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Brasília, 2011
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Diretor de Estudos e Políticas SociaisJorge Abrahão de Castro
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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo
multipolar
Juliana da Silva Nogueira
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Brasil em um mundo multipolar
Marcos Antonio Macedo Cintra
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea 2011
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
É permitida a reprodução deste texto e dos da-dos nele contidos, desde que citada a fonte. Re-produções para fins comerciais são proibidas.
Traçando novos rumos : o Brasil em um mundo multipolar / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada .- Brasília : Ipea, 2011.92 p. : gráfs., tabs.
ISBN 978-85-7811-089-5
1.Desenvolvimento Econômico. 2. Crescimento Sustentável. 3. Política Social. 4. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
CDD 338.981
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar 5
Sumário
SumárioApresentaçãoAlfred Herrhausen Society e Policy Network 7
Wolfgang Nowak e Priya Shankar
ApresentaçãoInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada 9
Marcio Pochmann
Introdução: Reivindicando o Futuro do Brasil 13
Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shankar
Parte 1: Trajetórias ao crescimento sustentável
O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros 21
Nelson Barbosa
Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento 25
Glauco Arbix
O Brasil como potência energética 29
Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
Escapando à armadilha comercial 33
Yang Yao
Parte 2: Tensões internas e coesão social
Avançando o New Deal brasileiro 39
André Singer
A construção de uma política social estratégica 43
Jorge Abrahão de Castro
A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento 49
Daniel Vargas
À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização 55
Niraja Gopal Jayal
Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos 59
William Galston
Parte 3: Autonomia na era da interdependência
A ascensão cautelosa do Brasil 65
Riordan Roett
O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? 69
Marcel Fortuna Biato
O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade 73
Rubens Antonio Barbosa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar6
Sumário
O Brasil ocupando seu lugar no mundo 77
Giorgio Romano Schutte
Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil 83
André de Mello e Souza
Traçando rumos para a ascenção do Brasil 87
Charles A. Kupchan
7
Apresentação Alfred Herrhausen Society e Policy Network | Wolfgang Nowak e Priya Shankar
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Estamos vivendo um período de transição no qual
os centros que agrupam o poder global estão se
alterando e a antiga ordem está cedendo caminho.
Estamos apenas começando a perceber os contornos
nascentes da nova ordem que virá substituí-la.
A Foresight, uma iniciativa da Alfred Herrhausen
Society, o fórum internacional da Deutsche Bank,
em parceria com a Policy Network, está procurando
traçar o curso desta ordem emergente e dos seus
atores-chave. Após uma série de fóruns de alto
nível realizados na Rússia, nos Estados Unidos e na
Índia, a Conferência Foresight Brazil examinará as
prioridades e o papel do Brasil neste contexto global
em mudança. A nova presidência do Brasil está
herdando uma década de crescimento econômico
inclusivo e de corajoso ativismo internacional. Como
pode o Brasil ampliar este sucesso?
O cenário internacional, diante do novo
governo brasileiro, é um cenário de fluxo. Nossas
instituições internacionais, criadas e constituídas
no ambiente pós-1945, não são mais capazes de
oferecer soluções viáveis para os problemas atuais.
Instituições como o Fundo Monetário Internacional
(FMI), o Banco Mundial e o Conselho de Segurança
das Nações Unidas estão enfrentando uma crise de
legitimidade e, embora o G-20 tenha substituído o
G-8 como fórum econômico principal e conseguido
evitar o pior do desastre financeiro global, ele está
agora assediado por tensões. O Brasil tem sido um
elemento-chave na criação de grupos informais, tais
como o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e a Ibas
(Índia, Brasil e África do Sul), que desempenharam um
papel significativo na arregimentação das economias
emergentes. Estes fóruns, entretanto, têm pouco
poder e são normalmente vistos como espaços de
debate, incapazes de tomarem decisões concretas.
Tanto as novas quanto as antigas instituições são,
em grande parte, incapazes de prover soluções
efetivas aos prementes desafios que nos assediam.
Na verdade, muitas pessoas no Ocidente
culpam os países emergentes pelo fato de estes não
assumirem suficiente responsabilidade global. Esta
alegação, no entanto, desconhece a natureza e a
magnitude dos desafios que países como o Brasil,
a Índia, a China e a África do Sul estão enfrentando.
Ressalte-se que os maiores problemas destes países
estão “dentro da própria casa”. Entretanto, é certo
que em um mundo em que o global e o local estão
estreitamente entrelaçados, existem formas por
meio das quais a cooperação internacional poderia
ajudar a resolver estes problemas nacionais.
O grande desafio enfrentado pelo Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul, em grau variado
em cada um deles, é a pobreza e a desigualdade.
Embora estes países tenham experimentado um
crescimento econômico acelerado, os benefícios
da globalização ainda não lograram propagar-se
e beneficiar a todos. Nos países maiores e mais
diversificados, as tensões sociais e as diferenças
existentes se exacerbaram e novas tensões estão
surgindo. Todos estes países enfrentam o problema
de possíveis perturbações internas, sob a forma
de crimes, ou protestos, ou ainda movimentos de
secessão. Por isso, mecanismos de cooperação
para o crescimento econômico e o enfrentamento
da desigualdade e das desvantagens sociais
poderiam ser de considerável valia, se os países
do BRIC resolvessem criar um fórum de segurança
econômica, onde não só pudessem cooperar na
solução de problemas econômicos internacionais,
mas também compartilhar os avanços e iniciativas
bem-sucedidas como o Programa Bolsa Família
(PBF), para aprenderem uns com os outros. Esta
iniciativa poderia ser de considerável utilidade para
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Apresentação Alfred Herrhausen Society e Policy Network | Wolfgang Nowak e Priya Shankar
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se enfrentarem os desafios e problemas que estão
diante destes países.
Outro campo possível de cooperação seria
o do gerenciamento de catástrofes. Muitas das
economias emergentes enfrentam devastações e
sofrimentos causados pelos desastres naturais. Em
2010, os dilúvios no Rio de Janeiro, o tremor de
terra chinês, a seca russa e as inundações na Índia
trouxeram gigantescas e inesperadas dificuldades.
As catástrofes naturais sempre foram devastadoras,
mas sua frequência e escala têm aumentado com
as mudanças climáticas. Os países que sofrem mais
são aqueles cujo gerenciamento de catástrofes
é pouco eficiente. A criação, pelos BRIC, de um
fórum para o gerenciamento de catástrofes, no qual
compartilhassem suas experiências e colaborassem
nos esforços de socorro, seria um passo significativo
na solução de uma das piores ameaças de nossos dias.
Tanto o fórum para o gerenciamento de catástrofes
quanto o fórum de segurança econômica seriam
formas de acrescentar ação à retórica da cooperação.
O Brasil, com sua diversidade e seus fortes
vínculos internacionais, está posicionado de modo
único para fazer com que essas ideias possam sair
do papel. Seria uma forma de edificar algo, tirando
partido do ativismo internacional que permitiu a
emergência de fóruns como o BRIC e o IBAS. Nas
duas décadas passadas, o Brasil desenvolveu seu
próprio modelo socioeconômico e propôs novas
maneiras de pensar questões de equidade, justiça e
prosperidade. É exatamente aí que reside a força real
do Brasil; não apenas no poder econômico e político,
mas como poder pensante, um poder que gere
ideias e proponha soluções inovadoras. Tais ideias
e ações podem beneficiar não apenas os cidadãos
brasileiros, mas também outros cidadãos do mundo.
WOLFGANG NOWAK é diretor executivo da Alfred
Herrhausen Society
PRIYA SHANKAR é pesquisadora e administradora
de projetos sênior, Policy Network
9
Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Nos últimos anos, o Brasil logrou conciliar
crescimento econômico com distribuição de
renda, em um contexto de aprofundamento do
processo democrático no qual um operário e uma
mulher foram eleitos. Foram obtidos avanços na
modernização da atividade econômica, na promoção
de um desenvolvimento mais justo e ambientalmente
sustentável, na valorização da cidadania. Foram
criados mais de 10 milhões de empregos formais
entre 2003 e 2010, com significativo aumento da
massa de rendimento real e do salário mínimo. O
Estado brasileiro assumiu um papel estratégico no
adensamento da matriz de garantia de renda no país.
Os programas de transferência de renda às famílias
– Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada
e Previdência Rural – foram cruciais na promoção
de um ciclo de crescimento econômico sustentado,
baseado no fortalecimento do mercado interno,
promovendo a melhoria das condições de vida dos
segmentos mais pobres da sociedade brasileira.
Foram obtidos também avanços consideráveis
nas relações com o exterior. As reservas internacionais
ultrapassaram US$ 300 bilhões, as empresas e os
bancos brasileiros se internacionalizaram, o país
passou a fazer parte de diversos fóruns relevantes de
negociações internacionais, tais como o G-20 comercial
(regras para o comércio internacional), a cúpula do
G-20 financeiro (coordenação macroeconômica
global), o Comitê de Basileia de Supervisão Bancária e
o Conselho de Estabilidade Financeira (reestruturação
dos sistemas financeiros nacionais e internacionais), a
reforma da estrutura de voto e governança do Fundo
Monetário Internacional e do Banco Mundial.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
tem realizado um enorme esforço para apreender
as principais características desse “novo ciclo de
desenvolvimento brasileiro”, baseado na expansão
de seu mercado interno, na redução da pobreza e
da desigualdade de renda, no aprofundamento da
participação popular e na intensificação da inserção
internacional. Por meio do projeto Perspectivas
do desenvolvimento brasileiro, que articula
um conjunto amplo de estudos, denominados
Eixos do Desenvolvimento Brasileiro, procura-se
explicitar as várias dimensões da nova inserção
internacional brasileira;1 da macroeconomia para o
desenvolvimento;2 do fortalecimento do Estado, das
instituições e da democracia;3 da expansão e dos
limites da infraestrutura e da logística de base;4 da
dinâmica da estrutura produtivo-tecnológica e das
renitentes desigualdades regionais;5 das políticas
de proteção social e geração de oportunidades;6 e
da sustentabilidade ambiental.7 Dessa forma, o Ipea
oferece à sociedade brasileira diferentes estudos, de
1. ACIOLY, Luciana; CINTRA, Marcos Antonio M. (Orgs.). Inserção internacional brasileira soberana. Vol. 1 e vol. 2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, 2010.
2. VIANNA, Salvador T. Werneck; Bruno, Miguel A. P.; Modenesi, André de M. (Orgs.). Macroeconomia para o desenvolvimento: crescimento, estabilidade e
emprego. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
3. PINTO, Eduardo C.; CARDOSO JR. José Celso; LINHARES, Paulo de T.; CUNHA, Alexandre dos Santos; MEDEIROS, Bernardo Abreu de; AQUINO, Luseni
Maria C. de; SÁ E SILVA, Fabio de; LOPEZ, Felix Garcia; PIRES, Roberto Rocha C. (Orgs.). Fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia. Vol. 1,
vol. 2 e vol. 3. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
4. PEGO, Bolívar; CAMPOS NETO, Carlos A. da S.; MORAIS, Maria da Piedade; COSTA, Marco A. (Orgs.). Infraestrutura econômica, social e urbana no
Brasil. Vol. 1 e vol.2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
5. DE NEGRI, Fernanda; ALMEIDA, Mansueto; OLIVEIRA, Carlos Wagner de A.; MAGALHÃES, João Carlos R. (Orgs.). Estrutura produtiva e tecnológica
avançada e regionalmente integrada. Vol.1 e vol.2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
6. CASTRO, Jorge Abrahão de; FERREIRA, Helder R. S.; CAMPOS, André G.; RIBEIRO, José Aparecido C. (Orgs.). Proteção social, garantia de direitos e
geração de oportunidades. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
7. ALVAREZ, Albino R.; MOTA, José A. (Orgs.). Sustentabilidade ambiental. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann
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diversas perspectivas, a fim de fomentar o debate
em torno da configuração desta nova trajetória
de desenvolvimento e, sobretudo, das condições
para sua sustentabilidade e seu avanço. Vale dizer,
superar as características do subdesenvolvimento
que continuam presentes, tais como as enormes
desigualdades de renda, de riqueza, de gênero e de
raça, dificuldades de acesso à saúde e à educação,
os obstáculos à inovação tecnológica permanente
no parque produtivo, os limites do financiamento
de longo prazo, entre outros. Enfatiza-se que todos
estes documentos estão disponíveis na página
eletrônica do Ipea.
O Ipea defende que essas conquistas
precisam ser amplamente debatidas, compreendidas
e aperfeiçoadas, aproveitando-se o momento
inovador e criativo no campo das ideias, das políticas
públicas, dos partidos políticos, das universidades,
das associações de classes – empresários e
trabalhadores –, das empresas estatais, dos
empreendedores de todos os matizes, em todos
os cantos do país. Em termos da concepção e da
implementação da política pública, depreende-se
que o exercício contínuo, coletivo e cumulativo da
vigência democrática no Brasil aponta não somente
para processos de amadurecimento crescente das
instituições, mas também para grandes desafios que
ainda pairam sobre a sociedade brasileira.
Como salientou a presidenta Dilma Rousseff:
“os ganhos econômicos e sociais dos últimos anos
estão permitindo uma renovada confiança no futuro.
Enorme janela de oportunidade se abre para o Brasil.
Já não parece uma meta tão distante tornar-se um
país economicamente rico e socialmente justo. Mas
existem ainda gigantescos desafios pela frente.
E o principal, na sociedade moderna, é o desafio
da educação de qualidade, da democratização do
conhecimento e do desenvolvimento com respeito
ao meio ambiente. (...) Priorizar a educação implica
consolidar valores universais de democracia, de
liberdade e de tolerância, garantindo oportunidade
para todos. (...) Estamos fazendo as escolhas certas:
o Brasil combina a redução efetiva das desigualdades
sociais com sua inserção como uma potência
ambiental, econômica e cultural”.8
A inclusão plena da população – além do
emprego e da renda – depende da universalização e
qualificação de serviços essenciais, em particular as
áreas de saúde, educação e segurança. A presidenta
Dilma Rousseff, em seu discurso de posse, explicitou
ainda a luta obstinada de seu governo para erradicar
a pobreza extrema e criar oportunidade para todos.
“Não vou descansar enquanto houver brasileiros
sem alimentos na mesa, enquanto houver famílias no
desalento das ruas, enquanto houver crianças pobres
abandonadas à própria sorte. O congraçamento das
famílias se dá no alimento, na paz e na alegria. É este
o sonho que vou perseguir!”
O Ipea procura contribuir para este debate,
por meio da participação em um grupo para a
construção de uma definição objetiva de mensuração
da pobreza extrema, permitindo o acompanhamento
e monitoramento dos resultados das ações de
redução da quantidade de pobres no país nos
próximos anos. Sugere-se também distinguir a
pobreza nas áreas rural e urbana e, nesta, as regiões
metropolitanas e não metropolitanas. Sabe-se que
a taxa nacional de pobreza extrema caiu de 42,9%
em 1978 para 9,4% em 2008. Todavia, a pobreza
rural diminuiu de 72,5% para 22,9%. A pobreza
urbana caiu mais rapidamente, passando de 18,4%
em 1978 para 5,5% nas regiões metropolitanas e de
38,1% para 7,8% nas regiões não metropolitanas no
mesmo período.9 Assim, somente considerada a taxa
de pobreza extrema, para cada miserável existente
nos grandes centros metropolitanos, há quatro vezes
mais intensidade de sua manifestação no meio rural.
A superação da condição de pobreza extrema que
atinge um em cada dez brasileiros neste início da
segunda década do século XXI (rendimento familiar
per capita de até um quarto de salário mínimo
mensal) deve passar por maior aperfeiçoamento das
8. ROUSSEFF, Dilma. País do conhecimento, potência ambiental. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 de fevereiro de 2011, p. A3.
9. POCHMANN, Marcio. Pobreza e suas manifestações. Valor Econômico, São Paulo, 12 de janeiro de 2011.
11
Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
políticas públicas direcionadas, sobretudo, ao meio
rural. Sugere-se, portanto, que estas diferenciações
das estruturas econômicas e sociais são importantes
para uma reconfiguração das políticas públicas
de enfrentamento da pobreza extrema em todo
o território nacional. E isso precisa ser mais bem
debatido pela sociedade brasileira.
Finalmente, em decorrência de boas
práticas em termos de políticas públicas, seja na
sua dimensão interna, seja em termos de política
externa, a presença do Brasil no mundo vem se
consolidando. Nesse sentido, o país tem despertado
a atenção da comunidade internacional, seja pelas
grandes transformações promovidas no âmbito social
e econômico – decorrentes de uma opção por um
conjunto de políticas públicas inclusivas, integrantes
de um projeto de desenvolvimento desenhado pelo
governo brasileiro –, seja pela presença no cenário
político mundial marcado por uma diplomacia
ativa, com fito na promoção do desenvolvimento
global e ampliação da participação dos países
subdesenvolvidos no comércio internacional, na
formação bruta de capital fixo, na cooperação Sul-Sul
e nos principais fóruns internacionais.
Segundo o ministro das relações exteriores,
Antonio Patriota: “entre os pólos que configuram a nova
geopolítica deste início de século, o Brasil, com sua
tradição de paz e tolerância, se posiciona como um ator
que reúne características privilegiadas para a promoção
de modelos mais inclusivos de desenvolvimento e
para o fortalecimento da cooperação entre as nações
por intermédio de mecanismos de governança mais
representativos e legítimos”.10 Juntamente com a
Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério
das Relações Exteriores, o Ipea realizou o levantamento
da cooperação brasileira para o desenvolvimento
internacional entre 2005 e 2009, a qual atingiu
R$ 2,9 bilhões, dividida entre as modalidades de ajuda
humanitária, bolsas de estudo para estrangeiros,
cooperação técnica, científica e tecnológica e
contribuições para organizações internacionais.11 A
cooperação brasileira se destinou preponderantemente
para os países de menor desenvolvimento relativo na
América Latina e no Caribe, na África, no Oriente Médio
e na Ásia (Timor Leste).
Enfim, em um mundo marcado pela
crescente interdependência global, compreender
como as tendências internacionais afetam a
conjuntura local, e vice-versa, é uma tarefa essencial
para o êxito de qualquer país. Por isso a importância
e a necessidade do projeto Foresight desenvolvido
com a Policy Network e a Alfred Herrhausen Society.
É missão do Ipea “produzir, articular e
disseminar conhecimento para aperfeiçoar as
políticas públicas e contribuir para o planejamento
do desenvolvimento brasileiro”. Nesta esteira, é
crucial para o Ipea ajudar a perseguir e divulgar os
princípios e ideais do Estado nacional democrático,
do planejamento governamental participativo e
das próprias políticas públicas como veículos para
o desenvolvimento econômico e social, tanto no
âmbito local como no global. A parceria entre Ipea,
Policy Network e Alfred Herrhausen Society auxilia
neste processo, pois traz diversos pontos de vista de
diferentes países para o debate doméstico e divulga
práticas inovadoras internas em âmbito internacional.
MARCIO POCHMANN
Presidente do Ipea
10. PATRIOTA, Antonio A. Discurso na cerimônia de transmissão do cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores. Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 2 de janeiro de 2011.
11. IPEA; ABC; MRE; SAE/PR. Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional: 2005-2009. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;
Agência Brasileira de Cooperação; Ministério das Relações Exteriores; Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2010. Disponível
em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_cooperacao_brasileira.pdf>.
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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
No dia 1o de janeiro de 2011, por ocasião de seu
discurso inaugural como primeira mulher presidente
do Brasil, Dilma Rousseff reiterou suas promessas de
consolidar e de levar adiante as políticas da presidência
anterior, que haviam dado crescente otimismo e
autoconfiança ao Brasil. Durante muito tempo, os
observadores do país têm dito que “o Brasil é o país do
futuro e sempre continuará a sê-lo”. Durante a última
década, com o crescimento econômico socialmente
inclusivo e a crescente influência do país no cenário
internacional, este futuro parece ter chegado. Há um
sentimento cada vez maior na população de que é
chegado agora o momento do Brasil, e que ele próprio
pode modelar seu destino.
Existem boas razões para que o país se sinta
confiante. O Brasil superou com sucesso a recente
crise econômica global, e dezenas de milhões de
brasileiros chegaram à classe média nos últimos anos.
Rico em bens primários e dotado de uma sólida base
industrial, o Brasil combina uma variedade de atributos
que prometem ser de grande auxílio para o país em um
contexto internacional cada vez mais complexo. Isto
inclui um sistema democrático liberal e uma sociedade
vibrante e multicultural, com fortes afinidades com a
Europa, a África e a Ásia – uma identidade nacional
multifacetada que proporciona vantagens globais
singulares ao Brasil, tanto no Norte quanto no Sul.
Restam, contudo, desafios significativos a
enfrentar, inclusive em relação à educação, saúde,
criminalidade e desigualdade. Questões se acumulam
com relação ao futuro caminho a ser seguido pelo
Brasil em um mundo incerto e submetido a constantes
e rápidas mudanças. A crise financeira global leva
a questionar o modelo americano de capitalismo
autodirigido, o modelo social europeu de Estado de
bem-estar social paternalista e até mesmo o modelo
do leste-asiático de desenvolvimento baseado nas
exportações. Não há respostas claras ou “receitas”
quanto ao futuro. Na verdade, muitos países estão
percebendo a necessidade de repensar seu futuro ou
contestar o saber e as suposições convencionais que
têm orientado suas escolhas. O Brasil, com seu amplo
leque de experiências e experimentos, está posicionado
de forma única para tomar parte neste processo.
O país conseguiu atravessar pacificamente
e com sucesso a transição para um regime
democrático, uma economia estável e uma
sociedade crescentemente de classe média. Estas
transições assentaram-se em políticas sociais,
econômicas e internacionais graduais e híbridas, de
difícil categorização. Como as diversas contribuições
desta coletânea explicitam, a recusa em se deixar
engessar por um paradigma específico redundou em
realizações significativas por parte do Brasil, tanto
internamente quanto no exterior. Todavia, para que
o Brasil possa prosseguir nestas realizações, terá
de complementar suas políticas específicas – que
são criativas, mas às vezes assistemáticas – com
abordagens mais arrojadas e mais estratégicas.
Seu sucesso dependerá, em última análise,
da capacidade de liderança brasileira em coordenar
suas políticas no sentido de um conjunto claro de
objetivos. Este conjunto de trabalhos explora as
perspectivas de sucesso do Brasil nesse sentido,
no contexto de três desafios distintos, mas inter-
relacionados: prosseguir com um crescimento
econômico equilibrado; administrar as tensões
internas e assegurar a coesão social; e buscar uma
maior autonomia em um mundo interdependente.
Cada um destes desafios é analisado em
uma seção separada da coletânea por autores
selecionados, do Brasil e diversos países. Estes
artigos fornecem percepções valiosas sobre as
especificidades nacionais do Brasil, e salientam
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka
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também paralelos e lições entre o Brasil e outras
potências importantes.
Trajetórias para um crescimento sustentávelA crise financeira atual parece haver desfechado um
forte golpe contra o modelo de crescimento neoliberal
americano, que incentiva níveis ostensivos de consumo
e alto endividamento. As estratégias de crescimento
do Leste Asiático, baseadas no crescimento liderado
pelas exportações, elevada poupança e baixos níveis de
consumo interno, estão também sob pressão. Embora
a economia global esteja em processo de recuperação,
ainda não há definição clara sobre os caminhos que
podem levar ao crescimento econômico sustentável.
No Brasil, o ex-presidente da República Luiz
Inácio Lula da Silva continuou as políticas de seu
predecessor, Fernando Henrique Cardoso, orientadas
para o mercado, inclusive as políticas de disciplina
fiscal, de metas de inflação e de taxa de câmbio
flutuante, para manter a estabilidade macroeconômica.
Estas políticas, entretanto, foram matizadas com
uma abordagem “desenvolvimentista”, orientada
para políticas sociais e com intervenções estratégicas
na economia por meio de uma série de políticas de
crédito e de expansão da infraestrutura econômica
e social. Isto permitiu a resiliência da economia
brasileira diante da crise financeira. Entretanto, ainda
permanecem riscos e dilemas significativos.
Na esfera macroeconômica, persiste o
dilema de manter o gasto público em consistência
com a estabilidade fiscal. Como Nelson Barbosa
argumenta, isto poderá ser possível trazendo-se mais
atividade econômica ao setor formal, com resultantes
benefícios para a receita pública. Existem também
preocupações relativamente à forma de incentivar
o crescimento e os investimentos de uma maneira
que não acelere a inflação. A taxa de juros, que se
encontra entre as maiores do mundo, é outra questão
bastante controvertida no Brasil. Muitos defendem
uma taxa de juros alta para manter baixos os níveis
de inflação, enquanto outros argumentam em favor
de uma redução desta taxa para facilitar a expansão
do crédito para os investimentos produtivos e em
infraestrutura.
Muitas pessoas têm uma visão otimista com
relação à possibilidade de superação desses dilemas
pelo Brasil, por meio da exploração de seus recursos
naturais. As recentes descobertas de petróleo e
gás estão presenteando o país com uma valiosa
oportunidade: o Brasil poderá utilizar estes recursos
energéticos para seu desenvolvimento industrial,
como Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
defendem. A rica base de produtos primários
brasileira é sem dúvida uma grande vantagem.
Mas existem riscos associados à dependência
excessiva em relação a estes produtos. Como Yang
Yao salienta, existe uma maldição, a “maldição
dos recursos naturais”, que pende sobre os países
ricos em commodities: a melhoria das condições
de comércio na exportação de bens primários
acaba reduzindo a competitividade destes países na
produção manufatureira.
Na verdade, há um debate em curso no
Brasil sobre o melhor caminho para o crescimento
econômico: enfatizar a produção de bens primários,
ou incentivar a produção de bens manufaturados.
Contudo, uma escolha tão rígida pode não ser
necessária, uma vez que há certamente sinergias a
explorar entre os dois setores se o governo brasileiro
usar uma abordagem estratégica nas suas escolhas,
como a utilização dos ganhos com a exportação de
bens primários para financiar a diversificação e o
desenvolvimento do restante da economia, criando
assim empregos de qualidade no país. Além disso,
como Glauco Arbix sustenta, a inovação poderá
ser bastante importante para ajudar a acelerar
o crescimento econômico em cada um destes
setores. Mas, para que a economia brasileira consiga
aprimorar seu crescimento e deslanchar a inovação,
será necessário implementar uma série de mudanças
estruturais complexas e difíceis, inclusive reformas
fiscais e financeiras, para facilitar o financiamento e o
crescimento de pequenas e médias empresas, além
de grandes investimentos em infraestrutura.
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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Tensões internas e coesão socialAs mudanças associadas à globalização trouxeram
certa tensão à estrutura social dos países, com um
aumento do individualismo nas áreas metropolitanas,
e ao mesmo tempo a exposição de profundas divisões
entre regiões, entre áreas rurais e urbanas, entre
grupos socioeconômicos e étnicos. Como explicam
William Galston e Niraja Gopal em suas contribuições,
isto ocorre tanto nas nações desenvolvidas e
industrializadas, como os Estados Unidos, quanto
nos países em desenvolvimento, onde enormes
disparidades de renda continuam a se aprofundar.
Neste contexto, a recente experiência
brasileira pode ser considerada uma história de
sucesso. Mediante uma combinação de políticas
macroeconômicas ortodoxas e uma inédita expansão
de gastos sociais, o Brasil obteve extraordinárias
reduções na desigualdade de renda e nas taxas de
pobreza extrema. Conforme assinala Jorge Abrahão
neste documento, as híbridas políticas econômicas
e sociais do governo Lula transformaram os gastos
sociais em um elemento primordial para a estratégia
de crescimento do país, criando novos mercados de
consumo, em vez de apenas ajudar os mais carentes.
Apesar dos atritos que devem marcar o ciclo político,
descrito neste documento por André Singer, o
consenso interpartidário em torno de programas
como o Bolsa Família sugere uma continuidade a
longo prazo desta política de transferência de renda.
Entretanto, ainda perduram insistentes
tensões e desigualdades sociais e regionais. Embora
o crescimento comece a se estender a outras regiões,
o estado de São Paulo continua a ser responsável por
um terço do produto interno bruto (PIB) do país, ao
passo que as diferenças de renda são bem maiores
que em outras economias emergentes, como Índia e
China. O país enfrenta outros dilemas no campo da
segurança pública e da desigualdade racial.
Se o Brasil quiser consolidar suas conquistas
sociais, precisará complementar seu uso das
transferências de renda com políticas destinadas
a reforçar os serviços públicos universais, o que,
entretanto, traz desafios consideráveis. Não há acordo
quanto ao tamanho e à extensão das intervenções
do governo, ou quanto aos tributos que proveriam os
recursos necessários para novos gastos públicos. Além
disso, mesmo que se possa obter os recursos, não está
claro que as políticas de redistribuição serão suficientes
para corrigir as profundas desigualdades do país.
Como preconiza Daniel Vargas em sua contribuição
para este documento, se o Brasil pretende formar
uma sociedade realmente coesa, deverá introduzir
mudanças mais fundamentais em seu modelo nacional.
Em busca de autonomia em uma era de interdependênciaA capacidade de criar normas internacionais constitui
um pré-requisito para o êxito do desenvolvimento
nacional. As demandas por reformas no campo
da governança global trazidas pelas economias
emergentes no decurso da última década deveriam
ser consideradas sob este prisma. No Brasil, muitos
clamam por maior autonomia nas negociações
internacionais. Sob a bandeira da inserção internacional
soberana está a crença cada vez mais forte de que,
como grande nação, o Brasil deveria ser capaz de
participar das questões internacionais com base em
suas próprias convicções estratégicas nacionais.
O Brasil liderou os clamores por reformas
nas estruturas de voto das instituições de Bretton
Woods, e teve uma postura firme durante as
negociações no âmbito da Organização Mundial
do Comércio (OMC). Defendeu uma ligação mais
estreita com os países do Sul do planeta, em especial
com outras nações da América Latina e da África.
Na verdade, como assinala Rubens Barbosa em sua
contribuição, a priorização das relações Sul-Sul deu
ao Brasil um novo “poder brando” na diplomacia,
que o país soube usar com eficiência para promover
seus interesses em vários fóruns internacionais.
Mas, ainda assim, conforme observa Riordan
Roett, o Brasil não adotou uma postura radicalmente
revisionista. Buscou as reformas com conciliação,
procurando, sempre que possível, chegar a um
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka
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consenso com todas as grandes potências, em vez
de romper unilateralmente o status quo. Nos últimos
anos, o Brasil manteve relações de amizade com
os Estados Unidos, pagou a sua dívida com o Fundo
Monetário Internacional e teve uma atitude cooperativa
em suas participações nas Nações Unidas. Até hoje,
esta abordagem conciliadora tem trazido benefícios
para o país. No entanto, para que possa aumentar sua
capacidade de institucionalizar mudanças, o país precisa
adotar uma abordagem mais audaciosa e estratégica.
O país se defrontará, daqui por diante, com
escolhas difíceis, como a forma de equilibrar suas
aspirações regionais e globais. Até o momento, os
esforços do Brasil com vistas à integração regional
foram relativamente bem-sucedidos, porém existem
situações de tensão, visto que a presença mais
marcante do Brasil no campo internacional suscita
certa preocupação entre seus vizinhos. Como
propõe Marcel Biato no seu trabalho, a tarefa que
o Brasil tem diante de si consiste em continuar a
aprofundar a integração regional para além da ênfase
no comércio. Isto ajudará a criar a frente regional
unida que o Brasil precisa para que possa exercer
maior impacto em relação ao resto do mundo.
Além da integração regional, Giorgio Romano
Schutte, em seu trabalho, destaca o aprofundamento
das relações com os países africanos (e, em menor
medida, com os países árabes), em suas três
dimensões: política e diplomática, cooperação
técnica para o desenvolvimento e expansão dos
negócios (comércio e investimento). Por outro lado,
salienta que a relação com a China pode se tornar
cada vez mais difícil e complexa. Simultaneamente,
um parceiro do Brasil no combate às assimetrias
internacionais persistente e potencial para ser “fonte
de novas assimetrias que não necessariamente
coincidem com os interesses do povo brasileiro”. Na
mesma direção, mas operando em uma esfera mais
restrita, o trabalho de André de Mello e Souza, discute
os avanços do Programa Nacional de HIV/AIDS,
eleito o melhor entre os países em desenvolvimento,
segundo as Nações Unidas, e utilizado como modelo
para 31 países, assim como para a política global de
HIV/AIDS adotada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS). No entanto, o tratamento da AIDS no Brasil
tem enfretado dificuldades crescentes diante dos
elevados custos dos medicamentos antirretrovirais
patenteados e pela falta de capacitação tecnológica
da indústria farmacêutica doméstica na produção
desses medicamentos e, em especial, dos seus
princípios ativos.
A fim de implementar tais metas, o Brasil
também precisará trabalhar para aumentar a sua
frente interna, como indica Charles Kupchan. Isto
irá requerer maiores investimentos em capital
humano e uma infraestrutura institucional que
oriente e sustente esta busca por maior autonomia e
“soberania na sua inserção internacional”.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolarGraças ao legado internacional e doméstico que
herdou, o Brasil tem diante de si um leque de
oportunidades inéditas. No âmbito internacional,
à medida que o equilíbrio do poder se desloca,
abre-se mais espaço de manobras para o Brasil
e outras nações emergentes. Livre dos conflitos
e inimizades geopolíticas que afligem outros países
emergentes, o Brasil pode tirar máximo proveito
deste panorama internacional em mudança.
Com o declínio da hegemonia do modelo americano,
existe uma pluralidade de escolhas quanto ao
caminho que o Brasil e outros países podem trilhar.
No âmbito interno, o Brasil atingiu uma estabilização
macroeconômica e uma ampla redução da pobreza.
Suas descobertas de petróleo e gás, assim como
seus vastos recursos agrícolas e minerais, oferecem
um ambiente de abundância e “fartura”, ao contrário
das preocupações com relação à escassez que
afligem muitas outras economias emergentes.
Se o Brasil pretende ampliar e consolidar
seus êxitos, e tirar o máximo proveito dessas
vastas oportunidades, precisará complementar a
sua inovadora combinação de políticas com uma
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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
abordagem mais estratégica e coordenada. Como
indicam os artigos do presente documento, existem
muitas vezes ligações entre diferentes áreas
das políticas que vão da exploração do petróleo
à educação. Manter em mente estas conexões
e assegurar que diferentes medidas funcionem
quando em conjunto, são atitudes fundamentais para
os próximos anos. Em um mundo interdependente
e em rápida transformação, as decisões tomadas
pelo Brasil também têm importantes consequências
para outras partes do mundo. Assim, existe um
interesse mútuo para que os países aprendam uns
com os outros, processo que a iniciativa Foresight e
a presente publicação pretendem facilitar.
ALFREDO CABRAL é pesquisador de políticas
e gestor de planejamento estratégico da Policy
Network.
ELENA JURADO é diretora de pesquisa da Policy
Network.
PRIYA SHANKAR é pesquisadora e administradora
de projetos sênior da Policy Network.
Parte 1:Trajetórias ao crescimento sustentável
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O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Nos últimos oito anos, o Brasil iniciou um novo
ciclo de desenvolvimento baseado na expansão de
seu mercado interno e na redução da pobreza e da
desigualdade de renda. O ponto de partida deste
modelo foi uma expansão exógena impulsionada
por políticas na rede de segurança social do país,
por meio de transferências de renda aos pobres e
de aumentos reais do salário mínimo. Este estímulo
inicial por parte do governo federal originou um
círculo virtuoso de crescimento da renda e do
emprego, no qual o aumento da renda do trabalhador
e do consumo levou a mais investimentos, o que,
por sua vez, elevou a produtividade do trabalho
e permitiu nova elevação dos salários reais sem
pressões inflacionárias excessivas. O círculo virtuoso
entre o salário real e a produtividade do trabalho foi
também ajudado por uma série de programas de
governo orientados para a inclusão social, mediante
a expansão do crédito e dos investimentos públicos
e privados em habitação e infraestrutura.
Novo modelo brasileiroO novo modelo brasileiro beneficiou-se também
da crescente demanda mundial de bens primários
(commodities) durante os últimos oito anos. De
um lado, o aumento das exportações brasileiras
de produtos primários permitiu um crescimento
substancial nas importações brasileiras de capital
e de bens intermediários, com redução moderada
do saldo da conta corrente do país em termos de
produto interno bruto (PIB). De outro lado, o aumento
do influxo de capital estrangeiro permitiu que o
governo brasileiro ampliasse substancialmente suas
reservas, reduzindo, dessa forma, a vulnerabilidade
do país aos choques financeiros internacionais. Em
compensação, o boom de bens primários fortaleceu
a moeda brasileira, o que, a princípio, ajudou o
Branco Central a combater a inflação e a reduzir os
juros reais, mas, posteriormente, iniciou a erosão da
competitividade da indústria brasileira.
Um fator-chave para o sucesso brasileiro
nos últimos oito anos foi a abordagem pragmática
e responsiva à política macroeconômica. Quanto à
política fiscal, todo o aumento da receita federal em
termos de PIB foi canalizado para a expansão das
transferências de renda e dos investimentos públicos.
Isto permitiu que a tributação líquida do setor privado
se mantivesse estável. No que tange à política
monetária, o governo adotou metas inflacionárias
realistas para lidar com os choques de preço
provenientes do exterior e das mudanças estruturais
na economia brasileira. Esta política não apenas
trouxe uma aceleração do crescimento e a redução
da inflação, mas permitiu também encolher a dívida
pública líquida em termos de PIB e de juros reais.
Em resumo, a política macroeconômica brasileira foi
marcada pela responsabilidade financeira e social.
O sucesso obtido pelo modelo brasileiro
no passado recente e as mudanças nas condições
internacionais decorrentes da crise de 2008-2009
criaram novos desafios para a política econômica
brasileira. Na esfera interna, há uma crescente
demanda por expansão e aprimoramento dos
serviços públicos universais, especialmente nas
áreas da educação, saúde e segurança pública.
Faz-se também necessário consolidar a rede de
segurança social que se expandiu durante os últimos
oito anos, e enfrentar as inevitáveis pressões do
envelhecimento da população sobre a seguridade
social. Como todas estas demandas devem ser
atendidas sem comprometer a estabilidade social
e monetária, o aumento das despesas sociais
dependerá de um crescimento suplementar da
receita do governo em termos de PIB e também de
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa
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uma redução do índice de crescimento dos gastos
públicos não essenciais.
No campo internacional, a valorização do
real e as expectativas de uma nova valorização
provocada pelas exportações de petróleo em
futuro próximo estão pressionando cada vez mais
o governo brasileiro a melhorar a competitividade
internacional do país via programas estruturais ou
“reformas”. A lista dos “vilões” contumazes inclui
a reforma tributária, o desenvolvimento financeiro e
uma melhor infraestrutura, além de um papel mais
ativo do Estado no planejamento e na coordenação
de grandes projetos industriais, estimulando, ao
mesmo tempo, a pesquisa, o desenvolvimento e
a inovação.
Consistência macroeconômicaO novo modelo brasileiro combina crescimento
econômico com redução da desigualdade
econômica. A meta para o período 2011-2014 é
atingir uma taxa de crescimento anual do PIB situada
entre 5% e 6%, de maneira que a produtividade do
trabalho e os salários reais continuem a crescer,
a classe média siga expandindo-se, a inflação
permaneça nas metas fixadas e as finanças públicas
continuem a se aprimorar. Este programa contém,
entretanto, dois grandes desafios. O primeiro é
administrar o crescimento da despesa pública de
forma consistente com a estabilidade fiscal e, ao
mesmo tempo, consolidar a rede de segurança
social recém-construída e atender às demandas
sociais. O segundo é administrar o crescimento
dos investimentos e do consumo de forma que o
crescimento se sustente sem acelerar a inflação,
evitando-se uma elevação substancial do déficit em
conta corrente do país.
Examine-se, em primeiro lugar, o desafio
fiscal. De uma forma geral, a receita tributária do
governo brasileiro tem crescido um pouco mais
rapidamente que o PIB nos últimos anos, devido
ao crescimento da renda per capita e à redução da
parcela de mercado informal na economia. Como
ainda há ganhos por explorar no mercado, trazendo
mais pessoas e empresas para a economia
formal, pode-se ter razoáveis expectativas de
que a receita do governo crescerá nos próximos
anos em ritmo ligeiramente maior que o PIB. Por
sua vez, este crescimento esperado na receita
significa que há espaço para cortes de impostos,
mesmo que os gastos sociais per capita também
cresçam. O ponto nodal da solução vem do
crescimento esperado de 0,7% da população
brasileira durante a próxima década.1 Desse
modo, se as despesas sociais crescerem 5% em
termos reais a cada ano, e o PIB crescer 5,5%,
não haverá pressão adicional sobre o orçamento
dos programas sociais do governo, mas a despesa
social per capita ainda assim aumentará 52% em
10 anos. O desafio maior para a despesa pública
é, portanto, mais político que econômico, ou seja,
refere-se a administrar a expansão dos programas
sociais de uma maneira que seja consistente
tanto com a estabilidade fiscal quanto com as
expectativas individuais.
Passando para o balanço macroeconômico,
verifica-se que as simulações do governo indicam
que um crescimento médio do PIB anual da ordem de
5,5% exigiria um aumento da taxa de investimento
no Brasil de 19% em 2010 para algo em torno de
22% e 23% em 2014, a fim de se manter a inflação
estável. O resultado exigiria uma taxa média de
crescimento de 10% em investimentos, o que por
sua vez significa que o consumo teria de crescer
mais lentamente que o PIB em futuro próximo, para
que o Brasil evitasse um aumento excessivo em seu
saldo em conta corrente. Mas será que a taxa de
crescimento necessária no consumo é socialmente
aceitável? Mais uma vez, a questão parece ter
conotação mais política que econômica, visto que
mesmo uma expansão relativamente mais lenta do
consumo aumentaria substancialmente o consumo
per capita no ano seguinte.
1. As estimativas do mercado sobre a elasticidade PIB da receita do governo variam de 1,1 a 1,3.
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O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Para ilustrar esse ponto, um simples
exercício macroeconômico mostra que o Brasil
pode atingir uma taxa de investimento de 22,5% até
2014, com um saldo comercial relativamente estável
em bens e serviços em termos do PIB, desde que
o país mantenha uma taxa de crescimento anual
média de 5,5% do PIB, de 10% nos investimentos
e de 4,5% no consumo.2 Por sua vez, o crescimento
relativamente lento do consumo total é compatível
com uma expansão média de 5% do consumo privado
e 3% do consumo do governo.3 Considerando-se
o esperado crescimento da população brasileira,
uma taxa de crescimento anual médio de 5% no
consumo significa um aumento acumulado de 18%
do consumo per capita em apenas quatro anos.
Desenvolvimento financeiroAlém da compatibilidade financeira, a expansão
do índice de investimento no Brasil depende do
desenvolvimento financeiro. Nos últimos oito
anos, a maior parte dos recursos domésticos para
investimentos foi fornecida pelo governo federal,
por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). Uma vez que
esta fonte financeira tem um alto custo fiscal,
devido à elevada taxa de juros reais do Brasil,
é necessário desenvolver fontes privadas de
financiamento de longo prazo, em moeda corrente
do país, e concomitantemente reduzir as taxas
de juros da economia. Este desafio requer muitas
ações paralelas.
Em primeiro lugar, é preciso manter a
estabilidade fiscal e monetária com metas inflacionárias
realistas, para continuar a reduzir-se a taxa de juros
real. O evidente trade-off, aqui, é que uma rápida
redução nas metas inflacionárias significa uma lenta
redução nas taxas de juros reais, e vice-versa.
Em segundo lugar, é necessário mudar a
regulamentação financeira para adaptar a economia
a um contexto de inflação baixa e taxa de juros
baixa, principalmente com a redução da indexação
da taxa de juros da dívida pública e a eliminação
dos pisos institucionais para as taxas de juros de
mercado. Neste ponto, o maior trade-off está entre
os ganhos de longo prazo com a mudança do prazo e
da estrutura de indexação da dívida pública, e o custo
a curto prazo dessa medida.
Em terceiro lugar, requer-se melhorar a
supervisão e a regulamentação financeira, para
transformar os financiamentos de longo prazo em
investimentos de capital fixo e do setor imobiliário, e
prevenir bolhas especulativas. A escolha, neste caso,
está entre uma expansão mais rápida do crédito e
uma supervisão mais forte.
Commodities e desenvolvimento produtivoO Brasil tem sido uma economia forte em exportação
de produtos primários durante toda a sua história.
Os abundantes recursos naturais do país trazem-lhe
vantagens na produção de bens primários agrícolas
e minerais, ao passo que as recém-descobertas
reservas de petróleo indicam que as exportações
de bens primários podem tornar-se ainda mais
relevantes em futuro próximo. Apesar do seu
histórico em termos de produtos primários, o Brasil
também tem conseguido desenvolver uma estrutura
industrial ampla e diversificada desde meados do
século XX.
As principais razões para esse
desenvolvimento industrial foram um conjunto de
políticas e programas nacionalistas de governo,
que remontam aos anos 1950, e o que é mais
importante, o porte do mercado interno brasileiro.
Em contraste com outras economias exportadoras
de produtos primários, o tamanho e a escala do
mercado interno brasileiro tornaram possível que o
país construísse vantagens competitivas por meio
de programas temporários de desenvolvimento
industrial ou produtivo. A chave do sucesso nesta
área está em criar um conjunto de instrumentos
2. A situação inicial é de uma taxa de investimento de 19% do PIB e um déficit comercial em bens e serviços da ordem de 1% do PIB em 2010.
3. Examinando-se esses números sob uma perspectiva histórica, a taxa média de crescimento do consumo privado e do governo de 2003 a 2010 foi de
3,6% e de 4,3%, respectivamente.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa
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de políticas transparentes, capazes de estimular
o investimento, a pesquisa e o desenvolvimento,
evitando-se a criação ou a proteção permanente de
uma produção ineficiente. De acordo com a análise
de Rodrik (2010) sobre política industrial, é mais
importante abandonar os fatores perdedores quando
a situação se torna mais clara que escolher fatores
ganhadores quando ainda não se sabe quais seriam.4
No caso específico do Brasil, o desafio para
os próximos anos está em usar os extraordinários
recursos provenientes da produção de produtos
primários, principalmente o petróleo, para financiar
e estimular o desenvolvimento e a diversificação
do conjunto da economia. De maneira geral, as
atividades a serem priorizadas incluem exportações,
investimentos e inovação, que têm se beneficiado
dos incentivos gerais financeiros e dos impostos,
nos últimos oito anos. O novo foco da agenda do
governo incluiria a produção de bens e serviços de
mão de obra intensiva, que utiliza também mão de
obra especializada. No curto prazo, uma importante
ferramenta governamental para estimular estas
atividades seria a redução do custo relativo da mão
de obra, mediante um corte nos impostos da folha
de pagamento. O cerne dos futuros incentivos
do governo deveria ser a moldagem do conteúdo
da produção interna, juntamente com parceiros
externos, em torno de metas de desempenho, para
acelerar a recuperação da indústria.
NELSON BARBOSA é secretário-executivo do
Ministério da Fazenda
4. RODRIK, D. The return of industrial policy. 2010. Disponível em: <http://www.project-syndicate.org/commentary/rodrik42/English>.
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Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil encontra-se em uma etapa crucial do seu
desenvolvimento econômico. Atravessou a crise
financeira mundial com mais galhardia do que a maioria
dos países, e apresentou altas taxas de crescimento
econômico durante a última década. Ainda assim,
o país também enfrenta sérios desafios, como a
valorização do real e a competição com produtos
importados mais baratos, o que põe em risco seu
setor industrial. Em uma economia interdependente
e globalizada, a inovação tem um importante papel
a desempenhar, pois estimula o crescimento e
ajuda as economias nacionais a encontrarem seu
próprio nicho. O Brasil está experimentando um
novo impulso em termos de inovação, proveniente
do reconhecimento de que é preciso diversificar a
economia, ampliar as exportações e aumentar a
produtividade e a competitividade. Trata-se também
de uma área na qual, embora o Brasil tenha obtido
importantes progressos nos últimos anos, ainda há
um longo caminho a percorrer.
O ecossistema da inovaçãoA discussão em torno do sentido e do potencial das
práticas inovadoras ainda é afetada por uma confusão
conceitual, e torna-se importante estabelecer a
diferença entre a inovação e a invenção. Embora a
invenção e a inovação façam parte do mesmo espaço
contínuo, a inovação está ligada à comercialização
inicial de uma ideia ou projeto. Desta forma, o
campo da inovação é constituído pelas empresas
capazes de estabelecer uma sintonia entre suas
atividades de produção e de marketing, ao passo que
a invenção possui uma orientação diferente, e se dá
nos laboratórios, nas universidades e nos centros de
pesquisa. A transformação de invenção em inovação
nem sempre se faz de forma rápida, e requer
diferentes tipos de conhecimentos, capacidades,
aptidões e recursos.
Muitas vezes, é o início da competição
entre empresas, geralmente baseada em pequenas
mudanças, acréscimos ou cópias, que permite a
evolução de uma invenção à condição de produto
pronto para o mercado. Na verdade, a inovação é o
resultado de longos processos de aprimoramento e
alterações de projeto, que podem ou não envolver
tecnologia, pesquisa básica ou pesquisa aplicada.
Todos os processos, descobertas, novos produtos e
serviços, de alta ou baixa tecnologia, que acrescentem
valor econômico, são inovações. Mecanismos sutis,
aparentemente modestos e sem importância, são
muitas vezes os verdadeiros motores da economia,
superando os grandes avanços alcançados na área
da alta tecnologia.
Não é fácil, todavia, visualizarmos o
processo de inovação em toda a sua amplitude.
A inovação muitas vezes ultrapassa o horizonte
dos negócios, e se desenvolve por meio de uma
ampla rede de pessoas. Na verdade, seu aspecto
comercial é apenas uma de suas muitas facetas. A
teia que se forma envolve empresas, empresários,
pesquisadores, distribuidoras, instituições
acadêmicas e consumidores, e cria um ecossistema
de inovação altamente diversificado e complexo.
Não existe uma receita pronta para se orientar neste
ambiente que, apesar dos recentes avanços, ainda
se assemelha a um labirinto.
O legado do Brasil e os desenvolvimentos recentesO Brasil é um país que se industrializou tardiamente,
e o processo de desenvolvimento científico e
tecnológico só se iniciou na década de 1970, baseado
primordialmente em universidades e instituições
de pesquisa. É importante, também, lembrar que o
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix
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país atravessou um longo período de instabilidade
macroeconômica durante as décadas seguintes,
o que influenciou bastante a agenda do governo, o
mundo acadêmico e as empresas. Em decorrência
disto, a economia da inovação não recebeu a
prioridade que deveria ter tido durante a década de
1980 e no início da década de 1990.
A situação começou a mudar quando a
economia brasileira se estabilizou, e respondeu à
dinâmica da globalização. Em fins da década de 1990
foram criados fundos setoriais visando disponibilizar
recursos para pesquisas e inovações em diversos
setores da indústria. Em 2004, o governo federal
anunciou a Política Industrial, Tecnológica e de
Comércio Exterior (PITCE), estruturada em torno
da inovação. A Lei do Bem (Lei no 11.196, de
21 de novembro de 2005) e a Lei de Inovação
(Lei no 10.973, de 2 de abril de 2004), que foram
adotadas na esteira desta política, desempenharam
importante função na formação de um ambiente
propício à inovação.
Atualmente, há uma variedade de recursos
à disposição das empresas brasileiras que buscam a
inovação de seus produtos e processos. Os trâmites
burocráticos foram simplificados, e foram criados
incentivos fiscais para pesquisa e desenvolvimento
(P&D). Existe um novo sistema de subsídios a
projetos de desenvolvimento tecnológico, e também
subsídios para a contratação de pesquisadores nas
empresas. A estrutura legal incentiva uma interação
maior entre as universidades e as empresas, e foram
criados programas de financiamento de capital de
risco voltado à inovação.
Realizações e desafiosAs políticas brasileiras de P&D viabilizaram os
sistemas que suportam a indústria aeroespacial
na Embraer, o refino e a extração da Petrobras,
o treinamento agrícola da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e, mais
recentemente, o programa de satélites China-
Brasil. Na verdade, os gastos com pesquisa
e desenvolvimento se avolumaram, e hoje se
encontram na faixa de 1% do produto interno bruto
(PIB). O Brasil tem também um grande mercado
consumidor, e um setor industrial relativamente
amplo. Este setor reune 90 mil firmas industriais,
que empregam mais de 6 milhões de pessoas e
investem cerca de 3 bilhões por ano em P&D.
Uma parcela significativa da comunidade
empresarial está hoje consciente da importância
e da necessidade da inovação. De fato, estudos
mostram o surgimento de um novo grupo de
empresas que crescem a um ritmo mais rápido
do que as demais empresas brasileiras. Este novo
grupo de empresas é mais produtivo, investe
mais em P&D, em treinamento e em formação
de capacidade, paga melhores salários a seus
empregados, e obtém preços especiais no mercado
internacional.1 Muitas destas empresas começaram
a globalizar suas atividades, investindo em outros
países e criando sistemas de produção e serviços no
exterior. Formam um seleto grupo de multinacionais
brasileiras competitivas.
Entretanto, persistem desafios significativos,
e os indicadores de inovação tecnológica no Brasil
ainda estão muito abaixo dos indicadores de países
desenvolvidos. Além disso, a China e a Índia estão
caminhando a passos mais rápidos e mais largos no
campo da inovação. Na realidade, a China saltou para
o terceiro lugar na classificação de investimentos em
P&D, com uma taxa de crescimento de 18% durante
os últimos anos.2
O grande desafio está em incentivar uma
inovação mais significativa no setor privado. No
Brasil, apenas 30% das empresas são inovadoras,
sendo de 50% o índice nos países da União
Europeia. As empresas brasileiras investem cerca
1. BAHIA, L.; ARBACHE, J. S. Diferenciação salarial segundo critério de desempenho das firmas indústrias brasileiras. In: DE NEGRI, J. A.; SALERNO, M. S.
Inovações padrões tecnológicos e desempenho das firmas industriais brasileiras. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2005.
2. RODRIGUEZ, A.; DAHLMANN, C.; SALMI, J. Knowledge and innovation for competitiveness in Brazil. Washington D.C.: Banco Mundial/ MOBIT, 2008.
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Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
de 0,6% do faturamento em P&D, o que é pouco em
comparação com os 2,7% da Alemanha e os 2,5% da
França.3
Tornar os financiamentos públicos mais
acessíveis ao setor privado também representa
um desafio. No Brasil, embora o governo seja
responsável por mais da metade dos gastos gerais
com P&D, as empresas brasileiras empregam 90%
de seus próprios recursos, em vez de requererem
e utilizarem os financiamentos disponibilizados pelo
governo. Nos países desenvolvidos, os governos
financiam amplamente a área de P&D com juros
não recuperáveis ou nulos, ou seja, sob condições
muito mais favoráveis do que no Brasil. De fato, o
investimento de recursos públicos em P&D nas
empresas privadas pode ter um impacto positivo
significativo. Estudos mostram que a utilização de
recursos públicos em P&D nas empresas brasileiras
representa muitas vezes um fator de aumento
da produtividade e da qualidade dos salários e do
trabalho. Estudos indicam ainda que as empresas
brasileiras que receberam recursos públicos também
investiram uma parcela maior de seus próprios
recursos em P&D. Isto traz resultados positivos para
o desenvolvimento econômico do país de uma forma
geral, mas o escopo dos atuais programas ainda é
limitado, carecendo de ampliação.
O fato de que as pesquisas permanecem mais
acadêmicas ou realizadas em laboratórios, em vez de
serem aplicadas e voltadas para a viabilidade comercial,
constitui outro desafio. O número de pesquisadores
que trabalham em inovação tecnológica ainda é
pequeno, e eles ainda buscam estabelecer relações
mais estreitas entre as universidades e as empresas.
O caminho a seguir: uma nova sínteseEmbora o Brasil tenha alcançado grandes progressos
na criação de um ambiente propício à inovação, muita
coisa ainda precisa ser feita. É necessário criar novos
instrumentos, e os mecanismos existentes devem
ser aperfeiçoados. É também importante lançar
as raízes para o desenvolvimento de uma cultura
corporativa orientada para a inovação, principalmente
incentivando-se a interação e as sinergias entre
as universidades e as empresas. Um ambiente
propício à inovação caracteriza-se pela confluência
de conhecimentos, pela troca de capacidades e pela
diversidade de fontes, públicas e privadas. Para o
potencial de uma empresa deslanchar, o processo
de planejamento, embora importante, contribui
apenas parcialmente. As reflexões sobre a agenda
das inovações, portanto, apontam para a busca de
novas sinergias entre os setores público e privado
no Brasil, longe do “estatismo” protecionista e do
fundamentalismo de mercado que têm marcado
tantas vezes a história do país.
Para avançar, é imperioso lembrar que,
embora o Estado brasileiro tenha um importante
papel a cumprir no crescimento da inovação, o
governo não poderá pensar, formular, implementar
e avaliar novas políticas de desenvolvimento sem
lançar mão de consultas, cooperação e interação
com as empresas e com a sociedade civil. Para
que se enfrentem os desafios do século XXI, as
instituições geradas pelo Estado desenvolvimentista
precisam ser revistas e reestruturadas, de forma a
abrir-se o caminho para uma sociedade em sintonia
com seu tempo.
A arquitetura institucional do Estado brasileiro
mostra-se frequentemente inflexível e inadequada,
além de resistente às mudanças. É preciso repensar
o desenvolvimento, e buscar uma nova configuração
de políticas e instrumentos capazes de direcionarem
o Brasil para a globalização, e desenvolver-se um
sistema econômico no qual o conhecimento seja a
espinha dorsal. Será importante fazer a integração de
instrumentos que promovam a inovação tecnológica
em várias instituições. E isto só será possível se
o Estado contar com uma política de inovação
estratégica. E a presença, ou não, de uma dose
3. MOBILIZAÇÃO BRASILEIRA PELA INOVAÇÃO (MOBIT). Pesquisa do Observatório da Inovação e Competitividade nos Estados Unidos, Canadá, França,
Reino Unido, Finlândia, Irlanda e Japão. MOBIT, 2007.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix
28
de audácia nas estratégias das empresas também
dependerá do alcance e do entrincheiramento desta
futura visão. Os setores público e privado precisam
selar um novo compromisso com o país. O Brasil
necessita de uma nova síntese, mais agregadora e
menos polarizadora.
GLAUCO ARBIX é presidente da Financiadora
de Estudos e Projetos – FINEP, do Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT).
29
O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O atual cenário energético mundial é marcado por
uma busca contínua de segurança energética e de
medidas para conter o aquecimento global. Com
um potencial energético vasto e diversificado,
o Brasil pode contribuir de maneira construtiva
para ambos estes processos. Além disso, o setor
energético tem um papel-chave no desenvolvimento
econômico nacional. A nossa dependência externa
de energia é inferior a 5%. O país conquistou a
autossuficiência em petróleo e dispõe de um setor
grande de energias renováveis, de forma que mais
de 47% da matriz energética brasileira constitui-se
de recursos renováveis.1 De fato, a realização do
potencial energético do Brasil é fundamental para o
crescimento econômico, a seguraça energética e a
redução mundial de emissões de carbono.
Petróleo e gás: novas descobertas, novos dilemasO Brasil, que nunca desempenhara papel relevante
entre os atores do mercado mundial do petróleo, viu
recentemente este quadro mudar. Importante pela
grandeza de seu consumo – cerca de 2 bilhões de
barris diários –, o Brasil vem assumindo papel de
crescente relevância no setor, em razão do sucesso
da exploração e produção ultramarina (off-shore) em
águas profundas. O país conquistou a autossuficiência
em petróleo e tem mantido nível de reservas
suficientes para sustentar a produção nacional por
30 anos. As perspectivas são de reservas adicionais
de mais de 50 bilhões de barris, equivalentes a 4%
das reservas mundiais provadas. Quanto ao gás, os
dados oficiais sobre reservas, produção e consumo
no Brasil não conferem ainda ao país destaque no
mercado internacional. Contudo, a exemplo do
petróleo, as descobertas de gás no pré-sal brasileiro
poderão modificar o panorama doméstico, ainda que
questões relacionadas ao custo não associado da
exploração dos poços de gás introduzam elementos
de incerteza quanto à produção. Apesar do otimismo
gerado pelas descobertas no pré-sal brasileiro,
ainda restam desafios importantes no que tange à
administração e regulamentação das reservas, assim
como à distribuição dos seus recursos. Qualquer
que seja a estratégia brasileira, é certo que estarão
presentes dois elementos fundamentais: integração
regional e apropriação soberana das riquezas geradas
por reservas de grandes proporções.
Biomassa: a vantagem comparativaGrande parte do território brasileiro se insere na
região do planeta mais propensa à produção da
biomassa. A dimensão continental do país e sua
diversidade geográfica, evidenciada pela variedade
climática e exuberante biodiversidade, além da
presença de um quarto das reservas superficiais e
subterrâneas de água doce do mundo, explicam por
que o país tem uma importante produção agrícola.
Considerando-se os principais produtos agrícolas,2
calcula-se que a oferta de resíduos no Brasil em 2005
foi de 560 milhões de toneladas, em base seca,3 o
que, em termos energéticos, equivale a 4,2 milhões
de barris por dia, o dobro da produção média atual
brasileira de petróleo.
Parte desse potencial já é aproveitado na
produção de eletricidade. São exemplos o bagaço
da cana e a lixívia. Um aproveitamento mais intenso
deste potencial requer investimentos em tecnologia
e em equipamentos para recuperar a biomassa
hoje subutilizada ou abandonada no campo.
As perspectivas são promissoras, especialmente
1. EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Balanço Energético Nacional 2010. Ano Base 2009. Rio de Janeiro: EPE, 2010.
2. Esses produtos compreendem cerca de 90% da área plantada e 85% da produção física.
3. EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Plano Nacional de Energia 2030. Rio de Janeiro: EPE, 2007.
O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
30 Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
para a geração de energia elétrica. Considerando-
se apenas o bagaço hoje disponibilizado, estima-
se o potencial da cogeração em 10 mil megawatts
(MW). Com o avanço da mecanização da lavoura e
o aproveitamento das pontas e palhas, este número
pode pelo menos dobrar.
Uma preocupação recorrente são os
possíveis impactos sobre a produção de alimentos
e os ecossistemas sensíveis ou de grande interesse
socioambiental. Estas ameaças inexistem no caso
brasileiro. Os números falam por si. A cana-de-
açúcar é um exemplo emblemático. Atualmente,
a área dedicada à produção de cana não chega a
6 milhões de hectares, menos de 0,7% de todo o
território nacional e menos de 7% da área disponível
para atividades agrícolas, já computados os
ecossistemas de grande interesse, como a Floresta
Amazônica. Há, pois, espaço para expansão da área
plantada sem ameaças à produção de alimentos
ou às regiões de alto interesse socioambiental.
Na bioenergia, a cana se destaca também pelos
avanços tecnológicos que fizeram do etanol e da
bioeletricidade produtos competitivos. O aumento
da produtividade, além de reduzir custos, contribui
decisivamente para a preservação de ecossistemas
e de áreas destinadas a outras culturas e usos. Nos
últimos 25 anos, “poupou-se” uma área equivalente
a 2 milhões de hectares, algo como metade da Suíça.
O avanço tecnológico não se deu apenas
do lado da oferta de energia. Os veículos flex, cujos
motores funcionam com qualquer proporção de
etanol e gasolina, são uma realidade irreversível.
A aceitação pelo consumidor foi tal que, apenas
seis anos após o lançamento em 2003, a frota de
veículos flex já corresponde a 35% da frota nacional
de veículos leves, cerca de 9 milhões de unidades.4
Considera-se relevante o desenvolvimento
de um mercado internacional de biocombustíveis.
Nele, países latino-americanos e africanos, por sua
situação geográfica favorável, poderiam desempenhar
papel relevante. O domínio da tecnologia e da cadeia
produtiva do etanol, produzido com os menores
custos de produção mundiais, confere caráter
estratégico para a bioenergia no Brasil e reserva ao
país posição de liderança nesta área.
Hidroeletrecidade: potencial multifacetadoA hidroeletricidade, principal fonte de geração de
eletricidade do país, é outro elemento diferencial da
matriz energética brasileira. Em 2009, respondeu
por 85% do total produzido.5 O Brasil detém 10%
do potencial hidráulico mundial tecnicamente
aproveitável. É o terceiro maior potencial do
planeta, inferior apenas aos de China e Rússia.
O aproveitamento deste potencial é estratégico
para o país. Entre todas as formas de geração
de eletricidade, a hidráulica é a única que reúne
simultaneamente quatro atributos absolutamente
relevantes: é renovável; não emite gases do efeito
estufa (GEE); é extremamente competitiva; e, no
caso do Brasil, a construção das usinas pode ser feita
com praticamente 100% de fornecimento e serviços
nacionais, o que significa geração de emprego e
renda no país.
Nos últimos 40 anos, a oferta primária
de energia hidráulica no mundo evoluiu
concentradamente em duas regiões: Ásia, com
destaque para a China; e América Latina, com
destaque para o Brasil, país no qual a potência
instalada cresceu 65 mil MW no período.6
No Brasil, esta evolução foi intensa no início dos
anos 1980, quando o mundo sofria as consequências
dos choques do petróleo e se instalavam no país
indústrias eletrointensivas. No final dos anos 1990,
refletindo as incertezas provocadas pelas alterações
institucionais então empreendidas, a expansão
4. LOSEKANN, L.; VILELA, T. Estimação da frota brasileira de automóveis flex e a nova dinâmica do consumo de etanol no Brasil a partir de 2003.
Disponível em: <http://infopetro.wordpress.com/2010/07/26/estimacao-da-frota-brasileira-de-automoveis-flex-e-a-nova-dinamica-do-consumo-de-etanol-no-
brasil-a-partir-de-2003>. Acesso em: outubro de 2010.
5. Considera a importação oriunda da parte paraguaia da usina de Itaipu.
6. Exclui a parte paraguaia da usina hidroelétrica de Itaipu (7.000 MW).
31
O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
hidroelétrica foi relativamente pequena, o que
contribuiu para o racionamento de 2001.
De uma forma geral, países economicamente
desenvolvidos apresentam índices bastante elevados
de aproveitamento de seu potencial hidráulico.
São notáveis as estatísticas de França, Alemanha,
Japão, Noruega, Estados Unidos e Suécia, poucos
deles conhecidos por disporem de grande potencial
hidroelétrico. Em contraste, os índices em países da
África, Ásia e América do Sul (com exceção do Brasil)
são ainda muito baixos. Pressões contra usinas
hidroelétricas afetam, portanto, diretamente países
em desenvolvimento, que demandam energia em
volumes significativos e crescentes, em especial,
China e Brasil, pelo importante potencial hidroelétrico
de que ainda dispõem.
Estão em construção no Brasil dois grandes
projetos no rio Madeira – Santo Antônio e Jirau,
que somam 6.500 MW. Em 2010, foi decidida a
construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu,
com cerca de 11.200 MW. No mesmo ano, aprovou-
se a construção de uma usina no rio Teles Pires, com
capacidade de 1.820 MW. O Teles Pires é um dos
formadores do Tapajós – por sua vez um importante
afluente do Amazonas –, rio cujo potencial energético
promete ser superior a 10.000 MW.
Vários desafios se colocam para a expansão
da hidroeletricidade no Brasil. Quando se tem em
conta que dois terços do território nacional estão
cobertos por dois biomas de alto interesse do ponto
de vista ambiental, a Amazônia e o Cerrado, e que 70%
do potencial hidroelétrico brasileiro a ser aproveitado
se localizam nestes biomas, pode-se avaliar que tais
desafios não são pequenos nem triviais. Obviamente,
o desenvolvimento de qualquer potencial hidráulico
deve cuidar para que os impactos ambientais
provocados sejam mitigados ou compensados.
Muitas áreas no entorno de reservatórios já instalados
no país estão hoje entre as mais bem conservadas,
inclusive com relação à biodiversidade. Programas de
salvamento da flora e da fauna, e também de sítios
arqueológicos, têm sido, muitas vezes, a garantia de
conservação de elementos-chave do bioma atingido.
No aspecto socioeconômico, é emblemático o efeito
de projetos mais recentes, em torno dos quais
núcleos urbanos chegam a apresentar índices de
desenvolvimento humano superiores aos da região
da qual fazem parte. Assim, dentro de uma visão
mais contemporânea, usinas hidroelétricas são mais
que uma fábrica de eletricidade. Constituem, na
verdade, vetores do desenvolvimento regional e de
preservação ambiental.
Energia eólica: aumentar a competitividadeO Brasil dispõe de grande potencial eólico.
Há apenas cinco anos, operavam apenas 10 centrais
e menos de 30 MW. Em 2007, a potência instalada
subiu para 208 MW e, ao final de 2010, ultrapassou
830 MW. Em 2009, um leilão de compra de energia
dedicado a centrais eólicas resultou na contratação
de 1.806 MW, que estarão operando em 2012.
No ano seguinte, serão adicionados 2.050 MW,
contratados em leilões realizados em 2010. Em três
anos, a potência eólica instalada terá subido 530%,
ultrapassando 5.270 MW.
Essa evolução não é pequena diante
dos desafios que se apresentam. Além do
desenvolvimento de mão de obra qualificada,
coloca-se a necessidade de ampliar o quadro de
fornecedores, de modo a permitir efetiva competição.
Nesse sentido, os leilões foram auspiciosos, porque
conferiram dinamismo à expansão do parque eólico,
apontando para a expansão da capacidade de
produção da indústria, inclusive com atendimento de
encomendas no exterior. A perspectiva é, portanto,
de redução do custo de produção da energia eólica, e
aumento da competitividade desta fonte. Assegurar
a competição é o estímulo correto para acelerar a
expansão da geração eólica no país. Os mecanismos
para isso já existem no arranjo institucional vigente,
e o sucesso dos leilões de 2009 e 2010 atestam sua
adequação, uma vez que a um só tempo estimulam
a competição e conferem “bancabilidade” aos
projetos, por meio dos contratos de compra de
O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro
32 Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
energia de longo prazo. Em complemento, a ação
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), apoiando a expansão da
infraestrutura energética brasileira, em particular das
energias renováveis, demonstra que as condições
de financiamento disponíveis contribuem para o
desenvolvimento do potencial eólico.
O futuro próximoA política energética brasileira norteia-se por objetivos
que visam garantir o acesso de toda a população a
serviços de qualidade a preços justos, mantendo
rigorosos compromissos com a preservação do
meio ambiente e o manejo sustentável dos recursos
naturais. Tal política contribui simultaneamente para
o progresso econômico e social da população e para
a manutenção de uma das matrizes energéticas
mais limpas do mundo. A preocupação com a
dependência externa dos combustíveis fósseis tem
levado à maior diversificação das fontes de energia,
com preferência por fontes renováveis e de baixo
impacto ambiental. Hoje, o Brasil é reconhecido
internacionalmente por seu pioneirismo no
desenvolvimento de alternativas energéticas
eficientes e ambientalmente sustentáveis, entre as
quais se destaca o etanol.
A continuidade do aproveitamento do
potencial hidroelétrico nacional e a expansão de outras
fontes renováveis de produção de eletricidade –
como as centrais eólicas e a bioenergia –, tanto para
a produção de energia elétrica quanto para a oferta
de combustíveis líquidos, são elementos presentes
na estratégia brasileira de preservar limpa sua matriz.
Além disso, a expansão da produção doméstica de
petróleo e gás natural, com perspectivas concretas
de exportação de volumes expressivos de óleo,
permitirá que o país se consolide como importante
ator no cenário energético mundial. Nessas
condições, considerando-se ainda as dimensões
de sua economia, o equilíbrio macroeconômico
consolidado nos últimos anos, e a histórica
estabilidade político-administrativa que apresenta
o país, reconhecidamente a maior democracia do
Hemisfério Sul, têm-se reunidos os ingredientes
essenciais para a avaliação que hoje se faz do Brasil
como a potência energética do século XXI.
MAURÍCIO TOLMASQUIM é presidente da Empresa
de Pesquisa Energética (EPE) e foi secretário-executivo
do Ministério de Minas e Energia.
AMÍLCAR GUERREIRO é diretor de economia da
energia e meio ambiente da EPE e foi secretário de
energia do Ministério de Minas e Energia.
33
Escapando à armadilha comercial | Yang Yao
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A afirmação da economia neoclássica de que o
livre comércio é fonte de melhoria do bem-estar
dos parceiros comerciais pode ser positivamente
contestada por duas grandes abordagens. De um
lado, a teoria da indústria nascente questiona a lógica
de que um país com pequeno setor manufatureiro
possa desenvolver-se sob condições de livre
comércio. Por outro lado, a teoria da dependência
contesta o saber convencional de que relações
de livre comércio entre o “centro” e a “periferia”
outorgarão sempre benefícios aos países mais
desfavorecidos. Além destas abordadas tradicionais,
mas ligada ao modelo de centro-periferia, encontra-
se a teoria da maldição dos recursos naturais,
formulada mais recentemente. De acordo com esta
linha de argumentação, os termos de comércio entre
o centro e a periferia definitivamente penalizam os
países exportadores de recursos naturais, pois criam
uma “armadilha do comércio”. A fim de escapar de
tal armadilha e alavancar sua economia nacional, a
China adotou, nas últimas décadas, uma política
comercial baseada fortemente na exportação.
Os riscos do comércio internacionalSegundo a teoria da indústria nascente, o processo
industrial é caracterizado por retornos crescentes, o
que acaba exigindo a existência de uma escala mínima
de eficiência (EME) para que uma empresa possa ter
lucro. Para sustentar a sobrevivência das empresas
até que elas atinjam sua escala, são necessários
preços elevados. Mas, no regime do livre comércio,
isto acaba sendo impossível, porque os produtos
estrangeiros, presumivelmente produzidos em
países mais adiantados, e onde as empresas operam
acima de sua EME, invalidam os preços internos. O
resultado disto é que um país mais pobre pode não
ser capaz de desenvolver um setor industrial viável
sob o regime de livre comércio – ele seria aniquilado
no nascedouro.
A teoria da dependência, por sua vez,
categoriza o mundo em centro e periferia. O centro
gera o progresso tecnológico e manufatura bens,
enquanto a periferia fornece os recursos. Ou seja,
a periferia depende do centro para seu crescimento.
Por seu turno, diversamente do que o saber
convencional afirma, o progresso tecnológico não
melhora as condições de comércio da periferia,
de modo que sua situação de bem-estar não se
aprimora. Esta melhoria só poderá ocorrer se o
progresso tecnológico do centro for: i) mais orientado
em direção à expansão da variedade do que à
eficiência na produção dos produtos existentes; ou
ii) se a elasticidade da substituição de preço entre os
produtos for elevada.
A teoria da maldição dos recursos naturais
afirma que a melhoria dos termos de comércio na
exportação de tais recursos pode até prejudicar as
empresas exportadoras do setor, ao invés de ajudá-
las. Ganhos nas condições e termos de exportação
destes recursos implicam, como contrapartida, o
endurecimento das condições de importação dos
bens manufaturados, uma vez que o setor industrial
não pode crescer e poderá até mesmo encolher se os
preços relativos recursos naturais/produção industrial
se alterarem de forma dramática. O mesmo efeito é
produzido por um choque positivo e considerável na
demanda, ou pela descoberta de grandes reservas
de recursos naturais. Assim, em razão da “maldição
dos recursos naturais”, um país rico nestes
recursos pode estar confinado à sua exportação,
agravando, desta forma, a dependência em relação
ao centro. As três teorias sugerem que os países
em desenvolvimento, e mais especialmente aqueles
que dependem substancialmente da exportação
de seus recursos naturais, poderiam cair no que é
chamado de “armadilha do comércio”, ou seja, um
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Escapando à armadilha comercial | Yang Yao
34
estágio no qual o país fica restrito à exportação de
bens primários.
O sucesso dos “tigres asiáticos”No entanto, existem países que conseguiram
escapar a tal armadilha. Entre os exemplos mais
significativos estão os “tigres” do Leste Asiático.
A China está seguindo os passos dos “tigres
asiáticos” no sentido de se apoiar nas exportações
para atingir um elevado crescimento econômico,
e da mesma forma como seus vizinhos do Leste
Asiático, suas exportações estão se tornando cada
vez mais sofisticadas do ponto de vista tecnológico.
No início dos anos 1980, a parcela de exportação
de bens primários da China estava próxima dos
60%. Em meados de 1990, esta parcela caiu para
10%, e as exportações de baixa tecnologia, tais
como vestuário e calçados, se tornaram a pauta
mais expressiva das exportações do país. Hoje, a
maior parte das exportações da China é de produtos
eletrônicos. Quais são as características comuns
das histórias de sucesso do Leste Asiático?
Em primeiro lugar, os governos do Leste
Asiático adotaram políticas que incentivaram a
exportação de bens não primários. Estas medidas
incluíam taxas de câmbio competitivas, menores
barreiras para o mercado exportador, e a ausência
de tarifas de exportação. Muitos países em
desenvolvimento – levando a sério o risco da
“armadilha do comércio” – supervalorizaram suas
moedas e taxaram as exportações de produtos
primários. A primeira medida destinava-se a
reduzir os custos de importação de equipamentos
e tecnologias estrangeiras, e o alvo da última
era a transferência de riqueza do setor primário
para outros setores – diversificando portanto a
economia nacional. A supervalorização das moedas
acabou, entretanto, por reduzir dramaticamente a
competitividade dos bens industriais destes países
nos mercados externos. Por seu turno, a taxação
imposta ao setor primário não foi eficazmente
usada para incentivar o desenvolvimento dos
outros setores. No Leste Asiático, taxas de câmbio
competitivas auxiliaram as economias a explorar
sua vantagem competitiva nos custos trabalhistas e
a exportar bens manufaturados por suas indústrias
de mão de obra intensiva, como primeiro passo
para escapar da armadilha do comércio.
Em segundo lugar, as vantagens das
exportações de bens primários foram distribuídas
a uma grande porção da população, especialmente
a população mais carente. Nos primeiros estágios
de desenvolvimento na Ásia, a exportação de bens
primários se concentrava no setor agrícola. À medida
que sua riqueza crescia, agricultores conseguiam
aprimorar suas tecnologias agrícolas, remunerando
melhor o trabalho na agricultura. Em muitos
países que exportam recursos naturais, contudo,
a propriedade dos recursos é concentrada. Como
consequência disto, os benefícios não alcançam os
cidadãos comuns e este canal de desenvolvimento
é amputado.
Em terceiro lugar, a política interna encoraja
o desenvolvimento do setor manufatureiro. Este
desenvolvimento inclui o reforço à educação básica
e o aprimoramento das capacidades de inovação,
ajudando a criar uma infraestrutura, e reduzindo as
restrições impostas pelo mercado de trabalho. A
forma mais efetiva de melhorar o nível de vida dos
pobres é fornecer empregos. Mas as restrições do
mercado de trabalho desestimulam a expansão da
indústria. Muitas empresas permanecem pequenas
para evitar a sujeição às leis trabalhistas restritivas
aplicadas às grandes empresas. Os países do
Leste Asiático lançaram mão de uma abordagem
gradual para aprimorar suas normas trabalhistas e
conseguiram evitar em grande parte este problema.
Além disso, estes países dão elevada prioridade à
educação e à inovação, com vistas a galgarem mais
facilmente a escada tecnológica, e aumentarem
assim suas exportações.
Em quarto lugar, uma abordagem realista e
gradual contribui para que as economias do Leste
Asiático evitem grandes contratempos. No final da
35
Escapando à armadilha comercial | Yang Yao
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
década de 1970, os países da América Latina fizeram
vultosos empréstimos junto ao mercado internacional,
com vistas a melhorar a estrutura econômica em curto
período de tempo. Mas a crise da dívida externa que
se seguiu mergulhou estes países em duas décadas
de altos índices de inflação e baixos índices de
crescimento. No Leste Asiático, o progresso foi rápido,
porém também manteve um ritmo constante.
A experiência chinesaA China oferece um bom exemplo no que se refere
aos quatro pontos citados. Antes de 1978, quando o
país adotou uma política de portas abertas, a moeda
chinesa era supervalorizada. Nos anos 1980, o valor
oficial do iuane foi diminuindo pouco a pouco. Neste
meio tempo, os mercados se estabeleceram para
permitir que os exportadores trocassem seus lucros
externos em iuanes, a taxas determinadas pelo
mercado. Em 1994, a tendência oficial foi incorporada
à tendência do mercado, o que fez com que o valor
do iuane atingisse um nível competitivo. Com isto, a
exportação de produtos não primários da China teve
um grande impulso. Em 2001, a China passou a fazer
parte da Organização Mundial do Comércio (OMC),
que retirou as restrições externas às exportações
chinesas. Como resultado, as exportações chinesas
apresentaram um crescimento da ordem de 29% ao
ano entre 2001 e 2008.
Na década de 1980, as exportações de
produtos primários da China concentraram-se na
agricultura, trazendo aos agricultores renda e benefícios
cada vez maiores. Desta forma, eles foram capazes de
desenvolver uma indústria nativa de pequena escala,
que por sua vez transformou a estrutura exportadora
da China. A indústria rural foi responsável por metade
dos resultados da indústria chinesa, e por 40% das
exportações do país no início dos anos 1990.
Mesmo antes da abertura para o mundo, a
China considerou a melhoria da capacitação (capacity
building) uma prioridade máxima no âmbito da sua
política industrial. No entanto, a abordagem das “portas
fechadas” não resultou em conquistas compatíveis
com os esforços despendidos. Desde 1980, a China
passou a adotar uma abordagem completamente
diferente, ou seja, a estabelecer uma abertura para
investimentos externos diretos (IED) e vê-los como
parte coerente do plano nacional de promover a
estrutura industrial do país. Nos primeiros 20 anos,
o IED concentrou-se nas indústrias de mão de obra
intensiva, o que suscitou temores de que ele pudesse
transformar-se em um fator a mais para que a China
permanecesse refém da armadilha do comércio.
No entanto, as exportações chinesas tornaram-se
cada vez mais sofisticadas nos últimos dez anos,
e o IED desempenhou uma função positiva neste
processo; hoje o IED é responsável por metade das
exportações chinesas.
O gradualismo é um traço peculiar do processo
de transição da China, passando do planejamento
econômico para o mercado. Trata-se também de uma
das características das demais mudanças de políticas
públicas no país. Ao final da década de 1970, a China
também acompanhava o modelo latino-americano de
tomada de empréstimos junto ao mercado financeiro
internacional, principalmente para financiar suas
importações tecnológicas. Entretanto, a escala dos
empréstimos feitos pela China foi muito menor
do que nos países da América Latina, e a China
deixou rapidamente de tomar empréstimos após
observar os sinais de retração do mercado financeiro
mundial. A dependência do IED para aumentar suas
exportações é também resultado do pragmatismo.
O governo chinês foi capaz de resistir à tentação
de manter uma atitude de orgulho nacional, e não
teve pejo em utilizar-se da IED para impulsionar a
tecnologia chinesa.
Lições para o BrasilOs registros de sucesso do Leste Asiático deixam
lições para o Brasil. A exportação de recursos
naturais pode ser um elemento catalisador para o
crescimento econômico sustentável e de alcance
nacional. O segredo é a geração de externalidades
positivas que promovam o desenvolvimento da
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Escapando à armadilha comercial | Yang Yao
36
produção industrial. Existem várias razões que
tornam esta atividade crucial.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento
da indústria pode ajudar o Brasil a reduzir sua
dependência da exportação de recursos naturais.
A exportação de bens primários exerce um
efeito de valorização sobre a moeda de um país.
Internacionalmente, reduz a competitividade do país
em termos de bens manufaturados; internamente,
aumenta o preço relativo dos serviços, prejudicando
ainda mais o crescimento da produção industrial.
Para contrabalançar estes impactos negativos, o
Brasil precisa contar com um plano concreto para
impulsionar a sua produção manufatureira.
Em segundo lugar, em um país grande como
o Brasil o desenvolvimento da produção industrial
constitui uma etapa indispensável rumo ao aumento
da renda. Os serviços expandem rapidamente
quando um país experimenta um crescimento nas
exportações de seus recursos naturais. Por este
motivo, algumas pessoas acreditam que um país
pode saltar a etapa da produção industrial. Trata-
se de uma conclusão errônea sob dois aspectos.
No que diz respeito ao primeiro, o crescimento
gerado pelo grande aumento da produção no
setor primário é insustentável, pois os serviços
não geram exportações, e ao final, quando as
exportações de recursos naturais diminuirem, o
país irá enfrentar déficits em suas contas correntes.
Quanto ao segundo aspecto, o histórico dos países
desenvolvidos tem comprovado amplamente
que a parcela da produção na economia nacional
apresentou uma trajetória oblíqua, isto é, um
aumento no primeiro momento, e um decréscimo
em uma etapa posterior. Os Estados Unidos
tiveram o seu ponto crítico em fins dos anos 1950.
O Brasil não atingiu este ponto crítico, portanto sua
produção ainda tem espaço para crescer.
Em terceiro lugar, a produção industrial é
particularmente efetiva no crescimento da renda
dos pobres, porque gera empregos. O Brasil possui
uma das mais desiguais distribuições de renda do
mundo. A exportação de bens primários não gera
muitos empregos. Os serviços geram empregos,
mas o crescimento dos serviços trazido por um
impulso na exportação de recursos naturais não é
sustentável.
YAO YANG é professor de economia no China
Center for Economic Research da Universidade de
Pequim.
Parte 2:Tensões internas e coesão social
39
Avançando o New Deal brasileiro | André Singer
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil que se configura após as últimas eleições
tem algo da atmosfera imaginária na qual, há mais de
meio século, a democracia norte-americana criou o
arcabouço de leis, instituições e ações do New Deal.1
A instauração deste ambiente – um legado dos dois
mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva –
pode moldar o “marco regulatório”, para usar uma
expressão do mundo jurídico, no qual ocorrerão as
próximas disputas eleitorais. Partidos e candidatos
divergirão quanto aos meios, mas os fins estão fixados
de antemão. Nesse caso, as eleições brasileiras de
2002 e 2006 poderão ser vistas, no futuro, como o
início de um longo ciclo político, semelhante ao que
aconteceu com as vitórias de Roosevelt em 1932
e 1936. Durante a vigência do ciclo, é possível até
haver troca de partidos no poder. Foi o que ocorreu
em 1952 e 1956, com a vitória republicana, a qual
não implicou o abandono dos grandes objetivos
nacionais: a diminuição da pobreza e o incremento
da igualdade.
No programa apresentado por Dilma
Rousseff na campanha eleitoral, o objetivo central
era eliminar a miséria extrema na década que
começa em 2011. Para a consecução deste
propósito, prometeu-se valorizar o salário mínimo,
ampliar gradualmente as transferências de renda e
reforçar o papel do Estado na economia. Também se
afirmou o objetivo de manter o Banco Central com
autonomia para conduzir a política monetária, deixar
o câmbio flutuante e exercer alguma rigidez fiscal.
Não se deve depreender da moderação deste arranjo
que ele esteja isento de embates importantes, cujos
desfechos definirão os contornos mais precisos do
caminho a ser trilhado nos próximos anos. A menos
que sobrevenha nova ascensão do movimento
social, em refluxo desde a década de 1990, uma
parte dos conflitos ocorrerá num plano relativamente
oculto, por meio de negociações intraestatais, sem
que o público amplo possa percebê-los de imediato.
Trata-se de uma delicada rede de pressões e
contrapressões no interior do Estado.
Crescimento econômico: indústria e commodities A redução da pobreza e da desigualdade depende
da manutenção do crescimento em um patamar
ao redor de 5%, como previa o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC). Para atingir este
patamar, que não foi alcançado sequer no segundo
mandato de Lula, haverá uma série de escolhas
a serem feitas. Carlos Lessa, ex-presidente do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), argumenta que há duas visões
conflitantes a respeito de como produzir a expansão
da economia. Em uma delas, seria necessário elevar
substancialmente a taxa de investimento público.
Deduz-se que os recursos devam sair, neste caso,
da diminuição do serviço da dívida, medida à qual o
Banco Central resiste.
Segundo outra proposta – a qual, no entanto,
implicaria um processo de desindustrialização do país –,
tal medida não seria necessária. Esta segunda visão
pressuporia que a exportação de soja, carne e minério
de ferro, por exemplo, daria conta do recado, sem
depender de o Brasil produzir mercadorias de alto valor
agregado. Por trás destes pontos de vista conflitantes
se encontram interesses sociais e econômicos
diferentes, cujo confronto definirá a dinâmica futura.
O peso das exportações no modelo
“inventado” pelo governo Lula é reconhecido
pelos seus defensores. Aloizio Mercadante mostra
que triplicou o valor exportado entre 2002 e 2008:
* Este texto é uma reprodução resumida do artigo publicado pelo autor na revista Piauí de outubro de 2010.
1. Conjunto de programas iniciados na primeira presidência de Franklin D. Roosevelt para fazer frente à crise de 1929, o New Deal permitiu um salto na
qualidade de vida dos pobres e propiciou maior igualdade entre os cidadãos americanos.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Avançando o New Deal Brasileiro | André Singer
40
de US$ 60 bilhões para quase US$ 200 bilhões.
Porém, destaca que o destino das mercadorias
mudou. Em 2002, os Estados Unidos recebiam
24,3% das exportações brasileiras, patamar reduzido
a 14,6% em 2008. Sem estardalhaço, o governo Lula
esvaziou a proposta da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), que atrelaria o Brasil aos Estados
Unidos, e investiu na formação de um bloco sul-
americano forte, ao mesmo tempo que fortalecia os
vínculos com potências emergentes como a China.
O sucesso da estratégia externa
desempenhou, assim, um papel destacado na
economia política do realinhamento. O ex-ministro
Luiz Carlos Bresser-Pereira, no entanto, tem
chamado a atenção para o fato de o Brasil ser vítima
de “uma leve, mas real doença holandesa”, pela qual
os mecanismos de mercado tendem a levar um país
com extensos recursos naturais a ter um câmbio
cronicamente sobreapreciado.2
A consequência não é difícil de imaginar: torna-
se mais barato importar artefatos industrializados que
fabricá-los internamente. Para combater a doença
holandesa, afirma Bresser-Pereira, é indispensável
administrar o câmbio, em vez de deixá-lo oscilar ao
sabor do mercado. Em cálculo recente, ele indica que
o real deveria flutuar ao redor de 2,40 por dólar, o que
significaria uma desvalorização em torno de 25%.
O dilema cambialUma coalizão de interesses liderada pelo
capital financeiro tem obstado a desvalorização.
Como as importações baratas ajudam a controlar
os preços internos, garantindo o poder de compra
dos consumidores, em especial os de baixíssima
renda, há uma pressão no sentido de mantê-las
neste patamar. Elas permitem, na outra ponta, à
classe média tradicional, cuja poupança também é
beneficiada por juros elevados, o acesso a produtos
importados, e facilitam viagens internacionais.
Em terceiro lugar, o câmbio valorizado favorece os
detentores internacionais de capital, que lucram
no Brasil com a aplicação de dinheiro especulativo
remunerado a altas taxas de juros em moeda forte.
Na posição oposta se encontram os
empresários industriais, o proletariado fabril e
os exportadores. Os industriais observam com
preocupação crescente a queda das atividades fabris
desde o começo dos anos 1990. Também não é por
acaso que a Central Única dos Trabalhadores defende
“aplicar política cambial voltada para a defesa da
economia nacional”. Os exportadores querem ganhar
mais com o que vendem. Este tripé deu ao governo
sustentação para impor um imposto de 2% sobre o
capital especulativo em 2009, na vigência da crise
internacional. A medida, embora tímida, impediu
que a valorização da moeda aumentasse ainda mais,
além de sinalizar a existência de setores sociais
ponderáveis preocupados com a doença holandesa.
Taxas de juros e créditoEm que pese o Brasil possuir uma das maiores taxas
de juros do mundo, e parecer distante o momento
em que a coalizão “produtivista” consiga forçar a sua
diminuição, o balanço do último período mostra algum
abalo na liberdade do capital financeiro. A ampliação
do crédito no segundo mandato (quando passou de
25% para 40% do PIB) foi obtida apesar da oposição
dos bancos privados. Ela expressa o aumento da
capacidade do Estado – apoiado pelos três setores
mencionados e pelo fortalecimento dos bancos
públicos durante a crise – em obrigar o sistema
financeiro a emprestar ao público, em lugar de apenas
comprar títulos do governo. Nesse sentido, revelou-se
crucial o reforço do BNDES no papel de financiador,
a juros mais baixos, das empresas industriais.
Sabe-se que os juros altos inibem os investimentos
produtivos, pois o capital é remunerado sem participar
da produção. Além disso, transferem recursos
públicos – que poderiam ser usados para aumentar a
criação de infraestrutura – para os rentistas, que os
esterilizam ou usam em um consumo de luxo, com
aumento da desigualdade. Por isso, os empresários
2. A tese da “doença holandesa” foi desenvolvida a partir de uma análise dos efeitos dos ganhos com a exportação de gás naquele país, nos anos 1970.
41
Avançando o New Deal brasileiro | André Singer
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
da área produtiva, para quem a taxa de juros é central,
e os trabalhadores em geral, para os quais o aumento
do emprego é decisivo, estão momentaneamente
juntos na batalha contra a “usura”.
A agenda socialSeja qual for o destino dos atritos que virão a marcar o
ciclo político, o objetivo de reduzir a pobreza por meio
da transferência de renda para os segmentos muito
pauperizados deverá ser a marca dos próximos anos.
Não haverá, contudo, direitos universais à saúde,
educação e segurança sem aumentar o investimento
público. No Brasil, ainda não há saneamento básico e
moradia de qualidade mínima para enormes setores
da população. Além dos programas de transferência
de renda, os relativos à saúde, educação e
segurança pública são fundamentais para a redução
da pobreza e da desigualdade. Isto requer vultosos
desembolsos, bem como um Estado equipado para
exercer funções de envergadura. Daí, igualmente,
advém a necessidade de continuar a valorização
do funcionalismo público, com a reestruturação
de carreiras de Estado e o aumento da folha de
pagamento dos servidores.
Embora o Bolsa Família caminhe para se tornar
um direito reconhecido na Constituição, sob a forma
de uma renda básica de cidadania, a ser proposta no
bojo da Consolidação das Leis Sociais que o próximo
governo deverá enviar ao Congresso Nacional, não
há consenso acerca do tamanho e abrangência
que o Estado deve ter no Brasil. Do mesmo modo,
não existe acordo a respeito da reforma tributária
que lhe deveria garantir os recursos. Enquanto as
organizações de trabalhadores sugerem enfatizar
o caráter progressivo da tributação, as entidades
empresariais, unificadas quanto a esta questão,
buscam diminuir a carga tributária em absoluto.
Neste item, capitalistas e assalariados se encontram
em campos opostos. A pressão da burguesia pela
contenção dos gastos do Estado deverá crescer.
Assim, a abrangência dos serviços públi-
cos de saúde e educação é um tema que separa
a coalizão majoritária em diferentes segmentos.
Para os trabalhadores, deve-se atender ao man-
damento constitucional de universalizar a saúde e
educação públicas. Para os empresários, a privatiza-
ção em curso, representada pelos planos de saúde e
escolas privadas, merece ser preservada e ampliada.
Contrapõem-se visões distintas a respeito do papel
do lucro no atendimento de necessidades funda-
mentais como saúde e educação. A divergência se
estende para o campo da previdência, e explica por
que medidas como a revogação da Contribuição Pro-
visória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em
dezembro de 2007, contaram com o ativo apoio do
setor empresarial e a oposição dos representantes
dos trabalhadores.
Esses conflitos espelham divisões sociais
mais amplas. O sociólogo Jessé Souza tem
chamado a atenção para o caráter profundamente
conservador da sociedade brasileira, que encara
como “natural” a extrema desigualdade. Talvez,
poderia se acrescentar, até resista à tentativa de
alterar um quadro longevamente estabelecido.
Buscando uma via autônoma de desenvolvimentoSão fundas as fraturas que separam as vastas legiões
de brasileiros pobres da classe média tradicional,
cuja superioridade relativa diminui à medida que
o movimento de ascensão social se intensifica.
A velocidade do percurso em direção a uma possível
sociedade “decente e similar” dependerá até certo
ponto da correlação de forças entre o proletariado
emergente e a classe média tradicional.
Essa classe média dá certa base de massa à
frente rentista, que tem como programa a autonomia
do Banco Central, a liberdade de movimento dos
capitais, o corte dos gastos públicos e, em uma
conjuntura favorável, uma reforma trabalhista que
retire direitos dos trabalhadores. Ao velho e novo
proletariado interessa a plataforma oposta, com
a adequação da política monetária às metas de
crescimento, a desvalorização do real para evitar a
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Avançando o New Deal Brasileiro | André Singer
42
doença holandesa, e o aumento do gasto público
na direção de um Estado de bem-estar, com a
transformação dos programas sociais em direitos
que se somem aos da legislação trabalhista.
No plano partidário, o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido dos
Trabalhadores (PT) parecem destinados a representar
posições divergentes na próxima etapa. Apesar
das fragilidades dos partidos brasileiros, em que o
excesso de pragmatismo dificulta levar ao terreno da
política os interesses de classe, o sistema permite
alguma refração das clivagens sociais. Desse modo,
o tamanho das bancadas legislativas do PMDB e do
PT – tanto na Câmara quanto no Senado – deverá
determinar o andamento de propostas decisivas,
como a Consolidação das Leis Sociais, no Congresso.
Os ventos internacionais, cuja temperatura e
intensidade costumam influenciar na balança interna,
mostram-se confusos, o que não é necessariamente
ruim para o sonho rooseveltiano brasileiro.
A grave crise financeira de 2008 produziu efeitos
contraditórios. Enquanto nos Estados Unidos resultou
em uma guinada progressista, com a vitória de Barack
Obama interrompendo a escalada conservadora dos
dois mandatos de Bush II, na Europa provocou uma
reação à direita, com intensificação da xenofobia e
adoção de políticas econômicas contracionistas.
Nos países emergentes, a crise clarificou
a percepção de que é preciso procurar uma via
autônoma de desenvolvimento que não dependa da
problemática recuperação dos centros capitalistas
tradicionais. O Brasil em particular, embalado pelo
desejo de transformar-se em uma sociedade de
classe média, tem, no destaque internacional que
alcançou, um impulso nesta direção.
O caminho será cheio de choques, de
resultado não previsível. Contudo, se a hipótese aqui
exposta estiver correta, durante um longo tempo o
norte da sociedade será dado pelo anseio histórico
de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil.
A luta de classes dirá em que grau e velocidade.
ANDRÉ SINGER é professor de ciência política na
Universidade de São Paulo (USP) e ex-porta-voz da
Presidência da República entre 2003 e 2007.
43
A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
As sociedades constroem ao longo de sua
história uma série de mecanismos estatais que se
destinam a proteger e promover socialmente seus
membros.A proteção é conduzida por políticas de
seguridade social, destinadas a reduzir e mitigar as
contigências,riscos e vulnerabilidades a que qualquer
indivíduo está exposto numa sociedade de mercado,
enquanto a promoção é realizada por políticas que
pretendem garantir aos cidadãos oportunidades mais
amplas e mais equânimes de acesso aos recursos e
benefícios conquistados pela sociedade. Além deste
papel, as políticas sociais, mediante seus gastos, são
importantes vetores de crescimento da economia
nacional, configurando-se em elemento estratégico
para o desenvolvimento.
Gasto público e seu impacto social O patamar dos gastos com as políticas sociais no
Brasil vem sendo significativamente alterado desde o
final dos anos 1980. Principalmente a partir de 1993,
com o efetivo início da implementação das políticas
previstas pela Constituição, os gastos sociais passam a
aumentar de maneira sustentada. A análise dos dados
apresentados no gráfico 1 aponta uma tendência de
crescimento do gasto público social (GPS), de 2,7
pontos percentuais (p.p.) do produto interno bruto (PIB)
em 11 anos – um crescimento superior a 10%. Mais
importante que isto, tal crescimento não se dá apenas
na esfera federal – o crescimento de 0,2 p.p. no gasto
social estadual, e de cerca de 0,4 p.p. no gasto social
municipal, refletem uma tendência importante.
Tomando-se o volume de recursos,
apresentado no gráfico 2, observa-se que o núcleo da
política social federal foi permanentemente localizado
ao longo do tempo nas seguintes políticas sociais:
Previdência Social Geral; Previdência e Benefícios a
A construção de uma política social estratégica*
Jorge Abrahão de Castro
* Este texto é produto dos estudos, pesquisas e discussões realizadas nos anos últimos junto aos técnicos/pesquisadores da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. Sua realização tomou como base e referência primordial as publicações Políticas Sociais: acompanhamento e análise no 17 e Perpectiva da Política Social no Brasil.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro
44
Servidores; Saúde; Assistência Social; Educação; e
Trabalho e Renda. Juntas, estas seis áreas absorvem
algo em torno de 95% do gasto no período de 1995
a 2005. Cresceram em importância no conjunto dos
gastos sociais as áreas de Assistência Social e de
Trabalho e Renda, consequência direta da drástica
reformulação destas políticas públicas no período.
Na Assistência Social, a substituição de um modelo
“assistencialista” por um modelo de direitos – com uma
atuação cada vez mais abrangente sobre a população
brasileira, tendo, mais recentemente, entrado em
curso nova ampliação com a criação do Programa
Bolsa Família (PBF) e a implantação do Sistema Único
de Assistência Social (SUAS). Na área de Trabalho
e Renda, simplesmente foi montado, ampliado e
consolidado um Sistema Público de Emprego (SPE),
que, embora sujeito a críticas nos seus três pilares
– intermediação, qualificação e seguro-desemprego
– constituiu uma enorme conquista e ampliação da
proteção social no Brasil, ao que correspondeu o
crescimento dos recursos aplicados neste setor.
A trajetória dos gastos nas políticas públicas
de Educação e de Saúde foi outra. Estas áreas,
quando comparadas suas participações no PIB, não
cresceram em importância até 2005. Ou seja, embora
em termos absolutos recebam atualmente muito
mais recursos do que antes, os seus gastos apenas
acompanharam o crescimento da economia, não se
convertendo em prioridade de governo. Enquanto
isso, a saúde privada mobilizou recursos da ordem
de 4,7% do PIB naquele ano. No período 1995-
2005, houve considerável diversificação e expansão
das políticas sociais, com mudanças no escopo da
Previdência Social, da Assistência Social e da Defesa
do Trabalhador, por exemplo. Neste contexto, seria
impossível que não ocorressem reposicionamentos
entre as diferentes áreas sociais. Quando se observa
a trajetória de gastos das áreas de Saneamento e de
Habitação e Urbanismo, verifica-se que, até 2005,
houve redução de recursos aplicados. O que não é
nem um pouco contraditório com o quadro social
com o qual estes setores se defrontam atualmente.
Conforme exposto até o momento, se houve
uma expansão do gasto social nos últimos anos,
pode-se esperar também que tenha ocorrido uma
extensão dos benefícios oferecidos e consequente
alteração no quadro social brasileiro e que pode ser
captada em seus indicadores. Em outras palavras, o
maior volume de gastos possibilitou a maior oferta
de bens e serviços sociais, o que resultou em uma
45
A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
diversificação e em uma melhoria da proteção social/
geração de oportunidades para a população brasileira.
O duplo benefício: vantagens econômicasPouco se discute que grande parte da política social e
de seu correspondente gasto público têm um duplo
benefício – promovem o crescimento junto com
uma melhor distribuição de renda e de capacidades.
Isto ocorre porque a maioria dos gastos sociais do
governo beneficia os mais pobres – como no caso
do PBF, do Benefício de Prestação Continuada
(BPC) e dos benefícios subsidiados da Previdência
Social (trabalhadores rurais em regime de economia
familiar, empregado doméstico, microempreendedor
individual, entre outros) – e a classe média – caso
dos salários dos professores da educação básica,
ou da grande maioria dos benefícios urbanos da
Previdência Social no Brasil (85% destes são de até
Quadro 1 Situação social da população brasileira associada às política setoriaisÁreas de atuação Indicadores Resultados/valores
Anos 1990 Anos 2000
Previdência social % da população em idade ativa – PIA (16 a 64 anos) coberta - 64,9 (2008)
% de cobertura da população de 65 anos ou mais - 93,3 (2008)
% de benefícios menores que 1 salário mínimo (SM) - 2,0 (2007)
% de benefícios do maiores que 1 SM. - 42,0 (2007)
% de domicílios com indivíduos de mais de 60 anos que recebem aposentadoria ou pensão
72,8 (1995) 73 (2007)
Assistência social% da população vivendo com menos de R$ 131 per capita (linha superior de elegibilidade para o Bolsa Família em 2009)
27,3 (1995) 13,7 (2009)
% da população vivendo com menos de R$ 66 per capita (linha inferior de elegibilidade para o Bolsa Família em 2009)
10,7 (1995) 4,8 (2009)
Saúde Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) 47,1 (1990) 19,0 (2008)
Taxa de mortalidade na infãncia 53,7 (1990) 22,8 (2008)
Esperança de vida ao nascer (anos) 68,5 (1995) 72,1 (2007)
Trabalho e renda (proteção)
Taxa de cobertura efetiva do seguro-desemprego 65,9 (1995) 62,9 (2007)
Taxa de reposição do seguro-desemprego 50,9 (1995) 68,3 (2007)
Trabalho e renda (promoção)
Taxa de aderência da intermediação 39,2 (1995) 47,5 (2007)
Taxa de admissão da intermediação 1,5 (1995) 6,8 (2007)
Taxa de frequência à escola (0 a 3 anos) 7,5 (1995) 18,2 (2009)
Taxa de frequência à escola (4 a 6 anos) 53,4 (1995) 81,3 (2009)
Educação Taxa de frequência à escola (7 a 14 anos) 86,6 (1992) 98,0 (2009)
Taxa de frequência à escola (15 a 17 anos) 59,7 (1992) 85,2 (2009)
Taxa de frequência à escola (18 a 24 anos) 22,6 (1992) 30,3 (2009)
Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais) 17,2 (1992) 9,7 (2009)
Número médio de anos de estudos (15 anos ou mais) 5,2 (1992) 7,5 (2009)
Questão agrária Concentração fundiária – índice de Gini para propriedade da terra 0,838 (1998) 0,816 (2003)
Saneamento e habitação
% Abastecimento de agua (urbano) 82,3 (1992) 91,6 (2008)
% Esgoto sanitário (urbano) 66,1(1992) 81 (2007)
% Coleta de lixo (urbano) 79,8 (1992) 97,6 (2007)
% Domicílios urbanos com condições de moradia adequada 50,7 (1992) 65,7 (2008)
Déficit habitacional total (habitações) Dado não disponível. 5,7 milhões (2008)
Renda e desigualdade
Renda domiciliar per capita média em US$ PPC por dia 5,5 (1990) 12,1 (2008) Desigualdade de renda – Gini 0,601 (1990) 0,538 (2009)
% da população vivendo com menos de US$ PPC 1,25 por dia (situação de extrema pobreza) critério ONU/Objetivos do Milênio (ODM)
25,6 (1990) 4,8 (2008)
População total vivendo com menos de US$ PPC 1,25 por dia (situação de extrema pobreza) – critério ONU/ODM
36,2 milhões (1990) 8,9 milhões (2008)
% da renda nacional detida pelos 20% mais pobres 2,2 (1990) 3,1 (2008)
Salário mínimo em US$ PPC por dia 4,0 (1990) 8,4 (2008)
Fonte: Ipea (Acompanhamento e análise 17, 2009) e Ipea (ODM – Relatório nacional de acompanhamento, 2010).
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro
46
3 salários mínimos). Ao distribuir melhor a renda, os
salários e os serviços, uma parte importante do gasto
social permanece no país e fortalece o circuito de
multiplicação de renda, pois estes estratos tendem
a consumir menos importados e poupar menos, o
que implica maior propensão a consumir produtos
nacionais, mais vendas, mais produção nacional e
mais emprego gerado no país.
Utilizando a Matriz de Contabilidade Social
de 2006 e as informações do Sistema de Contas
Nacionais e da Matriz Insumo-Produto e pesquisas
domiciliares, trabalho do Ipea que trata da perspectiva
da política social no Brasil chegou à importante
conclusão da existência de um multiplicador do PIB,
decorrente de um aumento nas variáveis exógenas
da demanda agregada provenientes do gasto social
de 1,37. Isto significa que, a cada R$ 100 gastos pelo
governo na área social, foram gerados R$ 137 de
PIB. O multiplicador do gasto social, em termos de
PIB, é consideravelmente maior que o multiplicador
dos gastos com os juros da dívida pública, 0,71, e
quase idêntico ao das exportações de commodities,
de 1,40%, mas é inferior aos do investimento em
construção civil, 1,54%.
Esse trabalho também mostra que, após
o impulso original do gasto autônomo e quando
percorrido todo o circuito econômico, voltam ao
Estado 56% do valor que deu origem ao impulso
inicial na forma de impostos recolhidos. Ou seja, de
cada R$ 100 gastos inicialmente voltam R$ 56 pela
arrecadação tributária nacional.
Quanto ao que ocorre com a renda das familias, as
simulações mostram que um incremento de 1% do
PIB nos programas e políticas sociais detalhados
eleva a renda das famílias em 1,85%, em média –
sabe-se que a renda das famílias constituiu cerca de
81% do PIB em 2006. O multiplicador do gasto social
sobre a renda das famílias é consideravelmente maior
que o multiplicador do investimento em construção
civil, de 1,14%, e das exportações de commodities,
de 1,04%.
Ou seja, esses resultados demonstram que
a ideia de que o gasto social é economicamente
inútil não é verdade. É, sim, um elemento muito
importante para a dinâmica da economia nacional,
principalmente daqueles segmentos voltados ao
mercado interno.
No caso das transferências monetárias, o
maior multiplicador do PIB e da renda das famílias
pertence ao PBF. Para cada R$ 1,00 gasto no
47
A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
programa, o PIB aumentará em R$ 1,44 e a renda das
famílias, em 2,25%, após percorrido todo o circuito
de multiplicação de renda na economia. A título de
comparação, o gasto de R$ 1,00 com juros sobre a
dívida pública gerará apenas R$ 0,71 de PIB e 1,34%
de acréscimo na renda das famílias. Ou seja, pelo
menos em termos de geração de PIB, o pagamento
de juros tem maiores custos que benefícios. Por seu
turno, o PBF gera mais benefícios econômicos do
que custos, e este benefício é duas vezes maior que
o benefício gerado pelo pagamento de juros sobre a
dívida pública.
Não obstante, mesmo as transferências da
Previdência Social com aposentadorias, pensões e
auxílios, que são apenas levemente progressivas,
têm um efeito multiplicador substancialmente
maior, 1,23. A explicação está no fato de que, diante
de nossa ainda abissal desigualdade de renda,
uma transferência quase neutra atua minorando
fortemente a desigualdade e, assim, modificando a
propensão e o perfil de consumo da população como
um todo.
Em geral, as transferências de renda que
beneficiam mais os pobres elevam mais o PIB e
a renda das famílias. Isto porque pessoas mais
pobres tendem a consumir quase toda a sua renda
(não podem poupar) e a consomem com produtos
de origem nacional, com menos importados em
sua cesta de consumo – ou seja, neste caso os
vazamentos são bem menores.
Construindo bases sólidasA análise aqui efetuada revelou que não foram
poucos os avanços sociais no Brasil nos últimos
anos. Tais resultados exigiram um maior esforço da
economia e da sociedade em termos de recursos
para financiamento de programas e ações. Isto
permitiu a criação de uma elevada gama de aparatos
técnicos/administrativos, contratação e treinamento
de inúmeros profissionais, criação e construção
de imóveis diversos e aquisição de equipamentos,
sofisticados ou não, para a disponibilização dos bens
e serviços.
Esses recursos físicos, financeiros, humanos
e institucionais possibilitaram a estruturação de um
amplo e diversificado conjunto de mecanismos de
proteção social e de promoção social que estão sendo
fundamentais para ajudar a melhorar as condições
básicas de vida da população, inclusive aquelas
que dizem respeito à pobreza e à desigualdade.
Além disso, a política social transformou-se em
um poderoso instrumento, por meio da qual,
simultaneamente, possibilitou-se a ampliação da
demanda agregada, com capacidade de criar um
amplo mercado interno de consumo de massa
Os gastos oriundos das políticas sociais
dinamizaram a produção, estimularam o emprego,
multiplicaram a renda e reduziram a pobreza e a
desigualdade, e tiveram um papel indispensável
e estratégico como alavancadores da economia
nacional, não apenas para o enfrentamento de
situações conjunturais adversas, mas também para
a criação dos alicerces da construção de uma nação
economicamente mais forte e democrática.
JORGE ABRAHÃO DE CASTRO é diretor da
Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do
Ipea em Brasília.
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A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Um dos fenômenos sociais mais importantes do
último século no Brasil é o surgimento de um novo
agente social: a nova classe média. Formada em
grande parte por jovens e adultos em idade produtiva,
mulatos e mestiços que “vieram de baixo”, estudam
à noite e lutam para tocar seu próprio negócio, a
classe média se espalha pelo Norte, Nordeste e
Centro-Oeste, pela periferia das grandes cidades
e pelo interior do país. Mal surgiu e já está ditando
mudanças fundamentais na dinâmica econômica,
cultural, social, intelectual e política brasileira.
Compreender o significado destas mudanças é
importante para se entender o Brasil moderno,
seus problemas e possíveis soluções. Mais do que
isto, é passo decisivo para se apreender o peso da
responsabilidade histórica que recai sobre os ombros
de todos os brasileiros no presente e a oportunidade
que nós temos de contribuir com a humanidade.
O surgimento da nova classe média é
tema de análise e discussão em todo o país desde
que Roberto Mangabeira Unger pautou, com
profundidade, o assunto. Não há consenso sobre a
terminologia utilizada – classe média – para capturar
este fenômeno, nem sobre as causas específicas de
seu surgimento. Chama atenção, no entanto, uma
narrativa que ressalta como um conjunto de iniciativas
políticas sincronizadas ativaram o poder adormecido
do povo brasileiro. A manutenção da estabilidade
macroeconômica, combinada com a valorização
real do salário mínimo, investimentos maciços em
infraestrutura e em políticas urbanas e sociais de
transferência de renda colocaram nas mãos dos mais
pobres quantia significativa de recursos, até então
distantes de sua realidade. As pessoas passaram a
consumir em quantidade e qualidade mais elevadas,
dando origem a novo mercado de consumo no país. E
como uma enzima que ativa o espírito empreendedor
do cidadão comum, começam a surgir milhares de
pequenos e médios empreendimentos, informais e
de base familiar, onde até há pouco predominava
uma economia rudimentar e de subsistência. Em
Toritama, Pernambuco, um verdadeiro polo industrial
desabrochou no meio do Agreste nordestino e já
fornece cerca de um terço do jeans consumido no
país. Em Picos, Piauí, cooperativas de apicultores,
compostas por gente simples, sem qualificação
superior, desenvolveram tecnologia avançada que
permite processar e exportar mel para diversos
países. Exemplos como estes de empreendedorismo
e audácia científica atestam a existência de uma
economia promissora no interior brasileiro.
Mudança cultural e socialA nova classe média começa a impor mudanças
culturais. Com estilo e jeito de ser próprios, vai
rapidamente marcando contrastes com os valores
e práticas dominantes nos grandes centros.
Novos estilos musicais transcendem seus locais
de origem e ganham projeção nos meios de
comunicação de massa – alcançando, muitas vezes,
o mercado internacional. Novos sotaques e novas
personalidades vão gradualmente atraindo a atenção
do conjunto do país. Porém, o mais importante
aspecto desta mudança cultural é a proliferação,
por todo o território nacional, de novas igrejas e
associações, que inspiram o espírito de luta no povo
simples, reforçam o sentimento de solidariedade
para além da família, e muitas vezes ajudam a suprir
os déficits culturais e emocionais resultantes de uma
infância sem lar estruturado. É claro que há abusos
na exploração comercial da fé do pobre, e exageros
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas
50
na aclamação do poder total do indivíduo, e só do
indivíduo, de alcançar a salvação. Mas o certo é que
as novas igrejas estão em geral esculpindo a alma do
povo brasileiro, e dilapidando a convicção racionalista
de que a decorrência natural do progresso é a
secularização. O Brasil é cada vez menos secular e
cada vez mais avançado.
Também quanto à sua estrutura social, o
Brasil tem experimentado rápidas transformações.
Pela primeira vez em nossa história, a classe média
representa mais de metade da população nacional.
Quase 30 milhões de pessoas já saíram da pobreza
na última década e mais de 35 milhões ingressaram
na classe média. Há anos, a região do país que mais
cresce economicamente já não é o Sudeste, onde
se localizam os principais centros da produção, mas
o Nordeste, seguido pelo Centro-Oeste e o Norte.
O estado brasileiro que mais cresceu nos últimos
anos foi Rondônia, no Norte do país. E as cidades
com maiores taxas de crescimento econômico
e populacional não são as grandes capitais, mas
as cidades médias no interior. Fluxos de êxodo
populacional vão se alterando a uma velocidade
incrível. Se, há algumas décadas, o pobre do interior
do Nordeste sonhava em se mudar para São Paulo
para trabalhar em uma grande multinacional, hoje é
mais provável encontrar o trabalhador da multinacional
paulista que sonha em regressar ao Nordeste a fim
de abrir seu próprio negócio. Cidades no interior de
Minas que ameaçavam desaparecer do mapa, tal o
número de pessoas que emigravam para os Estados
Unidos e a Europa em busca de oportunidades, hoje
se revigoram com o retorno de seus cidadãos.
Um paradigma movediçoEssas mudanças já começam a criar fraturas no
pensamento social dominante no Brasil. A síndrome
da “inautenticidade”, que – nas palavras do sociólogo
Jessé de Sousa – atacou a intelectualidade brasileira
no último século, acabou por aprisionar a consciência
nacional entre dois paradigmas equivocados: ou se
enxergava o Brasil, sua situação e seus desafios,
segundo a lógica de centros desenvolvidos e
periferias subalternas, ou segundo a lógica colonial
de senhores e escravos. Em ambos os casos, os
problemas foram considerados a partir de um centro
de gravidade externo, fora do nosso controle, que
se encontrava nas mãos dos líderes do sistema
econômico global ou ancorado em uma cultura
patrimonialista e opressora da qual dificilmente
conseguiríamos nos libertar. A ascensão do brasileiro
simples, batalhador, que consegue ingressar na
classe média com o apoio de políticas públicas
bem-sucedidas, devolve ao país uma autoestima e
um horizonte de reflexão que não combinam com a
timidez do “pensamento inautêntico”. Já não parece
suficiente dizer que a raiz dos nossos problemas
está em Nova Iorque ou em Londres. Ou que o
problema do Brasil é o “jeitinho” do brasileiro. É hora
de construir um pensamento social autêntico, que
considere a ação do brasileiro não como problema,
mas como solução.
É justamente isso que começa a acontecer,
com cada vez mais vigor, na política nacional. A
nova classe média vai rapidamente se organizando
e se posicionando. Grupos religiosos, associações
de bairro, agências regionais de desenvolvimento
se espalham pelo país e vão aquecendo o debate
sobre temas de seu interesse. Este novo agente
social já elege seus representantes locais: seus
vereadores, seus deputados, seus prefeitos. E
já pauta de maneira decisiva a agenda de alguns
governos estaduais – o de Sergipe, por exemplo. Na
política federal, apenas começou a influir nos seus
rumos, o que se observa no compromisso da então
candidata Dilma Rousseff em criar o Ministério das
Pequenas e Médias Empresas e o calor do debate
sobre questões morais no fim do primeiro turno
das últimas eleições presidenciais, entre outros
temas. A julgar pelo que se observa, contudo, já
não deve surpreender a ninguém que, em muito
pouco tempo, a pauta nacional seja determinada,
em larga medida, pelas crenças e expectativas
deste novo segmento.
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A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Contradições persistentesSobram motivos para que o Brasil se orgulhe
do momento em que vive. Quem se recusa a
reconhecer o valor das recentes transformações
sociais está refletindo de olhos vendados. Mas a
ascensão da classe média e a nova realidade que
se constitui também expõem, de maneira pouco
delicada, algumas das feridas mais dolorosas de
nossa história. Contradições que há muito tempo
partem o Brasil em dois: os “poucos” e os “muitos”.
Os “poucos” que usufruem de serviços públicos de
dar inveja à Suécia, os “muitos” que nada têm.
Alguns exemplos ilustram perfeitamente
esta divisão. No mercado produtivo, embora as
pequenas e médias empresas respondam pela maior
parte dos empregos e da renda, ainda sofrem por
falta de acesso a crédito, enquanto a vasta maioria
dos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) – dententor de mais
recursos que o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional (FMI) juntos – são distribuídos a uma
elite de grandes empresas bem relacionadas com
o governo. No mercado de trabalho, embora a
legislação brasileira seja reconhecida como cânone
da proteção aos trabalhadores, quase metade
da força de trabalho é formada por empregados
informais e precarizados, fora das grandes indústrias
tradicionais e à margem da proteção legal adequada.
Na agricultura, embora o pequeno e o médio
agricultor cumpram papel fundamental na produção
e comercialização de alimentos, ainda não contam
com assistência técnica adequada, mecanismos
avançados de seguro e garantia de comercializar
a produção a preço justo – condições das quais
o agronegócio exportador usufrui. Na educação,
enquanto áreas desenvolvidas do país contam com
serviços de educação básica e média (normalmente
privada e cara) de alta qualidade, o interior do Brasil
ainda convive com um sistema público de ensino
altamente deficiente.
Até quando? Pela primeira vez na história,
o Brasil tem a chance de exercer uma “opção
nacional”, em ambiente de paz, estabilidade
política e econômica, e com prevalência dos valores
democráticos. Deverá escolher entre prosseguir com
seu modelo tradicional de desenvolvimento, inspirado
nos cânones da social-democracia europeia, que
combina crescimento (no centro) com programas
sociais de transferência de renda (nas margens), ou
jogar fora a roupa usada e inaugurar um caminho
novo, autêntico e inexplorado, que escancare a porta
estreita da democracia representativa e da economia
de mercado vigentes. É a chance real e ímpar de
reconciliar-se consigo mesmo que a história hoje
oferece ao país.
Democratizar o mercadoAs bases desse novo modelo de desenvolvimento
deveriam incluir, entre outros, quatro conjuntos de
ações, muitas delas já formuladas e desenvolvidas na
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República.
Primeiro, a democratização da economia
de mercado, para que se amplie o acesso aos
instrumentos da produção. É necessária uma nova
política industrial, que torne mais abrangente e
descentralizado o acesso ao crédito produtivo, à
tecnologia e ao conhecimento, a fim de se permitir
que as pequenas e médias empresas liderem o
processo de inovação e desenvolvimento. Também
se deve prover o país com uma rede federada de
inovação e disseminação do conhecimento aplicado
à indústria, a exemplo do excelente trabalho realizado
pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) na agricultura. E se expandir a vocação
do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae), para conceder-lhe papel proativo
e capacidade de realizar, em comunhão com
lideranças locais e estaduais, verdadeira varredura
de capacitação técnica e gerencial no Brasil.
É preciso também mudar as bases da
agricultura, investindo no fortalecimento da pequena
agricultura de base empresarial, que agregue valor
no campo, interiorize a geração de renda, e consolide
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas
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uma classe média rural forte e harmonizada com
o meio ambiente. Para isso, convém começar
efetivando um sistema federado de extensão rural,
com proeminência dos estados e suporte da União,
como já houve no passado. Também se requer
profunda reforma na arcaica legislação trabalhista,
datada dos tempos de Getúlio Vargas. Isto exige
combater a informalidade, com medidas como a
desoneração da folha de salários, mas também
proteger e representar os trabalhadores precarizados,
criando novo regime laboral ao lado do já existente.
Lançar uma revolução de qualidade educacionalSegundo, a educação brasileira precisa passar
por uma revolução de qualidade. Se, por um
lado, avançou-se muito no acesso ao ensino nos
últimos anos, por outro lado o Brasil se posiciona,
há anos, nas últimas posições da fila de qualidade
educacional, quando comparado aos outros países.
O país precisa fortalecer sua pré-escola – é ali que
ocorre a constituição básica da capacidade cognitiva
do indivíduo. Também precisa transformar o ensino
médio, reorganizando seu modelo pedagógico e
tornando-o menos informativo e mais analítico,
menos comprometido com a formação técnica
voltada a ofícios rígidos e mais empenhado na
formação de profissionais com capacitações flexíveis.
É necessário, ainda, que se promova um “choque
de ciência”, o qual aproxime as universidades dos
empreendimentos mais avançados, criando-se
um círculo virtuoso entre inovação tecnológica e
economia de ponta. Isto não ocorrerá enquanto
o Brasil continuar a tratar seus maiores centros
de pesquisa como ilhas da fantasia habitadas por
intelectuais moralmente corruptíveis.
Reformar a política Terceiro, a política brasileira precisa se transformar.
A medida mais premente é a realização de uma
reforma que emancipe a política brasileira da
influência do dinheiro, sob pena de ela continuar a ser
considerada atividade suja e menor. O financiamento
público de campanhas e a democratização do acesso
aos meios de comunicação de massa são duas
das medidas que poderiam cumprir esta finalidade.
Ademais, é fundamental mudar, na raiz, a concepção
do constitucionalismo brasileiro. Constituição não é
para dizer que não pode, que não dá, para frear ou
interromper a política. Ao contrário, precisamos de
Constituição para ativá-la, para reunir e comprometer
o melhor de nossas inteligências e de nossa energia
no enfrentamento dos problemas mais prementes
e na realização de nossos sonhos mais elevados.
Para isso, deve-se substituir o esqueleto de aço
do federalismo e da separação de poderes por
regras mais maleáveis, que permitam e estimulem
a colaboração entre os poderes e entre os entes
federados, bem como entre consórcios de municípios
e estados com a União, ou entre regiões inteiras,
no enfrentamento de problemas comuns. Também
é importante oxigenar a democracia representativa
com meios de participação direta, ampliando
canais como plebiscitos e referendos, bem como
constituindo novos loci de manifestação popular, a
exemplo dos conselhos e ouvidorias.
Restaurar o EstadoQuarto, o Estado capaz de satisfazer todas estas
demandas ainda não existe nem no Brasil nem
em qualquer outro lugar do mundo. Não se trata
de mudar o Estado como fim em si mesmo, pela
mesma razão que uma empresa não cria um novo
departamento para só depois descobrir o que fazer
com ele. Deve-se mudar o Estado em nome da
realização deste novo modelo de desenvolvimento. O
Estado reconstruído resultará da combinação de três
tarefas. A primeira é aprofundar a profissionalização
da Administração Pública, reduzindo o número
de cargos comissionados de livre nomeação por
quadro profissional qualificado, supervisionado
interna e externamente, e operando segundo metas
flexíveis. A segunda é aprofundar a adaptação, ao
setor público, de métodos e princípios típicos do
53
A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
setor privado. A Administração Pública deve pautar-
se pela eficiência, mas sem perder de vista que, no
caso do Estado, a eficiência é ditada por normas
públicas e não pela ação livre do servidor. A terceira
é flexibilizar os critérios de prestação de serviços
públicos, como saúde e educação, aproximando o
Estado, o mercado e a sociedade civil, em regime de
colaboração, na satisfação de fins sociais. Para isso,
o Estado tem o papel central de treinar, monitorar,
equipar e controlar a prestação dos serviços por
organizações da sociedade civil, ao mesmo tempo
organizando a circulação de experiências exitosas e
o aprendizado coletivo.
Reivindicando o nosso futuroEsse conjunto de medidas mostra uma rota autêntica
para o desenvolvimento do país, capaz de oferecer à
grande maioria do seu povo a chance de aprender,
trabalhar e produzir. Ao fazer isso, o Brasil também
pode servir de inspiração para nossos irmãos
latino-americanos e africanos, para nossos amigos
asiáticos, e de lição para a Europa e os Estados Unidos
no seu desafio atual de superar a crise do arranjo
social-democrata. No século XIX, Hegel dizia que a
instauração de nova consciência no novo mundo –
os Estados Unidos – representava a expansão do
espírito. Espírito, para Hegel, significava forma de
vida autoconsciente, energia reflexiva, luz própria.
Os Estados Unidos, por assim dizer, representavam
a expansão autoconsciente das possibilidades de
pensar e de agir no planeta. Hoje, o novo mundo é
a América Latina, a África e a Ásia. É nestas regiões
que se começa a presenciar uma nova etapa da
expansão do espírito. A ascensão da classe média no
Brasil e o seu efeito ácido sobre a forma dominante
de organização da economia, da sociedade, da cultura
e da consciência escancaram o futuro diante de nós.
Cabe só a nós, agora, decidir se vamos assumir a
responsabilidade de construir um novo modelo de
desenvolvimento, que abrace a classe média, una o
país e contribua com a humanidade, ou se vamos
continuar vestindo a roupa velha.
DANIEL VARGAS é mestre e doutorando em direito
em Harvard, e foi ministro interino de Assuntos
Estratégicos.
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À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A Índia se encontra hoje submetida aos espasmos
de uma transformação tumultuada, provavelmente
mais profunda, no seu impacto social, que a transição,
há 74 anos, do colonialismo para a independência e
a democracia. Esta mudança tem sido fortemente
mediada pela globalização econômica, tecnológica
e cultural. A liberalização da economia indiana, no
início dos anos 1990, desencadeou a emergência de
uma poderosa pujança econômica e empresarial em
uma escala sem precedentes, e traduziu-se muito
rapidamente em surpreendentes taxas de crescimento
econômico, que levaram a Índia para o âmbito do G-20
e lhe valeram até mesmo um convite para cear na
mesa do exclusivo G-8. Esta transformação levantou
também uma onda invulgar de otimismo na sociedade
indiana, à medida que novas oportunidades traziam
a promessa de uma melhoria de vida para a vasta
maioria dos cidadãos indianos.
Vinte anos depois, apesar da história
extraordinária de mobilidade econômica e social,
os níveis atuais de desenvolvimento econômico
coexistem com um patamar de quase estagnação
no que diz respeito ao desenvolvimento humano. A
economia indiana ocupa o sétimo lugar no ranking
mundial do produto interno bruto (PIB), e o quinto
lugar no ranking do PIB em paridade de poder
de compra. Entretanto, no que tange ao índice de
desenvolvimento humano (IDH), a economia indiana
ocupa um modesto 119º lugar entre os 169 países
listados. Nunca foi tão difícil lidar com as contradições
de uma sociedade em que a pobreza profunda – que
equivale hoje, em números absolutos, à população
total da Índia na época da independência– coexiste
com uma riqueza de inimagináveis proporções.
Enquanto milhares de fazendeiros endividados se
suicidam, o homem mais rico da Índia está gastando
US$ 2 bilhões na construção de sua residência de 27
andares, que dispõe de três helipontos e uma equipe
de 600 empregados para atender a uma família de
seis pessoas.
A dualidade indivíduo – comunidadeExiste hoje um sentido onipresente de crise –
moral, social e institucional –, na medida em que
a sociedade indiana busca desesperadamente
encontrar algum sentido em um mundo social em
vertiginosa mutação, o qual parece ter lançado
suas fundações em areias movediças. O poder
colonialista sempre se esforçou por representar a
Índia como uma comunidade política constituída
por diversas comunidades sociais; os indivíduos,
principalmente, apenas como membros destas
comunidades. A Constituição indiana buscou
redefinir esta representação, dando-lhe a feição de
um relacionamento entre o Estado e os cidadãos
individuais, mas foi a globalização que deu ímpeto
ao projeto de transformar os membros deste
mundo social em indivíduos. No contexto da
economia, eles são cidadãos consumidores que
negociam um mercado de escolhas múltiplas,
adquirindo conhecimentos da língua inglesa como
instrumento de mobilidade social, e realizando suas
aspirações por meio da obtenção de um emprego
na área de externalização de serviços e nos setores
de tecnologia e serviços. Esta dinâmica é verificada
particularmente nas pequenas cidades da Índia,
cujos jovens estão abrindo caminho por meio da
meritocracia, e adentrando os mundos diversificados
e competitivos da indústria, do governo, do esporte
e da mídia.
Esse novo espírito de individualismo se
choca, de certa forma, com as configurações
costumeiras que a cidadania assume na política.
Com a prevalência das políticas de casta, região e
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal
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religião na maneira de fazer política no período que
precedeu as reformas econômicas, o relacionamento
entre os cidadãos e o Estado foi sempre mediado
pela comunidade. Embora estas formas não tenham
perdido totalmente sua validade enquanto meios de
legitimação política, existe atualmente certa tensão
criativa entre as dinâmicas rivais do individualismo –
nascido do mercado – e da comunidade, da forma
como ela é constituída na esfera da política. Novas
formas de cidadanias individualizadas estão sendo
impulsionadas pelo ativismo da sociedade civil e
pela mídia eletrônica, que abrem oportunidades
incomuns para a expressão da cidadania, mesmo que
fortemente restritas às classes médias instruídas e,
às vezes, beirando o vigilantismo.
As bases afetivas da política, contudo,
estão longe de ter desaparecido. As castas são um
instrumento bem mais poderoso na esfera política
que na esfera social ou ritualística. Os laços de
família também permanecem fortes e flexíveis,
especialmente onde o poder e o dinheiro estão
envolvidos. Se as maiores empresas privadas são
empresas de família, assim também são a maioria
dos partidos políticos. O princípio da dinastia
determina, com algumas exceções, a sucessão
em ambas as áreas. Um terço dos membros do
Parlamento – um número surpreendentemente
grande – provém de famílias políticas, e esta
tendência se repercute, de cima para baixo, até
as instituições de governança local. A liderança
da maioria dos partidos políticos é estreitamente
controlada por apenas uma pessoa e, com a
exceção de três partidos regionais liderados por
mulheres solteiras, o princípio da herança política
reina absoluto. Os interesses comerciais de muitos
caciques políticos – desde a posse de instituições
educacionais até as empresas de médio porte
– são bem conhecidos. O poder econômico se
traduz em poder político com a mesma facilidade
e fluidez com que o poder político se traduz em
poder econômico.
Sensação de criseA depressão moral que se constata hoje está forçando
a sociedade indiana a negociar de novo a questão de
como e onde traçar uma linha de separação entre
o público e o privado. O consenso da elite, nas
normas institucionais modernas que consagram
este limite, foi pela primeira vez questionado há
cerca de trinta anos, por uma nova linguagem
democrática, especialmente por parte das parcelas
mais baixas das castas. Sua impaciência em relação
a estas normas, e até sua rejeição, foi inicialmente
valorizada como uma resposta plebeia às normas
autobeneficiárias e hegemônicas estabelecidas
pelas classes e castas mais altas. Com o tempo,
entretanto, a fungibilidade destas normas significou
não mais a construção de um universo moral
alternativo, mas a quebra dos antigos consensos
normativos. Uma série de recentes escândalos
envolvendo o governo, interesses empresariais
e a mídia tem gerado preocupações acerca do
persistente e penetrante avanço da cobiça e da
corrupção, e da “fibra moral”da sociedade indiana.
Como ocorre com frequência, o que se chama
popularmente de crise moral é algo sintomático que
está inserido em um fenômeno maior.
O que as recentes denúncias de corrupção
têm mostrado, antes de mais nada, são as gigantescas
fontes de benefícios que representa a dominação
exercida pelos funcionários do Estado sobre o
licenciamento e controle das imensas e valiosas
extensões de terras, e dos volumosos recursos
naturais como o petróleo e os minerais – acrescidos
agora do domínio do espectro de banda larga para as
comunicações sem fio. O desenfreado clientelismo
entre servidores públicos – tanto os políticos quanto
os burocratas – e interesse privado nunca foi tão
marcante quanto agora. Nunca, desde a época em
que a escravidão era legal, a mercantilização dos seres
humanos foi tão celebrada; recentes manchetes nos
jornais indianos denunciaram que enquanto alguns
jogadores de críquete eram “leiloados” por grandes
ligas por quantias obscenas de dinheiro, outros não
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À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
conseguiam ser “vendidos”. Todavia, muito pior
que estes exemplos de escândalos comerciais é
o caso da crise ecológica e da cínica exploração e
marginalização dos povos tribais que vivem nas áreas
ricas em minerais e recursos florestais.
Inclusão social sem solidariedadeEsses déficits morais e institucionais são, sem dúvida,
o resultado de uma falha mais antiga: o fracasso da
antiga tradição – representada pelo que poderia ser
chamado de social-democracia indiana – em canalizar
a emotividade da comunidade para um sentido
mais secular de solidariedade social. A Constituição
transformou a pessoa humana na unidade política
fundamental do Estado, mas também permitiu que
as identidades grupais fossem reconhecidas, para
garantir direitos culturais às minorias religiosas e
assegurar a criação de quotas no emprego público
e no sistema educacional para as castas e grupos
tribais mais desfavorecidos. Não demorou muito
para que outras identidades comunitárias se
mobilizassem e, à medida que esta forma passou
a ser preeminente para a expressão das demandas
políticas, a agenda quase socialista foi se tornando
algo apenas retórico, fracassando na invenção de uma
ideologia igualitária que poderia tratar das diferenças
de classe e castas e transcendê-las. À medida que
as solicitações de identidades coletivas tomavam a
forma de reivindicações de igualdade substantiva,
a política de identitidade adquiria uma legitimidade
própria quase inconteste. A acomodação política
destas reivindicações acabou tornando-se uma
substituição para a retificação das desigualdades.
Dispositivos como as políticas de ação afirmativa e
de quotas tiveram, sem dúvida, algum sucesso na
criação de oportunidades para membros dos grupos
discriminados. Entretanto, estes dispositivos nem
sempre foram capazes de impedir a criação de
elites entre estes grupos, o que fez com que as
oportunidades tendessem a se reproduzir através
das gerações, consolidando-se a partir dos privilégios
concedidos à geração anterior sem estender-se nem
alcançar, necessariamente, aqueles que não tiveram
oportunidades semelhantes.
Em resumo, pode-se dizer que as políticas
de ação afirmativa permitiram que o projeto de
inclusão social nessa tão diversificada democracia
registrasse avanços bem-sucedidos, uma vez que
os grupos desfavorecidos têm modernamente uma
presença maior nas legislaturas, na burocracia e nas
universidades, embora reconhecidamente menor
na indústria e na mídia. Estes grupos têm sido
também instrumentos eficazes no gerenciamento
da diversidade, refreando assim o potencial de
conflitos sociais. Conquanto os conflitos sociais
tenham sido mantidos sob controle, a fragmentação
social não o foi, com implicações menos felizes
quanto à possibilidade de forjar a solidariedade entre
os cidadãos. A tarefa de reconstruir uma social-
democracia na Índia será, muito provavelmente,
dificultada por esta falta de solidariedade social e dos
sentimentos mútuos e fraternos que deveriam lhe
servir de base.
Lições para o BrasilO Brasil, por sua vez, mediante políticas progressivas
postas em prática pelos dois presidentes anteriores,
agora continuadas por sua primeira presidente,
consolidou uma social-democracia cujo sucesso
incrível na recuperação de 20 milhões de pessoas
que se encontravam abaixo do limiar da pobreza,
por meio do Programa Bolsa Família, provocou a
admiração do mundo inteiro. Ao mesmo tempo,
a questão de a desigualdade de oportunidades ser
influenciada pela raça levou ao estabelecimento de
uma quota de 20% de negros nas universidades.
Com uma sociedade tolerante com a variedade de
colorações, e dispondo de uma social-democracia
baseada na solidariedade, será, com certeza, muito
mais fácil fazer progredir um programa de inclusão
social e oferecer mais oportunidades aos grupos
raciais excluídos.
Embora a Índia tenha um razoável histórico de
gerenciamento da diversidade via políticas inclusivas,
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal
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seu desempenho não é dos melhores, talvez até pior
que os países da África Subsaariana, nas áreas de
desnutrição endêmica, saneamento, água potável,
educação primária e atenção à saúde. Apenas muito
recentemente, alguns programas de natureza laica de
bem-estar social têm recebido estímulos, por meio
do reconhecimento de direitos sociais e econômicos
tais como o direito à educação, o direito ao trabalho,
e agora do que é uma iniciativa permanente – o
direito à alimentação. Os estudos mostram que,
embora a implementação destes programas seja
frequentemente prejudicada pela corrupção e pelo
desperdício, o monitoramento pela sociedade civil
tem ajudado bastante. O Programa Bolsa Família
suscitou grande interesse na Índia. Contudo, cabe
assinalar que fatores verificados no Brasil, como o
nível mais elevado de educação e a maior densidade
das redes da sociedade civil, fornecem indícios de
que um programa deste tipo poderia não funcionar tão
bem em um país predominantemente rural como a
Índia, onde, ademais, um grande número de pessoas
é analfabeto. Estes déficits ressaltam a urgência e a
importância, para a Índia, de uma melhor educação e
da criação de meios de vida. Estas ações, juntamente
com a energização e o reforço da sociedade civil no
sentido de mobilizar as demandas e as reivindicações
de forma mais efetiva, parecem ser as lições benéficas
que a Índia pode receber do Brasil.
NIRAJA GOPAL JAYAL é professora no Centro de
Estudos de Direito e Governança da Universidade
Jawaharlal Nehru em Nova Délhi
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Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Existem diferenças de princípios e também de
interesses em cada sociedade. Nas sociedades
livres, estas diferenças acabam encontrando sua
expressão nos conflitos políticos e sociais. A coesão
social, entretanto, não significa e não pode significar
a ausência de conflitos ou a conquista definitiva da
justiça. Ela requer, pelo contrário: i) um consenso
em relação às instituições e aos procedimentos
por meio dos quais os conflitos serão solucionados;
ii) a sensação de que a sociedade está avançando
em direção a justiça e inclusão mais amplas; e
iii) a convicção de que os grupos em competição são
membros de uma única comunidade que compartilha
um destino comum.
A unidade dos Estados Unidos repousa não na
descendência e etnia comuns, mas sobretudo na
aceitação de princípios, instituições e esperanças
por parte das pessoas. Os princípios estão
estabelecidos na Declaração da Independência;
as instituições, na Constituição elaborada durante
séculos de interpretação; e nossas esperanças, no
famoso “sonho americano” de que as pessoas que
estão dispostas a trabalhar duro e dentro das regras
estabelecidas poderão criar melhores condições
de vida para elas e para seus filhos. O movimento
em prol dos direitos iguais para os afro-americanos
derrotou o ”nacionalismo negro” precisamente pela
evocação das bases históricas da unidade americana.
Este movimento, na verdade, reivindicava a inclusão
e não a separação, e foi em parte bem sucedido
porque a white America não tinha condições de
refutar a força moral de suas reivindicações.
Pontos de tensãoIsto dito, não se pode negar, entretanto, que a
coesão nos Estados Unidos tem se enfraquecido
nas últimas décadas. A polarização entre os partidos
políticos baseia-se agora em orientações ideológicas
fundamentalmente distintas sobre o papel do
governo na vida econômica e social do país, sobre
a interpretação da Constituição e assim por diante.
Os partidos também representam eleitorados
diversos. O Partido Republicano, nosso partido
conservador, congrega a maioria dos americanos
brancos, dos americanos idosos, e do setor privado.
O Democrata, nosso partido de centro-esquerda,
reúne a maioria das mulheres, dos afro-americanos,
dos jovens adultos, dos trabalhadores sindicalizados
e dos eleitores vindos de países hispanófonos. Estas
diferenças de visão e de eleitorado estão complicando
os esforços para se obter progressos e consenso no
que concerne aos atuais – e assustadores – desafios
fiscais e econômicos.
Um elevado nível de fé e de observância
religiosa distinguiu sempre os Estados Unidos das
democracias europeias, e os estudiosos consideram
que a religião é uma das principais fontes de nossa
vibrante sociedade civil. Mas há já algumas décadas,
diferenças religiosas tendem a enfraquecer a
coesão social nos Estados Unidos. Protestantes
liberais, católicos moldados pelo Concílio Vaticano
II, e os seculares, têm se agregado a movimentos
de tendência esquerdista e se alinhado com o
Partido Democrático. Por sua vez, os protestantes
evangélicos, os católicos tradicionalistas e os
judeus ortodoxos tornaram-se os pilares da política
conservadora e do Partido Republicano. Os debates
sobre o aborto, sobre a pesquisa em embriões
humanos e sobre os direitos legais de gays e lésbicas
refletem e aprofundam as divisões existentes na
sociedade americana.
Embora os Estados Unidos se considerem
uma nação de imigrantes, a validade desta afirmação
não se confirmou sempre na nossa história. Entre
1924 e 1965, as portas para imigração se fecharam
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston
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e o volume de imigrantes caiu para 5% da população
americana. Um índice sem precedentes. A reforma
da legislação sobre imigração reabriu estes portões
e o surto de imigração que se seguiu quase triplicou
a parcela de imigrantes da população. O número de
imigrantes não somente foi gigantesco, mas suas
origens haviam mudado. Uma porcentagem muito
maior provinha de países hispanófonos, e muitos
deles violavam a lei para entrar ou permanecer nos
Estados Unidos.
Durante os anos 1980, essa questão tinha
se transformado em problema político, e assim
permanece até hoje. Às tradicionais preocupações
sobre os custos econômicos e sociais da imigração
foram acrescentados receios sobre o separatismo
cultural e linguístico. Muitos cidadãos americanos
veem em fenômenos como a divisão entre os
canadenses francófonos e anglófonos um resultado
a ser evitado. A história conturbada entre os
Estados Unidos e o México é uma complicação a
mais, especialmente pelo fato de alguns ativistas
tolamente recorrerem agora ao irredentismo como
argumento de separação. A imigração tem inclusive
causado divisões entre as fileiras conservadoras:
membros da comunidade de negócios aceitam
agora imigrantes qualificados e não qualificados para
exercer atividades que os nativos não podem ou não
querem desempenhar, enquanto os conservadores
sociais levantam problemas como a língua, a cultura,
a seguridade social e o crime.
A mudança nos padrões econômicos Além dessas tendências políticas, culturais e sociais
adversas, a coesão econômica também enfraqueceu
nos Estados Unidos. Nas três décadas que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial, à medida
que a produtividade aumentava, todos os setores
da força de trabalho eram beneficiados por ganhos
econômicos rápidos, a classe média se expandiu,
e a pobreza reduziu-se de forma drástica. Por volta
dos anos 1970, a parcela de renda e de riqueza dos
três quintos da população básica havia alcançado
seu ponto máximo desde os anos 1920. Mas a
partir de então estas tendências se reverteram: a
renda cresceu menos; os ganhos consequentes à
melhoria da produtividade passaram a beneficiar, de
forma desproporcional, as famílias de rendimento
mais elevado; e a renda e a riqueza se tornaram
cada vez mais desiguais. A renda dos mencionados
três quintos da população manteve-se estagnada,
enquanto os rendimentos da parcela constituída
pelas camadas mais altas se beneficiavam de um
aumento de renda, ajustada à inflação, três vezes
superior. No início dos anos 1970, a remuneração
de um executivo típico era cerca de 30 vezes a
remuneração média ganha pelos operários. Por
volta de 2005, esta diferença chegou a 120 vezes.
Não é de surpreender que a parcela de famílias
com rendimento acima de US$ 100 mil mais do que
dobrou entre 1980 e 2005, de 9,4% a 20,2%, e que
10 % das famílias mais abastadas detinham 70% da
riqueza total.
Os analistas debateram longamente as
causas dessas tendências. Não há dúvidas de que
a imigração, a tecnologia, o comércio e o declínio
dos sindicatos de trabalhadores desempenharam
cada um sua parte. As modificações no seio do setor
industrial foram especialmente significativas porque
durante longo tempo após a Segunda Guerra Mundial
o setor manufatureiro havia sido uma grande fonte de
empregos de renda média para trabalhadores com
níveis modestos de educação e de especialização.
A produção industrial americana em 2010
foi maior do que em 2000, e os Estados Unidos
mantiveram sua posição de produtor líder de
bens industriais. Mas nesta mesma década, o
emprego na indústria reduziu-se em um terço,
de 17,20 milhões para 11,6 milhões. Contudo, os
ganhos consideráveis de produtividade permitiram
que as empresas baseadas nos Estados Unidos
permanecessem viáveis, apesar da pressão vinda de
seus competidores globais. Esta redução não teve
somente repercussões econômicas, mas também
sociais. Muitos trabalhadores desempregados foram
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Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
obrigados a aceitar novos empregos com salários
menores, outros nunca mais conseguiram trabalho
e foram forçados a se aposentar prematuramente,
com recursos limitados. Os estados e cidades
industriais da zona central dos Estados Unidos
foram particularmente afetados, o que exacerbou as
disparidades regionais.
A diminuição da mobilidade socialNa história dos Estados Unidos, sempre que
ocorriam períodos de desigualdade crescente, estes
eram compensados por um alto nível de mobilidade
social. Na verdade, foi a crença de que nos Estados
Unidos qualquer um, nativo ou emigrante, pode
escapar da pobreza através da autodisciplina e do
trabalho duro, que sustentou a coesão social, a
despeito de níveis de desigualdade que teriam, em
outras sociedades mais estáticas, gerado intensos
conflitos. Há evidências, atualmente, de que a
mobilidade nos Estados Unidos é mais difícil do que
já foi e ocorre com menos frequência do que em
outras democracias avançadas. Um estudo recente
mostrou que 42% dos trabalhadores homens, cuja
renda dos pais pertencia à faixa da população de
renda mais baixa, permaneceu nesta faixa, enquanto
os números comparáveis na Europa foram de 25%
para a Dinamarca, de 28%, para a Noruega, e de
30% para o Reino Unido .
Lamentavelmente, o sistema educacional
que sustentava antigamente a mobilidade americana
está agora solapando essa mobilidade. Cerca de
30% dos alunos do curso secundário abandonam
os estudos sem receber seu diploma, e um grande
número de alunos de baixa renda das universidades
deixam de completar seus estudos e de receber
seus diplomas de 2o ano e de 4o ano. Comparações
internacionais sugerem que os Estados Unidos estão
atrás de outras sociedades avançadas nos cursos
secundários e nos superiores, assim como nos
índices de complementação de curso.
No passado, os programas sociais ajudaram
a contrabalançar o crescente nível de desigualdade.
Desde a década de 1970, as despesas públicas de
auxílio – ajustadas à inflação – às famílias pobres
e de baixa renda mais do que triplicaram, e agora
alcançaram a cifra de US$ 600 bilhões por ano.
Infelizmente, este volume de despesas sociais está
sofrendo pressões sérias em todos os níveis da
esfera federal americana, pois o orçamento nacional
está acumulando déficits e dívidas em um ritmo
insustentável, e será muito difícil chegar a uma
situação de equilíbrio sem redução nos gastos sociais.
Na verdade, quanto maior a dificuldade política de
reduzir os gastos em aposentadorias e assistência à
saúde para a classe média, maiores cortes se farão
necessários em programas tais como o Programa de
Garantia de Renda Mínima (means-tested programs).
Além disso, a recente grande recessão foi um duro
golpe para as finanças estaduais e municipais e a
recuperação será lenta e dolorosa. Nesse meio-
tempo, mesmo que os governadores e prefeitos
tenham condições de aumentar os impostos (o
que já é difícil em circunstâncias normais), eles
terão certamente de cortar também recursos para
programas que financiam a saúde, a educação e os
serviços sociais para a população de baixa renda.
Um futuro esperançosoResumindo, no curto e no médio prazo as
perspectivas de uma melhor coesão social nos
Estados Unidos não são alvissareiras. Todavia,
há ainda esperanças no longo prazo. A chave para
conseguir progressos neste sentido será o retorno
a um crescimento econômico vigoroso cujos frutos
possam ser compartilhados de maneira ampla. E,
a despeito da contestação partidarista, há sinais do
surgimento de uma agenda consensual, em favor
do crescimento, para a segunda década do século
XXI. Tal agenda deve integrar quatro elementos
básicos. Em primeiro lugar, o prosseguimento
dos estímulos no curto prazo, acompanhados de
um plano multianual de consolidação fiscal e de
estabilização. Em segundo lugar, uma mudança nos
programas sociais universais, em direção a medidas
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston
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mais orientadas para as necessidades das famílias
pobres e de baixa renda, e novo foco em programas
como os que se preocupam com educação infantil
precoce e de alta qualidade, que comprovaram
haver beneficiado aqueles que se encontram no
patamar mais baixo da sociedade. Em terceiro lugar,
aumento dos investimentos em áreas vitais para o
crescimento de longo prazo, tais como pesquisa e
desenvolvimento, inovação, infraestrutura e reforma
educacional. E finalmente, novas iniciativas na área de
comércio internacional, incluindo tratados bilaterais e
multilaterais, juntamente com uma reunião de mútuo
consenso com a China sobre problemas financeiros
e de moeda.
Durante o século passado, houve períodos
em as pessoas se preocupavam com o fato de que
os Estados Unidos estivessem perdendo caminho
e de que os melhores dias já haviam passado. O
foco desta ansiedade passou – durante meu período
de vida – da Rússia para o Japão, depois para a
Alemanha, e agora para a China. Mas a estrutura
básica desta ansiedade continuou a ser a mesma
– a de que os Estados Unidos, conjunto singular de
organização econômica, de instituições políticas e de
entendimentos sociais, não estavam mais adaptados
às circunstâncias cambiantes. Mas todas as vezes os
pessimistas subestimaram a capacidade americana
de autocorreção, de adaptação e de renovação do
país. Na verdade, sua força interior permanece intacta
– uma população trabalhadora e cheia de energia, uma
economia que incentiva a capacidade empresarial,
um sistema social que premia a individualidade e a
inovação e um sistema educacional que, a despeito
de todas as suas deficiências, encoraja os alunos a
pensarem por si mesmos.
A grande dúvida que ainda perdura não
é nenhuma das que eu citei, mas diz respeito à
incerteza quanto à capacidade de as instituições
políticas sobrepujarem a polarização e a miopia, e de
se reunirem para tomar as medidas necessárias a fim
de se assegurar uma prosperidade compartilhada nas
próximas décadas. O declínio dos Estados Unidos,
se é que algum dia isto vai acontecer, não virá
pelas mãos de algum competidor, mas das feridas
autoinfligidas, das falhas de sua própria autonomia.
WILLIAM GALSTON é o titular da cadeira Ezra K.
Zilkha em Estudos em Governança na Brookings
Institution, em Washington, e ex-assessor do
Presidente Bill Clinton.
Parte 3:Autonomia na era da interdependência
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A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Embora o extraordinário desenvolvimento econômico
e financeiro da economia brasileira tenha sido
acompanhado com muita atenção, não se examinou
de modo sistemático a crescente importância política
regional e global que o Brasil vem assumindo. Pode-
se dizer, sem receio de errar, que a emergência do
Brasil como ator político está fundamentada em
grande parte na boa gestão econômica de quatro
governos brasileiros – os de Fernando Henrique
Cardoso (1995–2002) e os de Luiz Inácio Lula da
Silva (2003–2010). Neste período de 16 anos, o
Brasil firmou sólida reputação internacional com
seus programas pragmáticos e flexíveis de reforma
bancária e de metas inflacionárias, além do pacto de
responsabilidade fiscal estabelecido entre Brasília
e os governos estaduais, e de uma série de outras
reformas que permitiram que o presidente Lula
pudesse afirmar que o Brasil foi o último país a
entrar na crise de 2008-2009, e o primeiro a sair dela,
relativamente incólume.
Desenvolvimento econômico através da consistência políticaA continuidade na política foi a chave desse
sucesso. Em seu período como ministro da Fazenda
(1993-1994) do governo Itamar Franco, Fernando
Henrique Cardoso instituíra um programa de
estabilização chamado Plano Real, que demonstrou
ser imprescindível. O plano conseguiu lidar de forma
efetiva com a crise financeira de 1999, durante a qual
a moeda vinha sendo desvalorizada em consequência
das pressões dos especuladores de moeda, e atuou
com rapidez e sucesso. A administração Fernando
Henrique Cardoso também apoiou com firmeza a
privatização das empresas estatais, a despeito da
feroz oposição dos trabalhadores e dos defensores
das políticas de esquerda. Diversamente dos
seus predecessores, FHC estabeleceu o princípio
da autonomia do Banco Central. Esta política,
responsável por grande parte da estabilidade atual,
foi posteriormente mantida pelo presidente Lula,
mesmo enfrentando as críticas dos membros de
seu próprio partido, que consideravam que o partido
no governo deveria fazer jus às mesmas políticas
inflacionárias de emissão de moeda empregadas
pelos governos anteriores.
O presidente Lula foi empossado em janeiro
de 2003, sob persistentes rumores de que não
daria continuidade às políticas fiscais e monetárias
de seu predecessor. Entretanto, na sua Carta ao
povo brasileiro, distribuída durante a campanha
presidencial, havia prometido reconhecer os
contratos, manter a estabilidade fiscal e reduzir a
dívida de seu país. Nomeou para o cargo de presidente
do Banco Central o conhecido e admirado Henrique
Meirelles, e, para ministro da Fazenda, o altamente
competente Antônio Palocci. A equipe econômica
trabalhou e se entrosou muito bem. Poucos meses
depois, estava perfeitamente evidenciado que os
avanços obtidos pelo governo anterior estavam
servindo de base para os subsequentes passos
necessários à modernização da economia.
O governo Lula teve também a extraordinária
ventura de começar sua administração no preciso
momento da expansão do mercado de produtos
primários (commodities), estimulada principalmente
pela China. O Brasil, um gigante agrícola, tem
sido – historicamente e na atualidade – fornecedor
de um amplo leque de alimentos para o mercado
internacional. É também um dos maiores produtores
mundiais de minério de ferro – utilizado na produção
de aço – e portanto, um elemento-chave para o
modelo de desenvolvimento chinês. Além disso, o
programa de biocombustíveis, área na qual o Brasil
é líder, desenvolveu-se bastante com a rápida
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett
66
expansão da produção de etanol a partir da cana-
de-açúcar. Para coroar esta boa conjuntura, foram
descobertas, em meados do segundo mandato
presidencial de Lula, maciças reservas de petróleo
e de gás natural em uma área geológica chamada
de pré-sal em razão da localização das jazidas sob
espessa camada de sal, ao largo da costa sudeste
do Brasil.
Liderança da cooperação e integração regionalAssentando-se na estabilidade financeira e no
dinamismo produzido pelo crescimento do comércio,
o governo Lula continuou a expandir a influência do
Brasil na América do Sul e, mais seletivamente, no
cenário mundial. Embora o Brasil tenha sido encarado
com suspeição, durante séculos, pelos seus vizinhos
hispano-americanos, os governos brasileiros puseram
em prática, após a transição da ditadura militar em
1985, políticas ativas de integração e de cooperação
sub-regionais. Um dos exemplos mais marcantes é
o Mercado Comum do Sul (Mercosul), formado por
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Esta é a primeira
iniciativa bem-sucedida de integração regional da
história do continente. No final de seu governo,
Fernando Henrique organizou em Brasília, em 2000,
a primeira conferência de cúpula de chefes de Estado
da América do Sul, momento decisivo nas relações
entre o Brasil e seus vizinhos. Nos anos seguintes,
o Brasil continuou a ser um parceiro respeitado e um
vizinho colaborativo. Uma segunda cúpula realizou-se
em 2002 na cidade de Guayaquil, no Equador.
A integração e a cooperação regional
foram sempre políticas perseguidas na América
do Sul. Por iniciativa do Brasil, uma terceira cúpula
foi realizada em Cusco, no Peru, em dezembro de
2004, revigorando de forma dramática o projeto. A
Declaração de Cusco estabeleceu as bases para a
Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa). O
objetivo era a reunião dos dois blocos sub-regionais
existentes na região: o Mercosul e a Comunidade
Andina de Nações (CAN). Na reunião de cúpula
subsequente, realizada em Brasília em maio de 2008,
um tratado constitutivo foi unanimemente aprovado,
criando a União das Nações Sul-Americanas (Unasul),
que veio substituir a Casa.
Além de trabalhar para a integração sul-
americana, o Brasil tomou a iniciativa de convocar
a primeira Cúpula da América Latina e do Caribe,
realizada na Costa do Sauípe, Bahia, em dezembro
de 2008. Simbolicamente, não foram convidados a
participar os Estados Unidos, o Canadá e a União
Europeia, como o foi, pelo contrário, o regime de
Fidel Castro. Esta decisão, de cunho muito político,
foi vista como uma crítica deliberada ao embargo
americano a Cuba.
Outra iniciativa importante do Brasil na região
foi a formação do Conselho Sul-Americano de Defesa
(CDS). Este órgão destina-se a servir de mecanismo
para a segurança regional e para a cooperação militar
na área da defesa. O acordo foi ratificado em março
de 2009, em reunião realizada em Santiago, no Chile.
O Brasil também apoia fortemente a nova Iniciativa
para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-
Americana (IIRSA), a livre movimentação das pessoas
na região e o Anel Energético Sul-Americano. Na
verdade, o Brasil tem agido na qualidade de paciente
parteiro no nascimento destes programas regionais,
e tem merecido crédito pelo papel exercido.
Uma voz influente no cenário internacionalO Brasil vem se tornando também um ator
imprescindível em grande número de iniciativas
globais. Durante a crise de 2008, as pressões das
economias de mercado emergentes haviam levado
o governo do presidente norte-americano George W.
Bush, já em fim de mandato, a procurar novo alento
no Grupo dos Vinte (G-20). Constituído pelas vinte
maiores economias do mundo, o grupo debateu e
buscou uma nova arquitetura financeira. Também
se reivindicou, com sucesso, um papel mais ativo,
no Fundo Monetário Internacional (FMI), por parte
das maiores economias em desenvolvimento. O
então presidente Lula e o ministro da Fazenda
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A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
criticaram severamente os países industriais pela
sua administração fraca, regulação permissiva e
falta de transparência. Nesse contexto, Lula gostava
de lembrar aos países em desenvolvimento que o
Brasil foi a última grande economia a entrar na crise
e a primeira a emergir dela. O Brasil continuará a
ser um ator-chave nas discussões em curso sobre
como prevenir outro desastre financeiro, da mesma
forma que tem sido um ator principal nas discussões
permanentes para a criação de um novo regime
de comércio internacional. As negociações sobre
o comércio internacional começaram em Doha,
Qatar, em 2001. A Rodada de Doha ainda não tomou
decisões, mas, em todas as reuniões, o Brasil tem
reivindicado com vigor um novo campo de ação para
as economias emergentes.
Talvez o sinal mais evidente do papel
emergente do Brasil seja sua liderança ativa no
bloco constituído por Brasil, Rússia, Índia e China –
o BRIC. Este acrônimo foi cunhado pelo banco de
investimentos Goldman Sachs, em 2001. Hoje, ele
representa a “passagem de bastão” das potências
industriais pós-1945 para as vigorosas economias
emergentes que irão, no correr das próximas
décadas, substituir os países europeus como
motores do crescimento da economia mundial. O
ex-presidente Lula hospedou a mais recente reunião
de cúpula dos países do BRIC em Brasília, em 2010,
e a próxima será realizada em Pequim, na China. As
relações entre o Brasil e a China se desenvolveram
rapidamente desde a visita de Estado do presidente
Hu Jintao em 2004. Em 2010, a China tomou o
lugar dos Estados Unidos como principal parceiro
comercial do Brasil. Hoje, o mercado chinês é um
grande comprador das matérias primas e alimentos
que o Brasil possui em abundância.
Prosseguindo na sua visão Sul-Sul da
diplomacia, o Brasil tem liderado também as ações
para a organização do Ibas – bloco constituído por
Índia, Brasil e África do Sul. Uma cúpula paralela deste
grupo foi realizada em Brasília durante a Reunião
de Cúpula dos BRICs em 2010. Reconhecendo a
importância crescente da África do Sul, o Brasil deu
apoio ao convite feito pela China de inclusão da África
do Sul na cúpula dos BRICs de 2011 em Pequim.
Existem, naturalmente, como é de se
esperar, tensões no relacionamento entre o Brasil e
a China. Segundo o Financial Times, dados recentes
do Banco Central confirmam que em 2010 a China
se tornou o maior investidor direto no Brasil – a
maior economia da América Latina –, investindo
U$ 48,46 bilhões na região. A principal fonte de
preocupação, no entanto, é o aumento dramático
das importações de produtos chineses baratos pelo
Brasil, insufladas pela valorização repentina do real.
Estas importações estão minando a competitividade
da indústria doméstica brasileira, enquanto a maioria
dos investimentos chineses dirige-se para indústrias
ligadas a commodities. O governo brasileiro talvez
tenha de contemplar a adoção de medidas para a
restrição dos investimentos diretos da China na
área da mineração, fixando quotas mínimas de
fornecimento interno e monitorando as transações
para garantir que estas sirvam tanto aos interesses
do Brasil quanto aos da China.
No nível global, percebe-se claramente que
a cooperação entre o Brasil e a China está em ritmo
de expansão. Alguns argumentam que o regime de
Pequim está querendo assumir o lugar de liderança
dos Estados Unidos na América Latina. Isto não
parece estar acontecendo de fato, mas não se sabe
que decisões estratégicas serão tomadas à medida
que a região for se tornando ainda mais importante
como fonte de matérias-primas e produtos agrícolas.
Os Estados Unidos vêm sendo cada vez mais
impopulares na região, em razão da identificação
deste país com as fracassadas políticas do chamado
Consenso de Washington na década de 1990. Este
conjunto de prescrições de políticas públicas exigia
mudanças significativas na política macroeconômica,
mas ignorava a questão do desemprego, a pobreza
e a desigualdade. Embora os Estados Unidos ainda
continuem a ser um ator de peso na região, não são
mais o protagonista. Na verdade, o poder de veto
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett
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americano não existe mais em relação às iniciativas
políticas da região, e suas prescrições políticas são,
de maneira geral, ignoradas.
O porta-estandarte da nova ordem mundial?Durante os últimos 15 anos, o Brasil vem surgindo
como ator cada vez mais sofisticado em assuntos
regionais e globais. Como os comentadores
têm observado, o Brasil não tem qualquer “falha
geológica” étnica, e está em paz com todos os
seus vizinhos. É uma democracia consolidada,
não é potência nuclear, nem tem ambições de se
transformar em uma. Quando o Brasil consolidar sua
posição como importante fornecedor de petróleo,
gás natural, commodities e minerais para o mercado
mundial, sua presença no contexto internacional se
tornará cada vez mais valiosa. Isto é significativo
no contexto da nova ordem mundial no qual a
Organização das Nações Unidas (ONU) deseja
reestruturar seu conselho de segurança, para incluir,
por exemplo, o Brasil como candidato natural para
representar a América Latina.
O jornalista Marc Margolis, da revista Newsweek,
chamou o Brasil de “a superpotência astuta”. Não
se sabe se gestores brasileiros concordam com
esta qualificação, visto que os progressos do Brasil
na sua agenda regional e global são marcados pela
cautela. Porém, pode-se dizer que este país, visto
hoje como um elemento sofisticado e necessário
para a governança global, poderá vir a representar a
nova realidade do século XXI.
RIORDAN ROETT é professor e diretor do programa
de estudos de Hemisfério Ocidental e América Latina
na Johns Hopkins University.
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O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
No momento em que a crise financeira global projeta
mudanças profundas na geografia do poder do
século XXI, o Brasil se vê diante de uma encruzilhada.
Deveria buscar uma aliança estratégica com outros
países emergentes, os futuros protagonistas de um
mundo em acelerada globalização? Ou aprofundar a
integração regional latino-americana, eixo central da
política exterior brasileira?
Globalizar ou regionalizar?Vale a pena unir esforços com um aglomerado
fragmentado de países vizinhos historicamente
unidos mais por conflitos comerciais do que por
uma visão comum? A distância econômica e cultural
entre o Brasil e seus vizinhos hispânicos sempre
militou em favor deste ceticismo. Já no século XIX,
a monarquia brasileira se perfilava como expressão
do imperialismo escravagista e expansionista contra
o qual os libertadores Bolívar e San Martín se haviam
insurgido. Descolar do entorno latino-americano: este
foi um objetivo nacional brasileiro tão intensamente
ansiado quanto mal disfarçado ao longo de muitas
décadas. Hoje, em tempos de globalização acelerada,
a consolidação do país como ator global pareceria
reforçar este desiderato: explorar sua massa crítica
demográfica e escala de produção industrial para
conquistar mercados e forjar parcerias extrarregionais
que emergem como os novos polos dinâmicos da
economia mundial. A forte diversificação do comércio
exterior brasileiro, assim como as parcerias com
potências emergentes do Sul, não deixam dúvidas de
que o Brasil explora estes novos horizontes.
Ao mesmo tempo, não há dúvida de que
o Brasil fez uma clara opção por aprofundar um
ambicioso programa de integração regional. As
empresas e bancos brasileiros de financiamento
estão na vanguarda de projetos rodoviários que
encurtam distâncias continentais, e esquemas
de interconexão energética que reforçam uma
conectividade natural. Brasília apoia a criação de
mecanismos supranacionais que tornem realidade
a antiga retórica de solidariedade regional. Porém,
enquanto os investimentos brasileiros angariam
aplausos em amplos setores da opinião publica
regional por aportarem capitais, tecnologia, renda
e empregos, a crescente presença empresarial
brasileira não deixa de suscitar desconfianças
nacionalistas e protestos protecionistas de setores
que se sentem ameaçados.
Democratizar para integrarNão haveria aí uma contradição? Terá o Brasil
abandonado a histórica ambição de superar sua
circunstância geográfica para projetar-se como um
global player? Na verdade, a opção do Brasil pela
integração regional não está em oposição às forças
da globalização. Muito pelo contrário, a agenda latino-
americana deve ser entendida como parte de uma
resposta estratégica às profundas transformações em
curso no cenário global. O que, muitos perguntarão,
tem a integração regional a ver com a mudança
climática, a crise econômica e financeira internacional
e a insegurança alimentar e energética?
Esses fenômenos, que ilustram a crescente
interdependência da agenda internacional, estão
diretamente vinculados a um desequilíbrio
fundamental da sociedade mundial contemporânea.
A incorporação competitiva das economias
emergentes na divisão internacional do trabalho
pressiona a oferta de insumos biológicos, minerais
e energéticos. Paralelamente, a globalização acelera
a migração de empregos, gente e investimentos do
Norte para o Sul. Como resultado, agravam-se as
tensões e incertezas estampadas nas manchetes de
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato
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jornais: saques de alimentos, reação xenófoba contra
imigrantes pobres, demandas protecionistas e uma
acirrada competição por recursos naturais.
Como responder a esse desafio?
Necessitamos reorganizar um modelo produtivo
que desperdiça recursos naturais finitos, ao mesmo
tempo que condena parcela importante da população
mundial a uma subsistência em condições infra-
humanas. Quem pagará os custos de reforma tão
radical? A lição dos últimos anos tem sido clara: a
globalização não está levando a um mundo cada
vez mais uniformizado, não estamos ficando todos
cada vez mais parecidos em termos de ideologia
política ou padrão de bem-estar, como os arautos
da globalização imaginavam. Pelo contrário, vemos
que a interdependência tende a reforçar o poder de
barganha dos mais fortes e ágeis. Não é por outra
razão que as principais vítimas do lado adverso da
globalização são os de sempre: os mais vulneráveis,
os menos capazes – técnica e financeiramente – de
se protegerem das crises globais.
A resposta está em democratizar os processos
decisórios em torno da agenda global. A demora em
reformar o Conselho de Segurança, assim como em
democratizar as instituições de Bretton Woods e a
Organização Mundial de Comércio (OMC), explica a
decisão brasileira de apostar em parcerias inovadoras
em torno de objetivos comuns e agendas definidas.
Em outras palavras, uma diplomacia de “geometria
variável” que forme alianças radicalmente diferentes
daquela organizada pelos Estados Unidos para invadir
o Iraque. Elas almejam reconstruir – e não subverter
– as instituições multilaterais.
Dessas parcerias inovadoras impulsionadas
pelo Brasil para reformar a agenda mundial, a mais
importante é a integração regional. Apesar de fortes
matizes político-ideológicos e especificidades nacionais,
a América Latina está passando por uma verdadeira
revolução – democrática e essencialmente pacífica. Ela
estriba-se em duas teses radicalmente heterodoxas.
Em primeiro lugar, nega-se a disjuntiva
herdada do período de governo militar de que ou se
faz a economia crescer ou se distribui renda. Ficou
demonstrado, ao longo da última década, que a
consolidação de um mercado de consumo de massas
ancorado na expansão do emprego e dos salários –
por sua vez decorrente de uma oferta ampliada de
crédito e de políticas de transferência de renda – é
a melhor garantia de crescimento sustentável, ainda
mais em tempos de recessão global.
Em segundo lugar, sabe-se que essa
restauração democrática é necessária, mas não
suficiente para garantir a inserção competitiva da
região na economia globalizada. Compartilhar valores
fundamentais – o compromisso com o diálogo, a
proteção dos direitos humanos, o resgate da dívida
social e a estabilidade econômica – por si só não nos
tornará um polo de poder relevante em escala mundial.
Integração regional: da ALALC à UNASULNessa caminhada, a região defronta-se com as
contradições de sociedades marcadas por baixos
níveis de institucionalidade e altos níveis de exclusão
socioeconômica e frustração política. O resultado
é o acirramento de tensões, não apenas na esfera
doméstica. A relativa frustração das expectativas
do programa de integração econômica lançado pela
Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(ALALC), em 1960, e reinventado, em 1980, com
a Associação Latino-Americana de Integração
(ALADI), terminou, muitas vezes, por alimentar
rivalidades e desavenças nacionalistas mal resolvidas
de séculos passados. Embora tenha havido
significativo incremento do comércio intrarregional,
pouco se avançou no principal objetivo: criar um
espaço econômico-comercial capaz de distribuir
democraticamente o desenvolvimento por todos os
países e setores.
Seu principal instrumento – a conformação
de uma união alfandegária – tornou ainda mais óbvia,
se é que não agravou, a falta de competitividade
e complementaridade das economias menores
do bloco. De pouco servia assegurar-lhes acesso
privilegiado aos mercados consumidores maiores se,
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O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
em termos práticos, perpetuava-se o padrão histórico
de trocas desiguais. O superávit estrutural que o
Brasil, por exemplo, mantém com a maioria de seus
vizinhos reflete, em boa medida, a incapacidade das
economias menores de reduzirem a dependência,
denunciada há décadas por Raúl Prebisch, em relação
às exportações de produtos primários de baixo valor
agregado. Compreende-se assim que a “invasão”
brasileira destes mercados arrisca insuflar temores
econômicos e rancores nacionalistas contrários ao
projeto integracionista.
Isso não prova a impossibilidade de se fazer
do comércio e dos investimentos intrarregionais um
poderoso vetor de integração. Aponta, sim, para a
urgência de minorar as graves assimetrias entre
os membros do bloco. Na esfera bilateral, o Brasil
vem desenvolvendo programas de cooperação
técnica e estendendo linhas de crédito concessional
para promover a eficiência e competitividade de
setores prioritários de economias com menor
desenvolvimento relativo: modernização tecnológica
do agronegócio e da infraestrutura produtiva industrial,
programas de inclusão social e de formação técnica.
Nada disso é sustentável, no entanto, se na esfera
regional não avançarem – por intermédio do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) e em parcerias com o Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Andina
de Fomento (CAF) – projetos de infraestrutura de
comunicação, transportes e energia que ajudam a
reorganizar o espaço econômico continental. Trata-se
de reverter uma lógica econômica fragmentada, pela
qual o subdesenvolvimento dos mercados locais era
reforçado por um isolamento decorrente de séculos
de comércio preferencial com as ex-metrópoles e
outras potências extrarregionais.
Ao mesmo tempo, a criação do Banco do
Sul, a ampliação do comércio em moeda local e o
aperfeiçoamento do Convênio de Crédito Recíproco
da ALADI estão oxigenando o espaço econômico
integrado que a nova infraestrutura constrói. O
exercício está mais avançado no âmbito do Mercosul.
Como parte do esforço para ampliar e fortalecer
seus mecanismos de governabilidade,1 lançou-se
o Fundo para a Convergência Estrutural (FOCEM),
que disponibiliza recursos para redução dos gargalos
estruturais das economias menores do bloco.
Refundação institucional: da Unasul ao Conselho da Defesa Se a globalização requer a “refundação” democrática
do sistema multilateral, a arquitetura regional latino-
americana também precisa passar por reformas. A
resposta está no lançamento da Unasul e do diálogo
Latino-América e Caribe, bem como no reforço do
Grupo do Rio – iniciativas todas de 2008. O que
alguns consideram uma multiplicação desordenada e
contraditória de foros espelha, em verdade, a enorme
experimentação institucional de uma região que busca
redefinir seu papel num cenário global igualmente
em mutação. É natural que este processo ganhe
ímpeto a partir da esfera sul-americana, onde unidade
geográfica e antecedentes históricos favorecem a
conectividade e a conformação de cadeias produtivas
regionais. A Unasul, em particular, oferece um guarda-
chuva institucional para superar o antigo reducionismo
mercantilista que pretendia restringir o esforço de
integração apenas à esfera comercial.
Historicamente, os países da região
viviam sob o temor atávico de intervenção e
ingerências mútuas, favorecidas no mais das vezes
pela persistente instabilidade de sociedades de
tardia consolidação institucional.2 As resultantes
rivalidades reforçavam o autoritarismo reacionário e o
nacionalismo militarista que por décadas mantiveram
estes países de costas economicamente uns para
os outros e postergaram a unidade continental.
Este cenário explica a importância crucial para a
integração regional da constituição do Conselho
da Defesa Sul-Americano. Ele oferece um foro de
1. No intuito de evitar reproduzir o “déficit democrático” que ameaça a União Europeia, busca-se ampliar a participação cidadã mediante a criação do
Mercosul Social, o Foro de Cidades e o Parlamento do Mercosul.
2. Explica-se assim a importância dos princípios de não intervenção e de intangibilidade das fronteiras consagradas no direito pan-americano.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato
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diálogo e concertação permanente para discutir e
diluir tensões entre vizinhos. Sintomaticamente, sua
criação ganhou impulso na sequência do conflito
fronteiriço entre o Equador e a Colômbia, em 2008.
No mesmo ano, comprovou-se a eficácia deste novo
mecanismo. Sob sua supervisão, foi possível evitar
que as tensões entre La Paz e líderes autonomistas
da “meia lua” boliviana desaguasse numa guerra
civil, com graves consequências para a estabilidade
regional. Subjaz a todas estas iniciativas a convicção
de que a América do Sul não superará seus desafios
e problemas fundamentais se não buscar construir
respostas comuns. De outra forma, persistirão os
perigosos vazios de poder que servem de pretexto ou
tentação para a intervenção de atores extrarregionais.
Os primeiros aliados e a superação da históriaNesse esforço de projetar valores e objetivos
capazes de colocarem o país no centro dos grandes
fluxos e decisões mundiais, os primeiros e melhores
aliados do Brasil são seus vizinhos. São nações
que passam pela mesma trajetória, cada uma a
seu modo, de superação de uma longa história de
autoritarismo político a serviço do aprofundamento
da exclusão social e econômica. Em conjunto,
estes países dispõem de melhores condições de
promover as reformas – tanto domésticas como de
governabilidade global – necessárias para realizar
todo o potencial de um continente com vastas
reservas energéticas, mas onde falta eletricidade;
uma região de enorme biodiversidade, mas cujo
meio ambiente ainda não é plenamente respeitado;
uma das mais ricas províncias agrícolas e minerais do
mundo, mas onde permanecem profundas injustiças
sociais e assimetrias econômicas.
Somente uma atuação regional unificada
habilitará a América do Sul a superar históricas
mazelas sociais e fragilidades econômicas e, portanto,
efetivamente influenciar a direção das mudanças
em curso na ordem internacional. As elevadas
taxas de crescimento alcançadas na última década
sugerem que a região está no bom caminho. Como
assegurar que a demanda chinesa por commodities
e seu potencial de financiamento continuem a ser
fator de desenvolvimento na América Latina? Como
garantir que os recursos naturais da região, cada vez
mais valorizados, sejam uma fonte de prosperidade
autossustentável e autonomia tecnológica e não a
antessala da síndrome da doença holandesa? Como
fazer da excepcional biodiversidade da região um
fator de vantagem comparativa num mundo cada
vez mais urbanizado, e não de fragilidade frente
à ameaça da mudança climática? Em tempos de
questionamento de antigos paradigmas e de quebra
de mitos, é imprescindível ousar criar novos nexos
de interesse e sinergia. Para o Brasil, o ponto de
partida é nosso próprio continente.
MARCEL FORTUNA BIATO é embaixador do Brasil
na Bolívia.
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O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Um dos aspectos da política externa que pouco têm
merecido a atenção dos analistas e estudiosos é a
assistência técnica e financeira prestada pelo Brasil
a dezenas de países, especialmente da África e da
América Latina. Trata-se de um dos desdobramentos
da política Sul-Sul desenvolvida nos últimos oito anos
pelo governo brasileiro. Sem chamar muita atenção,
e gradualmente aumentando sua projeção externa, o
Brasil está se tornando um dos maiores doadores e
prestadores de assistência técnica e financeira para os
países de menor desenvolvimento relativo. Por meio de
diversas formas de ajuda, o Brasil, somente em 2010,
teria se comprometido com mais de US$ 4,5 bilhões.1
Reforçar a solidariedade com gestos
políticos do Brasil no mundo é a explicação
oferecida pelo Itamaraty. A cooperação técnica
brasileira é livre de condicionalidades e construída
a partir da manifestação de interesse de parte dos
parceiros; ou seja, é guiada pela demanda (demand
driven). Desenvolve-se sempre em sintonia com as
grandes linhas de ação da política externa brasileira,
priorizando o apoio ao crescimento socioeconômico
dos países de menor desenvolvimento relativo,
em especial latino-americanos e africanos. A
cooperação técnica brasileira caracteriza-se também
pela transferência de conhecimento, pela ênfase na
capacitação de recursos humanos, pelo emprego de
mão de obra local e pela concepção de projetos que
reconheçam as peculiaridades de cada país. Realiza-
se com base no princípio de solidariedade que
marca o relacionamento do Brasil com países mais
pobres e busca disseminar conhecimentos para o
desenvolvimento autônomo dos países beneficiados.
Escala e métodosSegundo informações coligidas pela revista The
Economist (15 de julho de 2010), os recursos
utilizados nessa ação externa chegam a US$ 1,2
bilhão, superando o Canadá e a Suécia, tradicionais
doadores e prestadores de ajuda aos países em
desenvolvimento. Os recursos oriundos da Agência
Brasileira de Cooperação (ABC), do Itamaraty,
representaram cerca de R$ 52 milhões em 2010 e
R$ 92 milhões em 2011. Estão em execução 221
projetos e 324 atividades isoladas, em 82 países: 19
na América Central e Caribe, 12 na Ásia e Oriente
Médio, dois na Europa, 38 na África e em todos os 11
da América do Sul. Os principais setores das ações
de cooperação Sul-Sul, no período 2003-2010, foram
agricultura (21,8%), saúde (16%), educação (12%),
meio ambiente (7%) e segurança pública (6%).
De outras instituições de cooperação técnica,
como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) e a Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab), saem US$ 440 milhões; para ajuda
humanitária a países afetados por desastres naturais,
US$ 30 milhões; recursos para o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) somam US$
25 milhões; para o programa de alimentação da FAO
(em português, Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação), US$ 300 milhões; de ajuda
para a Faixa de Gaza, na Palestina, US$ 10 milhões;
e para o Haiti, US$ 350 milhões (THE ECONOMIST,
15 de julho de 2010). Cite-se ainda a implantação de
escritório de pesquisas agrícolas em Gana; fazenda-
modelo de algodão no Mali; fábrica de medicamentos
antirretrovirais em Moçambique; e centros de
formação profissional em cinco países africanos.
Os empréstimos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
* Adaptação de artigo publicado pelo autor no jornal O Estado de S. Paulo em 11 de outubro de 2010.
1. THE ECONOMIST. Brazil’s foreign-aid programme - Speak softly and carry a blank cheque. 15 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.economist.
com/node/16592455>.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa
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e agora do Banco do Brasil para os países em
desenvolvimento, de 2008 ao primeiro trimestre
de 2010, elevaram-se para mais de US$ 3,3 bilhões
(THE ECONOMIST, 15 de julho de 2010), em
projetos na América do Sul, Haiti, Guiné-Bissau, Cabo
Verde, Palestina, Camboja, Burundi, Laos e Serra
Leoa. O Tesouro Nacional, por sua vez, aumentou
a contribuição do Brasil à Corporação Andina de
Fomento (CAF) para US$ 300 milhões, e incrementou
a ajuda ao Fundo para a Convergência Estrutural
(Focem), do Mercado Comum do Sul (Mercosul),
que sobe hoje a US$ 470 milhões, acrescidos de
US$ 100 milhões por ano, 70% representados por
contribuições do Brasil. Além de conceder créditos
de difícil recuperação a alguns países africanos,
a Cuba e à Venezuela, o governo brasileiro, nos
últimos anos, perdoou dívidas do Congo, de Angola,
Moçambique, Bolívia, Equador, Paraguai, Suriname
e, recentemente, da Tanzânia.
Até dezembro de 2010, coincidindo com o
final do governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, segundo se noticia, o governo brasileiro vai
doar US$ 300 milhões em alimentos (milho, feijão,
arroz, leite em pó) para, entre outros, Sudão, Somália,
Níger e nações africanas de língua portuguesa.
Serão igualmente beneficiados Palestina (região da
Faixa de Gaza), El Salvador, Haiti e Cuba. Segundo
a Coordenação Geral de Ações Internacionais de
Combate à Fome do governo federal, também
receberam ajuda brasileira África do Sul, Jamaica,
Armênia, Mali, El Salvador, Quirguistão, Saara
Ocidental, Mongólia, Iraque e Sri Lanka.
Princípios distintosOs programas de cooperação técnica são executados
por meio da ABC. Outros órgãos, como a Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) são responsáveis
pela cooperação científica e tecnológica. A ABC,
desde 2008, tem buscado implantar uma nova
estratégia de ação, priorizando os projetos ditos
“estruturantes” no lugar da reprodução automática
do modelo tradicional de projetos pontuais. Os
projetos “estruturantes” tendem a ter um impacto
socioeconômico mais expressivo, asseguram maior
sustentabilidade dos resultados da cooperação e
facilitam a mobilização das instituições brasileiras
para a sua execução.
Essa forma de agir também contribui para
a criação de espaço para elaboração de parcerias
triangulares com outros atores internacionais. O
governo brasileiro, desde que os princípios que
regem sua cooperação técnica sejam respeitados,
não descarta, em princípio, a possibilidade de
desenvolver cooperação trilateral com qualquer país,
inclusive do “Sul”. Nesse caso, pode ser mencionado
o projeto de cooperação trilateral na área de saúde
no Haiti, que conta com ações conjuntas do Brasil
e de Cuba. O Brasil desenvolve cooperação técnica
trilateral na África, como no projeto de fortalecimento
do Instituto de Investigação Agrária de Moçambique
(IIAM), em parceria com os EUA (via United States
Agency for International Development – USAID), no
valor de US$ 12 milhões; e no projeto Pró-Savana,
de desenvolvimento das savanas tropicais em
Moçambique, com participação do Japão (por meio
da Japan International Cooperation Agency – JICA),
no valor de US$ 20 milhões.
Nessas situações, os países desenvolvidos
ou organismos internacionais começam a voltar-se
para o Brasil por suas capacidades técnicas, suas
características culturais e linguísticas ou sua forma de
atuar. Em todos os casos, a cooperação deve respeitar
os princípios da cooperação Sul-Sul brasileira, quais
sejam, a orientação pela demanda, o uso de recursos
locais e a ausência de fins lucrativos. O Brasil não se
considera um doador emergente (emerging donor).
Isto faz com que a relação do Brasil com outras
partes não seja caracteriza pela coordenação entre
doadores. O Brasil considera que a cooperação Sul-
Sul não é uma ajuda, mas uma parceria na qual as
partes envolvidas se beneficiam, ou seja, prevalece o
princípio da horizontalidade na cooperação.
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O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Fatores que guiam a assistência financeiraAs atividades da cooperação Sul-Sul brasileira, ou
trilaterais, com a participação do governo brasileiro,
não preveem lucros como resultado. Possíveis
impactos sobre as exportações ou os investimentos
brasileiros não são aspectos que determinam a
realização de um projeto de cooperação pelo Brasil.
Caso ocorram, são tidos como efeitos colaterais
positivos, mas não são pré-requisitos para a
aprovação de projetos. A vertente comercial escapa,
portanto, da análise dos projetos da cooperação Sul-
Sul brasileira.
Na realidade, algumas motivações políticas
também explicam a diplomacia da generosidade na
América Latina e na África nos últimos anos: a busca
de prestígio para o Brasil e para o ex-presidente Lula
e o esforço para obter apoio à pretensão brasileira de
um assento permanente no conselho de segurança da
Organização das Nações Unidas (ONU). Ao contrário
de outros países, o Brasil não impõe condições aos
países que recebem a ajuda, mas também, durante o
governo Lula, não levou em consideração valores que
o Brasil defende internamente, como a democracia e
os direitos humanos, deixando prevalecer a ideia de
que “negócios são negócios”.
Impacto na indústria domésticaPensando-se mais em considerações de política
externa e menos nos interesses de alguns setores
industriais afetados pela competição chinesa, pelo
custo Brasil e pelo câmbio apreciado, o Itamaraty,
durante o governo Lula, na área comercial, procurou
ajudar os países mais pobres pela iniciativa de abrir o
mercado brasileiro para produtos destes países com
tarifa zero e sem quota. O setor têxtil, por exemplo,
seria atingido gravemente pelas importações de
Bangladesh, que exporta para o mundo mais de US$
70 bilhões. Na mesma linha de abertura de mercados
para os países em desenvolvimento, o Itamaraty
concluiu a negociação para ampliar e aprofundar o
sistema geral de preferências comerciais (SGPC),
que, menos radical que o programa unilateral
anterior, oferece rebaixas tarifárias com quotas
para os países mais pobres. No tocante à abertura
de créditos para obras públicas em países africanos
e sul-americanos, a exemplo do que ocorre com
os países desenvolvidos, as empresas brasileiras
poderão vir a se beneficiar, ganhando concorrências
para a prestação de serviços e exportando produtos
brasileiros.
A generosidade externa é pelo menos
controvertida. Enquanto a taxa de investimento
interno é baixa, ao redor de 17%, o perdão dessas
dívidas e a duvidosa recuperação dos empréstimos
do BNDES fazem com que recursos deixem de ser
aplicados em programas de infraestrutura, habitação,
energia, alimentos e tantos outros setores carentes.
Dessa forma, a política brasileira de cooperação para
o desenvolvimento tem claras motivações políticas
baseadas no princípio geral de solidariedade com os
países mais pobres. Dado o volume dos recursos
empregados e o número de países envolvidos, a
assistência e a cooperação técnica nos últimos anos
passaram a ser uma das linhas de política externa,
em especial em relação à América Latina e à África.
A cooperação não envolve compromissos de
contrapartida por parte dos países receptores, nem
está vinculada à defesa de interesses domésticos
do Brasil. Tampouco visa defender interesses como
o crescimento econômico e industrial no Brasil ou a
estabilidade e a segurança nos países beneficiados.
Esta política não está relacionada com ajuda para o
fomento da inovação ou investimento em pequenas
e médias empresas, embora, em alguns casos,
seja desenvolvida com o apoio da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e entidades
congêneres de outros estados. Em diversos países,
especialmente na América do Sul, a ajuda está
voltada para a melhora da infraestrutura, com a
construção de estradas e outras obras públicas.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa
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A direção do futuroA política de assistência técnica deverá ser mantida e
ampliada pelo governo de Dilma Roussef, em função
dos compromissos já assumidos no âmbito do
Mercosul e nas relações bilaterais com os países da
região e da África. É possível antecipar, contudo, que
o novo governo vai estar mais atento e evitará ampliar
seu engajamento com países que não respeitem os
valores que o Brasil defende internamente, como
direitos humanos e democracia.
Embora nos pronunciamentos iniciais
da presidente Dilma Rousseff e do ministro das
Relações Exteriores, Antônio Patriota, não tenha sido
explicitamente mencionada a prioridade das relações
com os países do Sul, como ocorreu no governo
Lula, o compromisso do governo brasileiro de prestar
solidariedade aos países de menor desenvolvimento
relativo deverá continuar. A assistência financeira,
além dos limites do Mercosul, poderá ser menos
intensa levando-se em conta a necessidade de
reduzir os gastos públicos para reequilibrar as
contas governamentais. O poder brando (soft
power) do Brasil tenderá a crescer à medida que
os princípios e as motivações que definem hoje o
modelo brasileiro de cooperação com os países de
menor desenvolvimento relativo sejam mantidos
sem condicionalidades, mas com a redução da ajuda
em relação aos países que não respeitem os direitos
humanos e os valores democráticos.
RUBENS ANTONIO BARBOSA é presidente do
Conselho de Comércio Exterior da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
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O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Uma das grandes novidades dos últimos anos foi
o vigor com que o Brasil se articulou para assumir
um papel crescente no cenário internacional. Houve
uma percepção clara, do governo e de vários setores
da sociedade, de que o projeto de retomada do
desenvolvimento sustentado com equidade e
inclusão social deveria ter uma contrapartida na
política externa brasileira, por dois motivos. Em
primeiro lugar, porque as assimetrias existentes
no mundo não favorecem o avanço do Brasil e dos
demais países em desenvolvimento com os quais
o país começou a se articular de forma ativa. Não
bastava, por exemplo, assistir passivamente aos
países desenvolvidos ditarem as regras para a nova
rodada da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O Brasil entendia, neste caso, que para a defesa
do seu projeto de desenvolvimento seria preciso
articular-se com países com as mesmas aspirações,
o que deu origem ao G-20 comercial. Em segundo
lugar, cresceu a percepção do Brasil como um país
que, nas palavras do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, estava jogando no campo internacional abaixo
de seu potencial. De fato, sendo o quinto país do
mundo em população e em território, e caminhando
firmemente para ocupar também o quinto lugar
no ranking mundial do produto interno bruto (PIB),
caberia assumir o lugar devido como protagonista
das mudanças na configuração mundial de poder, de
forma ativa e criativa. Foi com esta percepção que
uma intensa diplomacia presidencial o levou Lula a
passar um oitavo do tempo de seus dois mandatos
(2003-2010) fora do país.
A elevação do perfil do Brasil nas relações
internacionais está, portanto, muito ligada às
estratégias de desenvolvimento no campo nacional.
Pré-condição para isto foi a identificação da sua
autonomia, em particular com relação à grande
potência, os Estados Unidos. O novo relacionamento
com este país foi pautado pela busca de uma relação
construtiva, mas com reconhecimento claro dos
interesses de cada parte. Assim, um dos primeiros
atos do governo Lula foi a paralisação do acordo
de uso da base de lançamento de satélites em
Alcântara, que daria quase um monopólio de seu uso
para os Estados Unidos, enquanto o Brasil começou
a querer estabelecer uma gama variada de relações.
Na mesma linha, a defesa clara de interesses, junto
com os demais países da América do Sul, levou
ao fim da proposta da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca). E o país não hesitou para condenar
veementemente os Estados Unidos por sua guerra
no Iraque, bem como buscar condenação nas
instâncias da OMC pela política de subsídios do
algodão. Todavia, isto não significou um confronto
pelo confronto, mas simplesmente uma rearticulação
da relação ente os dois países, baseada em respeito
mútuo. A outra face desta política revelou-se, por
exemplo, na insistência do Brasil em incluir os Estados
Unidos no Grupo de Amigos da Venezuela, que tinha
como tarefa criar as condições para uma pacificação
das relações políticas e sociais, após a tentativa
fracassada de golpe contra o presidente eleito
Hugo Chávez. Houve um uso intenso da diplomacia
presidencial para que as relações Brasil – Estados
Unidos se estabelecessem em outro patamar, o
que resultou de fato em um diálogo abrangente de
política bilateral, formalizado em março de 2010 no
Diálogo de Parceria Global entre os ministérios de
relações exteriores dos dois países.
A busca de parceiros para compartilhar
as suas aspirações em defesa de maior justiça e
equidade no contexto internacional, em sintonia
com a estratégia de desenvolvimento resumida no
slogan Brasil para todos, levou a uma atuação ativa
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte
78
e criativa, mas pautada pelo pragmatismo e por
algumas diretrizes objetivas. Pragmatismo porque a
configuração das alianças poderia mudar conforme
o campo específico e os assuntos em jogo. As
diretrizes objetivas foram cada vez mais enfatizadas
e transformadas em política de Estado. A primeira
na verdade corresponde até a uma obrigação
constitucional: a opção pela América do Sul.1 As
outras dizem respeito à busca de uma nova relação
com a África e com países parceiros para a reforma
da governança global em suas várias facetas.
No que diz respeito à América do Sul, houve
um processo de gradual integração política entre
os países dos dois principais blocos existentes, o
Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Comunidade
Andina de Nações (CAN). Os países-membros de
um bloco entraram, simbolicamente, para fazerem
parte do outro como membros-associados. O
passo seguinte foi dado em 2004, com a formação
da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa),
subsequentemente rebatizada e formalizada na
União de Nações Sul-Americanas (Unasul) com o
Tratado Constitutivo, em Brasília, em maio de 2008,
o qual entrou em vigor em fevereiro de 2011. A
Unasul pode ser considerada uma tentativa de criar
uma coordenação política que possa representar um
polo em um mundo que, de acordo com a visão do
Brasil e seus parceiros, tenha a opção saudável de
caminhar rumo a uma estrutura multipolar passível
de dar condições mais igualitárias para os países
escolheram e aprofundarem seus legítimos projetos
de desenvolvimento.
A nova inserção brasileira no mundo, mais
ativa, mais autônoma, não seria uma opção que
não entendesse a vocação sul-americana como
prioritária, apesar das inúmeras outras articulações
estratégicas que possam ser feitas. Conforme já
afirmado pelo célebre diplomata Barão do Rio Branco
no final do século XIX, a América do Sul não seria
uma opção, mas um destino. Enquanto na época
o objetivo era consolidar e pacificar as fronteiras,
hoje está em jogo avançar numa integração que
ultrapasse a esfera da retórica, sempre presente
nos discursos políticos latino-americanos, e avance
na construção de uma nova realidade, dando
resposta aos antigos e aos novos desafios. A
Unasul representa, portanto, mais que um projeto
inovador de integração regional e significa uma
visão estratégica que pretende consolidar uma
identidade própria. A integração física, energética
e no campo da defesa constituem a prioridade da
Unasul. Mas há também articulações fortes nos
campos da saúde e do combate às drogas. Ao
mesmo tempo, a Unasul mostrou a importância da
concertação ao contribuir com a superação da crise
política pela qual passou a Bolívia em 2008, bem
como com o debate sobre a instalação das bases
militares americanas na Colômbia. A Unasul pode
contribuir em muito para o uso sustentável das
riquezas dos 12 países-membros na área energética,
de alimentos, mineral e da biodiversidade, em
um projeto de modernização com inclusão social,
transformando a região em um polo do novo mundo
em construção, que merece ser reconhecida como
tal. Nesse sentido, a revista The Economist acertou
ao publicar, em setembro de 2010, uma reportagem-
capa com o título Nobody´s backyard, the rise of
Latin America. A Unasul não substitui nem interfere
na consolidação do Mercosul, pelo contrário, abre
maiores condições para o seu avanço. No âmbito do
Mercosul, vale ressaltar a ampliação da sua agenda,
envolvendo praticamente todas as esferas da política
pública e apostando firmemente na construção de
uma identidade e cidadania mercosulina, o que
deve ganhar maior força com a eleição direta para
o Parlamento do Mercosul, a partir de 2012. O
reconhecimento das assimetrias existentes levou
os países-membros a criarem em 2004 o Fundo
de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem),
cujos aportes tiveram aumentos exponenciais em
1. O parágrafo único do Artigo quinto da Constituição Federal estipula que “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”
79
O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
2010, a fim de se atender, inclusive, ao avanço da
eletrificação do Paraguai.
O setor privado aproveitou as
novas oportunidades e o novo processo de
internacionalização das empresas brasileiras – outra
característica da nova inserção do Brasil no mundo
–, e começou a atuar cada vez mais intensamente
na América do Sul, adquirindo escala e competência
para, posteriormente, ingressar em outros
mercados. Este movimento ajuda ao mesmo tempo
a estabelecer uma integração produtiva considerada
fundamental para o avanço do processo de integração
no Mercosul e na América do Sul como um todo.
A segunda diretriz, que retomou algumas
experiências antigas que tinham sido abandonadas,
foi a abertura para a África, continente com o qual
o Brasil tem relações históricas, sendo o país com
mais negros fora da África, número inclusive superior
à quase totalidade dos próprios países africanos,
com exceção da Nigéria. A diplomacia presidencial
foi fundamental para colocar o continente num
outro patamar nas relações externas brasileiras
e na própria percepção da opinião pública, tão
acostumada a ver seus presidentes apostarem
única e quase exclusivamente nas relações com os
países desenvolvidos para a superação dos desafios
do país. Esta opção tinha como contrapartida
interna uma política tão ou mais polêmica de
reconhecer a existência da profunda desigualdade
em oportunidades baseada em raça e a necessidade
de se introduzir uma gama de políticas públicas
coordenadas por um novo ministério, a Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR). Deu-se ênfase à política educacional,
com acesso às universidades para um contingente
que historicamente nunca teve tal oportunidade, e a
história afrobrasileira entrou no currículo obrigatório
das escolas, o que se constitui em detalhe de grande
significado simbólico. A relação que se buscou
com a África não pode, portanto, ser interpretada
unicamente em termos geopolíticos. No decorrer
de seus dois mandatos, o presidente Lula realizou
não menos de 33 viagens ao continente, visitando
23 países, em muitos casos tratando-se da primeira
visita de um chefe de Estado brasileiro. Houve uma
grande preocupação em transformar esta política de
governo em uma política duradoura de Estado, entre
outras coisas abrindo ou reabrindo 16 embaixadas,
ampliando a presença brasileira com representação
permanente para 35 dos 53 países do continente
africano. Evidentemente, há uma atenção especial
para os cinco países de língua portuguesa.2
A nova relação com a África foi expressa
num crescimento significativo do comércio e
dos investimentos brasileiros, de um lado e, de
outro, em inúmeras iniciativas de cooperação
para o desenvolvimento. De fato, o Brasil, que até
recentemente se enxergava como país receptor de
cooperação internacional, entendeu que a sua nova
posição implicaria em assumir responsabilidades
também neste campo, apesar de esta alteração não
ser necessariamente compreendida imediatamente
pela opinião pública interna. Assim, a Agência
Brasileira de Cooperação (ABC) passou, ao longo dos
últimos anos, de uma agência organizada para receber
cooperação a uma agência voltada para contribuir
com o desenvolvimento em outros países do Sul, em
particular no continente africano. A ênfase é dada à
cooperação que expressa o know-how adquirido pelo
Brasil, como o apoio ao combate à AIDS, baseado no
sucesso de sua própria política de prevenção e acesso
universal aos remédios para os portadores de HIV,
em parte possibilitado pela produção de remédios
genéricos. Dessa forma, o Brasil está contribuindo
com a instalação em Moçambique de uma fábrica
para a produção de medicamentos antirretrovirais.
No âmbito multilateral, participa ativamente
com outros países da UNITAID, uma central de
compras de medicamentos para o combate de
malária, tuberculose e AIDS no continente africano.
Outros exemplos dizem respeito à mobilização do
conhecimento técnico agrícola com a abertura de
2. Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte
80
um escritório regional da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Gana e a
parceria para divulgar as tecnologias de produção
do etanol. Esta abertura com a África foi, inclusive,
compartilhada com os parceiros sul-americanos por
meio da criação de um foro de discussão América do
Sul – África (ASA).
Da mesma forma, houve uma nova
reaproximação com o mundo árabe. Logo no
primeiro ano da sua gestão o presidente Lula fez
uma histórica visita ao Líbano e à Síria, que somente
havia sido visitada no século XIX por D. Pedro II.
O Brasil detém a maior colônia de origem libanesa
no mundo, o que mais que justificou priorizar esta
visita. Também no caso da abertura para o mundo
árabe houve uma articulação sul-americana, com
a organização em 2005, em Brasília, da I Cúpula
América do Sul – Países Árabes (Aspa), seguida de
uma segunda em 2009, em Doha. O crescimento
do perfil internacional do Brasil levou o governo
a se envolver mais ativamente no processo de
paz do Oriente Médio, defendendo firmemente a
posição histórica da opção pelos dois Estados. Na
percepção do governo brasileiro há espaço para a
entrada de novos interlocutores que tragam novas
perspectivas à negociação. Neste contexto, além
de apoio político às negociações diretas entre Israel
e a Autoridade Nacional Palestina (ANP), o Brasil
tem prestado contribuição, técnica e financeira,
para a reconstrução dos Territórios Palestinos
e o fortalecimento político-institucional da ANP,
considerada fundamental para a construção
do Estado Palestino independente. No mesmo
espírito o Brasil articulou junto com a Turquia
uma intermediação com o governo iraniano, o que
provocou uma reação dura e ambivalente ao mesmo
tempo por parte do governo dos Estados Unidos
e dos demais interlocutores tradicionais. Apesar
do envolvimento com o processo de negociação
com o Irã ter sido talvez o mais ousado na recente
diplomacia ativa ele é coerente com as posições
do Brasil no que diz respeito ao Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares, em particular, o
direito do uso para fins pacíficos do urânio.
Por último, mas não menos importante, há
a opção para o Brasil se articular politicamente com
outras potências médias e regionais em defesa
de uma mudança de governança global rumo
a um mundo menos assimétrico, com maiores
oportunidades para todos. Nesta perspectiva houve,
já em 2003, a mencionada articulação na OMC, e a
constituição de uma articulação mais permanente
com África do Sul e Índia, dois países democráticos
e potências médias com posições fortes nos seus
respectivos continentes, chamado Foro IBAS (Índia,
Brasil, África do Sul; ou IBSA, na sigla em inglês).
O foro tem funcionado como concertação política,
cooperação setorial (mediante grupos de trabalho
envolvendo ministérios fins) e cooperação para
o desenvolvimento por meio do Fundo Ibas. A
concertação política permitiu ao Brasil e aos demais
membros projeção com mais ênfase no cenário
internacional a respeito de alguns temas da agenda
global, sempre que puderam ser encampadas pelo
grupo, fortalecendo assim sua inserção na política
internacional. Com a Índia, a Alemanha e o Japão,
o Brasil se articulou no G-4 para a reforma do
Conselho de Segurança da Organização das Nações
Unidas (ONU), defendendo na prática um assento
permanente para cada um dos quatro países, mais
um país africano (África do Sul ou Nigéria) e um país
árabe. Nesta área a resistência foi muito grande e,
depois da saída do chanceler Gerhard Schroeder, a
Alemanha diminuiu o seu interesse. De outro lado, a
Índia conseguiu durante a visita do presidente Barack
Obama no final de 2010 o apoio dos Estados Unidos,
dentro do jogo político sino-americano.
O empenho com a ONU deu um novo salto
quantitativo e qualitativo quando o Brasil assumiu em
2004 o comando das tropas da Missão das Nações
Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), dentro
de uma clara perspectiva de latino-americanizar o
processo de pacificação no Haiti, opção que teve
contrapartida de vários outros países sul-americanos
81
O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
que enviaram tropas, em particular Uruguai e Chile.
Esta responsabilidade assumida pelo Brasil provocou
grandes debates internos que refletem em parte a
rapidez da mudança da sua atuação internacional,
que precisa de maior debate e participação da opinião
pública e dos setores organizadas da sociedade
civil. Na prática toda a participação brasileira no
Haiti contribui com este processo. Numa entrevista
concedida à revista Desafios do Desenvolvimento,
do Ipea (maio/junho de 2010), o ministro de
Relações Exteriores, Celso Amorim, comentou que a
participação no Haiti, além de representar um desafio
e uma oportunidade para o Exército brasileiro, que
começou a contar com um centro de excelência
de treinamento militar no Rio de Janeiro (Centro de
Instrução de Operações de Paz), “o próprio Itamaraty
passou a ter melhores condições de refletir sobre
a dinâmica dos conflitos contemporâneos”. Ao
mesmo tempo, o governo brasileiro mobilizou
vários outros ministérios, atuando nas áreas de
segurança alimentar, treinamento profissional, saúde
e infraestrutura, para pôr em prática a sua convicção
sobre a relação estreita entre prevenção de conflitos
e desenvolvimento socioeconômico, chamado pelo
próprio ministro de doutrina brasileira.
Nesse contexto, a crise financeira global veio
em um momento no qual o Brasil estava preparado
internamente, porque a política econômica de orientação
desenvolvimentista implementada desde 2005 tinha
dado frutos e musculatura para o país se defender, com
um mercado interno, políticas sociais e de redistribuição
de renda com força anticíclica e com reservas
internacionais expressivas. E, externamente, porque
o governo brasileiro soube se articular de imediato
com os novos parceiros para provocar uma ampliação
do foro de coordenação da reação mundial à crise. A
transformação do G-7 no G-20 como foro principal
permitiu ao Brasil, ao lado de Argentina, da África do
Sul e dos demais países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China), defender suas posições, por exemplo, com
relação à reforma da governança do Fundo Monetário
Internacional (FMI), que resultou no aumento do seu
poder de voto, que pulou de 18o para 10o lugar. Ou, mais
em geral, incluir na pauta do G-20 assuntos relacionados
aos desafios para o desenvolvimento sustentado, além
da crise financeira, como, por exemplo, a defesa do
trabalho decente. O Brasil reagiu de forma propositiva à
crise, tanto economicamente, gerando já em 2009 cerca
de 1 milhão de postos de trabalho, como politicamente,
se consolidando como um país que não só quer jogar
no grupo especial, mas que de fato está jogando e se
saindo bem.
Sem dúvida, há muitas deficiências a
serem superadas, tanto internamente quanto na
própria articulação internacional. Nos últimos anos,
e mais ainda com os acontecimentos pós-quebra
do Lehman Brothers, o Brasil abriu muitas portas
e muitas portas se abriram para o Brasil, que nem
sempre esteve preparado para ocupar e consolidar as
posições, assumindo inclusive as responsabilidades
que isto implica. Dois temas serão ainda objeto de
grandes debates. Primeiro, o envolvimento com
a defesa dos direitos humanos, assunto no qual
há certa tensão entre não querer um alinhamento
automático com as posições das forças ocidentais,
em particular os Estados Unidos, de um lado, e, de
outro, mostrar respeito pelas trajetórias dos países
colocados no “banco dos réus”. Segundo, e talvez
mais crucial ainda, a relação com a China. Por um
lado, este país é grande parceiro no combate às
assimetrias existentes, mas, por outro, demonstra
potencial de ser a fonte de novas assimetrias que
não necessariamente coincidem com os interesses
do povo brasileiro. Seja como for, não há dúvida de
que a primeira década do século XXI representou
uma mudança que veio para ficar na posição do
Brasil no mundo.
Dr. GIORGIO ROMANO SCHUTTE, professor da
Universidade Federal do ABC (UFABC), bolsista do
Programa Nacional de Pesquisa em Desenvolvimento
do Ipea e ex-assessor especial para assuntos
internacionais da Secretaria-Geral da Presidência da
República.
83
Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil tem desempenhado um papel central nos
debates concernentes à política pública do HIV/AIDS.
Seu programa nacional de HIV/AIDS, louvado pela
Organização das Nações Unidas (ONU) como o melhor
de seu tipo no mundo em desenvolvimento, tem servido
de modelo para 31 outros países em desenvolvimento,
assim como para a política global de HIV/AIDS adotada
pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2003.
Em particular, o programa de tratamento antirretroviral
brasileiro tem constituído o aspecto mais inovador,
polêmico e consequente da resposta do país ao HIV/
AIDS. Significativamente, o Brasil foi o primeiro país
a fornecer terapias contra a Aids gratuitamente para
todos os pacientes para os quais tais terapias foram
receitadas. Em 2010, cerca de 200 mil pacientes se
beneficiaram delas no país. No entanto, o tratamento
da AIDS no Brasil tem sido desafiado pelos altos custos
dos medicamentos antirretrovirais patenteados e pela
falta de capacitação tecnológica na produção destes
medicamentos, em especial dos seus princípios ativos.
Direitos à saúde e democraciaA política brasileira de oferecer tratamento para
AIDS tem sido moldada pela interação entre atores
domésticos, estrangeiros e transnacionais. Um
amplo movimento pela reforma do sistema de saúde
e pela democratização, conhecido como movimento
sanitarista, abriu o caminho para o desenvolvimento
desta política, incorporando na Constituição de 1988
uma concepção de saúde como direito do cidadão e
dever do Estado, e estabelecendo o novo Sistema
Único de Saúde (SUS), baseado nos princípios da
integralidade e participação comunitária. Além disso,
o programa brasileiro de tratamento antirretroviral
foi criado a partir da confluência de esforços das
organizações não governamentais (ONGs) locais
que trabalhavam com a AIDS, as quais surgiram no
contexto de democratização do país e apresentaram
diversas ações judiciais exigindo o acesso gratuito e
universal ao tratamento, e de servidores do governo
responsivos às exigências de tais organizações.
Os direitos constitucionais de saúde no Brasil
e a abordagem integral aos serviços de saúde, que
combinaram esforços de tratamento e prevenção
à AIDS, se encontravam claramente em desacordo
com as prescrições de políticas que prevaleciam no
momento e eram defendidas por instituições como
o Banco Mundial, a OMS, o Programa Conjunto
das Nações Unidas para o HIV/AIDS (UNAIDS), a
Organização Pan-Americana da Saúde e a Agência dos
Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional
(USAID), entre outros. Em vez de tentar fornecer o
tratamento antirretroviral, estas instituições instavam
os países em desenvolvimento a concentrar seus
recursos escassos em estratégias de prevenção
supostamente mais custo-efetivas. No entanto, o
Brasil provou que o tratamento antirretroviral pode
ser não apenas viável, mas também altamente bem-
sucedido mesmo em países em desenvolvimento.
A relação custo – benefício do tratamento da AIDS1
O sucesso do programa de tratamento antirretroviral
no Brasil é claramente corroborado pelos dados
epidemiológicos do país relativos ao HIV/AIDS.
Embora a incidência de infecções oportunistas no país
tenha subido acentuadamente no período de 1984 a
1995, ela caiu 80% desde 1996, quando as terapias
triplas começaram a ser distribuídas, até 2001.
1. A não ser quando outra fonte é indicada, os dados apresentados nessa seção são derivados de MELLO e SOUZA, A. M. Defying globalization: effective
self-reliance in Brazil. In: HARRIS, P. G.; SIPLON, P. D. (Eds.). The global politics of AIDS. Boulder-Co: Lynne Rienner Publishers, 2007.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza
84
Como resultado, cerca de 358 mil casos de
internações hospitalares relacionadas à AIDS foram
evitadas no país. Surpreendentemente, o número
de tais internações diminuiu, apesar do aumento
substancial do número de pacientes de AIDS até
2002, fazendo com que o Ministério da Saúde
economizasse mais de US$ 1,2 bilhão.
Ademais, os coquetéis antirretrovirais também
têm prolongado e melhorado sensivelmente a vida
das pessoas vivendo com AIDS no Brasil. Um estudo
realizado em todo o país encontrou um aumento de
12 vezes no tempo médio de sobrevida de pacientes
com AIDS a partir dos anos 1980 até 2000, resultado
semelhante aos observados em países de alta renda.
O estudo também mostrou que as terapias triplas
têm permitido que estes pacientes continuassem a
trabalhar e interagir com seus familiares e amigos.2
Assim, após seguir uma curva ascendente, as taxas
de mortalidade por AIDS diminuiram 50% no Brasil
a partir de 1996, apesar do aumento já mencionado
do número de pacientes com a doença. Estimativas
indicam que, de 1994 a 2002, quase 91 mil mortes por
AIDS foram evitadas no país.
Conquanto em 1992 o Banco Mundial tenha
projetado que até 2000 o Brasil teria 1,2 milhão de
pessoas HIV-positivas, o país teve de fato apenas
metade deste número, cerca de 600 mil. De 1994 a
2000, estima-se que a política de tratamento brasileira
tenha evitado mais de 58 mil casos de AIDS. O
tratamento antirretroviral tem, desta forma, também
reduzido significativamente os custos econômicos
gerados pela perda de produtividade dos indivíduos
falecidos ou incapacitados pela epidemia.
A experiência brasileira, portanto, tem
demonstrado que o tratamento antirretroviral é viável
em locais com poucos recursos, abrindo o caminho
para um novo consenso de políticas de saúde. As
estratégias de prevenção e tratamento da AIDS podem
ser ambas implementadas e se reforçam mutuamente,
mesmo nos países em desenvolvimento.
A estratégia de produção doméstica de genéricosA importação de medicamentos antirretrovirais caros e
patenteados drenava recursos do Ministério da Saúde.
Por este motivo, laboratórios públicos brasileiros
começaram a empregar técnicas de engenharia reversa
para descobrir as fórmulas destes medicamentos
e reproduzi-los. É significativo, contudo, que estes
laboratórios permanecem em geral incapazes de
produzir a parte mais cara e que representa o maior
valor agregado destas drogas, qual seja, seus princípios
ativos, os quais têm sido importados principalmente
da Índia, mas também da China.
Não obstante, o tratamento de AIDS no Brasil
tem dependido decisivamente da produção doméstica
de antirretrovirais genéricos como estratégia para
conter os custos do tratamento. Esta estratégia não
apenas permitiu a substituição de importações de
medicamentos anti-AIDS que não eram patenteados,
mas também obrigou as empresas multinacionais
farmacêuticas a conceder grandes descontos nos
preços de medicamentos patenteados a fim de evitar
que os seus direitos de monopólio fossem derrubados
pelo licenciamento compulsório.
Todos os produtos que tinham sido
comercializados em qualquer lugar do mundo antes
de 14 maio de 1997, quando a Lei de Propriedade
Industrial brasileira entrou em vigor, tornaram-se
para sempre inelegíveis para o patenteamento
no país. Como resultado, dez medicamentos anti-
AIDS mantiveram-se sem proteção patentária
no Brasil e puderam ser legalmente produzidos.
Fundamentalmente, uma vez que o Ministério
da Saúde começou a substituir as importações
caras com equivalentes genéricos nacionais, os
preços dos medicamentos antirretrovirais não
patenteados caíram em média 80,9% no Brasil
entre 1996 e 2001 (figura 1). Até 2009, nove dos
19 medicamentos anti-AIDS oferecidos no Brasil
foram fornecidos domesticamente.3
2. MARINS, J. R. P. Dramatic improvement in survival among adult Brazilian AIDS patients. AIDS, n. 11, p. 1675-1682, 2003.
3. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de DST, AIDS e hepatites virais. Brasília.
85
Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
A produção doméstica de genéricos
também foi decisiva para a redução dos preços
dos antirretrovirais patenteados, visto que ela
se tornou um elemento crucial de aumento do
poder de barganha do governo brasileiro com
relação às multinacionais farmacêuticas. De
fato, tal produção forneceu ao Ministério da
Saúde uma fonte alternativa mais barata de
medicamentos antirretrovirais, permitindo-lhe fazer
ameaças críveis de licenciamento compulsório.
As multinacionais farmacêuticas inicialmente
mostraram-se dispostas a conceder descontos
significativos para estes medicamentos, a fim de
não perder seus direitos de monopólio, obtidos por
meio do patenteamento. A produção doméstica
de genéricos também forneceu informações
fundamentais sobre os custos de produção dos
medicamentos antirretrovirais, as quais permitiram
ao governo negociar reduções de preços para
estes medicamentos de forma mais eficaz. Como
resultado de tais reduções de preços, os gastos
do Ministério da Saúde com terapias anti-AIDS
diminuiu de 1999-2002, ainda que o número de
doentes tratados tenha continuado a aumentar
substancialmente (Mello e Souza, 2007, p. 46).
Desafios à sustentabilidade do programaA sustentabilidade do programa do Brasil de
tratamento da AIDS permanece em risco, devido
à falta de capacitação tecnológica do país na
produção farmacêutica e às dificuldades de
importação dos medicamentos antirretrovirais
necessários para terapias de segunda e terceira
gerações, no contexto da implementação do
Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio
(conhecido pela sigla em inglês TRIPS). Uma vez
que estes medicamentos tratam, mas não curam,
o HIV/AIDS, eles precisam ser tomados por um
período indeterminado; e um número crescente
de pacientes necessita migrar de terapias
antirretrovirais ao desenvolver resistência viral.
Isto significa que o Ministério da Saúde cada vez
mais necessitará oferecer terapias de segunda e
terceira gerações, baseados em medicamentos
novos que são ou serão patenteados no Brasil.
Figura 1Custos de antiretrovirais não patenteados no Brasil (1996-2007)
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza
86
A estratégia brasileira de negociar reduções
de preços com multinacionais farmacêuticas
perdeu muito de sua eficácia. Os resultados destas
negociações têm sido cada vez mais insatisfatórios,
refletindo o fato de que as ameaças do governo
de licenciamento compulsório se tornaram menos
críveis. Exemplos incluem os acordos com a empresa
americana Abbott sobre o preço do antirretroviral
Lopinavir, que foram revistos em face de fortes
críticas de grupos organizados da sociedade civil e
podem levar o governo a pagar mais que o preço de
mercado deste medicamento, que já é relativamente
obsoleto e cuja patente irá expirar em breve.
O licenciamento compulsório do antirretroviral
Efavirenz, patenteado pela empresa americana Merck,
também revelou a crescente dificuldade do Ministério
da Saúde de obter descontos satisfatórios nos preços
dos antirretrovirais importados. O princípio ativo do
Efavirenz é produzido atualmente por um consórcio
privado brasileiro, mas o atraso de oito meses no
início desta produção constitui mais uma evidência da
falta de investimentos na capacitação tecnológica do
setor farmacêutico brasileiro.
Como resultado da perda de poder de
barganha do governo em relação às multinacionais
farmacêuticas, os custos do tratamento da AIDS
no Brasil aumentou significativamente desde 2003,
superando o aumento do número de doentes
tratados. Em 2006, as despesas com antirretrovirais
representaram 80% das despesas do Ministério
da Saúde com medicamentos. Enquanto em 2000
metade do total de antirretrovirais comprados pelo
ministério foi produzido domesticamente, em 2007
os genéricos de laboratórios públicos nacionais
representaram apenas 20% das compras. Segundo
estimativas recentes, o produto interno bruto (PIB)
brasileiro terá de crescer a uma taxa anual de cerca de
6% para sustentar a política do país de tratamento da
AIDS, sem que se cortem despesas em outras áreas.4
Ademais, desde 2005 os fornecedores
de princípios ativos genéricos para o Brasil, e
especialmente a Índia, adotaram leis de patentes
mais rígidas em concordância com o TRIPS,
comprometendo o comércio internacional de
medicamentos. Felizmente, os antirretrovirais de
segunda geração não são patenteados na Índia,
mas os de terceira geração muito provavelmente o
serão. Embora existam opções legais disponíveis às
quais o Brasil pode recorrer para a importação de
medicamentos antirretrovirais patenteados, estas
são muitas vezes complicadas e dispendiosas, e
podem depender da vontade política das empresas
farmacêuticas e autoridades indianas. Como
resultado, os custos crescentes dos medicamentos
anti-AIDS patenteados só podem ser efetivamente
controlados por meio de nova e contínua capacitação
tecnológica da indústria farmacêutica brasileira.
ANDRÉ DE MELLO E SOUZA é doutor em ciência
política pela Universidade de Stanford e Técnico de
Planejamento e Pesquisa do Ipea.
4. GRANGEIRO, A. et al. Sustentabilidade da política de acesso a medicamentos antirretrovirais no Brasil. Revista de Saúde Pública, n. 40, p. 60-9, 2006.
87
Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O Brasil é um país abençoado entre as potências
emergentes mundiais. Ascende em uma região
particularmente pacífica, composta em sua maioria
por regimes democráticos. Se comparada com
o Leste Asiático, com a Ásia Meridional, com o
Oriente Médio e com a África, a América Latina –
em particular a América do Sul – desfruta de uma
condição ímpar, por não existir, na área, competição
geopolítica. Esta é uma das razões pelas quais nem
o Brasil nem qualquer um de seus vizinhos da
América Latina possuem armas nucleares. A Índia,
como o Brasil, é uma potência emergente com uma
democracia estável, mas está localizada em uma
região bastante perigosa, e tem um longo histórico
de rivalidades com o Paquistão e a China – motivo
pelo qual os três países dotaram-se de armas
nucleares. Em suma, o desenvolvimento brasileiro
ocorre em um ambiente político e geopolítico
singularmente favorável.
O Brasil deveria capitalizar essas condições
positivas ao mapear sua estratégia para o futuro. Sem
as amarras das limitações políticas e estratégicas
enfrentadas por outras potências emergentes, o Brasil
vê-se livre para desempenhar uma função de liderança
na formulação da nova ordem internacional em gestação.
Seria conveniente que o Brasil, Estado em ascensão,
aproveitasse esta oportunidade para atuar como ponte
na transição entre a ordem vigente – dominada pelo
Ocidente – e uma ordem em que o poder e a autoridade
sejam distribuídos de maneira mais ampla.
Este artigo estabelece alguns princípios
destinados a orientar a evolução da política externa
do Brasil à medida que o país continue a crescer.
De uma forma geral, o Brasil deveria estar atento
à necessidade de manter o equilíbrio entre seus
recursos e compromissos. É recomendável que o
país busque um caminho paulatino e prudente que
amplie a influência do país e evite os riscos inerentes
a uma ambição exacerbada.
A importância da estratégiaAs potências emergentes devem desenvolver tanto
sua capacidade política e suas instituições quanto os
recursos intelectuais necessários para a formulação
e implementação de uma estratégia de alcance
global significativa. A vontade política e as escolhas
estratégicas intencionais que orientam os países
emergentes não surgem naturalmente de moto
próprio; precisam ser cultivadas e alimentadas.
Os Estados Unidos, por exemplo, já eram
uma grande potência econômica bem antes de aspirar
a uma abrangência global. Foi somente na década de
1890 que o país começou, de forma intencional, a
transformar seus recursos materiais em influência
geopolítica. Tal transformação somente foi possível
devido a mudanças institucionais: o governo federal
reforçou seus poderes com relação aos estados
autônomos, e o Poder Executivo reforçou sua posição
em relação ao Congresso. O começo do que passou
a ser chamado de “presidência imperial” permitiu
que os presidentes norte-americanos McKinley e
Roosevelt, e os demais que se seguiram, alocassem
recursos para construir uma frota naval e desenvolver
uma formidável estratégia de engajamento global.
Durante o século XX, os Estados Unidos prosseguiram
na edificação da ampla e profunda estrutura de
segurança nacional que existe atualmente, da qual o
Departamento de Estado, o Pentágono e o Conselho
de Segurança Nacional são suas manifestações mais
visíveis. Conta-se ainda com uma base formada por
universidades, instituições de ensino de políticas
públicas e grupos de reflexão.
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan
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A lição a ser assimilada pelo Brasil consiste
em investir e desenvolver o capital humano e a
infraestrutura institucional essenciais para orientar
e sustentar a ascensão brasileira ao status de ator
mundial. Isto significa a alocação de novos recursos
para ampliar as instituições de ensino superior
destinadas a formar tanto diplomatas quanto analistas
políticos e especialistas em relações internacionais.
O Brasil deveria também continuar a investir em sua
força diplomática e em sua representação no exterior.
Além disso, deveria ainda contemplar a necessidade
de estabelecer mudanças em suas estruturas
decisórias e consultivas, para aprimorar a formulação
e a implementação de sua estratégia nacional. Como
ficou claro com o exemplo dos Estados Unidos, as
instituições são fundamentais.
O poder começa em casaA força de um país reside em uma combinação de
capacidade econômica e coesão política. A coesão
política e a boa governança são importantes para
transformar a capacidade material em poder brando
(soft power) e em poder pesado (hard power). A
China, por exemplo, atingiu taxas de crescimento
bem mais elevadas que a Índia, em parte porque um
Estado autocrático – sem as idas e vindas da política
democrática – permitiu uma governança mais focada,
competente e hierárquica. O resultado foi uma
política inteligente que maximizou o crescimento e
reduziu enormemente a pobreza. A China também
considerou o crescimento econômico interno sua
prioridade máxima, e ajustou sua política externa
adequadamente. Por sua vez, a Índia enfrenta uma
situação política mais complicada e fragmentada.
Suas decisões muitas vezes objetivam satisfazer
uma ampla gama de eleitorados domésticos, mais
que fortalecer o crescimento. Não se trata de
enaltecer, com estes comentários, a autocracia, mas
de reforçar o grau de ação de uma sólida política
doméstica – principalmente no campo econômico –,
essencial para manter um crescimento constante do
poder do Estado.
O Brasil, portanto, deve continuar a
concentrar sua atenção na sua frente interna,
buscando uma combinação entre uma sólida
política macroeconômica, a redução da pobreza
e o crescimento equilibrado em todos os setores
de sua economia. Este foco na área doméstica é
particularmente importante considerando-se que os
países emergentes que experimentam um rápido
crescimento econômico estão propensos à prática
de excessos estratégicos que são, muitas vezes, um
subproduto do deslocamento social. As mudanças na
hierarquia social, provocadas pelo desenvolvimento
econômico interno, podem levar ao “imperialismo
social” – recurso empregado com políticas externas
agressivas como forma de consolidar o controle
interno por meio do populismo e do nacionalismo.
A Alemanha, antes da Primeira Guerra
Mundial, foi um exemplo bastante elucidativo desse
fenômeno. Da unificação em 1871 até meados dos
anos 1890, o país seguiu uma estratégia sustentada e
ponderada, que evitava deliberadamente a rivalidade
direta com seus vizinhos. Ao final dos anos 1890,
contudo, um conflito interno contrapondo o aço e
o centeio (os industrialistas e a aristocracia rural)
contra a classe operária ascendente levou o governo
a lançar mão da política externa como arma de
manipulação doméstica. O rápido desenvolvimento
naval, combinado à propagação de uma ideologia
nacionalista, conseguiu aglutinar o país em torno
da weltpolitik. Entretanto, a virada na estratégia
global alemã abalou o equilíbrio de poder na Europa,
enredando os líderes do país na sua própria propaganda
nacionalista e arrastando as grandes potências na
direção da Primeira Guerra Mundial. O crescimento
pacífico da Alemanha foi vítima de uma estratégia
destrutiva gerada pelas disfunções políticas internas.
Apesar do impressionante avanço econômico
do Brasil, o país ainda se depara com diversos
desafios internos, como a redução da desigualdade
econômica e da pobreza, a distribuição mais justa da
posse da terra, e a garantia de uma representação
política equilibrada de todas as classes e raças. O
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Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
rápido crescimento econômico, a despeito de seus
benefícios, tem o potencial de trazer em sua esteira
o deslocamento social e o populismo, além do
imperialismo social que muitas vezes os acompanha.
Embora experimentando um forte desenvolvimento
econômico, o Brasil deverá resguardar-se das
tentações de exportar tensões políticas internas –
ou seja, usar a política externa como ferramenta da
política nacional.
A centralidade da integração regionalAs condições estratégicas positivas que cercam o
crescimento brasileiro originam-se em grande parte
do bem-sucedido processo de integração regional
que ocorreu durante as três últimas décadas.
Brasil e Argentina começaram a trilhar a senda da
reaproximação no início de 1979, abrindo caminho
para o lançamento e o desenvolvimento do Mercado
Comum do Sul (Mercosul) durante os anos 1990.
Caso este esforço em prol da integração regional
falhasse, o crescimento brasileiro provavelmente
traria consequências consideráveis para a América
do Sul, incentivando a Argentina e outros países
da região a unirem-se contra o poder do Brasil. O
desenvolvimento de países como China, Índia e
Turquia está causando uma incerteza geopolítica
considerável precisamente porque estes países
estão crescendo em regiões ainda assoladas por
perigosas rivalidades.
Embora os horizontes estratégicos do Brasil
estejam se expandindo no mesmo ritmo de sua força
internacional ascendente, o país deve continuar a
investir tempo e energia em sua integração regional.
A transição de uma interdependência econômica,
proporcionada pelo Mercosul, para uma cooperação
política e estratégica mais profunda, possibilitada pela
Unasul, constituiriam um importante passo à frente.
A União Europeia (UE), afinal, teve tanto sucesso
na promoção de uma paz duradoura na Europa por
ser muito mais que um bloco comercial; juntamente
com a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan), a UE provê a estrutura para o gerenciamento
coletivo da segurança na região. Sem dúvida, a
importância crescente do Brasil trouxe-lhe os meios
para que se torne um ator no Oriente Médio e em
outras regiões muito além das suas fronteiras. Mas
a consolidação da paz e da prosperidade na América
do Sul deve continuar a ser considerada prioridade
máxima. Somente a continuidade da estabilidade e
da colaboração na região fará com que o Brasil seja
capaz de projetar sua voz de forma efetiva e defender
seus interesses em regiões mais distantes.
O exercício da limitação estratégicaQuando se trata do escopo de influência internacional
e da ambição internacional das potências emergentes,
menos é mais. Os países emergentes que agem com
prudência e falam com moderação terão um crescimento
menos problemático e turbulento que os países que
adotam uma atitude de intimidação e truculência.
Bismarck foi tão bem-sucedido em sua
forma de conduzir o desenvolvimento inicial da
Alemanha porque refreou a ambição do país,
concentrando-se no crescimento econômico e na
influência diplomática, em detrimento do poderio
militar. Mostrou-se contrário à aquisição de colônias,
argumentando que o império de além-mar desviaria
a Alemanha de sua vocação continental, e provocaria
uma desnecessária rivalidade com a Grã-Bretanha
e a França. Bismarck foi vitorioso em aumentar a
influência germânica, ao transformar o país no eixo
diplomático da Europa. Seus sucessores pagaram
um alto preço por fazerem exatamente o contrário.
Propagaram mitos nacionalistas dentro do país,
e lançaram-se em um fortalecimento militar que
levou a Alemanha a um isolamento e a uma guerra
não intencional entre potências. O exercício de
limitação estratégica funcionou positivamente para
a Alemanha, ao passo que a ambição sem limites
levou o país à derrocada.
O histórico diplomático da China também
deixa suas lições. Durante a década passada, a
China concentrou-se no seu crescimento interno,
e praticou uma política externa circunscrita; seu
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan
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crescimento, consequentemente, encontrou pouca
resistência. Mais recentemente, a China adotou uma
postura mais robusta, e passou a usar um tom mais
contundente no que diz respeito aos seus “interesses
essenciais” no Mar do Sul da China, enfrentando o
Japão em torno de uma disputa de ilhas, e recusando-
se a isolar a Coreia do Norte mesmo após esta ter
afundado um navio da Coreia do Sul e bombardeado
uma ilha sul-coreana. A reação internacional foi
imediata. Os Estados Unidos reforçaram sua rede
de alianças no Leste da Ásia, e lançaram uma nova
parceria estratégica com a Índia. O Japão anunciou
a mudança de seu foco estratégico militar, tirando o
foco do Norte e passando a concentrar suas atenções
na ameaça chinesa às suas ilhas meridionais. A
diplomacia mais agressiva da China causou mais
danos que benefícios à sua posição estratégica.
Fica para o Brasil a lição de que é preciso
assegurar que, mesmo pretendendo exercer alguma
influência internacional proporcional ao seu peso, é
preciso agir com cautela e ponderação. Brasília deve
concentrar-se em medidas destinadas a contribuir
para a provisão de bens públicos e a reforçar uma
ordem ditada por regras, evitando ações que
pareçam conter intenções provocadoras ou destinar-
se a proveito próprio. Por exemplo, a iniciativa entre
Brasil e Turquia de estabelecer um acordo com o
Irã sobre a exportação de suas reservas de urânio
foi uma atitude construtiva. Os Estados Unidos e a
UE deveriam ter reagido de maneira mais favorável
e utilizar o fato como base para futuras discussões.
No entanto, a aproximação cordial do presidente
Lula com o presidente iraniano Ahmadinejad foi um
equívoco. Brasília parecia acolhê-lo no momento em
que a comunidade internacional buscava reforçar
o isolamento do regime. A medida pode ter sido
destinada a reforçar as credenciais do Brasil como
ator independente, mas causou mais danos que
benefícios à posição internacional do país. Conforme
deixaram claro documentos divulgados pela
organização Wikileaks, até mesmo no Oriente Médio
Ahmadinejad está longe de ser um líder respeitado.
Aproximando países desenvolvidos e em desenvolvimento Graças a uma situação geopolítica positiva, a um
governo democrático estável e ao seu histórico
de boas relações com países desenvolvidos e
em desenvolvimento, o Brasil poderia buscar a
construção de uma ponte entre os dois grupos.
Brasília deveria alinhar-se, quando apropriado,
com o Ocidente, e, quando apropriado, com seus
parceiros do BRIC e outros grupos de nações em
desenvolvimento. Em lugar de procurar manter-
se em um determinado papel, ou de aderir a
uma determinada ideologia, ao Brasil seria mais
pertinente orientar-se segundo uma agenda
pragmática, voltada para a resolução de problemas.
Neste particular, o Brasil deveria agir como
um gerador de normas – um país que colabora
de forma consciente na recriação de uma ordem
internacional fundamentada em regras. Neste
ponto da transição para um sistema internacional
pós-ocidental, os países emergentes estão bem
preparados para expressar claramente aquilo que
não desejam – um sistema internacional sob a
hegemonia do Ocidente –, mas ainda não estão
preparados para expressar aquilo que desejam –
em outras palavras, quais as regras que poderiam
conduzir a uma ordem pós-ocidental. O Brasil
encontra-se em uma posição particularmente
favorável para ajudar a preencher essa lacuna. É
um país que, além de contar com a credibilidade
popular – “a credibilidade das ruas” – das
potências emergentes, possui uma economia
aberta e instituições democráticas que funcionam
como poderosas credenciais entre as potências
ocidentais.
Antes do engajamento comercial, a diplomaciaÉ consenso que a integração comercial é um
ingrediente fundamental para a paz, e que a
interdependência econômica leva à estabilidade
geopolítica. Este consenso, entretanto, está errado.
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Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan
Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar
O principal ingrediente para a construção da paz é a
diplomacia, e somente depois que os diplomatas
concluírem sua tarefa a integração comercial poderá
ajudar a selar o acordo. A experiência do Brasil confirma
esta premissa. A reaproximação com a Argentina
ocorreu primordialmente em virtude da diplomacia;
a integração comercial manteve-se bastante limitada
durante os anos críticos das trocas, do diálogo e da
construção da confiança. Somente após as relações
entre Brasil e Argentina atingirem um nível muito mais
positivo o Mercosul entrou em ação e conseguiu
intensificar a interdependência econômica.
O Brasil deve forjar a sua estratégia regional
e internacional seguindo essa linha. A expansão do
engajamento econômico é importante em si mesma;
ela facilitaria o crescimento brasileiro e contribuiria
para a prosperidade mundial. Mas a estratégia de
engajamento adotada pelo Brasil deve conter uma
alta dose de iniciativa diplomática. Nas Américas, no
Oriente Médio e em outras regiões, o Brasil deverá
capitalizar seu crescente nível de poder e influência para
auxiliar na solução de conflitos difíceis de negociar, e
evitar que novos conflitos venham a ocorrer. O efetivo
desempenho desta função ajudaria a marcar o advento
do Brasil como grande potência responsável.
CHARLES A. KUPCHAN é professor de relações
internacionais na Georgetown University e pesquisador
sênior no Council on Foreign Relations em Washington
Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
EDITORIAL
CoordenaçãoCláudio Passos de Oliveira
SupervisãoMarco Aurélio Dias Pires
Everson da Silva Moura
RevisãoLuciana Dias Jabbour
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EditoraçãoBernar José Vieira
Claudia Mattosinhos Cordeiro
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