião, com as mãos recatadamente enlaçadas. Quando Elder Smith terminou seu aviso,

Melinda corou e mordeu o lábio inferior. Suas mãos se apertaram fortemente. Melinda era

assustada o suficiente por sua imaginação para responder à admoestação — como

sempre, ela obedeceria a Elder Smith sem perguntar nada.

Mas Hepzibah encarou o aviso de Elder Smith com o queixo levemente levantado e

um olhar sem piscar. Tentando escondei as questões rebeldes de seu coração, Hepzibah

sorriu. Elder Smith não se sentiu confortado. Ele fez uma anotação mental para observar

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essa jovem cuidadosamente e par a prevenir seu pai de um problema espiritual que ele

tinha detectado na jovem Hepzibah.

No entanto, o aviso não foi levado tão a sério pelo Irmão Miller. Sempre alegre, não

muito devoto, Irmão Miller tinha respondido:

— Bem, bem, Ezra Hepzibah é jovem. Ela ainda não se acalmou de fato. Ela estará

bem. Tão logo eu a prometer para seu futuro marido, ela se acalmará". Preocupado com o

trabalho de preparar sua família grande para a jornada a Utah, Irmão Miller deixou de lado

as preocupações com Hepzibah.

Hepzibah começou os preparativos com toda sua energia de jovem. Ela limpou e

separou, emendou e cozinhou. No caminho para o Oeste, ela continuou alvoroçada,

ajudando a carregar o irmão Calebe, por horas seguidas, colocando os pequenos para

dormir e curando seus arranhões, sem reclamação. Mas o aviso de Helder Smith pairava

sobre todas estas atividades, estimulando Hepzibah.

Eles saíram dos estados e entraram na campina vasta. O capim alto e as flores

dançavam ao vento e Hepzibah ansiava por dançar. Os animais selvagens corriam ao

longo do horizonte e Hepzibah ansiava por correr com eles. A água plana que eles

seguiam tornava-se violenta com a chuvarada da primavera e Hepzibah enraivecia-se

com as regras estabelecidas para as mulheres em sua comunidade.

Além de tudo, que perigo poderia haver em levantar-se cedo, sair para um passeio e

colher flores? Na verdade, a Bíblia não fala sobre a mulher virtuosa que se levanta de

madrugada? Assim, Hepzibah levantou-se e saiu furtivamente do acampamento quando

as últimas estrelas brilhavam num céu riscado pelo despontar da aurora. Em passos

rápidos e largos, subindo uma elevação, Hepzibah ficou enlevada pela visão de milhares

de flores azuis vicejando na encosta adiante. Sem consciência da distância verdadeira até

aquela montanha, ela andou até a massa azul. O sol estava quase levantando agora —

sabia que precisava voltar rápido. Só mais alguns botões brancos, para completar o

buquê e...

Uma sombra caiu bem sobre o botão que ela apanhava. Hepzibah olhou para cima,

surpresa. Lá estava Lobo Uivante, com as galinhas pegas na manhã pendendo de uma

mão. O coração de Hepizbah disparou, mas ela se levantou e olhou nos olhos dele. Seu

olhar não vacilou. Uma mão agarrou o buquê, enquanto a outra se levantava para tocar a

aba de seu chapéu.

Lobo Uivante segurou e empurrou o chapéu de Hepzibah para fora de sua cabeça.

Caindo o chapéu, revelou-se um cabelo preto brilhante desarrumado. Largando as

galinhas da campina, Lobo Uivante dobrou-se levemente e em um movimento ergueu

Hepzibah e a colocou sobre seu ombro.

Hepzibah ficou furiosa. Gritou, chutou e golpeou as costas do homem. Ele continuou

andando. Ela orou, fez juramentos e lutou. As mãos do homem apertaram mais e ele

continuou andando. Finalmente, Hepzibah enterrou suas unhas curtas nas costas dele.

Ele a jogou na poeira. O vento a deixou fora de combate; ela ficou deitada indefesa

enquanto Lobo Uivante amarrava com um couro seus pulsos e tornozelos. Ele a puxou

para cima de novo. Hepzibah berrou, gritou e tentou rolar para fora de suas costas.

Lobo Uivante não era um homem paciente e já tinha tido o suficiente. Ele jogou

Hepzibah no chão, gritando e esbofeteando seu rosto. As palavras de Elder Smith vieram

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à sua mente:

— Um homem sozinho é um alvo fácil. Uma mulher sozinha...". Pela primeira vez em

sua vida ela ficou chocada. Suas bochechas queimaram com a dor da pancada e a

vergonha de sua situação. Mas o choque fez mais. Transformou sua rebelião em terror.

Hepzibah concordou com a cabeça ao aviso e submeteu-se com docilidade quando foi de

novo levantada e carregada.

Para onde ele está me levando? ela ficou imaginando. Olhou o chão abaixo dela por

um momento. Ainda era cedo. O sol mal havia nascido. Estava frio. Sua cabeça começou

a latejar. Hepzibah fechou os olhos por um instante, imaginando se seu pai já havia

percebido sua ausência. Um novo som chamou sua atenção — crianças rindo!

Lobo Uivante entrou com passadas largas na aldeia, anunciando o sucesso de sua

caçada. Ele jogou Hepzibah na sujeira, ao lado de uma tenda, e deu um sorriso largo,

fazendo uma piada sobre o pássaro gigante que ele tinha encontrado cantando no campo

de flores azuis ali perto.

— Eu tenho uma nova Flor do Campo— ele riu. Ouvindo seu nome, Flor do Campo

deixou sua panela e olhou para fora. Uma mulher branca estava caída na sujeira. Ela era

bonitinha. Seu cabelo preto, cheio, caía numa massa abaixo do pescoço fino. Seus olhos

eram da cor do céu.

Lobo Uivante olhou de cima sua nova mulher. Olhou carrancudo para Flor do

Campo:

— Alimente-a. Posso querer conservá-la— Saiu, ainda rindo.

Flor do Campo havia rompido com Lobo Uivante. Ela não tinha de obedecer-lhe.

Mas tinha de pensar numa forma de proteger essa menina inocente. Com cuidado,

desamarrou Hepzibah e mandou-a entrar. Com Lobo Uivante fora de vista, Hepzibah

recusou. Flor do Campo empurrou-a para dentro. A menina virou de costas para a comida

oferecida a ela, arrastou-se para longe da fogueira e sentou-se, olhando ao redor como

boba.

Examinou Flor do Campo cuidadosamente. A mulher devia ter sido bonita antes,

mas uma cicatriz feia rasgava o cavalete de seu nariz e parte de sua bochecha. Seu

cabelo era repartido e bem trançado. Cada trança era decorada com contas e penas. Ela

era limpa, diferente da descrição que haviam feito a Hepzibah de uma índia. Mesmo

assim, tremendo, pôs sua cabeça nos joelhos e começou a chorar.

Eles me encontrarão? pensou. Pelo menos vão tentar? Em seu estado de miséria,

questionava se os outros achariam que valia a pena esforçar-se para formar um grupo de

busca. Por que preciso sempre desobedecer? O que há dentro de mim que quer sempre

seguir o outro caminho?

Enquanto Hepzibah contemplava seriamente seu estado de pecado, Flor do Campo

mexia-se na tenda, desenrolando o couro de dormir. Deixou de lado suas outras tarefas

planejadas para aquela manhã em função deste novo acontecimento. Lobo Uivante tinha

encontrado outra mulher. Ele até a tinha chamado de Nova Flor do Campo.

Flor do Campo amarrou as mãos de Hepzibah de novo. Chamando uma

meninazinha do outro lado do acampamento para ficar cuidando da porta, ela correu para

fora.

Nenhum sinal de Lobo Uivante. Disseram-lhe que ele tinha saído puxando dois ou

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três potros. Flor do Campo sabia da intenção dele de comercializar a nova mulher. Ele

pretendia mantê-la.

Jesse estava limpando sua própria tenda quando Flor do Campo enfiou a cabeça na

porta e sibilou:

— Caminhando nas Chamas — venha ver".

Jesse seguiu a amiga sem perguntar nada. A menininha deixada para cuidar de

Hepzibah deslizou para fora, deixando as duas fitando Hepzibah que dormia, exausta por

sua experiência penosa.

— Lobo Uivante chamou-a de Nova Flor do Campo— lamentou. Jesse pegou na

mão da amiga, sem saber o que dizer. Estava claro que a jovem estava exausta e iria

dormir por um tempo.

— Fique aqui — vou falar com Cavalga o Vento— Jesse cochichou. — Mande-a

para mim assim que acordar. Preciso ajudá-la a entender que nós não vamos machucá-

la.

Jesse saiu correndo, com o coração pulando.

Cavalga o Vento ficou olhando do meio de seu pequeno grupo de potros enquanto

Jesse corria para ele. O cabelo dela brilhava, num vermelho-claro, ao sol da manhã. Ela

correu ligeiramente até ele e seu coração se agitou ao vê-lo escorregar do lombo de

Vento para o chão. O potro dançou em volta, com impaciência.

— Aproxime-se— Cavalga o Vento a chamou. Ao ver Jesse hesitar, ele soltou a

rédea de Vento e andou até ela, amarrando a rédea em sua mão. — O que aconteceu?"

— Flor do Campo veio até mim. Lobo Uivante tomou uma nova mulher."

— Este é o caminho para alguns homens— ele respondeu.

— Mas ele escolheu uma menina nova— acrescentou. — Ela é branca. Ele a

encontrou perto das Colinas Azuis. Ela está assustada. Precisamos levá-la de volta para o

povo dela.— Enquanto falava, Jesse aproximou-se de Cavalga o Vento, colocando a mão

em seu antebraço.

— Se Lobo Uivante a encontrou, nós não podemos interferir."

— Mas ele quer mantê-la.

— Flor do Campo foi infiel. Então ele foi expulso da tenda dela. Lobo Uivante está

bravo. Ele precisa reconquistar o respeito. Uma nova mulher é uma forma disso

acontecer."

Jesse tirou sua mão do braço de Cavalga o Vento.

— Você não acredita nisso. Não você!"

Ele a fitou, sem piscar.

— Não interessa se acredito. Isto é problema de Lobo Uivante.— Ele virou-se para

montar de novo em Vento.

Jesse sentiu sua raiva crescer. Será que ele ia ficar parado sem fazer nada? Ela

tentou de novo:

— Mas, Cavalga o Vento, a menina está aterrorizada. Ela quer voltar para o povo

dela. Ela não deve ser forçada a ficar".

Ele ficou calado um bom tempo. Então, devagar, Cavalga o Vento respondeu:

— Você estava aterrorizada quando eu a trouxe para minha tenda. Mas você ficou.

Talvez agora você desejasse ter dito para eu levá-la de volta".

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A compreensão acalmou a raiva de Jesse.

— Não é mesma coisa. Eu não era uma menina. Era uma mulher. Minha família

havia acabado. Nós não sabemos nada sobre esta jovem. E eu..." , ela pegou a mão de

Cavalga o Vento, e ele deixou — fui salva por um homem que amava a Deus e que

começou a me amar. Lobo Uivante é...— Jesse hesitou, mas falou. Ela usou uma palavra

lakota que Cavalga o Vento nem sabia que ela conhecia.

Ele estudou seu rosto e perguntou:

— O que você quer que eu faça?".

— Troque alguma coisa por ela.— Jesse sabia que precisava planejar com cuidado.

— Eu vou salvar o prêmio dele. Diga a ele que preciso de uma escrava. Diga a ele que eu

quero alguém do meu próprio povo para me ajudar. Ó... diga a ele qualquer coisa, mas

tire mesmo aquela menina de perto dele!"

— Eu vou tentar, Caminhando nas Chamas, mas Lobo Uivante é orgulhoso. E

melhor você orar."

Hepzibah acordou de repente e soluçou miseravelmente quando percebeu onde

estava. A porta da tenda abriu ao primeiro barulho. Duas mulheres entraram na tenda. O

sol brilhando por detrás delas obscurecia suas feições. Hepzibah ficou olhando, sem se

sentar, enquanto se aproximavam.

— Você está acordada?— Hepzibah estava muito surpresa para responder. Ela

tinha ouvido sua própria língua destes selvagens! Quando seus olhos se acostumaram à

nova luz, ela viu duas mulheres. Uma era a da cicatriz no rosto. Mas a outra! Olhos cinza,

cabelo vermelho — e pele branca! Ela era branca! Vestida como uma índia, mas branca

— e falando inglês! Hepzibah gaguejou uma resposta.

Jesse sorriu:

— Deve ser um grande choque acordar numa tenda de índio e ver alguém como eu".

Hepzibah concordou, com a cabeça, e sentou-se.

— Você foi trazida até nós por Lobo Uivante. Ele diz que encontrou você nas Colinas

Azuis."

— Eu... fui apanhar flores. Fui passear. Elder Smith nos avisou para ficarmos juntos,

mas eu só fui dar um passeio. Eu não pensei— deu uma pausa, — Ai, eu não pensei

mesmo".

— Onde está seu povo?"

— Não sei. Não andei muito. Eles devem estar-me procurando. Ah! Você não vai —

não vai machucá-los, vai?"

— Com certeza eu não os machucaria— Jesse replicou. — Mas precisamos pensar

num modo de levá-la de volta a eles. Lobo Uivante saiu há pouco tempo para encontrar

seu povo e comprá-la. Ele quer ficar com você."

Isto fez brotar novo terror em Hepzibah. Ela deu um grito sufocado: — Ai, não! Não

posso... Ai, não fala isso... Eu não poderia viver...— A vestimenta de Jesse a confundia.

— Mas você..."

Jesse explicou:

— Estou vivendo com esse povo há muitos anos. Não tenho ninguém mais. Minha

família está aqui agora. Mas você— sorriu com carinho, — Tem uma história diferente.

Vamos tentar fazer com que volte ao lugar a que pertence".

Page 67: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Ah, obrigada!— Hepzibah balbuciou. Ela virou-se para Flor do Campo e tentou

um sorriso. — Obrigada. Não sei o que eu faria..." Hepzibah começou a chorar.

— Apresse-se agora. Vamos limpar você. E você precisa comer. Esta minha amiga é

uma das melhores cozinheiras de nossa aldeia e você vai gostar da comida dela.

Hepzibah conseguiu esboçar um sorriso. O nó em seu estômago relaxou um pouco.

Jesse e Flor do Campo deram a ela uma tigela com um ensopado para o café da

manhã e Hepzibah ficou surpresa ao perceber que estava com fome. Ela queria fazer

mais perguntas à mulher branca, mas, logo que começou a comer, Jesse saiu. Hepzibah

ficou sozinha com Flor do Campo, que tentava passar por cima da barreira da língua,

sorrindo e motivando Hepzibah a comer mais.

Cavalga o Vento saltou para o lombo de Vento após Jesse ter saído. Com três dos

seus melhores potros atrelados, ele se dirigiu às Colinas Azuis. Tomara o cuidado de

separar uma mula que Lobo Uivante sempre olhava com inveja. A mula havia cruzado

com Vento e estava prenha, portanto seria bem valorizada numa troca.

Andando rapidamente, Cavalga o Vento alcançou Lobo Uivante bem quando ele

cruzava as Colinas Azuis. As fumaças das fogueiras do acampamento podiam ser vistas a

distância. Lobo Uivante ouviu Cavalga o Vento aproximando-se e virou-se. Quando

Cavalga o Vento estava a distância de ser ouvido, gritou:

— Então você também veio comercializar uma nova mulher? ". Lobo Uivante fez

uma piada vulgar sobre Jesse não ter filho. O silêncio e o olhar pétreo de Cavalga o Vento

silenciou qualquer outro comentário, e Lobo Uivante esperou que ele falasse.

— Você encontrou uma nova mulher nas Colinas Azuis— ele disse.

— Sim, a Nova Flor do Campo para substituir a velha megera que sua esposa acha

tão útil."

Cavalga o Vento ignorou o comentário." É em minha mulher que estou pensando

agora, Lobo Uivante. Ela é uma mulher boa, mas desajeitada nos costumes do nosso

povo. Ela precisa de ajuda em muitas coisas. Eu gostaria de que essa menina fosse a

escrava dela.

Lobo Uivante olhou Cavalga o Vento com suspeita.

— Se Caminhando nas Chamas é desajeitada nos costumes do povo, como que

outra mulher branca irá ajudá-la? É melhor pegar outra esposa entre nosso povo.— E

acrescentou outra piada grosseira.

Cavalga o Vento apressou-se em fechar o negócio.

— Você sempre gostou dessa mula. Ela vai dar cria depois da neve. Uma cria de

Vento. E eu lhe darei estes outros dois ainda.Caminhando nas Chamas não me dá

descanso, sempre pedindo ajuda. Estou cansado de sua reclamação.— Ele odiava o

engano, mas estava cansado do jogo.

Lobo Uivante olhou os cavalos com avidez. Quatro potros a mais em seu bando

pobre aumentaria consideravelmente seu status na tribo. Pensou na menina branca e em

como ela havia lutado quando ele a carregou para a aldeia. Talvez ela fosse causar mais

problemas que compensações. Ele poderia com mais facilidade tomar outra mulher de

seu próprio povo e talvez isso fosse mais simples, afinal de contas. Que Cavalga o Vento

acrescentasse mais uma mulher branca em sua tenda. O povo poderia não gostar

daquilo. Talvez isto até diminuísse o conceito dele aos olhos do povo e fizesse Lobo

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Uivante parecer mais inteligente.

Lobo Uivante concordou e aceitou a oferta de Cavalga o Vento.

Cavalga o Vento rapidamente passou-lhe seus potros.

— Eu vou ajudá-lo a conduzi-los de volta ao seu bando— ofereceu. Lobo Uivante

aceitou e o outro voltou para casa em silêncio. Lobo Uivante estava rejubilante com sua

troca inteligente e Cavalga o Vento estava preocupado com o que aconteceria depois.

Quando eles entraram na aldeia, Cavalga o Vento trotou rapidamente para sua

tenda. Entrou e apenas disse:

— Ela é sua. Faça o que quiser com ela— Saiu rapidamente, montou de novo Vento

e estava quase saindo a meio galope quando Jesse pôs a mão no pescoço do cavalo e

perguntou: — Você não deseja encontrá-la?".

Cavalga o Vento balançou a cabeça.

— Fiz o que você desejava. Ela é sua. Eu não quero vê-la.

Jesse ficou pensando na falta de curiosidade, mas não pressionou. Ao contrário,

dirigiu-se à tenda de Flor do Campo, percebendo tarde demais que nem havia agradecido

a ajuda de seu marido.

Hepzibah sentou-se em expectativa quando Jesse voltou.

— Bem, minha querida— Jesse disse — parece que agora você é propriedade

minha".

— Sua?— perguntou Hepzibah.

— Sim, meu marido acertou de você ser minha escrava.— Ao ver o medo nos olhos

de Hepzibah, Jesse logo acrescentou: — Assim, posso fazer com você o que eu quiser,

agora. E o que me agrada é levá-la de volta para casa. Vamos aprontar-nos antes que

sua família siga você até aqui e cause maiores problemas".

Hepzibah estava em pé! "Ó, obrigada! Obrigada. Como posso lhe agradecer?! Você

seria muito bem-vinda, sabe... e poderia continuar nossa viagem conosco. Tenho certeza

de que Helder Smith daria permissão."

Jesse balançou a cabeça.

— Não, minha única família está aqui. Tenho um marido e um filho. Estou bem

contente aqui, minha querida. Agora, rápido, venha comigo! Qual é o seu nome?"

— Hepzibah. Hepzibah Miller.— Jesse repetiu o nome vagarosamente.

— Qual é o seu nome, senhora?— Hepzibah perguntou.— Se não se importar com

minha pergunta.

— Em inglês eu seria chamada de Caminhando nas Chamas— respondeu. Ficou

surpresa de ouvir-se a si mesma usando seu nome lakota. Acrescentou: — Antes de vir

para cá eu era conhecida como Jesse King".

Hepzibah tinha uma porção de perguntas, mas Jesse a silenciou levando-a para

fora, ao sol flamejante. Elas cruzaram a aldeia. Todos olhavam e riam bastante ao verem

Jesse guiando a nova escrava para sua própria tenda. Algumas crianças correram para

pegar no vestido comprido de Hepzibah. Sentindo o algodão pela primeira vez, eles o

definiram como fino e sem valor para a vida no campo. Quando elas entraram na tenda

dela, Jesse apresentou Velha e Duas Mães e ordenou a Hepzibah que ficasse com eles

até que ela retornasse.

— Você consegue montar sem sela, Hepzibah?— ela perguntou.

Page 69: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Nunca tentei."

— Então vou mostrar-lhe como, mas você deve tentar se mexer rápido, antes que

Lobo Uivante volte. Se ele descobrir que nós o trapaceamos com sua Nova Flor do

Campo, ele ficará muito bravo, e seremos obrigados a devolver você para ele." Com a

possibilidade de ficar sob o poder de Lobo Uivante novamente, a vontade de Hepzibah de

montar em pêlo dobrou. Quando Jesse voltou com Estrela Vermelha, Hepzibah trepou

com dificuldade e grudou no cavalo com toda sua força.

Jesse seguiu para as Colinas Azuis imediatamente, sem saber que, à distância, um

cavaleiro sozinho a seguia.

Enquanto andavam a cavalo, ao sol da manhã, Jesse respondia às perguntas de

Hepzibah da forma mais curta possível. Ela achou a efusão da menina um pouco

cansativa. Além do mais, ela não podia explicar em pouco tempo tudo o que havia

acontecido para transformá-la de uma colonizadora branca em esposa de Cavalga o

Vento. Descobriu que ela nem mesmo se importava em defender a si mesma ou aos

costumes de sua família adotada, diante desta jovem boba.

Não demorou muito para Jesse ver a poeira de um grande número de cavaleiros à

distância.

— Seu povo está vindo encontrá-la— disse para Hepzibah, apontando o horizonte.

Hepzibah levantou uma mão para fazer sombra aos olhos. — Desça e espere aqui.

Ficarei olhando para ter certeza de que eles a encontrarão. Adeus."

Hepzibah não desceu. Em vez disso, falou:

— Mas você precisa esperar para que todos possamos agradecer-lhe. Por favor,

espere".

Jesse balançou a cabeça:

— Saber que você está entre os seus já me deixa bem gratificada. E— acrescentou:

— Saber que agora talvez você obedeça a Elder Smith e não saia para colher flores do

campo quando deveria estar trabalhando".

Hepzibah corou. Obedientemente desceu de Estrela Vermelha. Jesse virou e foi-se a

meio galope para trás da primeira colina. Descendo do cavalo, arrastou-se um pouco,

subindo a colina, até poder espiar e ver o encontro que aconteceu uns poucos momentos

após ter deixado Hepzibah.

Um grupo de uns doze ou mais cavaleiros precipitou-se em direção à Hepzibah. Seu

vestido de chita azul balançava para cima e para baixo, enquanto acenava. Um homem

pesado pulou do cavalo e a envolveu num grande abraço de urso. O grupo inteiro olhou

na direção de Jesse enquanto Hepzibah gesticulava. Logo ela foi colocada na garupa do

homem que a abraçara e foram embora, perdendo-se de vista.

Jesse sorriu a si mesma e virou-se para ir embora. Cavalga o Vento estava parado

atrás dela, apeado do seu cavalo.

— Eu não lhe agradeci. O que você teve de prometer a Lobo Uivante para comprar

uma escrava à sua pobre mulher?"

Ele meneou os ombros:

— Só três potros...".

Jesse gritou:

— Três potros! Você é bom, Cavalga o Vento. Foi um preço alto a pagar par a ajudar

Page 70: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

uma menininha que você nem ao menos viu".

Ele baixou os olhos para fitá-la, contente:

— Eu não dei três potros para ajudar uma menina branca tola. Dei três potros para

ajudar Caminhando nas Chamas. Ela já foi?".

Jesse disse suavemente:

— Já foi".

Ele trouxe o assunto à tona novamente:

— Você algumas vezes, desejaria retornar ao seu povo?".

Jesse não hesitou em dizer:

— Vivi no meio dos brancos por vinte e um anos do calendário deles. Na contagem

de tempo deles, tenho estado entre os lakotas por mais quatro anos. No dia em que você

me tomou como esposa nós prometemos 'aonde quer que você for eu irei e onde quer

que você pousar eu pousarei. Seu povo será meu povo e seu Deus, o meu Deus'; esta

promessa foi eterna. Eu desejo estar com Cavalga o Vento, entre o povo dele, por todo o

tempo que Deus der".

Cavalga o Vento e Jesse andaram a pé juntos, de volta ao acampamento. Lobo

Uivante afagava seus novos potros e os viu entrar na aldeia, pensando na bobagem de

um homem pagar tanto por uma escrava e permitir que sua esposa levasse embora. Se

Lobo Uivante pensou que Cavalga o Vento entrara na sua tenda para bater na mulher por

sua atitude ingrata, nada foi dito para convencê-lo do contrário.

Capitulo 14

... seu marido... a louva... Muitas filhas obraram virtuosamente; mas tu a todas

és superior.

Provérbios 31:28-29

Nem um filho veio. Jesse aguardava esperançosa à cada mudança de lua. Mesmo

assim, nenhum filho.

Cavalga o Vento adorava contar histórias e se alegrava com as inúmeras perguntas

feitas pelo filho crescido. Ele compartilhava as lendas que tinham sido passadas por

gerações de lakotas, sabiamente introduzindo nelas Deus, e até Jesse e Velha ouviam,

fascinadas. A preferida era a história de um caçador que caiu de um penhasco e escapou

amarrando-se em duas águias grandes e voando. Os olhos de Duas Mães se

arregalavam quando Cavalga o Vento chegava ao momento dramático quando o caçador

livrava-se do penhasco apenas com o poder das águias de salvá-lo.

— Mas não foi o poder das águias que o salvou— Cavalga o Vento lembrava seu

filho — foi Deus quem deu força às águias".

Ele contava histórias para ajudar Duas Mães a superar seus medos infantis. —

Então, meu filho, por que você tem medo das tempestades? São apenas guerreiros do

trovão e do relâmpago. Quando você tiver medo, lembre-se de que Deus diz ao

relâmpago onde ele deve ir. Faz de conta que o barulho e a luz são de dois guerreiros

Page 71: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

chamados Trovão e Relâmpago. Eles cavalgam com beleza, nos potros ligeiros, e

carregam luz em suas mãos. Quando correm com o vento, fazem o vento correr, os

cascos dos potros batem nas nuvens. Quando eles jogam seus bastões iluminados/ ele

brilha forte no céu. Quando Deus diz 'Chega!', os guerreiros vão para a terra, a cavalo,

trazendo a chuva para molhar seus potros."

— Você já viu os potros, pai?"

— Uma vez, quando eu estava caçando nas Colinas Pretas, eu achei tê-los

vislumbrado. Mas antes que Vento e eu pudéssemos pegá-los, eles subiram de novo para

o céu, levando o Trovão e o Relâmpago para outro lugar."

Quando Duas Mães tinha seis anos, Jesse havia, há tempos, começado a falar sua

nova língua com fluência. Pensava nela mesma como Caminhando nas Chamas e ficava

sempre surpresa quando alguma coisa a lembrava de que tinha vivido a maior parte de

sua vida em outra cultura. As lembranças vinham com menos freqüência, à medida que

se adaptava aos costumes dos lakotas. Ela já podia começar um fogo rapidamente,

qualquer hora em que fosse necessário. Ela montava Estrela Vermelha sem nem pensar

nos antigos medos. Curtia couros e decorava roupas para sua família. Mas ela ansiava

pela oportunidade de começar um carregador de bebê, enfeitar mocassins pequenos, ter

as mulheres da aldeia lhe dando conselhos como faziam com cada grávida entre elas.

Duas Mães era rápido nas corridas a pé com os amigos, atirava pedras em cada

alvo disponível e fingia caçar com o arco e a flecha feitos por Cavalga o Vento. No inverno

ele escorregava nas encostas das colinas com um trenó feito de costelas de búfalo, —

Esquiava" no gelo com seus mocassins de pele e aproximava-se furtivamente de coelhos

na campina coberta de neve.

Cavalga o Vento contava histórias de bravuras.

— Nós voltamos vitoriosos, mas eu estava triste, pois tinha sido forçado a deixar

Vento no campo de batalha onde ele tinha caído com as flechas dos inimigos. Ele não

poderia se levantar novamente."

— Mas, pai, Vento está aqui conosco agora..."

— Ah, sim, mas eu o deixei no campo de batalha naquele dia, pois pensei que ele

estivesse morto. E assim, quando entrei na aldeia, na garupa de Águia Branca, fui para

minha tenda com o coração pesado. Tinha perdido meu melhor amigo. Eu sabia que as

orações seriam cantadas ao redor da fogueira, pelo potro perdido, mas ainda assim meu

coração estava triste.

— A festa durou dias e então as outras aldeias começaram a desmontar suas tendas

e a retornar a seus próprios lugares. Finalmente, todos haviam ido embora e minha aldeia

retornou à vida tranqüila. Estava tudo certo. A noite estava chegando e eu tinha acabado

de trabalhar com meu potro mais novo, quando vi a distância algo em que não podia

acreditar. Parecia que um fantasma-cavalo estava cruzando a campina em minha direção.

Lá estava, a distância, Vento. Andava devagar, com a cabeça curvada. Todas as pessoas

saíram das tendas para ver. Ele veio até mim, e vi uma ferida terrível na sua ilharga. Eu

não podia acreditar no que via e no entanto eu precisava acreditar mesmo, pois meu

cavalo fiel tinha voltado para mim."

— Lembre-se, meu filho, de que, quando você tem um amigo assim, é um presente

raro do Pai. Desde aquele dia, Vento tem sido meu melhor amigo." Cavalga o Vento deu

Page 72: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

uma pausa e olhou para Jesse do outro lado do fogo: — Até que, é claro, encontrei uma

certa mulher branca na campina".

Ele fitou Jesse, que respondeu brincando:

— Meu querido marido, que honra é saber que estou acima do seu cavalo, na

escala".

Duas Mães olhou de um lado para o outro. Ele tinha sempre ouvido a história de

como Caminhando nas Chamas tinha vindo viver entre os lakotas. Algumas vezes

caçoavam da pele branca de sua mãe. Mas nas tendas de alguns de seus amigos ele

ouvia gritos e palavras feias. Ele era grato pela afeição entre seu pai e sua mãe. Não se

importava por ela ser branca. Ela era uma boa mãe e uma boa esposa.

Como Duas Mães crescera, Cavalga o Vento tomou a incumbência de ensiná-lo. Ele

antigamente segurava seu filho pequeno na frente dele para andarem no Vento e fazia

arco e flechas pequenas para ele, de madeiras macias que cresciam ao lado do ribeiro.

Quando Duas Mães ficou mais velho, aprendeu a montar sozinho no seu próprio potro.

Então começou o trabalho sério de andar a cavalo. Ele caiu tantas vezes que Jesse se

desesperou por seu bem-estar, mas Cavalga o Vento recusou a compaixão e insistiu em

que ele sempre tentasse de novo. Jesse lembrou-se de sua própria experiência de

aprender a andar a cavalo e a reação pétrea de Cavalga o Vento às suas lágrimas. Ela

decidiu não interferir no treino de seu filho lakota.

Certa noite Duas Mães entrou com o rosto e braços cobertos de arranhões. Ele

admitiu, com relutância, que havia caído de seu potro novo e rolado para baixo, numa

ladeira íngreme, cheia de arbustos espinhosos. Jesse amorosamente mostrou-lhe

solidariedade, mas Duas Mães não a aceitou. Estava envergonhado por ter caído e Jesse

detectou um pouco de medo ante a perspectiva de montar seu potro arisco no dia

seguinte, de novo.

Cavalga o Vento examinou com cuidado as feridas do filho, tirou alguns espinhos,

então começou a pintar cada arranhão com tinta vermelha.

— Agora Duas Mães parece um guerreiro valente, voltando do inimigo derrotado.—

Apertou os ombros do menino. — Amanhã você montará o potro de novo e todos saberão

que você é o filho mais valente em nossa aldeia.

Duas Mães acordou cedo na manhã seguinte, tendo dormido pouco, pelo medo

antecipado. Mas ele controlou, com sucesso, as arremetidas obstinadas do potro por

liberdade e não caiu mais. Naquela noite, o fogo na tenda deles iluminou a face de um

menino muito cansado e três adultos muito orgulhosos.

— Você estava certo em insistir que ele tentasse de novo— Jesse cochichou quando

Cavalga o Vento esticou-se ao seu lado no escuro. Cavalga o Vento afundou seu rosto no

cabelo comprido de Jesse e inalou profundamente.

— Você colheu Sikpe-ta-wote hoje, minha esposa... a doçura dela ficou no seu

cabelo. Não vamos mais falar de nosso filho no cavalo— ele cochichou, — Não vamos

falar mais".

Quando Duas Mães tinha sete anos, o desejo de Jesse por um filho tinha-se tornado

um fardo que ela carregava cada dia. Contava as luas e, quando cada uma passava sem

sinal de gravidez, ela ficava mais melancólica. Velha preparava chás de gosto horrível

para ajudar e Flor do Campo aconselhava Jesse a procurar a ajuda do curandeiro. Jesse

Page 73: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

não conseguia seguir este último conselho. Levava sua ansiedade ao Senhor.

— Pai, tenho quase trinta anos — por favor, Pai, um filho para Cavalga o Vento."

Quando pareceu que a resposta Dele era não, ela achou que não iria agüentar.

Cavalga o Vento sentia sua ansiedade e interpretava-a mal. Ele esperava que ela

lhe falasse de sua dor, e, quando ela nada disse, ele achou que ela desejava deixar a

aldeia. A tensão entre eles cresceu até que uma noite, ele a procurou e ela fingiu estar

dormindo. Ele, se levantou abruptamente, prendeu seus instrumentos de caça e saiu da

tenda. Jesse esperou-o voltar, mas demorou três dias para ela ver Vento na tropa. Mesmo

assim, Cavalga o Vento não se juntou à família à beira do fogo.

Na terceira noite, Jesse caminhou para fora da aldeia, no crepúsculo. No Oeste o

horizonte tinha um brilho bem rosado que se transformava mais acima em um azul-pálido.

O azul escurecia para um tom violeta e lá, no céu, brilhava uma estrela cintilante. Era uma

noite tranqüila e não se via a lua.

Senhor, Jesse orou, disseste — Os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre

o seu galardão... Como flechas na mão do valente, assim são os filhos da mocidade...

Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava". Por que, Senhor? Por que o

Senhor não nos dá filhos? Eu tento não pedir muito. Tenho tentado estar contente. Mas,

Senhor, é muito pedir um filho? Ela ouviu um coiote uivar, o som dos potros mascando a

grama e batendo as patas no chão, mas não uma resposta. Ela esperou que um versículo

da Bíblia viesse à sua mente, para trazer-lhe conforto, mas nada lhe veio à mente a não

ser sua própria ansiedade. O vazio da campina e a vastidão do céu lhe traziam à mente a

lembrança de sua esterilidade. Ela chorou mansinho e sentou-se na sujeira, segurando a

cabeça inclinada em suas mãos.

Passos atrás dela no escuro a tiraram de sua aflição. Automaticamente buscou sua

faca, mas uma voz familiar quebrou o silêncio.

— As estrelas dizem que não é seguro para uma mulher ficar fora sozinha. — Ele

não se assentou ao seu lado, mas esperou que ela se levantasse.

Jesse endireitou as costas, limpou as lágrimas e ficou sentada.

— Eu precisava estar sozinha... longe de... Eu precisava orar."

— Então eu a deixarei com suas orações.— Algo havia mudado na voz tão familiar.

A solicitude gentil tinha sempre estado lá para ela. Onde estava agora, quando ela tanto

precisava?

Ele já tinha-se virado para ir. Ela sabia que ele não ficaria longe. Ele esperaria, fora

da vista, cuidando para que ela estivesse segura. Mas ela não o queria fora da vista.

— Não, eu acabei. Eu...— sua voz falhou. — Não há respostas para minhas

orações."

— Sempre há uma resposta. Mas a resposta nem sempre é a que queremos ouvir."

A verdade da réplica simples penetrou fundo. A resposta ao seu clamor por um filho

era não. Ela não podia entender. Ela não queria aceitar. Mas, durante anos esperando, só

agora a resposta tinha vindo. Ela sabia, mas não podia suportar. As lágrimas brotaram em

seus olhos. Ele não podia vê-las. A escuridão oferecia proteção e capacitava Cavalga o

Vento a expor seus medos.

— Eu tenho orado também. Tenho orado para que você aprenda a ser feliz entre os

lakotas. Mas você me fala da contagem de anos dos brancos. Você fala de todo o tempo

Page 74: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

que tem estado aqui. Eu não queria ouvir a resposta às minhas orações. A resposta é

não. Eu tenho orado para saber fazer o sorriso voltar aos seus lábios.— A voz foi ficando

tão baixa que ela mal ouvia as palavras. — Agora vejo que não consigo. Você precisa

dizer-me qual é o seu desejo. Duas Mães está grande agora. Você se deu bem no meio

do povo. Você não precisa ter medo de dizer que é hora de ir embora. Eu não sou como

os outros... Eu não vou fazer você ficar. — Ele limpou sua garganta e forçou as palavras a

saírem calmamente. — A linha de seu povo cruzando a campina nunca pára. Somos um

bando pequeno. Temos tentado ficar longe deles. Agora vou levá-la para eles."

Jesse não conseguia encontrar palavras para transpor a escuridão entre eles. Ele

tinha visto sua infelicidade e erroneamente culpara-se a si mesmo. Ela tinha sentido o

distanciamento dele para com ela e pensara que era por causa de sua esterilidade. As

palavras falharam, mas ela encontrara um caminho para clarear a escuridão. Ele tinha-se

virado para sair, mas ela estava lá, envolvendo com seus braços o corpo dele, deitando a

cabeça no ombro dele, com seu corpo balançando no esforço de segurar as lágrimas.

Os braços dele a seguraram, mas havia pouco calor neles, até que ela conseguiu as

palavras para dizer-lhe o quanto a falta de filhos a atormentava... como ela tinha falhado

com ele... quão sem valor ela se sentia. As palavras quebradas jorraram e o abismo foi

atravessado. Braços amorosos a envolveram. Ele curvou a cabeça até colocar sua face

áspera pelo vento próxima à dela e esperou-a esgotar as causas de sua tristeza.

Enquanto ela compartilhava sua tristeza, Cavalga o Vento ficava feliz. Ele

interrompeu a torrente de palavras.

— Isto não é nada, Caminhando nas Chamas. Eu fiquei com raiva porque você não

falava de sua tristeza. Eu pensei que você sentisse saudade dos brancos, que você não

gostasse de nós e que tivesse medo de dizer. Seria maravilhoso termos muitos filhos.

Não posso mentir. Mas se ter muitos filhos significa que eu deva ter outra mulher, então

eu escolheria não ter filhos e ficar com Caminhando nas Chamas em minha tenda. Seu

coração grita por filhos... meu coração grita só por você, meu maior amor."

A vastidão da campina e a imensidade do céu tinham-na lembrado sobre seu vazio,

mas ela não estava mais vazia. Deus havia enchido o vazio com Seu amor derramado

através de Cavalga o Vento. Nos dias que se seguiram, Deus começou a curar a ferida.

Jesse ainda orava por um filho, mas o desespero havia passado. Ela começou a

encontrar satisfação em Duas Mães, em seus amigos, em seu marido. Algo próximo do

contentamento cresceu dentro dela, e o sorriso de que Cavalga o Vento tinha tanta

saudade voltou ao rosto de Caminhando nas Chamas.

Capitulo 15

Os jovens se cansarão e se fatigarão, e os mancebos certamente cairão. Mas

os que esperam no Senhor renovarão as suas forças, subirão com asas como

águias: correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão.

Isaías 40: 30-31

Page 75: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Quando Duas Mães completou oito anos, Cavalga o Vento o presenteou com um

arco de chifre de alce. O menino tinha visto seu pai trabalhar nele, com olhos brilhantes,

jamais achando que ele mereceria um arco tão bom como esse. O chifre foi fervido até

ficar macio e então moldado, ficando as partes juntadas nas chanfraduras. O cordão

molhado foi entalhado perto da junta do arco. Ele tinha uma cola natural que, quando

seca, grudava no lugar. Ligados deste jeito, a junta ficava mais forte até que fosse

pregada com os pregos usados pelos brancos. Quando Cavalga o Vento terminou o arco,

ele amarrou-o com um tendão de búfalo fresco e presenteou seu filho, sem nenhuma

cerimônia.

Duas Mães quase não conseguia conter sua excitação. Ele gaguejou seus

agradecimentos e preparou-se para correr para fora e mostrar aos seus amigos. Mas

Cavalga o Vento o deteve.

— Vai chegar a hora de se orgulhar, quando você trouxer para casa seu primeiro

veado... vamos fazer flechas novas antes de caçar. Vamos ver quanto você cresceu

desde a última lua.

Cavalga o Vento mediu o braço do filho. A distância da junta do cotovelo até a ponta

do dedo mediano e então de volta ao pulso seria o comprimento das flechas de Duas

Mães. Juntos procuraram, penas que dessem certo, prendendo-as às flechas com tendão.

Duas Mães olhou desejoso as penas de peru que adornavam as flechas do pai, mas

penas de peru eram escassas. Ele deveria ficar contente com as ofertas dos patos e

galinhas do campo.

Bem de manhã, depois de o arco novo e as flechas estarem acabados, Cavalga o

Vento anunciou:

— Meu filho e eu estamos prontos para testar o novo arco". Com grande cerimônia,

eles se prepararam para a viagem da caçada, pois, com o arco como presente, Cavalga o

Vento tinha anunciado que ele começaria a treinar seu filho diligentemente, contando

seus segredos de forma que a tribo ganhasse outro ótimo caçador.

— Deus deu a cada animal um modo de vida, meu filho. Você precisa aprender a

observar estes modos e respeitá-los. Olhando os animais, você aprenderá muito, o que o

ajudará na caçada." Pararam perto de um rasto e Cavalga o Vento apontou as pegadas

de um veado. — Esta pegada é recente ou velha? O veado estava correndo ou andando?

Se o veado estava correndo, então precisamos procurar outras pegadas. Talvez haja um

inimigo por perto, que esteja caçando. Todas estas coisas nós precisamos aprender para

sermos bons caçadores."

Uma voz de animal familiar chamou a atenção deles. Havia duas águias voando alto

acima eles. O pai e o filho olharam por muitos minutos antes de Duas Mães dizer:

— Meu pai, o senhor tem as suas penas de águia... eu não poderia preparar-me e

caçar para ter as minhas?".

Cavalga o Vento ponderou o pedido antes de responder:

— Pegar uma águia é coisa séria e perigosa, meu filho. Quando eu capturei a águia

foi necessário três homens. Hoje há só dois— Ele tomava cuidado para não chamar Duas

Mães de criança.

O filho olhou, desejando os pássaros que voavam alto. Ele tentou um argumento:

Page 76: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Talvez pudéssemos seguir estas duas. Você podia ensinar-me o caminho da

águia. Então, quando chegar a hora, estarei preparado".

Era um argumento razoável e Cavalga o Vento concordou, balançando a cabeça.

— Pela forma como fazem o círculo, eu diria que elas têm um ninho e estão

tentando fazer o filhote voar com elas. Eu já vi algumas vezes a mãe empurrar o pequeno

fora do ninho, na beira do penhasco, para fazê-lo voar. Algumas vezes ele não sabe como

voar e bate as asas, mas vai de encontro à terra. A mãe pássaro voa abaixo do filhote,

pega-o e leva-o nas costas para o ninho, que é seguro."

Duas Mães ouvia, fascinado.

— E então, o que acontece, meu pai?"

— Novamente o filhote é empurrado para fora do penhasco. Desta vez ele voa

melhor, mas, se ainda não conseguir, a mãe pega-o mais e mais vezes, até ele aprender

e voar de volta para o ninho por si mesmo."

— Talvez pudéssemos encontrar o ninho das águias!— exclamou o menino. — Só

para ver se os filhotes estão cheios de penas.— Seu coração almejava voltar de sua

primeira caçada com a presa mais premiada de todas.

Cavalga o Vento sorriu com paciência.

— Nunca em nossa tribo um menino de sua idade conseguiu levar para casa penas

de águia em sua primeira caçada.— Ao ver a expressão de decepção no rosto do filho,

Cavalga o Vento tentou logo algum conforto: — Mas talvez Deus tenha guardado sua

melhor águia para Duas Mães e Cavalga o Vento".

A expressão de decepção mudou instantaneamente e o menino concordou

enfaticamente com a cabeça. Ele empinou o peito e falou, de repente:

— Sim, eu serei o primeiro... e as pessoas cantarão louvores a mim".

Cavalga o Vento sorriu e estudou a crina de Vento, pois ele estava totalmente

imóvel. Parecendo que tinha a intenção de arrumar cada cabelo da crina até caírem

perfeitamente, ele recitou, do livro: — Há três coisas que me maravilham e a quarta não a

conheço...".

— Você lembra qual é a primeira, meu filho?"

Duas Mães respondeu: — O caminho da águia no céu".

— É sempre bom, meu filho, lembrar-se de que Deus decide o caminho da águia e

os caminhos dos homens. Vamos pedir-lhe para nos ajudar a encontrar a sua águia... se

ele concordar. Nós não devemos nunca nos orgulhar daquilo que podemos fazer, pois ele

pode não concordar e então vamos parecer tolos."

Os ombros de Duas Mães encolheram um pouco e ele corou.

— Eu só queria dizer..."

— Você queria dizer que o seu coração está arrebentando de vontade de caçar

aquelas águias. Eu entendo. Não há erro no desejo." Cavalga o Vento pegou as rédeas

de seu potro e o mandou ir avante, enquanto acabava seu pensamento: — Lembre-se

somente de que nós precisamos sempre fazer com que nossos desejos sejam um com os

do Pai celeste".

Os dois subiram firmemente, com seus potros andando no meio das pedras, seus

olhos sempre atentos às águias. Finalmente, depois do que pareceram horas, alcançaram

o topo do penhasco onde Cavalga o Vento desceu do cavalo e avançou para a beira,

Page 77: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

olhando com atenção. Gesticulou para Duas Mães segui-lo.

O ninho das águias estava a cerca de vinte pés abaixo deles. Dentro dele, lado a

lado, estavam duas aguiazinhas cheias de penas. A tentação era muito grande. Em pouco

tempo ele havia decidido o que fazer.

— Nós mataremos um veado e retornaremos aqui. Podemos cortar a pele em tiras

para fazer uma corda. Eu abaixarei você até a saliência e vamos capturar uma das

aguiazinhas."

— Mas pai, a tenda, o sacrifício ao Grande Mistério..."

— Durante toda a minha vida servi ao Grande Mistério, meu filho. Muito tempo atrás,

quando minha perna foi quebrada e consertada pelo homem de Deus, eu aprendi que o

Grande Mistério tinha um nome, que ele se importava com todas as pessoas e que ele

veio à terra para mostrar seu cuidado. Desde que Caminhando nas Chamas veio para

nossa tenda, temos ouvido as palavras de Deus. Ele não requer sacrifício antes de dar

algo para seus filhos, e ele ficará contente se nós lhe agradecermos por sua ajuda

quando você ganhar o seu prêmio. Nós vamos orar por sua ajuda. Eu não acho que a

cerimônia seja importante."

Duas Mães aceitou a resposta num silêncio respeitoso. Sua mente ainda estava

cheia de dúvidas. Não parecia ser sábio mudar assim tão rápido os costumes do povo.

Não muito tempo depois eles acharam pegadas de um alce e Cavalga o Vento

voltou ao papel de professor, enquanto ele e Duas Mães seguiam as pegadas. No lado

Oeste, nuvens estavam-se formando no céu, e a tarde já era avançada antes de eles

conseguirem abater um grande gamo. Trabalharam rápido para tirar a pele do animal e

empilhar a carne no potro de Duas Mães. Cavalga o Vento arrancou dois dentes da boca

do gamo e enfiou-os na bolsa do seu lado. Ele estava guardando dentes de cervos fazia

meses e estes dois completariam exatamente o número de que precisava.

O vento soprava forte enquanto se dirigiam à beira do penhasco e nuvens escuras

eram impelidas pelo vento, no céu. Não se viam as águias, mas Cavalga o Vento e Duas

Mães olharam com atenção e viram que as duas aguiazinhas tinham-se aconchegado no

ninho, preparando-se para a tempestade. Enquanto olhavam, viram uma águia adulta

elevando-se sobre suas cabeças e pousando na beira do ninho. Abrindo suas asas sobre

os filhotes, a fêmea arrumou-se no ninho para esperar a tempestade.

O coração de Duas Mães apertou-se. Com a vinda da tempestade, eles teriam

pouco tempo para capturar sua presa. Cavalga o Vento, no entanto, estava determinado

em relação ao sucesso do filho. Rapidamente rasgou a pele do alce em tiras, amarrando-

as juntas para formar um cordão comprido o suficiente para alcançar a saliência abaixo.

— Você tem de se mexer muito devagar. Fale com as águias como um amigo. Diga-

lhes o que está fazendo. Não vá fazer tolices e assustá-las. Se você fizer isto direito, elas

vão olhar você e permitir que se junte a elas na saliência. Então você precisa sentar-se —

devagar — e esperar Elas vão olhar você cuidadosamente. Ainda assim, precisa esperar.

Se você não se mexer em direção aos filhotes, elas vão ficar quietas. A tempestade virá e

ainda é preciso esperar. Acho que não vai demorar tanto. Quando passar, elas irão caçar

ou vão empurrar uma das aguiazinhas fora do ninho para ensinarem-na a voar. Em

qualquer dos casos você terá sua chance de capturar uma delas. Alcance-a devagar,

assim..." Cavalga o Vento demonstrou fazendo os mesmos movimentos de alguns anos

Page 78: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

atrás, apertando uma perna imaginária bem acima da garra, então amarrando sua corda

na perna e escorregando a mão devagar até a linha das penas, na amarra. — Ela não vai

lutar. Mas então você precisa elevar a outra mão e quebrar o seu pescoço. Quando tiver

feito isso, suba devagar até mim. Se as mais velhas retornarem, eu jogarei pedras para

mantê-las longe enquanto você escapa.

Parecia simples, mas, enquanto conversavam, a tempestade se aproximava.

Trovões rolavam nas nuvens e relâmpagos brilhavam. No entanto, não havia pingado

nenhuma gota das nuvens.

— Talvez ela só passe sobre nós— Cavalga o Vento falou baixo, com esperança. —

Se não, você terá de esperar lá embaixo na saliência, durante a tempestade. Tem certeza

de quer fazer isto hoje, meu filho?"

Duas Mães arrepiou-se com a idéia de não ser corajoso o suficiente para conseguir

suas penas de águia. Sua resposta nem foi dada, pois ele jogou o cordão de pele de alce

sobre a borda do penhasco e preparou-se para escorregar para baixo. Cavalga o Vento

aprovou com a cabeça, mas deteve o menino para lembrá-lo:

— Isto que você está fazendo é algo perigoso, meu filho. Você é corajoso e isso é

bom. Mas não seja tolo. Em poucos anos isto pode ser feito... quando você ficar mais

forte e quando não houver tempestade. Ninguém precisa sequer saber que nós pensamos

nisto hoje".

Os olhos negros de Duas Mães brilharam quando aceitou o desafio.

— Todos saberão, meu pai, pois estaremos voltando para a aldeia com nossos

potros enfeitados com penas de águias!"

Dito isso, ele arremessou-se sobre a borda do penhasco e começou a descida.

Cavalga o Vento estava certo sobre o comportamento das águias. Elas abaixaram as

cabeças e olharam com cuidado, mas não mostraram sinal de alarme. Duas Mães moveu-

se devagar, mas deliberadamente — até que o cordão de pele nova se rompeu e ele caiu

com um ruído ao lado do ninho.

Cavalga o Vento olhou, com o coração batendo forte. A tempestade se aproximava

rapidamente e as águias atacaram com violência para proteger seus filhotes do intruso.

Garras afiadas arrancavam a pele do menino, asas poderosas batiam no ar e os bicos

começaram a trabalhar furiosamente, com as duas águias adultas rasgando Duas Mães

com fúria.

Cavalga o Vento agiu imediatamente. Ele mesmo foi descendo o mais rápido

possível pelo resto que sobrou do cordão e caiu ao lado do filho. Duas Mães tinha feito o

melhor que podia, mas duas águias adultas raivosas era demais. Cortes profundos

sangravam no pescoço dele. Uma garra tinha rasgado sua face esquerda.

Cavalga o Vento ficou sobre o seu filho abaixado. A tempestade começou,

derramando água e soprando fortes rajadas de vento. Relâmpagos iluminavam o lado do

rochedo, mas Cavalga o Vento não percebia nada, enquanto atacava as águias com tudo

o que podia. Num golpe afundou sua faca no peito do pássaro macho, mas a fêmea

parecia estar em todo lugar na mesma hora, atacando e bicando, indiferente à

tempestade. As aguiazinhas juntaram-se também na luta, mas menos ágeis em sua

própria defesa.

A fêmea acabou a batalha. Um corte grande no pescoço do guerreiro feroz. Preso

Page 79: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

nas garras dela, Cavalga o Vento viu o peito dela manchado com seu próprio sangue e

sentiu que estava gravemente ferido. Agarrou uma das pernas dela com sua mão

esquerda, tentando livrar-se com sua faca.

O temporal passou e Cavalga o Vento cambaleou para trás, sem mais condições de

proteger seu filho. O fluxo de seu próprio sangue lhe dizia e ele percebeu que estava

perdendo a batalha. Então, teve consciência de um grito forte — era seu mesmo? — e a

dor terrível em seu pescoço pareceu acabar. Ele pôs a mão novamente onde as garras da

águia tinham estado prendendo-o, mas só havia ar. Quando caiu de joelhos, percebeu

que Duas Mães tinha desferido um golpe mortal e agora estava batalhando contra as

aguiazinhas. A seus pés estavam os corpos das aves adultas. Fora uma luta valente,

mas, enquanto caía contra a parede do penhasco, Cavalga o Vento percebeu que fora em

vão. Tinha espirrado sangue demais.

O céu de repente ficou de um azul-brilhante. A tempestade tinha deixado um grande

arco-íris. O arco ia de um lado da planície ao outro e tudo cintilava. No acampamento,

Jesse olhou o arco-íris e sorriu, imaginando onde seus dois homens tinham-se escondido

da tempestade. Ela atiçou o fogo e começou os preparativos para o jantar, pensando se

eles retornariam naquela noite/ esperando que Duas Mães em sua primeira caçada não

ficasse desapontado. Por favor, Pai, se for do seu agrado, faça-o retornar com carne para

a família. Isto o deixaria tão feliz!

Mas no mesmo instante em que Caminhando nas Chamas estava orando por seu

filho, ele estava lutando por sua vida jovem. As aguiazinhas voltaram-se para ele com

toda a fúria e, enquanto batiam nele com suas asas, Duas Mães percebeu que deveria

estar bem perto o dia em que elas deixariam o ninho. Uma olhadela para trás mostrou-lhe

que estava numa situação desesperado!a. Acima dele estavam Vento e Dia

Tempestuoso, o último carregado com a carne. Eles tinham sido amarrados a uma árvore.

Sem dúvida alguma eles iriam soltar-se e retornar à aldeia, mas não antes que fosse

tarde demais para Cavalga o Vento. A mancha escura no chão estava aumentando a

cada momento.

Duas Mães fez uma coisa tola. Isto poderia tê-lo levado à morte. Miraculosamente,

não levou.Se o Senhor está verdadeiramente aí, Deus de minha mãe. ..se é

verdadeiramente o criador de todas as coisas... então ajude-me agora. Meu pai está

caído, morrendo. Ajude-me a descer deste lugar ou deixe-me morrer agora!

De alguma forma ele conseguiu agarrar as pernas de cada pássaro enfurecido e

cambaleou até a beira do penhasco. Enquanto iam para a borda, Duas Mães gritou alto:

— Deus de minha mãe, ajude-me!". Parecia que seu coração ia parar de bater.

Apertando os olhos fechados, segurou a respiração e esperou mergulhar na sua morte.

Uma grande golfada de vento levantou-se da terra. As jovens águias abriram as asas e

bateram no ar, tentando escapar. Indo para baixo, para baixo, rodopiando, batendo as

asas e gritando para que aquilo que as segurava as deixassem ir... ele não deixaria.

Abaixo, abaixo, lá foram eles dentro de um poço fundo de água, formado por uma

nascente na base do penhasco. Os pássaros não o tinham levantado como fizeram as

águias da lenda que tinha ouvido tantas vezes, mas elas tinham amortecido a sua queda.

Quando afundou na água, Duas Mães sentiu os músculos das pernas dos dois

pássaros afrouxarem. Ele os soltou e subiu à tona, buscando ar. Os dois pássaros

Page 80: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

afogados flutuavam na superfície da água. Duas Mães nadou para a borda e se arrastou

na grama. Ele olhou para baixo, nem acreditando nos rasgos profundos em seus braços.

Quando tocou o rosto, seus dedos ficaram cobertos de sangue.

Mas Duas Mães não pensava em si naquela hora. Ele precisava buscar socorro para

seu pai, e rápido. A mancha escura na terra, ao redor do corpo de seu pai, inconsciente...

estaria crescendo ainda?

Duas Mães vacilou ao ficar em pé e começou a corrida de sua vida. Quão longe

viemos? Ele sabia em que direção correr, mas não tinha a menor idéia de quanto haviam

andado,enquanto olhavam as águias bem de manhã. Subir o penhasco de novo para

pegar os potros estava fora de cogitação.Eu sou veloz. Deus de minha mãe,veio o pedido,

faça-me mais rápido.

Não houve milagre na resposta à sua oração, mas ainda assim, uma resposta veio.

Forte devido às horas incontáveis de corrida com seus amigos, seus mocassins batiam

num ritmo forte enquanto corria para a aldeia. Ele olhava com cuidado se não havia

cactos e pulava os que encontrava no caminho. Sua respiração tornava-se difícil e suas

pernas doíam. Ainda assim, ele corria. O sangue em seu rosto secou e formou uma

crosta. Lágrimas de cansaço vieram aos seus olhos. Ainda assim ele corria. Lá atrás,

naquela saliência estava seu pai. A imagem do corpo largado, o ninho de águias vazio e

os pássaros mortos o assombrava. E ele continuou a correr.

Quanto tempo ele correu não soube, mas, quando pensou que seu coração e suas

pernas iriam desequilibrar-se, ele entrou na aldeia, gritando por socorro, apontando o

caminho e, finalmente, caindo em uma pilha logo fora da tenda do Falcão Curandeiro.

Jesse ouviu a barulheira e saiu. Viu homens montando nos potros e saindo do

acampamento.

Então Duas Mães foi carregado a ela. Um talho profundo estava aberto ao longo do

maxilar e sangrava muito. As marcas do ataque de algum animal estavam por todo o

corpo. Seu coração disparou. Onde estaria Cavalga o Vento? Ele jamais teria permitido

isso se estivesse vivo. Não, não posso pensar nisso. Se pensar entrarei em pânico. Não

posso pensar nisso. Querido Deus, não me deixe pensar nisso. Preciso ajudar Duas

Mães. Ó Deus, faça-os encontrarem-no... traga-o de volta para mim.

— Chame o Falcão Curandeiro— ela berrou para as mulheres que se amontoavam

ao redor. Ela segurou a aba da porta aberta para que os homens entrassem carregando

seu filho inconsciente. Deitaram-no perto do fogo. Velha corria pela tenda carregando

água para lavar as feridas, ajuntando suas ervas medicinais.

Jesse ajoelhou, sem saber o que fazer, ao lado do filho inconsciente. Velha tocou

em seu braço.

— Lave as feridas, minha filha.— Jesse se mexeu para obedecer. Ela estava

entorpecida pelo medo, mas obedeceu. Os olhos de Duas Mães se abriram. Pelo buraco

acima ele podia ver que ainda havia luz do dia. Devagar, ele mexeu a cabeça para olhai

em volta. Casa. Estou em casa. Mãos carinhosas estavam lavando suas feridas e ele viu

o cabelo vermelho de sua mãe quando ela se dobrou para cuidar de suas feridas. Velha

segurou uma compressa em seu rosto, cacarejando com compaixão, cada vez que tirava

a compressa para averiguar a ferida. — Teremos de dar pontos nisto, para fechar— falou

para si mesma. — E haverá uma cicatriz."

Page 81: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Duas Mães viu lágrimas rolando pelo rosto de sua mãe. Ela trabalhava rápido, mas

as mãos tremiam e ela sempre olhava para a porta.

Duas Mães perguntou melancolicamente:

— Meu pai?".

Ela se assustou com a voz dele. Sua voz tremeu.

— Eles foram atrás dele.— Foi tudo o que ela pôde dizer.

Ele se esforçou para explicar:

— As águias... a tempestade...".

Velha o interrompeu:

— Silêncio! Este corte em seu rosto precisa ser fechado antes que você fale

demais— Ela já tinha nas mãos o tendão mais fino e a agulha preparados. Enquanto a

última palavra era falada, ela já dava o primeiro ponto. Duas Mães encolheu-se, mas

pressionou os dois lábios juntos e não gritou. No formato de sua boca, Jesse viu Cavalga

o Vento. Ela acabou de limpar as feridas de seu filho pequeno e assentou-se para ver

Velha costurando com perícia o corte fundo no rosto do filho.

— Ele vai ficar bom?— perguntou ansiosamente.

Velha assentiu.

— Vamos aplicar um ungüento curativo. Eu vou mostrar-lhe como fazer isso. Ele vai

ter uma cicatriz, mas vamos manter o corte sempre limpo e ele ficará bom. — Ela também

olhou para a porta.

Não muito depois chegaram, carregando Cavalga o Vento. As pernas de Jesse não

se mexeram para ir até ele. Ficou sentada perto de Duas Mães, petrificada de terror.

Cavalga o Vento estava pálido, a cabeça caída para trás, mostrando um rasgo horrível ao

lado do pescoço. Os músculos estavam visíveis e a ferida ainda sangrava. Os valentes o

deitaram à frente dela e saíram correndo. Falcão Curandeiro pressionou com cuidado,

fechando o corte do pescoço, dobrando-se para ouvir o coração, que parecia bater. Havia

outros cortes horríveis abertos e parecia a Jesse que ele se havia banhado no próprio

sangue.

Duas Mães levantou-se num cotovelo para olhar. Ele viu a face branca de sua mãe.

Nunca antes ele via tal expressão de desespero. O ar na tenda estava pesado. O

barulhinho dos sinos da roupa do Falcão Curandeiro enchia o ar. Velha acabou seu

serviço com Duas Mães e foi para Cavalga o Vento.

— Mais água!— ela gritou para Flor do Campo, que olhava da abertura da tenda.

Jesse pulou ao som da ordem, ficou em pé, agarrou o odre de pele no mastro

principal e saiu para o ribeiro. Ao correr a curta distância, ela teve consciência de um peso

grande que pressionava suas costelas. Ela não conseguia respirar. Sua mente estava

tomada com a visão do filho e marido deitados na tenda.

Com o odre cheio de água, ela correu de volta à tenda, sem prestar atenção às

mulheres que se juntavam no lado de fora. Conforme passava por elas, era encorajada:

— Ele é forte, Caminhando nas Chamas..."

— Ele é um grande caçador."

— Velha é uma boa enfermeira..."

— Vai ficar bom..."

— Nós vamos celebrar a caçada deles..."

Page 82: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jesse não ouviu o que elas disseram e abaixou-se rapidamente, entrando na tenda.

Mas a visão à sua frente acalmou seus nervos. Duas Mães, sentado ao lado do fogo,

examinava suas feridas quase com orgulho. E Cavalga o Vento estava deitado, imóvel,

mas respirando. O curandeiro havia parado o sangramento e Velha estava pronta para

limpar as feridas com uma pele macia de veado.

Ao ver o peito dele subindo e descendo, Jesse saiu do desespero, ajoelhou-se ao

lado do homem inconsciente e começou a limpar seu corpo com suavidade. Parecia que

não havia nenhum lugar que não tivesse sido machucado pelos animais.

— O que é que causou isto a vocês?— ela finalmente perguntou.

"Águias... estávamos caçando águias— Duas Mães falou baixinho.

— Você é novo demais para caçar águias!— ela falou áspera e bruscamente.

Duas Mães ficou quieto. Com respeito, respondeu:

— Meu pai não achou". Justamente quando ele começava a tentar explicar, um

grupo de valentes entrou na tenda e, em silêncio, colocou as carcaças de quatro águias

perto do fogo. Lançaram olhares de admiração a Duas Mães e Cavalga o Vento, sem

olhar para Jesse, e saíram sem dizer por que seus olhos brilhavam.

— Eu não quero ouvir isto!— ela quase gritou. — Eu quero...— ela trabalhava com

firmeza enquanto começava a chorar baixinho. Toda a raiva tinha saído de sua voz

quando ela falou de novo: — Eu só quero que vocês fiquem bem. E quero que seu pai...

viva".

Cavalga o Vento tremeu, empurrando-a com seu braço. Falcão Curandeiro falou:

— Ele ainda luta com as águias... — E abaixando-se sobre Cavalga o Vento, disse:

— Pare de lutar, meu irmão. Você venceu. Não há mais águias. Duas Mães está salvo.

Você voltou para o povo".

O braço de Cavalga o Vento caiu para o lado. Ele respirou fundo, mas não abriu os

olhos. Os cortes estavam limpos e costurados e, então, curativos foram colocados. O

curandeiro cantou uma música de cura antes de sair da tenda. Duas Mães esforçou-se

para ficar em pé.

Cruzando a tenda, ele agarrou dois pássaros pelas pernas antes de Jesse falar

qualquer coisa.

— Minha mãe, eu só quero as penas. Eu preciso acabar o que meu pai e eu

começamos.— Jesse permaneceu com Cavalga o Vento. Os amigos de Duas Mães — na

verdade, todos os homens da aldeia — olhavam com grande admiração o menino

arrancando as penas de que ele precisaria dos corpos dos bichos grandes, pintando as

cabeças deles de vermelho, colocando um pedaço de carne nos bicos e deixando os

corpos numa pele de gamo branca e bonita, do lado de fora da tenda.

"Grande Mistério, Deus de minha mãe, seja qual for o seu nome — eu humildemente

agradeço-lhe pelo presente, essas águias. Agora eu as devolvo ao Senhor.— Virou-se

para ir, mas então mais uma vez fitou o penhasco e acrescentou: — E eu peço que possa

estar no seu plano fazer meu pai ficar bem". Com isso, ele retornou para a tenda onde

Cavalga o Vento ainda estava sem se mexer.

Duas Mães estava exausto e deitou-se ao lado do pai em sua própria pele de búfalo,

até que o sol estivesse no ponto mais alto. Seu pai não mostrava nenhum sinal de

acordar. Caminhando nas Chamas colocou novos curativos, molhou os lábios dele com

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água fresca e cantarolou baixinho. Ela saía do lado dele só para preparar as refeições.

Vendo o cuidado ansioso dela, Duas Mães era tentado a ter ciúmes, mas justamente

quando ele havia decidido que ela o culpava por tudo, ela pareceu despertar.

— Meu filho, tenho estado orando por sabedoria— disse ela. — Eu não entendo por

que a águia era tão importante. Você é jovem e tem muitos anos para valorizar-se diante

do seu povo. Mas estou orgulhosa do que você fez. Você salvou a vida de seu pai. E—

ela olhou com carinho para ele e sorriu, — Sou grata a Deus por você estar bem. Perder

qualquer um de vocês me causaria grande dor — acho que meu coração não agüentaria".

Uma voz familiar falou baixo no silêncio entre mãe e filho:

— Meu filho tem suas penas de águia?".

Duas Mães olhou depressa no rosto do pai. Um meio sorriso familiar levantava-lhe

os cantos da boca.

— Ele tem, meu pai."

— Então precisamos de uma celebração.— Jesse protestou, mas ele a silenciou

colocando uma mão no seu joelho. — Mas a celebração vai esperar uns dias para que

Cavalga o Vento possa participar. Precisamos chamar o Falcão Curandeiro para espalhar

as novidades. E eu acho que devo dar um cavalo por cada águia.

Cansado pelo esforço da fala, Cavalga o Vento dormiu de novo, mas, ao cochilar,

tinha consciência de que sua mão fora levantada para encontrar um rosto macio, molhado

por lágrimas de felicidade.

Duas Mães e Cavalga o Vento descansaram por muitos dias. Quando Cavalga o

Vento foi capaz de sentar-se e comer, a celebração foi anunciada e os preparativos

começaram. Jesse terminou um vestido novo e gastou muitas horas com Velha e as

mulheres da aldeia, tomando conhecimento do que seria preciso para preparar uma

grande festa.

No dia da celebração, Cavalga o Vento andou com as pernas fracas para fora da

sua tenda e subiu com o corpo duro no lombo de Vento para andar até sua manada e

selecionai os potros que seriam dados.

Voltando desta tarefa e de uma visita a uma tenda próxima, seus olhos brilharam

com orgulho quando ofereceu uma bolsinha de couro cru, cheia de dentes de alces, para

Jesse. Só foram guardados dois dentes de cada alce, e ser capaz de decorar um vestido

inteiro com dentes a colocaria em posição de ser invejada na tribo.

— Por quanto tempo você guardou estes dentes?— ela perguntou.

— Para um caçador bom como eu... isto não é nada— veio a resposta orgulhosa. —

Eu só tive de pegá-los de volta com Urso Corredor. Ele estava guardando para mim."

Jesse trabalhou a tarde toda bordando os dentes de alce em seu vestido novo.

Tentou evitar o orgulho, mas, quando ela e Cavalga o Vento foram para a celebração, não

podia conter a felicidade com os olhares de admiração que vinham em sua direção.

Cavalga o Vento não saberia dizer o que o deixava mais orgulhoso — se a mulher, que

ele achava estar linda, ou o filho corajoso, que havia recebido o nome de Águia que Voa

Alto.

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Capítulo 16

... o Senhor o deu e o Senhor o tomou...

Jô 1:21

A aventura de Cavalga o Vento e Águia que Voa Alto deu este último um lugar no

grupo dos caçadores. Seus amigos o admiravam e tentavam não ficar com ciúmes.

Cavalga o Vento sempre lembrava seu filho de usar o seu nome com dignidade e

humildade.

— Nunca se esqueça de que Deus mandou as águias. Foi ele que salvou você.

Você gritou para ele e ele ouviu. É pela sua força que nós ainda estamos vivos, não pela

nossa.

Os meses se passaram e as rotinas da vida continuaram no círculo familiar. Os

lakotas preocupavam-se com as caravanas de carroções, sem fim, que cruzavam sua

terras. Mais a Oeste, bandos de pessoas uniam-se para lutar contra os homens brancos e

terem uma grande vitória.

Jesse estava pouco impressionada pelos casos políticos momentâneos envolvendo

a terra onde ela vivia. O bando de Cavalga o Vento era inclinado a evitar o conflito e

tentava ficar mais ao Norte, longe das estradas usadas pelas caravanas. Jesse estava

grata, contente por cuidar de sua família.

No entanto, a dependência deles à natureza forçava o bando a se mover mais para

o Sul. Uma seca no ano anterior havia arruinado o interior e o medo da fome pairava forte

na mente de cada um. A escassez de búfalos forçou-os a ir mais para o Sul.

Cavalga o Vento e Águia que Voa Alto tinham id o num grupo de caçada por muitos

dias quando, finalmente, veio a mensagem de que uma pequena manada havia sido

encontrada e o acampamento podia mudar. A aldeia ficou vibrando e, enquanto as

mulheres começavam a pôr abaixo o acampamento, Jesse olhava o horizonte, esperando

o retorno do grupo de caçadores. Ela esperava que Cavalga o Vento e Águia que Voa

Alto estivessem entre os primeiros caçadores a voltar, e queria empacotar logo as coisas

e estar a caminho para encontrá-los.

Ela sabia que podia colocar os mastros no potro, sem ajuda, mas colocar abaixo a

grande tenda era uma preocupação. A idade avançada de Velha começava a afetar sua

agilidade e, devido ao seu tamanho, a tenda ficava difícil de ser manejada por uma só

mulher. Isto era considerado — Trabalho de mulher— mas Cavalga o Vento não se

importava. Ele estava sempre por perto para ajudar. Agora ela estava sozinha, pois as

outras estavam ocupadas empacotando suas coisas.

Jesse colocou os mastros compridos no suporte no lombo de Estrela Vermelha.

Estava tudo pronto.

— Venha, Velha, assente-se e eu vou fazer o resto— ela mandou. Velha, ofegante

pelo trabalho de empacotar, sentou-se agradecida.

A linha da marcha já estava formada e Jesse percebeu, com desânimo, que todas as

outras tendas já estavam desmontadas. Ela se movia rápido para empilhar os pacotes na

ordem certa, no suporte puxado pelo potro, formando um ninho confortável onde Velha

poderia ir.

Page 85: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Foi Flor do Campo quem trouxe a notícia do acidente. Ela veio correndo, cruzando o

que tinha sido o centro do acampamento, suas tranças voando para trás. Jesse sentiu um

alívio, achando que ela estava vindo para ajudar com a tenda. Então, alguma coisa na

expressão de Flor do Campo fez a saudação morrer em sua garganta. Flor do Campo

parou, mexendo na poeira com o pé, deixando uma camada clara no bordado dos

mocassins.

— Cavalga o Vento...— ela começou, então parou, sem saber como continuar.

O coração de Jesse bateu fortemente. Os barulhos do acampamento sumiram e ela

ficou parada olhando os mocassins de Flor do Campo, percebendo que faltava uma

conta. Inconscientemente ela pôs as mãos nas suas tranças grossas, as tranças que

Cavalga o Vento tinha enfeitado para ela naquela manhã. Jesse então percebeu Fala

Muito sentado, mudo, em seu potro, atrás de Flor do Campo.

— Eu levarei você até ele— foi tudo o que disse.

Jesse concordou e virou-se para montar Estrela Vermelha. Mas Velha já estava

sentada no suporte preso à mula. Jesse hesitou. Fala Muito fez um gesto para ela e

puxou-a para sua garupa.

Flor do Campo lhe disse:

— Você vai, Caminhando nas Chamas. Eu cuido da tenda e de Velha. Ela estará

comigo quando você voltar".

Jesse balançou a cabeça, apertando fortemente a blusa de Fala Muito. Ela

descobriu-se orando desespera da mente. Nenhum versículo veio à mente para confortá-

la, mas uma frase se repetia na cadência do trote do potro: Não temas... Não temas...

Não temas... Quando isto acontecera? Jesse lembrava-se de outro cavalo há muito tempo

e do mesmo ritmo das palavras, o cheiro da pintura de guerra, o balanço de um corpo

desconhecido que ela precisava apertar para não cair.

O potro deu uma empinada. Jesse escorregou para o chão e viu o Vento, com a

cabeça torcida para trás e empalado nos chifres do búfalo imenso caído sobre ele. A

massa escura, enorme, cobria completamente o corpo do potro, outrora ligeiro. Somente

a cabeça nobre e uns poucos fios da cauda podiam ser vistos.

Fala Muito guiou-a por esta cena grotesca, e ela viu que o grupo de caçadores tinha

levantado um abrigo provisório para proteger Cavalga o Vento do sol. Lanças de guerra

seguravam um lençol esfarrapado. Uma ponta tinha-se soltado e balançava com a brisa.

Um grito de desgosto estancou, quando Jesse viu que o peito de Cavalga o Vento

subia e descia. Mas então um espasmo de tosse e um grito de dor horrível acabaram com

sua alegria. O sangue escorria pelo canto de sua boca e sua mão esquerda arranhava o

ar, como se ele quisesse empurrar para o lado as ondas de dor. Seu braço direito estava

caído, imóvel e, quando Jesse ajoelhou-se ao seu lado, viu o lado direito do maxilar

esmagado.

Jesse olhou para cima, para Fala Muito. Triste, ele explicou:

— Ele estava embaixo do búfalo. Nós o puxamos para fora..., mas... — Ele encolheu

os ombros e olhou para o lado.

— Caminhando nas Chamas— uma voz falou, mas não era a voz tão querida. Era

um cochicho do fundo do peito, um balbucio entre dentes travados, acabando como que

cortado, não por escolha mas por uma faca que cortava o som na garganta.

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— Estou aqui, estou aqui, meu grande amor.— Jesse ouviu a salmódia e percebeu

que ela devia ter dito isso, mesmo que não se lembrasse de qualquer esforço para falar.

Perdida na cena à sua frente, parecia mais que ela estava assistindo ao que acontecia do

que vivendo a situação.

Cavalga o Vento abriu seus olhos e a fitou. Uma luz brilhou dentro deles, mas o

rosto machucado ainda estava caído. Seu braço esquerdo levantou e tocou sua trança

vermelha, que emoldurava o contorno de sua face, caiu em seu colo e ficou parado.

Jesse apertou a mão, buscando em vão o autocontrole. Lágrimas rolaram de seus

olhos, pingando na mão dele. Chorando livremente, ela a levantou para seus lábios e a

segurou lá, sentindo o sal de suas próprias lágrimas enquanto beijava a palma aberta.

Sentindo o calor da respiração dela em sua mão, Cavalga o Vento mais uma vez fez

um esforço para falar, mas, antes que pudesse produzir qualquer som, ele inspirou fundo

e começou a ofegar, buscando ar. Ele fez força para levantar, mas mal levantou a cabeça

do chão.

Jesse colocou o braço sob a cabeça dele e a puxou para ela. O corpo dela começou

a balançar, para a frente e para trás, e Cavalga o Vento continuava imóvel ainda. Seu

peito cresceu, as narinas se abriram e, com grande esforço, ele falou baixinho, pelos

dentes travados:

— Eu voltarei para você". Jesse queria chorar, parar as palavras, impedir sua

despedida. Mas ela o apertava para si, balançando. — Vou pedir ao Pai e voltarei para

você."

Uma última tentativa de achar o ar, um aperto na mão dela e ele ficou imóvel.

Por um momento Jesse o apertou contra si, gemendo. Então, de algum lugar, veio

um cochicho e uma oração: Senhor Deus, Senhor Deus, SOCORRO! Seja a minha vara.

Seja o meu cajado. Conforta-me! A dor passou sobre ela. Jesse tremia e chorava. Ela

balançava o corpo inerte, delicadamente, o tempo inteiro buscando direção. O que fazer?

O que fazer?

A resposta veio das noites à frente do fogo, quando lia o Livro para Cavalga o Vento.

Uma após outra, as frases voltavam: — Não vos entristeçais, como os demais que não

têm esperança... Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal

algum, porque tu estás comigo... O SENHOR o deu e o SENHOR o tomou... Bendito seja

o nome do SENHOR".

Finalmente, Jesse pôs o corpo no chão e fez subir poeira. Ela se levantou e andou

até o lugar onde o grupo de caçadores estava, num silêncio respeitoso. Jesse aproximou-

se de Fala Muito.

— Precisarei de ajuda para cuidar de Cavalga o Vento."

Capítulo 17

... Deus que me fez, que dá salmos entre a noite.

Jó 35:10

Fala Muito gesticulou em direção ao povo da aldeia que se aproximava.

Page 87: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Nós faremos isto. As pessoas vêm.— Ao se aproximarem, os gritos de lamento

podiam ser ouvidos por toda a planície. Os gemidos, que não pareciam humanos,

penetravam no ar, até que Jesse não pôde suportar mais. Correndo até eles, ela gritou: —

Parem com isso. Parem com isso!".

As mulheres, admiradas com sua explosão, pararam de gemer e olharam Jesse

virar-se e se apressar de volta até o bando de caçadores. Eles tinham começado a erigir

uma fogueira para a exumação do corpo de Cavalga o Vento. Jesse arrancou as tochas

das mãos deles:

— Não... Não! Eu não vou deixar fazerem isso com seu corpo! Tem de ser do meu

jeito!

Jesse percebeu que ela deveria parecer uma demente. Os amigos a olhavam sem

nenhuma palavra e esperavam que ela se acalmasse antes de continuarem. Dando uma

respirada funda, ela sentiu uma calma sobrenatural. Sabia o que queria fazer e, como o

plano tinha ficado mais claro, sua respiração foi-se normalizando e ela assumiu sua

dignidade.

As mulheres da aldeia, paradas por perto, murmuravam sua desaprovação. Ela não

era, afinal, uma delas.

— Por favor, Fala Muito— Jesse falou, persuasiva, — você era amigo dele. Você

sabe que ele lia o Livro. Ele cria no único Deus e em Seu Filho Jesus. Por favor... Eu

quero sepultá-lo como meu povo sepulta aqueles a quem amam". Lágrimas começaram a

escorrer em seu rosto novamente, mas ela as limpava, teimosamente. — Por favor— ela

repetiu, — Eu não posso deixá-lo para os pássaros. Não posso".

Fala Muito chegou perto e murmurou:

— Mas o espírito dele precisa receber permissão para pairar nos lugares novos de

caçada, Caminhando nas Chamas. As pessoas jamais entenderão".

— Seu espírito já está com o Pai, Fala Muito. É isto que o Livro que lemos juntos

ensina. Eu preciso fazer esta última coisa para Cavalga o Vento. — Ela se virou para

olhar abaixo, para o corpo. — Eu vou fazer isso! — Seus olhos brilhavam enquanto corria

para repetir suas palavras para os anciãos, que se tinham reunido. Então ela correu para

seu próprio suporte, onde Velha se assentava.

— Velha— Jesse falou, abaixando-se para olhar acima, nos olhos claros da mulher.

— A senhora me ajudará a enterrá-lo? A velha ficou parada por um momento

considerando este pedido, contra as tradições de seu povo. Passou-se um momento,

mais outro. A aldeia olhava e escutava. Então a mão envelhecida estendeu-se,

envolvendo o queixo de Jesse num gesto de ternura: — Eu farei isto, por você, minha

filha— As pessoas resmungaram sua desaprovação, mas ninguém se moveu para deter

as duas mulheres, enquanto elas cuidadosamente desembrulhavam o corpo de Cavalga o

Vento da roupa do cerimonial.

Com mãos amorosas, as duas mulheres vestiram Cavalga o Vento, colocando sua

touca de cerimônias e as mãos cruzadas no peito. Elas embrulharam o corpo em couros

de búfalo.

Jesse hesitou. Como ela poderia abrir uma cova? O povo não usava pás. Seria um

serviço extenuante, mas ela sabia como. Pegando de dentro da bolsa de couro sua

ferramenta de cavar, ela se pôs de joelhos, ao lado de Cavalga o Vento, e começou a

Page 88: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

cavar a terra dura. Velha ajoelhou-se ao lado dela e trabalharam juntas. As ferramentas

feitas só para cavar raízes e tubérculos que usavam para cozidos tornavam o trabalho

duro, mas as duas continuaram a cavoucar a terra.

As mulheres da aldeia começaram a olhar ao redor, imaginando o que elas fariam.

Os líderes agruparam-se silenciosamente. Nenhum deles aprovava as ações de Jesse,

mesmo assim não se mexeram para detê-la.

Águia que Voa Alto era jovem, mas saiu do meio do povo e aproximou-se do

Conselho. Ele estivera lutando para conter sua própria dor, e agora um novo propósito o

ajudava. Com respeito, ele se dirigiu aos anciãos. De forma tranqüila, com dignidade,

como seu pai, ele começou:

— Caminhando nas Chamas é uma mulher boa. Ela é branca, mas está entre vocês

por muito tempo. Ela era uma boa esposa para Cavalga o Vento. Ela é uma boa mãe para

mim. Eu me lembro de suas histórias de como ele caçava depois de ela ter andado no

meio do fogo para salvar Não Escuta. Quando ela estava bem, ele fez um banquete em

sua honra. Vocês todos estavam lá, para dividir a alegria dele". Vindo da boca de um

jovem, o discurso breve ganhava mais peso. Os anciãos murmuraram seu acordo com o

que Águia que Voa Alto dissera. Acabado o discurso, o rapaz andou sério até o suporte

no seu potro e assentou-se.

Fala Muito disse depois:

— Por muitos anos Cavalga o Vento preocupou-se apenas com Caminhando nas

Chamas. Juntos liam esse Livro do qual ela fala. Minha filha me falou disso. Caminhando

nas Chamas lia as palavras no Livro. Cavalga o Vento repetia, então ele dizia como as

palavras iam ajudá-lo nas caçadas ou no Conselho. Caminhando nas Chamas ouvia

quando ele falava. Ela o respeitava. Ela fazia o que ele dizia".

Enquanto Fala Muito discursava, as pessoas lembravam-se dos anos desde que

Caminhando nas Chamas tinha vindo até eles. Muitos entre eles lembravam-se da

bondade diante do salvamento de Não Escuta. Muitos se arrependeram dos primeiros

dias, quando tinham caçoado da mulher branca. Eles se lembraram de Flor do Campo e

Velha ensinando-a e muitos podiam lembrar-se das vezes em que um cozido novo era

dividido com suas famílias ou uma pele de veado trazida por Cavalga o Vento encontrava

seu lugar na tenda deles.

A voz de Flor do Campo acrescentou-se à do homem:

— Mesmo quando não vieram mais filhos ou filhas à sua tenda, mesmo então

Cavalga o Vento queria somente Caminhando nas Chamas— Ela se virou para olhar para

Urso Corredor, outro ancião. — Mesmo quando você ofereceu sua própria filha, bonita,

Cavalga o Vento quis somente Caminhando nas Chamas. Isto é verdade. Meu pai me

disse. Quando ele andava na terra, Cavalga o Vento queria somente Caminhando nas

Chamas. Agora que ele está deitado na terra, vocês precisam saber que ele diria 'Façam

isto por ela'."

Jesse tinha continuado a cavar a terra enquanto ouvia. Quando Flor do Campo disse

que o chefe tinha oferecido sua filha, ela parou por um momento. Sua mão estendeu-se

num carinho amoroso na cabeça escura, imóvel, sob o céu claro. Cavalga o Vento nunca

lhe dissera aquilo. Ela tinha temido que ele desposasse outra mulher, quando ficou

evidente que ela não teria filhos. Agora ela sabia que ele tinha escolhido somente ela,

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mesmo em face da tentação.

Houve um movimento no grupo de mulheres. Flor do Campo andou para a frente,

com a ferramenta de cavar nas mãos. Desafiadoramente, ela explodiu:

— Ela é minha amiga...— e andou a passos largos a distância curta até a cova rasa.

Caindo de joelhos ao lado de Jesse , começou a atacar a terra. Cavou ferozmente. Jesse

imitou-a e Velha também. Elas começaram de novo, três mulheres trabalhando lado a

lado. E então eram quatro, e então cinco e seis, até que um círculo de muitas mulheres

cavavam juntas.

Os homens nada fizeram para detê-las e Urso Corredor decidiu o que deveria ser

feito:

— Nós acamparemos aqui e esperaremos Caminhando nas Chamas fazer o que ela

precisa. Esta noite vamos contar a vida de Cavalga o Vento, ao redor da fogueira.

Amanhã, quando tudo estiver feito, continuaremos andando".

E assim foi. Horas mais tarde, Cavalga o Vento, o caçador lakota, tornou-se o

primeiro em sua aldeia a ser colocado numa cova e pranteado por uma mulher branca.

Antes de seu corpo ser baixado à terra, Jesse impulsivamente pegou a faca de caça dele,

com a intenção de cortar as duas tranças grossas, vermelhas, penduradas nas suas

costas. Parecia tanto tempo, quando Cavalga o Vento tinha trançado as penas e contas

junto, escovando as partes separadas... isto tinha mesmo acontecido naquela manhã? Ele

tinha dado um beijo nela, também, resmungando sobre os costumes dos homens

brancos. Jesse tinha rido e devolvido o beijo.

Uma mão sobre seu ombro trouxe Jesse de volta ao momento terrível. Ela encarou o

corpo do marido, e orou baixinho: — Não vos entristeçais, como os demais, que não têm

esperança". Jesse deixou cair a trança e pôs a faca de caça de Cavalga o Vento em seu

próprio cinto.

As mulheres abaixaram o corpo dele na cova. Os líderes estavam permitindo que

isto acontecesse, mas não ajudariam a pôr seu irmão respeitado para descansar como

um homem branco.

Jesse jogou a areia sobre o corpo de Cavalga o Vento. Mesmo as mulheres não

conseguiam fazer essa coisa horrível. Quando estava pronto, Jesse sentou-se, exausta,

olhando ao redor. Mais uma vez as mulheres olhavam com incerteza. Então Jesse

levantou-se e começou a juntar pedras, empilhando-as sobre a cova. As mulheres a

ajudaram nisto e logo a sepultura estava marcada.

Voltando para o suporte, Jesse pegou a Bíblia. Ela abriu e começou a ler alto. A

maioria da tribo nunca tinha ouvido Jesse falar em sua língua. As palavras estrangeiras

não tinham sentido para eles. Somente na face da leitora é que eles podiam discernir o

conforto que as palavras deviam transmitir. — O Senhor é o meu pastor: nada me

faltará..."

Quando Jesse parou de ler, ela baixou a cabeça. Seus lábios moveram-se em uma

oração. De anos passados, ela se lembrava de um hino e viu-se cantando:

A graça eterna de Jesus que veio me libertar, a mim, tão grande pecador, a graça

singular.

Ela continuou até a última estrofe:

E quando no lar celestial o tempo sem cessar, louvor daremos eternal, a quem nos

Page 90: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

quis salvar.

Sua voz soou cortada e falhou muitas vezes, mas ela lutou até terminar a música.

Quando a última nota acabou, Jesse virou-se de costas para a sepultura. Os ombros

dela curvaram-se, e ela teria caído se Flor do Campo não estivesse lá para segurá-la. Ela

a guiou até o suporte, então andou de volta para a sepultura, onde as outras mulheres

haviam formado um círculo e começado o lamento profundo. Quando os gritos tinham

diminuído, Flor do Campo voltou-se para ver Jesse sentada, com as mãos na cabeça, em

seu suporte. Águia que Voa Alto estava ao seu lado. A perda do pai significava que ele

era o líder da família, e ele levou a sério sua nova posição, não se permitindo mostrar

qualquer dor, ansioso para mostrar sua hombridade.

Flor do Campo ajudou Jesse a subir.

— Você vai dormir em minha tenda esta noite, Caminhando nas Chamas. E Velha

também. E Águia que Voa Alto.— Jesse deixou-se levar como uma criança. Com alívio,

percebeu que o convite de Flor do Campo significava que ela não teria de montar sua

tenda para terem um abrigo para aquela noite.

As pessoas moviam-se ao redor em silêncio, montando as tendas de forma que

cada uma se voltasse para o Leste. Águia que Voa Alto vagueava sozinho. O sol estava-

se pondo e as fogueiras sendo acesas. O jantar foi preparado e comido de uma forma

moderada. Ocasionalmente, um nenê choramingava ou um cachorro latia, mas a maior

parte da noite transcorreu num silêncio incomum. As famílias conversavam baixinho sobre

as coisas estranhas que tinham visto naquela dia ou compartilhavam uma lembrança de

Cavalga o Vento. Muitos ficaram pensando como sua mulher branca iria ficar entre eles,

agora que ele já não estava mais vivo.

Quando Jesse finalmente afundou em seu couro de búfalo, na tenda da amiga, os

tambores tinham quebrado o silêncio, chamando a aldeia para dançar e cantar e contar a

vida de Cavalga o Vento. Jesse ouviu, sozinha, e chorou em silêncio. Sombras dançavam

ao seu redor, nas paredes da tenda. O fogo crepitava e Jesse sentiu saudade de Cavalga

o Vento achegando-se a ela. Chorou, com o corpo todo, balançando a cada nova onda de

dor.

Por fim os sons da aldeia terminaram e Jesse dormiu. Ao adormecer, sua mão

descansou em seu abdômen. A criança lá dentro tinha-se mexido.

Capítulo 18

Ouve, ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração. Desde o fim da terra

clamo a ti, por estar abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do

que eu.

Salmo 61:1-2

Então o sofrimento chegou. Ela tinha sepultado um filho e perdido um marido, mas

Page 91: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

isso era diferente. A tristeza se remoía dentro dela; uma presença escura, pesada, que

cobria cada ato, cada palavra. Às vezes ela se sentia sem ar por carregar este peso.

Velha advertia Jesse para não andar tão longe da tenda:

— Você pode ver algo que a assuste, a criança ficará marcada". Quando Águia que

Voa Alto caçava e trazia um coelho, Velha se recusava a cozinhá-lo de medo que o nenê

nascesse com lábio leporino. Pato era proibido, pois o nenê poderia ter pés com

membrana entre os dedos. Jesse acatava as superstições, por estar cansada demais

para protestar.

Quando Jesse resmungava, envidando esforços para cozinhar, Velha se intrometia,

cuidando do fogo:

— Coma muita carne, cozinhe pouco. Não queremos que a criança volte para as

colinas". O dito familiar para descrever a morte de um bebê fazia Jesse recuar. Ela

escapava para fora, esperando encontrar algum lugar onde a morte não a assombraria,

mas seus pés inchavam com o calor do dia e Flor do Campo a forçava a entrar na tenda,

insistindo para que ela descansasse. Ela a encorajava a fazer roupinhas para o nenê e

trazia muitos suprimentos.

A bondade de sua amiga trouxe pouco conforto. Toda a atenção delas não encheu

seu vazio.

A ausência de Cavalga o Vento imperava a cada momento, em cada dia. Quando

Jesse escapava da tenda para andar ao ar livre, lá estava Estrela Vermelha, correndo

pela paisagem para cheirar seu ombro. Mas a saudação de Estrela Vermelha ficava no ar,

sem a resposta do relincho agudo que sempre a seguia. Vento não estava lá.Quando

Jesse voltava para a tenda dela, via as conquistas de Cavalga o Vento, pintadas do lado

de fora. Dentro havia sua bolsa de couro, ó, por que ela havia guardado isso? Por que

não sepultara com ele?

Jesse pegava a bolsa dele, passando as mãos nas extremidades, sentindo as tiras

de couro cru. A bolsa dele... os pontos decorativos dados por ele... a tenda dele... a mãe

dele... uma mão caía para o abdômen. Alguma coisa fazia força contra sua mão. Jesse

fazia pressão contrária. Algo pressionava de volta. Ela olhava ao redor da tenda. A tenda

dele... o estojo dele... o bebê dele.

Ela deveria estar fazendo planos para a chegada do bebê — mas não, hoje não —

talvez amanhã. Mas no outro dia a dor estava de volta, cobrindo tudo. Jesse empurrava

para o lado, respirava e começava um novo dia. Ela carregava a dor, carregava o bebê,

carregava madeira para o fogo. Só carregar, era tudo o que podia fazer. Abaixar com tal

peso, para carregar alguma coisa, já tirava toda sua força. Quando o fogo da noite

apagava-se e sua força diminuía, a dor avultava e vencia. Ela a carregava noite adentro e

enchia seus sonhos. Ela atrapalhava seu descanso. Ela acordava e ouvia a respiração

dele. Ela estendia a mão para sentir o vazio ao seu lado. Ela inalava somente a fumaça

do fogo. Não havia mais o cheiro da pintura de guerra, de peles de animais, de corpo

quente.

Águia que Voa Alto retornava da caçada com os amigos. A morte do pai trouxe-lhe

maturidade da noite para o dia. Ele era terno com Jesse, não mais seu menininho, mas

um homem jovem que usava o manto da hombridade com muita vontade e se orgulhava

de suas habilidades para prover suas duas mulheres com carne. O cuidado dele lhe trazia

Page 92: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

pouco conforto, pois na linha de seu maxilar Jesse via o rosto de outro. Quando ele

falava, a modulação de outro pairava no ar. E a dor vinha, rolando.

Jesse lutava contra isso desesperadamente. Parecia que isso estava determinado a

sufocar até a sua própria vontade de respirar. Ainda assim, ela se apegava à vida. Ela

marcava cada nascer do sol sem Cavalga o Vento, aplicando uma conta preta no

desenho do vestido que estava decorando. Quando trinta contas pretas tinham sido

aplicadas, o vestido estava terminado. Mas não o sofrimento.

Lobo Uivante observava Flor do Campo ajudar sua amiga a preparar-se para o nenê.

Ele se assentava em sua tenda vazia na beira da aldeia e repassava cenas do passado,

até que se convenceu de que todos os seus problemas haviam começado com a chegada

da mulher branca ao acampamento.

A seus olhos, quando — Mulher que Não Faz Fogo chegou na aldeia, as atenções

de Flor do Campo tinham sido tiradas de sua própria tenda. Ela tinha sido pega ensinando

a mulher. Ela se havia esquecido do seu próprio marido.

Não foi por causa de ela estar ajudando a mulher branca que Lobo Uivante teve de

começar seu próprio fogo no dia da caçada do búfalo?

Quando — Mulher que Não Faz Fogo tornou-se Caminhando nas Chamas, Flor do

Campo deixou-o por muitas noites, para cuidar das feridas dela.

Então, Caminhando nas Chamas enganou-o com a esposa nova e bonita que ele

havia trazido para o acampamento.

Sentado sozinho em sua tenda, Lobo Uivante repassou cada incidente, muitas e

muitas vezes. E a cada vez seu ressentimento por Jesse crescia. Ele começou a acreditar

que livrar a tribo da mulher branca daria a ele condições de ganhar novamente sua

posição junto a Flor do Campo. Se ele reconquistasse sua esposa, as pessoas não iam

mais chamá-lo de canniyasa, um termo ridículo usado para mostrar que ele se tinha

revelado incapaz, como marido.

Um plano teve início. Quando foi completado, ele o guardou para si mesmo,

aperfeiçoando sempre os detalhes. Águia que Voa Alto irá caçar tão logo montemos o

acampamento de inverno, ele pensou. Então ela vai-me pagar por tudo o que tem feito

para mim. Ele olhava Jesse furtivamente, sorrindo para si mesmo.

A aldeia juntou-se a milhares de lakotas movendo-se através do Ptetatiyopa, o —

Portal do Búfalo— e para o acampamento de inverno em He Sapa, as Colinas Pretas.

Muito arborizadas com pinheiros escuros, as colinas escondiam incontáveis nascentes

puras. Madeira abundante, caça e abrigo para as tempestades de inverno tornavam o

lugar preferido tanto pelos lakotas quanto pelos búfalos.

Quando Jesse e Velha puseram abaixo sua tenda, Jesse carregou reverentemente a

bolsa de Cavalga o Vento para o suporte no potro e tomou muito cuidado para ter certeza

de que ela estava bem presa no lugar.

O coração dela doeu, ao andarem ao longo do leito do riacho que marcava a trilha.

Foi só no ano passado, ela pensou, que ele me tinha feito olhar para cima, para ver como

as árvores quase tocavam o topo dos rochedos. Jesse parou abruptamente, fingindo estar

com uma pedra dentro do mocassim, para que suas lágrimas não fossem vistas.

Chegando ao lugar, as pessoas montaram o acampamento de inverno e fixaram-se

ali. Jesse movia-se silenciosamente nestes dias e Velha se preocupava. Fala Muito

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ofereceu um carregador de bebê novo para a criança que ia nascer. Flor do Campo ficava

sempre por perto e cuidava bem da amiga. Lobo Uivante olhava de soslaio para elas. Ele

via a barriga de Jesse crescendo com um prazer silencioso, planejando e esperando.

O trabalho manual mantinha Jesse sã. Ela abria sua Bíblia toda noite, por hábito,

mas Cavalga o Vento não estava lá esperando para absorver as palavras queridas, e elas

ficavam lá, sem vida nas páginas, perdidas num mar de lágrimas.

Tinha sido seu hábito saudar cada dia com Cavalga o Vento. Juntos eles saíam para

olhar o sol nascente e orar. Ele sempre usava as primeiras palavras que ela tinha lido em

volta da primeira noite de fogueira. Agora, as palavras não vinham. A ferida da morte dele

estava aberta e ela não tinha palavras para a dor. Levantando suas mãos vazias para o

céu, ela esperava o sol nascer, oferecendo, sem palavras, seu vazio para Deus.

Só quando perdeu a conta do número de contas em seu trabalho é que Jesse

encontrou palavras para sua dor. Mesmo aí, elas não eram dela mesma, mas de uma

anciã que também tinha conhecido o senso de perda.

Ouve ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração. Desde o fim da terra clamo a ti,

por estar abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu.

Os Salmos começaram a fluir de sua boca, dando voz ao coração.

Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até a minha alma. Atolei-me em profundo

lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente

me leva. Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem

esperando o meu Deus.

Jesse lia as mesmas palavras mais e mais vezes. Novamente aquela coisa vivida

que a tinha segurado no meio da escuridão começou a surgir.

Senhor, a ti clamo, escuta-me; inclina os teus ouvidos à minha voz, quando a ti

clamar. Suba a minha oração perante a tua face como incenso, e seja o levantar das

minhas mãos como o sacrifício da tarde.

E então, certa manhã a dor aquietou. Ela ficou enroscada no horizonte quando a

aurora despontou. Ela ficava à espreita, ao longo dos momentos críticos de seu dia. Mas

deixava Jesse respirar e mover-se durante o dia, sem aquele ataque constante. Velha viu

o seu sorriso para Águia que Voa Alto. Uma luz suave retornou aos olhos cinza. Lobo

Uivante percebeu a mudança também, mas resolveu esperar até a primavera para vingar

seu ódio.

Só uma vez, depois disso a dor tomou conta dela — à beira da água. Ela olhou para

baixo e sentiu a ausência da face que deveria refletir ao lado da sua. Ela dominou a dor,

mexendo na superfície da água, destruindo a imagem. Isto resolveu. A vida continuou.

Na Lua do Frio Intenso, Jesse já estava enorme, com a gravidez. Flor do Campo

trouxe-lhe a pele mais macia e branca que ela já tinha visto.

— É a pele de um feto de búfalo— ela explicou, acrescentando timidamente: — Eu

estava guardando para meu filho... mas agora...". Lágrimas encheram seus olhos e ela

esfregou a mão sobre o rosto marcado pela cicatriz.

Jesse se perguntou por que a bondade de uma amiga deveria trazer a dor rolando

de volta das trevas. Conseguindo agradecer com voz baixa, ela apertou a pele e fugiu,

pelo acampamento afora, para sua própria tenda, onde Cavalga o Vento não estava; o

filho dele, que estava para chegar, puxava toda a respiração de seu corpo, pois ela

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ofegava com a rápida corrida. O nenê se mexia e chutava. Um pezinho empurrava as

costelas de Jesse e ela fazia pressão contrária. O pé chutava de novo, mais forte, e ela

cochichava: — Seu filho insiste em seu próprio caminho, meu grande amor".

E então, numa manhã, Jesse levantou suas mãos para o céu e encontrou suas

próprias palavras saindo no lugar dos Salmos que ela estivera sempre repetindo.

A dor retornava nos momentos difíceis de seus dias. Ela até surpreendia Jesse, às

vezes, pulando em novos ataques, quando ela estava menos preparada. Mas o tempo

tinha começado a curar a ferida. Quando a ausência de Cavalga o Vento se avivava, ela

preenchia o vazio com as passagens da Escritura preferidas dele, lendo-as e relendo-as

até que se tornassem parte dela.

Águia que Voa Alto gastou os meses de inverno amansando um potro novo. Ele

tinha assumido o bando de seu pai e amansava os animais com uma mansidão genuína,

provando que tinha aprendido bem as lições de seu pai. Jesse observava, enquanto ele

firmemente ganhava a confiança do cavalo novo, ensinando-o a correr ligeiro e direto

enquanto o cavaleiro escorregava para os lados, até que somente um joelho ficasse

visível para um pretenso inimigo. Os dois precipitavam-se pela campina, vezes e mais

vezes, até que as narinas dilatadas do potro começavam a soltar grandes nuvens de

vapor, devido ao clima frio. Então, Águia que Voa Alto refreava o andar do potro e com

cuidado o fazia esfriar, antes de levá-lo de volta aos outros cavalos.

Jesse louvava o filho por sua habilidade e sentia-se grata por ser-lhe possível

assistir a suas demonstrações sem perder a batalha para a dor. Uma pontada de tristeza

estava lá, pelo pai, que não pudera conhecer os talentos do filho, mas ela era controlável

e a dor era mais obscurecida. Jesse tinha aprendido a aceitar isso como parte de sua

experiência. Ela guardava tudo a distância e trabalhava o tempo todo em que estava

acordada, ajudando outras mulheres na aldeia o máximo possível, tagarelando sempre,

enquanto esperava o nascimento da criança.

Ela estava perturbada, no entanto, com algo além da presença da dor. Parecia que,

onde quer que ela fosse, Lobo Uivante nunca estava longe. Quando falou disto para Flor

do Campo, a mulher encolheu os ombros e disse:

— Lobo Uivante é um homem sem valor. Ele me implora para voltar com ele. As

outras mulheres não o querem. Parece que ele só está olhando você porque sempre

estamos juntas. Mas eu não o quero. Ele não vai desistir. Na semana passada ele me

ofereceu uma manta nova de búfalo, como uma oferta de paz". Flor do Campo fez uma

pausa um instante e inconscientemente tocou na cicatriz, feita pela faca dele. Então ela

falou baixo: — Como se uma manta de búfalo pudesse curar isto e levar-nos de volta aos

dias em que gostávamos um do outro. Eu nunca voltarei para aquele canniyasa!".

Jesse guardou suas preocupações para si mesma depois disto. Ainda assim, parecia

que Lobo Uivante olhava para ela, e o ódio nos olhos dele fazia Jesse tremer.

Na Lua Em Que Os Gansos Botam Ovos, os sinais da primavera estavam em todos

os lugares e as pessoas iam ficando mais impacientes e prontas para mudar do

acampamento de inverno. Jesse foi ficando mais preocupada com a mudança, sabendo

que a hora do nascimento de seu filho estava perto. Flor do Campo a encorajava:

— Velha é uma hoksiacu boa. Ela já ajudou muitos nenês a nascer em nossa tribo.

Você não precisa ter medo, quando chegar a hora".

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Águia que Voa Alto saiu com o grupo de caçada dele, brincando que quando

voltasse traria carne para seu novo irmão.

Quando Águia que Voa alto saiu, Lobo Uivante decidiu agir. Jesse e Velha estavam

dormindo quando ele ficou à espreita, entrando na tenda delas, deixando Velha

inconsciente com uma pancada. Ele pulou sobre a fogueira e agarrou Jesse pela

garganta, ameaçando-a com sua faca. Jesse agarrou na mão dele e se esforçou para

gritar, mas a fúria de Lobo Uivante com ela deu-lhe tal força que ela não teve chance. Ele

cochichou a ela:

— Você, demônio branco, agora eu tenho você! Você fez Flor do Campo ficar contra

mim e ensinou a ela seus costumes brancos. Você tramou e roubou a mulher nova que eu

trouxe para o acampamento. Agora não há nenhum Cavalga o Vento para proteger você.

E Águia que Voa Alto está longe. Grite para seu Deus — ele não vai fazer nada. Os

espíritos deram poder a mim...Você me arruinou à vista de meu povo, agora vai pagar por

tudo o que fez!".

Jesse arfou, desejando ar, mas ele a amordaçou e amarrou as mãos dela nas

costas. Ele a puxou para trás na tenda, rasgando as peles e forçando Jesse a atravessar

pelo buraco. Ele começou a arrastá-la e empurrá-la, alternadamente, em direção ao

riacho. O pé de Jesse foi ficando congelado, e eles andavam com muita dificuldade na

neve derretida. Ela recuava e cambaleava. Lobo Uivante apertava a faca em sua barriga,

forçando-a a caminhar. O medo pela criança a manteve quieta. O pânico a manteve

andando.

Quando alcançaram o ribeiro, Jesse viu Estrela Vermelha amarrada perto de um

potro estranho. Lobo Uivante a empurrou para cima do lombo de Estrela e pulou para o

seu, para levá-la embora. Ele foi devagar, no começo, com cuidado para não despertar o

acampamento. Jesse apertava as ilhargas de Estrela com seus joelhos o mais forte que

podia.

Durante as horas seguintes eles andaram ao longo do ribeiro, de volta pelo Portal do

Búfalo. Jesse agarrou-se nos lados de Estrela, agonizando com a dor nos músculos,

orando desesperadamente para ficar montada. Sua barriga grande tirava-lhe o equilíbrio,

quando desviavam subitamente e ela pulava contra o lombo de Estrela, incapaz de se

mover no ritmo familiar do potro, que caminhava com passadas largas.

Lobo Uivante só parou para dar água aos potros. Toda vez ele inspecionava os

cordões que amarravam as mãos de Jesse nas costas. Toda vez ele punha a mordaça de

volta em sua boca com a mão imunda.

Perto do alvorecer, eles se puseram a caminho pela campina aberta. Finalmente,

Jesse viu o destino deles. Saindo da terra de fato, feita de placas de terra e grama, havia

uma cabana. De sua única janela saía um tênue brilho de uma lamparina.

Por precaução, Pierre Canard tinha ficado dentro de sua cabana de terra, ao ver dois

cavalos desconhecidos aproximando-se. Ele se agachou, olhando com atenção pelo

peitoril da janela, rifle nas mãos, e esperou. Os potros moviam-se devagar. O caçador de

peles arranhava sua barba grisalha e apertava os olhos para captar tudo o que podia,

observando os visitantes. Como o sol saíra e os cavaleiros se aproximassem, ele

assobiou sua surpresa, pois um dos cavaleiros era uma mulher branca amarrada e

amordaçada e, obviamente, num estágio avançado de gravidez. Ela tinha também

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recebido um tratamento grosseiro. O cabelo ruivo, emaranhado, escondia a maior parte

do rosto, apesar de seu esforço para jogá-lo para trás, sobre os ombros.

Lobo Uivante desceu do cavalo e foi para a porta da cabana, batendo com força,

para acordar os habitantes dela. Ele ignorou Jesse.

Canard imediatamente supôs que ali estava uma cativa para ser resgatada e

enviada de volta para sua família a qualquer custo. Ele abriu a porta e deu uns passos

leves, fora, conversando com Lobo Uivante através de sinais. Amordaçada, Jesse só

podia ouvir a conversa. Ela se enfureceu por dentro, sem poder para contradizer as

mentiras de Lobo Uivante.

A troca foi feita rapidamente. Canard estava ansioso para resgatar a cativa indefesa

e livrar-se do selvagem ganancioso, antes que os amigos dele aparecessem para

protestar o mísero pagamento que Canard tinha oferecido. Lobo Uivante, com

mesquinhez, aceitou os dois potros magros oferecidos por Canard na troca e pediu o rifle

de Canard como parte da barganha. Canard balançou a cabeça desafiadoramente e

entrou na cabana para procurar, minuciosamente, algo que substituísse o rifle. Voltou com

uma garrafa de uísque. Lobo Uivante bebeu bastante antes de entregar as rédeas de

Estrela Vermelha e cambalear para pôr as rédeas nos potros que eram parte da troca. Em

poucos momentos, ele havia partido com dois potros e o uísque, esquecendo-se de levar

Estrela Vermelha de volta com ele. Canard riu para si mesmo da estupidez do selvagem,

mesmo enquanto descia Jesse de Estrela Vermelha e tirava suas amarras e mordaça.

Jesse inspirou forte o ar fresco e esfregou as mãos uma na outra, sem saber o que

dizer. Canard quebrou o silêncio:

— Por favor, madame, entre. Vou fazer um café para a senhora, trazer água para

lavar-se. Pierre Canard tentará suprir qualquer necessidade sua. Sou apenas um caçador

de peles, sozinho nesta casa, mas a senhora é bem-vinda e eu a ajudarei. A senhora não

precisa ter medo.

Quando estiver descansada, nós iremos para o forte e eu a ajudarei a encontrar sua

família.

Jesse o interrompeu:

— Minha família está longe, na aldeia lakota: meu filho, minha sogra, meus amigos".

Canard olhou espantado para ela, com o cérebro demorando a processar o fato

surpreendente de que esta mulher, na verdade, queria retornar aos verdadeiros selvagens

que a tinham trazido para cá.

— Eu tenho vivido com este povo há...— Jesse parou. Quantos anos haviam-se

passado? Ela tinha perdido a conta. — Tenho vivido com este povo há muitos anos,

agora..."

— Mas— Canard interrompeu, — Ele disse que você era uma escrava, que ele

precisava mais de cavalos que de uma mulher inútil que não trabalharia por muito

tempo... ele disse...".

— Ele é um mentiroso. É meu inimigo. Meu marido morreu e ele estava esperando

para me atacar. Meu filho saiu com um grupo de caçadores e eu fui tola. Achei que Lobo

Uivante tinha desistido de seus ardis. Eu estava errada. Por favor! Ajude-me a voltar para

meu povo.— Jesse foi ficando mais desesperada. — É tudo o que eu tenho, tudo o que

eu conheço. Eu não saberia como...— Ela estava chorando agora, com lágrimas correndo

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por ambas as faces.

Canard pegou as rédeas para o potro que estava parado, esperando pacientemente.

— Por favor, madame, a senhora vai para dentro, assentar-se perto do fogo. Eu vou

levar o potro para o curral e trazer-lhe água fresca. Vamos conversar. Eu vou ajudá-la.

Por favor, não chore."

Mas Jesse não conseguia parar as lágrimas. Ela disse que sim, com a cabeça,

entrou na cabana estranha e sentou-se obedientemente à frente do fogo cintilante, mas

as lágrimas de raiva continuaram.

O caçador se afobava lá fora e se apressava para entrar comum balde cheio de

água fresca. Jesse lavou as mãos e o rosto e tentou arrumar o cabelo embaraçado,

enquanto Canard atiçava o fogo e fervia água para o café. Ele se mexia para lá e para cá,

eficientemente, enquanto Jesse ficava sentada no chão, aérea, com a cabeça caindo,

apesar de seus esforços para ficar acordada.

Ela não sabia quanto tempo tinha-se passado, quando um aroma familiar de café

encheu o ar e Canard tocou sua mão delicadamente.

— Madame, nós temos café, agora, e nós conversaremos. E Pierre Canard vai

ajudá-la em tudo o que puder."

Jesse deixou-se ser conduzida para a mesa de madeira, cortada grosseiramente, a

qual lhe foi apresentada tendo uma xícara de lata, com um líquido fumegante. Ela ficou

olhando admirada as bolachas fresquinhas à sua frente e olhou para Canard. Olhos azuis,

bondosos, cintilaram ao dizer:

— Sou um homem sozinho, mas um bom cozinheiro! Coma pelo bebê também,

certo?".

A lembrança do bem-estar do nenê encorajou-a a comer. Ela levou uma bolacha aos

lábios e o aroma da massa de fermento natural fez sua boca encher-se de água. Comeu

com avidez, molhando duas bolachas no café fumegante. Isso a despertou e ela tentou

desamassar o vestido de pele de alce, rasgado, enfiando os pés gelados para trás,

embaixo da cadeira, o mais longe da vista possível. O calor da lareira aliviou as dores da

caminhada noturna. Sua fraqueza diminuiu.

Canard juntou-se a ela, à mesa, consumindo meia dúzia de bolachas e xícaras de

café, tentando preencher o silêncio com atividade. Finalmente, ele empurrou sua cadeira

para trás e olhou para fora pela janela. O céu estava cinzento e assustador.

— Parece que teremos uma tempestade, madame. Eu vou cuidar dos cavalos. O

homem bobo que a trouxe aqui não sabe que os cavalos bons eu guardo dentro, à noite,

para protegê-los de pessoas como ele. Então, vou colocar o potro pequeno dentro

também."

A menção de Estrela Vermelha, Jesse encontrou sua voz.

— Ela é minha. Seu nome é Estrela Vermelha...— sua voz extinguiu-se aos poucos.

— Ela foi um presente de meu marido. Ela é uma boa potranca...— Jesse levantou o olhar

para os olhos bondosos e achou que ele não iria rir dela. — Ela é uma boa amiga.

Canard sorriu.

— Bem, então, esta boa amiga precisa também abrigar-se da tempestade, lá dentro.

Olha, já está chegando." De fato, flocos de neve haviam começado a cair e o vento a

soprar um gemido baixo, assustador.

Page 98: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Canard saiu apressado e dirigiu-se ao estábulo. Seus olhos perscrutaram o

horizonte e ele não gostou do que viu. Amarrando uma ponta de um cordão a um poste

do curral, ele andou até o vão da escada no curral, e então para a cabana, onde puxou a

ponta do cordão pelo buraco do trinco da porta e deu um nó, para mantê-lo no lugar.

— Parece que vai ser uma tempestade ruim, madame. Agora posso encontrar o

caminho até os cavalos e o curral, mesmo se o pior acontecer... o que espero que não

aconteça.

Mas o vento gemeu alto e a neve caía misturada com pedrinhas de gelo que batiam

na janela da cabana. Ao meio-dia, a grama estava coberta de gelo e a grama curta de

búfalo tinha desaparecido sob um lençol branco. Jesse, sentada à mesa, assistia à

tempestade, orando para que parasse, para que ela pudesse ir embora. A fraqueza tomou

conta dela, que se encolheu perto da lareira e dormiu, não aceitando as ordens de Canard

para que dormisse na cama de corda, no canto.

Ela acordou assustada, com o gemido desesperado do vento. Lá fora a escuridão

assustadora aumentara e ela sabia que não poderia achar o caminho de volta para casa

naquele dia. A nevasca apagaria qualquer rasto que Lobo Uivante tivesse deixado. Ela

percebeu, com uma satisfação implacável, que a nevasca destruiria o bêbado Lobo

Uivante também.E ela ficou pensando em Águia que Voa Alto e seu grupo de caça.

Teriam voltado para a aldeia agora ou teriam sido pegos pela tempestade também?

Quanto tempo demoraria até Águia que Voa Alto saber o que tinha acontecido? Quanto

tempo demoraria antes de ele tentar encontrá-la?

Seus pensamentos foram interrompidos pelas solicitações repetidas de Canard para

que ela descansasse na cama de corda. Ela recusou, escolhendo, em vez disso, fazer

sua cama no chão, num canto da cabana mais afastado. Canard foi vencido pela teimosia

dela e pendurou uma colcha esfarrapada atravessada no canto, para lhe dar alguma

privacidade.

— Obrigada— ela conseguiu dizer. Então falou delicadamente: — Eu sinto muito não

poder explicar-lhe, mas tudo está tão confuso. Eu nem sei por onde começar...e— ela

suspirou, — Estou cansada demais".

Canard a interrompeu:

— Esta tempestade vai dar-lhe muitos dias para pensar. E se a senhora decidir

contar sua história, então eu ouvirei. Mas, madame— e os olhos azuis cintilaram calorosa-

mente, — A senhora não precisa contar-me nada, se assim o desejar. Eu ouvirei, se

quiser falar... se desejar manter silêncio, eu entenderei. E, madame— ele acrescentou

incomodamente, — Eu estou numa terra de muitos homens sem Deus, mas sou um

homem temente a Deus. Não vou feri-la. Talvez Deus a tenha mandado aqui para que eu

pudesse ajudá-la... por favor, não tenha medo de mim". Parecia que ele ia dizer ainda

outras palavras, mas não disse mais nada. Jesse somente assentiu, com a cabeça, ao

tentar alcançar as implicações do discurso dele. Ela ficou com muita raiva por ter sido

arrancada dos lakotas. Ela não queria um futuro novo. Queria ir para casa, onde Águia

que Voa Alto, Flor do Campo e Velha a esperavam. Se um retorno para os brancos era a

vontade de Deus, então, pela primeira vez, ela não queria a vontade de Deus. Cavalga o

Vento, Águia que Voa Alto, Flor do Campo, Homer, cavalos, carroções, potros, Velha,

imagens e memórias rodopiavam e dançavam junto com a neve em turbilhão lá fora,

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destruindo qualquer esperança de ela seguir o rastro de volta para os lakotas.

Capítulo 19

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo

do céu... Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar.

Eclesiastes 3: 2,4

Elas chegaram à noite. Nas primeiras horas Jesse dormiu e acordou,

intercaladamente, perguntando-se na semiconsciência por que os sons de uma nevasca

poderiam causar-lhe tanto alarme. As eólicas de estômago não se acalmaram, e ela

acordou, sentindo-se acabada. Sua respiração ficou ofegante quando tentou levantar-se

da cama no chão. Tateando ao redor, no escuro, ela pegou a lamparina que havia

deixado no chão. Uma golfada de um líquido quente revelou a causa de seu desconforto.

"Ó meu Senhor— ela cochichou, — Nesta noite não, aqui não, por favor, Senhor". v

A resposta à sua oração veio numa nova onda de contrações. Sim, minha filha, esta

noite. Jesse respirou bem fundo e preparou-se para a próxima contração.

Sim, Jesse, aqui. As respostas não eram audíveis, mas, na verdade seu coração

ouviu.E eu estarei aqui, com você,da mesma forma que estava quando você andou no

meio das chamas, da mesma forma que estava lá, no vale da morte, desse jeito, eu

estarei aqui.

A mente de Jesse se acalmou. As contrações diminuíram e ela pensou com clareza.

Ela precisaria de água quente, uma faca, algo para embrulhar o filho.

O filho, ela pensou maravilhada. Nesta noite ela iria carregar o filho de Cavalga o

Vento em seus braços! Uma contração bem mais forte veio e Jesse gritou — um gemido

baixo, que cresceu com a contração e acabou num agudo — Ai".

Ela apertou os lábios para se aquietar, mas era-tarde demais.

Canard tinha ouvido. Ele estava parado, indeciso, bem do outro lado da colcha

rasgada que ele tinha pendurado, para a privacidade dela.

— Madame, o que é isso?— ele perguntou ansioso. — A senhora precisa de

ajuda?— Sua voz era sincera, preocupada.

Jesse respirou fundo.

— Estou bem— ela falou ofegante. — Vou ter o nenê esta noite, ao que parece."

Canard ficou do outro lado da divisória, sem vontade de se mexer sem a permissão

dela.

— A senhora sabe como fazer isso?— foi a próxima pergunta.

Jesse esperou a próxima contração passar, antes de responder:

— Este não é meu primeiro filho. Muitos anos atrás tive um filho. Ele morreu, um

nenê, caiu do carroção. Eu tive ajuda entre os lakotas. Vai dar tudo certo". Outra

contração cortou sua resposta. Ela gemeu baixinho.

Canard perguntou de novo:

— O que posso fazer?".

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Jesse, em silêncio, pediu socorro ao Senhor. Para Canard, ela respondeu: "Água,

uma faca, papel e a-a-a-alguma - coisa – para embrulhar - o - ne-nê— As últimas palavras

vieram em curtas arfadas. Ela tinha imaginado um longo sofrimento, mas não seria.

Canard se mexia rapidamente. Por debaixo da colcha pendurada, ela viu sombras

dançando, pois ele também acendera um lamparina. A porta da cabana abria e

fechava.Duas contrações depois e um balde de água fresca estava debaixo da colcha.

Ele mexeu em alguma coisa, na prateleira, e papel de embrulho marrom e faca

apareceram. Finalmente, uma barra de sabão de lixívia e um tecido macio foram

acrescentados à fileira de coisas no chão. Obrigada, Senhor, Jesse pensou, por suprir

aquilo de que eu precisava antes mesmo de pedir.

Mais duas contrações vieram, uma em seguida da outra. Jesse foi forçada a ir para a

cama.

Houve pouca folga depois disto. Num determinado ponto, Canard espiou pela beira

da colcha. Seu rosto aparentava preocupação verdadeira, mas Jesse rejeitou sua ajuda.

Inteiramente consumida por seu próprio corpo, envolvida totalmente pela dor física,

desejando a presença de Cavalga o Vento e querendo estar em outro lugar, Jesse

agarrou-se à sua privacidade. — Eu - não - quero - você - aqui!— ela disse com os dentes

travados, irritada. Canard murmurou um pedido de desculpas e saiu. Ele andava

pesadamente de um lado para o outro, no comprimento da cabana, totalmente imerso no

milagre acontecendo do outro lado da colcha rasgada.

Ela chegou no amanhecer. Berrando imediatamente e balançando as mãozinhas,

uma menina nasceu, na cabana de Pierre Canard, o comerciante. Tremendo de cansaço

e contentamento, Jesse falou baixinho palavras familiares ao bebê: — Hoksicala wan

icimani hi, um nenê viajante chegou. Águia que Voa Alto, você tem uma irmã".

Ela conseguiu cortar o cordão, limpar-se e lavar a criança antes de desmoronar.

Canard arrancou a colcha, que o havia deixado de fora, precipitou-se sobre a mãe e a

criança e cuidou de ambas. Ele arrumou um acolchoado limpo para a cama de Jesse e

levantou-a e colocou-a nele, para descansar. Jesse emocionou-se e ficou surpreendida

ao vê-lo pôr uma roupinha no nenê, com habilidade. Ele prendeu uma touca sobre o

cabelo preto e grosso antes de embrulhá-la em um acolchoado e dá-la à sua mãe.

Jesse agradeceu em voz baixa e perguntou:

— Mas, onde...?".

Canard não a deixou terminar:

— Não sou tão velho quanto pareço, madame. Isto pertencia à minha esposa,

Suzette. Nós sonhamos juntos com uma família, um lar. Mais cinco anos de caça e

voltaríamos para casa em St. Louis. Mas meus sonhos... eles morreram. Suzette — nosso

nenê— Sua voz tremeu. Ele encolheu os ombros e terminou sua história: — Eu ainda

guardo o malão cheio de memórias, cheio de sonhos que já morreram. Você pode pegar

para essa pequenina tudo do que ela precisar. Minha Suzette adorava costurar. Ela fez

muitas coisas de nenê. Pegue também o que era da minha Suzette, que está aqui dentro.

Qualquer coisa de que você precisar. Ela ficaria feliz em saber que estava ajudando. Ela

estava sempre ocupada nisso — ajudar pessoas".

Sua voz falhou e Canard correu para fora, voltando mais tarde e encontrando Jesse

e a filha dormindo.

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Algumas horas mais tarde, Jesse acordou com os berros de um nenê faminto e com

o cheiro de café forte. Canard mexia-se na cabana, cozinhando, limpando, como que

preparando sua casa para um convidado real. Escutando o choro do nenê, aproximou-se

da colcha e perguntou:

— A mamãe também está com fome?". Jesse disse que sim e rapidamente recebeu

dele — Panquecas suficientes para fartar uma mula— Ela sorriu amargamente com a

lembrança causada pela frase de tanto tempo atrás. Homer tinha usado essa frase,

quando ele pedira seu café na manhã seguinte à do nascimento de Jacob. Jesse tinha

saído da cama e preparado.

No entanto, esse nascimento e a tempestade de neve a tinham deixado aos

cuidados de Pierre Canard. Parecia que ele estava determinado a mostrar à mãe e à

criança seu cuidado, com toda a atenção que ele tinha reservado para sua própria esposa

e filho, e nunca usara. Mas Jesse não teria nada disso.

— Tolice— ela respondeu à insistência de Canard de que ela descansasse. — O

Senhor tem-me abençoado com saúde e força. Eu não serei um fardo para você. Tão logo

a tempestade passe, precisaremos retornar para o povo. Meu filho estará me

procurando." Mesmo enquanto ela dizia isto, sua cabeça rodava e ela se viu

escorregando para debaixo do acolchoado.

Canard disse delicadamente:

— O Senhor abençoou, é verdade, e a senhora precisa pedir também para ser

humilde, madame. Talvez Deus a tenha enviado a mim, para que eu possa ajudá-la. O

que acha disso?".

A tempestade de neve estava violenta, lançando tanta neve contra a cabana, que se

tornava quase impossível para Canard sair para cuidar dos cavalos. Jesse percebeu que

seria impossível retornar à aldeia.

Quando seu nenê tinha dois dias, Jesse encontrou coragem para mexer no baú que

Canard tinha colocado no canto. Ele tinha roupas de nenê suficientes para manter uma

criança limpa por muitos dias. Dois vestidos de chita em bom estado foram tirados e

lavados para Jesse. Soltando a cintura, abaixando a barra e ignorando as mangas bem

curtas, Jesse ganhou parcialmente sua aparência de mulher branca. Ela deixou o cabelo

trançado e recusou o par de sapatos de Canard que ele ofereceu quando viu que os pés

de Jesse não entrariam nos sapatos pequenos de Suzette.

— De qualquer forma, eu detesto sapatos— ela argumentou. — Os mocassins são

tão mais confortáveis. Além disso — ela acrescentou, — Estes foram um presente de

alguém muito querido". Canard deixou o assunto dos mocassins e voltou a admirar o

nenê, cujos roncos e suspiros saíam do caixote que ele tinha transformado em berço.

— E qual é o nome da menininha, hein?— ele perguntou.

— Eu não tenho um nome... ainda— Jesse respondeu rápido. — E ela veio muito

cedo."

No terceiro dia de vida de sua filha, a nevasca finalmente diminuiu e Jesse arriscou-

se a sair. O mundo era um mar branco e brilhante. Ela ouviu um relincho familiar vindo do

curral. Estrela Vermelha ficou parada, olhando para ela com os olhos e orelhas alertas. A

onda de emoção que sentiu ao ver sua potranca e ouvir o seu relincho a surpreenderam.

Ela enfiou a cabeça na crina vermelha e soluçou. Canard deu uma olhada da porta e

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balançou a cabeça.

— Bom— ele falou — isso é bom, ela chora, sente-se melhor".

Embaraçada por mostrar sua emoção, Jesse hesitou em voltar à cabana, mas um

grito esfomeado impedia maior privacidade. Jesse correu para dentro, agarrou o nenê e

recolheu-se rapidamente ao seu canto. Canard fingiu que não tinha visto suas lágrimas e

ela não deu explicações.

Com o passar do tempo, Jesse recuperou-se fisicamente e tornou-se mais

descontente. Parecia não haver jeito de sair da cabana do comerciante. As pessoas já

teriam-se mudado para o acampamento de primavera. Águia que Voa Alto procuraria.

Mas haveria alguma chance de ele encontrá-la? Canard era um cavalheiro, mas pensar

em permanecer sozinha com ele a enchia de medo. Sem idéia do que fazer, Jesse ficou

lá, orando por respostas. Parecia que ela só ouvia o silêncio. Os dias se passaram e ela

perdeu toda a alegria na filha. Olhar os seus cabelos e olhos pretos era olhar no rosto de

Águia que Voa Alto, que se parecia tanto com seu pai.

Canard falava amorosamente com a criança, fazendo-se ridículo. Ele tentava

persuadir Jesse, com sugestões para um nome, mas ela não se decidia. Jesse

preocupava-se e alimentava o nenê, mas, uma vez que as necessidades estivessem

supridas, Jesse a colocava de volta no caixote-berço e ou se assentava numa cadeira

perto da janela para ficar olhando para fora ou saía da cabana para curtir seu sofrimento

recente com Estrela Vermelha. Seus olhos perscrutavam o horizonte, buscando um sinal

de Águia que Voa Alto.

Canard esperava Jesse recuperar-se, mas a recuperação não acontecia. Ao

contrário, ela se afundava num atoleiro, sempre mais fundo, de depressão e indecisão.

Ela dormia bastante, trabalhava pouco e fazia apenas o que era preciso para manter sua

filha viva. Deus, onde está o Senhor? ela orava. Eu não consigo ajudar-me... por que o

Senhor não me ajuda ? Onde está Águia que Voa Alto — por que ele não vem? As

palavras pareciam cair no vazio. Ela finalmente cansou-se de orar.

Canard a via caindo em um espiral de depressão e ia-se desesperando para forçar

uma mudança. Ele cozinhava bem e tentava atrair Jesse com pratos criativos. Ela comia o

que quer que cozinhasse, sem se agradar, e continuava a emagrecer. Ele cantava e

dançava com o nenê, mas Jesse virava as costas.

Afinal, a paciência se esgotou; Canard ficou bravo e, por acidente, descobriu um

caminho para recuperar Jesse. Ele se agitou, repreendendo Jesse:

— Você diz que tem um Pai celeste que a ajudará com esta criança, não é? E onde

Ele está agora, hein? Ele está longe agora e a deixa ficar tão triste, não é, pobre

madame? A senhora tem um nenê saudável, não é? Ah, sim, o marido se foi... mas veja o

que ele lhe deu! Minha Suzette, quando ela partiu, ela levou o nenê junto! Pierre, ele não

tem nada! Bem, veja madame— Canard correu para o baú. Abriu e começou a arrancar

as coisas de dentro. — Digo uma coisa à senhora, vou ajudá-la a encontrar o seu bando

— seu filho. Eu estou falando que vou ajudá-la a encontrar uma vida nova — se é que a

senhora deseja. Mas a senhora fica sentada e não fala nada. Olhe aqui, madame. A

senhora quer morrer, Pierre tem o caixão, certinho para a senhora. Olhe aqui.— Ele

mediu a sua altura, segurando seus braços separados, enquanto se aproximava de

Jesse. — Cabe certinho. Então a madame pode morrer — a senhora não se importa com

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o nenê mesmo. Eu crio esta criança. Eu vou amá-la. A senhora!— Ele empurrou Jesse

para trás, na cama, que estava cheia das roupas do baú. — Vá em frente. Morra. Morra

agora!"

Canard, irritado olhou o bebê dormindo, pegou-a com caixote e tudo e levou-a para

fora. Jesse não prestou atenção a ele. Ao contrário, ficou parada, olhando para si mesma

e para os pedaços de retalhos que Pierre tinha espalhado com raiva. Mecanicamente, ela

começou a recolhê-los. Alguns eram cortados no formato de diamantes. Outros em tiras

estreitas. Então ela o encontrou. Estava meio coberto por uma bata de retalhos, mas ela o

descobriu. Um retalho com modelo de cabana, ela pensou, igualzinho à minha colcha com

modelo de cabanas lá em casa... Casa? Seu cérebro expulsou a lembrança dolorosa. Ela

começou a separar os retalhos à sua volta.

Jesse correu para o baú e remexeu, procurando agitadamente. Lá, no canto. Estava

um pouco enferrujada, mas era uma agulha! Linha,ela pensou,eu preciso de linha.Ela

arrancou o alinhavo da bata fora de uso. O projeto a consumia. Ela separava e separava

e punha do lado. E, de alguma forma, no trabalho de separar, Deus começou o Seu

trabalho de cobrir a sua dor.

Horas mais tarde, quando Pierre retornou, ele encontrou Jesse sentada,

emendando, à janela. Ele não viu nenhum sinal do conteúdo do baú, exceto umas pilhas

daquilo que Pierre chamava de trapos. Eles estavam separados por cor e formato e eles

foram o início da cura de Jesse.

O clima continuou ruim. A primavera estava atrasada naquele ano e Jesse estava

contente. Isso trazia uma desculpa para a ausência do grupo de busca. Isso evitava que

ela tivesse de tomar uma decisão sobre o lugar aonde ir. Ela esperava ser encontrada.

Pierre tornou-se um amigo precioso. Eles faziam listas de nomes de bebês, bebiam litros

de café e cantarolavam cantigas de ninar.

Jesse começou uma colcha. No início era de cabanas, mas então ela parou e

acrescentou uma bordadura e uma fileira com retalhos de formato de diamante. Num

instante ela usou todos os retalhos que Suzette havia cortado. Pierre ofereceu mais

alguns pedaços preciosos de tecido para que Jesse continuasse trabalhando. Ela os

acrescentou à colcha.

Conforme a colcha ia aumentando, o espírito de Jesse ia-se elevando. Ela cantava

canções de ninar para o bebê, começando com aquela que aprendera com Cavalga o

Vento:

a wa wa wa

Inila istinma ma

a wa wa wa

Fique quietinha, durma.

Numa manhã fria, ela saiu para ver Estrela Vermelha e ficou surpresa ao perceber

que a saudação da mula já não lhe trazia angústia. Ao contrário, havia um regozijo singelo

ao ouvir o som familiar. As lembranças vinham de roldão, mas Jesse sorria com elas e

acariciava o focinho macio de Estrela.

— Estrela— ela disse alto — Águia que Voa Alto não veio. Eu não consigo encontrar

o caminho sozinha. Pierre me fala da cobiça dos brancos por terra. Eles guerreiam contra

os lakotas, os quais chamam de sioux. Eu me pergunto o que tudo isso trará para nós".

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Com o retrocesso da depressão, a certeza de Jesse de voltar para a sociedade

branca cresceu. Águia que Voa Alto não tinha vindo e ela começou a acreditar que Lobo

Uivante tinha sido o instrumento de Deus para guiá-la ao que agora desejava para o novo

nenê. Jesse costurava, e cozinhava, e orava pedindo respostas. Elas não vieram de uma

vez, mas ela já não sentia mais que suas orações não eram ouvidas.

Jesse começou a pensar na filha como Filha do Vento. Mas quando, finalmente,

compartilhou sua decisão com Pierre, o nome que ela falou não foi Filha do Vento. Jesse

se surpreendeu ao ouvir-se dizendo: — O nome dela será Lisbeth W. King. Lisbeth, de

minha avó".

"... e o W?— Pierre perguntou.

— Só W. Algum dia eu direi a ela. Ela quase teve o nome do vento."

Capítulo 20

E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus.

Tiago 1: 5

Na primavera de 1855, o cabo Gavin Donovan estava de folga quando Pierre Canard

entrou no Forte Kearney, com três mulas carregadas. Sua chegada teria sido pouco

notada, se não fosse pelo fato de ele estar acompanhado por uma mulher e um nenê.

Apoiando-se no canto da cabana de placas de grama do vivandeiro, Donovan assobiou

baixo e mandou uma cusparada de tabaco em direção às mulas do caçador de peles,

antes de dizer:

— Ah, há! Então, não é o Canard? Parece que você teve um bom inverno, francês".

— Este ano não foi tão bom para a caça, muita neve. Foi difícil manter as armadilhas

montadas. Houve muita tempestade."

— Não era bem de peles que eu estava falando— disse o cabo, dando uma olhada

significativa para Jesse e Lisbeth. Fingindo não ouvir, Jesse endireitou-se melhor na sela

e evitou olhar para Donovan.

Canard ignorou a piada maliciosa. Ele segurou Lisbeth enquanto Jesse descia e o

acompanhava até o vivandeiro. Havia umas poucas provisões, fracas, alinhadas na

prateleira da cabana. Moses Shipman reclamou do serviço de transporte ruim que ele

tinha recebido durante todo o inverno e desculpou-se com Pierre pela falta de provisões.

— Se você puder esperar por uma semana, há uma carga chegando por aí. Eu terei

estoque então."

— Uma semana não é problema. Posso esperar.— Virando-se para Jesse, ele falou:

— Se a senhora esperar lá fora, Madame King, eu pedirei para ver o capitão".

A companhia de Donovan, mesmo por uns poucos momentos, causou-lhe repulsa.

— Por favor, Pierre, eu posso falar por mim.— Ao completar a sentença, a figura de

Donovan, em forma de barril, encheu a porta do vivandeiro. Ele abaixou-se

exageradamente, quando Pierre e Jesse, com Lisbeth bem grudada a seu corpo,

passaram apertados pela porta.

Saindo para a luz do sol, Jesse respirou fundo o ar fresco. Na quadra de exercícios

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militares, os soldados estavam saindo aos montes e alinhando-se para os exercícios

matutinos. Jesse seguiu Pierre até o prédio próximo à cabana do vivandeiro, onde ele

pediu para falar com o capitão Woodbury.

O capitão Angus Woodbury havia comido muita torta de amora na noite anterior e

açor dado a noite toda com uma indigestão fortíssima. Quando ouviu que Pierre Canard

havia marcado um encontro com ele, ficou irritado. Ele não havia levado em conta a

Senhora Angus Woodbury, que tinha controlado sua paixão por torta de amora, na noite

anterior, na esperança de — Entrar— No seu vestido novo, no baile dos oficiais.

Libby Rose Barber e Angus Woodbury haviam-se casado no salão da casa grande

que representava a Plantação de Rosewood nos arredores do condado. Enrubescendo

um pouco, como uma dama, ela se havia parabenizado por ter desposado o graduado

mais bonito de West Point, no condado. Ela tinha empacotado seu dote — incluindo o

jogo de chá de porcelana da avó, trazido da Inglaterra — e montado a casa numa casinha

nova, a qual, ela tinha certeza, seria substituída pelo quartel do oficial generoso, num abrir

e fechar de olhos.

Angus não a decepcionou. Ele foi bem-sucedido como militar e rapidamente fora

promovido. O que a decepcionava mesmo, no entanto, era a sua paixão pela fronteira.

Libby tinha arregalado os olhos, fitando-o, sem fala e esmorecida, no dia em que Angus

foi para casa com a notícia de que eles iriam para Nebraska, onde ele iria comandar o

forte Kearney.

— Pense bem nisto, Libby. Nós podemos fazer a diferença lá! Estaremos

protegendo os emigrantes que passam por lá, providenciando um lugar para eles pararem

e refletirem, para se reorientarem e se recuperarem. Nós asseguraremos que estejam a

salvo e faremos a nossa parte no crescimento de nosso país.— Angus estava radiante de

entusiasmo. Libby não estava divertindo-se. Mas Libby Rose Barber era mais esperta do

que parecia. Ela fingiu estar excitada e, querendo dividir seu entusiasmo, encaixotou seu

jogo de chá de porcelana e enviou-o para a fronteira sem discordar. Então ela começou a

cultivar o amor e o compromisso, o que manteria seu casamento durante os cinqüenta

anos de vida militar, sem filhos. Assim ela selou a sua promessa de que seria fiel a Angus

até que a morte o colocasse nos braços de Deus.

Bem no momento em que Canard pediu para ver o capitão, Lisbeth decidiu que

estava com fome e fez um berreiro. Libby Rose ouviu o choro faminto de Lisbeth. Jesse

estava sentada num banco estreito e duro no escritório do comandante, pensando em

onde encontrar um lugar privado em que pudesse amamentar o nenê, quando uma

mulher pequena apareceu pela porta detrás da escrivaninha.

— Ah, um nenê!— ela exclamou encantada. — Posso vê-lo?— E quando Jesse,

concordando, puxou a colcha do rosto de Lisbeth, ela soltou exclamações de agrado e

arrancou o nenê dos braços de Jesse, cobrindo o rosto indígena com beijos. Ela ficou, por

uns momentos, perdida na sua vibração, e então parou um pouco. Carregando ainda

Lisbeth, que havia parado de chorar, parecendo ter perdido a respiração devido às

atenções, Libby exclamou: — Céus! Você deve pensar que eu sou uma tonta! Desculpe-

me. Eu nem mesmo me apresentei. Sou Libby Rose, a esposa do capitão".

Jesse levantou-se e balançou a cabeça, com um sorriso.

— Jesse King, madame. É um prazer conhecê-la.

Page 106: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— E você está aqui com Pierre?— Ela envolveu Lisbeth, que tinha milagrosamente

dormido nos braços estranhos.

Jesse sentiu-se incapaz de explicar. Gaguejou e ficou aliviada ao ver a porta aberta

de novo e o capitão entrar na sala. Pierre entrou atrás dela e os quatro se olharam um ao

outro momentaneamente, antes de o capitão pedir explicações.

— O senhor pediu para ver-me, Senhor Canard?— Seu estomago ainda estava

desarranjado e ele tocou um sino para um oficial e pediu chá.

— Obrigado, senhor. Como o senhor vê, tenho uma companheira de viagem nesta

primavera. A senhora King chegou até mim, no dia anterior à nevasca." Pierre tinha

pedido a Jesse para prestar contas, abreviadamente, satisfazendo a curiosidade de

estranhos. Ele repetiu aquilo que eles tinham combinado contar. — Um guerreiro sioux a

trouxe amarrada e amordaçada para minha cabana. Ele só queria uns cavalos em troca

dela. É lógico que, quando vi que ela era cativa, fiz logo a troca. A criança nasceu bem na

noite em que ela chegou. Graças a Deus, tanto a mãe quanto a criança ficaram bem. Com

o tempo ruim, tantas tempestades, não houve chance de viajarmos esta distância, até

uma semana atrás, quando, finalmente começou o degelo. Eu queria deixá-la a salvo,

antes que os rios se enchessem com o degelo da primavera. Eu disse à senhora King que

ela só encontraria bondade para com ela nessa situação angustiante. Espero que o

senhor seja capaz de ajudá-la a encontrar o seu caminho, conforme o desejo de Deus.

Enquanto Pierre falava, Jesse olhava do capitão para sua esposa. A expressão de

Libby era ora de horror, ora de compaixão. Ela deu outro beijo no rosto da pequena e

sorriu carinhosamente para Jesse. Evidentemente, isto era um problema para mulher

resolver.

— Querido Angus— Libby falou em voz baixa — como sempre, eu acato seu desejo,

nas questões militares...— Então seus olhos brilharam e parecia que ela se enchia de

vida. — Mas Angus querido, nós temos que ajudar esta pobre mulher! Olha este rostinho

precioso. Nossa, quando eu penso no que elas passaram... Nós precisamos ajudá-la.

Angus, o que podemos fazer?" Claramente, Libby Rose tinha colocado Jesse King sob

suas asas e pretendia que ela ficasse ali até que, com certeza, ela e o nenê estivessem a

salvo.

Angus pensou em suas opções cuidadosamente. Libby Rose não teve paciência de

esperá-lo pensar. Ela achou que era necessário apressar-se.

— Pense bem, Angus, se fosse eu — se eu tivesse sido pega pelos índios — o que

seria de mim, sendo levada aos cuidados de alguns oficiais militares! Como você gostaria

que eu fosse tratada, Angus?"

A última coisa em que Angus queria pensar era em sua Libby Rose nas mãos dos

sioux. Ele se apressou em falar, para que essa imagem saísse de sua cabeça:

— Senhora King, nós faremos tudo o que os militares puderem fazer para localizar

sua família e levá-la de volta a ela. Por favor, dê-me o endereço deles. Nós enviaremos

um comunicado imediatamente. E enquanto a senhora arruma tudo para voltar para casa,

receberá abrigo....".

A questão de abrigo era difícil. Os poucos alojamentos de madeira estavam todos

ocupados por oficiais ou homens comissionados, pelo vivandeiro e pelo professor.

Somente construções toscas e úmidas completavam o pequeno quadro de construções

Page 107: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

que cercavam a quadra de exercícios militares com seu ponto central, o mastro da

bandeira. Mal havia quartos para aqueles que prestavam serviços regulares para o forte.

Acrescentar um convidado não seria uma tarefa fácil.

Jesse quebrou o silêncio e resolveu a dificuldade. Ela também fechou seu passado e

completou a separação de sua família em Illinois, que havia começado no dia em que fora

levada por Cavalga o Vento.

— Verdade seja dita, capitão, eu não tenho família. Pelo menos, ninguém que me

recebesse em casa, agora.

O capitão Woodbury limpou a garganta. O espectro das experiências da pobre

mulher com os selvagens aflorou e forçou-o a tomar uma atitude imediata para protegê-la.

— Senhora King— Woodbury disse baixo — Deus não permita que qualquer pessoa

que eu ame passe os maus pedaços que a senhora passou. Este governo tem um

juramento de proteger seus cidadãos e, como seu representante, eu ofereço à senhora

tudo o que, em meu poder, possa ajudá-la a conseguir seu lugar de direito em nossa

sociedade."

Foi um discurso bonito, mas ainda o capitão não tinha idéia de como ajudá-la. Libby

o salvou.

— Angus.. .talvez ela pudesse trabalhar aqui no forte. Os homens têm reclamado

que não há lavadeiras suficientes e, com a chegada dos soldados da cavalaria no

outono..."

Jesse falou rapidamente:

— Eu estaria grata por qualquer serviço, senhor. Seus olhos cinza, calmos,

encontraram os do capitão. — O Senhor tem-me abençoado com boa saúde e uma

constituição forte. Parece que ele declarou que eu teria de fazer meu próprio caminho no

mundo. Eu não tenho medo de trabalho duro, se ele me prover os meios para um lar para

minha filha.

A menina em questão acordou e, sem nenhum aviso, começou a berrar de novo.

Libby não conseguiu aquietá-la desta vez e, com relutância, devolveu-a para a mãe,

depois introduziu Jesse em sua própria sala de estar para maior privacidade.

Quando as duas mulheres ficaram sozinhas, Libby mostrou-se calorosa e

preocupada.

— Os quartos das lavadeiras são úmidos no momento, mas Angus tem planos de

reconstruí-los o mais rápido possível. A maioria das outras lavadeiras são esposas de

homens alistados. Elas não são tão rudes ou indesejáveis e algumas têm filhos também.

Eu acho que você estará bem."

— Estou agradecida por sua ajuda, Senhora Woodbury.— Jesse deu uma respirada

funda. — Mas a maior preocupação minha é esta: posso depender da senhora para

ajudar a proteger minha filha? — Olhos cinza e frios encontraram olhos verdes e

brilhantes e se entenderam. Mas Jesse não ficava contente com promessas sem

palavras. — Eu fiquei entre os sioux, como vocês os chamam, por muitos anos. Retornei

para cá contra meu desejo. Mas, após uma longa primavera de orações constantes,

buscando a vontade de Deus, senti que ele tem um plano para nós que não inclui nossa

estada entre o povo. As tensões aumentam a cada dia. Eu sei do poder do governo e do

desejo dos lakotas. Haverá problemas e, pela segurança de Lisbeth, nós não deveríamos

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estar com os lakotas quando as hostilidades explodirem. Eu preciso fazer o melhor pela

vida de Lisbeth, por ela e pelo pai. Então, contra meus próprios desejos, eu vim aqui,

buscando uma vida nova. — Os olhos Jesse não se desviaram de Libby, durante toda a

fala. — A senhora me ajudará a construir uma vida nova, pela segurança do nenê?"

Libby Rose Barber Woodbury esticou-se em todo o seu comprimento — que não ia

além de l,5m. Honestamente, com as mãos juntas, ela disse solenemente:

— Senhora King, eu prometo, neste momento, pela memória de meu amado pai, que

o seu segredo irá para a sepultura comigo— Ela era a figura perfeita de uma criança, no

clímax de uma atuação dramática. Sua promessa parecia genuína, mas foram suas

palavras seguintes que confortaram Jesse verdadeiramente e a capacitaram a confiar

nessa estranha. — A Palavra de Deus diz que o Senhor odeia lábios mentirosos. Senhora

King, eu tento obedecer a Palavra dele, com todo meu ser. Seu segredo está a salvo

comigo."

Jesse acabou de amamentar Lisbeth e foi introduzida mais uma vez à sala do

capitão, onde Pierre Canard e outro soldado esperavam. Woodbury curvou-se

formalmente para Jesse e estendeu a mão. — Eu a saúdo e lhe dou as boas-vindas

oficialmente ao Forte Kearney. O soldado Dennison vai acompanhá-la para seu novo

alojamento e a apresentará a Gilda, a chefe das lavadeiras. Se houver qualquer coisa que

pudermos fazer para ajudá-la a se instalar, por favor, não hesite em trazer-nos suas

necessidades."

Jesse seguiu Pierre e o soldado, passando pelos alojamentos do vivandeiro e pelo

hospital, um prédio baixo e úmido. Num extremo do prédio havia uma porta fechada. O

soldado escancarou-a, revelando o quarto sujo que se tornaria seu novo lar. Ao olhar de

desânimo no rosto de Jesse, o soldado deu umas explicações:

— Não se assuste, senhora. O capitão deu ordens para três de nós limparmos isso

para a senhora e já vamos fazer — e trazer algum móvel também. Não vai ficar com luxo,

mas aconchegante. Úmido não parece muito, mas é fresco no verão e quente no inverno.

E nós vamos construir um lugar novo para a senhora logo, pelo menos é o que a madame

disse". O soldado deu um sorriso largo para Jesse. — E uma coisa que todos nós

aprendemos bem rápido aqui é que ela é pequena, mas quando a madame fala, as coisas

são feitas."

A madame tinha aparentemente falado sobre os novos alojamentos para as

lavadeiras novas. Pierre chegou com suas mulas carregadas e descarregou todas as

coisas de Suzette que ele tinha conseguido convencer Jesse a trazer. Juntos

atravessaram o recinto para levar Estrela Vermelha e a mula do comboio ao estábulo.

Pierre ficaria alguns dias até que os carroções chegassem com provisões novas.

Tendo ajeitado os animais, Jesse e Pierre pararam de novo no vivandeiro, onde ele

insistiu que Jesse o deixasse trocar uma fina pele de castor por várias jardas de chita bem

colorida de marrom, musselina, um pacote novo de agulhas para colchas e vários

pedaços de meia jarda de tecido de algodão de cores diversas.

— Eu vi como o trabalho com agulhas cura você, quando está sozinha— disse

Pierre. — Este é o meu presente para você, pela pequenina.— Jesse aceitou os

presentes, com agradecimentos calorosos.

Quando retornaram, percorrendo a pequena distância para o novo alojamento de

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Jesse, os três soldados responsáveis pela tarefa tinham varrido bem o quarto, colocado

dois catres e uma mesa e posto um prato, uma xícara, uma frigideira e uma chaleira perto

da lareira. Uma cadeira de balanço, com os — Cumprimentos da madame— foi colocada

perto da lareira. Jesse assentou-se nela, agradecida, e balançou Lisbeth antes de deitá-

la, já começando a ressonar, no catre do canto.

Pierre limpou a garganta e virou-se para sair.

— Vou vê-lo com certeza, antes de você...?"

— É claro, eu vou dar uma parada aqui, para ver como vocês estão. Se você quiser,

agora, encontrar esta Gilda, a chefe das lavadeiras, eu fico aqui com a Lisbeth.— Ele

sentiu-se embaraçado no quarto dela e encorajou-a a ir.

Jesse procurou Gilda, que ficou parada, esfregando o colarinho de uma camisa

imunda, sob o vapor de uma panela com água.

— Então, aqui está aquela que está causando toda a reviravolta hoje— foi sua breve

saudação. Jesse hesitou na porta.

— Cadê o nenê?"

— Ela está dormindo. O Senhor Canard disse que cuidaria dela.

— Como você vai trabalhar com um nenê a reboque?— Ela não olhou, não deu uma

pausa em seu ataque ao colarinho.

— Eu consigo."

— Não quero que você espere favores."

— Não espero."

— O fogo precisa ser aceso e estar quente às cinco da manhã. É quando a brigada

enche os tubos. Você sabe como acender um fogo?"

Jesse sorriu, com a ironia da pergunta.

— Eu sei."

— Então, este é o seu trabalho de agora em diante."

Dois dias mais tarde, Pierre Canard tinha trocado suas peles por provisões e ido

para casa. Antes de sair, fechou as mãos de Jesse calorosamente nas suas.

— A costura que a ajudou a não sentir-se sozinha. ..talvez eu devesse ter pedido

para você me ensinar, hein?— Ele limpou a garganta, beijou Jesse na face, esfregou o

cabelo preto e grosso de Lisbeth e saiu rapidamente.

Capítulo 21

Os teus testemunhos são... meus conselheiros.

Salmo 119:24

Com o crescimento de Lisbeth, começando a aprender a andar, Jesse sempre sentia

falta de colocá-la num carregador de bebê, como tinha feito com Duas Mães. Ela tinha

achado isto cruel, no começo da vida entre os lakotas, mas agora apreciava aquela forma

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sensível de manter um nenê longe do perigo. De alguma forma ela conseguia manter

Lisbeth afastada dos perigos da lavanderia. Ela montou um tipo de uma área de brincar,

cercada com uma mistura de galhos e cadeiras quebradas. Mas, quando Lisbeth

começou a subir nas paredes de sua prisão, Jesse desmontou tudo com medo de que

caísse. Então ela amarrou uma corda na cintura de Lisbeth e na sua, ignorando as

caçoadas dos oficiais, que diziam que Lisbeth era o bichinho de estimação de Jesse. De

vez em quando alguém se oferecia para ajudá-la com a criança, mas Jesse sempre

recusava. Ela nunca tinha muita certeza se não confiava nos cuidados de quem se

oferecia ou se simplesmente não podia agüentar ficar com a filha fora da vista. Qualquer

que fosse a razão, Lisbeth cresceu, literalmente, presa às tiras do avental da mãe. Mas,

tão logo cresceu o suficiente para andar com segurança, ela pôde correr livre, provando

ser obediente, mesmo fora da vista da mãe.

A vida no Forte Kearney caiu numa rotina monótona. Às quatro da manhã, Jesse

vestia-se no escuro, prendendo suas tranças grossas em volta da cabeça, sem se

importar com o estilo. Acendendo um foguinho, preparava bolachas e papas quentes para

o café e punha uma tigela pequena perto das chamas para mantê-la aquecida, até que

Lisbeth acordasse. Em poucos momentos, Jesse saía para a lavanderia. Ao entrar,

repetia o processo de acender o fogo, esquentando os tubos grandes de água que eram

enchidos, a cada manhã, pelos homens da cavalaria.

Como estava crescida, Lisbeth podia dar-se ao luxo de dormir e acordar na hora que

quisesse, que geralmente era logo após o nascer do sol. Quando ela tinha sete anos, sua

rotina matinal estava bem estabelecida. Depois de arrumar a cama, ela tomava café,

lavava a xícara e a tigela no balde de água logo fora da porta e seguia os passos da mãe

pelo recinto.

Quando Lisbeth chegava, Jesse sempre parava por um momento, para segurar as

mãos da filha e fazer uma rápida oração pelo dia à frente delas. Esta prática lhes trazia

conforto, pois Jesse entregava sua filha aos cuidados do Senhor, pedia ajuda em seu

serviço e lhe agradecia pelo lar delas. A gratidão dela nunca hesitou, e,

conseqüentemente, Lisbeth nunca se sentiu privada. Parecia que ela não percebia que

sua vida era diferente da vida das outras crianças que tinham família grande no forte.

Jesse sempre se desesperava por mais tempo para gastar com a filha. Ela precisava

de tempo, pensava, para ensinar muitas coisas que uma menina nova precisa saber. Mas

o serviço não acabava e nunca havia tempo para ir além de lições básicas. Lisbeth

aprendeu a ler, falando alto e memorizando uma palavra de cada vez na Bíblia — único

livro delas. Ela aprendeu a cuidar da casa, olhando-a, tarde da noite, varrendo e lavando

suas próprias roupas. Tão logo ficou capaz, a menina tornou-se responsável por várias

tarefas. Ela logo percebia os traços de cansaço no rosto da mãe, ao fim do dia, e com seu

jeito infantil, Lisbeth lutava para aliviar o fardo.

A prática das orações matinais ensinou a Lisbeth a importância da adoração

constante. As rápidas orações que sempre ouvia a mãe enviar aos céus ensinaram-lhe a

dinâmica de uma fé viva. Qualquer que fosse o problema, Jesse sempre levava ao seu

Senhor. Ela parava no meio de uma conversa com Lisbeth para dizer:

— Agora teremos de perguntar ao Senhor sobre isso, Lisbeth— E sem mesmo

inclinar a cabeça dirigia suas palavras ao céu: — Pai, precisamos de tecido para fazer um

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vestido novo para Lisbeth". Ou: — Pai faça o Jimmy ver que ele machuca a Lisbeth

quando não brinca direito. E às vezes: — Pai, nós não precisamos mesmo disso, mas

com certeza gostaríamos de uma nova lâmpada para iluminar nosso quarto à noite".

Lisbeth aprendeu que Deus não era um estranho distante no céu e que ele estava

interessado em seus problemas. Lisbeth aprendeu sobre o Deus que é — Um socorro

sempre presente".

— Nós não temos papai aqui para cuidar de nós— Jesse diria — mas o nosso Pai

do céu sabe disso e cuida de nós, assim, nós só temos de lhe falar e esperar para ver o

que ele acha que precisa ser feito."

Depois do longo dia de labuta com os tubos da lavanderia e ferros de engomar,

Jesse se arrastava de volta para o aposento e se deitava por uns minutinhos. Ela só tinha

quarenta anos, mas estava sentindo-se envelhecida.

Quando Jesse se levantava e começava a preparar o jantar, Lisbeth começava o

seu colar de histórias do dia de aventuras. Ela explorava cada canto do Forte Kearney,

sabia o nome de cada soldado, dava tapinhas no pescoço de todos os cavalos e nunca

reclamava de estar chateada. Jesse sempre agradecia a Deus por ter-lhe dado uma filha

tão capaz de se entreter sozinha e tão capaz de fazer algumas tarefas pedidas a ela. De

fato, parecia que, desde que Lisbeth era um nenê, ela tinha sido uma bênção. Quando

nenê, ela ficava deitada horas, olhando a mãe esforçar-se no serviço, chorando só de

fome. Jesse ouviria os primeiros barulhinhos e olharia para ver dois olhos pretos

seguindo-a pela lavanderia. Vinha também a lembrança de outros olhos pretos que

seguiam cada movimento seu, ansiosos, esperando para ser alimentado.

Após cada jantar, com a luz mais turva da noite, Jesse colocava sua Bíblia na mesa

rústica, abrindo-a em sua passagem preferida,, lendo-a alto. Era um dos poucos

momentos em que podia ser inflexível com Lisbeth.

— Ter as próprias palavras de Deus em um livro á uma coisa estupenda, Lisbeth—

Jesse lembraria sua filha ao primeiro sinal de movimento dela. — Nós precisamos tratá-la

com carinho. Mas o mais importante é obedecer ao que ela diz. Agora, vamos ver o que o

Senhor tem para nós hoje.— Jesse preferia os Salmos e o final de Jó, onde Deus

— Seu papai adorava esta parte da Bíblia— Jesse dizia, e os olhos de Lisbeth

brilhavam com o pensamento de seu pai lendo o mesmo livro que sua mãe segurava.

— Ele nunca aprendeu a ler sozinho— Jesse explicou — mas eu lia para ele todas

as noites. E ele gostava, particularmente dessa parte, de Deus controlando o vento e os

animais selvagens— Então Jesse lia. Ela tomava o cuidado de não ler muito. Não queria

esgotar a atenção da filha, antes preferia que ela desejasse mais e não quisesse parar.

Lisbeth fazia a sua parte, sentando-se quieta, escutando as palavras.

— Não é muito, Senhor— Jesse orava — mas o Senhor prometeu que a sua palavra

não voltaria vazia. Estou fazendo o que posso para compartilhar isto com minha filha. Por

favor, abençoe isto. Coloque no coração dela de tal forma que algum dia, quando ela

precisar, a sua palavra venha confortá-la e guiá-la.

Todo santo dia o programa de Jesse e Lisbeth era o mesmo. Havia poucas

interrupções na rotina da vida. Domingo era o dia em que as duas tinham folga.

Começavam com a igreja. Jesse ficaria embaraçada se sua filha percebesse que não era

a igreja que trazia refrigério à sua alma. Muitos domingos Jesse mal agüentava os

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sermões grandiloqüentes, esperando pelo verdadeiro brilho de sua semana: a

oportunidade para escapar do forte, retornar para a campina e recordar.

Depois dos cultos, elas punham roupas velhas, arreavam Estrela Vermelha e

marchavam a furta-passo pela pradaria. Os muros do forte iam diminuindo à distância e o

espírito de Jesse voava. Dirigindo-se para perto do rio, Lisbeth e Jesse desciam do cavalo

e comiam seu mísero lanche.

Depois do piquenique, as tranças pesadas de Jesse eram soltas e Lisbeth podia

brincar com o cabelo da mãe. Elas colhiam flores, cantavam hinos, andavam ao longo da

margem do rio, conversavam e riam. Na maioria dos domingos, Jesse trazia consigo algo

para emendar ou marcar. Ela ensinava a sua filha, diligentemente, o básico da costura e

emenda. Juntas, elas cortavam os retalhos de uniformes descartados e Lisbeth

alegremente fazia uma colcha de retalhos para sua boneca esgarçada, que ela tanto

amava. Era um modelo simples de "remendo nove" e as costuras ficavam tortas, de forma

que uma ponta ficava mais comprida que a outra, mas Jesse elogiava e marcava o nome

de Lisbeth e a data na beirada.

Enquanto elas faziam o piquenique, cantavam e marcavam, os olhos de Jesse

fitavam o horizonte. As sombras pareciam dançar na relva da campina ao redor delas. Se

Lisbeth as tivesse visto, ficaria com medo, mas Jesse sentia-se confortada. Seu cabelo

comprido caía em suas costas e ela sorvia o ar fresco. Ele deve ter dezenove anos agora,

Jesse pensava, imaginando Águia que Voa Alto caçando com os amigos. O tempo

sempre passava rápido demais. Lisbeth olhava fascinada, sua mãe colocando de novo o

cabelo ao redor da cabeça. Vagarosamente elas andavam a cavalo de volta para o forte,

para começar outra semana de sabão, água e enxágüe, de esfregação e trabalho árduo.

Se Jesse percebia o quanto sua existência era solitária, ela nunca falava. Se Lisbeth

ansiava por um amigo querido, ela nunca falava disso para mãe. Lisbeth começou a

perceber que mãe tinha dois sorrisos. Havia o sorriso gentil, de todos os dias — aquele

que mal aparecia e deixava os olhos cinza solenes. Mas havia outro sorriso que

emoldurava seu rosto com alegria e iluminava algo em seus olhos. Eu só vejo aquele

sorriso aos domingos, Lisbeth pensava, eu queria saber por quê.

Lisbeth sentou-se fora da lavanderia, onde Jesse trabalhava. Suas pernas

balançavam no ar e seus pés pequenos espancavam a terra com raiva, enquanto ela

batia na terra e resmungava para si mesma. Sua mão rechonchuda desafiadoramente

limpava as lágrimas que ela não conseguia segurar.

— Não vou chorar... não vou chorar— ela resmungava para si mesma.

Sentando-se ao lado de Lisbeth, Jesse disse:

— Você voltou cedo. Estava muito quente para jogar?".

Lisbeth negou e virou a cabeça. Mas Jesse já tinha visto as marcas das lágrimas nas

bochechas sujas da filha.

— Por que, Lisbeth?— Jesse falou delicadamente. — O que aconteceu? Você caiu?

Machucou-se?"

Lisbeth dizia que não, balançando a cabeça. Ela abraçou os joelhos e observou os

dedos do pé, esperando a mãe sair. Mas Jesse não desistia assim tão fácil.

— Lisbeth— ela disse, — você precisa dizer-me o que aconteceu".

Veio tudo para fora numa explosão raivosa:

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— Eu odeio Jimmy Callaway. Eu simplesmente o odeio! Ele pensa que é alguma

coisa. Pensa que é melhor do que eu".

Jesse esperou a vozinha controlar-se. Lisbeth continuou:

— Disse que não me queria no time dele. Disse que eu não tenho pai". Lisbeth fixou

os olhos nos de sua mãe. — Ele me chamou de um nome."

Jesse envolveu sua filha em seus braços e falou baixinho:

— Jimmy Callaway é só um menininho, Lisbeth. Ele não sabe nada sobre nós. Você

tem um papa sim, Lisbeth. Mas seu papai, está no céu — só isso".

Lisbeth escorregou dos braços firmes de Jesse:

— Conte sobre ele, mãe. Conta-me sobre meu pai— ela suplicou.

Jesse havia contado dezenas de vezes à filha. Cada vez ela pensava em contar

tudo, mas alguma coisa sempre a segurava. Isso havia passado em sua mente muitas

vezes. Esta criança precisa saber, ela pensava, precisa saber tudo sobre o pai dela. Mas

então ela pensou sobre a palavra mestiça e o ódio geral daqueles que a cercavam, em

relação aos índios. O medo de como seriam tratadas crescia e, de alguma forma, a

precaução vencia e elas teriam mais um dia com Lisbeth pensando que Homer era seu

pai. Jesse pretendia corrigir a lembrança. Ela queria dizer a Lisbeth que seu pai era

Cavalga o Vento, um índio lakota. Mas, de qualquer forma, nunca disse.

— Seu papai foi o homem melhor, o mais gentil, o mais corajoso que eu já

encontrei— Jesse dizia. — Ele tinha cabelo preto, os olhos pretos e ele andava

mancando, engraçado, porque ele tinha machucado sua perna antes de nos

conhecermos. Ele sabia andar a cavalo e caçar."

E Lisbeth repetiu em cadência:

— E ele a amava muito, muito, muito, muito".

— Isso mesmo, docinho— Jesse falou. — Ele me amava muito, muito, muito."

Lisbeth acrescentou:

— E você ficou muito, muito triste quando ele morreu".

— Eu fiquei muito, muito triste por muito, muito tempo— Jesse concordou. — Mas

então, você nasceu, e você se parecia tanto com seu papai, que era como se ele tivesse

voltado para ficar comigo. Nós nos mudamos da casa onde eu havia morado com papai.

E viemos aqui para o Forte Kearney. Deus nos deu um novo lar. Temos muita comida,

roupas limpas para usar e um quarto gostoso. E precisamos agradecer a Deus por suas

bênçãos."

Jesse segurou os ombros de sua filha e fixou os olhos nos dela solenemente:

— Agora você pode voltar para o Jimmy Callaway e contar-lhe sobre o seu papai.

Não tenha vergonha, Lisbeth. E não fuja. Quando as pessoas não entendem, dizem

coisas medíocres. Pode ser que Jimmy não conheça Jesus, como conhecemos. Eu sei

que dói quando as pessoas falam assim, mas, se você pedir a Jesus para ajudá-la, ele a

ajudará a ser boa para Jimmy".

Jesse deu um empurrãozinho em Lisbeth, em direção ao lugar onde as crianças

brincavam, e voltou ao trabalho. Uma vozinha cantou, de volta para ela:

Ele não conhece Jesus

e ele não sabe sobre meu papai,

Então Jimmy Callaway

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não sabe de nada.

Lisbeth escapuliu feliz com sua nova música. Jesse voltou ao trabalho, atacando as

manchas na camisa do cabo Donovan, com energia fora do comum. Ela riu contente com

as amigas e transformou o incidente em uma piada divertida para contar junto aos tubos

cheios de espuma e quentes da lavanderia.

Mas, sob o sorriso e por trás da risada, permanecia um desejo por coragem para

contar a história que não havia sido contada.

Capítulo 22

Em todo o tempo ama o amigo; e na angústia nasce o irmão.

Provérbios 17:17

Foi num dia particularmente monótono, no ano em que Lisbeth estava completando

doze anos, que o passado de Jesse ecoou em Forte Kearney, num carroção de frete,

danificado pelo uso. Jesse tinha ido para fora e estava abanando-se com o avental. O

telhado sobre a porta da lavanderia fazia sombra em seu rosto. Há quase vinte e cinco

anos que ela não o via, mas George Wood ainda dava passos leves quando descia de

seu carroção.

Tirando seu chapéu, já gasto pelo uso, bateu-o no assento do carroção para tirar o

pó. Arrumando o vinco dele cuidadosamente, George pôs novamente o chapéu, abaixou a

aba para proteger os olhos e deu uma olhada em volta, no recinto. Jesse ficou imóvel,

com a ponta do avental suspensa no ar. O reconhecimento, a surpresa e a seguir o

espanto apareceram no rosto de George. Ele caminhou rápido os poucos metros que os

separavam.

— Jesse? Jesse King? É você? É você mesmo?— Então, sem esperar uma

resposta: — Eu não posso acreditar! Depois de tantos anos!"

Jesse estendeu a mão: "George ... George Wood".

Enquanto Jesse ficava sem fala, George falava confusamente e sem parar.

— Jesse... como? Nós procuramos você! Quando vocês não nos alcançaram

naquela noite, nós voltamos. Encontramos — encontramos Homer — os cavalos — mas

você tinha ido. Vinnie quase morreu de preocupação. Não havia nenhum sinal de seu

rasto depois daquela tempestade. Como você... Onde você...?"

Bem nessa hora Lisbeth veio correndo e agarrou a mão de Jesse. Quando Jesse

apresentou sua filha, George olhou para baixo, para o cabelo preto da menina pequena.

O cabelo ondulado caía até o meio das costas. A pele dela estava queimada pelo sol

quente de Nebraska. Em segundos ele calculou a idade dela e preencheu os detalhes

sobre o que tinha acontecido com Jesse King depois de eles terem desistido da busca.

Ele sentiu-se um infeliz.

— Ah, Jesse — sinto muito. Nós nunca devíamos ter desistido. Nós tínhamos de ter

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procurado até..."

Jesse o interrompeu:

— O Senhor sempre sustenta por ele mesmo, George— Seus olhos cinza fitaram

firmemente os dele ao tentar enviar uma mensagem sem palavras. Pela primeira vez ela

foi culpada por uma decepção deliberada. — Depois que o pai de Lisbeth morreu, o

Senhor nos proveu. Nós temos sido bem cuidadas, por pessoas boas, e não tenho

reclamação. Você não precisa sentir-se culpado, George. Deus usou todas as coisas para

o meu próprio bem."

O entendimento brilhou nos olhos de George. Ele mudou de assunto.

— Eu desejaria mesmo que Vinnie pudesse estar aqui pra ver isso. Ela queria vir

comigo, mas eu disse que há muitos problemas com índios. Isto convenceu-a a ficar. Nós

temos uma propriedade rural no Vale Willamette, Jesse. Ela jamais acreditará quando eu

disser que vi Jesse King."

— Você pode jantar conosco?— Jesse perguntou. — Nosso quartinho é bem ali.

Não vai ser nada especial, mas eu gostaria muito de ter notícias de todos."

— O senhor conhecia meu papai?— Lisbeth interrompeu.

Jesse abaixou os olhos para a filha e falou, antes que George tivesse chance de

responder:

— Não, Lisbeth, o Senhor Wood nunca teve a chance de conhecer papai, mas ele

virá jantar esta noite e poderemos conversar melhor então". Jesse olhou para George

esperançosa e ele assentiu com a cabeça.

Lisbeth saiu correndo, feliz, antecipando o jantar com um convidado. Isso era novo.

Elas nunca tinham tido um amigo para jantar. Elas nunca tinham tido um amigo, na

verdade. Lisbeth gostou da idéia.

Quando ela não podia mais ouvir, George disse:

— Vou dar uma olhada em minha parelha, Jesse. Quando você tiver acabado o

serviço, avise-me. Estarei no vivandeiro algum tempo. E Jesse — ele acrescentou, — Seu

segredo está bem guardado comigo".

— Obrigada, George. Nós jantamos mais ou menos às seis horas."

O jantar tinha de ser simples, mas Jesse fez o melhor que pôde. Pôs uma toalha na

mesa rústica. Lisbeth havia colhido algumas flores do campo, que serviram para um

arranjo no centro. George dominou a conversa durante o jantar. Impelido por perguntas

sem fim, ele ria e fazia piadas, como se a viagem para o Oeste tivesse sido uma aventura

extremamente alegre. Lavínia estava bem de saúde; as crianças, bem crescidas. Tinha

havido uma epidemia de febre e a pequena Esther quase morrera.

— Mas o Senhor a curou— disse George. — Parece que o Senhor tem sempre nos

tirado das dificuldades."

— É — Jesse concordou, — Algumas vezes de formas que nunca esperamos, mas

Ele tem sempre nos curado".

George estava voltando para o Leste para tentar convencer o cunhado e a irmã de

Lavínia a se juntar a eles no Oregon. Ele contou as vantagens do novo território e Jesse

lembrou-se dos discursos persuasivos do Dr. Whitman.

— Você ficou sabendo do Dr. Whitman?— perguntou George. Quando Jesse disse

que não, ele lhe contou a história triste. Dr. Whitman, sua esposa tão boa e seus

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ajudantes tinham sido mortos pelos índios, os quais tinham ido servir. George finalizou a

história: — Que perda... vidas tão jovens acabadas daquela maneira!".

— As vidas que servem a Deus nunca são perdidas, George— Jesse lembrou. —

Porque agora vemos como por espelho, obscuramente?'

Sentindo-se desconfortável com a possibilidade de uma discussão teológica, George

levantou-se para sair.

— Jesse— ele disse, estendendo suas mãos para segurar as dela — quando Vinnie

souber que você sobreviveu, provavelmente ouviremos o — Aleluia dela por todo o

Oregon. Você tem planos?".

— Somente o plano de criar minha filha, George— foi a sua resposta.

— Eu vou passar de volta por aqui, em poucas semanas, como resto da família. Por

que não fazemos uma coisa melhor do que só contar a Vinnie sobre você? Por que você

e Lisbeth não vêm conosco para o Oeste? Você pode ter o seu lar, lá. Vai ter amigos.

Você era mais ligada a Vinnie do que a própria irmã dela. Vocês não vão ser só amigas,

serão uma família. Que você acha?"

Quando Jesse hesitou, George apressou-se:

— Bem, pense sobre isso. Não precisa responder-me agora, mas quando eu passar

de volta, vou procurá-la esperando que já esteja com sua mala pronta e o chapéu na

cabeça".

— Não sei, George, respondo quando passar de volta." George saiu, Lisbeth foi para

a cama e Jesse ficou acordada na cama até depois da meia-noite, pensando na

possibilidade de juntar-se aos amigos no território de Oregon.

O que devo fazer, Senhor? ela orou. Nas primeiras horas da manhã, Jesse sentiu

que já tinha a resposta. A campina havia reivindicado a vida do homem que ela tinha

amado, e houve tempo em que, amargurada, ela havia odiado essa terra. Mas diante da

possibilidade de deixar esse lugar para trás, Jesse surpreendeu-se ao ver que ela amava

a terra ao seu redor. Era cruel, algumas vezes, quando vinham as nevascas ou o sol

quente queimando tudo. Mesmo assim, havia algo nesta paisagem que prendia seu

coração. Era sua pátria adotada, mas era também seu lar, e ela não desejava largar esse

lugar pelas florestas do Noroeste.

Só algum tempo depois é que Jesse percebeu que o convite de George tivera um

papel importante na maior mudança que viria a seguir em sua vida. Apesar de estar

determinada a nunca sair da campina, ela chegou à conclusão de que, como Lisbeth

crescera, havia necessidade de criar vínculos. Elas tinham necessidade de uma vida mais

estruturada do que aquela no forte. A possibilidade de mudanças foi plantada, de forma

que nas semanas seguintes Jesse convenceu-se de que Deus tinha um novo plano para

ela e para sua filha.

Certa manhã, não muito depois da partida de George, Gilda entrou correndo na

lavanderia, com notícias de um confronto entre os sioux e um grupo de reconhecimento.

Tinha havido vítimas, principalmente entre — Os sioux ladrões— mas um tenente jovem

havia sido gravemente ferido.

— O cabo Donovan acabou de entrar com os prisioneiros. Diz que vai voltar e limpar

o resto dos encrenqueiros— Gilda deixou escapar.

Jesse deu uma olhada pela porta da lavanderia, bem quando os soldados,

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conduzindo o grupo de prisioneiros, passavam ali perto. Atrás, meio separada do grupo

de guerreiros de idade, vinha uma índia de meia idade, com um vestido de pele de alce

esfarrapado. Dando uma olhadela nos brancos, ela escondia seu rosto com uma coberta,

na qual se enrolava.

Jesse estava pondo lençóis no tanque de água quente à sua frente. Quando viu a

índia, largou os lençóis rapidamente e pegou o avental para enxugar os olhos. A índia

tinha abaixado a coberta, revelando um rosto outrora lindo, desfigurado por uma feia

cicatriz no cavalete do nariz.

Jesse ofegou, não acreditando, e imediatamente estava do lado de fora. — Flor do

Campo— ela gritou em lakota. Abriu caminho à força, empurrando um soldado, e tocou os

ombros de uma índia. Virando-se, a índia gaguejou: — Caminhando nas Chamas! É

você?!".

O soldado que Jesse tinha empurrado as interrompeu:

— Senhora King... a senhora conhece essa índia?— ele a questionou, com

descrédito, forçando seu corpanzil entre as duas mulheres.

Jesse percebeu que ela precisava explicar-se de uma forma que protegesse Lisbeth.

— Ah, conheço, cabo Donovan... conheço. Anos atrás, quando estávamos cruzando

a campina, meu marido e eu sofremos um acidente. Fomos atropelados por búfalos e

nosso carroção foi destruído. Um grupo de caçadores ajudou-me de uma forma incomum.

Flor do Campo era do bando deles. Ela foi muito bondosa para mim. De fato, nunca a

esqueci."

Donovan sorriu. Não era um sorriso agradável.

— Flor do Campo— ele repetiu o nome. — Com certeza ela não tem muito de uma

flor agora, não é? E só uma índia velha, marcada por uma cicatriz, seguindo de perto

alguns índios surpreendidos por nós. E é um grupo ordinário, esse." Donovan empurrou

um dos guerreiros. Ele foi andando, tomando cuidado para esconder a raiva flamejante

em seus olhos pretos. O valente olhou para o chão e resmungou: — Você, cachorro

branco — eu vou alimentar as águias com. você".

Donovan virou-se para o rastreador pawnee que tinha acompanhado os soldados na

missão deles:

— O que ele diz?"

Jesse interrompeu, antes que o pawnee pudesse responder:

— Ele diz que ele deseja ver o líder dos homens valentes que lutaram hoje".

Donovan ficou admirado, mas, quando o pawnee ficou quieto, Jesse explicou:

— Nós ficamos entre os lakotas o tempo suficiente para eu aprender um pouco de

sua língua e costumes. Eles valorizam os corajosos acima de tudo. Vocês devem tê-lo

impressionado, como oponentes valiosos, para que ele quisesse ver seu líder. É um sinal

de grande respeito". Jesse orou para que Donovan acreditasse nela e que Deus

perdoasse suas mentiras.

Donovan virou-se para seu rastreador pawnee:

— Ela está dizendo a verdade?".

O pawnee olhou bastante para Jesse e então para Flor do Campo. Ele encarou seu

inimigo. Finalmente, disse:

— Ela fala verdade. O povo valoriza a coragem".

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Donovan olhou para Jesse de novo. Ele olhou firme os mocassins dela e rabiscou o

chão com seu rebenque, enquanto se encolhia.

— Bem, agora diga a esses sujeitos para comportarem-se bem e não causarem

nenhum problema e pode ser que eles encontrem o capitão hoje."

Jesse virou-se para os guerreiros e, pela primeira vez, reconheceu Fala Muito, o pai

de Flor do Campo. Ela se dirigiu a ele vagarosamente. Fazia anos que ela não falava

mais lakota. As palavras vinham com dificuldade.

— Este branco cachorro diz que você precisa ter paciência. Ele é um arrogante que

não presta para nada, mas vou tentar encontrar um jeito de conseguir que o líder venha

ver vocês logo. O capitão é um homem justo."

Enquanto falava isso, Jesse pensava em como iria cumprir sua promessa. Como

uma lavadeira esperava passar para trás um cabo e ter alguma influência sobre o

capitão?

Fala Muito permaneceu sem expressão, mas Jesse percebeu um olhar de gratidão.

Donovan balançou a cabeça, concordando com a fala dela, e sorriu

confidencialmente. Flor do Campo baixou sua cabeça para evitar rir da tolice dele.

— Bem— disse Donovan, batendo na palma da mão com seu rebenque. — Agora

vamos.— Sua unidade conduziu os índios pelo recinto.

— Cabo— Jesse pediu, — A mulher não poderia ficar comigo?".

— Senhora King— Donovan zombou, — Esses aqui são prisioneiros do governo dos

Estados Unidos. Eu não posso entregá-los pra qualquer um que sentir dó deles". Fez uma

pausa e examinou cuidadosamente Jesse. — Além disto, eu não sei quanto você foi

amiga deles antes. Como eu poderia saber que você não vai ajudá-los a escapar?"

Jesse ficou vermelha com o insulto nas entrelinhas, mas controlou-se.

— É lógico que, como um cavalheiro, você não iria querer que uma mulher sozinha

ficasse trancada com homens."

Os lábios de Donovan se apertaram:

— Madame, é de índios que estamos falando. Eu não acho que haverá problema em

deixar todos eles juntos. É diferente das pessoas brancas que têm moral e tudo mais".

Donovan divertiu-se ao ver Jesse ficar vermelha de raiva novamente. A curiosidade dele

estava excitada. A primavera fora entediante e ele tinha gostado de lutar contra os índios.

Agora, o relacionamento dessa mulher com os sioux acrescentava uma nova dimensão

ao caso todo. As coisas estavam melhorando.

Donovan encarou os mocassins de Jesse novamente. Involuntariamente, ela puxou

os dedos do pé para trás, embaixo das saias.

— Bom-dia, madame— disse a Jesse, tocando a aba do boné com seu rebenque e

dando as costas rotundas a ela. Jesse viu Flor do Campo cobrir o rosto com cicatriz dos

olhos curiosos dos moradores do forte, que se juntaram para ver os índios. Fala Muito

andava com orgulho, com seus cabelos compridos e grisalhos caindo sobre os ombros e

com a cabeça levantada.

Jesse voltou ao trabalho, silenciando as perguntas de Lisbeth, com uma severidade

incomum, enquanto pensava em como poderia ajudar os amigos. Ela pensou e orou o

resto do dia enquanto trabalhava lá. Não houve resposta. Ela continuou a preocupar-se e

a pensar, durante o jantar com Lisbeth, que percebeu que sua mãe estava mais quieta do

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que nunca.

Quando o sol se pôs, Jesse acomodou-se em sua cadeira de balanço à beira da

lareira, pegou a colcha de retalhos e orou desesperadamente por sabedoria para

raciocinar e descobrir um meio de ajudar Fala Muito e Flor do Campo. E Senhor, ela

acrescentou,dê-me tempo para perguntar sobre Águia que Voa Alto—Senhor, eu preciso

saber.

— Mamãe, como a índia ficou com aquela cicatriz no rosto?— A voz de Lisbeth

interrompeu os pensamentos de Jesse.

— Eu conto num outro dia.

— Mamãe, a senhora conhece o outro, de cabelo comprido, cinza?"

— Conheço."

— Como a senhora aprendeu a falar como eles?"

Não houve resposta. Lisbeth nunca tinha sido tão excluída dos pensamentos de

Jesse. Confusa e um pouco brava, ela preparou-se, fazendo barulho, para dormir. Ela se

irritou, suspirou, mexeu-se rápida e ruidosamente no quarto pequeno, finalmente

acomodou-se em seu catre e, para surpresa de Jesse, caiu imediatamente no sono.

Tão logo viu que Lisbeth estava dormindo, Jesse pulou e foi até a porta. O horizonte

estava desvanecendo-se num rosa-pálido e, acima da risca do pôr-do-sol, no céu azul-

violeta, brilhava uma estrela e a lua crescente. O gigante do céu dorme... mas veja, ele

abriu um olho para nos espiar. Jesse encostou-se na porta de seu quarto ao lembrar-se

de como Cavalga o Vento, certa vez, descrevera a lua a Duas Mães antes daquele dia

horrível em que ele se tornara Águia que Voa Alto.

As lembranças de sua outra vida a assaltaram, confundindo seus pensamentos e

tornando difícil para ela planejar. Ela ansiou pelo fim da hostilidade entre brancos e índios.

Pensou em como ajudar os velhos amigos e orou por uma forma de apresentar Lisbeth à

sua verdadeira herança, sem prejudicar o futuro dela.

Respirando fundo mais uma vez diante da impossibilidade disso tudo, Jesse virou-se

em direção ao fogo fraco, sentou-se de novo na cadeira que rangia e pegou seu cesto de

costura. Seus dedos apertaram a costura com poucos retalhos, enquanto pensava na

situação difícil em que se encontrava. Pegando um retalho no chão, ao lado da cesta, ela

dobrou e cortou na chita um triângulo pequeno já em seu colo. A monotonia de costurar

logo a acalmou, fazendo-a avaliar sua situação, planejando sobre como proceder quando

a luz do dia chegasse.

Os últimos pontos na faixa foram dados e Jesse se abaixara para dobrar a faixa de

retalhos e colocá-la de volta na cesta, quando Flor do Campo precipitou-se pela porta.

Soluçando, a mulher lançou-se aos pés de Jesse. O som de botas, batendo fortemente na

terra logo do outro lado da porta, precedeu o aparecimento de Donovan. Seu corpo

grande preencheu o espaço da porta. Vozes bêbadas dos soldados que o

acompanhavam acrescentaram-se ao alarido.

Jesse levantou-se, sua saia grande escondendo parte de Flor do Campo. Ela tinha

compreendido o suficiente pelos gritos ofegantes deles.

Calmamente, Jesse abaixou-se para pegar os retalhos que haviam caído no chão.

Mãos firmes escondiam o coração disparado. Lisbeth tinha acordado e estava deitada, de

olhos arregalados, fitando por sobre a coberta. Seus olhos negros moviam-se de Flor do

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Campo para Donovan e então para a mãe.

Jesse pegou os retalhos devagarinho. Um brilho de aço refletiu na luz da fogueira.

Ela pegou sua tesoura e ficou ereta para encarar Donovan. No seu lado, um pulso

apertava a tesoura. Donovan podia ver as juntas, que ficaram brancas, de apertar a

tesoura, apontando as lâminas para cima como uma arma. Sua voz foi firme.

— Cabo Donovan. Há algum problema?"

Os bêbados atrás dele de repente se aquietaram e a voz retumbante do cabo

arrastou-se numa resposta:

— O único problema aqui é essa índia... ela que não sabe seu lugar no mundo... e

que corre quando a gente só quer ser amigo".

Flor do Campo tremia e murmurava imprecações entre a respiração. Os olhos cinza

de Jesse fitavam friamente cada homem parado atrás de Donovan. Finalmente, após um

longo silêncio, os olhos dela encontráramos dele:

— Talvez ela tenha visto as tentativas de amizade de homens brancos no passado.

Talvez ela não queira ser amiga de vocês".

Donovan arrotou alto, cocou debaixo do braço e xingou uma resposta. Jesse estava

ciente do movimento de Lisbeth, que pôs o pé para cima. A criança se encolheu, como

uma bola apertada embaixo das cobertas, e cobriu o rosto. Os soluços de Flor do Campo

pararam e ela se sentou, ouvindo.

— Esta mulher é prisioneira do exército?— Jesse perguntou.

— Prisioneira?... Não, não é prisioneira. Ela só veio atrás, quando trouxemos para

cá esse bando de selvagens sem valor."

— Então, ela está livre para ir, se quiser? É lógico que o Exército não pede que

vocês prendam uma mulher inocente. Com certeza o capitão não gostaria de que vocês a

detivessem, contra a vontade dela.— Jesse mencionou o nome do capitão

deliberadamente. Donovan esticou o beiço e olhou de soslaio para ela.

— Por que você se importa com uma índia velha e suja? Não há prêmio por pegar

ela nem... rosto cheio de cicatriz. Você quer, pode ficar com ela.— Ele virou seu corpanzil

e disse alto: — Eu não dou a mínima por uma índia velha e suja mesmo". Os homens com

Donovan começaram a se dispersar.

O coração de Jesse estava disparado e ela orou para que Donovan não visse suas

mãos tremendo, quando ela apertou a tesoura mais forte. Ela permaneceu em pé,

olhando o cabo, ouvindo o que ele tentava dizer a si mesmo, fora do confronto. A idéia de

falar dele ao capitão tinha funcionado. Ele podia estar bêbado, mas não era tonto e sabia

que seu futuro no Exército dependia da opinião de seu oficial comandante.

Jesse terminou suas divagações:

— Boa-noite, cabo. Obrigada por ter trazido Flor do Campo para mim. Eu cuidarei

para que ela tenha um lugar confortável para descansar esta noite, e com certeza

encontrarei o senhor de manhã, no escritório do comandante, para decidir sobre o futuro

dela. O senhor será recompensado por seu interesse em tentar melhorar as relações com

os índios— Enquanto falava, Jesse deu um passo atrás, segurou a porta pesada de seu

quarto e ameaçou empurrá-la e fechar na cara de Donovan. Ele retirou-se com uma

imprecação evasiva aos seus homens. Jesse fechou a porta, encostando-se nela,

tremendo.

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O ar do quarto estava viciado, cheio do mau cheiro do corpo sujo de Donovan e do

licor que ele tinha espirrado nele mesmo durante a festa noturna dos bêbados.

Lisbeth assentou-se ereta, abaixou a coberta e encarou Flor do Campo. A mulher

olhou também. Então, entendendo, seus olhos brilharam. Ela olhou calorosamente

enquanto dizia com delicadeza:

— Esta tem os olhos do pai dela".

Jesse entendeu, mas estava lerda para responder.

— Sim, os olhos do pai. E quando ela ri, algumas vezes penso que estou ouvindo

Águia que Voa Alto."

Lisbeth começou a falar, mas Jesse a interrompeu:

— Lisbeth— ela ordenou, — você precisa ficar quieta agora. Flor do Campo e eu

precisamos conversar sobre o que precisa ser feito. Não posso traduzir para você. Faz

muito tempo e não consigo lembrar-me direito das palavras. Vai ser difícil eu conversar e

você precisa ficar quieta".

Jesse agachou-se no chão, ao lado de Flor do Campo, e sussurrou:

— Preciso saber, Flor do Campo. Conte-me sobre Águia que Voa Alto. Por que ele

não me procurou? O que aconteceu...".

Flor do Campo interrompeu:

— Quando Velha acordou e deu o alarme, a tempestade já tinha começado".

Jesse vibrou:

— Velha não morrera!".

Flor do Campo continuou a falar: "Águia que Voa Alto e os outros caçadores ficaram

presos com a nevasca. Demorou vários dias para eles voltarem. Mesmo assim, Águia que

Voa Alto montou num potro descansado e jurou trazê-la de volta. A neve estava tão alta

no Portal do Búfalo que seu potro não conseguiu atravessar. Ele tentou várias vezes. Por

fim, os anciões o convenceram, dizendo que, tão logo a neve baixasse, um grupo de

busca dos nossos melhores rastreadores seria enviado".

Flor do Campo parou e sorriu implacavelmente:

— Muitos dias depois, a neve derreteu, descobrindo Vento Uivante. Pensamos que

ele tinha matado você e Estrela Vermelha.. Não havia trilha para seguir".

Jesse implorou por mais:

— Conte-me de Águia que Voa Alto. Conte-me do meu filho". Lisbeth, com os braços

em torno dos joelhos, olhava as duas mulheres. Ela nunca tinha ouvido esse tom de voz

de sua mãe. Ela parecia feliz, e triste, e quase desesperada, tudo de uma vez. O que elas

poderiam estar conversando?

— Quando ele pensou que você estivesse perdida, quando nós pensamos que

estivesse perdida, pranteamos muito, Caminhando nas Chamas. Águia que Voa Alto

cortou suas tranças e cantou a música de lamento.

Jesse, ansiosamente, perguntou mais:

— E agora, onde ele está? Ele estava na batalha? Ele luta contra os soldados?".

Flor do Campo ergueu a mão para deter a enxurrada de perguntas:

— Ele é um caçador, não um guerreiro. Mas agora os brancos tomam mais e mais.

Muitos caçadores tornaram-se guerreiros. Águia que Voa Alto se lembra de que uma

mulher branca foi sua mãe. É difícil para ele".

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Com um olhar para Lisbeth, Flor do Campo continuou:

— Eu vou contar a ele de sua irmã e de Caminhando nas Chamas. Você pode

contar a ela— Flor do Campo disse, mostrando Lisbeth com um gesto de cabeça — que

Águia que Voa Alto, irmão dela, tornou-se um grande caçador, como o pai dela".

Jesse cochichou relutantemente:

— Minha amiga, eu não contei que ela é uma de seu povo— Ela apressou-se a

defender-se: — Nós estamos entre o brancos agora e eles não seriam bons para ela, se

soubessem".

Os olhos castanho-claros de Flor do Campo piscaram rapidamente enquanto

replicava:

— Não há vergonha em ser filha de Cavalga o Vento, não há vergonha em ser irmã

de Águia que Voa Alto".

Jesse gaguejou:

— Eu sei, mas...— Então tentou dar uma desculpa: — Eu conto a ela sobre o pai. Eu

não menciono o povo, só isso".

Flor do Campo espantou-se:

— Ela pensa que o pai era branco? Ela pensa que o pai era aquele homem com

quem você estava antes de vir para nós?".

Jesse concordou.

— Então você pegou as lembranças que pertencem a Cavalga o Vento e as deu a

um homem branco sem valor?"

As emoções com as quais Jesse tinha lutado por anos, emoções que ela pensava há

muito estarem esquecidas, brotaram. Lembranças que ela havia orado para que Deus

levasse jorraram no quarto e Jesse as empurrou de volta, uma a uma, para os cubículos

pequenos reservados ao passado em sua mente.

Jesse queria perguntar mais. Queria saber sobre Velha. Mas Lisbeth tinha ficado

quieta o máximo que podia.

— Mamãe, como se fala o nome dela?"

Grata pela mudança de assunto, Jesse ajudou Lisbeth a pronunciar umas palavras

lakotas. Então ela pronunciou o nome Lisbeth para Flor do Campo, que sorriu e ofereceu

a mão à menina enquanto dizia:

— Lisbeth".

— Mamãe— Lisbeth perguntou, — A senhora acha que o capitão vai ajudar a Flor

do Campo? Ele vai soltar os amigos dela?".

— O capitão é um homem bom, Lisbeth, mas Fala Muito e os outros valentes

estavam lutando contra os soldados. Eu tenho medo de que ele tenha de puni-los. Flor do

Campo não fez nada errado, mas ela jamais deixará seu pai sozinho aqui."

Enquanto falava, Jesse pegou sua agulhinha de fazer colchas da cesta de costura e

começou a tentar remendar o rasgo na roupa de Flor do Campo. Não adiantou. A

agulhinha não furava a pele de veado. Jesse puxou seu único vestido, além do que vestia,

do gancho onde estava dependurado atrás da porta e ofereceu-o à amiga. Flor do Campo

negou com a cabeça, mas Jesse insistiu.

— Foi seu vestido que eu usei, quando me tornei esposa de Cavalga o Vento. Agora

eu retribuo a bondade."

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Flor do Campo hesitou entre seu horror a qualquer coisa dos brancos, que vinha da

relação em sua mente com a crueldade, e a bondade desta mulher que tinha sido sua

amiga.

A necessidade venceu. Ela aceitou o vestido e vestiu desajeitada mente, tendo

dificuldades com os fechamentos cheios de detalhes, murmurando contra as saias floridas

e as mangas compridas.

Quando ela estava vestida, as duas mulheres pararam, olhando uma para a outra.

Flor do Campo falou primeiro:

— O homem de quem você fala — esse capitão — se este homem fosse bom, ele

não estaria defendendo as pessoas que tomam as terras onde nós caçamos. Ele saberia

que o Grande Mistério nos deu a terra. Ele não enviaria seus homens para matar

mulheres e crianças. Eu vou até Fala Muito, agora. Eles o puseram, junto com os outros

atrás de uma porta que não se abrirá. Eu preciso encontrar um jeito de tirá-los de lá, para

podermos pegar nosso caminho de volta para o povo— Ela estava fora da porta e tinha

desaparecido na escuridão, antes que Jesse pudesse impedi-la.

Jesse não teve tempo de orar ou raciocinar sobre isto, mas ela sabia o que faria.

Pegando sua própria colcha, ela a abriu inteira e colocou-a em sua cama.

— Lisbeth— ela disse, — vista-se. Recolha o que você puder. Enrole nesta colcha.

Só o suficiente para caber na colcha, agora. E não se esqueça de minha Bíblia. Espere

até eu voltar".

Alguma coisa nova na voz da mãe evitou a explosão de perguntas infantis. A mãe

estava muito séria esta noite e Lisbeth assentiu com a cabeça, obediente mente, e

escorregou para fora da cama, já começando a se vestir, ainda quando Jesse dava o

primeiro passo para fora.

Os pés de Jesse nos mocassins davam passos silenciosos ao longo dos

alojamentos das lavadeiras. Sentindo o caminho na escuridão, ela dava passos

cuidadosos em direção ao depósito, onde sabia que haviam trancado Fala Muito e os

outros guerreiros.

Não havia sinal de Flor do Campo, mas ela sabia que a filha não estaria longe da

prisão do pai. Ela orou para que a bebedeira de Donovan prevenisse qualquer outro

encontro. O homem fora barulhento, vil e excessivamente confiante. Com certeza ele não

estaria esperando uma tentativa de fuga nesta noite.

Jesse quase tropeçou num corpo dormindo, do guarda que deveria estar a serviço.

Procurando no bolso de seu avental, ela encontrou a chave e sorriu, implacavelmente

ante a ironia de que, entre todas as mulheres do forte, Gilda a tivesse escolhido para

guardá-la.

— Eu sei que você não quer a responsabilidade— Gilda disse — mas o capitão

disse que alguém deveria ter uma extra. E você é a que mais depende deste lugar. Então,

é isso. Pegue a chave e não a perca".

A que mais depende, Jesse pensou ao pegar na porta para destrancá-la. O guarda

que dormia roncou e seu coração disparou. Mas ele somente cocou o nariz e se ajeitou,

roncando alto.

Espiando do canto do depósito, Jesse viu Flor do Campo. Quando a porta do

depósito abriu-se gradualmente para fora, uma mão forte agarrou a garganta de Jesse e

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empurrou-a abruptamente para dentro. Outra mão prendeu sua garganta e começou a

apertar. Jesse bateu-se sem fazer barulho para tirar a mão, sinalizando — Amigo"

freneticamente, sem parar, enquanto orava para que na escuridão alguém visse o sinal e

a salvasse de ser asfixiada até morrer. Houve um sussurro fraco e ela sentiu que estava

rodeada pelo pequeno grupo de guerreiros que tinha estado planejando sua fuga.

Fala Muito arrancou a mão que apertava sua garganta. Não era necessário palavras

para comunicar os planos. Sinais furiosos iam para a frente e para trás na escuridão do

interior do depósito. Em segundos os guerreiros haviam deslizado para fora do depósito,

dando a volta no corpo do guarda bêbado, sem fazer barulho e desaparecendo na

escuridão. Somente Fala Muito ficou. Flor do Campo veio para seu lado. Ela fez um sinal

para Jesse:

— Você vem. Traga criança".

Jesse balançou a cabeça de um lado para o outro. Impulsivamente, ela pegou o

fecho da corrente com a cruz de ouro, que estava pendurada em seu pescoço por tantos

anos. Ela nunca a tinha deixado, mas então tirou-a e a colocou na palma da mão da

amiga, fechando os dedos compridos de Flor do Campo sobre o metal e apertando a mão

dela.

Flor do Campo tentou recusar. Era essa cruz que tinha feito Cavalga o Vento levar

Jesse para o acampamento. Jesse a tinha usado para contar a ela sobre um homem que

morrera anos atrás. Ela tinha dito que o homem havia vivido de novo. Flor do Campo

duvidava disto, mas ela tinha visto que a crença deles neste homem e no livro estranho

que liam havia criado um laço forte entre os dois. Mas ela tinha sempre se recusado

acreditar nisto. Era só uma história bonita para contar em volta da fogueira.

E agora a cruz, a única coisa que Caminhando nas Chamas ainda tinha de seu

tempo entre o povo, era oferecida a Flor do Campo. Na luz fraca, Jesse viu Flor do

Campo segurar a cruz numa mão fechada, enquanto cruzava os pulsos sinalizando —

Amor— Segundos após o gesto, Flor do Campo e Fala Muito desapareceram na noite.

Capítulo 23

Muita paz têm os que amam a tua lei.

Salmo 119:165

Jesse correu mais do que depressa de volta ao seu quarto para encontrar Lisbeth

vestida, sentada obedientemente ao pé da cama, a colcha de retalhos marrom enrolada,

ao seu lado. Jesse fez uma verificação, só para se certificar de que sua Bíblia estava na

colcha enrolada. Apertando a mão de Lisbeth, ela cruzou o recinto até o estábulo. Alguns

cavalos resfolegaram e bateram as patas no chão quando as duas entraram, mexendo-se

sem parar na cocheira. Jesse assobiou baixo e eles ficaram quietos. Do outro lado da

fileira de baias, veio um relincho de boas-vindas.

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Rapidamente Jesse arreou Estrela Vermelha. Levantou Lisbeth até a sela e guiou a

velha mula para fora, agora correndo, desesperada para ter o forte o mais longe possível

delas, antes que a fuga fosse descoberta. Elas já estavam longe do forte quando Jesse

falou.

— Lisbeth, mamãe fez algo que talvez você não entenda. Mas eu tinha de fazer isto.

Eu ajudei meus amigos a escaparem e agora temos de nos afastar rapidamente antes

que eu seja descoberta. Se formos pegas, Deus cuidará de nós... mas estou orando para

que não sejamos pegas. Já há algum tempo eu estava sentindo que deveríamos sair do

forte. Eu estava considerando se deveríamos ir para o Oeste, com o Sr. Wood, quando

ele retornasse. Precisamos correr esta noite e orar para que Deus nos proteja.

Lisbeth ponderou as palavras da mãe, antes de responder. Então, olhando para trás,

sobre o ombro dela, disse:

— Estou feliz de estarmos saindo, mamãe. Eu não gosto mais de lá. Venta muito, há

muito pó e não há árvores. Quero ir para onde existem árvores e onde podemos ter

amigos e ser como todos os outros— Ela hesitou e perguntou: — Mas mamãe, para onde

nós vamos?".

— Para Dobytown— veio a resposta.

— Dobytown?!— Lisbeth só tinha ouvido histórias sobre este lugar de destino, mas,

ainda assim, não poderia jamais imaginar sua mãe concordando em pôr o pé nesse lugar.

A fama de Dobytown, a apenas duas milhas do forte, tinha-se espalhado para muito

mais longe. Habitada por jogadores, mulheres lascivas e criminosos, Dobytown era

evitada pelos tementes a Deus e procurada pelos amantes do pecado.

E é exatamente por isso, Jesse pensou, que precisamos ir para lá. Ninguém no

Forte Kearney pensaria em procurar Jesse lá. Primeiro eles procurariam em todos os

acampamentos de imigrantes, no lado oposto ao forte. Isto tomaria um tempo precioso e

propiciaria a elas, talvez... bem, Jesse não tinha um plano além de Dobytown, mas ela

sabia que sua melhor oportunidade para escapar estava lá.

— Senhor— Jesse falou alto, — Senhor, precisamos da sua ajuda. Por favor,

mande-nos alguém para nos ajudar a fugir. Faça Donovan — e ninguém mais — ir para o

outro lado.— Ela parou, com medo de falar muito mais, pois seu coração estava batendo

muito rápido, e o medo de ser pega e separada de Lisbeth estava crescendo. Se

acontecer qualquer coisa a mim, Senhor,ela orou silenciosamente,o que será de Lisbeth?

Ela ficou pensando onde estaria, agora, a coragem com a qual ajudara os índios a

escaparem. Mas foi coragem? Enquanto Estrela Vermelha trotava na campina aberta, a

fadiga de Jesse aumentava. Lisbeth apertava as ancas da mãe e deitava a cabeça em

suas costas. O que eu estava pensando? Jesse pensou. Que boba que fui. E mesmo

assim, não conseguia arrepender-se de ter ajudado os amigos.

Não temas... Não temas... As palavras vieram novamente no ritmo da marcha de

Estrela Vermelha. As palavras ecoaram do passado e, como sempre, deixaram-na

reanimada. Jesse pôde orar de novo. Seus pensamentos voltaram-se de novo para

Lisbeth. De fato, onde, neste território de Nebraska, uma mulher sozinha poderia construir

uma vida para sua filha? Ela precisava de escolas, igreja e amigos. Ela precisava de uma

sociedade que não fosse dividida entre "filhos de oficiais" e — Os outros".

Estrela Vermelha parou e resfolegou, olhando bem à frente. Suas orelhas pequenas

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moviam-se para a frente e para trás, tentando captar um som à frente. Com desânimo,

Jesse percebeu que elas tinham perdido Dobytown.

Um homem estava curvado sobre sua fogueira. Com o barulho de Estrela Vermelha

resfolegando, um dos seus cavalos relinchou. Sua voz, forte, retumbou na escuridão:

— Quem vem lá?".

Como Jesse não respondesse, ele gritou de novo:

— Quem vem lá? E que serviço faz à noite? Se você não falar, minha arma vai

falar".

Lisbeth tinha acordado e se agarrado a cintura da mãe, com medo.

— Não atire! — Jesse gritou. — É só uma mulher e sua filha. Só. Por favor, não

atire!"

O rifle baixou do ombro. A voz gritou de novo:

— E como posso saber que você está falando a verdade e não é alguém que não

presta, de Dobytown, planejando roubar e matar?".

— Eu juro pelo Senhor Deus que fez o céu e a terra, somos só eu e minha filha.

— Então anda para perto da fogueira para eu ver vocês."

Jesse impeliu Estrela Vermelha para onde o homem pudesse vê-las inteiras.

Lisbeth agarrou-se à sua mãe e cochichou ruidosamente:

— Mamãe, aquele homem é preto!".

O homem levantou uma sobrancelha e olhou para os antebraços fortes. Esticando

uma mão, segurou-a levantada sobre a fogueira e a examinou.

— Bem, eu serei....— ele exclamou, fingindo surpresa. — Eu sou mesmo! Agora,

como você acha que isso aconteceu?— Ele deu um sorriso largo para Lisbeth e Jesse

relaxou um pouco.

Então, Lisbeth respondeu: — Mamãe diz que Deus fez as pessoas de todas as

cores, para que o mundo não ficasse chato. Nós conhecemos gente branca e temos

alguns amigos marrons, mas nunca tivemos amigos pretos, antes. Nós temos de ir

embora agora porque mamãe ajudou nossos amigos marrons e eles podem-nos pegar e

levar a mamãe embora".

Jesse fez Lisbeth calar-se:

— Minha filha e eu estávamos nos dirigindo a Dobytown. Meu nome é Jesse King.

Minha mula deve ter pego o caminho errado e...".

O homem segurou a aba do chapéu e a colocou mais atrás, na cabeça.

— Dobytown? Por que estão procurando por Dobytown? Dobytown não é lugar para

uma mulher com sua filha..."

— E, eu sei disso... e sob circunstâncias normais eu jamais... mas..."

— Alguém está procurando você?"

— Não tenho certeza, mas se eles estiverem..."

Ele interrompeu:

— Mas se eles estiverem, jamais procurarão em Dobytown. É isso?".

Jesse perguntou a si mesma se Deus teria respondido sua oração por socorro tão

rápido. Ela respondeu:

— Exatamente".

— Quem são estas pessoas marrons que ajudou?"

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— Lakotas. No forte. Amigos meus. Eu destranquei a porta do quarto onde estavam

presos e os ajudei a escapar."

O homem acrescentou:

— Então é melhor você ir fugindo também— Aproximando-se de Estrela Vermelha,

colocou sua atenção em Lisbeth: — Você está com fome, senhorinha? Sirva-se. Atirei

num coelho há algum tempo. Ainda tem uns pedaços de carne no resto da fogueira— Ele

tirou Lisbeth da mula e, por alguma razão, Jesse não se mexeu para impedir. Ela desceu

e ficou segurando as rédeas enquanto Lisbeth correu para a beira da fogueira.

— Parece que perdi os modos, madame— disse ele. — Meu nome é Joseph

Freeman. Sou um ferreiro. Estava trabalhando em Dobytown há algumas semanas. Mas

estou indo embora. Cansado dos palavrões e da baderna. Não é lugar pra homem que...

bem, que se preocupa com as coisas do Senhor e tudo o mais. Há uma nova cidade

começando, perto de Salt Creek. Nome de Lancaster. Imagino que toda cidade boa

precise de ferreiro. Eu vou ficar lá um tempo e ver se gosto."

Enquanto falava, foi levando Jesse até a fogueira, ajudando-a a se ajeitar no chão,

desarreando Estrela Vermelha, esfregando-a para baixo, para limpá-la, inspecionando

sua patas com mãos firmes, antes de maneá-la com um conjunto novo de maneias que

ele buscou em seu carroção.

Sua voz era agradável e Jesse ajeitou-se perto do fogo, enquanto uma paz

inexplicável tomava conta dela.

Joseph Freeman divagava em seus planos:

— Há uma viúva lá, dona Augusta Hathaway. Aquela dona Hathaway é uma mulher

boa mesmo. Uma mulher cristã de verdade. Nunca ouvi palavras ruins sobre ela, mas só

coisa boa. Colegas dizem que aquela cidade nova vai crescer rápido. É certeza que a

dona Hathaway vai ajudar vocês a se ajeitar lá. Se não têm nada contra viajar com um

homem negro, eu fico feliz por ter vocês junto. Não é certo vocês irem para Dobytown.

Não, madame... não está certo mesmo".

Freeman parou de repente. A mulher estava dormindo. A criança, deitada ao seu

lado, encaixada na posição curvada da mãe, no chão.

— Acorda homem!... Joseph, quando é que você vai aprender a calar a boca? Você

fez a mulher dormir, de tanto falar!— Ele riu dele mesmo e pôs seu saco de dormir a uma

distância razoável da fogueira. Desenrolando a colcha da mulher para cobri-la, ele

derrubou a Bíblia dela na terra. Pegou-a, limpou-a e colocou-a onde a mulher pudesse

ver, tão logo acordasse.

Jesse e Lisbeth acordaram, na manhã seguinte, com o aroma do café fervendo e

bolachas assando. Lisbeth rapidamente proclamou a bondade do amigo novo delas.

Freeman ouviu a conversinha dela, sendo naturalmente bom, e explicou a Jesse:

— Vocês duas dormiram tão rápido à noite e eu achei que não ia se importar se eu

cobrisse a menina. A Bíblia caiu da colcha, madame. Espero mesmo que não tenha

estragado nada".

Jesse pegou a Bíblia e esfregou seu pescoço dolorido:

— Tudo bem, Sr. Freeman. Obrigada por sua bondade".

Joseph lhe ofereceu café e, ao pegar a xícara esfumaçando, disse:

— Se a senhora não se importar, madame, eu adoraria mesmo ouvir algumas

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palavras desse livro. Quer dizer, se a senhora não se importar, madame".

O pedido fez Jesse sentir-se mais à vontade com o estranho. Independentemente de

seu passado, se ele amava a palavra de Deus, ela sentia que podiam ser amigos. Já

acostumada à leitura bíblica de há muito tempo, Lisbeth instantaneamente pulou,

assentou-se num tronco perto da fogueira e esperou sua mãe ler.

— O senhor tem alguma passagem preferida, Sr. Freeman?"

— Ah não, madame, nunca aprendi a ler. Qualquer uma. É que eu adoro ouvir as

palavras.— Ele tirou o chapéu, abaixou a cabeça e ficou parado, como se esperando uma

bênção. Jesse virou as páginas gastas e leu alto: — Em ti Senhor, confio...". É ela leu

calmamente o salmo; Joseph ficou — Bebendo— as palavras. Quando Jesse acabou

com: — Esforçai-vos, e ele fortalecerá o vosso coração, vós todos que esperais no

Senhor— Freeman suspirou, e do fundo do coração disse: — Amém!— Ele enfiou o

chapéu de volta na cabeça e, com súbita energia e poucas palavras, aproximou-se de

Estrela Vermelha e de sua parelha. Arreando a parelha, voltou-se para Jesse.

— Como eu disse à noite, madame, estou indo em direção a Salt Creek, a umas 150

milhas daqui. Há uma viúva lá, dona Augusta Hathaway, uma boa cristã, que ficaria feliz

se a senhora ficasse por lá, tenho certeza. Não há muita gente, só umas trinta pessoas

estabelecidas lá, mas seja quem for que estiver procurando a senhora, não procuraria lá,

com certeza.

— Nós ficaremos muito gratas ao senhor, se pudermos acompanhá-lo, Sr. Freeman.

Eu não tenho como pagá-lo pela sua proteção, mas parece que o Senhor Deus o enviou

para nós, e se o senhor acha que a senhora Hathaway não se importaria com duas

peregrinas apeando à sua porta, então iremos com o senhor."

Enquanto falava, Jesse montou em Estrela Vermelha e gesticulou para Lisbeth vir

para junto dela, mas a menina tinha suas próprias idéias de como preferia viajar.

— Eu não quero montar nesse cavalo velho, mamãe. Eu quero viajar no carroção

com o Sr. Joseph!"

Embaraçada com o oferecimento da filha, Jesse tentou silenciá-la, mas Joseph

interrompeu:

— Eu ficaria honrado em tê-la comigo, madame, se achar que não há problema".

Jesse hesitou, e Joseph interpretou mal a hesitação. Virou-se para Lisbeth:

— Senhorinha, não fica bem para você viajar perto de um homem que não conhece

direito e sua mãe tem razão em preocupar-se. Agora você suba naquela mula e não dê

mais trabalho pra sua mãe".

Lisbeth protestou de novo e Freeman agiu antes mesmo de pensar:

— Minha mãe costumava me beliscar forte, quando eu fazia o que você está

fazendo agora. Seja uma dama, como sua mãe, e suba naquele cavalo!".

Sem esperar Lisbeth obedecer, ele levantou-a em seus braços grandes e colocou-a

no lombo de Estrela Vermelha, onde ela assentou-se mal humorada, mas quieta.

Tomaram o rumo da planície, enquanto a luz da manhã começava a tocar as pontas dos

arbustos que salpicavam a vasta campina.

Na maior parte de sua vida, Jesse tinha sido levada, uma participante sem vontade

na maior parte dos acontecimentos que tinham formado sua vida. O encontro com Flor do

Campo tinha mudado isso. Sem tempo para pedir conscientemente a direção do Senhor e

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esperar por uma resposta, ela havia escolhido fazer algo que mudaria sua vida

permanentemente. Enquanto viajava atrás do carroção de Freeman, ela teve tempo para

pensar nos resultados de suas ações. Parecia que Deus tinha abençoado sua decisão.

Ele tinha, além de tudo, mandado Joseph Freeman para guiá-las a uma nova cidade e a

uma nova vida, e tinha transmitido sua paz.

No transcorrer da manhã, Jesse e Lisbeth seguiam o caminho atrás do carroção de

Freeman e Jesse sentia cada vez mais que ela estava no centro da vontade de Deus para

a vida dela. Acompanhar Joseph Freeman para a cidade de Salt Creek parecia o certo.

Seu coração enchia-se com uma felicidade repentina, inexplicável, e ela começou a

cantarolar. Freeman ouviu a música, pegou o tom e começou a cantarolar pelo caminho.

Não demorou muito para começarem a cantar letras conhecidas. As vozes de Jesse, com

seu contralto rouco, e de Freeman, com seu baixo bonito, ressoavam pela campina.

Lisbeth recuperou-se de seu acesso de raiva e começou a cantar também. As

orelhas de Estrela Vermelha trabalhavam como loucas, primeiro levantando-se para a

frente para ouvir o baixo vindo do carroção e então rapidamente para trás, para as vozes

familiares que ela conhecia há tanto tempo.

Enquanto a música continuava, algo aconteceu. Mãos invisíveis estendiam-se entre

os viajantes. Um pouco hesitantes, elas não tocavam, mas ficavam lá, prontas para o que

fosse oferecido. A manhã passava, distâncias eram cobertas e as mãos invisíveis iam

ficando mais perto. Um laço espiritual crescia, criado pela crença em Cristo,

compartilhada entre eles.

Quando pararam para almoçar, Jesse pulou do lombo de Estrela Vermelha para o

chão, alegremente, e perguntou a Freeman como ela poderia ajudar.

— Apenas leia um pouco mais, madame. Isso já é o suficiente. Eu tenho bastante

bolacha dura e carne seca... um pouco de água mais e teremos café suficiente para

chegarmos lá."

— Mas quero fazer a minha parte, pagá-lo de alguma maneira por sua bondade."

— Bem, então, madame, leia o Livro Bom e deixe-me cozinhar."

Eles comeram rápido e aprontaram-se para continuar. Enquanto Freeman subia no

carroção, Jesse gritou:

— Sr. Freeman, se o senhor não se importar, a Lisbeth poderia viajar com o senhor

esta tarde?".

Ele estava de costas para ela, mas, com a pergunta, ela viu os ombros largos

relaxarem, ele se virou com um sorriso carinhoso e, piscando para Lisbeth, respondeu:

— Eu ficaria honrado, Senhora King— Ele queria falar mais, mas controlou-se e

ajudou Lisbeth a subir para o seu lado. Juntos eles se aninharam e sacolejaram no

caminho. As mãos invisíveis se juntaram, unindo-se e prendendo firmemente.

Benditos laços são os do fraterno amor,

Que assim, em santa comunhão, nos unem no Senhor.

O velho hino tornou-se real, com a passagem dos dias. Jesse viajava ao lado do

carroção e não mais atrás. Eles cantaram todos os hinos que conheciam. No final da

semana, Jesse já não tinha mais medo de uma perseguição do forte. Três estranhos

tinham-se juntado em tal união que aqueles que não conheciam o Deus deles jamais

poderiam entender.

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Finalmente, uma noite, à beira da fogueira, Jesse contou a Freeman os detalhes de

sua saída rápida do Forte Kearney. Ele ouviu sem muita reação e não contou nada de

volta de sua história. O silêncio tinha-se tornado desconfortável, quando Lisbeth falou:

— Você fala diferente das pessoas do Forte Kearney, Joseph. Por quê?".

— Sr. Freeman, Lisbeth!— Jesse corrigiu.

Freeman sorriu.

— Tudo bem, Lisbeth. Pode chamar-me de Joseph. Acho que os companheiros de

viagem não precisam ser tão formais. Ele se afastou da fogueira para a sombra, antes de

responder à pergunta de Lisbeth. — Bem, então, Lisbeth, eu falo diferente porque eu não

sou desta região aqui. Eu falo do jeito que o povo onde nasci fala.

— Onde você nasceu?"

— Carolina do Sul."

Lisbeth olhou para sua mãe:

— É longe, mamãe?".

— Muito longe, Lisbeth."

— Mais longe que Illinois?— Lisbeth olhou de Jesse para Joseph. Quando sua mãe

concordou, Lisbeth falou abruptamente: — Mamãe diz que ela e o papai vieram todo o

caminho de Illinois, foi uma viagem terrivelmente difícil e levou meses e meses. Então

papai morreu e tivemos de ficar aqui no território de Nebraska e trabalhar para os

soldados. Mamãe diz que o Senhor Deus a fez forte para trabalhar muito e cuidar bem de

nós com a ajuda dele. Ela não queria outro marido depois que o papai morreu, e é por

isso que ficamos". Lisbeth deu outra respirada. — Então, por que o senhor andou tudo

isto até Nebraska, desde Carolina do Sul, Sr. Joseph?"

— Lisbeth! O Sr. Freeman não precisa nos contar sua vida pessoal. E

você,jovenzinha, contou toda nossa vida pessoal sem um pingo de boas maneiras!"

Freeman interrompeu:

— Não há problema, madame. Não tenho muito para falar sobre mim. Eu fui para

guerra e fiz trincheiras e coisas do tipo por quase quatro anos. Entrei numa luta uma

noite, fui golpeado na cabeça. Quando voltei a mim, estava deitado em um monte de feno,

em um campo. Fui para o Oeste. Não parei até chegar no Rio Missouri. Continuei

trabalhando em meu caminho para o Oeste, e aqui estou".

Lisbeth não ficou satisfeita.

— A sua família vai vir aqui quando você se acertar?"

— Lisbeth!— Jesse quase gritou.

Lisbeth defendeu-se:

— Bem, mamãe, aquele cabo Donovan disse que, quando ele se estabelecesse, sua

esposa e filhos viriam para o Oeste, e achei que talvez a do Sr. Freeman também".

Com a menção de família, o rosto de Freeman tornou-se uma máscara. O sorriso

tolerante deixou seu rosto e ele baixou o olhar para as mãos. Ainda assim, respondeu a

Lisbeth honestamente. Num sussurro, ele disse:

— Tinha esposa. Dois meninos. Foram vendidos para fora da fazenda antes da

guerra".

O coração de Jesse condoeu-se pelo homem. Ela ficou parada, incomodada,

esperando-o terminar. Ela não queria ouvir a história dele, mas parecia que ele precisava

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contá-la. Ele olhou firme para Lisbeth, que olhou firme de volta, não acreditando. Ela tinha

ouvido sobre escravidão, mas isto nunca a tinha tocado. A guerra tinha vindo e os

soldados deixavam o forte em bandos. Recrutas voluntários de Iowa tinham tomado o

lugar deles. Isto tinha tido pouco efeito na vida dela. Mas ali, à sua frente, estava um

homem — um homem bom — que tinha perdido sua família. Freeman continuou:

— O Massah prometeu que nunca faria isto, mas o tempo passou, ele voltou atrás

em sua palavra. Acho que todos eles voltam atrás, algumas vezes. Quando a guerra veio,

eu fugi na primeira chance que tive... procurando Mattie e os meninos. Não adiantou. Era

como se tivessem desaparecido da face da Terra. Espero que tenham fugido. Algumas

pessoas ajudaram-nos quando fugimos". Os olhos de Freeman se entristeceram. Então,

sussurrou para si mesmo: — Espero que tenham escapado— Ele tinha retornado a um

mundo do passado que Jesse e Lisbeth jamais entenderiam ou conheceriam.

Aspirando profundamente, ele passou sua mão pela testa e olhou de novo para

Lisbeth. Não havia sorriso, mas ela percebeu a bondade em sua voz quando ele disse

sinceramente:

— Seja grata a Deus por ter feito você nascer onde nasceu, Lisbeth. Você teve

tempos difíceis, eu sei. Mas é livre. Você nunca precisou temer que sua mãe fosse

vendida para longe de você, nunca precisou ter medo de você ser vendida. Seja grata".

Lisbeth assentiu com a cabeça, solenemente:

— Sr. Joseph, senhor— ela ofereceu, — Eu vou orar por sua Mattie e pelos seus

meninos. Mamãe diz que o Senhor cuida de todas as suas crianças. Mamãe diz que nós

vamos ver o papai algum dia no céu. Algumas vezes, à noite, quando eu desejo ter um

papai, eu penso só no céu e finjo que ele está-me abraçando apertado e então me sinto

melhor. Talvez o senhor pudesse pensar sobre o céu também... e talvez...— a vozinha

tremeu. Ela estava emocionada demais para continuar.

Um sorriso leve voltou ao semblante ferido, arrasado de Joseph:

— Sabe, Lisbeth, é isto mesmo que eu faço. Quando dói tanto e não posso mais

agüentar, é então que olho para Deus, pedindo socorro, e parece que Ele tem sempre

uma forma de ajuda. Esta noite Ele me ajudou com você dizendo estas coisas boas. Você

ajudou-me a lembrar que o Senhor sabe onde Mattie e meus meninos estão e, algum dia,

vou entrar naquele portão e lá dentro vai haver três rostos sorrindo e gritando, e glória!—

Ele quase gritou: — Nós vamos ter uma festa então, com certeza!". Deu um tapa nos

joelhos e levantou-se de repente. Jesse pulou com o barulho súbito.

Os viajantes se apressaram a inspecionar os cavalos, abrir as colchas de dormir e

lavar as xícaras de café no riacho próximo. Com o uivo dos coiotes, Jesse e Lisbeth

deitaram-se sob o acolchoado que repartiram, olhando o fogo se extinguir. Jesse pensava

no futuro, enquanto Lisbeth só conseguia pensar no passado, de famílias separadas, de

pais separados dos filhos e de homens vendendo outros homens. O mal chamado

escravidão tinha um rosto, agora. Tinha um nome também. Joseph Freeman.

Capitulo 24

Confia no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio

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entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas

veredas.

Provérbios 3:5,6

Na manhã do quinto dia da jornada, três viajantes cansados subiram uma colina e

pararam sob um céu azul para observar o que havia à frente deles. Joseph Freeman

conhecia a paisagem.

— Aquilo são planícies de sal."

A pradaria vasta, sem árvores, era marcada por uma grande área de um branco

brilhante. Liso como um vidro, parecia um mármore polido. A terra era ressecada, árida e

coberta com umas duas ou três polegadas de sal. Alguém tinha tentado recolhê-lo e havia

deixado os destroços de duas fornalhas velhas e duas cabanas.

— De onde vem isto, Joseph?— Lisbeth perguntou.

— Vê as rachaduras lá?— Joseph apontou os buracos na terra seca. Parando sua

parelha, ele pulou fora do carroção e foi até uma das rachaduras. Era tão funda que seu

braço entrou até o cotovelo. — Agora você vê porque estamos viajando em volta e não

pelo meio disto? Eu perderia uma roda inteira do carroção se caísse em uma dessas

rachaduras. Coisa engraçada, entretanto. Eu ouvia falar mas não acreditava, até ver isto

acontecer. Duas vezes por dia, como um relógio mesmo, esta base aqui inunda. Água

rasa, só umas duas polegadas de profundidade, mas, quando afunda de volta para as

rachaduras, deixa o sal para trás. As pessoas vêm de todos os lugares para raspar o sal.

Às vezes ficam umas duas ou três polegadas de sal."

Jesse ponderou sobre o futuro das Planícies de Sal. Joseph falou da indústria de sal,

próspera, que todos os colonizadores esperavam surgir e estimular o crescimento de

Lancaster. Jesse viu o potencial. Ser parte de uma comunidade em crescimento daria a

Lisbeth benefícios que ela nunca teria no Fort Kearney.

Eles viajavam para o sudoeste, descendo numa planície. Viram umas árvores, um

elmo gigante e algumas alfarrobeiras entrecortadas por moitas de ameixeiras. Quando o

vilarejo Lancaster apareceu à vista, o coração de Jesse ficou pesado. Os únicos prédios

avistados eram uma estrutura de dois andares de grés, duas cabanas de madeira, uma

cabana de placas de grama, um prédio pequeno de pedras e um pequeno abrigo rústico

cavado na colina! Uma inspeção mais minuciosa revelou duas lojas, uma loja de

calçados, seis ou sete casas, mas nem rua principal, nem árvores, nem igrejas. Eles

atravessaram vários leitos secos de riachos. Um coiote correu à vista deles, parou, olhou

em sua direção e continuou sem preocupação. Uma pequena multidão tinha-se juntado

fora de uma das cabanas maiores. Joseph puxou sua parelha para a sombra da cabana.

Ninguém pareceu notar a chegada dos estranhos. Toda atenção estava num homem alto,

barbado, fazendo um discurso.

— Senhoras... e senhores... Embora este não seja um anúncio oficial, sinto que é

nosso dever informá-los de que a comissão se reuniu em sessão fechada e a escolha foi

unânime para fazer de Lancaster a grande capital deste estado enorme... O estado de

Nebraska!— Vivas vieram das cerca de vinte pessoas que tinham estado escutando

atenciosamente o discurso. Uns poucos homens jogaram os chapéus para o ar, com

entusiasmo. Um grupo de meninos, aparentemente vindo do buraco de pesca mais

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próximo, conversavam, com a pesca da manhã pendurada na linha. Parando

momentaneamente, eles perderam depressa o interesse e continuaram na direção da

cabana somente visível na direção sudoeste, perto das únicas árvores avistadas.

Tão logo o discurso terminara, uma mulher grande, vestida de preto, veio ao

encontro deles. Com sua voz suave, maternal, gritou:

— É você, Joseph Freeman?".

— Sou eu, Sra. Hathaway. Trouxe umas pobres almas comigo."

Quando Augusta Hathaway olhou para elas, Jesse mexeu-se nervosamente em sua

sela. A mulher era uma observadora perspicaz. Seus olhos moveram-se do rosto de

Lisbeth — aquilo era uma piscada ou somente o brilho do sol fazendo-a semicerrar os

olhos? — para o de Jesse, para Estrela Vermelha; olhou a roupa, a colcha de dormir e os

pés de Jesse com mocassins. Jesse sentiu-se como se tivesse sido pesada numa

balança e não tivesse sido aprovada.

Mas então o rosto redondo enrugou-se com um sorriso largo, os olhos se aqueceram

e, sim, tinha sido mesmo uma piscada que ela tinha dado a Lisbeth.

— E que turma variada vocês são, Joseph. Bem, vão direto para casa. Há muito

almoço para vocês todos.— Ela virou-se para Jesse: — E então, você pode contar-me de

que jeito juntou-se a esse miserável desgraçado?".

Augusta Hathaway era, aparentemente, acostumada a ser obedecida. Antes que

Jesse pudesse responder ou apresentar-se — de fato, até mesmo antes de Lisbeth poder

soltar qualquer palavra — a mulher corpulenta tinha pegado as saias empoeiradas dela e

estava andando a passos largos, afastando-se deles na direção de um sobrado de

madeira a pelo menos cem jardas dali. Chegando à casa, Jesse desceu do cavalo, um

pouco retraída. Augusta Hathaway arremeteu-se sobre ela, puxou-a para dentro,

empurrou-a para uma cadeira em uma mesa comprida, colocou um prato cheio de comida

quentinha, saindo fumaça, à frente dela, deu um tapinha no queixo de Lisbeth e então,

mãos nos quadris, mandou que Joseph Freeman contasse a ela exatamente o que ele

pretendia ao aparecer à sua porta com duas bocas extras para se alimentarem sem

explicação.

Antes que Joseph pudesse responder, Augusta virou-se para Lisbeth:

— Tome todo o leite que você quiser, doçura. A jarra está cheia, a vaca está lá atrás

e há muito mais no lugar de onde veio".

Joseph começou a responder, mas Augusta interrompeu novamente, desta vez

falando para Jesse:

— Esse homem é o melhor ferreiro que eu conheço e eu tentei fazê-lo acreditar em

mim quando lhe disse que Dobytown não era lugar para tementes a Deus, mas, como um

homem mesmo, ele não acreditaria em mim...teve de descobrir sozinho. Bem como um

homem mesmo!".

Sem esperar uma resposta de Jesse, virou-se para Joseph, de novo:

— Bem, fale, homem! Que diabos você planeja fazer agora? Finalmente enxergou a

razão de minha oferta? Vai ficar e ser parte desta nova cidade? Você ouviu? Vai ser a

capital do estado. Então, isso sim é algo de que se deve fazer parte, Joseph! Isto aqui é

um lugar de futuro. Escute-me e vou dar um jeito de você arrumar a sua vida!".

Jesse estava começando a imaginar se alguma vez havia esperado uma resposta

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para qualquer uma de suas perguntas.

Augusta continuou:

— Minha nossa, Joseph, assente-se e coma alguma coisa. Fiquei tão ligada ao

futuro que me esqueci de lavar um prato para você. Desculpe-me por isso— Enquanto

falava, encheu um prato com rosbife e batatas que frigiam no fogão de ferro, no canto da

cabana. Servindo a mesa sem cerimônia, ela deu o Joseph talheres embrulhados num

guardanapo bem branco. Joseph assentou-se e começou a comer.

— Bem, eu imagino que ele não vai me dizer nada, então, minha querida, como você

veio para Lincoln? Este é o novo nome, Joseph, Lincoln. Eles tentaram pegar os votos

contra a condição de estado —apesar de que os democratas nunca votariam para a

condição de estado se eles soubessem que a capital teria o nome do nosso querido

presidente, já falecido.— Augusta esfregou uma lágrima imaginária, em respeito ao

presidente assassinado. — Humm! Bem como os homens. Eles vão usar qualquer coisa

para tentar manipular seus caminhos. Mas isto não funcionou! Nós estamos na União

como um estado, e Lincoln será a capital. E você, Joseph, vai gostar de saber que, em

Nebraska, os negros vão poder votar!"

Joseph olhou para cima, sem acreditar. Augusta assegurou-lhe que era verdade.

Jesse esperou receber permissão para responder à pergunta. Agora, que pergunta ela

responderia, se lhe fosse dada a oportunidade de falar, em algum momento? Como

sempre, Lisbeth tomou a iniciativa e disse:

— Nós nos perdemos no escuro, e Estrela Vermelha nos levou para a fogueira do

Sr. Freeman. No começo, fiquei com medo porque estava escuro e ele era negro e tinha

uma arma. Então, ele sorriu e eu sabia que ele iria ser meu amigo. Eu gosto de gente com

voz forte. A senhora tem uma voz forte também, Sra. Hathaway, mas a senhora piscou

para mim e me disse que eu podia tomar todo o leite que eu quisesse e eu acho que a

senhora vai ser minha amiga também!".

Augusta deu uma risadinha.

— Bem, parece que minha impetuosidade exterior falhou em lograr você, jovenzinha.

Eu preciso treinar melhor meu comportamento. Nunca conte por aí que Augusta

Hathaway é um alvo fácil!— Ela piscou bastante para Lisbeth e virou-se com um grande

sorriso para Jesse. Jesse suspeitou que Augusta Hathaway tinha mesmo de convencer

alguém de que ela era uma mulher a ser temida. Apesar da voz forte e dos modos

expansivos, ela exalava bondade como um grande acolchoado pronto para se espalhar

sobre todos à sua volta.

Finalmente, ela perguntou a história de Jesse e esperou uma resposta. Assentando-

se na cadeira de balanço perto da lareira, na cozinha, ela pôs as mãos no enorme colo e

esperou Jesse falar. Jesse olhou para baixo, para suas mãos envelhecidas pelo trabalho.

Ela esfregou as duas juntas, segurou um cacho de cabelo isolado e o pôs de volta à nuca.

Joseph engolia o café com barulho, claramente desconfortável com o silêncio que tinha

subitamente baixado sobre o interior da cabana. Lisbeth cruzava e descruzava as pernas

embaixo da mesa e sorvia o leite regaladamente. Augusta esperou pacientemente. Por

fim, Jesse juntou os pensamentos e falou:

— Minha filha e eu moramos em Forte Kearney por muitos anos. Fui lavadeira desde

que Lisbeth era um bebê. Meu marido morreu antes de Lisbeth nascer e fomos forçadas a

Page 135: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

nos defender sozinhas. Nós deixamos o Forte Kearney na noite em que nossa segurança

estava ameaçada e Deus guiou-nos até a fogueira do Sr. Freeman. Ele concordou que o

acompanhássemos até aqui. Precisamos de uma nova casa. Parece que Joseph acha

que Lanças ter — Lincoln —será uma grande cidade algum dia. Preciso pensar em minha

filha. Uma cidade talvez pudesse oferecer uma escola — e a chance de uma vida melhor."

Augusta Hathaway queria saber mais. Mas os olhos cinza que encontraram os seus

estavam levemente cobertos, avisando para não perguntarem muito. Eles ainda

continuavam a olhar diretamente, sem se desviarem. A mulher tinha força, pensou

Augusta. Força para desistir e sair de um lugar ruim, viajar por alguns dias e começar

uma vida nova. Ela disse isso para Jesse.

— Força? Não, dona Hathaway. Eu não tenho coragem, por mim mesma. Eu sempre

tive dificuldades em tomar decisões, mas o Senhor tem sempre cuidado de nós, apesar

de minhas fraquezas.

Vir para cá simplesmente parecia a coisa certa a fazer."

Augusta perguntou:

— Esta era mesmo a única coisa que você podia fazer?".

Jesse respondeu com honestidade:

— Não. De fato, quando saímos de Forte Kearney, estávamos esperando pela

chegada de um velho amigo que nos tinha convidado para acompanhá-lo até Oregon.

Mas não podíamos esperar. E eu tinha decidido que não iria, de qualquer forma".

— Mas por que não, se você tem amigos lá?"

Jesse lutou para encontrar palavras a fim de explicar sua decisão.

— Eu não sei, realmente. Não parece certo, de qualquer jeito. Lisbeth nasceu aqui,

na campina.— Jesse olhou sobre o ombro de Augusta, na distância. — Há alguma coisa

na campina. Cresce em você, entra no seu sangue, eu acho.— Ela tornou a olhar para

Augusta e corou, embaraçada. — Parece bobo e banal..."

Augusta interrompeu:

— Tudo bem, querida. Eu também sinto isto. Eu cresci em Minnesota, cercada por

árvores — bem perto de casa. Você não via nada de terra. Era como ficar fechado num

lugar, imaginando o que havia lá fora. No minuto em que pus o pé do outro lado do Rio

Missouri, sabia que este era o meu lugar. Nebraska é um lugar onde você pode ver o

horizonte sem barreiras e o futuro— A voz aumentou sua delicadeza e caiu alguns

decibéis: — Esta terra ficou com meu marido, minha irmã e os filhos dela... cólera... Eu

deveria odiar isto aqui, mas não odeio. Encaixo-me bem. Lincoln vai ser uma grande

cidade, um dia, e o Hotel Casa Hathaway será uma parte da cidade!".

O interesse de Joseph foi, outra vez despertado.

— Casa Hathaway, madame?"

A energia de Augusta voltou e ela ficou em pé, abruptamente, com suas mãos

grandes gesticulando expansivamente.

— Isso mesmo, Joseph... Casa Hathaway. Haverá todo tipo de pessoas chegando

em Lincoln, brevemente: carpinteiros e pedreiros e todo tipo de pessoas para construir.

Eles precisarão de uma prefeitura, primeiro, e então haverá mais — uma universidade,

uma penitenciária, igrejas, escolas. Eu já tenho servido jantar a uma meia dúzia de

solteiros toda noite. Estão aqui, procurando terrenos, no interior do país. Posso cozinhar e

Page 136: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

limpar como ninguém e a Casa Hathaway vai ser o melhor hotel das campinas! Então,

Joseph, você vai ou não vai começar aquele alpendre sobre o qual discutimos e abrir sua

loja de ferreiro? Desde que você se foi, tenho expandido os planos também. Por que não

um estábulo com cocheiras de aluguel?"

Joseph deu um sorriso largo, pelos planos sempre em expansão para seu futuro.

— Dona Hathaway, gastei muitas horas pensando em seus planos. Parece que eu

não encontraria uma chance melhor de fazer minha vida em nenhum outro lugar. E se

eles vão deixar-me votar neste estado aqui, então digo que Nebraska é minha casa, de

agora em diante! E honras a Lincoln!"

Augusta virou-se para Jesse.

— Sra. King, um hotel é um monte de trabalho prodigioso. Você tem sido lavadeira

para os militares infernais, então você conhece trabalho árduo. Se você quiser juntar-se a

mim, ofereço um quarto para você e Lisbeth, refeições e um salário — embora pequeno,

no começo — em retribuição por seu serviço com a lavanderia e a manutenção da casa, e

seja lá o que for que aparecer."

O rosto de Lisbeth brilhou e ela olhou ansiosa para sua mãe. Jesse fez uma pausa

apenas momentânea. Gastar mais dias viajando para encontrar uma outra cidade para

estabelecer-se não era de seu agrado.

— Ficarei honrada se a senhora nos aceitar, Sra. Hathaway."

— Há um só pedido que você pode achar difícil.— A mulher cruzou os braços no

peito.

Jesse levantou o olhar com apreensão ao semblante repentinamente grave.

— Você não pode continuar a me chamar de senhora Hathaway. Sou apenas a

simples Augusta para todos os trinta cidadãos ilustres de Lancaster-que-virou-Lincoln; e

não vou aceitá-la com esses ares de formalidade. Você me chama de Augusta e eu a

chamo de Jesse, e pronto! E você, jovenzinha— Augusta voltou-se para Lisbeth, que se

sentou direito e olhou subitamente séria — você me chama de tia Augusta. Isto vai

espantar qualquer alma curiosa que simplesmente não sossega com sua própria vida.

Dia 22 de junho de 1867 é lembrado na história de Nebraska como o dia em que sua

capital foi escolhida. Em nenhum lugar está escrito que outra cerimônia importante foi

testemunhada nesse dia. É claro, a única testemunha era um escravo libertado

recentemente. No entanto, foi um dia muito significativo para Jesse e Lisbeth King, recém-

saídas do Forte Kearney, Nebraska. Adotadas na família da senhora Augusta Hathaway,

a tão conhecida hospedeira, as tão desconhecidas mulheres King começaram uma vida

nova.

Capítulo 25

E, tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor, e não aos

homens.

Colossenses 3:23

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Augusta e Joseph estavam certos sobre o potencial de crescimento do vilarejo

Lancaster. Novos moradores vieram, aos montes, expandindo a população e trazendo a

Augusta e Jesse mais serviço do que elas tinham previsto. Elas faziam assados,

conservas, e davam cama aos viajantes, trabalhando do nascer ao pôr-do-sol, com pouco

tempo de folga. Augusta mantinha-se informada dos eventos que aconteciam, lendo os

artigos do jornal Commonwealth em voz alta, sem pagamento por seu comentário

editorial.

Há cinqüenta milhas de distância, em Omaha, o zombeteiro Republicano trazia:

Ninguém jamais irá para Lincoln...sem rio, sem estrada de ferro, sem carros a vapor, sem

nada...cinqüenta milhas distante de qualquer lugar. Augusta tomou a desconsideração

para si. — Ah! Só besteiras, mais nada. Eles queriam a capital para eles e, agora que

perderam, não têm mais nada para dizer."

Augusta mal tinha acabado seu comentário quando uma carruagem elegante parou

do lado de fora do hotel. Três cavalheiros usando cartola e ternos bem talhados desceram

e pararam, olhando a Rua Market. Um deles finalmente saiu do trio e entrou no hotel,

limpou sua cartola cuidadosamente e perguntou:

— Seria possível servir jantar extra para três hóspedes esta noite?".

Augusta, que jamais dispensaria serviço, assegurou ao visitante de que a Casa

Hathaway ficaria contente em servir a ele e a seus companheiros um bom jantar — em

cerca de duas horas.

O homem curvou-se formalmente e saiu para avisar seus amigos.

— Ah!— Augusta vociferou, — Ele praticamente franziu o nariz quando entrou pela

porta. Acha que a Casa Hathaway não é boa o suficiente para ele!".

— Augusta— ralhou Jesse. — Não está certo. Você nem conhece o homem."

— Conhecê-lo?— replicou Augusta. — Eu o conheço muito bem. Aquele é o

Jonathan Daniels, de Omaha. Foi ele que ficou muito bravo quando levaram escondidos

os registros do estado para fora de Omaha, naquela tempestade do último inverno. Eu,

algum dia, gostaria de saber o que ele está aprontando! Pense rápido, Jesse. O que nós

podemos servir no jantar que seja... elegante? Se aquele cara tiver uma pequenina

desculpa para derrubar Lincoln, ele o fará. Um daqueles outros homens é, provavelmente,

um repórter, e tenho certeza de que adorariam escrever um bom artigo sobre quão

impossível é ter uma boa refeição no Oeste! Agora, Jesse, diga o que fará, pois é nosso

dever cívico alimentar aqueles homens com a melhor refeição que jamais tiveram."

Jesse não poderia argumentar contra um dever cívico. Joseph foi requisitado para

caçar galinhas da campina.

— Lisbeth, venha cá!— Jesse gritou. — Augusta, nós voltaremos em pouco tempo.

Tenho umas idéias." Catando seus chapéus, as duas já estavam do lado de fora, antes

que Augusta pudesse fazer muitas perguntas. Dirigindo-se para fora da cidade, Jesse

começou a colher uma raiz aqui, algumas flores ali...

— Lisbeth, procure um arbusto com flores laranja-claras — ali! Lá! Aquele um! Veja

como as borboletas vão para ele. Cavouque fundo e traga algumas raízes. Nós usaremos

aquele para dar sabor à sopa. Agora... mais um pouco desses...— Jesse tirou algumas

folhas de um planta e as socou no saco de musselina que ela tinha trazido e que já estava

cheio.

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— Mamãe, onde você aprendeu sobre todas estas plantas? Você nunca cozinhou

com elas antes."

Jesse sorriu.

— Lembra-se quando eu lhe disse o quanto os lakotas haviam-me ajudado e ao

papai? Então, eles me ensinaram sobre as plantas também, e estas coisas são todas

comestíveis. E têm um gosto maravilhoso. Eu não acho que aqueles cavalheiros de

Omaha algum dia já tenham provado tal sabor."

Lisbeth olhou para a mãe. Jesse deu um sorriso largo.

— Eu também aprendi a fazer um assado de carne de cachorro...— Lisbeth fez uma

careta e Jesse acrescentou: "...mas não acho que poremos isto no cardápio desta noite...

embora, na verdade, seja muito gostoso".

De volta para a cozinha, Lisbeth depenou as aves enquanto Jesse fazia uma salada

de vegetais silvestres e cebola. As aves foram assadas no forno, ao lado de um bolo de

ameixas do campo.

— Vamos fazer um chá de ervas, em vez de café. Diga-lhes somente que é

importado— Jesse cochichou.

— Mamãe, você me ensinou a nunca mentir— disse Lisbeth reprovando.

— Bem, ele é importado — da campina!"

Justamente quando o bolo saía do forno, Jonathan Daniels, Timothy Price e Pythias

Young assentaram-se à sua mesa, a alguns pés de distância dos hóspedes regulares,

conforme requisitado. Eles resolviam negócios importantes enquanto a cozinha os servia.

Pythias Young foi o primeiro a notar que aquelas coisas não estavam bem certas.

Olhando seu prato, ele fincou os garfos nos vegetais, com suspeita. Mas, faminto,

continuou. Com um suspiro, murmurou:

— Imagine se eu tinha de esperar uma refeição apropriada aqui na fronteira — e deu

uma bocada. Deu mais uma bocada. Então, experimentou as cenouras silvestres. A esta

altura, Jonathan e Timothy, o membro menos tímido do grupo, tinham atacado as galinhas

da campina com gosto.

O encontro planejado forçosamente teve de esperar, pois, os três cavalheiros de

Omaha esqueceram-se de que eram finos e precisavam dar um bom exemplo para os

pioneiros rudes de Lincoln.

Augusta e Jesse serviram pratos cheios da comida a todos os hóspedes, que agiam

como se eles comessem nesse grande estilo todas as noites na Casa Hathaway.

Jesse gostaria de ter abraçado o esquelético Tom Mason quando ele comentou alto

o suficiente para ser ouvido pelos três:

— Mais uma refeição excelente, Sra. King. Eu sempre digo que a Casa Hathaway,

em Lincoln, sabe como servir alimentação fina para todos os gostos".

— Obrigada, Sr. Mason— Jesse falou normalmente. Os olhos dela brilharam.

Augusta deu um tapinha nas costas dele e ofereceu-lhe mais chá.

— Chá?— Jonathan Daniels perguntou do outro lado da sala.

— Importado!— vociferou Augusta enquanto enchia uma xícara. — Combina mais

com a sobremesa do que café. Veja se concorda!— E colocou um pedaço grande de bolo

no prato dele.

Os cavalheiros de Omaha estavam acalmando-se em relação a Lincoln. Pythias

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começou a achar que talvez seu editorial não devesse ser tão descaradamente negativo,

depois de tudo isso. Jonathan perdeu as esperanças de ter umas piadas brilhantes para

contar no clube, quando retornasse.

— Ah! então, do que era a sopa deliciosa servida esta noite, senhora King?—

perguntou em sua voz mais macia.

Jesse não pôde resistir.

— Assado de carne de cachorro, senhor. E a especialidade da Casa Hathaway."

Os três homens de Omaha ficaram horrorizados. Pythias apertou a beirada da mesa

com ambas as mãos e fez força para reter a comida. Jesse enrugou os lábios, arqueou

uma sobrancelha e deu uma risadinha, curvando os cantos da boca. Da ponta da cozinha,

Lisbeth abafou o riso.

Os cavalheiros olharam para Jesse e depois um para o outro.

— Ah! uma piada, piada da fronteira, que divertido!— Eles riram o bastante para

cobrir seus suspiros de alívio — e Jonathan, o inteligente, gargalhou: — Assado de carne

de cachorro, especialidade da Casa Hathaway! Esplêndido! Adorei!". Jonathan tinha sua

piada para a próxima noite no clube. Ele ficou mais caloroso em relação à Casa Hathaway

e a Lincoln. O pequeno vilarejo estava atingindo a maioridade, depois de tudo.

Tendo comido bolo até empanturrar-se, de acordo com Augusta, os cavalheiros

subiram as escadas para os seus quartos. Os outros hóspedes os imitavam e caçoavam

deles enquanto Jesse tentava sinceramente não participar, sem o conseguir. Quando o

último hóspede havia deixado a sala de jantar, as três mulheres compartilharam sorrisos

triunfantes.

Na manhã seguinte Jonathan, Pythias e Timothy partiram na diligência das sete da

manhã para Elkhorn e de lá para Omaha. O Republicano, uns dias mais tarde, publicou

um artigo pequeno que Tom Mason correu mostrar para Augusta.

Os proprietários da Casa Hathaway, em Lincoln, não fazem nada pela metade.

Servem as refeições mais finas, usando o que a campina oferece, para criar pratos

especiais que este escritor achou muito apetitosos.

— Imagino que achou!— bufou Augusta quando leu o artigo para Lisbeth e Jesse. —

Ele comeu dois pratos cheios de legumes!— O artigo concluía:

O autor ficou muito impressionado com o rápido crescimento de Lincoln. Graças a

cidadãos como aqueles encontrados na Casa Hathaway, e com o desenvolvimento da

indústria do sal, ela se transformará, sem dúvida, numa boa cidade.

Apesar do reconhecimento relutante de Omaha, Lincoln ainda tinha seus problemas.

Os comissionados falharam em sua primeira tentativa de conseguir levantar os $50,000

necessários para uma capital.

Augusta foi para a primeira venda de terras e apressou-se de volta a casa,

proprietária orgulhosa do lote adjacente à sua concessão. Ela se orgulhava do preço

barato de somente vinte e cinco centavos sobre o valor estimado de quarenta dólares e

lamentava a tolice daqueles que recusavam especular. Mas a dela fora a única compra

feita naquele dia.

— É uma cidade muito bem pensada, Jesse— Augusta argumentou. — Eles

guardaram quarteirões e lotes para escolas, parques, igrejas e feira. Olha só, eles

permitiram lugar para três pensões. As pessoas virão de todos os lugares. Eu não consigo

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entender por que aqueles homens idiotas não vêem isto. E bem como homens mesmo,

eles temo seu próprio modo de agir e temem fazer as coisas de outra maneira! Por que é

que você não compra um lote? Eu lhe empresto o dinheiro, com certeza!— Augusta

estava expansiva em seu desejo de repartir o futuro de sua amada Lincoln.

— Eu não discuto que um dia Lincoln será uma grande cidade/ Augusta. A única

coisa é que estou contente. — Jesse explicou:

— Quanto mais uma pessoa possui, mais precisa preocupar-se. Lisbeth e eu temos

o suficiente".

Augusta não conseguia entender. Lisbeth, que estava mexendo um tacho com uma

espécie de geléia de maçã, questionou o desejo de sua mãe, secretamente. Mas Jesse

não se mexeu. Augusta parou de pressionar e tentou enfatizar:

— Minha tendência é exagerar, algumas vezes. Assim, imagino que vamos

equilibrar-nos. Você parece não querer nada e eu quero possuir a cidade inteira! Você me

segura de ir muito longe... e talvez eu a force a pensar no futuro de Lisbeth um pouco

mais."

Jesse encolerizou-se visivelmente:

— Augusta, o Senhor é perfeitamente capaz de cuidar do futuro de Lisbeth. Eu não

acho que as minhas aquisições materiais são o caminho para ensinar-lhe sobre

segurança. Eu quero que ela ponha toda sua fé no Senhor. Ele sempre cuida dos seus".

— O Senhor ajuda aqueles que ajudam a si mesmos, Jesse!"

Jesse sorriu e ressaltou:

— Meu socorro vem do SENHOR, que fez o céu e a terra".

— Este é o problema com você, Jesse, sempre tem uma resposta para tudo. E

geralmente é das Escrituras, o que me faz sentir como gentia se tento argumentar!—

Augusta mudou de repente de assunto, indo para a porta e olhando a terra vasta. —

Agora, onde está Joseph com a fieira de peixes que me prometeu para o jantar? Todas

estas pessoas recém-chegadas não devem ter pescado todos os peixes!"

Joseph logo chegou com uma fieira de peixes em sua mão. Doze hóspedes

regulares tomavam agora refeições na Casa Hathaway de manhã e à noite, com um

almoço disponível àqueles que o requisitavam, por um preço extra mínimo. A maior parte

dos hóspedes eram os trabalhadores especializados para ajudar a construir o novo

capitólio. Alguns tinham vindo de muito longe, como Chicago, e suas opiniões sobre a

cidade da campina proporcionavam debates calorosos na maioria das refeições.

— Sabe de uma coisa, Sra. Hathaway?— Tom Mason começava, deliciando-se por

mexer em confusão. — Hoje eu ouvi que a estrada de ferro direcionada para o lado das

planícies do sul não vai passar perto de Lincoln, por medo de que alguns índios sioux no

caminho da guerra escalpem as pessoas."

Fosse qual fosse o estratagema usado para irritar a senhora Hathaway— ele sempre

funcionava. Augusta se encolerizava.

— Tom Mason, você e eu sabemos que não tem havido sustos com os índios nestas

bandas há anos; e diga à sua 'fonte' que aqui em volta só temos pawnees, e eles têm sido

pacificadores há muitos, muitos anos!"

Um dormitório de placas de terra foi levantado no solo do capitólio. Hóspedes do

leste resmungavam por morar em casa sujas e Augusta defendia de novo:

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— Eu presumo que vocês do leste teriam apenas deitado na planície e morrido,

anteriormente. Não têm garra! Bem, o povo de Nebraska sabe como fazer acontecer e, se

o Bom Deus não prover árvores, o povo de Nebraska simplesmente olha em volta e usa o

que ele dá. Nossas casas de placas de terra ainda estarão em pé quando seus filhos

tiverem filhos!".

O tempo todo Augusta argumentava e defendia, mexia-se em volta da mesa, tirando

os pratos, enchendo as xícaras de café. Jesse trabalhava arduamente também, mas em

silêncio. Ambas as mulheres mantinham Lisbeth ocupada na cozinha, fora da vista e

barulho dos homens.

— Pelo seu próprio bem, queridinha— insistia Augusta. Lisbeth transformava-se

rapidamente em uma moça, e nem Jesse nem Augusta queriam notar.

Augusta estava errada sobre a falta de ambição de Jesse para ávida de Lisbeth.

Quando Jesse viu o anúncio de Hortense Griswall na Commonwealth, ela foi uma das

primeiras a responder.

A escola selecionada da Srta. Griswall abrirá no dia 1o de outubro na Rua 10. Vá à

primeira porta ao sul da Farmácia do Dr. Patton. Preço por período de 12 semanas:

Primeiras Séries: $4; Inglês Avançado e Latim: $7; Francês e Música, extra. Metade do

pagamento no início.

— Lisbeth, olhe isto!— Jesse chamou, na primeira noite que o anúncio apareceu.

Lisbeth largou seu tricô e olhou por sobre o ombro da mãe.

— Ah, mãe... sou muito velha para a escola!"

— Bobagem, Lisbeth. 'Inglês avançado e Latim'. Nós temos o suficiente para isto.

Agora estou pensando quanto custará a música e o francês."

Lisbeth franziu o nariz e voltou ao seu tricô.

— Eu não preciso ir à escola. Eu sei de tudo o que preciso saber para as contas do

livro de contabilidade da tia Augusta. Eu sei cozinhar e limpar..."

Jesse a interrompeu:

— E você não sabe fazer nada mais".

— Mas mãe, eu não quero fazer nada mais. Tudo o que eu quero da vida é uma

casa e uma família. — Vendo que seu argumento não achava espaço com a mãe, Lisbeth

mudou o ataque. — Mãe, a senhora diz que o maior chamado de Deus é para ser esposa

e mãe. De repente a senhora mudou de idéia?"

— É claro que não, querida. Só que..."

— Só que a senhora tem medo de que eu não consiga encontrar o chamado maior,

então é melhor me ocupar e me preparar para alguma outra coisa. E isso, certo?"

— Não é isso— Jesse respondeu, sentindo-se na defensiva. Lisbeth mudou de

estratégia de novo.

— Mãe, se nós confiamos que o Senhor fará o melhor para mim, então por que eu

precisaria de um plano secundário ao plano melhor dele? Por que simplesmente não ser

paciente para ele cumprir isto tudo? É isto que a senhora tem sempre me dito. Tenha

paciência. Ele faz todas as coisas belas a seu tempo..."

A mente de Jesse ficou num turbilhão, por uma resposta. Ela foi buscar sua cesta de

costura no quarto, gastando tempo para planejar uma resposta razoável. Pelo tempo da

volta, Deus tinha providenciado.

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— Lisbeth, é claro que nós esperamos por Deus para responder nossas orações. No

entanto, isto não significa não fazermos nada enquanto esperamos. Você se lembra

quando Joseph compartilhou sobre a parede de pedras conosco? Ele disse que havia

uma parede de pedras e o Senhor dizia: 'Joseph, agora eu quero que você passe através

dela'. Ele não ia dizer: 'Senhor, eu não posso. Não posso fazer nada'. Tudo o que ele

precisava fazer era ir de encontro à parede, e o serviço do Senhor foi fazê-lo atravessá-la.

— Lisbeth, o futuro é uma parede de pedra. Somente Deus pode fazer você passar

através dela para um casamento feliz. Mas você tem de dar passos em direção à parede

e empurrá-la. Você tem de entrar na sociedade, há algumas coisas que uma jovem

precisa saber... coisas que nunca tive chance de aprender. Coisas que Augusta nunca

aprendeu. Nós duas estivemos ocupadas demais para sobreviver para nos preocuparmos

com elas. Mas você não precisa preocupar-se em sobreviver, Lisbeth. Eu proverei seu

sustento. Você pode aprender todas essas coisas, e eu quero que você aprenda. Deus

deu a oportunidade. Não podemos negligenciar em relação a empurrar a parede de

pedras.

— Certo, mãe— Lisbeth, suspirou. — Eu vou pendurar meu rabecão. Eu vou para a

escola da senhorita Riswal— ela acrescentou — mas é bom que ela seja legal!".

Hortense Griswall era legal. Ela era muito legal. No primeiro dia de aulas ela usava

um vestido de chita marrom amendoado, enfeitado com um broche dourado onde

estavam gravadas em letras bonitas as iniciais H. G. Pregas cuidadosamente costuradas

cobriam o corpete inteiro do vestido, do alto do pescoço à cintura bem acertada. A bainha

se arrastava no chão no comprimento bem certo.

Infelizmente, apesar de seu guarda-roupas meticuloso e do cabelo perfeitamente

arrumado, aqueles que descreviam Hortense com sensibilidade cristã podiam apenas

explicar seu comportamento tão bom e sua vestimenta sempre bem arrumada. Bobby

Miller que aos seis anos não havia praticado sensibilidade cristã, tinha dito isso quando

Hortense, também com seis anos, sorrira para ele na esperança de que ele a convidaria

para a celebração da Festa da Primavera.

— Você é muito legal, Hortense, mas não quero ir com você. Você é feia demais."

Mas ela era legal. Hortense nunca se queixava. Embora achasse as primeiras séries

tediosas e crianças pequenas muito fatigantes, ela era uma professora excelente.

Apenas um pouco mais velha que Lisbeth, Hortense queria indignar-se com a beleza

de Lisbeth. Mas descobriu que não podia, pois a menina era despretensiosa e, após os

primeiros resmungos com a mãe, honestamente faminta por aprender.

Assim, Hortense Griswall labutava na gramática elementar com seus cinco alunos

pequenos, retocava sua maquiagem ao meio-dia e então estendia-se nas tardes, com as

energias renovadas, à conjugação de verbos do latim e francês com Lisbeth.

Certa noite, bem depois de Lisbeth ter ido para a cama, Jesse e Augusta

sobressaltaram-se com uma batida urgente na porta.

— Quem é?— perguntou Augusta, pegando o rifle do marido, que ela guardava

sobre a porta.

— Tom, madame. Tom Mason."

O rifle foi colocado em seu lugar e Augusta abriu para Tom entrar.

— Meu Deus, Tom, você quase nos matou de medo! O que você quer a esta hora?"

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Tom olhou para baixo, embaraçado.

— Sra. Hathaway... a senhora tem mais quartos? Qualquer quarto. Estou morrendo

de nojo daqueles vermes com os quais temos de repartir nossa cabana! Fui virar-me esta

noite e uma cobra caiu do telhado e se enrolou bem no meu catre! Por favor, madame...

farei qualquer coisa. Mesmo uma esteira de dormir no chão... Só para eu não ter de

dormir nunca mais em casas sujas!"

Jesse já estava empurrando as cadeiras de balanço para longe da lareira. Augusta

entendeu o significado.

— Bem, Tom, todas as camas estão ocupadas, mas, se você está decidido, pode

dormir aqui perto da lareira.— O jovem concordou com gratidão e pegou do lado de fora

da porta o que parecia ser sua esteira de dormir. Ele sabia que a senhora Augusta nunca

o mandaria de volta.

As duas mulheres lhe deram boa-noite. Quando elas desceram, de manhã, para

começar a preparar o café, Tom estava lá fora, tirando leite da vaca, enquanto Lisbeth

punha o café e preparava bolachas.

Augusta deu uma risadinha de contentamento.

— Bem, este deve ser um homem que vale alguma coisa, afinal! E o primeiro que

encontrei— ela disse, acrescentando repentinamente, — Exceto, é claro, pelo senhor

Hathaway".

— E Joseph— Lisbeth a lembrou.

— E Joseph— Augusta concordou.

Quando o café terminou e os comensais arrastaram suas cadeiras para trás, para se

dirigirem ao seu trabalho no capitólio, Augusta anunciou uma oferta: Qualquer de vocês,

homens interessados, eu darei quarto de graça e pensão, em turnos, para começarem

minha construção adicional. Joseph terá toda a madeira cortada até o próximo mês. Eu

preciso de um sobrado atrás, aqui... vocês todos poderão ter quarto e pensão, é sua

chance de um novo espaço por quanto tempo quiserem, se decidirem ficar em Lincoln".

— Eu vou fazer o alicerce, Sra. Hathaway."

— Eu ajudarei o Joseph a cortar madeira se ele me disser onde encontrar, depois do

jantar."

— Eu sou bom em carpintaria... pôr portas e coisas do tipo."

Quando os homens saíram, a construção de Augusta já estava a caminho. Ela

balançou a cabeça com satisfação.

— Vamos abrir uma porta aqui— e ela disse, marcando a nova porta na parede

posterior da cabana. — Um hall estreito, três quartos embaixo, três quartos em cima. A

escada bem no outro lado desta parede-conveniente para você e para mim. Quando a

construção estiver pronta e todos os quartos alugados, nós vamos derrubar o outro lado

da cozinha, para você e a Lisbeth terem quartos novos, então vou pegar o seu quarto

para minha sala de estar particular. Vai ser um tipo de construção em miscelânea, mas

servirá para nós."

— Augusta— Jesse falou, — Eu agradeço sua generosidade, mas, por mais que

trabalhe, nunca conseguirei pagar a construção de uma ala só para Lisbeth e eu. Por

favor, não se sinta na obrigação de fazer tal coisa".

— Bem, Jesse King, escute-me. Vocês duas são a coisa mais próxima a família que

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eu tenho e se eu as quero ver confortáveis, você somente fique calada e deixe-me ficar

feliz fazendo isto! Às vezes eu me encrespo e me espinho, mas não pense que não

aprecio as flores do campo que Lisbeth traz para as mesas a cada refeição. E não pense

que eu não sei que você tem um cuidado extra com as colchas e acolchoados que fez

para todas as camas neste lugar. Pelo amor de Deus, mulher! Você merece mais do que

um quarto novo — Augusta ficou de costas para Jesse e varreu o chão com força

enquanto ranzinzava: — Vocês duas ganharam um lugar especial neste coração velho e

duro. Então, fique quieta e deixe-me fazer o que eu quero!".

Jesse deu um tapinha nas costas grandes de Augusta e disse suavemente:

— Não me faça de boba nem um pouco, Augusta Hathaway. Você é toda tumulto e

preocupação, mas eu vejo além disto. Por dentro há um coração de ouro, só esperando

para se mostrar. Eu agradeço ao Senhor por ter-me permitido ver isso".

Augusta, de repente, ficou séria.

— Eu gostaria de poder ver dentro de você, Jesse King. Você é toda polidez e

delicadeza. Você nunca ficou tão louca ou triste que quisesse gritar? Como é possível

você estar sempre tão... distante?— Os olhos azul-claros de Augusta encontraram os de

Jesse. Jesse olhou sobre os ombros da amiga. Atrás da cadeira de balanço dela, perto do

fogo, estava a colcha de retalhos que contava toda a história: a cabana rústica de

madeira, os sonhos partidos, as rodas do carroção, as tendas dos índios, a Videira

Verdadeira que a tinha carregado por tudo isto.

Ela sussurrou:

— Ah! Tive meus momentos— A solidão a fez desejar repartir a história com

Augusta. O medo a fez segurar-se. O que Augusta pensaria? Ela entenderia? Jesse olhou

de volta os olhos azuis firmes que ainda questionavam. Ela endireitou os ombros,

levantou o queixo e fechou a porta a Augusta. Os olhos azuis sorriram e Augusta baixou

suas mãos dos braços de Jesse com um suspiro: — Mas você não pode falar sobre isso,

não é? Sua bondade nunca consegue. Há um fogo por trás destes olhos cinza. Eu vejo,

Jesse. Sou uma boa juíza das pessoas, e há muito mais para você do que você permite—

Ela suspirou de novo antes de mudar de assunto abruptamente. — Agora temos de ir

para as cerejas silvestres ou os homens não terão torta de cereja de vinte minutos para o

almoço."

— O que é isso, tia Augusta?— Lisbeth entrou com um buquê de flores para a mesa.

— Ora, aquilo é torta de cerejas com caroços. Leva vinte minutos para se comer

cada pedaço!— A risada de Augusta explodiu.

Os olhos de Jesse se enrugaram nos cantos e ela piscou para Lisbeth.

— Este é um jeito de evitar que os hóspedes comam mais que a sua quota!"

As três mulheres se juntavam nos preparativos agora familiares que repetiam dia

após dia, semana após semana, mês após mês, enquanto o crescimento de Lincoln

continuava, a Casa Hathaway crescia e o estábulo com cocheiras e a loja de ferreiro de

Joseph Freeman atendia às necessidades dos viajantes de perto e de longe.

Page 145: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Capítulo 26

O homem de Belial, o homem vicioso, anda em perversidade de boca. Acena

com os olhos... Perversidade há no seu coração; todo o tempo maquina o mal.

Provérbios 6:12-14

Em 1868 a população de Lincoln tinha crescido de trinta para quinhentos. Augusta

exultava: Cento e quarenta e três casas, Jesse, e nós temos nosso primeiro banco agora!

Deus abençoe James Sweet e N. C. Brock e o prédio novo deles, de pedra!". O jornal

farfalhou e Augusta pulou da cadeira.

— E a Casa Hathaway precisa de uma mudança também. Chega dessa cabana de

madeira da fronteira, Jesse. Nós vamos ter tijolos! E uma sala de jantar bonita, não mais

com apenas estas mesas de tábuas. Augusta pegou um lápis e começou a tomar notas

na margem do papel.

Jesse e Lisbeth sorriram uma para a outra sobre a cabeça curvada de Augusta.

— Joseph!— ela gritou — Joseph!— Ele veio correndo, limpando seu rosto. Augusta

começou a compartilhar seus planos. — Agora, quando você tiver tempo, Joseph, poderia

localizar aquele pedreiro que está trabalhando para George Atwood e pedir-lhe para dar

uma chegadinha aqui?"

— Com prazer, Sra. Hathaway. Eu acabei de pôr ferradura na mula baia. Ela está

alugada para amanhã e parece que ela estava arrastando um pouco aquela pata traseira.

Já arrumei tudo. Ela vai mostrar um trote bonito pela cidade."

Augusta fez uma carranca:

— Imagino que seja Winston Gregory novamente?!".

— É ."

— Eu desejaria que aquele verme fosse trabalhar em algum outro lugar!"

— Bem, Sra. Hathaway, o dinheiro dele é tão verde quanto o de qualquer outro.—

Joseph estava desconfortável. Ele sabia para onde caminhava a conversa.

Jesse interrompeu:

— Ele trata você como um escravo, Joseph".

— No lugar de onde ele vem, Sra. King, eu seria um escravo."

— Mas você está livre agora, Joseph— Jesse respondeu.

Joseph encarou Jesse de volta, no mesmo nível, e desvendou só um pedacinho de

sua alma.

— A Senhora sabe disto e a Sra. Hathaway também, mas não são muitos outros que

parecem lembrar-se disto, madame. Eu posso ser livre, mas não sou livre o suficiente

para recusar o serviço de um homem branco só porque ele é pretensioso."

Jesse sabia que isto era verdade. Joseph fechou sua alma exposta e saiu à procura

do pedreiro. Jesse voltou à colcha de retalhos, e Augusta voltou a ler o jornal. Lisbeth

sentou-se à mesa fingindo emendar meias, mas sua mente não estava no trabalho das

mãos, pois tinha ido à cidade e, ao sair da Farmácia Patton, tinha sido o alvo de um

sorriso de Winston Gregory.

"Winston! Winston Gregory, venha aqui!— a voz estridente podia ser ouvida de cima

a baixo no quarteirão e sem dúvida Winston Gregory ouvira os gritos de sua mãe bem

Page 146: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

antes de ter respondido. No entanto, ele estava absorto no romance barato que tinha

escondido no balcão do fundo.

— Mãe pode esperar— ele disse a si mesmo, — Além de tudo eu não sou escravo

dela!— Ele interiormente lamentava a perda dos escravos deles. Os dois últimos tinham

sido vendidos na cidade de Nebraska porque os cidadãos de lá não permitiriam mais

escravidão em seu território.

— Uma instituição tão sensata— a mãe dele tinha reclamado — mas seu pai

pensava que nós simplesmente precisávamos tirar vantagens de uma cidade nova.

Embora eu não saiba como seguir em frente sem a Betsy". Lillia Gregory tinha feito um

sinal de desespero com o lenço de nariz e fechado os olhos, uma mártir dos desejos do

marido.

O pai de Winston, Randall Gregory, fora um advogado ambicioso e vigoroso, com

planos de ter um grande nome. Ele tinha herdado riquezas das propriedades do pai, mas

queria fazer seu próprio caminho. O território de Nebraska tinha a chave para a futura

posição social que ele ganharia pelos próprios méritos. Assim, Randall partiu o coração

da mãe, pegou sua imensa herança, empacotou sua esposa chorona e o filho mimado e

dirigiu-se ao — Oeste selvagem— Ele teve o bom senso de estabelecer-se na cidade em

crescimento, Lincoln, e a má sorte de morrer pouco depois de erguer uma mansão na

esquina da Rua 13 com a Rua J.

No momento em que o funeral do marido acabou, Lillia Gregory começou a encher

os baús e a fazer planos para voltar à civilização. Só o que faltava era vender a casa, e

um corretor tinha assegurado que aquilo poderia ser feito pelo correio. Winston dividia

com a mãe a paixão pelo retorno à — Sociedade real— mas então a beleza do cabelo

negro fora da farmácia foi flagrada pelo seu olhar. Winston tinha sorrido. Ela sorriu de

volta. Ele a seguiu até sua casa e fungou audivelmente quando viu o lugar onde morava.

Muito Tuim. A filha de uma empregada da Casa Hathaway. Suas perspectivas brilharam.

Não adequada para uma esposa, mas perfeita para um prazerzinho antes de sair da

cidade. Por que não?

No domingo, Winston Gregory agradou sua mãe oferecendo-se para acompanhá-la

à igreja. Ele estava muito bonito com seu melhor terno e chapéu. Bem quando estava

ajudando a mãe a descer da diligência alugada, Jesse e Lisbeth passavam a pé. Winston

tirou o chapéu e curvou-se. Lisbeth corou. Jesse balançou a cabeça, apertou os lábios e

entrou rapidamente.

Sentadas no banco de sempre, as duas mulheres esperaram o início do culto.

Winston Gregory indicou o mesmo banco delas à sua mãe:

— Senhoras, podemos assentar-nos com vocês?".

Jesse forçou um sorriso e escorregou no banco para deixar lugar. Lillia assentou-se

ereta e não agradeceu. Não era necessário tomar conhecimento da existência de

empregados na cidade, além de tudo. Winston cantou alto demais e deu bastante dinheiro

quando o prato de ofertas passou. Jesse colocou seu magro donativo e sentiu-se

miserável.

De volta à Casa Hathaway, Jesse e Lisbeth juntaram-se a Augusta para preparar a

refeição antecipada da tarde. A Casa Hathaway oferecia apenas uma refeição às três

horas do domingo, em deferência ao Dia do Senhor, e pela insistência de Jesse. A fé de

Page 147: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Augusta não era nem um pouco ameaçada pelo ganhar dinheiro no Sabbath, mas Jesse

insistia que elas, de alguma forma, honrassem ao Senhor.

Augusta tinha-se recusado categoricamente a fechar a cozinha do hotel.

— Você simplesmente não pode fazer isso, Jesse. Não é bom negócio."

— Bons negócios honram ao Senhor, Augusta. Qualquer outra coisa é sem valor."

Augusta havia há tempo aprendido que o exterior frio de Jesse era facilmente

agitado por assuntos em que sua fé no que era certo diante de Deus fosse desafiada.

— Compromisso, Jesse— Augusta incitava. — Nós não fecharemos, mas vamos

oferecer somente uma refeição. O Senhor não comeu no Sabbath? É claro que ele

entenderia que nós não poderíamos deixar nossos hóspedes com fome!"

— Poderíamos preparar um almoço frio no sábado, para servir no domingo."

— E perder todos os hóspedes para a Casa Cadman! Não nessa vida, Jesse King!

Sabe, vou levar em conta sua devoção quando puder, mas negócio é negócio e não

desistirei. Serviremos uma refeição quente às três horas, aos domingos. Mas só uma

refeição."

Augusta não mudou de idéia. Ela é osso duro de roer, Jesse pensou, bem como o

Homer.

Assim, o anúncio no Jornal do Estado, a vinte centavos, dizia:

Num esforço para honrar o Dia do Senhor e dar a todos um dia de descanso, os

hóspedes da Casa Hathaway são, de hoje em diante, notificados de que apenas uma

refeição será servida no Sabbath. Os hóspedes são convidados a tomar as refeições às

três horas da tarde, na sala de jantar do hotel. Um banquete suntuoso será servido.

Para grande surpresa de Augusta, nenhum hóspede reclamou. Ela atribuiu isso ao

— Banquete suntuoso". Jesse atribuiu às horas que ela havia gasto de joelhos, pedindo a

Deus que entendesse, e desse um jeito de ela honrar seu dia.

O tempo de Winston Gregory estava encurtando. Uma diligência partiria em apenas

dois dias e ele ainda não tinha conseguido beijar Lisbeth King. Ele tinha alugado a melhor

diligência de Joseph Freeman para a noite e agora se apresentava à Casa Hathaway bem

na hora em que Lisbeth estava arrumando as mesas para o almoço.

Winston limpou a garganta e Lisbeth pulou, virou-se e corou.

— Fiquei contente por vê-la na igreja ontem de manhã.— Ele viu a jarra de água

tremer quando Lisbeth tentou parecer natural e continuou a despejar água nos copos. Ela

espirrou um pouco.

— Eu queria saber se você estaria disponível para um passeio na carruagem esta

noite, após o jantar."

Lisbeth corou.

— Eu... Eu teria de pedir para a minha mãe."

Winston sorriu com paciência.

— É claro.— Lisbeth saiu da sala, passou pela cozinha e foi para fora, onde Jesse

estava colhendo cenouras do jardim.

— Mãe! Mãe! Winston Gregory está lá dentro e... e... ele quer-me levar a passear na

diligência esta noite!"

Jesse levantou-se de repente, chacoalhando as cenouras para tirar a terra. —

Lisbeth King, você tem só treze anos!"

Page 148: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Mas mãe, ele não sabe isso. Eu pareço mais velha. Todo mundo diz isso. Sou

madura para a minha idade.— Lisbeth foi ficando mais desafiadora ao ver a expressão da

mãe. Ela sabia qual ia ser a resposta.

Ela veio numa voz agradável, mas ainda assim foi difícil aceitar.

— Há muito tempo para você crescer, Lisbeth. Aproveite para ser uma menina por

mais tempo. Vou dizer não para Winston, por você.— Jesse moveu-se para passar por

Lisbeth, mas esta segurou a mão da mãe e disse, sentindo-se miserável: — Não, mãe...

vou eu lhe dizer. Eu sabia que não poderia". Os olhos escuros brilharam: — Mas mãe, é

bom ser notada e... ser convidada. Você não se lembra quando era uma menina e os

meninos a olhavam... não é gostoso?".

A pergunta era inocente, mas trouxe de volta a angústia da solidão, o sentimento de

rejeição de uma mulher jovem, solitária, quando os moços não a notavam e ninguém a

convidava para sair.

Jesse limpou sua garganta seca e mentiu:

— É claro, querida... isso é bom. Mas é cedo demais. Diga a Winston que você é

muito jovem. Jesse corrigiu-se: — Não, não precisa falar isso. Só fale que eu disse não,

que você precisa trabalhar na cozinha depois que os hóspedes comerem e quando você

acabar será muito tarde para passear". Jesse sorriu: — Faça-me parecer um bicho-papão.

E não precisa dizer-lhe que só tem treze anos. Eu sei que você não quer que ele pense

que é um bebê".

Lisbeth deu um abraço rápido na mãe e cochichou:

— Eu não queria ir mesmo, de qualquer forma. É um pouco assustador crescer,

mamãe. Obrigada por dizer não".

— Lisbeth, é para isso que as mães servem. Pode usar-me qualquer hora que

precisar de uma desculpa para dizer não e continuar de bem com os amigos. Não minta,

mas pode usar-me para o que for necessário, se precisar de socorro."

Lisbeth voltou à sala de jantar, onde Winston esperava cheio de esperança.

— Muito obrigada, Winston, mas...— Lisbeth suspirou dramaticamente — minha

mãe insiste em que eu arrume a cozinha depois que os hóspedes comerem. É claro, seria

muito agradável".

Winston virou o chapéu nas mãos e pensou numa alternativa: — Então vamos

caminhar depois que acabar seu serviço. Eu vou sair na diligência e quando a trouxer de

volta darei uma volta no estábulo, esperando. Saia então, quando tiver arrumado a

cozinha e sua mãe estiver dormindo".

Lisbeth hesitou.

— Vamos, Lisbeth. Vou embora depois de amanhã. Só quero alguém com quem

conversar. Tenho estado sozinho aqui... E..., puxa... achei que você entenderia.

O coração de Lisbeth enterneceu-se momentaneamente, mas Jesse veio para a

porta. Ela tinha ouvido e estava brava. Faíscas verdes saíam de seus olhos.

— Nós podemos ser uma classe trabalhadora, senhor Gregory, mas isto não

significa que minha filha possa ser usada para uma noite de diversão, quando você não

tem mais nada que fazer. Ela não vai sair desacompanhada, senhor, e sugiro que se

lembre disso, ou...— Jesse o cortou com sarcasmo, — vou contar à sua mãe o que você

estava querendo fazer".

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Winston Gregory corou de raiva, meteu o chapéu na cabeça e retirou-se. Lisbeth

tentou ficar brava com a mãe, mas uma olhadela em Winston e ela caiu na gargalhada.

— Ah, mamãe, ele estava fingindo ser tão adulto. Achei que ele fosse um homem,

mas olha para ele, precipitando-se rua abaixo só porque a senhora ameaçou contar para

a mãe dele! Que quadro!"

Numa onda de afeto, Lisbeth abraçou sua mãe:

— Obrigada, mamãe, por proteger-me desses espíritos maléficos de fantasmas e

bestas de pernas compridas e coisas que estouram na noite. E de Winston Gregory!".

Jesse estava séria.

— Lisbeth, em algum lugar, Deus tem um marido para você. Tenho certeza disto.

Tenho orado por ele, desde que você era pequena. Quando ele vier, nós vamos saber.

Até então, você precisa ser muito cuidadosa para nunca dar a ninguém o que deve ser

dado só a ele. Não desista de seus sonhos, pensamentos íntimos ou afeto até você ter o

homem certo."

— Você guardou os seus sonhos para o papai?— Lisbeth perguntou.

Jesse ponderou a pergunta e evitou respondê-la diretamente.

— Há alguém, no fundo de cada mulher, Lisbeth, só esperando ser amada. Ela

estava lá, dentro de mim, mas eu não sabia, até encontrar o papai."

Lisbeth viu a mudança de expressão da mãe. Aquele outro sorriso, o dos domingos,

no Forte Kearney, quase voltou. Lisbeth não via esse outro sorriso há muito tempo e isso

a fez doer por dentro. Isso a fez desejar um pai. Jesse sabia.

— Ah, querida Lisbeth, não se esqueça, quando sentir saudades de papai, pode

sempre contar para o Senhor. Ele prometeu ser seu Pai. Ele será o seu guia e nunca,

jamais a deixará."

— Algumas vezes isso não parece suficiente, mamãe.

Jesse apertou a mão da filha.

— Eu sei, doçura. Às vezes isso não parece ser suficiente para mim também. Mas

eu só dou uma respirada funda e dou o passo seguinte, e, de alguma forma, isso basta. O

Senhor me dá a graça para continuar." Quase sem parar, Jesse acrescentou: — Quando

o homem certo chegar, Lisbeth, ele preencherá o lugar dentro de você que papai deixou

vazio. O sentimento tomará conta e transbordará até você ficar vibrando com o amor

dentro de você. Por enquanto, não dê nada do coração de Lisbeth para esses tipos como

Winston Gregory, ou vou dar-lhe uma surra!".

Jesse tentou o gracejo, para esconder as lágrimas. Lisbeth era quase adulta. Os

homens a estavam convidando e algum dia ela estaria partindo — para onde?

Com um braço ao redor da cintura da filha, Jesse acrescentou:

— Agora vamos preparar a refeição. Prometi a Augusta que cuidaríamos de tudo

esta noite, para que ela participasse da reunião do banco. Vamos, então!".

Winston Gregory e sua mãe partiram na diligência da quarta-feira, às sete da manhã,

para Marysville, em Kansas, onde se encontrariam com a família de Lillia e voltariam para

o Missouri e para a civilização. De qualquer jeito, Nebraska continuou sem eles.

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Capítulo 27

Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além

daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse

glória...

Efésios 3:20-21

— Até que enfim está virando xarope, mamãe.— Lisbeth gritou, limpando sua testa e

continuando a mexer a panela grande com um líquido roxo, fervente. Jesse

apressadamente limpou, com um pano, as bordas dos últimos e poucos potes para

conservas e debruçou-se sobre o fogão. Juntas, as duas mulheres tiraram conchas do

xarope e puseram nos potes, selaram as tampas e se afastaram para examinar o

trabalho, com satisfação.

— Então, olhem, vocês não estão felizes por termos ajudado o Joseph a colher as

frutas?— perguntou Jesse. — Não há nada tão recompensador quanto uma despensa

cheia de conservas!"

"...a não ser um baú de enxoval cheio de colchas!— Lisbeth acabou a sentença para

sua mãe.

Jesse riu:

— Acho que já disse isso o suficiente, não é?".

Lisbeth sorriu pensativamente.

— Cada vez a senhora acrescenta uma colcha ao meu baú de enxoval, mamãe, e

há doze hoje, só que toda a esperança está quase acabando."

O esforço de Jesse para encorajar a filha, que havia presenciado os casamentos de

todas as suas colegas de classe, nos últimos meses, foi interrompido pela voz crescente

de Augusta:

— Venham aqui! Olhem isso... Eu nunca!".

Jesse e Lisbeth apressaram-se em ir para a sala da frente, onde Augusta olhava

com atenção para fora. O sol tinha-se escondido atrás de uma nuvem escura e a casa era

sacudida por ventos violentos que vinham de repente, com o troar da chuva de granizo.

Mas não houve granizo. Enquanto as três mulheres olhavam, a nuvem preta passou e o

vento aquietou-se. Na distância, elas podiam ver a nuvem, que parecia descer do céu.

Alguns gafanhotos apareceram na estrada.

— Estranho— Augusta murmurou. As três mulheres voltaram às suas tarefas e não

pensaram mais na nuvem até a manhã seguinte, quando colonos começaram a chegar na

cidade e a contar histórias inacreditáveis.

— Em duas horas, eles estavam a quatro polegadas no solo..."

— Estou acabado. Eles comeram as cebolas, bem ali, na terra.

— Tudo que foi deixado no meu jardim são buracos, onde havia cenouras e

beterrabas..."

— Eles subiram no meu vestido... e comeram a barra, o tecido, antes que eu

pudesse tirá-los e voltar para casa.

— As cortinas estão penduradas em farrapos, nas janelas..."

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— O gado ficou louco e fugiu..."

Jesse e Lisbeth oraram pelos colonos e ficaram gratas por estarem na cidade. A

nuvem passara sobre Lincoln, mas tinha sido uma calamidade para centenas de

colonizadores. Cercados por fogos da campina e inundações, quando a seca acabou,

tendo enfrentado tornados e nevascas, foram, por fim,varridos por insetos. Uns poucos

dias após os habitantes da Casa Hathaway terem visto a nuvem de gafanhotos passar por

cima da cidade, grupos de colonizadores começaram a chegar para pegar o trem de volta

ao Leste, para casa, para o Oeste, ou Norte — qualquer lugar.

Uma pobre mulher pegou o trem, naquela semana, chorando, histérica, e gritando

para os passageiros que desembarcavam:

— Vão embora, vão embora! Eu passei um inverno e um verão aqui. Deus abençoe

todos vocês, se ficarem nesse lugar amaldiçoado!". O marido dela, embaraçado, puxou-a

para dentro do vagão e gentilmente conduziu-a para um assento, com seus braços ao

redor dos ombros que balançavam.

Na sexta-feira daquela semana, um carroção frágil, parou do lado de fora da Casa

Hathaway. Mackenzie Baird gritou um "Ôooo" desnecessário para sua velha parelha, que

já tinha parado mesmo para beber água no cocho da rua; vagarosamente, desceu do

carroção. Ficou parado por um momento, com as mãos no lado do carroção, parecendo

inspecionar o que havia dentro.

Lisbeth viu pela janela da sala e ficou prestando atenção. A cabeça do homem

estava virada para o outro lado. Ela não podia ver o rosto dele, mas viu os ombros

levantando-se enquanto ele dava uma respirada funda. Ela viu o chapéu empoeirado ser

tirado e balançado fortemente, enquanto a outra mão fechada dava um murro no

carroção.

Antes de virar-se para o hotel, Mackenzie Baird prendeu o chapéu, um pouco grande

para a sua cabeça, e puxou a aba para baixo, sobre os olhos. Então, fez uma inspeção

elaborada na rédea gasta que prendia seus cavalos ao carroção. Com uma última

tentativa de bater o pó da camisa de flanela, Mackenzie deu uns passos para o hotel e

tocou o sino, chamando algum atendente.

Augusta atendeu à porta imediatamente, passando rápido para o pequeno escritório,

junto à sua sala de estar, no fundo.

A voz que Lisbeth ouvia, de seu lugar fora de vista, na sala de jantar, era suave,

profunda. Ela a descreveria, anos mais tarde, como um rio profundo, deslizando devagar

por um desfiladeiro de pedras. Eu quero saber se ele é tão bom quanto soa, ela pensou, e

corou. Lisbeth, você não é namoradeira... pare de ser dramática! Bem escondida,

continuou a bisbilhotar.

A voz era firme, mas levemente tensa.

— A senhora tem algum serviço disponível, com o qual eu pudesse pagar por um

quarto, madame? Joseph Freeman disse para eu tentar na Casa Hathaway, tão logo eu

chegasse na cidade.— A voz do jovem vacilou. Mackenzie limpou a garganta, enroscou o

dedão direito no suspensório e continuou: — Eu, é, nós — quer dizer, os gafanhotos nos

limparam e tão logo as coisas se assentem e eu ganhe o suficiente para um carroção

novo e uma parelha, vou partir— Ele se apressou em continuar: — Farei qualquer coisa

honesta, para ganhar a vida. Sou forte e trabalho bastante, mas o fato é que não tenho

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como pagar um quarto ou comida a não ser que arrume emprego".

A idade avançada não tinha embrutecido a capacidade de Augusta de admirar um

cabelo preto, farto, os olhos azuis profundos, dentes bonitos e um rosto inegavelmente

lindo. A idade, no entanto, a tinha ensinado a dosar sua bondade cuidadosamente,para

aqueles que a mereciam. Augusta posteriormente assegurou a si mesma, a Jesse e a

Lisbeth que a beleza de Mackenzie Baird não tinha nada que ver com sua imediata

admissão. Mais do que isso, fora seu uso da — Senha— que resultava em incontáveis

pessoas encontrando abrigo na Casa Hathaway. Mackenzie Baird chamou Joseph

Freeman de — Um amigo". Quando Joseph Freeman enviava alguém para Augusta, ela o

ajudava.

Assim, foi após uns momentos de luta, para Augusta olhar o caso de forma madura,

controlada, que Mackenzie Baird encontrou-se no quarto do hotel, introduzido por Jesse.

Um quarto limpíssimo, onde recebeu roupa de cama limpa das mãos da filha bonita, de

cabelo preto, que lhe dissera que o jantar seria servido em duas horas e então ficara

corada e praticamente descera as escadas correndo para a porta de frente do hotel.

Lisbeth parou logo, ao atravessar a porta. Uma tempestade, bem de manhã, tinha

transformado as ruas de Lincoln quase num atoleiro intransitável. A extremidade da

calçada acabava no final do quarteirão, ocupado só pela Casa Hathaway e pelo estábulo

de Joseph Freeman. Olhando seus sapatos novos, Lisbeth virou-se para a esquerda, em

direção ao estábulo. Levantando bem sua saia de chita, cortou caminho pela lama e

esquivou-se para dentro do estábulo. Já dentro, fechou os olhos e inspirou profundamente

o aroma maravilhoso dos cavalos recentemente tratados e do feno fresco. De cima,

Warbonnet, o gato-chefe do quarteirão, olhava para baixo como um rei.

"Warbonnet, vem cá, bichina, bichina...— Lisbeth chamou. Mas Warbonnet a

ignorou. Lisbeth correu escada acima para o sótão o mais rápido que suas anáguas

permitiam e jogou-se numa pilha de feno fresco. O gato levantou uma orelha na direção

dela e bocejou.

— Ah, está bem, Warbonnet, então não tenho nenhum leite comigo hoje. Mesmo

assim você tem que me ouvir.— Lisbeth baixou a voz e confidenciou: — É a melhor

notícia do mundo inteiro, Warbonnet. Eu o encontrei! Encontrei o homem com quem vou-

me casar.

Warbonnet não era um bom amigo. Ao primeiro som da voz de Lisbeth, ele tinha

visto um rato no lado oposto, no chão. Com uma chicotada com o rabo, do qual faltava

metade, pulou para baixo e começou a perseguição calorosa.

Lisbeth não ficou desencorajada.

— Bem... não acredita em mim. Mas eu sei o que sei e um dia, gato velho, você

verá. Mamãe e eu emendamos e costuramos, até fazer transbordar meu baú, com coisas

lindas. Eu quase perdi a esperança, mas agora não! Mackenzie Baird...— ela repetiu o

nome, alto, várias vezes. Então ouviu sons de passos embaixo e teve de ficar quieta ou

seria descoberta.

Era Joseph, trazendo a parelha de Mackenzie.

— Mas Joseph, eu não posso pagar isso. Vou levá-los para as margens da cidade e

deixá-los pastando. Ora! Eu vi gado pastando na relva ao lado das construções. Ninguém

vai-se importar com dois cavalos velhos, de puxar carroça, fora da cidade. Você não vai

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querer ocupar espaço nas suas cocheiras com meus cavalos."

— Mac, simplesmente se apresse— Joseph replicou — preciso falar que eu vou

ajudar você? E horrível o que aconteceu com todos nós. Você vai ficar bem. Tenho o

estábulo e minhas terras. A colheita está arruinada este ano, é lógico, eu tenho de

experimentar o lugar e pode demorar um ano, enquanto toco o estábulo. O que aconteceu

lá no seu lugar nunca deveria ter acontecido com ninguém, filho... e o Senhor Deus me

falou para ajudar você como eu puder. Então fique quieto e deixe esse preto velho

emprestar uma cocheira pra você!".

Na privacidade do estábulo, Mackenzie se abriu. A bondade demonstrada era muita.

Tinha-se preparado para a luta contra o horror daquilo que encontrara, ao voltar da

procura do gado, desde a noite anterior. Mas ele não se havia preparado para manejar a

bondade.

Sem jeito de escapar do sótão, Lisbeth ouviu os sonhos partidos do jovem

colonizador, derramando-se nos ombros largos de um antigo escravo:

— Por que ele fez isso, Joseph? Nunca vou entender o que o fez agir dessa

maneira. Nós poderíamos ter começado de novo. Podíamos ter cuidado de tudo...".

Joseph interrompeu o jovem:

— Não sei por que alguém tira a própria vida, filho. Não há nunca uma resposta.

Simplesmente deixa as pessoas para trás, com um buraco enorme nos corações e uma

grande culpa".

— Talvez fosse exigir muito dele."

— Perder sua mãe no inverno passado, ele sentiu demais."

Lisbeth espiou pela fresta do sótão. Mackenzie estava enxugando o rosto, com um

lenço desbotado, balançando a cabeça.

— E, quando a mãe morreu parece que o pai perdeu o interesse por tudo. Ele foi

decaindo desde então, mas nunca pensei... eu jamais suspeitei... nunca teria saído e

deixado ele sozinho...— A voz tremeu de novo, ameaçando chorar mais uma vez. Joseph

pôs sua mão magra no ombro do garoto.

— Pare com isso, menino. Você fez o que era certo. Alguém tinha de ver se havia

gado para ser cercado. Alguém tinha que assumir e continuar. Você agiu bem. Seu pai

tomou o caminho errado, filho. É só isso. O caminho errado. A vida lhe encheu as mãos

com coisas duras, mas o Senhor sempre ajuda seus filhos a resistir. Olhe aqui, Mac, você

não sabe nada sobre mim, e não vou contar muito a você também. O que passou,

passou, e não faz bem ficar desenterrando. Mas vou dizer-lhe uma coisa, já passei por

situações piores que enchentes e gafanhotos. Perdi a esposa, e não foi doença que a

levou, não, a não ser doença de um homem pensando que ele pode possuir pessoas e

comprá-las e vendê-las como se fossem animais. Perdi dois meninos da mesma forma.

Pensei que fosse ficar louco, quando isso aconteceu. Mas não fiquei. Eu só cantei e orei

por meu caminho para a liberdade, e orei um pouco mais e, finalmente, isto já não me

machucava tanto..."

Mackenzie olhou no rosto escuro, honesto, e falou sombriamente:

— Quanto tempo demorou até que você pudesse cantar e orar para continuar,

Joseph?".

— Não sei, Mackenzie, não sei."

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Os olhos azuis questionaram.

— Não sei, porque eu ainda estou cantando e orando para continuar. Esse tipo de

dor nunca vai embora, filho. Mas torna-se suportável. Ela enfraquece. E a sua também

enfraquecerá. Somente continue cantando e orando.— Joseph fez uma pausa. — Fale

pra mim, você sabe ler, menino?"

— Papai ia mandar-me para a universidade no ano que vem. Sim, eu sei ler."

— Então ore, cante e leia a Bíblia. Continue a fazer isto todos os dias e você vai ver.

O Senhor o sustentará. E quando você precisar, filho, você vem para o estábulo e deixa o

velho Joseph Freeman ouvir seus problemas. Somente o Senhor pode solucioná-los, mas

às vezes você precisa contar para alguém."

— Para quem você sempre conta, Joseph?"

Freeman respondeu rápido. — Só encontro duas pessoas a quem sempre conto.

Você já as conheceu. Lisbeth e sua mãe ouviram isso há muito tempo. A Sra. King, ela

nunca vai esquecer. Eu vejo isso em sua face, cada vez que ela olha para mim. Aquela é

uma mulher que nunca mostra muito seus sentimentos. Mesmo assim, eu sei que ela se

preocupa.

— Como você sabe?"

— Ah, ela não é de muitas palavras, a Sra. King não é. Ela só faz o que é certo e

fica de boca fechada. A semana passada um dos pobres negros, morreu. A família não

tinha dinheiro nem para enterrá-lo. Nós fizemos para nós um bom cemitério, a nordeste

daqui, chamado Wyuka — lugar de descanso— em sioux. Não é engraçado o homem

branco dando ao seu cemitério um nome desses, quando ele não vai dar um lugar para os

índios descansarem, em toda essa terra deles? De qualquer modo, o velho Jubilee

Jamison morreu e a família dele não tinha como pagar o enterro. Eles estavam gritando e

carregando uma coisa feia. Veio uma batida na porta e lá estava a Sra. King. Ela não

falou uma palavra, só deu um envelope e então saiu. Ela já estava no meio do caminho

de volta, quando a viúva do Jubilee veio atrás dela. A Sra. King virou-se e disse, com

bastante simplicidade mesmo: O Senhor providenciou para o Jubilee, Harriet. Não diga a

ninguém mais ou ele pode ficar chateado com todos nós, por estarmos exibindo nossas

boas ações!'. E é assim. O serviço funerário recebeu um chamado e Jubilee Johnson teve

um funeral realmente bom, depois de tudo. Agora pergunta para Sra. King sobre isto/ ela

só olha para fora da janela, sorri e diz: 'Não sei o que falar sobre isto, mas não é lindo

como o Senhor prove?'."

— Ela ouviu minha história e nunca vai esquecer. Posso dizer qualquer coisa que ela

ouve com cuidado. É um remédio, Mackenzie, repartir com outro ser humano todas as

nossas dores que a vida dá. Você tem um monte de dores para seus poucos anos.

Quando precisar pôr para fora, saiba sempre onde Joseph Freeman está!"

Joseph terminou o assunto.

— Agora, vamos correr! A Sra. Hathaway não demora muito para encontrar serviço

para alguém, e com certeza ela já tem um trabalho para você agora. Vá, descubra o que é

e comece!"

Page 155: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Capítulo 28

Se a tua lei não fora toda a minha recreação, há muito que teria perecido na

minha angústia.

Salmo 119:92

No fim, foi Jesse e não Augusta quem ajudou Mackenzie a encontrar serviço. Sua

procura diligente por um trabalho e seus modos gentis conquistaram as três mulheres da

Casa Hathaway. Jesse e Augusta concordaram que ele era — Um homem bem-educado".

Quando chegou o domingo e Mackenzie pediu permissão para acompanhar as mulheres

à igreja, a aprovação de Jesse elevou-se quase tanto quanto o coração da filha. Embora

fosse Augusta que Mackenzie escolhera para escoltar pessoalmente, e embora ele se

tivesse assentado no lado oposto ao dela, Lisbeth foi incapaz de concentrar-se na

exposição bíblica do Reverendo Samuel naquele dia.

A paixão da filha por Mackenzie não passou despercebida a Jesse. Quando Lisbeth

servia a refeição, Mackenzie recebia as maiores porções, os bolinhos mais macios, o café

mais fresquinho. Se acontecesse de ele olhar diretamente para ela, a jovem, sempre

cheia de vida, corava e gaguejava alguma resposta.

Ele estava em Lincoln somente há duas semanas quando anunciou que, tão logo

conseguisse economizar dinheiro suficiente para um novo equipamento, ele se dirigiria

para Black Hills, para tentar a sorte nas minas de ouro. Jesse tinha dado uma palavrinha

para J. W. Miles, proprietário de uma loja de tecidos e armarinhos na cidade, e Mackenzie

estava trabalhando para ele desde o dia seguinte à sua chegada na cidade.

— Lincoln é uma cidade boa— ele disse com uma deferência cheia de tato para com

Augusta — mas não sou o tipo talhado para viver em cidade. Eu cresci ao ar livre e não

agüentaria ficar fechado em uma loja por muito tempo.

Virando-se para Jesse, ele acrescentou apressadamente:

— Não quer dizer que eu não seja grato por tudo o que a senhora tem feito para me

ajudar, Sra. King".

Augusta o interrompeu:

— As minas de ouro de Black Hills não são exatamente o lugar mais seguro para

alguém fazer fortuna, Mackenzie".

Jesse concordou:

— Eu certamente entendo o seu amor pelo ar livre, Mackenzie. Mas por que não

voltar para a propriedade rural da família? O senhor Miles diz que você é um bom

trabalhador. Estabeleça crédito com ele para equipar sua fazenda. Possuir uma terra é

um caminho maravilhoso para um homem novo começar. Ora, você tem meio caminho

andado para sustentar uma esposa e família de fato". Jesse parou um pouquinho. —

Quero dizer, se uma família faz parte dos seus planos futuros— Ela se sentiu inoportuna

entabulando tal assunto pessoal, e rapidamente voltou para o assunto de Augusta. — Os

lakotas têm sido empurrados para tão longe... exploradores vindo para suas terras

estarão numa posição muito precária.

Sem ser convidados, outros homens na sala de jantar entraram na conversa.

— É, aquele massacre em 66 os fez pensar que eles poderiam empurrar-nos."

Page 156: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Outra voz cresceu:

— Carrington com certeza fez aquele serviço malfeito, certo? Devia tê-los submetido

a conselho de guerra".

— Eles tinham de enforcar dez desses selvagens assassinos por cada um dos

nossos meninos que eles têm esquartejado."

O rosto de Jesse ficou vermelho de raiva. Sua voz quis sair, mas a raiva revolveu-se

sem palavras. Tão rápido quanto ela tinha aberto sua boca, fechou, pediu desculpas à

mesa e correu para a cozinha.

Augusta percebeu. Potes e panelas estão com certeza sendo manuseados com

mais barulho do que sempre. Ela pulou com o barulho de um prato quebrando-se no

chão.

Enquanto os homens continuavam a opinar sobre a — Situação dos índios—

Augusta seguiu Jesse na cozinha, onde sempre a encontrava calma, nunca

emocionalmente simpatizante de bater coisas, resmungar para ela mesma, enxugar

lágrimas tanto de raiva como de suor em sua face. Lisbeth corria em volta, tentando

ajudar e ao mesmo tempo sair do caminho de Jesse.

Outro prato alcançou o chão e Jesse bateu o pé, irritada.

— Miséria" balbuciou veementemente.

— Jesse!— Augusta exclamou.

Jesse levantou os olhos, assustada. Augusta e Lisbeth olharam atônitas, sem fala. O

silêncio cresceu na cozinha. Joseph quebrou o silêncio incômodo, ao entrar pela porta do

fundo com uma braçada de lenha.

— Até que enfim!— ele exclamou. — Mulheres, vocês finalmente fizeram isso! Eu

ficava pensando quanto tempo três mulheres poderiam viver em cômodos assim tão

pequenos e não terem um arranhão. Então, o que aconteceu?"

Jesse fechou os olhos, olhou para o céu e respirou fundo.

— Joseph— ela disse, sua voz suave novamente sob controle. — Eu dei uma de

boba e quebrei dois pratos. Você se importaria de varrer isso, enquanto Augusta e Lisbeth

servem a sobremesa?"

Ela se virou para Augusta.

— Sinto muito, Augusta, mas eu não posso voltar àquela sala de jantar com essa

conversa continuando e permanecer polida. Se você não quiser ser forçada a fechar a

Casa Hathaway devido à insanidade de uma das 'serviçais', é melhor você servir a

sobremesa e deixar-me tomar um ar fresco."

Jesse não esperou Augusta responder. Ela passou por Joseph e bateu com força a

porta do fundo ao sair, batendo o pé. Augusta apressou-se a fatiar o bolo de maçã e

nozes que Jesse tinha tirado do forno. Joseph não perguntou mais nada. Pensando no

que havia acontecido e imaginando que Jesse e Lisbeth tinham tido algum tipo de

discussão, ele ajudou Augusta, trabalhando na cozinha enquanto Lisbeth e Augusta

caminhavam apressadas entre a cozinha e a sala servindo os fregueses.

Quando o último freguês pagante saiu, Mackenzie levantou-se rapidamente da

cadeira para ajudar a limpar as mesas. Quando Jesse não apareceu para ajudar com a

louça, ele arregaçou as mangas e pôs as mãos cheias de calos na água quente para

lavar. Joseph limpou as mesas, Augusta e Lisbeth secaram a louça e guardaram. Joseph

Page 157: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

e Mackenzie conversaram sob re qualquer coisa para evitar falar sobre o que lhes

interessava mais. Augusta e Lisbeth quebraram o recorde pessoal do silêncio.

Quando a última louça estava limpa, o chão varrido, as mesas postas para o café da

manhã, os dois homens deixaram Augusta sentada perto da lareira lendo. Lisbeth tinha

corrido para seu quarto, bastante preocupada com a explosão da mãe.

Mackenzie ouviu a voz tranqüilizadora de Joseph enquanto saía pela porta do fundo:

— Vou procurá-la, Sra. Augusta. Se ela não aparecer logo, vou arrear a velha mula".

Augusta murmurou agradecimentos e Mackenzie subiu as escadas para seu quarto,

de onde ficou olhando pela janela até ver Jesse retornando ao hotel, vindo do Oeste. O

cabelo grisalho dela ou tinha caído ou sido solto, e ela segurava um maço de flores em

sua mão esquerda. Antes de ela entrar, Mackenzie a viu parar e olhar a lua cheia do

outono que estava baixa, no horizonte. Ela abaixou a cabeça por um minuto e então

Mackenzie ouviu o barulho da porta e o som de vozes. Ele escutou bem. Incapaz de

decifrar as palavras propriamente ditas, ele ainda conseguiu entender o que escutou. O

murmúrio de vozes era baixo. Não havia raiva. Os tons eram suaves e confortantes. Após

alguns instantes, somente uma voz podia ser ouvida. As vozes continuaram até

Mackenzie cair no sono, com a luz do criado-mudo ainda acesa.

Augusta aceitou os pedidos de desculpas de Jesse com cordialidade:

— Tolice! Não precisa pedir desculpas! Faz um tempão que eu espero ver você dar

uma de louca, Jesse King. Fez bem para o meu coração". Com um sorriso largo, Augusta

desejou-lhe boa-noite a Jesse e dirigiu-se a seu próprio quarto. Ela pôs as flores que

havia colhido em um vaso, apagou a luz e caminhou para o hall em direção a seu quarto.

Soluços abafados vinham da porta de Lisbeth. Jesse abriu devagar. Lisbeth estava

deitada na cama, apertando a almofada que a mãe havia bordado recentemente.

Tão logo sentiu a mão da mãe em seu ombro, Lisbeth ficou quieta e falou baixinho:

— Mãe, ele não pode ir embora! Simplesmente não pode! Se ele for embora agora,

ele nunca saberá o quanto eu gosto dele".

Jesse deu uns tapinhas no braço da filha e concatenou seus pensamentos. Com

uma oração silenciosa por sabedoria, Jesse respondeu:

— Um homem jovem tem de seguir seu próprio caminho no mundo, Lisbeth. Você

não iria querer que ele fizesse nada menos do que seguir seu próprio caminho".

Lisbeth assentou-se repentinamente na cama, cruzou as pernas e jogou a almofada

no colo para apoiar os cotovelos. Descansando o queixo nas mãos, os olhos escuros

sérios, ela respondeu:

— É claro que eu quero que ele siga o seu próprio caminho, mamãe, mas se ele for

embora...".

— Lisbeth— Jesse suspirou — Mackenzie é um moço fino. Eu não poderia desejar

ninguém mais educado do que ele para você — se o Senhor o escolheu para você. Mas

querida— Jesse tentou suavizar a voz, — Não parece que haja... quero dizer, ele não me

pediu permissão para namorar você".

Lisbeth estava na defensiva.

— É claro que não, mãe! Mackenzie jamais pediria para namorar uma menina se

não tem. condições de sustentar uma esposa.

— Ele tem a propriedade da família.

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— Ele nunca voltará para lá.— A voz tremeu com sentimento.

— Por que não? Joseph diz que são acres e mais acres de terra rica.

Os olhos de Lisbeth encheram-se de lágrimas.

— Ah, mamãe, é tão terrível. E tão triste, mas ele nunca vai conseguir voltar.— Ela

expôs, o que acontecera no sótão do estábulo de Joseph, o compartilhar emocional de

Mackenzie, o suicídio de seu pai. O coração de Jesse encheu-se de compaixão e afeto

pelo moço, que tão cedo fora exposto à dor de coração e ruína.

Antes que Lisbeth acabasse a história, Jesse tinha coberto as mãos da jovem filha e

apertado carinhosamente. O gesto deu coragem a Lisbeth para continuar, após ter

contado a história de Mackenzie.

— Mamãe, não posso explicar isso. É claro que sinto muito por ele, mas quando ouvi

as palavras —quando vi como ele se sentia — eu só podia amá-lo! A senhora acha que

isso pode acontecer desse jeito, mamãe? Uma mulher pode amar alguém tão de repente?

É assim que se ama alguém?"

De um jeito característico, os olhos cinza de Jesse afastaram-se enquanto ela

ponderava sua resposta.

— Eu não sei, Lisbeth. Não me lembro."

Impulsivamente Lisbeth interrompeu-a:

— Ah, mãe! Você é sempre tão... tão analítica! Honestamente, eu não me lembro

nunca de tê-la visto nervosa — até esta noite. Por favor, não fique magoada, mãe, mas às

vezes eu fico pensando se a senhora consegue porventura entender como eu me sinto."

Jesse levantou-se de repente e cruzou o quarto para olhar-se no espelho. Lisbeth

notou pela primeira vez que o cabelo da mãe caía pelas costas. Jesse segurou com uma

mão e começou a balançar um cacho grisalho com os dedos.

— Você pensa que eu não entendo como é sentir-se jovem e apaixonada. Bem,

talvez eu tenha-me esquecido de algumas coisas. Mas, agora mesmo, você sabe o que

eu estava pensando?"

Jesse virou-se para olhar a filha.

— Eu estava olhando no espelho e pensando. Quem é aquela mulher velha que veio

interromper minha conversa com Lisbeth?— Jesse procurou os olhos da filha e encontrou

vontade de ouvir e tentar entender.

— Veja bem, Lisbeth, quando eu penso em mim mesma, não penso naquela mulher

que eu acabei de ver no espelho. Às vezes, sou uma criancinha, correndo para o poço

para bombear aguar fresca para minha mãe. Então, num outro momento, sou uma jovem

esposa, fazendo compras para encher um carroção para uma viagem que cruzará a

planície. Estou morrendo de medo, mas estou fazendo o que eu tenho de fazer. Às vezes

sou uma mulher triste, lamentando a perda de seu marido. Mas nunca, Lisbeth, nunca eu

penso em mim como a mulher velha que você vê. Parece que faz tão pouco tempo que eu

era moça. Ah, eu nunca fui bonita como você, e certamente nunca tão impulsiva, mas era

jovem. E ainda sou jovem por dentro. Sim, querida, eu me lembro mesmo como era e,

sim, eu tenho sentimentos fortes também. Eu apenas pratiquei bastante para escondê-los

de forma que outros não os vejam...— Jesse hesitou antes de acrescentar: — Assim, os

outros não me vêem. Lisbeth querida, nem sempre aceite o que você vê, porque, se

aceitar, então você não verá a mim. Eu sei que geralmente sou de fala mansa e bem

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reservada, mas eu me lembro de encher um baú inteiro de enxoval com colchas... e

esperar... e esperar... e ninguém veio encher minhas esperanças. Eu me lembro da dor e

a seguir do aprendizado em amar alguém que eu nunca escolhera para mim e então de

sofrer novamente, mais do que eu jamais pensara ser possível. Eu aprendi a confiar no

Senhor em todas essas coisas. Há um versículo bíblico, Lisbeth: 'Tudo fez formoso em

seu tempo'. Eu aprendi a verdade deste versículo e agora, as mãos de Jesse tremeram

ao repartir e trançar o cabelo grosso vagamente, — Agora eu acho que é hora de você

aprender sobre sua mamãe e você mesma. Enxugue as lágrimas, lave o rosto e encontre-

me na cozinha".

Jesse saiu e Lisbeth espirrou água no rosto, foi para a cozinha, ativou o fogo e

sentou-se em uma das cadeiras de balanço, com seu coração aos saltos.

Quando Augusta respondeu à batida delicada em sua porta, Jesse sussurrou:

"Graças a Deus— e então disse rápido:

— Augusta, estou para fazer algo de que eu poderei arrepender-me, mas vou fazê-lo

antes que perca a coragem. Você pode vir para a cozinha comigo e ficar lá enquanto

conto uma coisa para Lisbeth?".

Augusta viu medo nos olhos da amiga. Ela agarrou seu guarda-pó e seguiu Jesse

para a cozinha, onde Lisbeth esperava.

Jesse limpou a garganta e então a coragem lhe faltou.

— Esperem aqui— ela disse, e saiu de novo. Augusta e Lisbeth trocaram olhares

curiosos e esperaram. Quando Jesse reentrou na cozinha, estava carregando a colcha de

retalhos esfarrapada que sempre cobrira sua cama. Lisbeth tinha tentado substituí-la

inúmeras vezes, mas Jesse não aceitava. — Ela me serve— dizia, — E nunca faça nada

com essa colcha. É mais do que tecido velho e linha. Estes pontos têm segredos, todos

os quadros contam histórias e algum dia vou contá-las".

A colcha permanecera na cama, estragando-se mais e mais, esgarçando até quase

não ter mais conserto. Ainda assim Jesse se agarrava a ela.

Agora ela estava tremendo diante de sua única filha, agarrou-se à colcha e disse:

— Lisbeth, eu sei que você quis que eu me livrasse desta coisa por anos, e eu

nunca me livrei. Bem, agora você vai saber por quê. Eu lhe disse que estes pontos têm

segredos e os retalhos podem contar histórias e agora, eu acho— Jesse parou e respirou

fundo, — Agora acho que é hora de você ouvir as histórias".

Jesse abriu a colcha no chão entre elas e Lisbeth e Augusta foram para a frente, nas

cadeiras. A luz do fogo dava um brilho aconchegante ao cômodo. Ninguém tinha acendido

a lâmpada e assim, as três mulheres assentaram-se à meia luz. Jesse começou,

passando a mão na colcha e mostrando o painel central:

— Começa aqui, Lisbeth. Os quadros de cabanas de troncos são minha casa em

Illinois. Havia mamãe, papai, minha irmã Betsy e eu.— Jesse descreveu sua casa—as

árvores, os celeiros, os campos— para Lisbeth. Ela parou de repente. — Mas Lisbeth, seu

conhecimento sobre o lugar onde eu cresci e como ele era, — isso não diz nada a você

sobre mim, diz?— Sua voz tremeu um pouco quando continuou a contar sobre seu

próprio baú de enxoval, os desapontamentos de sua juventude e como ela tinha-se

casado com Homer King.

— Mas Mamãe— Lisbeth interrompeu, todas estas histórias você já me contou, o

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quanto amava papai, e como...."

— Quieta, Lisbeth, ou eu nunca vou conseguir, sua mãe ordenou, — você vai ouvir

tudo, mas é duro para mim falar sobre isso. Às vezes dói lembrar".

A mão de Jesse escorregou pela colcha até a próxima fileira de quadros.

— Estas ainda são as cabanas de tronco, mas todas cortadas, pela metade. Eu a fiz

assim, pois quando Homer decidiu que sairíamos de Illinois, parecia para mim que meu

lar estava partido. Eu me senti como que partida por dentro também.

— E estas— Jesse disse passando os dedos sobre as rodas que tinham sido

bordadas nas próximas extremidades de tiras de tecidos lisos, largas, — Estas são as

rodas que me levaram para longe de todos que eu conhecia e de tudo o que eu amava".

A voz de Jesse equilibrou-se ao recontar o número de semanas na caravana, as

travessias de rio, as rodas quebradas e a morte de Jacob.

Lisbeth abriu a boca assombrada:

— Eu tive um irmão, mamãe? Você nunca me contou. O que significa a próxima

fileira, mamãe? Os pedaços de diamante...— Jesse enviou uma rápida súplica aos céus

por coragem. Ela limpou a garganta e então mergulhou no capítulo seguinte de sua vida.

— Estes são sobre a parte de minha vida mais difícil de contar. Eu sempre soube que

deveria. Mas toda vez que tentei, perdi a coragem."

Os olhos de Lisbeth se arregalaram, imaginando coisas terríveis.

— Lisbeth, os diamantes estão costurados juntos para formar um triângulo, e

triângulos formam tendas. Tendas indígenas — tendas que outrora temi, mas então vim a

chamar de lar... depois de Homer morreu... e eu fui levada pelos lakotas... e encontrei seu

pai.— Jesse levantou os olhos para a filha. Lisbeth sentou-se abruptamente para trás em

sua cadeira, boquiaberta. Um sulco apareceu entre suas sobrancelhas enquanto ela

tentava compreender o que sua mãe tinha acabado de dizer.

Augusta sentou-se mais à frente da cadeira ainda, que fez barulho devido a seu

peso. Jesse pulou com o barulho súbito e apressou-se a adiantar a história, contando

tudo o que podia, tentando contar sobre anos em poucos momentos, tentando contar

antes que sua coragem falhasse, Lisbeth a detivesse ou Augusta a interrompesse.

Augusta não tinha intenção de interrompê-la e Lisbeth estava sem fala. Qual emoção

exatamente a deixou sem fala Jesse não saberia dizer, pois tinha medo de olhar para

cima.

Ela dirigiu sua atenção à colcha, contando a história. Ela descreveu Cavalga o

Vento, Velha, Duas Mães, que se tornara Águia que Voa Alto e Flor do Campo.

Finalmente falou sobre Lobo Uivante e sua ida para a cabana de Pierre Canard.

— Foi nesse dia que você nasceu, Lisbeth. Nesse dia, na cabana de Pierre Canard."

Jesse continuou contando à filha sobre a dificuldade em lhe dar um nome. Explicou

que o W. em seu nome era para Wind e que ela quase se tornara a Filha do Vento. E

compartilhou sobre a depressão que tinha enfrentado, a perda, e finalmente como ter

encontrado os retalhos de Suzette Canard e feito a colcha a tinha ajudado a curar seu

pesar. Ela foi para o último bordado.

— E este último bordado, Lisbeth— disse Jesse num cochicho rouco, — Esta videira

é a Videira Verdadeira, meu Senhor Jesus Cristo, que se tem colocado ao redor de tudo o

que sempre aconteceu comigo e fez tudo formoso a seu tempo".

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Finalmente ela havia contado cada ponto. Jesse estava exausta. Puxando a colcha

para si, sentou-se no chão da cozinha, envolveu nela o corpo a colcha de retalhos e não

chorou.

Lisbeth fitou com descrédito a colcha de retalhos que se espalhava do colo de sua

mãe para o chão. Seus olhos seguiam os motivos para cima até as mãos enrugadas que

a seguravam. Elas se mexiam nervosamente. Finalmente, Lisbeth olhou nos olhos cinza,

solenes, da mulher que a tinha trazido à luz.

Jesse King já não era mais somente mamãe. Com a história da colcha ela tinha-se

tornado uma mulher que havia amado e sofrido, mantido sua fé, crescido e triunfado em

seu próprio e silencioso caminho.

O silêncio tornou-se pesado demais. Jesse o quebrou.

— Então Lisbeth, é assim que você veio a existir.— Ao falar, os olhos de Jesse

procuraram o rosto da filha ansiosamente. A expressão de Lisbeth revelava uma

tempestade de perguntas se revolvendo interiormente. Uma parte dela estava zangada.

Ela queria acusar a mãe de mentir. Mas, ao retroceder nas lembranças, sabia que Jesse

nunca tinha mentido. Ela tinha sempre parado pouco antes da verdade toda aparecer.

Mas ela nunca tinha mentido.

— Por que a senhora não me contou?"

— Eu tinha medo, Lisbeth."

— A senhora tinha vergonha!— Lisbeth retorquiu.

Jesse ficou firme.

— Eu nunca tive vergonha, Lisbeth. Eu tentei ser verdadeira com o Senhor e

verdadeira com seu pai. Mas eu queria proteger você daquilo que outros poderiam dizer

para machucá-la.

Um rio de questões desaguou.

— Como ele era? Como era o meu pai?— ela queria saber.

A face de idade avançada brilhou com amor.

— Tudo o que já disse para você sobre seu pai era verdade, Lisbeth. Tudo sobre a

bondade dele, o caráter dele, o amor dele. Mas o nome dele não era Homer King. Era

Cavalga o Vento. Esta é a única coisa que eu não contei direito.— A voz de Jesse falhou:

— E talvez esta fosse a coisa mais importante para você saber".

— Aquela mulher no Forte Keaney — era Flor do Campo?— Jesse concordou e

Lisbeth começou a entender a conversa ansiosa de sua mãe naquela noite.

— O que aconteceu para Águia que Voa Alto?— Jesse contou o que sabia.

Perguntas e mais perguntas foram feitas noite a dentro, até que a mente de Lisbeth

estava cheia demais para receber qualquer outra coisa e a voz de Jesse quase sumira.

Finalmente, Lisbeth olhou para a colcha.

— Agora entendo porque a senhora jamais largaria essa colcha.

Jesse levantou os olhos.

— Você está zangada comigo, Lisbeth?"

— Ah, mamãe, eu queria ficar zangada, mas não posso. A senhora disse que não

me contou porque me ama. Eu sei que a senhora me ama, mamãe. Como posso ficar

brava com a senhora, se durante todos esses anos guardou os segredos aí dentro?

Todos esses anos achei que a senhora fosse apenas mamãe, e havia um mundo inteiro

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de coisas sobre a senhora que eu não sabia! Não posso ficar brava. Mamãe. Eu tenho tão

poucos problemas com que me preocupar e a senhora tem um monte deles."

Impulsivamente, Lisbeth ajoelhou-se perto da mãe, envolveu-a em seus braços e

derramou suas primeiras lágrimas de mulher.

Augusta juntou-se às lágrimas e; quando Lisbeth e Jesse finalmente se levantaram,

Jesse sorriu encabulada e falou:

— Eu disse a você no começo que tivera meus momentos e agora você sabe sobre

todos eles. Você tem sido uma amiga querida Augusta. Achei que merecia ouvir isto.

Espero que isso não mude as coisas... mas, se mudar, eu entenderei". Jesse revestiu-se

de coragem e preparou-se para proteger Lisbeth de qualquer coisa dolorosa que pudesse

vir agora que Augusta sabia que tinha empregado uma mulher de passado questionável

com uma filha de herança questionável.

— Jesse King— Augusta ralhou esfregando o rosto para tirar as lágrimas e

passando a mão de Jesse no rosto. — Eu não sou boba e eu sabia que você tinha alguns

segredos para contar. E não pense que não fui capaz de saber que dois e dois são quatro

nestes poucos anos passados com todo o problema com os índios, e vendo suas reações

às notícias e às conversas na sala de jantar.

— Por Deus do céu, mulher! Eu sabia que havia mais coisa cornos índios em sua

história do que você contava. E com a mentalidade justa que você tem, Jesse King, sendo

uma mulher tão cristã que educou a filha para ser uma boa cristã... o que os olhos não

vêem, o coração não sente. É isso aí!"

Então Lisbeth, Jesse King e Augusta Hathaway foram para seus quartos descansar

durante as horas restantes antes do amanhecer. Jesse pôs a colcha esfarrapada em sua

cama e lembrou-se das coisas que pertenciam somente a ela e a Cavalga o Vento.

Augusta afundou em seu acolchoado e preocupou-se com o futuro.

Mas Lisbeth ficou deitada, acordada, revendo tudo aquilo em sua mente e

carregando um grande peso. Como poderei casar-me com Mackenzie, ela pensou, agora

que eu sei? Como poderei algum dia casar-me com um homem respeitável? Pois Lisbeth

tinha ouvido a conversa da sala de jantar e tinha lido os artigos do jornal. Eles descreviam

"demônios em forma humana" cometendo — Bárbaras traições— Sem — Nenhuma

preocupação pela vida humana". Mamãe tinha descrito um homem que amava sua

esposa e filho. Era tão confuso! Mas, Lisbeth raciocinou, nós vivemos no mundo dos

brancos. Ela tinha visto como os mestiços eram tratados... e agora ela tinha-se tornado

um deles. Minha vida é toda farrapos, bem como a colcha da mamãe, mas mamãe fez o

melhor que pôde. Lisbeth decidiu ser corajosa, como o pai dela, Cavalga o Vento. Ela

guardaria a dor consigo mesma. E, naquele momento, Lisbeth tornou-se uma mulher,

exatamente como sua mãe.

Capítulo 29

...mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-se das coisas que atrás ficam, e

avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da

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soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.

Filipenses 3:13-14

— Basta, Mac..., pode fechá-la. — J. W. berrou a ordem tão alto que Mackenzie

ouviu facilmente, embora J. W. estivesse no fundo da loja e Mackenzie varrendo o chão

perto da vitrina da frente. A ordem teve o efeito desejado. Duas jovens que tinham estado

traquinando no balcão de doces pularam e saíram correndo. A senhora Bond decidiu que

levaria seis jardas do rosa de duas larguras e deixaria o dourado Califórnia — embora

achasse que a filha Charity ficaria tão bonita em dourado na social da igreja na próxima

semana. A senhora Bond fez o último comentário o mais despretensiosamente possível.

No entanto, quando falou o nome de Charity, ela olhou o jovem Mackenzie

cuidadosamente, para ver qualquer reação ao som do nome de sua filha.

Aparentemente Mackenzie tinha alguma coisa em sua mente. A Sra. Bond tentou de

novo.

— Você vai à social da igreja, não vai, Mackenzie?

Enquanto Mac media o tecido, J. W. andava para a frente da loja, fazendo barulho

alto com as chaves da porta. Mac cortou e dobrou o tecido, embrulhou-o com papel

marrom e amarrou-o com barbante.

— Ponho isto em sua conta, Sra. Bond?

— Ah, sim, Mackenzie, por favor — ela suspirou e virou os olhos. Tenho certeza de

que a Charity virá aqui pelo menos mais uma vez para se divertir com outra compra antes

da social. Ela vai precisar de luvas e... ai, me esqueci! Você é novo na cidade, não é

Mackenzie? Eu tenho certeza de que Charity ficará contente em ter você junto com ela e

com os amigos dela na social. A Charity vai ficar feliz em apresentá-lo aos outros jovens

da igreja. Você não teve muita oportunidade de encontrar ninguém, teve?

J. W. balançou as chaves de novo e limpou a garganta.

— Tenha um bom dia, Sra. Bond. Obrigado por vir aqui. Lembranças à família... —

Ele mexeu a porta aberta.

A Senhora Bond não saía facilmente.

— Então, Mackenzie, vou certificar-me de que Charity venha aqui amanhã. Vocês

dois podem combinar então.

J. W. levantou uma sobrancelha às costas da Sra. Bond e balançou a cabeça para

Mackenzie, fazendo uma careta.

— Bem, eu que agradeço, Sra. Bond. Estarei participando da social, é claro, mas

provavelmente chegarei tarde. Tenho de ajudar a fechar aqui, a senhora sabe, e eu não

gostaria de que Charity tivesse que ficar me esperando.— Ao falar, Mackenzie pegou o

braço da Sra. Bond e educadamente a acompanhou para a frente da loja. Agnes Bond de

repente viu-se parada na calçada da loja falando com a porta fechada.

J. W. já tinha girado a tranca na porta e abaixado as cortinas. Apertando firmemente

seu pacote, Agnes pôs-se a descer a calçada e a atravessar a rua. Ela não tinha

alcançado o outro lado quando um sorriso emoldurou seu rosto, formando covinhas. Que

boba que sou, ela pensou, Charity não vai querer esse rosa forte. Tenho certeza de que

ela vai querer que eu troque, mas estarei muito ocupada arrumando as conservas. Ela

terá de fazer isso sozinha!

Page 164: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Quando J. W. fechou a porta da loja, deu um tapinha nas costas de Mackenzie.

— Bom trabalho, meu garoto! Agora vou dizer-lhe uma coisa sobre o negócio de

tecidos. Compre a melhor mercadoria, venda a um preço razoável e — ele deu uma

piscada — Nunca, mas nunca permita que Agnes Bond planeje sua vida social! Uma mãe

à procura de um marido para sua filha não é coisa pra se brincar.

Mackenzie riu em resposta.

— Ah, a Charity não é tão ruim, Milles, ela é só um pouco mimada, só isso.

— Um pouco mimada! A bondade jorra de sua língua, jovem.

Mackenzie mudou de assunto. Puxando um livro de debaixo do balcão, ele disse:

— Ah! Quase esqueci... preciso pagar isto!

Miles pegou-o para marcar na caixa registradora e leu alto:

— Memórias do Oeste Selvagem, de Francis Day— Ele olhou para Mackenzie: —

Você se interessa pelas guerras com índios, Mac?

— Eu li uma crítica no jornal. Dizia ―ela mostra que entende o grande Oeste‖ e eu

achei que deve ser interessante ler. Eu ainda era bem jovem quando tudo começou.

J. W. não perguntou mais nada. Pegou o dinheiro de Mac, embrulhou o livro e

deixaram a loja juntos — pelos fundos e longe de Agnes Bond. Mac correu rápido pelo

fundo do estábulo e até a porta da frente do hotel. Olhando cuidadosamente em volta,

andou em silêncio pela sala de jantar e entrou na cozinha onde Lisbeth estava ajudando

sua mãe a preparar o jantar.

Jesse sorriu uma saudação. Lisbeth não levantou os olhos, até Mac chamar seu

nome.

— Lisbeth. — Foi a vez de Mac sentir-se embaraçado. No lugar daquela menina que

corou e tremeu, na primeira vez em que ele a viu, quando chegou, ali estava uma jovem

mulher calma, que parecia — bem — completamente desinteressada no que ele tinha

para dizer. Ela estava agindo assim há umas duas semanas, e ele tinha de admitir que

isto o fazia sentir-se embaraçado. Isto também tornava Lisbeth terrivelmente atraente.

Mac levantou o pacote.

— Isto chegou no Miles. Sei que você gosta de ler e achei que pode divertir-se com

ele.

Lisbeth pegou o presente friamente e o desembrulhou. Correndo os olhos para o

título, corou e voltou-se para Jesse.

— É aquele livro da Sra. Day, mãe. Mais uma história de índios sanguinários e a

pessoa branca indefesa que eles estão assassinando. — Virando-se para Mac, ela

acrescentou amargamente: — Fico pensando, Sr. Baird, será que a Sra. Day menciona

que os brancos em questão têm violado mais pactos e tomado mais terras dos índios? A

Sra. Day menciona as mulheres índias e crianças assassinadas pela infantaria?

— Lisbeth! — Jesse falou brusca e asperamente. — Lisbeth, Mackenzie fez-lhe uma

delicadeza. Onde estão os seus modos?

— Obrigada, Mackenzie — Lisbeth disse mecanicamente.

Mackenzie fitou o livro com arrependimento.

— Desculpe-me, Lisbeth... eu só queria... eu não queria... — Ele decidiu mudar de

assunto. — Vim na verdade convidá-la para a social da igreja na próxima semana. Mas

imagino que não queira ir comigo... Desculpe-me, eu...

Page 165: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jesse interrompeu.

— Mackenzie, você não precisa desculpar-se por ter trazido um presente à minha

filha. Foi uma coisa muito boa que você fez, e se ela é tão mal-educada a ponto de não

agradecer direito, eu agradeço. Muito obrigada por ser tão bom. — Jesse virou-se para

Lisbeth esperando que ela entrasse na conversa. Ao contrário, Lisbeth tirou o avental

cuidadosamente, dobrou-o pondo no encosto de uma cadeira e saiu da cozinha.

Mackenzie ficou olhando-a sair. Pegando o papel e o livro, ele virou-se para sair da

cozinha.

— Espere, Mackenzie — Jesse falou. — Espere eu conversar com ela. Tenho

certeza de que ela adoraria ir à social com você. Só deixe eu ir ver o que está

acontecendo com ela!

Mackenzie deu um sorriso largo.

— Obrigado, Sra. King. Eu não posso entendê-la mesmo. Achei que ela gostava um

pouco de mim. — Ele corou na frente da mãe de Lisbeth, de todas as pessoas. — Não

que ela tenha flertado ou outra coisa...

Jesse abaixou a voz.

— Acho que Lisbeth seria um tanto boba se não gostasse de você, Mackenzie... e

eu não criei uma boba. Se você tiver paciência, eu vou tentar chegar à raiz desse

negócio.

Mackenzie assentou-se na cozinha e arregaçou as mangas.

— Só me dê serviço, Sra. King... e será um prazer esperar.— Ele ficou, de repente,

muito sério. — Eu quero mesmo que ela vá comigo à social da igreja.

Augusta deu as ordens, na porta do fundo, gritando:

— Jesse, aqui está uma mistura de feijão se é que você já viu uma. Eu sabia que

valeria a pena plantar! — Augusta tinha ouvido Mac pedir serviço e colocou o cesto cheio

de feijões na frente dele, deu-lhe um tapinha carinhoso nas costas e ordenou: — Trabalhe

neles, jovem!

Mac sentou-se para trabalhar e Jesse foi atrás de Lisbeth.

Dava para ouvir o choro de Lisbeth antes de abrir a porta de seu quarto. Ao som do

barulho dos trincos, Lisbeth olhou. Ao ver Jesse, disse dramaticamente:

— Ah mãe! Eu ia ser tão corajosa, tão adulta. Eu decidi que eu não ia nem me

importar se não pudesse me casar com o Mac. Eu decidi mesmo parar de olhar para ele,

e às vezes eu nem penso nele. Decidi ir para a universidade, como a Hortense. Vou

dedicar minha vida ao ensino e não vou importar-me se não puder casar. Eu tinha

planejado e parecia que estava tudo certo. Além disso, Mackenzie nunca me notou antes.

Ela acrescentou miseravelmente:

— Então ele teve de vir e me dar aquele livro bobo e me convidar para a social da

igreja. Mãe! Mackenzie Baird não sabia que eu existia todas estas semanas que ficou em

Lincoln. Como pode, bem quando eu decido não me importar...

— Mas você se importa, Lisbeth — Jesse interrompeu.

Lisbeth deu de ombros e fez uma careta.

— Você se importa mesmo — Jesse insistiu.

— É claro que eu me importo— ela resmungou. — Mas isso não interessa. Porque

Page 166: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

ninguém tão bom quanto Mackenzie se casaria comigo algum dia.

— Por que não, Lisbeth?

Lisbeth tentou não dizer. Ela não queria falar nisso. Mas a palavra estava no ar e,

finalmente, ela a agarrou e jogou para sua mãe.

— Porque eu sou uma mestiça, é por isso. Eu leio jornais, mãe. Sei o que as

pessoas vão pensar. O que elas vão dizer. Quando descobrir a verdade, Mackenzie não

vai querer nem andar do mesmo lado da rua em que eu ando e muito menos ir à social da

igreja. E Deus me livre de pensar na palavra casamento!

Jesse ficou um pouco impaciente.

— Lisbeth, você não está sendo um pouco dramática demais? O moço

simplesmente lhe deu um presente e a convidou para a social da igreja.

— Você não entende, mãe! — veio a resposta irritada. — Eu não posso ter uma vida

normal, agora, porque eu não sou uma menina normal. Meu pai corria pela campina,

seminu, retalhando seus inimigos. Como isso seria registrado num convite de casamento?

Lisbeth tinha jogado as palavras com muita precipitação para poder recolhê-las. O

efeito delas em sua mãe foi imediato. Jesse fechou ambas as mãos em volta da balaústre

da cama até suas juntas ficarem brancas. Manchas verdes apareceram nos olhos cinza

quando ela disse:

— Pela primeira vez desde que você nasceu, Lisbeth, sinto vergonha de você. Seu

pai usava pele de animal em vez de ternos de lã. Ele falava uma língua diferente. Ele

parecia diferente dos homens em nossa sociedade. Mas quando se trata do valor de um

homem, Lisbeth, essas diferenças não fazem, na verdade, nenhuma diferença. Você dá

menos valor ao Mackenzie por saber que o pai dele era um homem fraco que se

suicidou? Claro que não. O Mackenzie vai dar menos valor a você quando souber que

seu pai era um valente lakota? Eu não sei. Mas acho que Mackenzie merece mais do que,

subitamente, ser desprezado pela mulher de quem ele gosta, sem nenhuma explicação.

— Talvez ele mude de idéia quando souber que você é mestiça. Mas Lisbeth, você

tem de correr esse risco. Não use seus pais como uma desculpa para ser miserável. Seu

futuro é responsabilidade sua, Lisbeth. Eu não serei culpada por alguma felicidade

imaginada que você pense que roubei de você. Deus me pôs nos braços de seu pai e

você não tem o direito de dizer que havia qualquer coisa errada nisso.

— Cavalga o Vento foi um homem lindo, bom. Eu o amava. Eu ainda o amo e você o

teria amado também se tivesse tido a chance de conhecê-lo. — Jesse abaixou a voz e

disse com bastante frieza: — Você nunca falará dele com desrespeito de novo, entendeu?

O monólogo de Jesse tinha sido dito num tom de raiva que Lisbeth nunca ouvira

antes. Isto a deixou um pouco com medo. Agora, na voz familiar da mamãe, Jesse

acrescentou:

— Agora, há um homem muito bonito lá na cozinha esperando para acompanhá-la à

social da igreja. Conte a ele sobre seu pai. Eu a eduquei para ser honesta, por isso diga a

Mackenzie a verdade e tome seja qual for a resposta como sendo do Senhor. Se

Mackenzie aceitar você como você é e ainda quiser levá-la à social, então talvez ele seja

o homem que Deus tem para você. Se não for, é melhor você saber agora. Não há nada

mais desmotivante do que viver com um homem que não a aprova. Não repita o erro que

fiz quando me casei com Homer King. Agora eu sugiro enfaticamente que você vá para a

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cozinha e se desculpe de alguma forma. Talvez você não tenha uma segunda chance

para a felicidade, Lisbeth.

Jesse estava tremendo de emoção quando terminou. Girando ao redor, saiu do

quarto de Lisbeth, atravessando o hall, para o seu quarto. Ela se deitou e puxou a colcha

sobre si, prestando atenção ao silêncio no corredor fora de sua porta.

Alguns momentos depois, ela ouviu o ranger da porta de Lisbeth e passos em

direção à cozinha. Jesse ficou em seu quarto, esperando, pensando no que Mackenzie

faria.

Mackenzie e Augusta conversavam à vontade enquanto Augusta se alvoroçava na

cozinha e Mackenzie separava os feijões verdes. Lisbeth parou na porta da cozinha,

olhando-o trabalhar, ouvindo o tom de sua voz e o riso fácil que dividia com Augusta,

sobre um incidente na loja naquele dia. O cabelo grosso, escuro, estava caído na testa

enquanto trabalhava. Lisbeth gostava do jeito das veias nas costas das mãos dele

saltarem, quando trabalhava. Quando ele acabou, empurrou a cadeira de volta e se

espreguiçou tranqüilo, com as mãos atrás da cabeça. No meio do espreguiçar, viu Lisbeth

e imediatamente ambas as mãos caíram para o lado. Um sorriso formou-se em seu rosto.

— Mackenzie — Lisbeth perguntou — posso conversar com você lá fora, só por um

instante?

— Claro, Lisbeth — Mackenzie lançou um olhar para Augusta, que balançou a

cabeça encorajando-o, enquanto os dois jovens saíam.

Em quase todos os contatos com ele, Mackenzie tinha estado sentado a uma mesa

enquanto ela o servia. Ela nunca tinha percebido mesmo quão alto ele era. Ela gostava do

jeito que ele se elevava acima dela. E ela gostava do jeito como ele ficava quieto,

esperando-a arrumar os pensamentos.

Os dois deram a volta pelo fundo até o estábulo. Estrela Vermelha, agora uma égua

velha, reclinou-se num cumprimento e eles foram até as cocheiras para coçar atrás das

orelhas dela.

— Estrela Vermelha era tudo que tínhamos nesse mundo, quando viemos para

Lincoln — disse Lisbeth. — Tinha acabado deter o nome Lancaster trocado, então.

— Quando os meus pais receberam a propriedade, era Lancaster.

— Então você estava aqui? Por que nunca veio para a cidade?

— Papai fazia toda a compra na cidade de Nebraska. Dizia que Lancaster nunca

chegaria a nada.

Enquanto conversavam, Lisbeth começou a trançar a crina de Estrela Vermelha. Ela

ficou em silêncio por um momento. Então, sem olhar para cima, balbuciou:

— Eu sei, Mackenzie sobre os seus, sobre seu pai. Eu estava no sótão no dia em

que você falou com o Joseph.

Mackenzie olhou profundamente para ela, que se apressou em explicar:

— O sótão é um tipo de esconderijo secreto para mim, onde posso pensar e ficar

sozinha. Eu estava lá em cima, naquele dia. Eu não queria bisbilhotar, mas não havia

como eu descer, enquanto você conversava com o Joseph.

— Tudo bem, eu acho — disse Mackenzie, encolhendo seus ombros. Então, numa

súplica quase desesperada, continuou: — Mas você não vai contar para ninguém, vai?

Quer dizer... papai não tinha muitos amigos aqui, mas eu não quero que eles pensem...

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Lisbeth acabou de trançar a crina de Estrela Vermelha e olhou para Mackenzie. Ela

prometeu:

— É claro que eu não vou contar a ninguém, Mackenzie. Não é da conta de

ninguém, por sinal.

Mackenzie balançou a cabeça em agradecimento, engoliu seco e fixou os olhos na

crina de Estrela Vermelha, perguntando depressa:

— Então, Lisbeth, você vai à social comigo? Ou talvez você não queira ir com

alguém que tenha um homem louco como pai— Sua voz era dolorida.

— Ah! Mackenzie, eu não ligo para isso! — Lisbeth exclamou rápido. — Você não

pode culpar uma pessoa pelo que seus pais fizeram. Meu Deus! Pense bem em como

seria esse mundo se todos guardássemos registros de gerações passadas. — Ela deu

uma risadinha. — Porque não há nenhuma pessoa em Lincoln que não tenha algum

envolvimento com outra. Todos sabem da vida de todos.

Mackenzie sorriu:

— Então, você irá ou não comigo?

Estava ficando mais fácil conversar com ele. Lisbeth olhou firme em seus olhos

azuis.

— Primeiro tenho de explicar uma coisa, Mackenzie. Você pode não querer

convidar-me quando ouvir isso. Espero que não se importe. — Lisbeth piscou. — Mas, se

você se importar, se isto fizer diferença, então eu entenderei.

Ela contou tudo, o mais rápido que pôde, juntando as sentenças, como quando era

menininha. Ao final da história, encontrou-se defendendo sua mãe, revoltada com o

mundo que tornava necessária uma explicação. Impulsivamente ela agarrou uma escova

e começou a escovar o pêlo vermelho de Estrela Vermelha com vigor. Fez isso por um

longo tempo e lágrimas começaram a ofuscar sua visão. Ela tentou conformar-se com o

que parecia estar acontecendo. Então, uma mão cobriu as suas e apertou-as com afeto.

Mac tirou a escova e dobrou-se para beijar as costas da mão dela.

— Então, Srta. King, você me dará a honra de acompanhá-la à social na próxima

sexta-feira, à noite, na Igreja Congregacional?

A Srta. King embaraçou-se ao dizer sim tão alto que o cavalo sonolento, na cocheira

perto de Estrela Vermelha, assustado, pulou e deu um coice no lado da cocheira. Os dois

jovens riram e Mackenzie levantou Lisbeth no ar, rodando-a em seus braços.

Doente de apreensão, Jesse tinha sido incapaz de permanecer sozinha por muito

tempo. Ela voltara à cozinha para ajudar Augusta com o preparo da refeição, orando

firmemente por Lisbeth e Mackenzie, enquanto trabalhava. Quando os dois jovens

entraram juntos pela porta da cozinha, o sorriso feliz contou às mulheres mais velhas tudo

o que precisavam saber.

Lisbeth estava séria, quando disse à mãe:

— Mãe, eu...

Jesse levantou uma mão para fazê-la calar-se.

— Tudo bem, Lisbeth. Estou feliz que tudo tenha-se esclarecido. Estava orando por

vocês dois.

— Mãe, nós quatro sabemos sobre papai. Você me contaria uma história sobre ele,

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enquanto preparamos o jantar?

O criminoso nunca apareceu, mas, em algum momento daquela noite, a primeira

queima de livros no estado do Nebraska aconteceu. Memórias de um Oeste Selvagem, de

Francis Day, encontrou seu caminho no fogão de Augusta.

Capítulo 30

Ela... trabalha de boa vontade com as suas mãos.

Provérbios 31:13

Era sábado à noite. Os hóspedes tinham todos jantado, ido para a cama e Augusta e

Jesse estavam acabando o dia da forma usual. Jesse, assentada na cadeira de balanço,

perto do fogão, acrescentava bordados em sua última capa de acolchoado. Seria nas

cores da moda: verdes e vermelhos uniformes. Jesse queria tentar uma colcha modelo

Baltimore Álbum, o qual uma das senhoras do grupo social de senhoras da igreja tinha

visto numa viagem de volta ao Leste. Entretanto, Jesse tinha optado por alguma coisa

menos complicada, com apliques mais fáceis. Se eu trabalhar com pedaços maiores, ela

pensou, então posso gastar todo o tempo que quiser no acolchoamento. Jesse adorava

trabalhar com colchas, acolchoados, e nada a satisfazia mais do que cobrir a parte

externa deles com plumas e penas, então juntá-las com linhas de acolchoamento bem

próximas e pontilhadas.

Enquanto Jesse costurava, Augusta lia alto o Commonwealth. Já não era mais o

único jornal em Lincoln, mas Augusta permanecia leal ao velho periódico e a seu editor.

— Eles estavam aqui quando começamos Lincoln, e eles ainda estarão aqui quando

passarmos desta vida — era o que Augusta explicava quando um vendedor de jornal

tentava vender-lhe o jornal novo. — Fico orgulhosa de chamar Charles Gere de meu

amigo, e ele sempre fala o que é correto. — O vendedor aceitava a derrota e continuava

na rua, procurando um território novo para conquistar.

Augusta, de olhos semicerrados, leu alto o impresso bonito:

Nós não temos visto em Nebraska nada tão livre ao mesmo tempo de formalidade e

vulgaridade como as únicas e originais cenas retratadas nos momentos de diversão, na

última noite oferecida pelas senhoras de Lincoln, para o benefício da Igreja

Congregacional.

— Livre de formalidade e vulgaridade — Augusta repetiu. — Bem, diversão

certamente houve — no entanto, não posso dizer o mesmo em relação à Srta. Charity

Bond, quando avistou nossa Lisbeth de braço dado com Mackenzie Baird.

— Augusta! — Jesse censurou.

Augusta abaixou o jornal.

— Só estou dizendo o que é real, Jesse. Você também viu isso. Aquela metidinha

tem estado levantando seus cachos como uma mulher sem-vergonha, a cada homem

novo que aparece na cidade. Ela estava dando em cima de Mackenzie, para casar-se

com ele, e você e eu sabemos disso. Eu nunca vou esquecer o olhar no rosto dela,

quando Mackenzie e Lisbeth entraram juntos. Ela parecia ter engolido um cabo de

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vassoura, cruzando em disparada aquele espaço para puxar Mackenzie para longe.

Totalmente mal-educada, diria eu.

Jesse tentou interrompê-la.

— Ah! Eu sei, eu sei... ela ―só queria apresentá-lo para os amigos dela‖, ela disse. É

claro, ela tinha de se colocar entre Lisbeth e Mackenzie para fazer isso! E ela quase se

esqueceu de apresentar Lisbeth. Vulgar, eu diria, é a palavra para descrever as maneiras

daquela pequena senhorita. A mãe deveria ter vergonha dela!

— Augusta, o que mais o jornal diz sobre o evento? — Jesse, sempre boa e

desejosa de desculpar os outros, tentou mudar de assunto.

Augusta leu rapidamente:

Aos convidados foram apresentadas várias cenas de peças sob a direção habilidosa

da Sra. Agnes Bond e Sra. Hortense Griswall. Estavam incluídas: Pedro na prisão (a

preferida do editor), A rainha Ester, Pigmalião e A tentação.

Augusta parou de ler, de novo.

— Habilidosa! Eu nunca vi tal habilidade fazer Charity Bond destacar-se. Agnes

certificou-se de dar a Charity o papel principal em cada peça, exceto a que melhor lhe

convém: A tentação. Teria sido perfeita, mas Agnes não ia querer sua querida Charity

parecendo uma tentadora. Ahhh!

— Augusta, por favor... só leia as notícias — Jesse implorou.

— Ah, está bem, Jesse! Mas o que é certo é certo e Lisbeth deveria ter tido uma

parte. É tudo que eu digo.

— Augusta, você sabe muito bem que Lisbeth não tem mesmo interesse em teatro.

Você estava nesta sala, quando ela suplicou para não ser forçada a participar.

Augusta fingiu não ouvir e acabou de ler o artigo.

As cenas foram acompanhadas com talento pelo ótimo desempenho da Sra. Agnes

ao piano.

Augusta interpôs:

— O que lhe deu toda oportunidade de introduzir mais alto as entradas de Charity

Bond — com a assistência de Birdie Pound, uma fadinha que saudava a audiência ao

anunciar cada peça seguinte. Saiba-se que Birdie foi a preferida da audiência. As

senhoras merecem o mais alto louvor pela invenção, originalidade e capacidade artística.

Augusta parou de ler para fazer um editorial final:

— Originalidade — com certeza Charity descartou isso. Eu nunca vi esquemas tão

originais para fazer Mackenzie prestar-lhe atenção. Quando ela derrubou o ponche e

manchou o vestido novo de Lisbeth, eu queria bater nela. Mas Mackenzie salvou o dia.

Ele pegou o braço de Lisbeth, andou em volta com ela e esperou que se trocasse.

Abençoado seja o coração desse menino.

Mesmo tendo um coração mais manso, Jesse não pôde resistir a um comentário

neste ponto:

— Devo admitir que não foi bondoso da parte de Charity. Pareceu mesmo que ela

teve a intenção de fazer aquilo. Entretanto, fiquei orgulhosa de Lisbeth. Não é sempre que

ela expressa tal autocontrole, como o de uma senhora fina.

Augusta concordou:

— Quando você se mudou para cá, essa criança simplesmente estourava por

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qualquer razão. Eu me lembro como ela foi falando sem parar sobre Warbonnet,

escolhendo seu gatinho preferido. Eu confesso, algumas vezes eu pedia para ela só

treinar ficar quieta, pelo menos um pouco. Nestas últimas semanas, no entanto, parece

que ela cresceu tudo o que tinha para crescer, de uma só vez. Podemos ficar orgulhosa

dela.

Augusta estava acostumada a não reconhecer sua participação nas coisas boas que

aconteciam em Lincoln. Lisbeth também estava incluída nesse caso.

— Você tem sido uma grande ajuda para nós duas, Augusta. Tenho agradecido ao

Senhor, sempre, por ter-nos guiado ao Joseph Freeman, naquela noite escura, há tanto

tempo. E Joseph nos trouxe a você. — Jesse levou a costura para perto do rosto, dando

os pontinhos finais que completavam a capa da colcha, enquanto dizia: — Você é uma

bênção, Augusta.

Augusta limpou a garganta alto e voltou ao assunto Lisbeth e Mackenzie:

— Acha que estaremos planejando um casamento logo?

Jesse abriu a capa da colcha no chão, antes de responder. Plumas grandes

cortadas em vermelho e verde uniformes tinham sido aplicadas em volta de um centro

liso, de musselina vermelha, para formar uma flor em forma de cata-vento. Somente

quatro dessas flores grandes, colocadas juntas, eram suficientes para cobrir a parte

superior de uma cama. Os lados e pés eram bordados com tiras de musselina de dez

polegadas de largura, aplicadas com videiras bem trabalhadas, intercaladas com flores e

folhas.

Jesse respondeu:

— Bem, não tão logo, espero eu. Eu só acabei a capa. Preciso de algum tempo para

acabar o trabalho de acolchoamento.

Augusta se alegrou.

— Jesse King! Eu sabia que você estava pensando nisto também! Por que você não

disse nada? Eu estava a ponto de estourar de rir, vendo aqueles dois olhando um para o

outro.

Jesse puxou a capa da colcha do chão.

— É melhor deixar o tempo passar um pouco. Eu não gostaria de apressar nada.

Casamento é para toda a vida e quero que eles tenham certeza disso. Quanto mais

esperarem, mais tempo para eu orar. — Jesse levantou-se e acrescentou num tom mais

leve: — E mais tempo terei para criar minha obra de arte! — Ela sorriu feliz. — Vou para a

cama, Augusta. As mulheres da igreja prometeram ajudar-me a alinhavar e pôr a moldura,

depois do almoço, amanhã.

— Elas vão ajudá-la a acolchoá-lo, também? — perguntou Augusta.

— Ah, não, Augusta. Este aqui não é para ser tocado por nenhuma agulha, a não

ser a minha.

— Por que não?

Jesse estava relutante em admitir, mas disse:

— Bem... a Agnes e a Ona não são... eu não quero ser maldosa, Augusta, mas elas

não costuram bem para fazer isto. Além disso, quero que este seja todo meu, para

Lisbeth. — Jesse pôs a capa da colcha dobrada sobre o braço. — O que me lembra...

você se importaria se eu pedisse para o Mackenzie montar uma moldura aqui?

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Augusta olhou em volta, na cozinha cheia.

— Eu não me importo, Jesse, mas não há espaço.

— Eu pensei que, se puser uma roldana no forro, ela ficaria fora do caminho durante

o dia. Então, à noite, quando não estamos trabalhando, eu posso abaixá-la e colocá-la

nas costas da cadeira e trabalhar assim.

Augusta elogiou a invenção e concordou na hora. Na segunda-feira, Mackenzie e

Joseph montaram as roldanas e naquela noite Jesse começou a trabalhar no que queria:

sua obra-prima — e seu presente de casamento para Lisbeth e Mackenzie Baird.

Jesse acolchoou durante todo o inverno. Lisbeth a prevenia:

— Mamãe, a senhora vai estragar a vista.

Mas Jesse, ainda assim, trabalhava duro.

Mackenzie balançava a cabeça ao ver o tempo que Jesse gastava, curvada em seu

trabalho.

— Com todo respeito, senhora — ele disse uma noite — A senhora tem costurado o

tempo todo em que a Sra. Hathaway se dedica à leitura. Ela lê o jornal inteiro para nós e a

senhora trabalha em um único quadro, do tamanho da minha mão? Como a senhora

agüenta isso? — Ele acrescentou, rápido: — É lindo, é lindo, Sra. King — não entenda

mal. Só que é preciso ter muita paciência.

Jesse sorriu.

— É aí que você se engana, Mackenzie. Não é preciso ter muita paciência para

fazer aquilo de que se gosta muito. Agora, debulhar ervilhas... para isso, sim, precisa-se

de paciência! — Jesse olhou para Lisbeth, que estava fazendo justamente essa tarefa.

— Amém, mamãe! Concordo com a senhora. Mas prefiro fazer isto a fazer

acolchoados todos os dias.

Jesse curvou-se sobre a colcha e continuou a costurar. Mas ela pensou no que

Mackenzie disse aquela noite toda e no dia seguinte. Por que, pensou ela, as mulheres

fazem colchas? Os acolchoados servem para a mesma coisa — e nós podemos emendar

muitos em um só dia. De fato, nós trabalhamos e trabalhamos cortando retalhos,

emendando-os e criando colchas.

No dia seguinte, Mackenzie e Lisbeth chegaram cedo do ensaio do coral. Eles

pareciam mais felizes do que sempre, mas Jesse apressou-se em compartilhar seus

pensamentos enquanto eles ainda estavam organizados.

— Mackenzie — ela começou — A noite passada você perguntou como eu podia

agüentar todo esse trabalho. Eu nunca havia pensado nisso. Mas fiquei refletindo o dia

todo e acho que tenho a resposta. Quando um homem quer deixar sua marca no mundo,

ele constrói alguma coisa. Pode ser uma propriedade, um jornal, um hotel ou uma loja de

tecidos. Assim, seja o que for que fizer, um homem pode sempre apontar algo e dizer: Isto

— eu sou isto. E isto que fiz que é importante. Agora, uma mulher cozinha, limpa e tira o

pó, acaba tudo e tem de fazer de novo. Quando penso nisso, Mackenzie, nas únicas

coisas que vão ficar, quando partir desta vida, só restam minhas colchas. Acho que por

isso que as faço com tanto cuidado. No entanto, nunca havia pensado realmente no

assunto, até agora. Há uma grande satisfação em correr minha mão sobre uma colcha

acabada e saber que fui eu quem a fez. Deve ser algo como o que o Senhor sentiu

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quando olhou e viu que era bom, e então descansou no Sabbath.

Mackenzie olhou atentamente a colcha quase terminada.

— Qual é o nome deste modelo, Sra. King?

— Plumagem de Princesa— Jesse respondeu.

Pegando a mão de Lisbeth, Mackenzie perguntou:

— Seria presunçoso de minha parte perguntar se a senhora planejou acrescentar

esta colcha ao enxoval de Lisbeth?

Jesse ergueu os olhos para o casal e sorriu.

— Eu poderia ser persuadida a fazê-lo. Mas apenas se eu tivesse certeza de que

seu futuro marido fosse um homem valoroso para repartir tal presente.

Mackenzie limpou a garganta:

— Bem, senhora, eu não tenho certeza de ser um homem valoroso, mas nós

ficaríamos com certeza honrados se a senhora deixasse sua obra de arte enfeitar nossa

casa. Eu pedi Lisbeth em casamento, Sra. King, e ela disse sim... — Mackenzie foi

impedido de acabar a sentença por Augusta, que se precipitou sobre os dois e os

abraçou. Mackenzie ficou vermelho e acabou: — Ela disse sim, se a senhora concordar.

Jesse ficou quieta tanto tempo que tanto Mackenzie quanto Lisbeth ficaram

nervosos. As lágrimas encheram seus olhos. Ela lutou contra elas e disse baixinho:

— Mackenzie, em tudo o que você disse e em tudo o que você fez provou ser um

homem trabalhador. Mas há muitos homens trabalhadores por aí. Isto só não é suficiente

para fazer um marido adequado. Desde que Lisbeth era bem pequenina, oro a Deus que

mande a ela um homem firme na fé. Eu observei você cuidadosamente, meu rapaz.

Jesse levantou-se da cadeira e pôs a mão levemente sobre a colcha.

— E parece-me que você é comprometido com o Senhor. Eu sei que ele capacitará

você a continuar em seu compromisso com minha filha. Mackenzie, estou orgulhosa de

entregar Lisbeth a você.

As lágrimas encheram os olhos de Jesse novamente.

— Perdoem as lágrimas, crianças. Não é uma coisa fácil entregar a única filha. —

Jesse olhou para Lisbeth, cuja face estava emoldurada por sorrisos. — Deus abençoe os

dois. Vocês têm a minha bênção.

Houve um momento de silêncio e, então, Augusta disse alto:

— O momento pede uma celebração. Mackenzie, você daria uma olhada na

cocheira, para ver se o Joseph está lá? Eu creio que ele ia ficar até mais tarde para cuidar

daquela mula que está para parir a qualquer hora. Agora, todos esperem aqui — Ela saiu

depressa da sala e voltou com cinco taças de cristal em uma bandeja de prata.

Joseph entrou com Mackenzie, rindo de alegria e tirando o chapéu.

— Estes eram de minha mãe — Augusta explicou. — Eu os guardo em minha

escrivaninha, longe dos olhos curiosos da clientela. — Enquanto falava, colocava vinho

nas taças.

— Para Lisbeth e Mackenzie! — exclamou.

O brinde com os cristais fechou a noite. Na madrugada, Jesse levantou-se, acendeu

a luz da cozinha e curvou-se sobre a colcha mais uma vez. De manhã, Lisbeth viu o

complemento feito, na borda de baixo da colcha. Com suas agulhas mais finas, Jesse

tinha acrescentado:

Page 174: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Para L. W. K. B. de JK.

Capítulo 31

Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti: porque aonde quer

que tu fores irei eu.

Rute 1:16

O resto do inverno foi gasto terminando o enxoval e preparando o casamento. As

três mulheres trabalhavam longas horas. Augusta deixava as amigas admiradas ao pegar

a agulha e marcar alguns guardanapos.

— Bem, meu Deus! — ela exclamava. — Não é porque não costuro que eu não

saiba! Agora dê-me aquela toalha de mesa! — ela ordenava.

Então Augusta tornou-se a marcadora oficial. Mackenzie tomou conta da leitura do

jornal, quando não trabalhava até mais tarde. Ele estava trabalhando o máximo possível

para economizar para uma casa nova. Tinha jurado nunca retornar à propriedade que só

trazia lembranças de tragédia. Estava na lista de agentes imobiliários por $ 5 o acre.

Lisbeth sentia-se agitada por não saber onde moraria depois de casada. Jesse lhe

assegurava:

— Mackenzie é um homem responsável, Lisbeth. Quando a propriedade for vendida,

ele terá meios para fazer planos concretos. Você tem de ser paciente.

Mackenzie tinha planos, sim. Na noite em que ele os compartilhou, quase perdeu a

noiva.

— Vou alistar-me no exército.

Lisbeth derrubou a xícara que ia ser lavada. Jesse parou no meio do ponto e

Augusta chacoalhou a pilha de pratos que estava segurando.

— Mackenzie! — Lisbeth exclamou. — Por quê?

— Para ganhar a vida para nós, é claro — veio a resposta defensiva. — Há

necessidade de homens bons no Oeste. Lisbeth, eu não agüento ficar preso numa loja o

dia inteiro. Eu nunca vou economizar o suficiente para um novo equipamento, e a

propriedade não está vendida. Tenho de fazer alguma coisa para continuar com a vida e

preparar um futuro para nós.

Mackenzie vinha pensando nisso há semanas e ele não ia desistir. Lisbeth ficou

horrorizada.

— Mas, Mackenzie, o exército no Oeste... é perigoso! E é claro que você não quer

passar a existência matando índios! — Lisbeth enfatizou suas palavras.

— É claro que não, Lisbeth. Eu não vou ser um homem de luta. Eles precisam de

todos os tipos de homens. Ferradores, vendedores e talvez eu possa fazer algo de bom.

— Ele declarou com firmeza: — Olha, Lisbeth, em algum momento nessa loucura toda os

brancos e os índios vão ter de fazer as pazes, paz final, duradoura. Talvez possamos

fazer parte disso — fazer algo bom — ajudar, de algum jeito.

Page 175: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jesse interrompeu:

— Mackenzie, eu admiro seus ideais. Mas não estou certa de que eles possam ser

alcançados com sua adesão ao exército.

Mackenzie estava decidido.

— Com todo o respeito, senhora, Lisbeth e eu temos que conversar isto entre nós.

Lisbeth retorquiu:

— Agradeceria se você não falasse assim com minha mãe, Mackenzie!

Jesse respondeu, calma:

— Lisbeth, Mackenzie tem razão. Ele tem de fazer o que pensa que é melhor para

vocês. Eu deveria guardar meus pensamentos comigo, a não ser que fossem solicitados.

Acho que vocês dois precisam de privacidade.

Jesse recolheu sua costura e voltou para seu quarto. Augusta esfregou as mãos, fez

um comentário sobre ler em seu próprio quarto, para variar, e saiu logo.

Lisbeth e Mackenzie ficaram sozinhos para resolver o assunto. O que se seguiu foi a

típica primeira discussão. Nenhum dos dois foi racional e nenhum venceu. Tudo acabou

com cada um indo para seu canto, na Casa Hathaway, enfurecidos e mentalmente

revisando o acontecimento.

Jesse estava determinada a manter-se fora da vida de Lisbeth e Mackenzie. Ela

tinha opiniões fortes sobre o exército, e odiava pensar em Lisbeth voltando para aquela

vida dura. Ainda assim, ela cria fortemente no papel de uma esposa no casamento e

essas crenças a guiaram no conselho dado a Lisbeth quando a jovem veio bater à sua

porta.

— Mãe, o Oeste de Nebraska é uma imensa selvageria — eu não posso ir para lá.

— Aonde quer que tu fores irei eu, Lisbeth. Este é o plano de Deus para o

casamento.

— Mas, mãe, Mackenzie não foi justo comigo. Ele nunca disse uma palavra sobre o

exército. Eu pensei que ele fosse começar a gostar de Lincoln, que ficaríamos aqui e

faríamos nossa vida.

— Mackenzie não fez segredo de que detesta trabalhar naquela loja, Lisbeth. No

primeiro dia em que chegou a Lincoln, ele nos disse que, tão logo pudesse economizar

dinheiro para um novo equipamento, ele iria para o Oeste.

— Mas, mãe, eu não pensei que ele fizesse isso!

Jesse ficou mais rígida.

— Lisbeth, eu acho melhor você reconsiderar sua promessa ao Mackenzie.

Casamento é compromisso para a vida inteira, minha querida. Você pensou que prometia

amá-lo enquanto ele tomasse decisões com as quais você concordasse?

— Não, é claro que não, mas eu não pensei...

— Aparentemente, não. É melhor pensar agora, Lisbeth. E pense muito. Não tente

mudar o Mackenzie. Se você não está preparada para ser a companheira dele, aonde

quer que ele decida ir, então você estará causando-lhe um dano terrível. Mackenzie

merece o melhor.

— De que lado você está, mãe? — Lisbeth estava estarrecida, pois parecia que a

mãe estava contra ela.

— Estou do lado daquilo que é certo para cada um de vocês, Lisbeth. Eu amo você,

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querida, e porque eu a amo estou-lhe dizendo o que você precisa ouvir. Prepare-se para

seguir Mackenzie aonde quer que o Senhor o guiar até que a morte separe vocês dois. Se

você não puder cumprir a promessa, então não a faça. Fique aqui em Lincoln e rompa

com ele.

— Eu gosto muito do Mackenzie. Se ele tem a intenção de uma vida no Oeste, ele

precisa de uma mulher com garra, como diz Augusta. Se você não tiver garra, Lisbeth,

reconheça isso agora. Não acrescente a um homem jovem uma carga, ficando entre ele e

o que ele pensa que o fará feliz.

— Eu pensei que eu ia fazê-lo feliz.

— Você está falando como uma menina bem imatura e boboca, Lisbeth. Há mais em

um casamento do que essas tolices românticas que você lê em alguns livros. Há um

trabalho a dois por um sonho, o cuidado na doença, a perda do que você ama, e o

trabalho a dois para conquistar isso de volta novamente. É o dia-a-dia que faz o amor

duradouro crescer, Lisbeth. Se você não deseja estar ao lado de Mackenzie no dia-a-dia,

então, pelo amor de Deus, não se case com ele só porque ele é bonito e faz seu coração

balançar.

— Mãe! — disse Lisbeth embaraçada.

— Lisbeth, nós já conversamos isto antes. Eu me lembro mesmo desta fase de

minha juventude. Eu pouco lidei com ―o amor que é mais forte que a morte‖. A pergunta

que você tem de responder é: que tipo de amor você quer? O amor-paixão ou o

duradouro?

— Eu quero ambos, mãe!

— E você pode tê-los também. Mackenzie pode dar ambos a você. Mas a não ser

que você deseje pôr seus sonhos junto com os deles e vá para o Oeste. Então, Lisbeth —

disse Jesse pegando a filha pelos ombros e falando sério — Ou você entra no carroção e

vai para o Oeste com seu homem, ou sai da vida dele.

Lisbeth ponderou o conselho. Ela se levantou para ir e Jesse acrescentou:

— É melhor dar uma caminhada e pensar a respeito, Lisbeth. Não é uma decisão

fácil de se tomar.

A natureza teve sua parte na tomada de decisão de Lisbeth. Ela seguiu o conselho

de Jesse e saiu para uma caminhada. Tinha sido uma noite de primavera, apesar de

nuvens estarem vindo do Oeste. Lisbeth andou uma distância pequena do hotel quando o

vento chegou e a temperatura começou a cair. Ela se virou de volta para o hotel. Da rua

ela podia ver que alguém tinha arreado uma parelha e a estava puxando para fora da

cocheira. O vento foi ficando mais frio e alguns flocos de neve começaram a cair. Lisbeth

puxou seu xale ao redor do corpo e tremeu. Ela se apressou em voltar para o hotel

justamente quando a tempestade começou forte. A neve continuava a cair insistente.

Entrando pela porta da cozinha, ela seguiu pela escada. Augusta apareceu e chamou-a.

— Se você está subindo para falar com o Mackenzie, querida, ele saiu. Ele saiu há

poucos minutos...

Lisbeth desceu as escadas e saiu à porta em tempo de ver o velho carroção

desaparecendo na distância. O vento estava soprando muito forte e ele não pôde ouvi-la

gritando. Augusta a seguiu até lá fora.

— Volte para dentro, querida. Ele só está indo para a propriedade para recolher

Page 177: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

algumas coisas. Ele disse que voltaria bem de manhã.

Mas Mackenzie não voltou na manhã seguinte. O vento soprou a noite toda, a neve

bateu contra o hotel, formando montes enormes. Lisbeth acordou o tempo todo,

escutando a tempestade e orando por Mackenzie. Quando ela não conseguiu mais

dormir, foi até a cozinha onde encontrou Jesse, curvada sobre outra colcha, costurando

tão rapidamente como nunca.

Jesse levantou os olhos quando Lisbeth entrou:

— Ele está bem, Lisbeth. Mackenzie tem muito juízo. Ele vai encontrar um abrigo,

estará bem — Ela se fez calma e segura, mas o medo por Mackenzie e a filha apertaram

o seu coração.

Nevou por três dias. Jesse e Augusta tiveram de ser muito criativas para alimentar

os hóspedes, que ficaram na sala de jantar o tempo todo, jogando cartas, lendo jornais,

fumando, conversando sobre política. As guerras com os índios foram comentadas

inúmeras vezes, com Jesse esforçando-se ao máximo para fechar os ouvidos à

discussão.

Quando a neve finalmente parou de cair, o mundo era um lugar branco-brilhante.

Todos na cidade voltaram-se para ajudar a cavoucar e logo as pessoas puderam circular

novamente. Carruagens moviam-se devagar pela vala que haviam cavado no meio das

ruas principais.

A neve facilitou visualizar os sinais de um animal selvagem e Joseph viajava milhas

com as raquetes de neve nos pés, trazendo carne fresca todos os dias. J. W. Miles quase

ficou sem farinha, mas Miles protegia a Casa Hathaway por causa de Mackenzie. Assim,

ele manteve Augusta no topo de sua lista de suprimentos e escondeu seu último saco de

cinqüenta libras de farinha para ela. Augusta ficou presunçosamente satisfeita quando os

hóspedes do Hotel Cadman pagaram os seus $ 2 e mudaram-se para a Casa Hathaway

por uma semana até os trens chegarem trazendo suprimentos de emergência.

Por fim, Jesse puxou Joseph de lado e cochichou:

— Joseph, você acha que é possível ir a cavalo até a propriedade e averiguar o que

houve com o Mackenzie? Eu não sei mais quanto a Lisbeth pode agüentar...

Joseph balançou a cabeça:

— Eu não acho que haja muita chance de conseguir, madame — disse ele triste —

mas eu estava vindo justamente para perguntar-lhe se a senhora achava que eu deveria

ir. E se eu encontrar...

— Se você o encontrar, traga-o de volta, Joseph. Nós precisamos saber. — Jesse

tremeu com o quadro que lhe veio à mente. — Está frio o suficiente para trazê-lo de volta

e nós o enterraremos em Wyuka. Será uma coisa terrível, mas, pelo menos Lisbeth terá

um túmulo para visitar.

Lisbeth entrou na cozinha justamente quando eles acabavam a conversa. Ela

percebeu o assunto e agradeceu a Joseph.

As horas se arrastaram depois que Joseph saiu. As emoções se alteravam e elas se

irritavam uma com a outra por qualquer motivo por pequeno que fosse. Por fim, Jesse

chamou-as para orarem juntas.

— Senhor Deus — disse simplesmente — O Senhor sabe onde está o Mackenzie

exatamente agora. Se ele precisar de ajuda, faça com que o Joseph o encontre. Se ele

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estiver bem, então traga-o para nós rapidamente. E Senhor — orou Jesse — Se ele

estiver com o Senhor, ajude-nos a suportar isso — Ela acrescentou uma palavra final em

silêncio: Senhor, a Lisbeth é tão jovem. Se é da tua vontade, não permita que ela encare

a morte bem agora. Por favor, Senhor.

As mulheres esperaram a noite toda. Jesse trabalhou com as colchas, embora suas

mãos tremessem, e ela, mais tarde, se sentisse compelida a remover os pontos

desalinhados. Augusta leu alto para elas até ficar rouca e ter de parar. Tanto ela quanto

Lisbeth estavam cochilando em suas cadeiras quando o livro caiu da mão de Augusta e

bateu no chão, acordando-as subitamente. Fora da porta da cozinha, elas ouviram

barulho de rédeas e cascos de cavalo. Lisbeth deu um gritinho quando dois homens

bateram os pés na cozinha, chacoalhando a neve toda pelo chão, ao tirarem os casacos e

chapéus.

Joseph estava rindo feliz e Mackenzie começou a dizer alguma coisa, mas foi

interrompido pelas atenções de uma moça que decididamente saltou na cozinha para os

braços dele, chorando de felicidade. Todos começaram a falar ao mesmo tempo, fazendo

perguntas e rindo irracionalmente.

— Pelo menos este menino tem algum juízo — orgulhou-se Joseph. — Há apenas

um abrigo muito rústico entre Lincoln e a propriedade dele. Quando a tempestade chegou,

ele foi direto para lá com os cavalos e ficou ali sentado os quatro dias.

— E os cavalos fizeram como eu também — riu Mackenzie. — Eles roeram cada

pedaço de mobília do lugar e estavam começando a roer o teto também, quando a neve

finalmente parou. Nós continuamos seguindo para a minha propriedade, então. Foi

terrivelmente difícil encontrar os montes de feno, mas finalmente conseguimos

desenterrar um e ficamos bem.

— O que você comeu, Mackenzie? — perguntou Jesse.

— Coelho — uma porção deles. Quatro dias de coelho!

Lisbeth começou a falar, mas Mackenzie levantou a mão.

— Lisbeth, desculpe-me por não ter atendido ao seu pedido, mas o fato é que eu

simplesmente não consigo viver na cidade. Tive de voltar para minha propriedade e

pensar um pouco. Achei que talvez pudesse começar alguma coisa lá — ele estremeceu

— Mas não posso. Diga que sou um homem fraco, mas, para mim, não há nada naquele

lugar além de lembranças de morte e tristeza. Aquele não é o lugar para se começar uma

vida nova.

Ele se virou para Lisbeth:

— Eu amo você, Lisbeth King. Quero casar-me com você. Mas vou para o Oeste tão

logo a neve derreta. Você virá comigo?

Lisbeth olhou solenemente para Mackenzie:

— Mackenzie Baird, eu prometi a Deus a noite passada que se eu tivesse uma

segunda chance, haveria uma coisa que eu diria a você. — A voz de Lisbeth tremeu de

emoção, ao recitar o texto bíblico: ―Aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que

pousar está noite ali pousarei eu. O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus".

Do outro lado da cozinha, Jesse permitiu-se um grito não característico, de alegria:

— Aleluia! — Num romper de atividade, o café começou a ser preparado e bolachas

foram feitas.

Page 179: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Joseph e Mackenzie levaram os cavalos para o estábulo, dando-lhes malte quente e

aveia. Em seguida, voltaram para o hotel para se alegrarem com um café gostoso.

Apenas quatro semanas mais tarde, Augusta leu o seu Commonwealth, com

lágrimas nos olhos:

A Srta. Lisbeth King e Sr. Mackenzie Baird uniram-se em casamento hoje, numa

cerimônia na Igreja Congregacional. A Srta. King, filha de Jesse King, uma viúva

empregada na casa Hataway, é conhecida por todos nós como uma árdua trabalhadora e

jovem mulher temente a Deus e de grande caráter. O Sr. Baird, conhecido pelos cidadãos

há bem pouco tempo, tem provado ser um homem honesto e um grande trunfo para o

estado. O casal partiu imediatamente para o Oeste, onde o Sr. Baird se voluntariou para

servir nosso grande exército no domínio de nossas fronteiras. Nós lhes desejamos o bem

e muitas felicidades.

Jesse acolchoava furiosamente, enquanto Augusta lia. Só na manhã seguinte ela

percebeu que seus esforços tinham sido em vão, pois as lágrimas a tinham impedido de

ver que havia colocado uma linha de cor errada na agulha.

Capítulo 32

Abre a sua mão ao aflito; e ao necessitado estende as suas mãos.

Provérbios 31:20

Tanto Jesse quanto Augusta ficaram surpresas ao ver o quanto a vida ficou vazia

sem Lisbeth. As mulheres continuavam envolvidas na Igreja Congregacional e em

atividades cívicas, além de Jesse ter-se associado a Augusta no hotel. O estabelecimento

delas foi o primeiro em Lincoln a se orgulhar por ter luz a gás, embora Jesse não

confiasse muito nisso e continuasse a usar sua luz de querosene em seu quarto.

A ausência de Lisbeth introduziu-a em um novo tipo de solidão. Jesse tinha sofrido

muitas separações em sua vida. Cada uma tinha-lhe trazido seu próprio tipo de dor,

embora todas tivessem sido administradas da mesma forma: fervor na leitura da Palavra e

oração renovados. Essa despedida não fora diferente, exceto por uma coisa maravilhosa:

Jesse podia continuar a orar por Lisbeth e Mackenzie. Ela podia continuar a compartilhar

suas vidas.

As cartas os mantinham juntos. Lisbeth sempre escrevia — cartas longas,

detalhadas, que descreviam o interior, as cidades e as pessoas que encontrava. Sua

escrita parecia sempre com a menininha que falava bem rápido, pondo todas as

sentenças juntas. Jesse e Augusta as liam várias vezes antes de Jesse colocá-las numa

caixa de papelão, na gaveta de cima de sua cômoda.

Levou poucos dias para ambas perceberem que precisavam contratar alguém para

ajudá-las.

— Joseph é uma grande ajuda, mas estamos ficando velhas, Jesse. Nós

simplesmente não podemos manter esse ritmo.

Jesse concordou. Fazer parte do serviço de Lisbeth a estava desgastando. Ela se

sentia cansada demais para costurar à noite e se afundava em sua cama o mais cedo

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possível, sempre esperando recobrar as forças para retornar à costura no outro dia.

Augusta pôs um anúncio no Commonwealth. Quando Jesse foi ao escritório pagar o

anúncio, contornou a esquina da Rua 10 e da Rua K e quase trombou com uma moça

correndo com uma criança nos braços. Atrás dela, numa perseguição acirrada, vinha uma

senhora velha mas saudável, segurando suas saias levantadas e gritando:

— Sarah, Sarah Biddle, volte aqui neste minuto!

Sarah Biddle continuou a correr na Rua 10 até desaparecer de vista. A velha parou

logo e bateu o pé no chão com raiva.

— Tento ajudar esses órfãos e o que é que eu ganho? Nada, a não ser problemas!

— A mulher balançou a sombrinha para Jesse: — O que foi que eu disse para eles na

agência? Não peguem aquela Sarah Biddle! Ela é ruim; ninguém vai querer ficar com ela,

se ela insistir em manter aquele aleijado consigo. Bem, agora eu provei para eles! Vou à

polícia, para mim, chega! Ela vai voltar para Nova Iorque, é isso! Eu não serei

responsável!

A mulher virou-se e saiu na direção oposta, resmungando e ameaçando a cada

passo.

Jesse arrumou o chapéu, acabou sua missão e voltou à Casa Hathaway.

Naquela noite, muito depois do trem para o Leste ter partido sem os fugitivos e a

polícia ter cessado sua busca, Joseph Freeman preparava-se para fechar o estábulo

quando um barulho, em cima, chamou sua atenção. Puxando a porta grande fechada,

Joseph subiu rapidamente a escada para o sótão. Ao chegar em cima, um vislumbre de

cor desapareceu atrás de um fardo de feno, no canto oposto à escada.

Joseph brandiu a ferramenta que trazia na mão.

— Você tem de sair porque só há uma porta neste sótão e eu não vou embora sem

saber quem está aí.

De trás do fardo de feno, uns olhos o espiavam. Uma voz feminina, desafiadora,

rebateu:

— Nós vamos morrer de fome, então não vamos sair para ser mandados para Nova

Iorque!

Uma vozinha mais nova ecoou:

— E, nós não vamos sair!

Joseph sentou-se no feno.

— Temos eco aqui?

Silêncio.

Ele tentou de novo.

— Bem, eu só estava-me preparando para ir à Casa Hathaway para jantar. Elas

estão fazendo frango frito, esta noite. Bastante frango, purê de batatas e torta. Hummm,

essa Sra. King faz cada torta! Que pena que você não pode ir comer um pouco!

Silêncio.

Finalmente, outro comentário desafiador:

— A Sra. King não dá jantar de graça, não é? Nós não temos nenhum dinheiro e,

então, nós não vamos comer frango frito. Também a velha rabugenta provavelmente está

esperando a gente lá fora, com a polícia, para levar a gente embora de qualquer jeito.

Joseph usou a mesma voz que ele tinha usado a vida toda para acalmar cavalos

Page 181: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

assustados. Era leve, baixa, quase sem expressão.

— Agora, o que eu ouvi foi o seguinte. A Sra. Ophelia Granwich deixou avisada a

polícia que, se a Srta. Sarah Biddle e o irmão dela forem encontrados, devem ser

enviados de volta a Nova Iorque, no próximo trem, a não ser que alguém os queira. E

claro que eu não acho que eles vão precisar daquelas passagens de trem, pois eu sei que

a Sra. King e a Sra. Hathaway estão procurando alguém para ajudá-las no hotel. O que

eu vejo é que é um bom serviço para qualquer pessoa.

Silêncio.

Então, uma voz ainda desafiadora, com um quê de desespero:

— A Sra. King não vai querer nós. Meu irmão é aleijado. Não trabalha duro.

Ninguém quer nós dois — e eu não largo dele! Não largo!

Joseph continuou tentando acalmar a situação:

— Vamos dar uma olhadinha. Não deve ser tão mau — Inspirando fundo, disse: —

Hummm! Acho que senti cheiro de frango frito, agora.

Dois pares de olhos apareceram sobre o fardo de feno. Vagarosamente, a loira

Sarah Biddle levantou-se. Apertando a mão de Tom, seu irmão, ela o puxou para ficar em

pé, também. Então, ajudou-o a sentar-se no fardo de feno. Ela girou as pernas dele, para

que ficasse de frente para Joseph e, sentando-se ao lado dele, apertou um braço ao redor

de sua cintura.

— Você está apertando muito forte — disse Joseph.

Sarah concordou.

— Nós estamos juntos, nós vamos ficar juntos! A velha rabugenta não pode fazer

nada, também. Talvez eu vá voltar para Nova Iorque. Tem um homem lá que me ofereceu

um serviço. Disse que eu podia ficar com o Tom, também — contanto que ele ficasse no

quarto do fundo enquanto conversasse com os meus visitantes. — Ela, graciosamente,

colocou o queixo para a frente. — Nem sei por que eu vim naquele trem besta, mesmo.

As pessoas cutucando, bisbilhotando e falando sobre nós como se a gente fosse neg...

Joseph terminou a palavra para ela:

— Como se vocês fossem negros? Imagino que eu sei o que é isso. Mesmo assim,

há lugar pior que viver em Lincoln.

— Acho que a gente nunca vai descobrir.

Sarah levantou-se impulsivamente e puxou o irmão para o seu lado.

— Nós vamos embora, acho. Você pode mostrar para nós a delegacia de polícia?

— Não precisa de pressa agora, jovem— Joseph replicou. — Há tempo de sobra

para isso. O trem não volta até amanhã, de qualquer jeito. Por que vocês dois não vêm e

comem comigo?

— Não posso, já disse. Nós não temos dinheiro.

— Não precisa de dinheiro.

Sarah olhou para ele com suspeita.

— Como eu vou pagar sem dinheiro? — Ela segurou o irmão mais apertado.

— Você não vai pagar. Lincoln tem essa regra. Na primeira noite na cidade, cada

visitante tem direito a uma refeição de graça, na Casa Hathaway. A cidade paga por isso.

É uma forma de fazer as pessoas ficarem e tentarem algo por aqui.

— Isso é verdade?

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— Juro pelos meus papéis de liberdade.

Sarah considerou. Tom encerrou o assunto:

— Quero frango. Estou com fome!

— Está certo, então, senhor. Vamos comer a refeição de graça.

Joseph levantou-se.

— Só me dá o seu irmão e nós descemos.

— Não! — Ela deu um salto para trás, com os olhos arregalados, assustada. —

Ninguém carrega o Tom, só eu. Você fica para lá!

Joseph levantou as mãos para acalmá-la.

— Tudo bem, senhorita, tudo bem. Eu vou descer a escada; se precisar de alguma

ajuda, é só gritar.

Joseph desceu a escada e ficou olhando admirado, enquanto a menina pequena

também descia, carregando o irmão, degrau a degrau. Quando seu pé esquerdo alcançou

a primeira travessa, Joseph viu o problema. Uma perna era pelos menos duas polegadas

mais curta que a outra. Uma cicatriz funda subia do calcanhar até não se ver o resto,

embaixo da roupa dele. Joseph decidiu não prestar mais atenção naquilo, saindo os três

para a Casa Hathaway.

Entrando na cozinha, Joseph falou antes que Augusta perguntasse:

— Sra. Hathaway, esta aqui é Sarah Biddle e seu irmão, Tom. Eles estão visitando

Lincoln e eu lhes falei sobre a refeição de graça que nós oferecemos para todos os

visitantes novos. Eu me lembrei de falar para eles que é só uma refeição de graça. Eles

resolveram que viriam esta noite, se não houver problema.

Augusta piscou para Jesse e entrou na brincadeira.

— Ora, é claro, Joseph. Está bem. — Virando-se para Sarah, Augusta disse

educadamente: — Vocês dois gostariam de se lavar, antes do jantar?

Sarah assentiu com a cabeça e Jesse começou sua atuação.

— Por favor, por aqui, Sra. Biddle. Nós temos um quarto aqui atrás só para visitantes

de primeira vez.

Sarah seguiu Jesse para o quarto de Lisbeth. Seus olhos se arregalaram ao

examinar o quarto confortável, a cama com quatro mastros, as fronhas dos travesseiros

limpas e claras. Havia um pequeno lavatório perto da cama, com toalhas de linho. Jesse

pôs água fresca do jarro na mão dela. Ela bondosamente despejou dois copos cheios de

água. Sarah jogou Tom na cama.

— O jantar está pronto para quando quiser, Sra. Biddle. É só vir para a cozinha.

Depois que Jesse saiu, Tom bocejou na cama.

— Sarah... é tão macio! — exclamou. — Eu gosto daqui!

Sarah esfregou seu rosto e mãos e virou-se para lavar Tom, tentando remover o

máximo possível do encardido. Ela umedeceu as mãos e tentou colocar o cabelo teimoso

no lugar. Havia uma cômoda no lado oposto ao lavatório e em cima dela ficava um

espelho muito bonito. Sarah examinou-o detalhadamente, girando-o para se olhar. Ela

pegou uma escova e, olhando sobre o ombro para a porta aberta, rapidamente penteou o

cabelo.

— Bem— disse — finalmente. Acho que podemos jantar, agora.

— Nós vamos ficar aqui, Sarah? — Tom perguntou.

Page 183: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Nem pense nisso, Tom. Só comer a refeição grátis. Então, vamos dormir no

sótão, até o trem chegar amanhã.

— Mas eu quero ficar aqui, Sarah!

— Não pode ficar aqui, Tom— ela disse de maneira triste. Então ela se atirou sobre

ele para impedir qualquer outra pergunta. — Pare de choradeira, Tom. Nós vamos ter

uma refeição decente, não é? Já chega! Agora vamos comer.

Sarah e Tom reapareceram na cozinha e comeram uma grande quantidade de

comida. A vida tinha-lhes ensinado a comer muito quando havia bastante, pois no outro

dia poderia não haver nada.

Jesse e Augusta deixaram as crianças aos cuidados de Joseph, ocupando-se em

servir os hóspedes na sala de jantar. Sarah e Tom as olhavam irem e virem, com grande

interesse. Entre mordidas enormes no frango, Tom perguntou:

— As duas senhoras são donas do hotel? Elas são boas? Como é que aquelas

pessoas lá fora não comem toda a comida delas? Vocês comem assim toda noite?

Quando é que o trem chega amanhã?

Joseph, pacientemente, respondeu a cada pergunta. Sarah o deixou falar livremente

até fazer a última:

— Podemos ficar aqui? Vocês comem bem!

Sarah deu uma cotovelada nas costelas dele e mandou-o ficar quieto.

As duas crianças ficaram sentadas sem se mexer e sonolentas, depois de terem-se

empanturrado com a comida. Quando Jesse e Augusta acabaram suas tarefas, Augusta

assentou-se confortavelmente em sua cadeira e pegou o Commonwealth. Jesse disse a

Sarah:

— Srta. Biddle, você é bem-vinda para ficar naquele quarto — só por essa noite, é

claro!

— Não posso — veio a resposta curta. — Não tenho dinheiro. Podemos dormir no

sótão? — Esta foi dirigida a Joseph, que disse que sim, implorando a Jesse com os olhos.

— Bem, então, Srta. Biddle, eu entendo o problema de não ter dinheiro. Eu mesma

já fiquei sem dinheiro muitas vezes. Você seria capaz de fazer algum serviço em troca de

usar o quarto esta noite?

Sarah olhou com suspeita, de novo.

— Que tipo de serviço?

Jesse olhou para Joseph.

— Bem, tenho certeza de que o Sr. Freeman poderia precisar de ajuda para tratar

dos cavalos esta noite. E ele geralmente traz lenha para o fogão. Talvez você pudesse

ajudá-lo nisso.

Sarah pulou vigorosamente.

— É um prazer. Eu gosto de cavalos!

Sarah tentou encostar-se em Tom.

— Ah, está certo, Srta. Biddle. Tom pode ficar conosco.

Sarah apertou a manga da roupa de Tom.

— Não! Tom fica comigo!

Tom acordou e esfregou os olhos.

— Cansado, Sarah. Tom está cansado. Quero dormir.

Page 184: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

Jesse pôs a mão no cabelo desgrenhado de Tom e afagou-o carinhosamente.

— Que tal colocarmos o Tom na cama? Então você pode ajudar o Joseph com as

tarefas.

Sarah considerou:

— Você quer dizer... lá? — apontando para o quarto de Lisbeth.

— É.

— Posso colocá-lo na cama?

— É claro!

— E a senhora não vai levar ele pra nenhum lugar enquanto eu sair?

— Sarah, eu nunca, nunca tiraria um irmão de perto de sua irmã. Famílias são

importantes e devem ficar juntas. — Ela se ajoelhou perto de Sarah e Tom. — Você é

uma irmã muito boa, cuidando tanto de Tom. Vamos lá, colocá-lo na cama.

Sarah sentiu alguma coisa sair de dentro dela. Algo que estava machucando. Não

era suficiente deixá-la chorar todas as lágrimas que tinha acumulado nos últimos catorze

anos, mas era suficiente para ela sentir que talvez — só talvez — houvesse pessoas no

mundo em quem poderia confiar, enfim.

Ela pegou Tom no colo e o carregou até o quarto de Lisbeth, onde ele dormiu na

hora, curvado sobre o travesseiro. Respirando feliz, ele nem percebeu que Sarah saiu

para fazer seu serviço — nem que ela voltou para dormir, numa camisola que Jesse lhe

emprestara. Quando Jesse veio ver como estavam, Sarah estava deitada de lado, com a

bainha da camisa de Tom apertada em uma mão.

Sarah sentou-se subitamente na cama ao ouvir o barulho do apito do trem.

Balançando Tom vagarosamente, ela gritou:

— Tom! Tom! Acorda! O trem está vindo!

Jesse e Augusta ouviram a agitação e correram para o quarto.

— Sarah! Sarah! Tudo bem. Há muitos trens vindo para Lincoln todos os dias. O

trem para Nova Iorque só vai voltar à tarde. Está tudo bem acalme-se!

Tom aninhou-se feliz embaixo da coberta, de novo. Mas Sarah puxou as cobertas.

— Não faz mal, Tom. A manhã está chegando. Precisamos sair daqui. Onde estão

nossas roupas? — Sarah perguntou.

Jesse respondeu:

— Lá na cozinha, perto do fogão. Nós as lavamos, depois que vocês foram dormir.

Achamos que não iam ligar — Enquanto Jesse explicava, Augusta trouxe as roupas

limpas que ela tinha tirado do suporte de secar roupa perto do fogão.

Augusta interrompeu:

— Sarah — Srta.Biddle — nós queríamos perguntar-lhe uma coisa. Por favor, venha

até a cozinha, depois de se vestir.

Sarah entrou na cozinha onde Jesse e Augusta estavam sentadas, tomando café,

parecendo relaxadas. Sarah estava desconfiada.

— A senhora queria alguma coisa?

Jesse tinha sido eleita para falar.

— Você é mais delicada do que eu, Jesse. Sou muito espinhosa. Leva tempo para

eu amaciar. Você sabe falar isso melhor — você fala. Augusta encontrou os olhos dela. —

Essas crianças não devem jamais voltar para Nova Iorque! Depois do que ouvi o que

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contaram para Joseph sobre para onde seriam encaminhados...

— Por favor, Sarah — se é que posso chamá-la de Sarah —, por favor, assente-se.

— Eu fico em pé, obrigada. — Ela não se deixava vencer facilmente.

— Augusta e eu somos donas deste hotel, Sarah. Até pouco tempo minha filha

Lisbeth morou aqui. Agora ela é casada e nós precisamos de ajuda. Pusemos um anúncio

no jornal, mas não obtivemos resposta. Você ficaria com o serviço?

Jesse continuou.

— Você ficaria com as obrigações de Lisbeth, o que significa ajudar-nos a cozinhar,

limpar os quartos, o jardim — o que for preciso. Nós lhe daríamos quarto e comida...

— E o Tom? — Sarah não deixou Jesse acabar.

— O Tom pode ficar aqui também.

Sarah encarou-os, não acreditando.

— O Tom é aleijado. Não pode trabalhar muito.

— Nós sabemos, Sarah.

— Por que querem ele, então?

O espectro de um pequeno túmulo guardado no passado veio à mente de Jesse. Ela

respondeu, honestamente:

— Quando eu era jovem, Sarah, perdi um menininho da idade de Tom. O nome dele

era Jacob. Se você e o Tom ficarem, então vai ser como se Deus estivesse me dando de

volta meu menininho. Vou ter uma segunda chance de ter um menininho.

Sarah olhou com os olhos semicerrados o rosto de Jesse.

— O que aconteceu com seu menininho?

— Ele caiu embaixo das rodas do carroção, que passou por cima dele.

Os olhos de Sarah se arregalaram e ela falou baixinho:

— Um carroção passou por cima do Tom também, só que ele não morreu.

Machucou demais a perna dele. Ele nunca mais andou direito.

Jesse piscou, segurando as lágrimas. Augusta falou:

— Sarah, eu não sou tão delicada para falar como a Jesse, mas eu gostaria de que

vocês ficassem também. Você e o Tom.

Sarah examinou a cozinha e pediu com muita insistência:

— Nós podemos ficar naquele quarto?

— É parte do acordo.

— Vocês vão deixar a cama lá?

Jesse segurou o riso.

— É claro, Sarah. Seria a sua cama. Sua e do Tom. Embora possamos pedir ao

Joseph para fazer um estrado que deslize para debaixo da cama, para o Tom. Dessa

forma, cada um de vocês teria a própria cama.

Sua própria cama representava mais riqueza do que Sarah jamais havia esperado.

Isto selava o acordo.

— Nós ficamos — ela disse simplesmente. — O que é para eu fazer primeiro?

— Primeiro — disse Jesse mansamente, deixe o Tom dormir um pouco mais.

Segundo, venha comigo e vou mostrar-lhe o hotel e ensinar-lhe algumas coisas que

fazemos ao passar pelos quartos.

Augusta acendeu o fogo, enquanto Jesse andava com Sarah pela casa, mostrando-

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lhe a sala de jantar, a ala oeste e os cômodos de Augusta.

— Nós gostaríamos de aumentar, mas precisaríamos de mais ajuda. Assim, não

temos certeza do que fazer. Por enquanto, vamos continuar como estamos. Além disso,

estamos ficando velhas.

— A senhora não é tão velha, madame. Está um pouco enrugada, mas o seu cabelo

não está de todo branco. A senhora sobe muito bem as escadas. A senhora não está tão

velha. — Jesse abafou uma risada, limpou a garganta e agradeceu o elogio.

De volta à cozinha, Augusta viu que Sarah sabia muito sobre cozinhas e nada sobre

salas de jantar.

— Ela vai ter de ficar nos bastidores, por enquanto — Augusta aconselhou Jesse

mais tarde. — Você pode administrar a sala de jantar sozinha?

Jesse assentiu:

— É claro. É melhor se no começo Tom ficar à vista de Sarah, de qualquer forma,

até ele se acostumar conosco.

Mas Tom sentiu-se instantaneamente em casa, na Casa Hathaway. Mancando feliz

da mesa até a cozinha, ele trabalhava bastante, todos os dias, até que sua perna

começasse a doer e ele fosse forçado a se assentar. Jesse e Augusta pediram ao Dr.

Patton para vir olhar a perna do menino.

— Um caso claro de medicina irresponsável — ele diagnosticou. — Não há razão

alguma para este menino não ter sido bem curado. Alguns médicos não têm o cuidado

suficiente para arrumar isso direito. Ele vai mancar pelo resto da vida, pobre menino.

Jesse sorriu.

— Tudo bem, doutor. Nós vamos dar uma chance ao Tom. Estou matriculando-o na

Srta. Griswall, amanhã. Acho que ele é um menino muito vivo. Talvez Deus tenha outros

planos para Tom Biddle.

— A Srta. Griswall vai fazer o melhor que puder por ele — o médico concordou. —

Ela é uma mulher muito bondosa.

Capítulo 33

Por que o amor é forte como a morte.

Cantores de Salomão 8:6

— Tia Jesse! O que está acontecendo?! — Sara e Jesse estavam esfregando as

roupas de cama no alpendre que Joseph havia construído no fundo da cozinha. De

repente, o rosto de Jesse ficou branco. Ela se assentou, segurando a mão fechada sobre

o coração.

Sarah ficou horrorizada.

— Vou chamar tia Augusta.

— Não! — disse Jesse com a voz entrecortada. — Não faça nada disso. Ela ficará

toda alvoroçada, preocupada comigo e me deixará louca. Só me deixe descansar um

minuto. Vai passar.

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Jesse respirou fundo e, como havia dito, em poucos segundos a dor havia passado.

Ela deu um sorriso luminoso.

— E, então, viu só? Não disse que ia passar? Agora é melhor acabar com essa

roupa ou Augusta nos arranca o couro! — Jesse retornou à lavagem de roupa.

Quando acabaram, entretanto, uma grande fadiga tomou conta dela.

— Sarah, estou entrando para me deitar alguns minutos. Acho que fiquei até muito

tarde fazendo colcha a noite passada.

Sarah ficou preocupada e pensando no que fazer. Quando Tom voltou da escola, ela

fez sinal de silêncio com o dedo e puxou-o para o quarto deles.

— Alguma coisa está errada com a tia Jesse, Tom! Mas ela disse para não contar

pra tia Augusta. Eu acho que ela precisa ir ao médico!

Tom considerou a notícia franzindo a sobrancelha. Então, seu rosto brilhou.

— Eu sei! Vou fingir que minha perna está doendo muito. Tia Jesse vai chamar o

médico para mim... e aí, ele examina ela também!

No dia seguinte, quando Tom veio da escola, mancava muito, assentando-se à mesa

para esfregar sua perna.

— O que está acontecendo?— Jesse perguntou.

— Ai!, nada — disse Tom fazendo caretas dramáticas.

— Sua perna está doendo?

— Acho que um pouco.

Augusta interrompeu:

— Vou chamar o Dr. Patton, agora mesmo.

— Ai, não preciso do doutor, tia Augusta. Ele não pode fazer nada mesmo.

— Tolice, Tom. Se dói, há alguma coisa errada. O Dr. Patton disse que não deveria

doer muito. — Augusta pegou seu chapéu e saiu para procurar o médico. Sarah e Tom

olharam-se e riram escondido. Jesse expressou sua preocupação mandando Tom deitar-

se e colocar as pernas sobre o travesseiro.

Sarah reclamou:

— Você mima muito ele, tia Jesse!

Jesse concordou:

— Eu sei, Sarah. Acho que estou tentando compensar alguma coisa para ele.

Sarah, de repente, ficou séria.

— A senhora já fez o suficiente. A senhora e tia Augusta deram um lar para nós;

vocês têm sido tão boas para nós que quase nem sabemos como agir. Agora estamos

felizes por termos viajado naquele trem de órfãos.

Jesse sorriu carinhosamente.

— Nós estamos contentes também, Sarah. Vocês dois preencheram um grande

espaço vazio no coração de nós duas. Além disso — Jesse piscou — precisamos de

trabalhadores livres pra manter o lugar funcionando.

Sarah havia-se tornado segura em sua função no hotel, durante aqueles meses. Ela

brincou, em contrapartida:

— É , e vocês me fazem trabalhar como um cavalo também! Eu vou voltar para

aquele orfanato qualquer dia desses. Vocês duas não me tratam bem!

Page 188: Caminhando Nas Chamas - Stephanie Grace Whitson

— Tente fazer isso, jovenzinha! — Jesse brincou, balançando o dedo no nariz de

Sarah. — Vocês não vão sair daqui nunca mais! — Em seguida, puxou Sarah e deu-lhe

um abraço. — Nós amamos muito você para deixá-la ir.

Sarah não teve resposta para aquilo. Ela podia brincar e fazer piadas sobre seu

novo lar, mas a palavra "amor" não estava em seu vocabulário — ainda. Augusta chegou

com o médico que se apressou em ver Tom, com Jesse logo atrás.

— Onde dói, Tom? — perguntou Dr. Patton.

— Ah, é mais aqui — disse Tom apontando para seu joelho. O médico mexeu com a

junta, olhou para ver se estava inchado e não encontrou nada. — Bem... talvez seja

aqui— disse Tom, agora indicando seu tornozelo. O médico novamente não encontrou

nada. Olhando sem entender, ele se sentou na beira da cama. — Então, quando esta dor

começou, Tom?

— Ontem.

— Você estava fazendo alguma coisa diferente? Tentou pular ou correr?

— Não.

— O que estava fazendo, quando começou a doer?

— Conversando.

— Conversando?!

— É , com a Sarah.

— Sobre o que vocês estavam falando, Tom?

— Sobre a tia Jesse.

— E a sua perna começou a doer?

— Bem... não é bem isso.

— Não é bem isso? — O médico estava ficando impaciente.

Tom sentou-se.

— Nós estávamos conversando que a tia Jesse precisava ir ao médico e que ela não

vai porque pensa que não é nada; então, nós achamos que se o senhor viesse-me ver,

então podia ver tia Jesse também e descobrir por que o coração dela dói.

Augusta lançou um olhar de acusação a Jesse. O Dr. Patton sorriu e deu um tapinha

em Tom.

— Muito sabido, Tom, muito sabido.

Virando-se para Jesse, disse:

— Então, Sra. King, talvez a senhora gostasse de esclarecer este assunto?

Acuada, Jesse foi forçada a falar.

— Bem... talvez eu tenha tido alguns acessos ultimamente.

Augusta protestou:

— E por que eu não fiquei sabendo disso?

— Porque provavelmente não seja nada, só por isso. Foram poucas vezes — uma

dorzinha — é só isso.

— Algum outro sintoma, Sra. King?

— Não, nada mais para ser dito.

— Você tem estado bem cansada ultimamente, Jesse — acrescentou Augusta.

— Ah, é porque estou trabalhando bastante, doutor. Eu só preciso de um pouco

mais de descanso, só isso.

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— Jesse King — Augusta insistiu. — Quando você está cansada demais para

trabalhar com acolchoamento é porque alguma coisa está errada! Você está com aquela

colcha na moldura por semanas, ela mal está começada. Se você estivesse normal, já

teria aquela colcha dobrada e outra começada! E não pense que eu não sei disso!

— Está certo, está certo, Augusta. — Jesse virou-se para o médico: — Eu vou

procurá-lo amanhã, doutor. Esses três não vão dar-me um minuto de paz, se eu não for.

Satisfeito, o médico levantou-se para sair. Jesse ralhou com Sarah e Tom:

— E vocês dois! Escandalosos! Gastando tempo do doutor, chamando-o aqui,

preocupando tia Augusta!

— Mas funcionou, não é, tia Jesse?— disse Tom.

Jesse riu.

— Acho que sim, Tom, acho que sim.

Jesse manteve a promessa e foi ao médico no dia seguinte. Ele fez-lhe umas

poucas perguntas, ouviu o coração e franziu a testa. Prescreveu uns dias de repouso,

sem levantar-se, e uma atenção especial a uma dieta apropriada. Jesse agradeceu por

sua bondade, pagou a conta e ignorou suas instruções. Ela se convenceu de que estava

se sentindo muito melhor. De fato, parecia que as dores haviam-se acalmado, e ela

estava progredindo em sua colcha quando Sarah veio correndo para dentro com uma

incumbência da cidade, O Estrela da Noite nas mãos.

— Tia Jesse! Tia Augusta! Olhem!

Augusta não estava inclinada a ler o jornal concorrente. Então a manchete chamou-

lhe a atenção: “Telegrama — 3: 00 a.m. — Guerra com índios — Notícias sangrentas de

Stillwater, Montana. Gen. Custer e grande parte de seu comando massacrado. — Os

diabos vermelhos mataram a família inteira de Custer e esquartejaram 300 soldados".

Augusta agarrou o jornal e foi olhando para Jesse, que estava arrumando as mesas

na sala de jantar.

— Jesse! A qual comando você disse que o Mackenzie tinha-se juntado, pela última

notícia?

Jesse hesitou.

— Puxa, Augusta, não me lembro. Ele foi mudado tantas vezes nos últimos meses.

Pobre Lisbeth, está tão cansada de ficar viajando. Espero que o Mac pegue alguma folga

logo, se é que as coisas algum dia vão-se acalmar. Gostaria de que o Cavalo Louco e o

Touro Sentado escutassem o Nuvem Vermelha. — Jesse fez uma pausa... — Custer!

Acho que é isso... General George Custer. É esse o oficial comandante do Mac. — Jesse

estava de costas para Augusta e continuou a conversa tranqüila. — Lisbeth diz que ele é

um homem muito lindo e que se veste com muito capricho. Ela conheceu a esposa dele,

também.

Só então Jesse virou-se e viu a expressão de Augusta.

— O que foi, Augusta? — Sua mão foi até a garganta. — O que aconteceu?

— Sente para não cair, Jesse — ordenou Augusta.

Jesse assentou-se com o coração disparado. Augusta lutou para controlar sua voz

tremida enquanto lia alto:

Uma batalha foi travada no dia 25, trinta ou quarenta milhas abaixo da Little Big

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Horn. Custer atacou uma aldeia habitada por 2.500 a 4.000 guerreiros. Custer, quinze

oficiais e todos os homens pertencentes a cinco companhias foram mortos. O campo de

batalha parecia um...

Augusta, abruptamente, parou de ler.

— Continue, Augusta — Jesse pediu.

Ela levantou a mão e com a palma pressionou o peito num esforço para parar a dor

que estava manifestando-se.

Relutantemente, Augusta leu:

O campo de batalha parecia um curral de matadouro, o que na verdade era. Os

mortos estavam muito mutilados... Um correspondente especial do Helena Hercúd

escrev...

Enquanto Augusta continuava a leitura. Tom e Sarah foram para o lado de Jesse.

Preocupados, cada um pôs uma mão no ombro de Jesse.

Sarah disse:

— Tudo bem, tia Jesse. Mackenzie provavelmente mudou de novo. A senhora disse

que ele tem-se mudado bastante ultimamente.

Tom não sabia o que dizer. Ele só continuou dando tapinhas no ombro de Jesse.

Jesse pôs o cotovelo na mesa e apoiou a testa com uma das mãos. Augusta não via

o seu rosto. Seu coração continuava a bater disparado. Ela só conseguia pensar em

Lisbeth. Fazia só um ano que Lisbeth estava tão apaixonada. Ah! Senhor, com certeza

Lisbeth não tem de passar o que eu passei. Há tanta dor no mundo, Senhor. Ela não está

preparada. Ela é tão jovem para suportar isso! A mente de Jesse estava um turbilhão. Ela

levantou os olhos.

— A Lisbeth e o Mackenzie podem não ter sido afetados, Jesse — disse Augusta

com esperança.

— Eu sei disso — Jesse murmurou. — Mas então, de novo, Lisbeth, minha amada

Lisbeth, pode já ter sabido que o seu jovem marido está morto no imenso deserto onde

ela não queria ir.

Lá estava ele — aquele sentimento. Não doía; só aquele sentimento estranho. Jesse

arrastou-se da mesa para seu quarto. Sarah e Tom acabaram de arrumar as mesas.

Augusta precisava conversar. Ela gritou na porta do fundo:

— Joseph! — Seu amigo fiel nunca estava longe. Ele correu do estábulo.

— Joseph, Jesse e eu acabamos de saber da batalha no Little Big Horn. Mackenzie

devia estar lá. Ah, Joseph, como nós agüentaremos isso?

Joseph pensou um momento.

— Nós agüentaremos isso do mesmo jeito que agüentamos as outras coisas,

madame. É só uma hora de cada vez, eu espero. Orando e perguntando ―por quê‖ e

confiando no Senhor que sabe e faz o que é melhor.

Lá fora o som de uma tempestade ameaçava. Joseph murmurou:

— Bem, nós precisamos de chuva — Ele se virou devagar e começou a lavar a

louça de comida para os hóspedes que já estavam chegando.

A tempestade soprou com fúria, trazendo correntes de chuva à cidade e

transformando as ruas poeirentas num mar de lama. Tom Biddle sentou-se à mesa da

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cozinha, resolvendo uma pequena prova, passada a ele naquele dia pela bondosa Srta.

Griswall. Ao se concentrar, ele mordia a língua. Ele escreveu com todo cuidado: O que eu

gosto em Lincoln.

Sarah corria de lá para cá, entre a sala de jantar e a cozinha, lançando olhares

preocupados ao quarto de Jesse. Não havia nenhum som vindo daquela direção.

Bem, Sarah pensou, pelo menos ela não está chorando. Acho que já é alguma

coisa.

Augusta colocou sua preocupação no trabalho, enchendo copos com água, servindo

café, ouvindo cada comentário sobre as notícias que tinham acabado de chegar. Ela

esticava o pescoço como se, ouvindo os comentários dos cidadãos de Lincoln, pudesse

saber se Mackenzie Baird — o jovem e bonito Mackenzie Baird — era um daqueles que

jaziam mortos no campo de batalha tão longe.

Somente Lisbeth sabia. Lisbeth, a bonita jovem de cabelos pretos que há tão pouco

tempo havia tomado conhecimento de que era meio índia lakota e que desejava saber

mais sobre seu pai — e ―ajudar a fazer a diferença". Movendo-se rapidamente em

ocupações não do seu feitio, Lisbeth havia recebido a notícia da morte de Mackenzie e

naquele momento estava escrevendo à sua mãe, em Lincoln, para lhe dizer que ela iria

para casa brevemente.

Jesse, deitada de costas, olhava para fora da janela. Enquanto o trovão retumbava,

ela abriu o coração ao Senhor. Agora a tempestade havia passado, e o silêncio veio tão

de repente quanto o trovão tinha rolado pelas planícies. Ela podia ouvir os sons dos que

jantavam — vozes ressoando, talheres batendo, cadeiras se arrastando no chão, quando

os hóspedes se sentavam em seus lugares preferidos.

Tenho de levantar, Jesse pensou. Com uma força tremenda, ela alcançou a beira do

colchão para levantar-se. Tenho de levantar para ajudar a Velha... Mas por quê?, ela se

confundiu, depois de todos esses anos, por que pensei nisso?

O nome juntou as lembranças: um nenê num suporte, preso no mastro de uma

tenda, olhando uma mulher velha amassar grãos e fazer um mingau. Seus pensamentos

estavam confusos. Jesse repreendeu-se a si mesma: Velha bandida que sou! Não preciso

ajudar Velha a fazer nada! No entanto, preciso ajudar Augusta. Precisamos estar prontas

quando Lisbeth chegar.

Os sons da sala vieram de novo. Apertando os lados do colchão, ela se lançou meio

caminho para cima, arquejando com esforço. Por que estou tão cansada o tempo inteiro?

Velha preguiçosa. Mas, por mais que reclamasse, sabia que não conseguiria levantar-se.

A fadiga apossou-se dela, cobriu-a e engoliu sua vontade de ir à cozinha. Uma dor

entorpecida encheu o seu peito e fluiu para um braço. Cobrindo-se novamente com a

colcha, suspirou e mudou sua atenção para fora da janela.

O céu negro de tempestade havia mudado para cinza-escuro e, na distância,

vagalhões de nuvens eram soprados sobre a campina. Elas começavam a correr uma ao

lado da outra, misturadas pelo vento, e o sol brilhando nelas as fazia parecer um branco-

brilhante num céu escuro.

As lembranças tomaram conta dela: um comerciante francês com os olhos risonhos;

uma viagem comprida, a cavalo, até o Forte Kearney; e, em algum lugar, bem longe, um

montinho de pedras recuando na planície vasta enquanto um carroção ia embora. Então

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ele veio, um valente lakota, com o seu potro branco como a neve. Eles saltaram juntos

para o céu, e em cada pulo o coração de Jesse se agitava irregularmente. Ela ficou em pé

na campina, suas tranças vermelhas, compridas, decoradas com penas, a risca do cabelo

na cor ocre. Ela levantou a mão tremendo, para saudá-lo, mas ele tinha ido embora.

Sua mão caiu de volta na colcha, e Jesse viu as nuvens de novo e percebeu que

tinha sido apenas uma lembrança. Ela era uma mulher velha, muito cansada para ajudar

com o jantar, talvez até cansada demais para ser útil a Lisbeth.

As nuvens lá de fora aproximaram-se, e o velho coração se excitou com a lembrança

de um homem que cavalgava no vento há muito tempo. Ele levantou uma mão,

saudando-a.

— Vou pedir ao Pai — ele havia dito — E voltarei para você.

Jesse sentou-se na cama, seu rosto vivo com uma nova luz. Cavalga o Vento sorriu

e alcançou-a para puxá-la, majestosamente, para a garupa dele.

E o Pai disse: “Venha para casa".

As linhas caem-me em lugares deliciosos; sim, coube-me uma formosa herança.

Salmo 16:6

FIM

Stephanie Whitson nasceu em East St. Louis, em Illinois, e bacharelou-se em

francês pela Universidade Southern Illinois, em Edwardsville. Uma dona de casa de

tempo integral, é casada há vinte anos com RTW, que compartilha com Cavalga o Vento

(Rides the Wind) as mesmas iniciais. Eles dão aulas em casa a seus quatro filhos e

operam em casa uma companhia de presentes para casas, chamada Trabalhos do

Campo. Stephanie é uma operante costureira de colchas de retalho e, com uma amiga,

desenha peças para colchas pela companhia que possuem, a Mulberry Lane para o

comércio nacional.

Nos últimos cinco anos, os Whitsons têm vivido em dez acres e meio, isolados no

interior do Nebraska. A história de Jesse King foi inspirada na vida de pioneiros

enterrados num cemitério abandonado, ao lado da propriedade dos Whitsons.