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Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação ISSN: 1809-5844 [email protected] Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Brasil Carlos Silva, Míriam Cristina Comunicação visual urbana: o texto híbrido da “mídia mural” Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 32, núm. 1, enero-junio, 2009, pp. 223- 242 Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=69830991013 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Intercom - Revista Brasileira de Ciências da

Comunicação

ISSN: 1809-5844

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Sociedade Brasileira de Estudos

Interdisciplinares da Comunicação

Brasil

Carlos Silva, Míriam Cristina

Comunicação visual urbana: o texto híbrido da “mídia mural”

Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 32, núm. 1, enero-junio, 2009, pp. 223-

242

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COMUNICAÇÃO VISUAL URBANA: O TEXTO HÍBRIDO DA “MÍDIA MURAL”

Comunicação visual urbana: o texto híbrido da“mídia mural”

Míriam Cristina Carlos Silva*

ResumoEste artigo é o resultado da seleção, registro fotográfico e análise de parte dacomunicação visual realizada em muros e paredes, na cidade de Sorocaba, SP,levando-se em conta seu aspecto verbal (semântico, sintático e estético), nãoverbal e híbrido, além de agrupar a produção de acordo com as característicasem comum, com a finalidade de entender as relações entre estas produções ea cultura em que se inserem. Assim, pudemos observar que produtores auto-didatas, influenciados pela comunicação de massa, apropriam-se das técnicasda publicidade. Além disso, artesanato e tecnologia convivem, mas reforçam,no espaço urbano, uma comunicação de classes.Palavras-chave: Mídia mural. Comunicação visual urbana. Publicidade e pro-paganda.

Urban visual communication: the hybrid text of the media wallAbstractThe text is concerning with the selection, photographic register and analysisof the visual communication on the walls in Sorocaba city, SP. The main ob-jective is to point out the verbal (semantic, syntactic, and aesthetic), non-verbal and hybrid aspect of those urban productions trying to characterize theircommon elements to comprehend the cultural interrelations. Therefore, we canobserve that self-taught producers, affected by mass communication, use adver-tising techniques. Moreover, craftwork and technology coexist, but reinforce,in the urban areas, class communication.Keywords: Media wall. Urban visual communication. Publicity.

Comunicación visual urbana: el texto hibrido de la media muralResumenEste artículo es resultado de la selección, registro fotográfico y análisis de partede la comunicación visual realizada en muros y paredes, en la ciudad de

* Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é professora pesquisadorado Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba(UNISO). Publicou, pela editora Sulina / Eduniso, Comunicação e CulturaAntropofágicas. É roteirista, produtora cultural e apresentadora do Provocare TVe Provocare FM, programas que integram o projeto Provocare Multimídia deComunicação, em Sorocaba / SP.

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MÍRIAM CRISTINA CARLOS SILVA

Sorocaba, SP, dadas sus características verbales, no verbales e hibridas, ademásde agrupar la producción con características comunes, con la finalidad deentender las relaciones entre estas producciones y la cultura. Productores in-formales, influenciados por la comunicación de masa, utilizan las técnicas dela publicidad; artesanía y tecnología conviven, pero refuerzan, en el espaciourbano, una comunicación de clases.Palabras claves: Media mural. Comunicación visual urbana. Publicidad y pro-paganda.

Comunicação Visual

Sabe-se que o registro de signos em paredes, muros e afins é prática antiqüíssima. Desde bisontes encontrados em caver- nas, passando pelas inscrições com carvão nos muros em

Pompéia, até as primeiras pichações nova-iorquinas, muito seregistrou, com as mais variadas finalidades: expressões artísticas,questionamentos existenciais, propaganda eleitoral e comercial,contestação, ofensas pessoais, formas peculiares de comunicaçãovisual, que resistem até nossos dias.

De caráter verbal, não verbal ou intersemiótico, estes regis-tros, textos, em acepção ampla, atravessaram o tempo e permane-cem freqüentes, convivendo com os avanços tecnológicos quevêm tornando os processos de comunicação cada vez ainda maiscomplexos, rápidos e híbridos. A comunicação a que aqui nosreferimos é a propaganda de produtos, serviços ou idéias e, emmuitos casos, trata-se da identificação visual de estabelecimentoscomerciais, que a partir de então será chamada de “mídia mural”,dada a ausência de uma nomenclatura consensual entre profissio-nais e teóricos da área.

Quando se trata da comunicação nas grandes cidades, muitose tem falado em um excesso de informações, sobretudo visuais,uma “crise da visibilidade” e, em conseqüência, uma “iconofagia”.Imagens nos remetem a novas imagens, em um processo abismal,contínuo e infinito. Devoramos imagens e somos devorados porelas. De acordo com Norval Baitello Júnior (2000):

Como o alimento das imagens é o olhar e como o olhar é um gesto docorpo, transformamos o corpo em alimento do mundo das imagens – re-

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firo-me aqui a um dos tipos de iconofagia possíveis – inaugurando umcírculo vicioso.

Ao invés de representações, estas imagens são cultuadascomo deuses, caracterizando a perda do objeto, a onipotência eonipresença do signo. Vilém Flusser (2007, p.116) pondera:

Para a cultura de massa, o problema é que quanto mais tecnicamenteperfeitas vão se tornando as imagens, tanto mais ricas elas ficam e melhorse deixam substituir pelos fatos que em sua origem deveriam representar.Em conseqüência, os fatos deixam de ser necessários, as imagens passama se sustentar por si mesmas e então perdem seu sentido original.

Dissociadas da realidade, autônomas, as imagens nos cercampor todos os lados, resultando, paradoxalmente, em cegueira.Neste contexto de novas tecnologias e de hipertrofia visual, qualé o papel da mídia mural, que ainda utiliza muros e paredes comosuporte? Qual é a sua natureza? Como se dá o seu funcionamentoe que público pretende atingir e, efetivamente, atinge? Trata-se,aqui, de comunicação de massa? Quem são os produtores destasmanifestações? Artistas populares, letristas e desenhistasespecializados ou sujeitos inseridos em uma prática alternativapara seu ganha-pão cotidiano? Já que comunicação e sociedadeestão indissoluvelmente conectadas, quais as implicações sociaisdesta prática comunicativa? Quais suas relações com a cultura naqual está inserida? Ainda, se a comunicação visual urbana regis-trada em muros é texto, nas concepções de Lotman (1978), quaisas especificidades desse texto e, se a leitura é seleção, quais oscritérios ou particularidades que tornam esse texto mais ou menoslegível em meio ao excesso de informação visual que nos cercapor todos os lados? Quais os fatores que permitem que ele aindapermaneça, apesar de tantos avanços tecnológicos, pleno, emcorrente utilização? Facilidade de acesso? Custo, apenas? Estas sãoalgumas dentre as inquietações que nos levaram a esta pesquisa eainda não foi possível responder de forma completa a todas, porenquanto, mas pudemos fomentá-las para que possam nos apontarcaminhos que levem a uma visada mais crítica e, talvez, à conti-nuidade deste trabalho.

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O recorte “Sorocaba” foi selecionado por se tratar da comu-nidade mais atingida pelo centro de estudos onde realizamos anossa pesquisa, a UNISO, Universidade de Sorocaba, na qualatuamos. Entretanto, buscamos, também, avaliar a produção emcidades circunvizinhas, como Votorantim, Tietê, Tatuí, Cerquilho,Boituva, Porto Feliz e Salto de Pirapora. Nestas cidades, emboraessa produção seja utilizada, por se tratar de cidades menores, nãoconseguimos levantar aspectos singulares o suficiente para que sejustificasse a inclusão desta produção em nossas análises. Assim,a pesquisa se direcionou, naturalmente, para a cidade deSorocaba, na qual foi possível levantar um número bastante sig-nificativo de tipologias na utilização da mídia mural. As peçaspara análise foram selecionadas de diferentes bairros e regiões dacidade e servirão para compor um mosaico de relaçõesestabelecidas de forma qualitativa. Dentre as dificuldades encon-tradas no decorrer desta pesquisa, houve a constatação da escassezde bibliografia específica sobre o assunto, o que, por outro lado,resulta como um aspecto positivo no sentido de que este possa serum esforço para ampliar a discussão sobre o tema. Acreditamosque compreender essa forma da comunicação urbana é entenderum pouco mais de nossa comunidade e de nossa cultura, perceberas características peculiares destes textos e de seus produtores, oque se fundamenta como um fator preponderante para a compre-ensão dos processos de comunicação, em geral, e da mídia mural,em particular. Em um contexto de oportunidades restritas nomercado de trabalho, cabe a nós, pesquisadores, auxiliar no en-tendimento da realidade que nos cerca sob diversos aspectos. Osalunos de Design e os de Publicidade e Propaganda encontram,na conclusão de seus cursos, em Sorocaba e região, um mercadosaturado, com práticas ainda bastante rudimentares de comunica-ção visual e propaganda, com serviços e produtos oferecidos deforma espontânea e processos que estão bastante aquém das no-vidades tecnológicas tão apregoadas pela crítica e pelo mercado.Desta forma, compreender a natureza da mídia mural, sob seuspeculiares aspectos verbais e não verbais, seus componentes sin-táticos, semânticos e estéticos, pode ser uma forma para abrirespaço neste mercado. A segunda dificuldade deveu-se ao fato de

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que se trata de uma forma de comunicação bastante volátil, emconstante transformação. Algumas imagens captadas deixaram deexistir na conclusão deste trabalho, ao passo que outras, muitointeressantes, foram surgindo ao longo do caminho, de modo queprocuramos limitar o registro das imagens até novembro de 2007.

A comunicação no espaço urbano

Quando se fala em comunicação visual urbana, sabemos queexistem várias tipologias nas quais podemos dividir as múltiplasmanifestações verbais e não verbais que compõem o ambiente“polifônico” de uma grande cidade, segundo Massimo Canevacci(2004, p.17):

[...] a cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomasque se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-seou se contrastam.

Compreender a natureza da mídia mural requer compreendê-la em seu contexto, a comunicação visual e a cidade. O olhar éum dos principais sentidos responsáveis por apreender e desvendaro ambiente urbano. É por ele, inicialmente, que os signos sãoassimilados para tecerem uma rede de relações e significados. ParaCanevacci (idem, p. 43) “a cidade é o lugar do olhar. Por estemotivo a comunicação visual se torna o seu traço característico”.

A despeito de uma possível cegueira, toneladas de informações,especialmente por meio das mídias terciárias (o corpo, um aparatocodificador e um aparato decodificador), são despejadas diariamen-te, convivendo, porém, com a mídia primária (o corpo e todas assuas implicações, sem o uso de aparatos) e a secundária (caracte-rizada por um corpo e o uso de um aparato), na definição de HarryPross. Independente de quais aparatos, de quantas mediações ou dequão avançada venha a ser a tecnologia empregada, a comunicaçãorequer sempre os corpos, codificando e decodificando de formarecíproca. A mídia mural, com linguagem híbrida concretizada pelosletristas e desenhistas, intuitivos e autodidatas, em sua grandemaioria, é uma forma de mídia secundária, por utilizar um únicoaparato tanto para a emissão quanto para recepção.

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Dentre as formas de comunicação que compõem o ambienteurbano se encontram as casuais, uma espécie de para-comunicação,não intencional, e aquelas concebidas propositadamente para co-municar. Nas primeiras, casuais, a arquitetura e o paisagismo, em-bora passem mensagens, não são construídos exatamente com opropósito de comunicar; a geografia; os transeuntes, com suas rou-pas e acessórios; elementos naturais, chuva, sol; veículos e animaisque circulam pelo espaço urbano são formas comunicativas nãointencionais. Quanto à comunicação intencional, esta varia entrea chamada mídia exterior, criada por empresas especializadas, compainéis, outdoors, fachadas, cartazes, alto-falantes, entre outras,inúmeras, inclusive as primárias, como os vendedores ambulantes,seus gestos e pregões. Podem se subdividir em novas tipologias,classificadas em subgrupos. Compõem, ainda, a categoria de mídiaexterior, os busdoors e as propagandas realizadas em pontos deônibus, relógios públicos e postes de sinalização. Enfim, tudo o quese apresente ao olhar, intencionalmente ou não, comporá a comu-nicação visual de uma cidade que, quanto maior, mais saturada designos a se desvendar. Canevacci (2004, p.36) explica:

Tudo é cultura num contexto urbano (a poluição, a criminalidade ou asnovas seitas religiosas), as impostações que se declaram pós-modernasindividuaram no fim da distinção (moderna) entre cultura material epatrimônio artístico, ou entre o passado e o presente, mistura fragmentá-ria que levou à condição atual.

Na cidade, polifônica e multicultural, presente, passado efuturo se abraçam, convergentes. Artesanato e tecnologia, arte eciência se misturam e por isso o grafite ou a arte de rua são con-siderados, também, elementos de intervenção comunicativa, alémda pichação e de outras, de variadas naturezas, como os carrinhosde coleta de materiais recicláveis, que vêm desenvolvendo suaforma particular de comunicação, no uso das cores e formas comque são compostos. Diante do olhar, a urbe se transforma emconglomerado de traços, em desenho. Resta saber até que pontoesse excesso significa comunicação ou se, em seu crescente pro-cesso de entropia, significaria apenas cegueira. Para CiroMarcondes Filho nos comunicamos cada vez menos. Nossos meios

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de comunicação tentam, de forma vã, suprir um insondáveldistanciamento entre os homens:

As pessoas inventam, vendem, usam todas as máquinas possíveis para co-municar exatamente porque mal conseguem transmitir ao outro qualquercoisa, mal conseguem entender ou sentir junto com esse outro as coisas queela ou ele sentem. Os equipamentos para facilitar a comunicação se mul-tiplicam cada vez mais, entram progressivamente em nossa vida, fazem partede forma crescente de nossos objetos do cotidiano porque precisam substi-tuir alguma coisa que dificilmente será preenchida: o distanciamento, aseparação entre as pessoas, as muralhas que erguemos e que nos barram detodos os demais (MARCONDES FILHO, 2004, p. 9).

Na tentativa de quebrar esse silêncio, a arte abre brechas emque vislumbramos instantes de comunhão entre o signo e o obje-to, entre o homem e o Cosmo, entre os homens e outros homens,forma plena e rara de comunicação. Alexandre Órion1, artistapaulistano, encontrou, na fuligem produzida pela poluição doscarros, um modo de construção poética para se comunicar comSão Paulo, para comunicá-la. Ele afirma que a sua matéria-primaé a cidade. Recolhendo essa fuligem, realizou intervenções emtúneis, como o Max Feffer, na Cidade Jardim, onde passava ma-drugadas inteiras desenhando caveiras com panos úmidos que, aoserem levados para a sua casa, deixavam uma espécie de borra nofundo de um balde com água, posteriormente utilizada como tintaque comporia telas nas quais a megalópole ainda se fazia presente.Outro procedimento utilizado por Orión foi fotografar pessoasmisturadas às suas obras, que se confundem com o ambiente ur-bano. O grafite, em desenhos realizados em muros e paredes dacapital paulista, sofre a intervenção dos transeuntes, flagrados pelafotografia de Orión. Desta maneira, a obra, em processo híbridoe interativo, é sempre sujeita às mutações do ambiente e dospassantes. A tecnologia fotográfica se alia ao processo artesanal dagrafitagem. Ao registrar as imagens com a intervenção do compo-nente humano, Órion retém um instante que, salvo a intervençãotecnológica, estaria para sempre perdido. A fotografia é o registroda morte, por perenizar algo que jamais poderá ser repetido. A

1 Ver em www.alexandreorion.com

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esse trabalho, o artista denominou metabiótica, ou seja, aquiloque prepara o ambiente para que algo possa sobreviver, morrendoapós esta preparação, comunicação poética específica, só possívelnesse ambiente caótico, que se constrói sempre de forma transi-tória e dialógica, alimentando-se do que morre para fazer perma-necer, no que nasce, aquilo que existiu. A cidade é um ambientepropício para as manifestações deste texto estético em processo,já que das múltiplas e contínuas mutações do cotidiano é que sefaz a comunicação das grandes cidades, nas quais arte e comuni-cação se misturam, quebrando as limitadas fronteiras entre áreas,entre tecnologia e artesanato, convergindo também com a arqui-tetura, a paisagem e os habitantes que transitam. Tudo é texto nacidade, por natureza, aberto, (re) construção. Tudo nela requerum olhar que se debruce, mais demorado e atento, antes que oprocesso se perca e se (re) inicie.

A mídia mural em Sorocaba / SP

Sorocaba é uma cidade com mais de 600 mil habitantes, deacordo com as estimativas de 2007. Possui uma área de 456,0 km2,com 249,2 km2 de área urbana. É o terceiro município mais po-puloso do interior paulista, o quarto mercado consumidor do es-tado (fora da região metropolitana), com potencial de consumoper capita anual de 2,4 mil dólares para a população urbana. É aoitava cidade brasileira em potencial de consumo. Caracterizadacomo um importante pólo industrial, hoje pode ser descrita tam-bém pela prestação de serviços e comércio. A região que maisvem se expandindo é a Zona Norte, que, com muitos bairrospopulares, tornou-se equivocadamente sinônimo irrestrito deperiferia. A zona norte abriga condomínios, prédios de apartamen-tos, grandes áreas comerciais, indústrias e enorme diversidade deculturas e atividades, graças também ao fluxo de pessoas vindas deoutras cidades e estados, em busca de emprego e melhores condi-ções de subsistência. O fato de estender do centro até a zonarural também possibilita esse seu caráter cambiante e múltiplo.

Cada zona da cidade é composta como um núcleo mais oumenos independente, caso também de alguns bairros, nos quais há

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um centro. O centro velho há muito vem se degradando, emborapermaneça com as características de região central. É comum aindamoradores da periferia se referirem a esta região como “cidade”(vou à cidade pagar as contas), como se estivessem, inconsciente-mente, apartadas da metrópole. Com os novos centros que vãosurgindo, enquanto a cidade não pára de crescer, constroem-senovas identidades, sempre provisórias e formadas pela improvisação,pela surpresa, pela re-facção. Imóveis ora alugados para padarias,rapidamente transformam-se em igrejas ou em estacionamentos,com prédios demolidos, não concluídos ou demolidos antes que seconcluam. Com essas transformações, requerem-se outras sensibi-lidades e uma re-construção constante de referências. A cidade,com sua proliferação de informações visuais descontínuas, múltiplase simultâneas, exige a atenção redobrada para não se pagar o preçode se perder. Ruas são rasgadas, novas casas e favelas se penduramem áreas antes verdes, ao mesmo tempo em que se modernizamavenidas ajardinadas, que convivem com velhos postes de energiaelétrica, feitos em madeira tortuosa. Pistas de caminhada e cicloviassurgem em meio aos novos estabelecimentos comerciais, que podemfalir em um mês ou menos e dar lugar a outras tentativas, ladeadospelos entulhados ferros-velhos. As fachadas se transformam, comtrailers que fazem lanches, mesas de lata enferrujadas e fritadeirasque juntam o cheiro de pastel e churrasquinho ao de fumaça e semultiplicam tanto quanto as prostitutas, travestis e garotos de pro-grama, os quais também perderam o seu referencial de localização.A antiga zona do meretrício, Vila Santa Clara, onde hoje se localizaa região do aeroporto, desapareceu. Na época de sua atividade, há40 anos, ficava muito distante do centro. Com o crescimento daperiferia, estas atividades de prostituição foram empurradas, cerca-das e se concentraram no centro, que aos poucos deixou de ser ocentro e, com centros cada vez mais diluídos e provisórios, expan-diram-se para outras regiões e da mesma maneira se encontramdescentralizadas.

Pode-se perceber que Sorocaba, a despeito de todo o desen-volvimento das tecnologias da comunicação, ainda utiliza de for-ma abundante a comunicação visual secundária, aquilo quedenominamos mídia mural, em todas as regiões. Onde menos se

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utiliza esta prática é no bairro Campolim, considerado bairronobre e onde se localiza o principal shopping da cidade, doishipermercados, boutiques, restaurantes, bares da moda e um par-que, vitrine de gente ao ar livre, em que se realizam atividadesfísicas. Lá existe um rigor maior que prevê uma espécie de regu-lamentação da comunicação visual, da propaganda. O bairro, porelitizado, segue um padrão, buscando certa homogeneidade no seumodo de comunicar. Nos outros lugares, sobretudo no centrovelho e nos bairros da zona norte, a liberdade é maior, resultandonuma espécie de caos multicolorido. Há um código de ética pra-ticado informalmente pelos produtores, que não permite, porexemplo, o uso de palavras de baixo calão ou desenhos de mulhe-res nuas, entretanto a enorme liberdade permite que se escrevaerrado, que se use qualquer padrão de letra, qualquer combinaçãode cores e não raro há a apropriação de desenhos consagrados douniverso das histórias em quadrinhos e da animação, pois não hátemor em se ferir direitos autorais. Contraditoriamente, a grandemaioria destas produções vem assinada pelo produtor, que nãoraro chega a ter um caráter de empresa de comunicação visual, éo caso de Ricardo Arte em Grafos, autor da maioria das peças,devido ao preço menor diante da concorrência, Clau, Magic Art‘s,Falcão de Sorocaba, Jean, Paulinho, entre outros.

Em geral, a mídia mural em Sorocaba se caracteriza pelo uso deimagens, com linguagem verbal restrita a uma espécie de ancora-gem, já que empregada para nomear os estabelecimentos ou paradescrever de forma referencial serviços prestados ou produtoscomercializados. Entre as técnicas mais freqüentes podemos notara humanização de objetos inanimados e animais, a infantilizaçãolúdica dos traços, sobretudo com o aproveitamento de personagensconhecidos do mundo dos quadrinhos ou de desenhos animados.Faz-se uso da grafitagem, que de intervenção subversiva passa aouso oficial e comercial, e há também a tentativa de reproduzir arealidade de forma figurativa, icônica. Quanto à última, notamosque é presente na representação de figuras humanas e em objetosassociados à tecnologia de precisão, como máquinas, motores, equi-pamentos de medição e regulagem etc. Alguns signos são recorren-tes, estrelas para se referir a brilhos e luminosidades; teias de

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aranha, na caracterização do velho; fumaça, para indicar aceleraçãoe velocidade; balões de diversos formatos para destacar o texto. Nasfiguras humanas, percebe-se que quanto maior a tentativa de rea-lismo, mais estas tendem ao tosco, ao grotesco e ao kitsch. O quese pode observar, também, é que estes desenhos seguem, inúmerasvezes, os padrões utilizados pela comunicação de massa, nagestualidade, vestimentas e enquadramentos. Há tentativas de si-mulação de luz e sombra, bem como a erotização caracterizada porbocas entreabertas, cabelos esvoaçantes e insinuações em decotese olhares maliciosos do rosto em primeiríssimo plano. Algumasimagens apresentam componentes narrativos que complementam amensagem verbal e a grande maioria traz a assinatura e o contatodo letrista e desenhista, de forma que há uma nova propagandadentro da propaganda, ou seja, além dos produtos comercializadose serviços prestados, é oferecido o próprio ato de se fazer propagan-da por meio desta técnica.

Análise de algumas imagens

Na tentativa de caracterizar a publicidade realizada na mídiamural em Sorocaba, selecionamos algumas peças representativasda amostragem que realizamos e optamos por um ensaio que pri-vilegie a análise da mensagem e seus componentes.

Sapataria RendallÉ comum dar a estabeleci-mentos comerciais o nome doproprietário, como é o casoda sapataria Rendall, em des-taque pelo uso da cor e dacaixa alta. A letra cursiva su-gere elegância e cuidado. Asprincipais cores utilizadas, oamarelo, o marrom e o preto,indiciam sapatos e bolsas, no

material nobre de que, em geral, são compostos, o couro. O brancoserve para simular a luz, indiciando o brilho dos sapatos e bolsas que,

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revitalizados, parecem novos, animam-se, renascem. Abaixo do tênis,

o texto “Hospital do tênis”, faz uso da função poética, já que o termo“hospital” vem empregado em sentido conotativo. Nos dizeres emdestaque no balão, “25 anos no ramo”, há uma mensagem de com-petência assegurada pela experiência, pela tradição, pelo tempo,complementada visualmente por uma espécie de brasão coroado, queconfere nobreza ao proprietário, estendida ao estabelecimento. O “R”de Rendall transforma-se em um “R” de rei, o rei dos sapateiros. Atradição, no entanto, não deixa de estar associada à modernidade, aooferecer consertos em sapatos, bolsas, mas também em tênis. Amensagem faz supor que por sua qualidade e competência, a sapatariaRendall permanece ativa há 25 anos, sem, entretanto, parar no tem-po. Ela se modernizou e é capaz de ser um hospital para os tênis,incluídos os da Nike.

Salão e venda de produtos LorealEm salões de beleza é bastantecomum a representação realistada figura humana, sobretudo afeminina. Neste caso, o uso dorosa em dois tons, como fundo,reforça a idéia da mulher que,paradoxalmente, tem os traçosfortes, quase masculinizados,numa face andrógena, de tezbranca como a neve, palidez e

androginia que remetem aos outdoors criados para grandes grifes esuas modelos esquálidas e assexuadas, em que, pós-modernamente,homens e mulheres se fundem e confundem. O fundo insinuamovimento, continuado na cabeleira negra e volumosa. A bocaentreaberta, recorrente na fotografia de publicidade e o olhar firmequerem erotismo, sedução. Essa intenção erótica recorrente, ao seapropriar da comunicação de massa, incorporando-a, provoca umestranhamento, justamente por sua tentativa de fidelidade e fami-liaridade. Desta forma, ganha um caráter de novidade e resulta, porseu inusitado, em mecanismo eficiente para deter a atenção dotranseunte. Complementa a imagem a linguagem verbal

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cientificista, que oferece cauterização molecular e queratina, alémde “mexas” (sic). O registro verbal, com a enumeração, é respon-sável pelo diferencial a ser oferecido pelo salão, a variedade e aquantidade de serviços prestados e o domínio da técnica, da ciênciados cabelos, referendada pelo tecnicismo dos termos empregados.

Salão de CabelosNeste caso a comunicação écaracterizada pela simplicidadee objetividade, tanto na lingua-gem verbal quanto na visual,que se repetem, referenciais eprecisas. O que se destaca sãoos cabelos, nas imagens (pron-to, à esquerda e em processo, àdireita) e no nome do salão.Não há glamorização, entretan-

to, na simplicidade dos traços, na economia de cores e na escolhado nome, há um componente indicativo de modernidademinimalista.

Ótica ExclusivaNa caracterização da ÓticaExclusiva, vende-se a imagemde individuação e estilo, a umconsumidor que se quer único.A personagem brilha, com o solque bate em seu rosto comoum refletor, com seus cabelosesvoaçantes e graças ao produ-to comercializado, os óculos de

sol, em meio a uma paisagem com forte apelo bucólico. É umaimagem pretensamente analógica às de das revistas de celebrida-des, em que, novamente, a figura de lábios carnudos e entreaber-tos, mas andrógina, torna-se grotesca pela familiaridade e, aomesmo tempo, pela farsa desnudada, signo e seu evidentedistanciamento do objeto. O enquadramento fechado no rosto em

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primeiro plano hiperboliza o retrato. O uso do vermelho, quentee sensual, dialoga com a estranha tipografia em que o X tambémse hiperboliza, alonga-se, em um deslizar quase fálico, um “X”também andrógino.

MomunesAqui a técnica da grafitagem é

utilizada para criar a identidade vi-sual do Movimento das mulheresnegras de Sorocaba. A monumentalefígie de lábios carnudos e turbanterubro relembra uma realeza perdidae confere ao objeto dignidade,status e beleza.

Espetinhos Assim AssadoAs letras em chamas animam-

se, movimentam-se, redundam ocalor contido nas cores, quase invariavelmente empregadas naidentificação visual de fast foods. Há uma profusão de detalhes,o personagem redondo cuja barriga se projeta e se insinua pela ca-miseta curta. É um tipo, um estereótipo, o glutão da periferia, o

comedor de churrasco; a salivaque lhe sai da boca projeta hu-mores que em geral a publicidadequer esconder, mas aqui dialogamcom a fumaça que é exalada pe-los espetinhos assados. É reveren-ciada a super Coca-Cola, Deusem um altar, ritual gastronômico,orgia da gula num infantilizadoDioniso. A intertextualidade comos Secos e Molhados, em “AssimAssado”, nome aliterante e as-sonante, facilita a memorização.Complementam a imagem, naparede ao lado, objetos antro-

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pomorfizados e animais que sabem qual será o seu destino. Sacri-fício, mito, rito e abundância compõem o ato de alimentar-se,ainda que carnavalizados.

Ribeiro, Arts IlustraçõesNeste caso, a comunicação feita pela mídia mural é represen-

tação, mas, também, auto-referente, metalingüística, a todo mo-mento parece nos fazer recordar o seu caráter de improvisação,representação, farsa. Ribeiro realiza a comunicação e cria um neo-

logismo em Arts, novo es-tranhamento. Ao mesmo tempoem que são construídas as pro-pagandas (nas quais predominaa linguagem verbal) de serviçosoferecidos no bairro, são desnu-dadas como publicidade pelapropaganda do propagandista,que se anuncia em meio aosanúncios que constrói.

Considerações finais

A mídia mural é uma forma corrente e amplamente utilizadapara a publicidade de produtos, idéias, serviços ou simplesmentepara a criação de uma identidade visual em estabelecimentoscomerciais de Sorocaba e região. Vista com preconceito pelosespecialistas e atores da comunicação oficial, sobretudo a Publi-cidade, resiste e permanece, sobretudo, por questões financeiras.É uma forma barata de dar voz aos comerciantes e prestadores deserviço e uma alternativa viável de sustento àqueles com habili-dade mínima no manejo de tintas e pincéis. Sua estrutura nãofoge à estrutura da linguagem publicitária impressa, constituindo-se em sua grande maioria no duplo registro: verbal e visual. Apa-rece em praticamente todos os bairros, com uso freqüente tambémna região Central, excetuando-se, apenas, o bairro Campolim, emque sua presença é bastante rara, justificada pelo caráter nobre dobairro e por uma certa sofisticação elitista e pretensamente

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estetizante nos modos de comunicar, o que acaba por criar umaauto-regulamentação da homogeneidade.

Há enorme variação de formas, graças à ausência de legislaçãoe padrões pré-estabelecidos. Os letristas, em geral autodidatas, cos-tumam criar um estilo, que pode ser facilmente identificado. Sãoprodutores com escolaridade restrita ao ensino fundamental incom-pleto e que buscam nesta prática uma alternativa de subsistência.As noções de estética e as informações sobre a arte e a comunica-ção estão circunscritas àquilo que é fornecido pela comunicação demassa, daí a intertextualidade e a intersemiose com estas formas,que constroem o repertório de seus produtores. Entretanto, háexceções. É o caso de Natalino Camilo e Adriano Gianolla, ambosda cidade de Votorantim, SP, que desenvolvem, paralelamente, umaprodução artística de qualidade estética e estilo próprio.

São comuns e recorrentes: a) o uso exclusivo da linguagemverbal, com um caráter informativo; b) o uso da linguagem visualcom a ancoragem na linguagem verbal, no nome do estabeleci-mento, na complementação ou repetição dos serviços ou produtosoferecidos; c) uso da grafitagem; d) uso de figuras antropomórficas(objetos e animais humanizados); d) representação realista daforma humana e dos objetos, simulando o retrato e a fotografiapublicitária; e) infantilização da figura humana e dos objetos,buscando formas típicas da linguagem das histórias em quadri-nhos; f) utilização de personagens conhecidos, do mundo da ani-mação e dos quadrinhos.

Nas peças analisadas, percebe-se que a utilização da linguagemverbal associa-se à visual por um caráter de repetição, reforço oucomplementação. Raramente ocorrem casos de contradição propo-sital, forçando o estranhamento ou a ironia. Quando ocorrem, sãoobra do acaso ou descuido da técnica. A originalidade e a preocu-pação estética, embora possam existir de forma rara, dão lugar àmensagem referencial e à repetição de fórmulas armazenadas norepertório dos emissores e receptores a partir da comunicação demassa. O uso da grafitagem, em grande parte das situações, ocor-re por acordo entre produtores e donos de estabelecimentos comer-ciais, que vêem na identificação visual na estética do grafite umaforma de evitar o grafite espontâneo e também a pichação. Há um

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acordo entre grafiteiros e um certo respeito dos pichadores pelospontos em que o grafite passa de prática subversiva à identidadevisual ou propaganda, o que não deixa de ser contraditório dianteda idéia estética e política do grafite como forma subversiva decomunicação e expressão, mas que pode ser compreendido comoalternativa de subsistência. Neste caso, a arte e a ideologia se cor-rompem diante das necessidades humanas básicas de sobrevivência.A opção dos proprietários de pontos comerciais pela mídia muralsegue duas premissas, a primeira, fundamental, é a do baixo custo.Quando perguntados, quase todos respondem que se tivessem con-dições de investir valores maiores em propaganda e comunicaçãovisual, optariam por formas mais sofisticadas de comunicação. Poroutro lado, também a grande maioria afirma acreditar que estasformas da mídia mural são as mais adequadas ao seu público, e quese investissem em painéis ou fachadas de outro estilo, talvez opúblico não adentrasse ao estabelecimento por temor de preçoselevados. Portanto, consideram-se satisfeitos e crêem na eficácia damídia mural como instrumento para “marcar presença” em meio aoexcesso de informação visual de que estão cercados.

Enquanto os outdoors e painéis eletrônicos são realizados pre-vendo a leitura por meio do fluxo de automóveis, a mídia muralparece comportar melhor o olhar do pedestre. São imagens que seconfundem com as demais formas de comunicação da cidade, dia-logam com ela, misturam-se ao grafite e às pichações e se adéquammais a velocidade de quem caminha pelas ruas. Ao atingir o tran-seunte, este tipo de publicidade pré-define o seu público, o cidadãocomum, interessado pelos produtos e serviços de sua cidade, sobre-tudo de seu bairro ou zona, sem grandes desejos de consumo eluxo. É comunicação que atende à necessidade de informar, não àgrandiloqüente promessa de sedução e sonho, como comprova ouso da função referencial, mas visam também localizar o cidadão emarcar a presença dos estabelecimentos, destacando-os do caosinformativo da cidade, trabalhando, desta maneira, com a funçãofática, embora haja algumas vezes os mecanismos retóricos de con-vencer, diferenciar e mesmo tentativas de elaboração estética e umcódigo mais criativo, pautado pelo lúdico, pelo humor e pelo ero-tismo. No caso da propaganda comercial, há um quadro ideológico

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já constituído, que serve como pano de fundo para se incitar à açãoou, no mínimo, à observação. Não por acaso, as propagandas emque se nota maior elaboração estética são ideológicas, visam subver-ter um quadro pré-estabelecido, caso das peças realizadas para aFundação Melanie Klein e Momunes (movimento das mulheres ne-gras de Sorocaba).

Apoiado nas idéias de Baudrillard e Guy Debord, JuremirMachado da Silva (2007) nos fala a respeito de uma lógica hiper-espetacular, pela qual a publicidade faz silenciar o objeto, constru-indo-se apenas das imagens. Desta forma “o hiper-espetáculo sedá pela hegemonia da comunicação publicitária, uma estéticaemocional e tátil que domina as artes, o jornalismo, o cotidianoe a cultura como um todo (SILVA, 2007, p.160)”. Ele afirma que,grosso modo, a publicidade se divide em três fases:

Na primeira fase, primitiva ou ingênua, vendia-se um valor deuso. Os reclames listavam as qualidades intrínsecas da mercadoria.Havia uma referência explícita. O consumidor poderia compararo produto com o discurso publicitário sobre ele (SILVA, 2007,p.160).

Nessa fase as referências usadas eram valores do objeto, quepoderiam ser contestados pelo uso. Havia, portanto, a necessidadede uma autonomia maior da propaganda, por meio da qual nãofosse preciso provar nada. Abandona-se, então, o elenco de qua-lidades referentes ao objeto e exaltados pela publicidade, quepassa à segunda fase, conceitual, criadora de uma espécie de clima“pré-venda”. Nesta, “vende-se um conceito, uma sugestão, umaidéia imprecisa e volátil (SILVA, 2007, p.161). Já na terceira fase,“desejava-se vender um imaginário, ou seja, um reservatório deimagens e sensações e um motor que impulsione as ações de cadaconsumidor (SILVA, 2007, p.160)”. O objeto tende a desaparecer.Quanto menos ele é mencionado, melhor para a publicidade:

Distante do objeto, eliminado para melhor se multiplicar, a pu-blicidade só diz que o produto é bom porque aparece e só apareceporque é bom. Na verdade, diz que o produto é bom porque faz oconsumidor rir. A garantia de qualidade do produto encontra-se nacriatividade do anúncio que o antecede (SILVA, 2007, p.162).

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A mídia mural, comunicação secundária, realizada de formaartesanal, ainda parece encontrar-se na primeira fase da publici-dade, ao voltar-se sempre para o objeto, escancarando o seu ca-ráter de representação, com o uso recorrente da metalinguagem.As peças são sempre acompanhadas, no mínimo, da assinatura etelefone do letrista ou desenhista responsável por confeccioná-la.Existe, portanto, uma propaganda dentro da propaganda.

Ingênua, a mídia mural refere-se a qualidades e usos do ob-jeto que representa. Não é capaz de criar uma atmosfera espeta-cular, tampouco de abandonar o objeto, embora não abra mãodesta tentativa, alimentando-se, como no caso das propagandasde salão de beleza, da comunicação de massa e suas técnicas.Entretanto, ao realizar esta fusão, traz à tona seu caráter farsesco,limitado, sígnico, que jamais conseguirá recobrir o objeto em suatotalidade. Sabe-se que ela é a representação, portanto, não cabeo hiper-espetáculo, cuja principal produtora é a tecnologia, tam-bém a principal responsável pela terceira fase da publicidade, a daausência do objeto.

Neste convívio entre as formas populares de comunicação ea comunicação de massa, cada vez mais sofisticada, subversão eideologia, artesanato e tecnologia, espontaneidade e imposiçãoconvivem e convergem, sem, entretanto, confundirem-se porcompleto, já que enquanto houver uma sociedade de classes,haverá, também, uma comunicação de classes.

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