Campo literário e convergência: representações da infância ... · Nos primórdios a história...
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Campo literário e convergência: representações da infância e da adolescência nos
games “Child of Light” e “Rain”
Mario Lousada de ANDRADE1
Resumo
No atual contexto, as reflexões concernentes ao estabelecimento do campo literário e ao
ensino da literatura trazem consigo a necessidade de se pensar tais problemas através de
uma abordagem cada vez mais dialógica e convergencial. Com o dilúvio informacional,
tal qual mencionado por Lévy (1999), e sua concludente expansão tecnológica,
acompanhou-se o aparecimento de novos espaços possíveis para produções ficcionais
particulares que, não raras vezes, estabelecem diálogos com a literatura. Diante disso,
apresentamos neste trabalho algumas considerações sobre a convergência entre a
literatura e os games. Como recorte, apontamos games que representam a infância e a
adolescência, aplicando ao corpus as contribuições filosóficas de Bachelard (1988).
Palavras-chave: Campo Literário. Games. Convergência. Infância. Adolescência.
Abstract
Nowadays, reflections about literary field and literature teaching bring with them the
need to think about such problems through an increasingly dialogic approach. The
informational flood, as mentioned by Levy (1999), and its conclusive technological
expansion, have been followed with the emergence of new possible spaces for fictional
productions. Therefore, we present in this paper some reflections upon the convergence
between games and literature. For instance, one has pointed out games that represent
childhood and adolescence, applying them to the corpus the philosophical contributions
of Bachelard (1998).
Keywords: Literary field. Games. Convergence. Childhood. Adolescence.
1 Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, na linha de
pesquisa “Literatura e Historicidade”. É mestre em Letras (Estudos Literários) pela mesma instituição, na
área linha de pesquisa “Campo Literário e Formação de Leitores”. CEP: 87895-000, Terra Rica, PR.
Email: [email protected].
O Campo literário em convergência
Os professores continuam falando de um divórcio ou curto-circuito
entre, de um lado, a escola e leitura e, de outro, o mundo da televisão,
cinema e outros passatempos audiovisuais. Essa visão antagônica
entre leitura e tecnologias midiáticas vem sendo recolocada há vários
anos, tanto nos estudos sobre cultura como nos que são feitos sobre
comunicação. (CANCLINI, 2008, p. 33)
A epígrafe com a qual iniciamos esta seção é bastante emblemática no que tange
ao impasse que ainda se faz presente quando o assunto é a educação e novas
tecnologias. No panorama da contemporaneidade, as opções para a produção e
disseminação de narrativas ficcionais estão cada vez mais amplas. O cenário implica
diretamente na formação de novas demandas de leitores que, por apresentarem gostos
por formas narrativas multimodais, estão imersos em culturas específicas. A
problemática, consequentemente, nos traz a necessidade de pensarmos o ensino da
literatura através de uma abordagem cada vez mais dialógica e convergencial capaz de,
na medida do possível, reconhecer o repertório desses leitores.
Na introdução de seu Cibercultura, Pierre Lévy (1999) nos apresenta a metáfora
do “segundo dilúvio”. Para o autor, a sociedade passou por um segundo dilúvio, o da
informação. “Trata-se do transbordamento das informações, a inundação dos dados, as
águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação” (LÉVY, 1999, p. 14).
A metáfora utilizada por Lévy (1999) simboliza uma transformação tecnológica
que abre espaço para um conglomerado de reflexões socioculturais. Soares (2002) ao
refletir sobre as novas práticas de letramento na cibercultura, não deixa de mencionar a
questão das transformações relativas aos espaços possíveis para a inserção da escrita.
De acordo com a autora:
Todas as formas de escrita são espaciais, todas exigem um “lugar” em
que a escrita se inscreva/escreva, mas a cada tecnologia corresponde
um espaço de escrita diferente. Nos primórdios a história da escrita, o
espaço de escrita foi a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira
ou a superfície polida de uma pedra; mais tarde, foi a superfície
interna contínua de um rolo de papiro ou de pergaminho, que o escriba
dividia em colunas; finalmente, com a descoberta do códice, foi, e é, a
superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro, de
pergaminho, finalmente a superfície branca da página de papel.
Atualmente, com a escrita digital, surge este novo espaço de escrita: a
tela do computador. (SOARES, 2002, p. 149)
Para cada espaço de escrita nos deparamos com peculiaridades, isto é,
características próprias que trazem novos problemas tanto para o âmbito da poética
dessas novas formas de narrativas ficcionais quanto para o da estética. Soares (2002)
afirma que a tela como um novo espaço possível para a produção e consumo da escrita
traz não só novas formas de acesso à informação, como também novos processos
cognitivos, ampliando as possibilidades de manifestação do conhecimento.
Com a consolidação desses novos espaços (embora reconhecemos a existência
de uma lacuna no que tange ao julgamento valorativo das obras geradas dessas novas
formas) acompanhou-se o surgimento de uma nova cultura, a qual Jenkins (2006)
problematiza em seu Cultura da Convergência. Para o autor, o termo convergência é
capaz de definir mudanças tecnológicas que (re)configuram o cenário mercadológico e
artístico como um todo. Sobre o termo, o autor esclarece que:
Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de
múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados
midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de
comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das
experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma
palavra que consegue definir transformações tecnológicas,
mercadológicas, culturais e sociais. (JENKINS, 2006, p. 27)
Não devemos desconsiderar toda a questão mercadológica por trás desse
processo, mas pensar este cenário sob a ótica da formação de novas demandas de
leitores também se faz pertinente. Como o autor bem afirma, existe um comportamento
migratório no leitor/consumidor inserido nessa cultura que o impulsiona em uma busca
constante de ampliação da experiência de um determinado universo ficcional. Jenkins
(2006), posteriormente, reitera a definição destacando que a convergência não ocorre
por meio de aparelhos, independente de quão sofisticados sejam, mas dentro dos
cérebros dos consumidores que transitam por diferentes segmentos de um universo e em
interação com outros, construindo, dessa forma, a própria mitologia pessoal.
O autor dialoga com Lévy (1999) que expõe o conceito de Inteligência Coletiva.
No processo de Inteligência Coletiva “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós
sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e
unirmos nossas habilidades” (LÉVY, 1999, p. 28).
Em Negroponte (1995), encontramos reflexões sobre as perspectivas do futuro
no que se refere à tecnologia digital. O autor aponta não só a tecnologia em si, mas
também prevê modificações nos hábitos pessoais e sociais decorrentes da apropriação
dos recursos tecnológicos pela humanidade. Acompanhamos, a partir de então,
mudanças bastante significativas nos modos possíveis de interação entre leitores e
conteúdos ficcionais.
Canclini (2008) menciona que desde o aparecimento da internet, seus usos e
prioridades têm mudado:
Primeiro, a decisão era tê-la ou não. Depois, dar mais velocidade à
conexão. Em seguida, melhorar a rapidez e a interação com banda
larga e, para muitos, estar sempre conectado, incorporando a internet
ao celular. Em meio a tal expansão, a posição local e os aspectos
peculiares de cada usuário não desaparecem, mas se redimensionam
ao interagir com gente de outros países ou baixar músicas em várias
línguas. (CANCLINI, 2008, p. 60)
Postas essas reflexões, percebemos que o leitor no contexto convergencial possui
a seu dispor novos meios de realizar a leitura, configurando-se como um leitor que
busca informações relativas a um determinado universo ficcional em diversas mídias.
Percebemos também que o campo literário se abre, em termos dialógicos, para novas
formas de narrativas ficcionais que mesmo não sendo literatura apresentam pontos de
convergência com a arte literária.
Narrativa Literária e Narrativa de Games: relações possíveis?
Videogames are a new form of art. They will not replace books;
they will sit beside them, interact with them, and change them
and their role in society in various ways2. (GEE, 2007, p. 204)
O videogame, tendo em vista o seu potencial como mídia expressiva, configura-
se a partir de uma dinâmica comunicacional de ampla disseminação. Compreender os
games como um novo espaço possível para a inserção da escrita exige que
consideremos algumas implicações que se fazem obrigatórias. É necessário admitir que
games não são narrativas e, portanto, o que caracteriza um game não é a narrativa, mas
seu sistema de jogabilidade. Não podemos deixar de olhar, no entanto, para o avanço
tecnológico conquistado pela indústria que possibilitou aos jogadores não só um sistema
2 Videogames são uma nova forma de arte. Eles não substituirão livros; sentarão ao lado deles,
interagindo com eles e alternando-os, bem como os seus papéis na sociedade, em várias maneiras.
(Tradução livre).
de jogabilidade mais sofisticado como também uma experiência narrativa particular,
abrindo espaço para reflexões no tocante à problemática narratológica como um todo.
Hoje, temos contato com uma imensa quantidade de jogos que apresentam narrativas
em suas poéticas. É, inclusive, olhando para o avanço tecnológico que Tavinor (2009)
encontra subsídio para responder a uma questão colocada por ele próprio: por que os
games estão, cada vez mais, apresentando uma tendência à sofisticação artística?
Hoje, os dispositivos utilizados para o desenvolvimento dos games são capazes
de criar universos ficcionais sofisticados, sensíveis e com alto grau de imersão e toda
essa tecnologia tornou-se um pré-requisito para os games atuais. Tavinor (2009) afirma
que, em seu aspecto artístico, os videogames convergem com outras formas de arte mais
tradicionais ao envolver questões estéticas, representativas, abarcando a ética e a moral.
Nas palavras do autor:
Videogames are a growing phenomenon and influence in the modern
world, and are displaying new levels of artistic sophistication. As such
they seem to engage many of the same issues as do the traditional arts,
raising questions about aesthetics, representation, narrative, emotional
engagement, and morality, that have been the focus of the philosophy
of the arts3 (TAVINOR, 2009, p.13)
Não é raro encontrarmos posturas apocalípticas em relação aos games. Uma das
principais acusações consiste na deturpação que os jogos “podem” causar na sociedade,
em especial nos adolescentes, sendo considerados objetos de risco que atacam
violentamente a fibra moral dos costumes. Dentre os ataques mais comuns estão:
videogames são um desperdício de tempo, são ofensivos, misóginos, imaturos,
viciantes, incentivam comportamentos sedentários, envolvem os jogadores em práticas
ocultistas e atacam a fibra moral da nossa sociedade. Alguns ainda consideram os
videogames como transmissores de violência, agressão e como deturpadores da
juventude.
Sobre a problemática da violência, Alves (2009) esclarece que, como produto
cultural, as narrativas dos games podem reproduzir conteúdos presentes na sociedade,
mas a autora destaca que a interação com estes diferentes conteúdos e, em especial, os
3 Videogames são um fenômeno crescente que possui grande influência no mundo moderno e estão
exibindo novos níveis de sofisticação artística. Como tal, eles parecem envolver muitas das mesmas
questões que as artes tradicionais, levantando questões sobre estética, representação, narrativa,
engajamento emocional e moral, que tem sido o foco da filosofia das artes. (Tradução livre).
relacionados à violência, não resultam em comportamentos agressivos com outros
sujeitos, mas propiciam a elaboração dos aspectos subjetivos de cada indivíduo na
medida em que os games se constituem em espaços de catarse, nos quais a violência é
uma linguagem, uma forma de dizer o não dito.
De acordo com a autora, os videogames, com suas diferentes possibilidades de
imersão, permitem aos usuários vivenciar situações que não podem ser concretizadas no
cotidiano, exigindo tomada de decisão, planejamento, desenvolvimento de estratégias e
antecipações que vão além do aspecto cognitivo. É possível elaborar perdas, medos e
outras emoções e sentimentos sem correr riscos.
Na história literária, encontramos acusações muito semelhantes no momento
genesíaco do romance. Tendo sido considerado, pelos críticos da época, um gênero
menor, o romance sofreu severas acusações, dentre as quais o condenavam como sendo
apenas leitura de entretenimento, sem conteúdo estético, desprovido de uma perspectiva
firmada pela tradição clássica, confeccionado especificamente para um público carente
de gosto literário. Tavinor (2009), ao abordar sobre a ficção dos games, afirma que
certamente esses apresentam uma dinâmica muito mais interativa que a televisão e o
cinema. Ao invés de assistidos, os games são jogados o que compete ao jogador a
função de “agente”. O conceito de agência foi definido por Murray (2003) como “a
capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas
decisões e escolhas”. (MURRAY, 2003, p. 127). A agência está fundamentada nesta
dinâmica de interação. O indivíduo deve participar ativa e constantemente do game.
Tavinor (2009) aborda que não podemos negar a existência de uma relação entre
videogames e outras formas de arte, mas que há a necessidade de analisar os games
através de uma abordagem particular, sendo inadequado estabelecer julgamentos a partir
de instrumentais teóricos de outras artes. De acordo com o autor:
Comparing games to previous forms of art really is a cross-cultural
endeavor, but the comparison is not with the culture of a newly
discovered geographically isolated way of life, but with an interstitial
culture to which many people are oblivious. There are intersections
between cultural worlds – of course, videogames are informed by
mainstream film – but much of what happens in games and gaming is
generated by their own distinctive and semi-isolated cultural history.
This is an important reason why we should approach videogames on
their own terms, and not always judge them by more familiar forms of
culture that philosophers of the arts and other theorists have typically
dealt with4. (TAVINOR, 2009, p. 190)
Eskelinen (2006), ao se posicionar contra a abordagem puramente narratológica,
aponta que deveria ser óbvio que não se pode aplicar a narratologia impressa da
literatura, teoria do hipertexto, teatro e cinema diretamente aos games, mas não é.
Isso posto, compreendemos que narrativas de games e narrativa impressa – em
especial a legitimamente reconhecida como literária – podem possuir pontos de
convergência, mas estão inseridas em espaços específicos. Aplicar a narratologia
impressa diretamente aos games ocasionaria, inclusive, um grande problema no que
concerne ao julgamento valorativo do objeto.
Mediante tal cenário, compreendemos que o videogame é uma nova forma de
arte capaz de dialogar com formas artísticas mais tradicionais. A indústria dos games
continua crescendo a cada dia e possibilitando novas formas de interação, oferecendo
também potencialidades para a construção de universos ficcionais, o que desperta cada
vez mais interesses e ações em diversos setores culturais.
Representações da infância e da adolescência nos games.
Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou
não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à
incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que não
houvesse lugar para infância nesse mundo. (ÁRIES, 1981, p. 17)
A discussão que envolve as particularidades da infância e suas representações
nas artes é, atualmente, profícua. Diferentemente do século XII, a representação da
infância é hoje não só uma realidade efetiva, como também muito problematizada em
espaço acadêmico. Andrade (2012) aponta que “a infância sofreu e vêm sofrendo um
processo que decorre historicamente dos modos como foram criadas as suas imagens
sociais” (ANDRADE, 2012, p. 1).
4 Comparar os games com as formas anteriores de arte é realmente um esforço transcultural, mas a
comparação não é com a cultura de um modo de vida, recentemente descoberto, geograficamente isolado,
mas sim com uma cultura intersticial a que muitas pessoas são inconscientes. Existem interseções entre os
mundos culturais - é claro, os videogames são informados pelo filme convencional - mas o que acontece
nos games e, neste caso, games criados por sua própria história cultural específica e semi-isolada. Esta é
uma razão importante pela qual devemos abordar os videogames em seus próprios termos, e nem sempre
os julgamos por formas de cultura mais familiares que os filósofos das artes e outros teóricos lidam
tipicamente. (Tradução livre).
O problema da representação da infância na produção de obras disseminadas
especificamente para o público infantil tem levantado sérias discussões. A temática abre
espaço para discussões densas que procuram criticar, visando provocar interesses e
ações, o rumo da produção para o público infantil. Abramovich (1983) expõe
claramente o seu desprezo por obras que se propõem como infantis, mas que apresentam
adultos em miniatura exercendo funções completamente dissociadas de suas realidades.
É o que de modo muito semelhante nos apresenta Wenzel (2006):
(...) não se trata apenas da ausência da criança na produção feita
especialmente para ela. É necessário denunciar como já não se pode
mais falar de imaginação sem considerar como as condições objetivas
produzem condições subjetivas e uma percepção historicamente
diferenciada. Benjamin suspeita da produção cultural para a criança,
em particular dos livros infantis, por trabalhar com uma noção
idealizada de infância, quer por sua formulação cientificista, quer por
sua visão aistórica. (WENZEL, 2006, p. 34)
A visão idealizada da infância é muito criticada por subverter a própria
representação da infância, tornando-a artificial. E a questão não se encerra por aí.
Temos presenciado tons bastante alarmistas no que concerne à capacidade da criança de
imaginar, o que geralmente vem acompanhado de uma crítica aos meios digitais. É o
que vemos nas palavras de Wenzel (2006) que ao se remeter à crítica de Abramovich,
considera que a perda da imaginação é, de certa maneira, “sintomática da ausência de
uma experiência viva, aquela tão esquecida e já substituída pela experiência virtual,
digital, televisiva, entre outros simulacros de experiência” (WENZEL, 2006, p. 35).
Consideramos, em tom otimista, que os novos meios de comunicação, ao invés
de eliminarem a imaginação, criam novas possibilidades e novas formas de
representação. O que temos são novos universos construídos a partir de novos sistemas
semióticos e que formam e atualizam uma nova dinâmica de interação. Como um
recorte exemplificativo, podemos lançar um olhar para o game Child of Light (2014).
Conforme constatamos em Andrade (2014):
O enredo de Child of Light se assemelha aos contos de fadas
tradicionais. O jogo se passa no ano de 1895 e apresenta o dramático
desenvolvimento de Aurora, filha de um duque austríaco. Uma criança
que inicialmente possui uma personalidade frágil e inocente. Além de
sofrer com a perda da mãe, a menina, por artimanhas da madrasta, cai
em um sono profundo e vê-se em um mundo diferente e mágico
chamado Lemuria. Nesse novo mundo, Aurora deve superar a sua
fragilidade e combater as forças maléficas da Rainha Misteriosa da
Noite para libertar os povos por ela amaldiçoados. Também deve
resgatar o Sol, a Lua e as estrelas e, dessa forma, restabelecer a ordem
de Lemuria. Paralelamente a isso, a heroína anseia o retorno ao lar
para que possa novamente se juntar ao pai e libertá-lo da paixão
envenenada que este sente por Umbra, a madrasta. Durante a jornada,
Aurora conta com a ajuda de outros personagens, cada um com
habilidades específicas.(ANDRADE, 2014, p. 5)
Isoladamente, o enredo de Child of Light (2014) retrata fórmulas clichês que
podem ser encontradas em inúmeras produções do gênero. No entanto, ao analisarmos o
enredo em conjunto com as particularidades do game, presenciamos um objeto
diferenciado e que apresenta potencialidades estéticas valorativas. Em síntese, Aurora é
uma criança que, em estado inicial de crise solitária, transita em um mundo paralelo e
imaginário. O amadurecimento da protagonista se dará por meio de uma trajetória
fantasiosa repleta de perigo e descobertas. Um ponto muito notável do game é, sem
sombra de dúvida, o seu ambiente de imersão. Observamos a seguinte imagem:
Figura 1: Aurora e Igniculus no bosque de Lemuria. Fonte: Imagem capturada do game.
Como podemos observar, a representação do ambiente é semelhante a uma
pintura. O mundo pelo qual a personagem transita é um mundo distorcidamente criativo
e fantasioso. Percebemos, ainda nessa imagem, elementos que caracterizam a
personagem em termos de diegese, como por exemplo: “a delicadeza infantil de seus
trajes, o movimento suavizado dos cabelos, os pés descalços e tudo inserido em uma
paisagem clara e serena que remete à pureza e inocência” (ANDRADE, 2014, p. 7).
Além das imagens, o ambiente também é composto pela sonoplastia que, em
geral, é intensamente melancólica e revela o estado emocional da personagem. Também
o sistema de jogabilidade é importante tendo em vista que a personagem vai adquirindo
novos itens, novos poderes, novas habilidades e evoluindo de nível conforme vence os
desafios. Tudo isso contribui diegeticamente. A infância de Autora é poeticamente
retratada no game.
Outro game a ser mencionado é Rain (2013). O jogo, que assim como Child of
Light foi comercializado via download e traduzido para o português do Brasil, também
opera a partir do imaginário de uma criança, dessa vez um menino na fase da
adolescência. O protagonista do game é um adolescente que vagueia por um mundo
misterioso enquanto dorme. Tudo começa quando o protagonista vê a silhueta de uma
garota misteriosa, quase sem forma, e decide segui-la. O garoto percebe que, assim
como a menina misteriosa, está invisível e seu corpo é somente revelado através das
gotas da chuva. Sendo assim, o mesmo embarca em uma jornada rumo a uma
explicação para o que está acontecendo e enfrenta os desafios gerados pela sua própria
imaginação. Num mundo repleto de mistério, permeado por monstros, o game
questiona, dentre outros aspectos, quais são as vantagens e as desvantagens da
invisibilidade.
Figura 2: imagem representativa do universo de Rain. Fonte: imagem capturada do game.
Na Figura 2, podemos perceber que as personagens são representadas somente
através das silhuetas que se revelam apenas em contato com a chuva. O ambiente de
imersão de Rain apresenta sempre a mesma tonalidade sombria e, como não poderia ser
diferente, chove o tempo todo. O mundo sombrio é reflexo do imaginário que, assim
como em Child of Light, flui a partir da crise solitária. A sonoridade também apresenta
aspectos relevantes para o efeito poético e estético do game. São toques densamente
melancólicos que auxiliam na construção representativa. O sistema de jogabilidade de
Rain foi criticado por ser bastante simples e não apresentar grau elevado de dificuldade.
Tanto o game Child of Light (2014) como Rain (2013) representam a infância e
a adolescência através da construção de mundos paralelos. A construção de mundos
paralelos é, aliás, inerente à infância. De acordo com Bachelard (1988), as solidões
primeiras deixam, em certas almas, marcas profundas. A partir dessas marcas, o
indivíduo mergulha no mais profundo de si e sua vida passa a ser sensibilizada pelo o
que o autor chama de devaneio poético. Em seu A Poética do Devaneio, Gaston
Bachelard elucida que:
Na solidão, a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se sente
filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é assim
que nas suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a
criança conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos
poetas. Como não sentir que há comunicação entre a nossa solidão de
sonhador e as solidões da infância? E não é à toa que, num devaneio
tranquilo, seguimos muitas vezes a inclinação que nos restitui às
nossas solidões de infância. (BACHELARD, 1998, p. 94)
A fantasia é, em geral, associada à infância. A criança possui grande facilidade
em construir o seu próprio universo ficcional, em que interage e vive profundamente a
sua fantasia. É pertinente, nesse ponto, ressaltar a seguinte consideração feita por
Gaston Bachelard (1988) que “quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma
existência sem limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era
um devaneio de alçar voo” (BACHELARD, 1988, p. 94).
A solidão, na perspectiva bachelardiana, é uma das principais tensões
impulsionadoras do voo. O ser em estado de solidão necessita de um mundo paralelo,
completamente idealizado por ele mesmo. Sair do devaneio implica não sonhar, isto é,
viver a realidade objetiva com suas imperfeições. Voar implica deixar, por momentos, o
solo. Deve-se considerar que o voo é sempre limitado, sendo obrigatório o retorno,
mesmo que se pouse em outro lugar que não seja o ponto de partida. Nesse caso, é
intrínseca a metáfora da mudança. Uma poética do devaneio se conscientiza de suas
tarefas que seriam, segundo Bachelard:
determinar consolidações dos mundos imaginários, desenvolver a
audácia do devaneio construtivo, afirmar-se numa boa consciência de
sonhador, coordenar liberdades, encontrar o verdadeiro em todas as
indisciplinas da linguagem, abrir todas as prisões do ser para que o
humano tenha todos os devires. Tarefas todas frequentemente
contraditórias entre aquele que concentra o ser e aquele que o exalta.
(BACHELARD, 1988, p. 152)
Um sonhador de devaneios quando se afasta de todas as preocupações que
perturbavam a vida cotidiana e quando se aparta da inquietação que lhe advém da
inquietação alheia, quando é realmente autor da sua solidão, e, enfim, pode contemplar
a vida sem contar as horas, então, sente esse sonhador um ser que “de repente, se faz
sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo se abre para ele. Nunca teremos
visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos” (BACHELARD, 1988,
p. 165).
Portanto, compreende-se que o mundo sonhado, em especial na infância,
interfere diretamente na construção da identidade do sujeito. O mergulho no
subconsciente permite ao sonhador em devaneio conhecer o âmago de si mesmo. Os
dois games aqui mencionados representam a infância e a adolescência nesses termos. A
solidão de ambas as personagens abrem espaço para diferentes mundos sonhados e
idealizados por elas mesmas. No caso de aurora, temos um mundo mais colorido e
mágico. Já o protagonista de Rain, adentra em um mundo mais obscuro, muito mais
parecido com a realidade e apresenta maiores indagações, dentre elas, o sentimento
confuso do amor e sua paradoxal invisibilidade.
Considerações finais
A partir das reflexões realizadas neste trabalho, pode-se compreender que, no
contexto atual, é necessário levarmos em consideração as múltiplas formas de leitura
presentes no cotidiano dos leitores. O campo literário dialoga com novas formas
artísticas que emergem do cenário cibercultural. Compreendeu-se também que o
videogame é uma mídia expressiva e que apresenta particularidades, configurando-se,
entre outros aspectos, como um espaço possível para a criação de universos ficcionais
complexos e imersivos.
As discussões concernentes às representações da infância e da adolescência nas
novas mídias continuam abertas para futuras análises. Pretendeu-se, neste trabalho,
demonstrar que existem questões poéticas pertinentes de serem averiguadas nos games.
Cada vez mais estão sendo instauradas políticas que favorecem a utilização das novas
tecnologias no ensino e, no tocante aos games, temos presenciado um grande aumento
nas pesquisas acadêmicas empenhadas em refletir tanto sobre as pertinências de se
trabalhar com os games em sala de aula, como também interrogações concernentes às
possibilidades de sua inclusão na sala de aula.
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