Campus - nº 406, ano 43

8
Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 CAMPUS DIREITOS ITINERANTES INVISÍVEIS Sem pleno acesso às políticas públicas para minorias, ciganos relatam casos de discriminação no Distrito Federal CULTURA A TODO CUSTO Moradores de Planaltina lutam pelo cultivo da arte e história locais, apesar da falta de financiamento PRECONCEITO DIFERENÇA NA PELE Além de receberem tratamento desigual, jovens negros constituem maioria dos mortos por agressão no DF BRASÍLIA,12 A 18 DE NOVEMBRO DE 2013 CAMPUS Marina Carlos NÚMERO 406 ANO 43 Muito mal. É o que afirmam os mais de dois mil passageiros que registraram queixas no DFTrans este ano COMO ESTOU DIRIGINDO?

description

Edição 406, ano 43, de Campus, de 12-11 a 18-11 de 2013

Transcript of Campus - nº 406, ano 43

Page 1: Campus - nº  406, ano 43

Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 CAMPUSDIREITOSITINERANTES INVISÍVEISSem pleno acesso às políticas públicas para minorias, ciganos relatam casos de discriminação no Distrito Federal

CULTURAA TODO CUSTOMoradores de Planaltina lutam pelo cultivo da arte e história locais, apesar da falta de financiamento

PRECONCEITODIFERENÇA NA PELEAlém de receberem tratamento desigual, jovens negros constituem maioria dos mortos por agressão no DF

BRASÍLIA,12 A 18 DE NOVEMBRO DE 2013

CAMPUSMarina Carlos

NÚMERO 406 ANO 43

Muito mal. É o que afirmam os mais

de dois mil passageiros que registraram

queixas no DFTrans este ano

COMO ESTOU DIRIGINDO?

Page 2: Campus - nº  406, ano 43

CAMPUS2 Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

CAMPUSJornal-laboratório da

Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Editora-chefe: Caroline BcharaSecretária de redação: Jéssica MouraEditores: Alessandra Azevedo, Gabriel Lopes, Hermano Araújo e Thiago AmâncioDiretor de arte e fotografia: Jéssica GotlibRepórteres: Eduardo Barretto, Jhésycka Vasconcelos, Johnatan Reis, Laura Tizzo, Nívea Ribeiro, Washington LuizFotógrafos: Beatriz Ferraz, Emily Almeida,

Gabriel Lopes, Marina CarlosColaboração: Yasmin TavaresProjeto Gráfico: Beatriz Ferraz, Hermano Araújo, Marianna Nascimento e Nadjara MartinsProfessores: Sérgio de Sá e Solano NascimentoMonitoras: Marianna Nascimento e Nadjara MartinsJornalista: José Luiz SilvaGráfica: Palavra Comunicação

Tiragem: 4 mil exemplaresContato: 61 3107-6498 / 6501E-mail: [email protected]ço: Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências - Ala Norte (Minhocão), Brasília, Distrito Federal CEP: 70.910-900

Em uma cidade onde o número de veículos já ultra-passa a marca de um milhão, luxo é encontrar condutores tranquilos. O estresse no trân-sito cresce a galopes e, entre as profissões mais enervan-tes, a de motorista de ônibus ocupa o primeiro lugar. Há um número cada vez maior de condutores que quebram as normas e, como consequência, um aumento na quantidade de queixas em relação à má conduta – e falta de respeito – com os passageiros.

Em sua quadringentésima sexta edição, o Campus traz dados de um levantamento feito pela ouvidoria do Trans-porte Urbano do Distrito Federal (DFTrans) sobre essas reclamações – foram 2.424 nos últimos nove me-ses. Para a matéria de capa, os repórteres foram a campo e conversaram com passageiros que são, muitas vezes, maltra-tados pelos motoristas e mos-traram o outro lado da história: por que os condutores andam tão estressados?

Lixo de uns, luxo de ou-tros. Enquanto para uns ruim é ser mal atendido, para outros o simples atendimento basta. A edição traz um retrato da

Carta do Editor

rotina dessas pessoas no Distrito Federal. Mesmo no século XXI, os ciganos sofrem com o precon-ceito que os cerceia e ainda não conquistaram acesso pleno a políticas públicas para minorias. A repórter mostra, entretan-to, que algumas iniciativas estão sendo tomadas para que os direitos básicos da etnia sejam garantidos. Enquan-to isso, a discriminação e a vulnerabilidade atingem outro grupo social: o dos jovens negros. O luxo des-ses? Não receber tratamento diferenciado de acordo com a cor da pele.

A edição traz, também, um perfil dos jovens que nasceram e cresceram na invasão chamada de Favela da Garagem do Senado. A repórter apresenta a dura realidade dos que vivem ao lado da sede do poder político brasileiro e contrasta o luxo de um lado com o lixo de ou-tro. Mas não é só à invasão que faltam recursos: morado-res de Planaltina (DF) buscam preservar a cultura, a arte e a história da região com pou-co ou nenhum tipo de auxílio financeiro. Um luxo.

Memória

Caroline Bchara

A edição 164 de julho de 1992 do Campus veio acom-panhada do suplemento Vida

Cigana. Os repórteres produ-ziram matérias sobre costumes e peculiaridades desse povo, assim como sua organização social. Ao mesmo tempo em que os ciganos enfrentavam discriminação em virtude de sua cultura, a liberdade e os relatos das viagens empreen-didas pelo grupo causavam

RecorteGabriel Lopes

Ombudskvinna

Após o recapeamento de vias no Plano Piloto, semanas se passaram e o Governo do Distrito Federal ainda não repintou parte da sinalização. Sem faixa de travessia, muitos pedestres enfrentam dificuldades ao cruzar a rua

A edição 405 do Campus é estática. Não há reporta-gem de duas páginas, gráficos ou ilustrações. As fotos são ruins e algumas ficaram dis-torcidas. Em termos de solução gráfica, o único elemento que difere na publicação inteira é o quadro sobre dicas de consu-mo em Crianças consumidoras, quase irrelevante.

Dados imprescindíveis em Crise no ar e Educadores em extin-

ção poderiam ter sido pensados em forma de gráficos. Tanto para mostrar o número de li-cenças emitidas pela Anac em 2010, quanto para evidenciar a evasão de professores no levan-tamento feito pela professora Mônica Padilha.

O jeitinho dos síndicos decep-ciona do início ao fim. A pauta é fraca e sem sentido. Até o oita-vo parágrafo, a ombudskvinna não conseguiu entender qual o problema em buscar a contra-tação de serviços mais baratos para manutenção de edifícios residenciais. Um esboço da problemática aparece quando o repórter cita a possibilidade de acidentes nas obras. Possibili-dade que é quase desmitifica-da quando a advogada Milene Ozório explica que a atividade não constitui ilicitude.

Um passo para a liderança co-meça com um parágrafo que fala muito, mas não diz nada. Des-perta a curiosidade do leitor até o intertítulo Corrida de aventura,

quando é possível ter a primeira noção do que está compreendi-do na prática do coaching. Além disso, uma dúvida fica no ar: quantas empresas, no DF ou no Brasil, já fazem uso da técnica de treinamento?

Guardião da doutrina é linda. Bem escrita, emotiva e forte. Além disso, a escolha do olho contribui muito para a constru-ção do personagem.

Por fim, um apelo de quem acompanha o trabalho dos repórteres desde o início do semestre: inovem. Aguar-do ansiosamente a edição 407 do Campus. Pode ser a última oportunidade de a equipe mos-trar como é possível fazer jorna-lismo com criatividade.

Nathalia Zôrzo

Termo sueco que significa "provedor da justiça", discute a produção dos jornalistas sob a perspectiva do leitor

fascínio por onde passavam. A reportagem destaca ainda que, naquele ano, a novela Pedra sobre Pedra colocou a cultura cigana em discussão.

Page 3: Campus - nº  406, ano 43

Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 3CAMPUS

CRIME DE COROPRESSÃO

Além da taxa discrepante entre homicídiosde negros e brancos, racismo também parte de instituições públicas

Nívea Ribeiro

E

ra uma noite como

outra qualquer na Asa

Norte. O estudante

da Universidade de Brasília

Alan Mendes e um amigo

estavam embaixo do bloco,

fumando o último cigarro do

dia. O carro da polícia passou

por eles e deu meia volta. Os

policiais desceram do veícu-

lo e mandaram os jovens co-

locarem as mãos na cabeça.

“Eles revistaram meu amigo

normalmente, olharam os

bolsos e o que ele estava fu-

mando. Quando foram me

revistar, olharam meu cigar-

ro, minha cigarreira, tudo

o que eu tinha. Depois per-

guntaram onde morávamos.

Respondi que estávamos

embaixo da minha casa. ‘En-

tão você mora aqui? E tra-

balha onde, rapá?!’ Tive que

dizer onde trabalho e o que

fazia. Mostrei meu crachá.

Então nos mandaram ir em-

bora, sem nenhuma pergunta

para meu amigo’’, conta Alan.

“Fiquei tão chocado que não

reagi. Se fosse hoje, certamen-

te iria pedir identificação e

reclamar com a ouvidoria.

A discrepância no tratamen-

to entre os dois, um pardo e

outro branco, é uma mostra

do racismo institucional.

De acordo com dados

apresentados pelo Instituto

de Pesquisa Econômica Apli-

cada (Ipea), na quarta edição

do Boletim de Análise Polí-

tico-Institucional, lançada

em outubro, 6,5% dos negros

(pardos e pretos) que foram

vítimas de agressão no ano

anterior à coleta dos dados

pelo IBGE, em 2010, tiveram

como agressores policiais ou

seguranças privados, con-

tra 3,7% dos brancos. Além

disso, um negro tem 8%

a mais de chance de ser

vítima de homicídio que

um branco de mesmo

nível socioeconômico.

“Isolando outras variá-

veis e deixando apenas a cor

da pele, chegamos a tais nú-

meros. É uma prova de que

esses homicídios são efei-

to apenas do racismo, sem

questões sociais envolvidas.

Eles formam a reta final da

desigualdade, do acúmulo de

injustiças’’, afirma Almir de

Oliveira Júnior, pesquisador

do Ipea e um dos autores do

artigo “Segurança pública e

racismo institucional’’, que

revelou esses dados.

Quanto à discriminação

em instituições, o pesquisa-

dor diz estar perplexo diante

da desigualdade da distribui-

ção de segurança no Brasil:

“O preconceito está presente

em todas as áreas do serviço

público, mas na segurança é

ainda mais forte. Os núme-

ros que mostramos no arti-

go já estavam disponíveis há

alguns anos, mas são pouco

conhecidos. É importante

divulgá-los para que as pes-

soas não tenham desculpas,

neguem a existência do ra-

cismo e o reproduzam auto-

maticamente, como temos

visto acontecer.’’

No Distrito Federal, a

situação não é diferente.

A Companhia de Planeja-

mento do Distrito Federal

Yasmin Tavares

76% DOS JOVENS VÍTIMAS DEHOMICÍDIO NO BRASIL

EM 2010 ERAM NEGROS

401JOVENS NEGROS DO SEXO MASCULINO

FORAM MORTOS EM 2011, DO TOTAL DE 492CASOS EM TODO O DF

59,1%DA POPULAÇÃO JOVEM DO DISTRITO

FEDERAL É NEGRA

(Codeplan) liberou, também

no mês passado, um estudo

que mostra a vulnerabili-

dade da juventude negra no

DF. A análise aponta que, das

mortes por agressões contra

jovens (492 casos), em 2011,

92,5% (455) das vítimas eram

do sexo masculino, entre as

quais 88,1% eram negros (401),

segundo o Datasus.

O estudo da Codeplan foi

feito para auxiliar a instala-

ção do plano Juventude Viva

no DF, que almeja melhorar

esses índices e aumentar a ex-

pectativa e qualidade de vida

em regiões onde jovens ne-

gros são mais vulneráveis, de

acordo com a análise de da-

dos. O DF foi a terceira unida-

de federativa a aderir ao pla-

no e já tem alguns projetos

em andamento, mas só deve

estar em completo funciona-

mento no início de 2014. An-

dressa Marques, articuladora

do Juventude Viva no DF,

acredita que “o racismo insti-

tucional é feito de violências

transmitidas por quem está

na ponta, pessoas que lidam

com a população e acredi-

tam ter respaldo suficiente

para identificar suspeitos, no

caso da polícia, ou destratar

e negligenciar o jovem ne-

gro, nos ambientes de saúde

e educação’’. O plano prevê

oficinas e cursos de capacita-

ção com esses gestores, além

de projetos voltados para a

população jovem.

“Depois de um incidente

com a polícia, comecei a re-

parar nas ações das pessoas

para comigo quando estava

com amigas e amigos que

não compartilham dos traços

negros que herdei da minha

família baiana’’, conta Betha-

nia Maia, estudante da UnB

e outra vítima do racismo

institucional. Ao passar por

uma barreira policial com

um amigo branco, só ela teve

a bolsa revistada, enquan-

to ele passou sem ser nota-

do. “Ele transpôs a barreira

com uma mochila nas costas

sem que nem reparassem

nele, enquanto eu tive que

mostrar o que tinha dentro

de minha bolsa minúscula,

que tem lugar apenas para

celular e identidade.’’

Bethania crê que esta si-

tuação só pode ser superada

com educação e o reconhe-

cimento de que o racismo

existe, sim, no Brasil. “Esses

casos só deixarão de ser cor-

riqueiros quando as pessoas

se conscientizarem do pró-

prio racismo em ações pe-

quenas, em vez de negarem

sua existência. É preciso que

se altere a imagem do negro

e da negra na mídia – que

não sejamos só os margi-

nais do filme, as escravas

da novela, o núcleo pobre.

É necessário criminalizar a

prática policial quando esta é

claramente racista.’’

Segundo a Polícia Mili-

tar do Distrito Federal, há,

“em todos os cursos de for-

mação policial, disciplina

de atuação frente a grupos

vulneráveis e cursos volta-

dos para áreas humanitá-

rias, proteção das minorias e

promoção do bem-estar so-

cial’’. A recomendação em

casos de racismo institucio-

nal vindo de policiais mili-

tares é que se denuncie na

Corregedoria da PMDF.

Page 4: Campus - nº  406, ano 43

CAMPUS4 Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

TRÂNSITO

Washington Luiz

Má conduta de motoristas de ônibus gera mais de duas mil reclamações na ouvidoria do DFTrans

Dentro dos ônibus, no sobe e desce de gente, em meio ao barulho

do motor, uma série de cenas se repete: o passageiro pede uma informação ao motorista e é respondido com rispidez. Ao se aproxi-mar da parada, dá o sinal, mas não é atendido. Freadas brus-cas e velocidade acima da permi-tida fazem tudo balançar. Atos como esses con-tribuem para os motoristas serem conside-rados uns dos principais vilões do transpor-te público de Brasília. Pro-va disso são as 2.464 reclama-ções registradas na ouvidoria do Transporte Urbano do Distrito Federal (DF-Trans), entre 1º de janeiro e 15 de outubro deste ano, contra os 5 mil motoristas do trans-porte público da capital. É o se-gundo item de que os usuários

mais reclamam. O descum-primento de horário nas pa-radas ocupa o primeiro lugar, com 2.709 queixas no mesmo período de 2013.

Rosangela Marinho, enfer-meira, contribuiu para aumentar a quantidade de reclamações con-tra a má conduta desses profissio-nais. No último dia 28, ela re-gistrou denún-cia contra um condutor que tentou desviar a rota do ôni-bus em que ela estava. Era fim de tarde quando Rosangela en-trou no ônibus da linha 103, no Setor de Clubes Sul, com desti-no ao trabalho, na W3 Sul. No meio do cami-nho, quando

deveria acessar a avenida, o motorista fez um desvio em direção ao Eixo W. Indignada, ela pediu ao condutor que ele cumprisse a rota. Como res-posta, ganhou uma pergunta:

“Por aqui não serve?”. “Não, não serve. Eu não paguei para vir por aqui. Eu quero ir para a W3 Sul”, respondeu a enfer-meira. O motorista refez o tra-jeto, mas a forma com que foi tratada incentivou Rosangela a anotar o número e a placa do veículo para protocolar a recla-mação na ouvidoria.

Revoltado com a situação pela qual passou, o vigia Estevo Moraes não conseguiu guardar esses detalhes e fazer o mesmo que Rosangela. Do dia em que discutiu com um motorista, ele lembra que voltava do traba-lho, em São Sebastião, sentado nas cadeiras preferenciais que ficam antes da roleta do ônibus. Quando foi mostrar a carteira de identidade para descer na Rodoviária do Plano Piloto, o motorista fechou a porta e dis-se que Estevo só poderia sair se retirasse o documento de dentro do plástico em que fica guardado na carteira. “Nunca ninguém tinha me pedido isso, qualquer um consegue ver as informações com ela (a identi-dade) assim. É uma questão de cuidado, para não perder ou amassar, como as outras que já tive”, conta e mostra o lugar onde deixa o documento. As justificativas não foram sufi-

FÚRIA SOBRE RODAS

cientes para convencer o con-dutor e a discussão só terminou com a intervenção de um fiscal.

Para não render brigas, a policial militar Vanicélia Ro-drigues e o também vigia Al-berto Pereira preferem apenas comentar as atitudes inespera-das dos motoristas com outros passageiros. Usuários do mes-mo ônibus, que deixa o Plano Piloto com destino ao Gama,

eles contam que por causa da pressa já viram várias pessoas ficarem presas na porta ao ten-tarem descer do coletivo. Vani-célia e a mãe dela já passaram por isso. “Eles não esperam a gente terminar de descer e já fe-cham a porta. Ainda bem que o ônibus estava cheio e os passa-geiros gritaram para o motoris-ta”, lembra. Alberto relata que já chegou atrasado ao trabalho

Transporte Público no Distrito Federal

Mil linhas

5 mil motoristas

5 mil cobradores

1 milhão de passageiros por dia

Salário base dos motoristas: R$ 1,6 mil por jornada de seis horas

Estevo Moraes foi impedido pelo motorista de descer do ônibus porque não tirou a identidade do compatimento plástico da carteira

Opinião de quem usa os ônibus

PASSAGEIROS FALAM"O problema dos motoris-tas é a falta de atenção. Conversam muito durante a viagem e se esquecem dos passageiros."

"Tem motorista que corre demais. Não precisa disso tudo."

"Não tenho nada a reclamar. Passei a ser educado com eles e sempre sou bem rece-bido dentro dos ônibus."

Sara Ingidi, bancáriaEunice Queiroz, cabeleireira

Gabriel Lacerda, técnico em internet

Page 5: Campus - nº  406, ano 43

Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 5CAMPUS

Eduardo Barretto

várias vezes pelo fato de os motoristas não pararem onde devem: “Ao invés de passarem pela faixa perto da parada, eles vão na faixa da esquerda. Aí, quando dou o sinal, parecem que fingem que não estão ven-do e eu perco mais meia hora esperando o próximo ônibus.” Descrente de que algo será re-solvido com reclamações na ouvidoria, a dupla afirma que está ficando esperta para evitar que os casos se repitam.

O OUTRO LADOEstressante e meio. É assim

que o motorista de ônibus Eni-von Guedes define a profissão. Enquanto fuma e espera pela hora da próxima partida na Ro-doviária do Plano Piloto, Eni-von pergunta se alguém acharia bom ficar o dia inteiro pisando no freio e no acelerador. De se-gunda a sexta, ele faz três via-gens para Taguatinga e duas para Brasília. Cada uma dura, em média, duas horas. “Eu faço o meu papel. Se alguém recla-ma ou fala alguma coisa, tem que resolver é com o cobrador. Minha função é acelerar e pres-tar atenção no trânsito por-que tenho hora marcada para chegar”, diz com a firmeza de quem sabe o que faz. Sobre as queixas dos passageiros, Eni-von conta que elas são raras e que as ouve calado.

Responsável por fazer duas viagens ao dia, o motorista José Amaro considera o trabalho normal, como qualquer outro. Há cinco anos na profissão, ele leva os passageiros do Pla-no Piloto para o Jardim ABC, uma vez pela manhã e outra pela tarde. De vez em quando, costuma fazer hora extra em outras linhas para aumentar o salário. Ele reconhece que a categoria é motivo de críticas por parte dos passageiros, mas

acredita que a culpa nem sem-pre é dos motoristas. “Depen-de de cada um. Tem dia que o passageiro é que tá estressado, tem dia que nós estamos es-tressados. Por mais que a gen-te tente não causar problemas, algo acaba acontecendo. Mas o pessoal fala que eu sou tran-quilo”, relata e relembra que era nervoso quando trabalhava por seis horas corridas dentro de um ônibus.

As empresas exigem que os motoristas cumpram um trajeto em determinado perío-do de tempo. O presidente do Sindicato dos Rodoviários do Distrito Federal, João Osório, acredita que nem sempre essa obrigação é adequada, o que contribui para o mau compor-tamento dos profissionais. “Às vezes é inviável cumprir certas rotas no prazo estabelecido. Isso faz com que o motorista seja imprudente no trânsito para não comprometer a pro-dutividade. Acredito que com a nova frota e com os GPS ficará mais fácil fiscalizar esses abusos e punir as empresas”, expli-ca. Osório espera que com os corredores exclusivos para ôni-bus, que permitirão melhor fluidez no trânsito, o nervosis-mo diminua.

Segundo o DFTrans, as reclamações foram encami-nhadas para as empresas nas quais os motoristas trabalham para serem apuradas. A autar-quia ainda não contabilizou quantas foram resolvidas. Para diminuir o número de quei-xas, o departamento come-çou a oferecer, em setembro, cursos de capacitação para os motoristas. Eles também de-vem ser treinados para con-duzir a nova frota que, de acordo com o DFTrans, irá melhorar as condições de tra-balho da categoria.

PODE SER A GOTA D’ÁGUABrasília, 11 de setembro de

2013. Apesar da data fatídica, o episódio foi quase corriquei-ro – e a tensão não foi nas al-turas. No Eixinho Sul, na linha Rodoviária-Aeroporto, um passageiro gritou ao motorista que parasse fora do ponto de ônibus. O pedido não foi aten-dido. Alguns segundos depois, o homem indignado com a re-cusa sacava um canivete e es-faqueava o motorista, que saiu vivo da peleja. Duas semanas antes, em 30 de agosto, no Eixo Monumental, após briga com o condutor do ônibus, um passa-geiro morreu.

Entre mais de duas mil profissões analisadas no Brasil pelo site de busca de empregos Adzuna, a de motorista de ôni-bus foi eleita a mais estressante. O estu-do avaliou quatro aspectos principais: potencial financeiro, ambiente de trabalho, compe-titividade e demanda de mer-cado.

Hartmut Gunther, espe-cialista em psicologia social e do trabalho, explica: “O trân-sito tem cada vez mais carros, mais barulho, menos espaço e menos tempo hábil. Imagine todos com horário para cum-prir. O ambiente fica tenso”. Gunther também considera vital pensar esses sujeitos – passageiro e motorista – sob uma ótica social: “O motoris-ta é socialmente mais fraco do que o passageiro. Ele está

ali trabalhando para o outro. Nesse ambiente tenso, o con-dutor não pode extravasar com seu chefe, ou com um policial. Quem está ali o tem-po todo? O passageiro. É uma válvula de escape”.

De acordo com a Interna-tional Stress Management As-sociation no Brasil (Isma-BR), 62% da população brasileira economicamente ativa sofre de estresse. Desse montante,

aproximadamente 30% apre-sentam a Síndrome de Bur-nout, um estado de exaustão que pode levar à depressão e até ao suicídio.

Basicamente, o stress é um estado de vigilância pelo qual o corpo se prepara para atitudes rápidas e intensas. Sem esse mecanismo, nossa sobrevivência seria difícil. O problema é quando esse esta-do é constante. O corpo não descansa e pode responder com doenças crônicas, como gastrite, alergias e enxaqueca, sem citar o mau humor.

Obviamente, o condu-tor não é o vilão – e nem o passageiro é o mocinho. Em uma discussão, nem sempre eleger um lado correto é ta-refa simples e factível. David Duarte, presidente do Insti-tuto Brasileiro de Segurança no Trânsito, afirma: “O pas-sageiro também está exposto à mesma situação de perigo, está no mesmo ambiente. Algumas vezes, o causador

de má-conduta por parte do motorista pode ser quem paga o bilhete”. Como não há ouvidoria para motoristas reclama-rem de passageiros, podemos ter percep-ções estereotipadas dessa relação coti-diana, que tem moti-vos despretensiosos, como uma parada não acatada.

Como soluções paliativas, sugerem-se momentos de re-laxamento, boa ali-

mentação e exercícios físicos. Além do ter ou não razão, está em jogo uma questão de saúde – e de política, já que o maior passo seria um transporte pú-blico que não oferecesse tantos riscos e desafios, segundo os especialistas. Gunther define: “O problema maior está claro: é o transporte público“. Para David Duarte, é lícito supor que o aumento das reclama-ções se deva a uma deteriora-ção do sistema de transportes. “O governo do Distrito Fede-ral não tem um plano consis-tente para o setor”, diz.

CASOS RECORRENTESRegistros de reclamações contra motoristas de ônibus também são comuns em outras capitais. Em Belo Horizonte, onde 1,5 milhão de passageiros utilizam transporte público por dia, a Empresa de Transporte e Trânsito (BHTrans) informou que foram recebidas 3,6 mil queixas entre janeiro e junho deste ano. No Rio de Janeiro, são 11 milhões de passageiros. A Secretaria de Transportes contabilizou 21,8 mil reclamações, do início do ano até setembro.

1º Motoristas de ônibus

2º Entregadores

3º Assistentes de cozinha

4º Jornalistas

5º Policiais

Fonte: Adzuna

"Não tenho nada a reclamar. Passei a ser educado com eles e sempre sou bem rece-bido dentro dos ônibus."

Gabriel Lacerda, técnico em internet

Fotos: Marina Carlos

Page 6: Campus - nº  406, ano 43

CAMPUS6 Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

Planaltina é uma das 30 re-giões administrativas do Distrito federal. No en-

tanto, ela tem história e iden-tidade distintas construídas ao longo dos seus 154 anos. Ou 202, considerando-se a versão popular. A cidade é também local onde arte e história são cultivadas por seus morado-res mesmo que haja pouco ou nenhum dinheiro para desen-volver as atividades. Esta é a história comum entre Simone Macedo, Preto Rezende e Es-ter Rodrigues, moradores que dedicam a vida à cultura, à arte e à história.

DANÇA DE CATIRANascida e criada na satéli-

te, Ester Rodrigues, 47 anos, aprendeu com o tempo e com os foliões mais velhos a dan-ça que hoje ensina às crian-ças e jovens da cidade. A ca-tira é uma dança tradicional do Centro-Oeste e faz parte da identidade sertaneja. Com 19 anos, Rodrigues começou a dançar. Hoje ela coordena dois grupos de catireiros com a ajuda de sua filha de 15 anos, Eliomara. O primeiro é o Bru-tos Da Catira, que é compos-to por 10 rapazes e o segundo se chama Sistema Bru-tas Da Catira e é reservado para as garotas.

A paixão pela dança é ta-manha que, além de manter os dois grupos, Ester criou, ainda, o projeto Resgatando a Cultura. Com isso, estimu-la que crianças das escolas de Planaltina conheçam a cultu-ra e dança sertaneja. “Temos que divulgar a tradição para os mais jovens para que a dança não desapareça”, afir-ma a professora.

A ARTE DO ESFORÇOCULTURA

O projeto foi criado este ano e fez tanto sucesso que várias escolas da região con-vidaram o grupo para dar au-las para os alunos. “A agen-da já está cheia até o ano que vem”, comemora Ester. As atividades são desenvolvidas sem nenhum patrocínio. Não há investimento governamen-tal ou privado e os custos são divididos entre os mem-bros, às vezes, alguma doação cobre os gastos com materiais, como as blusas para o unifor-me dos grupos.

TEATRO DE BOLSOPreto Resende é ator e tra-

balha com teatro há 30 anos em Planaltina. Sua contribui-ção para a cidade foi transfor-mar em realidade uma ideia de seu pai. Cansado de ver o filho sem local para ensaiar as peças e utilizar a rua como palco improvisado, seu Ló de-

Johnatan Reis

cidiu que parte da casa seria um teatro. A garagem de casa virou teatro de bolso com lugar para 42 pessoas e 60 m². O teatro Lieta de Ló leva o nome dos pais de Preto, como homenagem.

A cidade, que tem popula-ção de aproximadamente 230 mil pessoas, é também endere-ço da maior encenação aberta do Centro-Oeste, a Via Sacra, da qual Rezende já fez par-te. Contudo, a região possui apenas o teatro de bolso, que não consegue suprir a deman-da da cidade e, tampouco, dos mais de 15 grupos teatrais que existem ali.

O outro lugar destinado aos ensaios da Via Sacra e de outras trupes de teatro era o ginásio cedido pela adminis-tração regional, mas o local está fechado para reforma. A administração informou que um complexo cultural será

construído para atender a de-manda dos moradores e artis-tas. “A promessa é de que o complexo seja entregue no ano que vem, mas tudo pode acon-tecer”, afirma Marley, artista da trupe Por um Fio.

PATRIMÔNIO HISTÓRICOOutra característica que

torna Planaltina peculiar são os bairros, algo não tão comum em Brasília. E um deles guarda uma riqueza de importância histórica que atraiu Simone Macedo. O local conhecido como Setor Tradicional é onde fica o Museu Histórico e Artís-tico de Planaltina, casarões no estilo colonial que lembram o início da cidade e a Igreja de São Sebastião, conhecida pelos moradores como Igrejinha.

Simone nasceu em For-mosa, no estado de Goiás, e mudou-se para Brasília para estudar e trabalhar. “Nunca

pensei em morar em Planal-tina, mas a história e a cul-tura daqui são muito impor-tantes para mim”, diz Simone — que dedica tempo integral de sua vida para proteger e divulgar o patrimônio arqui-tetônico da cidade. Para tan-to ela criou a Associação dos Amigos do Centro Histórico de Planaltina (Amighos). A associação promove ações de conscientização e funciona também como vigia cobran-do das autoridades reformas, ações de divulgação cultural, segundo Simone.

Uma das conquistas recen-tes da Associação foi a refor-ma da Igrejinha. Simone conta que esta ação foi cobrada du-rante muito tempo e hoje é uma realidade. A obra foi ofi-cialmente concluída em outu-bro. Contudo, Simone apon-ta erros na restauração que precisam ser revistos, como problemas na parte elétrica da construção e deformidade no piso, na parede e no teto. “Nós acompanhamos o pro-cesso, demos dicas e orienta-mos sobre o local das coisas e o significado dos detalhes, mas ainda assim houve pro-blema”, afirma. Está marcada para a segunda quinzena deste mês reunião com órgãos res-ponsáveis e a população para encontrar a melhor solução para o caso.

É no cotidiano da cidade que se nota a diferença que estas ações causam. “Para mim Planaltina é um mundo à parte do resto do DF”, conta Milena Andrade, estudante de Artes Plásticas na UnB. “Tem tanta coisa acontecendo apenas por que as pessoas querem e acre-ditam”, pontua.

Sem apoio público, cena de Planaltina conta com atuações independentes a favor da cultura na cidade

Camila M

enezes

Símbolo do patrimônio histórico de Planaltina, a Igrejinha — recentemente reformada —, é um dos marcos da cidade defendidos por Simone Macedo

Marina Carlos

Page 7: Campus - nº  406, ano 43

Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 7CAMPUS

DÉCADAS DE DISCRIMINAÇÃOSOCIEDADE

Beatriz Ferraz

Chão de terra. Barracas de lona erguidas com peda-ços de madeira e amar-

radas com cordas. Por conta das chuvas, os mosquitos reinam. Panelas empilhadas sobre a mesa, todas limpas. Móveis co-bertos com apreço por colchas estampadas. Cinquenta pessoas moram ali: bebês, crianças, ado-lescentes, adultos e idosos. Esse é o cenário onde vive um povo muitas vezes visto com maus olhos pela sociedade. Os ciganos.

A pobreza é latente. Mesmo com os objetos limpos e acomo-dados, os donos da casa (se assim podem ser chamados) pedem des-culpas pela desordem. De acordo com eles, a bagunça é fruto da recente mudança, pois chegaram há duas semanas em Planaltina, no Distrito Federal. Ainda assim, Wanderley da Rocha sorri, dei-xando aparecer os dentes de ouro.

No Brasil, há, pelo menos, três etnias de ciganos (calon, rom e sinti), que se dividem em 291 acampamentos – uma po-pulação de meio milhão de pes-soas, conforme dados da Pes-quisa de Informações Básicas Municipais (Munic), promovida pelo Instituto Brasileiro de Geo-grafia e Estatística (IBGE). Afora o alto índice, quando se trata de opor-tunidades, os ciganos são minoria.

“Estamos no Brasil há qua-se 500 anos, mas continuamos invisíveis. Ainda que votemos e paguemos impostos, quase não há políticas públicas voltadas para nosso povo”, lamenta o presiden-te da Associação Cigana de Etnia Calon (Acec) do Distrito Federal e Entorno, Elias Alves. É por esse motivo que os ciganos têm rei-vindicado (e conseguido) direitos.

Em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decreta

o Dia Nacional do Cigano, em 25 de maio, que durante seis anos teve caráter predominantemente festivo. Somente no ano passado, foi feito, pela Secretaria de Polí-ticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, o primeiro evento com fins de discutir o acesso das comunidades tradicionais (nas quais os ciganos estão incluí-dos) aos direitos que lhes cabem.

Em 2013, o 25 de maio “al-cançou proporções inimaginá-veis”, nas palavras da gerente de projetos especiais da Seppir, Luana Arantes. Isso porque, na data, foi organizada a I Sema-na Nacional dos Povos Ciganos, que reuniu cerca de 300 pessoas de comunidades ciganas discu-tindo pleitos junto ao Estado.

Dentre as demandas, está a educação. Muitos ciganos aban-donam os estudos antes mesmo

de aprender a ler por se senti-rem discriminados dentro das instituições. “Nós somos calons, ciganos cavaleiros. Nossos trajes fazem referência a isso, ou seja, usamos bota, chapéu e camisa es-tampada. As meninas usam saias ou vestidos longos, nunca com o ventre à mostra. Quando al-guém de outra cultura nos olha, faz chacota, piada, bullying. É difícil manter um filho na escola se ele sofre esse tipo de agressão constantemente”, explica Elias.

Com objetivo de solucionar esse problema, a Secretaria Es-pecial da Promoção da Igualdade Racial (Sepir) do DF lançou, em parceria com a Secretaria de Edu-cação e de Cultura e à Adminis-tração de Sobradinho, o projeto Tenda Escola. Por meio dele, duas professoras ministravam au-las dentro do acampamento insta-lado no Córrego do Arrozal, em Sobradinho, com durações de três horas, de segunda a quarta-feira.

No dia 31 de outubro, Elias, ao lado de outros 49 ciganos, pe-gou seu diploma. “Era vergonho-so ter que pedir para alguém ler algum ofício para mim, ou pedir ajuda para escrever alguma rei-vindicação. Com estudos, fica mais fácil até lutar pelos nossos direitos. Sem contar que antes eu não sabia nem pegar ônibus.”

De acordo com o secretário da Sepir/DF, Viridiano Custó-dio, uma nova turma começou a estudar no dia 5 de novembro e, para o próximo ano, a secre-taria pretende adotar o sistema de Educação de Jovens e Adultos (EJA), também no acampamento em Sobradinho. “O povo cigano é muito unido e alguns de seus costumes, como o de que a mu-lher não pode ir desacompanhada a algum lugar, os impediam de ir à escola pública convencional.

Há pouco tempo incluídos nas políticas públicas, ciganos relatam casos de preconceito no Distrito FederalLaura Tizzo

Wanderley da Rocha, da etnia calon, mora em acampamento de ciganos em Planaltina. A realidade é precária: em barracas de lona montadas sobre chão de terra, dividem espaço crianças, adultos e idosos

Devido à burocracia nas escolas e às recorrentes mudanças de endereço,

muitas crianças ciganas acabam largando os estudos

Por isso, pensamos em ministrar aulas no acampamento e tive-mos um resultado muito bom.”

Apesar das recentes melho-rias, os ciganos ainda se veem obrigados a lidar com situações desagradáveis, que ainda não es-tão amparadas pelo Estado. Parte desses problemas está relacionada às autoridades, que reproduzem anos de discriminação e descon-sideram direitos. “Poucos dias depois que montamos nossas bar-racas aqui, chegaram seis viaturas da polícia querendo entrar no nosso acampamento. Os policiais estavam de arma na mão, com a cara amarrada”, conta Wanderley.

Os relatos sobre a forma como são desrespeitados por autoridades não se resumem ao exemplo acima. “O meu sobri-nho tem dupla sertaneja, com CD gravado, e eles não deixam o menino cantar uma música. Che-ga no bar, a polícia manda parar”, lamenta Jesus Manoel Soares, conhecido como Jesus Cigano.

“A partir do momento em que as autoridades nos enxerga-rem como cidadãos, como seres humanos, as coisas começam a funcionar melhor a nosso favor. Enquanto houver preconceito, a gente nunca vai chegar aos nossos objetivos”, comenta Wanderley.

Beatriz Ferraz

Page 8: Campus - nº  406, ano 43

CAMPUS8 Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

Perto do poder político e de autoridades policiais vivem 56 moradores da

invasão conhecida por Favela da Garagem do Senado. Há 25 anos, 13 famílias de um mesmo núcleo habitam um terreno que fica a 500 me-tros do Palácio do Planalto, na via N2 Norte, próximo ao Batalhão de Polícia Militar da Esplanada. Tão curioso quan-to os luxuosos carros e ter-nos contrastando com o lixo acumulado e os barracos, é o fato de que lá pessoas nasce-ram, cresceram e atingiram a maioridade. Segundo Maria Madalena, 28 anos, que mora em um dos abrigos improvi-sados, dos 56 moradores, 32 nasceram no local e 12 têm entre 17 e 25 anos. Trata-se de uma geração nascida em condições singulares.

Dos filhos da favela, ou-tros já nasceram. Carolina Ce-lestino, 19, tem uma filha de dois anos e cuida sozinha da menina. O pai da garota, se-gundo ela, “começou a mexer com coisa errada” e logo foi deixado. A exemplo da irmã, Kaline Celestino, 21, engra-vidou jovem e em 2011 deu à luz Lucas. Após abandonar os estudos, passou a recolher la-tinhas com o marido, Adenor Santos, 20.

A família vai até a Asa Norte com um carrinho no qual carregam o filho e o ma-terial. Em um dos dias de co-leta, Kaline foi atropelada. “O motorista deu socorro, mas eu não quis.” A catadora sente dores nas pernas, mas não sabe se dizem respeito ao acidente ou aos trajetos percorridos diariamente.

A maioria dos jovens da favela trabalha por perto. Le-andro Albino, 18, lava carros e recolhe papel. Quando o ca-lor é forte, ele vai à Esplanada logo pela manhã. Faz intervalo de duas horas para o almoço e, após o “expediente”, retor-na ao seu barraco. Às vezes, Leandro vai buscar papel. “Não tem ponto certo, mas posso ir ao Ministério de Mi-nas e Energia. Tem gente que vem buscar entulho aqui e leva pra Estrutural.”

Carina Hellen, 18, não tem trabalho fixo, mas recolhe lixo nos ministérios ao menos uma vez por mês com a irmã mais velha, Kaline. “Ganhamos mais ou menos R$ 150 ou R$ 200.” A jovem, de apelido Do-cinho, trabalhou em uma loja de consertos no Paranoá.

Entre as irmãs Celestino, Docinho é a única que não tem filhos. Ela se destaca pelos ca-belos intensamente loiros. “Eu

já era clarinha mesmo, mas trouxe a tinta e minha irmã pintou”, esclarece. Carolina foi quem fez o serviço e diz ter talento. “Queria abrir um salão com minha irmã, mas a situa-ção financeira tá difícil.” Mes-mo tão jovem, ela já não crê mais em sonhos: “Minha filha foi o que aconteceu de melhor na minha vida. Mudar de casa é só uma vontade, sonho eu não tenho mais”.

Docinho pensa em uma vida diferente. “Queria voltar a estudar, mas tenho vergonha. Parei na 3ª série e, se eu voltar, só vai ter moleque na minha sala”, prevê. Leandro deseja levar a mãe e os irmãos para viver em outro lugar. Preten-de também voltar aos estudos, e tem planos para fazer curso técnico. Já pensou até em jogar futebol, mas os sonhos foram minados pela realidade. “Sem-pre fui gordinho e muito ruim. Depois, pensei em ser cobra-dor ou motorista, mas a gente precisa de estudos pra tudo.”

Nenhum dos jovens da invasão concluiu os estudos. Quase todos começaram no Centro de Ensino Funda-mental 1 da Vila Planalto e os que puderam seguiram para o CEM Paulo Freire. Leandro estudou até a 5ª série. Apesar de ter nascido na invasão, foi

OS FILHOS DA FAVELAABANDONO

Jhésycka Vasconcelos

Jovens nascidos em invasão próxima ao CongressoNacional são retrato do descaso do poder público

morar em Planaltina de Goiás por um tempo. “Parei de estu-dar porque tive que vir morar aqui de novo, e minha escola ficava lá.” Por causa da gravi-dez, Karina interrompeu os es-tudos no 1º ano do ensino mé-dio. “Estudava no Paulo Freire. Era longe e eu ia sozinha”, relata. Apesar de ter deixado a escola cedo, Docinho acha que aprendeu muito. “Eu ain-da consigo ler, escrever e fazer contas”, diz, enquanto está sob efeito da maconha que compra em um lugar próximo.

No local, as drogas são comuns. Apesar de muitos usarem as substâncias, eles afirmam que o consumo não representa perigo. “Aqui é bem tranquilo, ninguém mexe com a gente”, garante Caro-lina. Docinho fuma maconha “só pra ficar de boa”, como forma de encarar o cotidiano. No entanto, já houve quem usasse drogas mais pesadas. Há quatro meses, o vício em crack levou para a cadeia dois jovens da invasão. “São novos, meus primos. Roubaram umas coisas pra comprar pedra”, conta Kaline.

A diversão entre os jovens da favela ocorre esporadica-mente. Quando possível, com-parecem em eventos sobre co-leta seletiva e reciclagem. “Eu

já fui em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e em dezembro vou com minha mãe pra Curitiba, num encontro de catadoras”, diz Kaline. Nos fins de semana, os meninos se arriscam jogan-do futebol na pista. Raquel da Silva, 15 anos, prefere pegar a bicicleta e ir até o lago. “A gen-te vai depois do almoço e só volta no fim da tarde.”

Os jovens também se ani-mam com visitas. Cláudio Landers, 34, é advogado e co-ordena o Sopão da Alegria, grupo que leva alimentos a pessoas carentes. “Comer faz bem, mas eu indicaria também que fossem estimulados em atividades como visitas à bi-blioteca”, sugere. “O governo deveria incentivá-los a termi-nar o 2º grau e a começar um curso profissionalizante.”

Para quem vê de dentro, as chances de reanimar a ju-ventude da Favela da Garagem do Senado seguem a mesma ideia. “Esses meninos estão perdidos. Quando minha filha fizer 15 anos, vou atrás do primeiro emprego dela. Ne-nhum jovem aqui tem trabalho fixo e não quero que isso aconteça com ela”, assegura Madalena, hoje com 28 anos, dos quais passou grande parte vivendo como os jovens que moram por lá.

Emily Almeida