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Brasília, 2011

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Contatos da Foresight:

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Third Floor

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Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Ministro Wellington Moreira Franco

PresidenteMarcio Pochmann

Diretor de Desenvolvimento InstitucionalFernando Ferreira

Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas InternacionaisMário Lisboa Theodoro

Diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da DemocraciaJosé Celso Pereira Cardoso Júnior

Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas João Sicsú

Diretora de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e AmbientaisLiana Maria da Frota Carleial

Diretor de Estudos e Políticas Setoriais, de Inovação, Regulação e InfraestruturaMárcio Wohlers de Almeida

Diretor de Estudos e Políticas SociaisJorge Abrahão de Castro

Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaçãoDaniel Castro

URL: http://www.ipea.gov.br Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

Fundação públ ica v inculada à Secretar ia de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasi leiro – e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos.

Apoio ao seminário Foresight Brazil Conference –

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo

multipolar

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Brasil em um mundo multipolar

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© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea 2011

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

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Traçando novos rumos : o Brasil em um mundo multipolar / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada .- Brasília : Ipea, 2011.92 p. : gráfs., tabs.

ISBN 978-85-7811-089-5

1.Desenvolvimento Econômico. 2. Crescimento Sustentável. 3. Política Social. 4. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CDD 338.981

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar 5

Sumário

SumárioApresentaçãoAlfred Herrhausen Society e Policy Network 7

Wolfgang Nowak e Priya Shankar

ApresentaçãoInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada 9

Marcio Pochmann

Introdução: Reivindicando o Futuro do Brasil 13

Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shankar

Parte 1: Trajetórias ao crescimento sustentável

O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros 21

Nelson Barbosa

Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento 25

Glauco Arbix

O Brasil como potência energética 29

Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

Escapando à armadilha comercial 33

Yang Yao

Parte 2: Tensões internas e coesão social

Avançando o New Deal brasileiro 39

André Singer

A construção de uma política social estratégica 43

Jorge Abrahão de Castro

A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento 49

Daniel Vargas

À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização 55

Niraja Gopal Jayal

Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos 59

William Galston

Parte 3: Autonomia na era da interdependência

A ascensão cautelosa do Brasil 65

Riordan Roett

O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? 69

Marcel Fortuna Biato

O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade 73

Rubens Antonio Barbosa

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar6

Sumário

O Brasil ocupando seu lugar no mundo 77

Giorgio Romano Schutte

Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil 83

André de Mello e Souza

Traçando rumos para a ascenção do Brasil 87

Charles A. Kupchan

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Apresentação Alfred Herrhausen Society e Policy Network | Wolfgang Nowak e Priya Shankar

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Estamos vivendo um período de transição no qual

os centros que agrupam o poder global estão se

alterando e a antiga ordem está cedendo caminho.

Estamos apenas começando a perceber os contornos

nascentes da nova ordem que virá substituí-la.

A Foresight, uma iniciativa da Alfred Herrhausen

Society, o fórum internacional da Deutsche Bank,

em parceria com a Policy Network, está procurando

traçar o curso desta ordem emergente e dos seus

atores-chave. Após uma série de fóruns de alto

nível realizados na Rússia, nos Estados Unidos e na

Índia, a Conferência Foresight Brazil examinará as

prioridades e o papel do Brasil neste contexto global

em mudança. A nova presidência do Brasil está

herdando uma década de crescimento econômico

inclusivo e de corajoso ativismo internacional. Como

pode o Brasil ampliar este sucesso?

O cenário internacional, diante do novo

governo brasileiro, é um cenário de fluxo. Nossas

instituições internacionais, criadas e constituídas

no ambiente pós-1945, não são mais capazes de

oferecer soluções viáveis para os problemas atuais.

Instituições como o Fundo Monetário Internacional

(FMI), o Banco Mundial e o Conselho de Segurança

das Nações Unidas estão enfrentando uma crise de

legitimidade e, embora o G-20 tenha substituído o

G-8 como fórum econômico principal e conseguido

evitar o pior do desastre financeiro global, ele está

agora assediado por tensões. O Brasil tem sido um

elemento-chave na criação de grupos informais, tais

como o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e a Ibas

(Índia, Brasil e África do Sul), que desempenharam um

papel significativo na arregimentação das economias

emergentes. Estes fóruns, entretanto, têm pouco

poder e são normalmente vistos como espaços de

debate, incapazes de tomarem decisões concretas.

Tanto as novas quanto as antigas instituições são,

em grande parte, incapazes de prover soluções

efetivas aos prementes desafios que nos assediam.

Na verdade, muitas pessoas no Ocidente

culpam os países emergentes pelo fato de estes não

assumirem suficiente responsabilidade global. Esta

alegação, no entanto, desconhece a natureza e a

magnitude dos desafios que países como o Brasil,

a Índia, a China e a África do Sul estão enfrentando.

Ressalte-se que os maiores problemas destes países

estão “dentro da própria casa”. Entretanto, é certo

que em um mundo em que o global e o local estão

estreitamente entrelaçados, existem formas por

meio das quais a cooperação internacional poderia

ajudar a resolver estes problemas nacionais.

O grande desafio enfrentado pelo Brasil,

Rússia, Índia, China e África do Sul, em grau variado

em cada um deles, é a pobreza e a desigualdade.

Embora estes países tenham experimentado um

crescimento econômico acelerado, os benefícios

da globalização ainda não lograram propagar-se

e beneficiar a todos. Nos países maiores e mais

diversificados, as tensões sociais e as diferenças

existentes se exacerbaram e novas tensões estão

surgindo. Todos estes países enfrentam o problema

de possíveis perturbações internas, sob a forma

de crimes, ou protestos, ou ainda movimentos de

secessão. Por isso, mecanismos de cooperação

para o crescimento econômico e o enfrentamento

da desigualdade e das desvantagens sociais

poderiam ser de considerável valia, se os países

do BRIC resolvessem criar um fórum de segurança

econômica, onde não só pudessem cooperar na

solução de problemas econômicos internacionais,

mas também compartilhar os avanços e iniciativas

bem-sucedidas como o Programa Bolsa Família

(PBF), para aprenderem uns com os outros. Esta

iniciativa poderia ser de considerável utilidade para

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Apresentação Alfred Herrhausen Society e Policy Network | Wolfgang Nowak e Priya Shankar

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se enfrentarem os desafios e problemas que estão

diante destes países.

Outro campo possível de cooperação seria

o do gerenciamento de catástrofes. Muitas das

economias emergentes enfrentam devastações e

sofrimentos causados pelos desastres naturais. Em

2010, os dilúvios no Rio de Janeiro, o tremor de

terra chinês, a seca russa e as inundações na Índia

trouxeram gigantescas e inesperadas dificuldades.

As catástrofes naturais sempre foram devastadoras,

mas sua frequência e escala têm aumentado com

as mudanças climáticas. Os países que sofrem mais

são aqueles cujo gerenciamento de catástrofes

é pouco eficiente. A criação, pelos BRIC, de um

fórum para o gerenciamento de catástrofes, no qual

compartilhassem suas experiências e colaborassem

nos esforços de socorro, seria um passo significativo

na solução de uma das piores ameaças de nossos dias.

Tanto o fórum para o gerenciamento de catástrofes

quanto o fórum de segurança econômica seriam

formas de acrescentar ação à retórica da cooperação.

O Brasil, com sua diversidade e seus fortes

vínculos internacionais, está posicionado de modo

único para fazer com que essas ideias possam sair

do papel. Seria uma forma de edificar algo, tirando

partido do ativismo internacional que permitiu a

emergência de fóruns como o BRIC e o IBAS. Nas

duas décadas passadas, o Brasil desenvolveu seu

próprio modelo socioeconômico e propôs novas

maneiras de pensar questões de equidade, justiça e

prosperidade. É exatamente aí que reside a força real

do Brasil; não apenas no poder econômico e político,

mas como poder pensante, um poder que gere

ideias e proponha soluções inovadoras. Tais ideias

e ações podem beneficiar não apenas os cidadãos

brasileiros, mas também outros cidadãos do mundo.

WOLFGANG NOWAK é diretor executivo da Alfred

Herrhausen Society

PRIYA SHANKAR é pesquisadora e administradora

de projetos sênior, Policy Network

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Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Nos últimos anos, o Brasil logrou conciliar

crescimento econômico com distribuição de

renda, em um contexto de aprofundamento do

processo democrático no qual um operário e uma

mulher foram eleitos. Foram obtidos avanços na

modernização da atividade econômica, na promoção

de um desenvolvimento mais justo e ambientalmente

sustentável, na valorização da cidadania. Foram

criados mais de 10 milhões de empregos formais

entre 2003 e 2010, com significativo aumento da

massa de rendimento real e do salário mínimo. O

Estado brasileiro assumiu um papel estratégico no

adensamento da matriz de garantia de renda no país.

Os programas de transferência de renda às famílias

– Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada

e Previdência Rural – foram cruciais na promoção

de um ciclo de crescimento econômico sustentado,

baseado no fortalecimento do mercado interno,

promovendo a melhoria das condições de vida dos

segmentos mais pobres da sociedade brasileira.

Foram obtidos também avanços consideráveis

nas relações com o exterior. As reservas internacionais

ultrapassaram US$ 300 bilhões, as empresas e os

bancos brasileiros se internacionalizaram, o país

passou a fazer parte de diversos fóruns relevantes de

negociações internacionais, tais como o G-20 comercial

(regras para o comércio internacional), a cúpula do

G-20 financeiro (coordenação macroeconômica

global), o Comitê de Basileia de Supervisão Bancária e

o Conselho de Estabilidade Financeira (reestruturação

dos sistemas financeiros nacionais e internacionais), a

reforma da estrutura de voto e governança do Fundo

Monetário Internacional e do Banco Mundial.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

tem realizado um enorme esforço para apreender

as principais características desse “novo ciclo de

desenvolvimento brasileiro”, baseado na expansão

de seu mercado interno, na redução da pobreza e

da desigualdade de renda, no aprofundamento da

participação popular e na intensificação da inserção

internacional. Por meio do projeto Perspectivas

do desenvolvimento brasileiro, que articula

um conjunto amplo de estudos, denominados

Eixos do Desenvolvimento Brasileiro, procura-se

explicitar as várias dimensões da nova inserção

internacional brasileira;1 da macroeconomia para o

desenvolvimento;2 do fortalecimento do Estado, das

instituições e da democracia;3 da expansão e dos

limites da infraestrutura e da logística de base;4 da

dinâmica da estrutura produtivo-tecnológica e das

renitentes desigualdades regionais;5 das políticas

de proteção social e geração de oportunidades;6 e

da sustentabilidade ambiental.7 Dessa forma, o Ipea

oferece à sociedade brasileira diferentes estudos, de

1. ACIOLY, Luciana; CINTRA, Marcos Antonio M. (Orgs.). Inserção internacional brasileira soberana. Vol. 1 e vol. 2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada, 2010.

2. VIANNA, Salvador T. Werneck; Bruno, Miguel A. P.; Modenesi, André de M. (Orgs.). Macroeconomia para o desenvolvimento: crescimento, estabilidade e

emprego. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

3. PINTO, Eduardo C.; CARDOSO JR. José Celso; LINHARES, Paulo de T.; CUNHA, Alexandre dos Santos; MEDEIROS, Bernardo Abreu de; AQUINO, Luseni

Maria C. de; SÁ E SILVA, Fabio de; LOPEZ, Felix Garcia; PIRES, Roberto Rocha C. (Orgs.). Fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia. Vol. 1,

vol. 2 e vol. 3. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

4. PEGO, Bolívar; CAMPOS NETO, Carlos A. da S.; MORAIS, Maria da Piedade; COSTA, Marco A. (Orgs.). Infraestrutura econômica, social e urbana no

Brasil. Vol. 1 e vol.2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

5. DE NEGRI, Fernanda; ALMEIDA, Mansueto; OLIVEIRA, Carlos Wagner de A.; MAGALHÃES, João Carlos R. (Orgs.). Estrutura produtiva e tecnológica

avançada e regionalmente integrada. Vol.1 e vol.2. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

6. CASTRO, Jorge Abrahão de; FERREIRA, Helder R. S.; CAMPOS, André G.; RIBEIRO, José Aparecido C. (Orgs.). Proteção social, garantia de direitos e

geração de oportunidades. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

7. ALVAREZ, Albino R.; MOTA, José A. (Orgs.). Sustentabilidade ambiental. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann

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diversas perspectivas, a fim de fomentar o debate

em torno da configuração desta nova trajetória

de desenvolvimento e, sobretudo, das condições

para sua sustentabilidade e seu avanço. Vale dizer,

superar as características do subdesenvolvimento

que continuam presentes, tais como as enormes

desigualdades de renda, de riqueza, de gênero e de

raça, dificuldades de acesso à saúde e à educação,

os obstáculos à inovação tecnológica permanente

no parque produtivo, os limites do financiamento

de longo prazo, entre outros. Enfatiza-se que todos

estes documentos estão disponíveis na página

eletrônica do Ipea.

O Ipea defende que essas conquistas

precisam ser amplamente debatidas, compreendidas

e aperfeiçoadas, aproveitando-se o momento

inovador e criativo no campo das ideias, das políticas

públicas, dos partidos políticos, das universidades,

das associações de classes – empresários e

trabalhadores –, das empresas estatais, dos

empreendedores de todos os matizes, em todos

os cantos do país. Em termos da concepção e da

implementação da política pública, depreende-se

que o exercício contínuo, coletivo e cumulativo da

vigência democrática no Brasil aponta não somente

para processos de amadurecimento crescente das

instituições, mas também para grandes desafios que

ainda pairam sobre a sociedade brasileira.

Como salientou a presidenta Dilma Rousseff:

“os ganhos econômicos e sociais dos últimos anos

estão permitindo uma renovada confiança no futuro.

Enorme janela de oportunidade se abre para o Brasil.

Já não parece uma meta tão distante tornar-se um

país economicamente rico e socialmente justo. Mas

existem ainda gigantescos desafios pela frente.

E o principal, na sociedade moderna, é o desafio

da educação de qualidade, da democratização do

conhecimento e do desenvolvimento com respeito

ao meio ambiente. (...) Priorizar a educação implica

consolidar valores universais de democracia, de

liberdade e de tolerância, garantindo oportunidade

para todos. (...) Estamos fazendo as escolhas certas:

o Brasil combina a redução efetiva das desigualdades

sociais com sua inserção como uma potência

ambiental, econômica e cultural”.8

A inclusão plena da população – além do

emprego e da renda – depende da universalização e

qualificação de serviços essenciais, em particular as

áreas de saúde, educação e segurança. A presidenta

Dilma Rousseff, em seu discurso de posse, explicitou

ainda a luta obstinada de seu governo para erradicar

a pobreza extrema e criar oportunidade para todos.

“Não vou descansar enquanto houver brasileiros

sem alimentos na mesa, enquanto houver famílias no

desalento das ruas, enquanto houver crianças pobres

abandonadas à própria sorte. O congraçamento das

famílias se dá no alimento, na paz e na alegria. É este

o sonho que vou perseguir!”

O Ipea procura contribuir para este debate,

por meio da participação em um grupo para a

construção de uma definição objetiva de mensuração

da pobreza extrema, permitindo o acompanhamento

e monitoramento dos resultados das ações de

redução da quantidade de pobres no país nos

próximos anos. Sugere-se também distinguir a

pobreza nas áreas rural e urbana e, nesta, as regiões

metropolitanas e não metropolitanas. Sabe-se que

a taxa nacional de pobreza extrema caiu de 42,9%

em 1978 para 9,4% em 2008. Todavia, a pobreza

rural diminuiu de 72,5% para 22,9%. A pobreza

urbana caiu mais rapidamente, passando de 18,4%

em 1978 para 5,5% nas regiões metropolitanas e de

38,1% para 7,8% nas regiões não metropolitanas no

mesmo período.9 Assim, somente considerada a taxa

de pobreza extrema, para cada miserável existente

nos grandes centros metropolitanos, há quatro vezes

mais intensidade de sua manifestação no meio rural.

A superação da condição de pobreza extrema que

atinge um em cada dez brasileiros neste início da

segunda década do século XXI (rendimento familiar

per capita de até um quarto de salário mínimo

mensal) deve passar por maior aperfeiçoamento das

8. ROUSSEFF, Dilma. País do conhecimento, potência ambiental. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 de fevereiro de 2011, p. A3.

9. POCHMANN, Marcio. Pobreza e suas manifestações. Valor Econômico, São Paulo, 12 de janeiro de 2011.

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Apresentação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada | Marcio Pochmann

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

políticas públicas direcionadas, sobretudo, ao meio

rural. Sugere-se, portanto, que estas diferenciações

das estruturas econômicas e sociais são importantes

para uma reconfiguração das políticas públicas

de enfrentamento da pobreza extrema em todo

o território nacional. E isso precisa ser mais bem

debatido pela sociedade brasileira.

Finalmente, em decorrência de boas

práticas em termos de políticas públicas, seja na

sua dimensão interna, seja em termos de política

externa, a presença do Brasil no mundo vem se

consolidando. Nesse sentido, o país tem despertado

a atenção da comunidade internacional, seja pelas

grandes transformações promovidas no âmbito social

e econômico – decorrentes de uma opção por um

conjunto de políticas públicas inclusivas, integrantes

de um projeto de desenvolvimento desenhado pelo

governo brasileiro –, seja pela presença no cenário

político mundial marcado por uma diplomacia

ativa, com fito na promoção do desenvolvimento

global e ampliação da participação dos países

subdesenvolvidos no comércio internacional, na

formação bruta de capital fixo, na cooperação Sul-Sul

e nos principais fóruns internacionais.

Segundo o ministro das relações exteriores,

Antonio Patriota: “entre os pólos que configuram a nova

geopolítica deste início de século, o Brasil, com sua

tradição de paz e tolerância, se posiciona como um ator

que reúne características privilegiadas para a promoção

de modelos mais inclusivos de desenvolvimento e

para o fortalecimento da cooperação entre as nações

por intermédio de mecanismos de governança mais

representativos e legítimos”.10 Juntamente com a

Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério

das Relações Exteriores, o Ipea realizou o levantamento

da cooperação brasileira para o desenvolvimento

internacional entre 2005 e 2009, a qual atingiu

R$ 2,9 bilhões, dividida entre as modalidades de ajuda

humanitária, bolsas de estudo para estrangeiros,

cooperação técnica, científica e tecnológica e

contribuições para organizações internacionais.11 A

cooperação brasileira se destinou preponderantemente

para os países de menor desenvolvimento relativo na

América Latina e no Caribe, na África, no Oriente Médio

e na Ásia (Timor Leste).

Enfim, em um mundo marcado pela

crescente interdependência global, compreender

como as tendências internacionais afetam a

conjuntura local, e vice-versa, é uma tarefa essencial

para o êxito de qualquer país. Por isso a importância

e a necessidade do projeto Foresight desenvolvido

com a Policy Network e a Alfred Herrhausen Society.

É missão do Ipea “produzir, articular e

disseminar conhecimento para aperfeiçoar as

políticas públicas e contribuir para o planejamento

do desenvolvimento brasileiro”. Nesta esteira, é

crucial para o Ipea ajudar a perseguir e divulgar os

princípios e ideais do Estado nacional democrático,

do planejamento governamental participativo e

das próprias políticas públicas como veículos para

o desenvolvimento econômico e social, tanto no

âmbito local como no global. A parceria entre Ipea,

Policy Network e Alfred Herrhausen Society auxilia

neste processo, pois traz diversos pontos de vista de

diferentes países para o debate doméstico e divulga

práticas inovadoras internas em âmbito internacional.

MARCIO POCHMANN

Presidente do Ipea

10. PATRIOTA, Antonio A. Discurso na cerimônia de transmissão do cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores. Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 2 de janeiro de 2011.

11. IPEA; ABC; MRE; SAE/PR. Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional: 2005-2009. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;

Agência Brasileira de Cooperação; Ministério das Relações Exteriores; Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2010. Disponível

em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_cooperacao_brasileira.pdf>.

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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

No dia 1o de janeiro de 2011, por ocasião de seu

discurso inaugural como primeira mulher presidente

do Brasil, Dilma Rousseff reiterou suas promessas de

consolidar e de levar adiante as políticas da presidência

anterior, que haviam dado crescente otimismo e

autoconfiança ao Brasil. Durante muito tempo, os

observadores do país têm dito que “o Brasil é o país do

futuro e sempre continuará a sê-lo”. Durante a última

década, com o crescimento econômico socialmente

inclusivo e a crescente influência do país no cenário

internacional, este futuro parece ter chegado. Há um

sentimento cada vez maior na população de que é

chegado agora o momento do Brasil, e que ele próprio

pode modelar seu destino.

Existem boas razões para que o país se sinta

confiante. O Brasil superou com sucesso a recente

crise econômica global, e dezenas de milhões de

brasileiros chegaram à classe média nos últimos anos.

Rico em bens primários e dotado de uma sólida base

industrial, o Brasil combina uma variedade de atributos

que prometem ser de grande auxílio para o país em um

contexto internacional cada vez mais complexo. Isto

inclui um sistema democrático liberal e uma sociedade

vibrante e multicultural, com fortes afinidades com a

Europa, a África e a Ásia – uma identidade nacional

multifacetada que proporciona vantagens globais

singulares ao Brasil, tanto no Norte quanto no Sul.

Restam, contudo, desafios significativos a

enfrentar, inclusive em relação à educação, saúde,

criminalidade e desigualdade. Questões se acumulam

com relação ao futuro caminho a ser seguido pelo

Brasil em um mundo incerto e submetido a constantes

e rápidas mudanças. A crise financeira global leva

a questionar o modelo americano de capitalismo

autodirigido, o modelo social europeu de Estado de

bem-estar social paternalista e até mesmo o modelo

do leste-asiático de desenvolvimento baseado nas

exportações. Não há respostas claras ou “receitas”

quanto ao futuro. Na verdade, muitos países estão

percebendo a necessidade de repensar seu futuro ou

contestar o saber e as suposições convencionais que

têm orientado suas escolhas. O Brasil, com seu amplo

leque de experiências e experimentos, está posicionado

de forma única para tomar parte neste processo.

O país conseguiu atravessar pacificamente

e com sucesso a transição para um regime

democrático, uma economia estável e uma

sociedade crescentemente de classe média. Estas

transições assentaram-se em políticas sociais,

econômicas e internacionais graduais e híbridas, de

difícil categorização. Como as diversas contribuições

desta coletânea explicitam, a recusa em se deixar

engessar por um paradigma específico redundou em

realizações significativas por parte do Brasil, tanto

internamente quanto no exterior. Todavia, para que

o Brasil possa prosseguir nestas realizações, terá

de complementar suas políticas específicas – que

são criativas, mas às vezes assistemáticas – com

abordagens mais arrojadas e mais estratégicas.

Seu sucesso dependerá, em última análise,

da capacidade de liderança brasileira em coordenar

suas políticas no sentido de um conjunto claro de

objetivos. Este conjunto de trabalhos explora as

perspectivas de sucesso do Brasil nesse sentido,

no contexto de três desafios distintos, mas inter-

relacionados: prosseguir com um crescimento

econômico equilibrado; administrar as tensões

internas e assegurar a coesão social; e buscar uma

maior autonomia em um mundo interdependente.

Cada um destes desafios é analisado em

uma seção separada da coletânea por autores

selecionados, do Brasil e diversos países. Estes

artigos fornecem percepções valiosas sobre as

especificidades nacionais do Brasil, e salientam

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka

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também paralelos e lições entre o Brasil e outras

potências importantes.

Trajetórias para um crescimento sustentávelA crise financeira atual parece haver desfechado um

forte golpe contra o modelo de crescimento neoliberal

americano, que incentiva níveis ostensivos de consumo

e alto endividamento. As estratégias de crescimento

do Leste Asiático, baseadas no crescimento liderado

pelas exportações, elevada poupança e baixos níveis de

consumo interno, estão também sob pressão. Embora

a economia global esteja em processo de recuperação,

ainda não há definição clara sobre os caminhos que

podem levar ao crescimento econômico sustentável.

No Brasil, o ex-presidente da República Luiz

Inácio Lula da Silva continuou as políticas de seu

predecessor, Fernando Henrique Cardoso, orientadas

para o mercado, inclusive as políticas de disciplina

fiscal, de metas de inflação e de taxa de câmbio

flutuante, para manter a estabilidade macroeconômica.

Estas políticas, entretanto, foram matizadas com

uma abordagem “desenvolvimentista”, orientada

para políticas sociais e com intervenções estratégicas

na economia por meio de uma série de políticas de

crédito e de expansão da infraestrutura econômica

e social. Isto permitiu a resiliência da economia

brasileira diante da crise financeira. Entretanto, ainda

permanecem riscos e dilemas significativos.

Na esfera macroeconômica, persiste o

dilema de manter o gasto público em consistência

com a estabilidade fiscal. Como Nelson Barbosa

argumenta, isto poderá ser possível trazendo-se mais

atividade econômica ao setor formal, com resultantes

benefícios para a receita pública. Existem também

preocupações relativamente à forma de incentivar

o crescimento e os investimentos de uma maneira

que não acelere a inflação. A taxa de juros, que se

encontra entre as maiores do mundo, é outra questão

bastante controvertida no Brasil. Muitos defendem

uma taxa de juros alta para manter baixos os níveis

de inflação, enquanto outros argumentam em favor

de uma redução desta taxa para facilitar a expansão

do crédito para os investimentos produtivos e em

infraestrutura.

Muitas pessoas têm uma visão otimista com

relação à possibilidade de superação desses dilemas

pelo Brasil, por meio da exploração de seus recursos

naturais. As recentes descobertas de petróleo e

gás estão presenteando o país com uma valiosa

oportunidade: o Brasil poderá utilizar estes recursos

energéticos para seu desenvolvimento industrial,

como Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

defendem. A rica base de produtos primários

brasileira é sem dúvida uma grande vantagem.

Mas existem riscos associados à dependência

excessiva em relação a estes produtos. Como Yang

Yao salienta, existe uma maldição, a “maldição

dos recursos naturais”, que pende sobre os países

ricos em commodities: a melhoria das condições

de comércio na exportação de bens primários

acaba reduzindo a competitividade destes países na

produção manufatureira.

Na verdade, há um debate em curso no

Brasil sobre o melhor caminho para o crescimento

econômico: enfatizar a produção de bens primários,

ou incentivar a produção de bens manufaturados.

Contudo, uma escolha tão rígida pode não ser

necessária, uma vez que há certamente sinergias a

explorar entre os dois setores se o governo brasileiro

usar uma abordagem estratégica nas suas escolhas,

como a utilização dos ganhos com a exportação de

bens primários para financiar a diversificação e o

desenvolvimento do restante da economia, criando

assim empregos de qualidade no país. Além disso,

como Glauco Arbix sustenta, a inovação poderá

ser bastante importante para ajudar a acelerar

o crescimento econômico em cada um destes

setores. Mas, para que a economia brasileira consiga

aprimorar seu crescimento e deslanchar a inovação,

será necessário implementar uma série de mudanças

estruturais complexas e difíceis, inclusive reformas

fiscais e financeiras, para facilitar o financiamento e o

crescimento de pequenas e médias empresas, além

de grandes investimentos em infraestrutura.

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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Tensões internas e coesão socialAs mudanças associadas à globalização trouxeram

certa tensão à estrutura social dos países, com um

aumento do individualismo nas áreas metropolitanas,

e ao mesmo tempo a exposição de profundas divisões

entre regiões, entre áreas rurais e urbanas, entre

grupos socioeconômicos e étnicos. Como explicam

William Galston e Niraja Gopal em suas contribuições,

isto ocorre tanto nas nações desenvolvidas e

industrializadas, como os Estados Unidos, quanto

nos países em desenvolvimento, onde enormes

disparidades de renda continuam a se aprofundar.

Neste contexto, a recente experiência

brasileira pode ser considerada uma história de

sucesso. Mediante uma combinação de políticas

macroeconômicas ortodoxas e uma inédita expansão

de gastos sociais, o Brasil obteve extraordinárias

reduções na desigualdade de renda e nas taxas de

pobreza extrema. Conforme assinala Jorge Abrahão

neste documento, as híbridas políticas econômicas

e sociais do governo Lula transformaram os gastos

sociais em um elemento primordial para a estratégia

de crescimento do país, criando novos mercados de

consumo, em vez de apenas ajudar os mais carentes.

Apesar dos atritos que devem marcar o ciclo político,

descrito neste documento por André Singer, o

consenso interpartidário em torno de programas

como o Bolsa Família sugere uma continuidade a

longo prazo desta política de transferência de renda.

Entretanto, ainda perduram insistentes

tensões e desigualdades sociais e regionais. Embora

o crescimento comece a se estender a outras regiões,

o estado de São Paulo continua a ser responsável por

um terço do produto interno bruto (PIB) do país, ao

passo que as diferenças de renda são bem maiores

que em outras economias emergentes, como Índia e

China. O país enfrenta outros dilemas no campo da

segurança pública e da desigualdade racial.

Se o Brasil quiser consolidar suas conquistas

sociais, precisará complementar seu uso das

transferências de renda com políticas destinadas

a reforçar os serviços públicos universais, o que,

entretanto, traz desafios consideráveis. Não há acordo

quanto ao tamanho e à extensão das intervenções

do governo, ou quanto aos tributos que proveriam os

recursos necessários para novos gastos públicos. Além

disso, mesmo que se possa obter os recursos, não está

claro que as políticas de redistribuição serão suficientes

para corrigir as profundas desigualdades do país.

Como preconiza Daniel Vargas em sua contribuição

para este documento, se o Brasil pretende formar

uma sociedade realmente coesa, deverá introduzir

mudanças mais fundamentais em seu modelo nacional.

Em busca de autonomia em uma era de interdependênciaA capacidade de criar normas internacionais constitui

um pré-requisito para o êxito do desenvolvimento

nacional. As demandas por reformas no campo

da governança global trazidas pelas economias

emergentes no decurso da última década deveriam

ser consideradas sob este prisma. No Brasil, muitos

clamam por maior autonomia nas negociações

internacionais. Sob a bandeira da inserção internacional

soberana está a crença cada vez mais forte de que,

como grande nação, o Brasil deveria ser capaz de

participar das questões internacionais com base em

suas próprias convicções estratégicas nacionais.

O Brasil liderou os clamores por reformas

nas estruturas de voto das instituições de Bretton

Woods, e teve uma postura firme durante as

negociações no âmbito da Organização Mundial

do Comércio (OMC). Defendeu uma ligação mais

estreita com os países do Sul do planeta, em especial

com outras nações da América Latina e da África.

Na verdade, como assinala Rubens Barbosa em sua

contribuição, a priorização das relações Sul-Sul deu

ao Brasil um novo “poder brando” na diplomacia,

que o país soube usar com eficiência para promover

seus interesses em vários fóruns internacionais.

Mas, ainda assim, conforme observa Riordan

Roett, o Brasil não adotou uma postura radicalmente

revisionista. Buscou as reformas com conciliação,

procurando, sempre que possível, chegar a um

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka

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consenso com todas as grandes potências, em vez

de romper unilateralmente o status quo. Nos últimos

anos, o Brasil manteve relações de amizade com

os Estados Unidos, pagou a sua dívida com o Fundo

Monetário Internacional e teve uma atitude cooperativa

em suas participações nas Nações Unidas. Até hoje,

esta abordagem conciliadora tem trazido benefícios

para o país. No entanto, para que possa aumentar sua

capacidade de institucionalizar mudanças, o país precisa

adotar uma abordagem mais audaciosa e estratégica.

O país se defrontará, daqui por diante, com

escolhas difíceis, como a forma de equilibrar suas

aspirações regionais e globais. Até o momento, os

esforços do Brasil com vistas à integração regional

foram relativamente bem-sucedidos, porém existem

situações de tensão, visto que a presença mais

marcante do Brasil no campo internacional suscita

certa preocupação entre seus vizinhos. Como

propõe Marcel Biato no seu trabalho, a tarefa que

o Brasil tem diante de si consiste em continuar a

aprofundar a integração regional para além da ênfase

no comércio. Isto ajudará a criar a frente regional

unida que o Brasil precisa para que possa exercer

maior impacto em relação ao resto do mundo.

Além da integração regional, Giorgio Romano

Schutte, em seu trabalho, destaca o aprofundamento

das relações com os países africanos (e, em menor

medida, com os países árabes), em suas três

dimensões: política e diplomática, cooperação

técnica para o desenvolvimento e expansão dos

negócios (comércio e investimento). Por outro lado,

salienta que a relação com a China pode se tornar

cada vez mais difícil e complexa. Simultaneamente,

um parceiro do Brasil no combate às assimetrias

internacionais persistente e potencial para ser “fonte

de novas assimetrias que não necessariamente

coincidem com os interesses do povo brasileiro”. Na

mesma direção, mas operando em uma esfera mais

restrita, o trabalho de André de Mello e Souza, discute

os avanços do Programa Nacional de HIV/AIDS,

eleito o melhor entre os países em desenvolvimento,

segundo as Nações Unidas, e utilizado como modelo

para 31 países, assim como para a política global de

HIV/AIDS adotada pela Organização Mundial de Saúde

(OMS). No entanto, o tratamento da AIDS no Brasil

tem enfretado dificuldades crescentes diante dos

elevados custos dos medicamentos antirretrovirais

patenteados e pela falta de capacitação tecnológica

da indústria farmacêutica doméstica na produção

desses medicamentos e, em especial, dos seus

princípios ativos.

A fim de implementar tais metas, o Brasil

também precisará trabalhar para aumentar a sua

frente interna, como indica Charles Kupchan. Isto

irá requerer maiores investimentos em capital

humano e uma infraestrutura institucional que

oriente e sustente esta busca por maior autonomia e

“soberania na sua inserção internacional”.

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolarGraças ao legado internacional e doméstico que

herdou, o Brasil tem diante de si um leque de

oportunidades inéditas. No âmbito internacional,

à medida que o equilíbrio do poder se desloca,

abre-se mais espaço de manobras para o Brasil

e outras nações emergentes. Livre dos conflitos

e inimizades geopolíticas que afligem outros países

emergentes, o Brasil pode tirar máximo proveito

deste panorama internacional em mudança.

Com o declínio da hegemonia do modelo americano,

existe uma pluralidade de escolhas quanto ao

caminho que o Brasil e outros países podem trilhar.

No âmbito interno, o Brasil atingiu uma estabilização

macroeconômica e uma ampla redução da pobreza.

Suas descobertas de petróleo e gás, assim como

seus vastos recursos agrícolas e minerais, oferecem

um ambiente de abundância e “fartura”, ao contrário

das preocupações com relação à escassez que

afligem muitas outras economias emergentes.

Se o Brasil pretende ampliar e consolidar

seus êxitos, e tirar o máximo proveito dessas

vastas oportunidades, precisará complementar a

sua inovadora combinação de políticas com uma

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Reivindicando o futuro do Brasil | Alfredo Cabral, Elena Jurado e Priya Shanka

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

abordagem mais estratégica e coordenada. Como

indicam os artigos do presente documento, existem

muitas vezes ligações entre diferentes áreas

das políticas que vão da exploração do petróleo

à educação. Manter em mente estas conexões

e assegurar que diferentes medidas funcionem

quando em conjunto, são atitudes fundamentais para

os próximos anos. Em um mundo interdependente

e em rápida transformação, as decisões tomadas

pelo Brasil também têm importantes consequências

para outras partes do mundo. Assim, existe um

interesse mútuo para que os países aprendam uns

com os outros, processo que a iniciativa Foresight e

a presente publicação pretendem facilitar.

ALFREDO CABRAL é pesquisador de políticas

e gestor de planejamento estratégico da Policy

Network.

ELENA JURADO é diretora de pesquisa da Policy

Network.

PRIYA SHANKAR é pesquisadora e administradora

de projetos sênior da Policy Network.

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Parte 1:Trajetórias ao crescimento sustentável

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O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Nos últimos oito anos, o Brasil iniciou um novo

ciclo de desenvolvimento baseado na expansão de

seu mercado interno e na redução da pobreza e da

desigualdade de renda. O ponto de partida deste

modelo foi uma expansão exógena impulsionada

por políticas na rede de segurança social do país,

por meio de transferências de renda aos pobres e

de aumentos reais do salário mínimo. Este estímulo

inicial por parte do governo federal originou um

círculo virtuoso de crescimento da renda e do

emprego, no qual o aumento da renda do trabalhador

e do consumo levou a mais investimentos, o que,

por sua vez, elevou a produtividade do trabalho

e permitiu nova elevação dos salários reais sem

pressões inflacionárias excessivas. O círculo virtuoso

entre o salário real e a produtividade do trabalho foi

também ajudado por uma série de programas de

governo orientados para a inclusão social, mediante

a expansão do crédito e dos investimentos públicos

e privados em habitação e infraestrutura.

Novo modelo brasileiroO novo modelo brasileiro beneficiou-se também

da crescente demanda mundial de bens primários

(commodities) durante os últimos oito anos. De

um lado, o aumento das exportações brasileiras

de produtos primários permitiu um crescimento

substancial nas importações brasileiras de capital

e de bens intermediários, com redução moderada

do saldo da conta corrente do país em termos de

produto interno bruto (PIB). De outro lado, o aumento

do influxo de capital estrangeiro permitiu que o

governo brasileiro ampliasse substancialmente suas

reservas, reduzindo, dessa forma, a vulnerabilidade

do país aos choques financeiros internacionais. Em

compensação, o boom de bens primários fortaleceu

a moeda brasileira, o que, a princípio, ajudou o

Branco Central a combater a inflação e a reduzir os

juros reais, mas, posteriormente, iniciou a erosão da

competitividade da indústria brasileira.

Um fator-chave para o sucesso brasileiro

nos últimos oito anos foi a abordagem pragmática

e responsiva à política macroeconômica. Quanto à

política fiscal, todo o aumento da receita federal em

termos de PIB foi canalizado para a expansão das

transferências de renda e dos investimentos públicos.

Isto permitiu que a tributação líquida do setor privado

se mantivesse estável. No que tange à política

monetária, o governo adotou metas inflacionárias

realistas para lidar com os choques de preço

provenientes do exterior e das mudanças estruturais

na economia brasileira. Esta política não apenas

trouxe uma aceleração do crescimento e a redução

da inflação, mas permitiu também encolher a dívida

pública líquida em termos de PIB e de juros reais.

Em resumo, a política macroeconômica brasileira foi

marcada pela responsabilidade financeira e social.

O sucesso obtido pelo modelo brasileiro

no passado recente e as mudanças nas condições

internacionais decorrentes da crise de 2008-2009

criaram novos desafios para a política econômica

brasileira. Na esfera interna, há uma crescente

demanda por expansão e aprimoramento dos

serviços públicos universais, especialmente nas

áreas da educação, saúde e segurança pública.

Faz-se também necessário consolidar a rede de

segurança social que se expandiu durante os últimos

oito anos, e enfrentar as inevitáveis pressões do

envelhecimento da população sobre a seguridade

social. Como todas estas demandas devem ser

atendidas sem comprometer a estabilidade social

e monetária, o aumento das despesas sociais

dependerá de um crescimento suplementar da

receita do governo em termos de PIB e também de

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa

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uma redução do índice de crescimento dos gastos

públicos não essenciais.

No campo internacional, a valorização do

real e as expectativas de uma nova valorização

provocada pelas exportações de petróleo em

futuro próximo estão pressionando cada vez mais

o governo brasileiro a melhorar a competitividade

internacional do país via programas estruturais ou

“reformas”. A lista dos “vilões” contumazes inclui

a reforma tributária, o desenvolvimento financeiro e

uma melhor infraestrutura, além de um papel mais

ativo do Estado no planejamento e na coordenação

de grandes projetos industriais, estimulando, ao

mesmo tempo, a pesquisa, o desenvolvimento e

a inovação.

Consistência macroeconômicaO novo modelo brasileiro combina crescimento

econômico com redução da desigualdade

econômica. A meta para o período 2011-2014 é

atingir uma taxa de crescimento anual do PIB situada

entre 5% e 6%, de maneira que a produtividade do

trabalho e os salários reais continuem a crescer,

a classe média siga expandindo-se, a inflação

permaneça nas metas fixadas e as finanças públicas

continuem a se aprimorar. Este programa contém,

entretanto, dois grandes desafios. O primeiro é

administrar o crescimento da despesa pública de

forma consistente com a estabilidade fiscal e, ao

mesmo tempo, consolidar a rede de segurança

social recém-construída e atender às demandas

sociais. O segundo é administrar o crescimento

dos investimentos e do consumo de forma que o

crescimento se sustente sem acelerar a inflação,

evitando-se uma elevação substancial do déficit em

conta corrente do país.

Examine-se, em primeiro lugar, o desafio

fiscal. De uma forma geral, a receita tributária do

governo brasileiro tem crescido um pouco mais

rapidamente que o PIB nos últimos anos, devido

ao crescimento da renda per capita e à redução da

parcela de mercado informal na economia. Como

ainda há ganhos por explorar no mercado, trazendo

mais pessoas e empresas para a economia

formal, pode-se ter razoáveis expectativas de

que a receita do governo crescerá nos próximos

anos em ritmo ligeiramente maior que o PIB. Por

sua vez, este crescimento esperado na receita

significa que há espaço para cortes de impostos,

mesmo que os gastos sociais per capita também

cresçam. O ponto nodal da solução vem do

crescimento esperado de 0,7% da população

brasileira durante a próxima década.1 Desse

modo, se as despesas sociais crescerem 5% em

termos reais a cada ano, e o PIB crescer 5,5%,

não haverá pressão adicional sobre o orçamento

dos programas sociais do governo, mas a despesa

social per capita ainda assim aumentará 52% em

10 anos. O desafio maior para a despesa pública

é, portanto, mais político que econômico, ou seja,

refere-se a administrar a expansão dos programas

sociais de uma maneira que seja consistente

tanto com a estabilidade fiscal quanto com as

expectativas individuais.

Passando para o balanço macroeconômico,

verifica-se que as simulações do governo indicam

que um crescimento médio do PIB anual da ordem de

5,5% exigiria um aumento da taxa de investimento

no Brasil de 19% em 2010 para algo em torno de

22% e 23% em 2014, a fim de se manter a inflação

estável. O resultado exigiria uma taxa média de

crescimento de 10% em investimentos, o que por

sua vez significa que o consumo teria de crescer

mais lentamente que o PIB em futuro próximo, para

que o Brasil evitasse um aumento excessivo em seu

saldo em conta corrente. Mas será que a taxa de

crescimento necessária no consumo é socialmente

aceitável? Mais uma vez, a questão parece ter

conotação mais política que econômica, visto que

mesmo uma expansão relativamente mais lenta do

consumo aumentaria substancialmente o consumo

per capita no ano seguinte.

1. As estimativas do mercado sobre a elasticidade PIB da receita do governo variam de 1,1 a 1,3.

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O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Para ilustrar esse ponto, um simples

exercício macroeconômico mostra que o Brasil

pode atingir uma taxa de investimento de 22,5% até

2014, com um saldo comercial relativamente estável

em bens e serviços em termos do PIB, desde que

o país mantenha uma taxa de crescimento anual

média de 5,5% do PIB, de 10% nos investimentos

e de 4,5% no consumo.2 Por sua vez, o crescimento

relativamente lento do consumo total é compatível

com uma expansão média de 5% do consumo privado

e 3% do consumo do governo.3 Considerando-se

o esperado crescimento da população brasileira,

uma taxa de crescimento anual médio de 5% no

consumo significa um aumento acumulado de 18%

do consumo per capita em apenas quatro anos.

Desenvolvimento financeiroAlém da compatibilidade financeira, a expansão

do índice de investimento no Brasil depende do

desenvolvimento financeiro. Nos últimos oito

anos, a maior parte dos recursos domésticos para

investimentos foi fornecida pelo governo federal,

por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES). Uma vez que

esta fonte financeira tem um alto custo fiscal,

devido à elevada taxa de juros reais do Brasil,

é necessário desenvolver fontes privadas de

financiamento de longo prazo, em moeda corrente

do país, e concomitantemente reduzir as taxas

de juros da economia. Este desafio requer muitas

ações paralelas.

Em primeiro lugar, é preciso manter a

estabilidade fiscal e monetária com metas inflacionárias

realistas, para continuar a reduzir-se a taxa de juros

real. O evidente trade-off, aqui, é que uma rápida

redução nas metas inflacionárias significa uma lenta

redução nas taxas de juros reais, e vice-versa.

Em segundo lugar, é necessário mudar a

regulamentação financeira para adaptar a economia

a um contexto de inflação baixa e taxa de juros

baixa, principalmente com a redução da indexação

da taxa de juros da dívida pública e a eliminação

dos pisos institucionais para as taxas de juros de

mercado. Neste ponto, o maior trade-off está entre

os ganhos de longo prazo com a mudança do prazo e

da estrutura de indexação da dívida pública, e o custo

a curto prazo dessa medida.

Em terceiro lugar, requer-se melhorar a

supervisão e a regulamentação financeira, para

transformar os financiamentos de longo prazo em

investimentos de capital fixo e do setor imobiliário, e

prevenir bolhas especulativas. A escolha, neste caso,

está entre uma expansão mais rápida do crédito e

uma supervisão mais forte.

Commodities e desenvolvimento produtivoO Brasil tem sido uma economia forte em exportação

de produtos primários durante toda a sua história.

Os abundantes recursos naturais do país trazem-lhe

vantagens na produção de bens primários agrícolas

e minerais, ao passo que as recém-descobertas

reservas de petróleo indicam que as exportações

de bens primários podem tornar-se ainda mais

relevantes em futuro próximo. Apesar do seu

histórico em termos de produtos primários, o Brasil

também tem conseguido desenvolver uma estrutura

industrial ampla e diversificada desde meados do

século XX.

As principais razões para esse

desenvolvimento industrial foram um conjunto de

políticas e programas nacionalistas de governo,

que remontam aos anos 1950, e o que é mais

importante, o porte do mercado interno brasileiro.

Em contraste com outras economias exportadoras

de produtos primários, o tamanho e a escala do

mercado interno brasileiro tornaram possível que o

país construísse vantagens competitivas por meio

de programas temporários de desenvolvimento

industrial ou produtivo. A chave do sucesso nesta

área está em criar um conjunto de instrumentos

2. A situação inicial é de uma taxa de investimento de 19% do PIB e um déficit comercial em bens e serviços da ordem de 1% do PIB em 2010.

3. Examinando-se esses números sob uma perspectiva histórica, a taxa média de crescimento do consumo privado e do governo de 2003 a 2010 foi de

3,6% e de 4,3%, respectivamente.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O modelo econômico brasileiro e os desafios futuros | Nelson Barbosa

24

de políticas transparentes, capazes de estimular

o investimento, a pesquisa e o desenvolvimento,

evitando-se a criação ou a proteção permanente de

uma produção ineficiente. De acordo com a análise

de Rodrik (2010) sobre política industrial, é mais

importante abandonar os fatores perdedores quando

a situação se torna mais clara que escolher fatores

ganhadores quando ainda não se sabe quais seriam.4

No caso específico do Brasil, o desafio para

os próximos anos está em usar os extraordinários

recursos provenientes da produção de produtos

primários, principalmente o petróleo, para financiar

e estimular o desenvolvimento e a diversificação

do conjunto da economia. De maneira geral, as

atividades a serem priorizadas incluem exportações,

investimentos e inovação, que têm se beneficiado

dos incentivos gerais financeiros e dos impostos,

nos últimos oito anos. O novo foco da agenda do

governo incluiria a produção de bens e serviços de

mão de obra intensiva, que utiliza também mão de

obra especializada. No curto prazo, uma importante

ferramenta governamental para estimular estas

atividades seria a redução do custo relativo da mão

de obra, mediante um corte nos impostos da folha

de pagamento. O cerne dos futuros incentivos

do governo deveria ser a moldagem do conteúdo

da produção interna, juntamente com parceiros

externos, em torno de metas de desempenho, para

acelerar a recuperação da indústria.

NELSON BARBOSA é secretário-executivo do

Ministério da Fazenda

4. RODRIK, D. The return of industrial policy. 2010. Disponível em: <http://www.project-syndicate.org/commentary/rodrik42/English>.

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Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil encontra-se em uma etapa crucial do seu

desenvolvimento econômico. Atravessou a crise

financeira mundial com mais galhardia do que a maioria

dos países, e apresentou altas taxas de crescimento

econômico durante a última década. Ainda assim,

o país também enfrenta sérios desafios, como a

valorização do real e a competição com produtos

importados mais baratos, o que põe em risco seu

setor industrial. Em uma economia interdependente

e globalizada, a inovação tem um importante papel

a desempenhar, pois estimula o crescimento e

ajuda as economias nacionais a encontrarem seu

próprio nicho. O Brasil está experimentando um

novo impulso em termos de inovação, proveniente

do reconhecimento de que é preciso diversificar a

economia, ampliar as exportações e aumentar a

produtividade e a competitividade. Trata-se também

de uma área na qual, embora o Brasil tenha obtido

importantes progressos nos últimos anos, ainda há

um longo caminho a percorrer.

O ecossistema da inovaçãoA discussão em torno do sentido e do potencial das

práticas inovadoras ainda é afetada por uma confusão

conceitual, e torna-se importante estabelecer a

diferença entre a inovação e a invenção. Embora a

invenção e a inovação façam parte do mesmo espaço

contínuo, a inovação está ligada à comercialização

inicial de uma ideia ou projeto. Desta forma, o

campo da inovação é constituído pelas empresas

capazes de estabelecer uma sintonia entre suas

atividades de produção e de marketing, ao passo que

a invenção possui uma orientação diferente, e se dá

nos laboratórios, nas universidades e nos centros de

pesquisa. A transformação de invenção em inovação

nem sempre se faz de forma rápida, e requer

diferentes tipos de conhecimentos, capacidades,

aptidões e recursos.

Muitas vezes, é o início da competição

entre empresas, geralmente baseada em pequenas

mudanças, acréscimos ou cópias, que permite a

evolução de uma invenção à condição de produto

pronto para o mercado. Na verdade, a inovação é o

resultado de longos processos de aprimoramento e

alterações de projeto, que podem ou não envolver

tecnologia, pesquisa básica ou pesquisa aplicada.

Todos os processos, descobertas, novos produtos e

serviços, de alta ou baixa tecnologia, que acrescentem

valor econômico, são inovações. Mecanismos sutis,

aparentemente modestos e sem importância, são

muitas vezes os verdadeiros motores da economia,

superando os grandes avanços alcançados na área

da alta tecnologia.

Não é fácil, todavia, visualizarmos o

processo de inovação em toda a sua amplitude.

A inovação muitas vezes ultrapassa o horizonte

dos negócios, e se desenvolve por meio de uma

ampla rede de pessoas. Na verdade, seu aspecto

comercial é apenas uma de suas muitas facetas. A

teia que se forma envolve empresas, empresários,

pesquisadores, distribuidoras, instituições

acadêmicas e consumidores, e cria um ecossistema

de inovação altamente diversificado e complexo.

Não existe uma receita pronta para se orientar neste

ambiente que, apesar dos recentes avanços, ainda

se assemelha a um labirinto.

O legado do Brasil e os desenvolvimentos recentesO Brasil é um país que se industrializou tardiamente,

e o processo de desenvolvimento científico e

tecnológico só se iniciou na década de 1970, baseado

primordialmente em universidades e instituições

de pesquisa. É importante, também, lembrar que o

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix

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país atravessou um longo período de instabilidade

macroeconômica durante as décadas seguintes,

o que influenciou bastante a agenda do governo, o

mundo acadêmico e as empresas. Em decorrência

disto, a economia da inovação não recebeu a

prioridade que deveria ter tido durante a década de

1980 e no início da década de 1990.

A situação começou a mudar quando a

economia brasileira se estabilizou, e respondeu à

dinâmica da globalização. Em fins da década de 1990

foram criados fundos setoriais visando disponibilizar

recursos para pesquisas e inovações em diversos

setores da indústria. Em 2004, o governo federal

anunciou a Política Industrial, Tecnológica e de

Comércio Exterior (PITCE), estruturada em torno

da inovação. A Lei do Bem (Lei no 11.196, de

21 de novembro de 2005) e a Lei de Inovação

(Lei no 10.973, de 2 de abril de 2004), que foram

adotadas na esteira desta política, desempenharam

importante função na formação de um ambiente

propício à inovação.

Atualmente, há uma variedade de recursos

à disposição das empresas brasileiras que buscam a

inovação de seus produtos e processos. Os trâmites

burocráticos foram simplificados, e foram criados

incentivos fiscais para pesquisa e desenvolvimento

(P&D). Existe um novo sistema de subsídios a

projetos de desenvolvimento tecnológico, e também

subsídios para a contratação de pesquisadores nas

empresas. A estrutura legal incentiva uma interação

maior entre as universidades e as empresas, e foram

criados programas de financiamento de capital de

risco voltado à inovação.

Realizações e desafiosAs políticas brasileiras de P&D viabilizaram os

sistemas que suportam a indústria aeroespacial

na Embraer, o refino e a extração da Petrobras,

o treinamento agrícola da Empresa Brasileira

de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e, mais

recentemente, o programa de satélites China-

Brasil. Na verdade, os gastos com pesquisa

e desenvolvimento se avolumaram, e hoje se

encontram na faixa de 1% do produto interno bruto

(PIB). O Brasil tem também um grande mercado

consumidor, e um setor industrial relativamente

amplo. Este setor reune 90 mil firmas industriais,

que empregam mais de 6 milhões de pessoas e

investem cerca de 3 bilhões por ano em P&D.

Uma parcela significativa da comunidade

empresarial está hoje consciente da importância

e da necessidade da inovação. De fato, estudos

mostram o surgimento de um novo grupo de

empresas que crescem a um ritmo mais rápido

do que as demais empresas brasileiras. Este novo

grupo de empresas é mais produtivo, investe

mais em P&D, em treinamento e em formação

de capacidade, paga melhores salários a seus

empregados, e obtém preços especiais no mercado

internacional.1 Muitas destas empresas começaram

a globalizar suas atividades, investindo em outros

países e criando sistemas de produção e serviços no

exterior. Formam um seleto grupo de multinacionais

brasileiras competitivas.

Entretanto, persistem desafios significativos,

e os indicadores de inovação tecnológica no Brasil

ainda estão muito abaixo dos indicadores de países

desenvolvidos. Além disso, a China e a Índia estão

caminhando a passos mais rápidos e mais largos no

campo da inovação. Na realidade, a China saltou para

o terceiro lugar na classificação de investimentos em

P&D, com uma taxa de crescimento de 18% durante

os últimos anos.2

O grande desafio está em incentivar uma

inovação mais significativa no setor privado. No

Brasil, apenas 30% das empresas são inovadoras,

sendo de 50% o índice nos países da União

Europeia. As empresas brasileiras investem cerca

1. BAHIA, L.; ARBACHE, J. S. Diferenciação salarial segundo critério de desempenho das firmas indústrias brasileiras. In: DE NEGRI, J. A.; SALERNO, M. S.

Inovações padrões tecnológicos e desempenho das firmas industriais brasileiras. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2005.

2. RODRIGUEZ, A.; DAHLMANN, C.; SALMI, J. Knowledge and innovation for competitiveness in Brazil. Washington D.C.: Banco Mundial/ MOBIT, 2008.

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Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

de 0,6% do faturamento em P&D, o que é pouco em

comparação com os 2,7% da Alemanha e os 2,5% da

França.3

Tornar os financiamentos públicos mais

acessíveis ao setor privado também representa

um desafio. No Brasil, embora o governo seja

responsável por mais da metade dos gastos gerais

com P&D, as empresas brasileiras empregam 90%

de seus próprios recursos, em vez de requererem

e utilizarem os financiamentos disponibilizados pelo

governo. Nos países desenvolvidos, os governos

financiam amplamente a área de P&D com juros

não recuperáveis ou nulos, ou seja, sob condições

muito mais favoráveis do que no Brasil. De fato, o

investimento de recursos públicos em P&D nas

empresas privadas pode ter um impacto positivo

significativo. Estudos mostram que a utilização de

recursos públicos em P&D nas empresas brasileiras

representa muitas vezes um fator de aumento

da produtividade e da qualidade dos salários e do

trabalho. Estudos indicam ainda que as empresas

brasileiras que receberam recursos públicos também

investiram uma parcela maior de seus próprios

recursos em P&D. Isto traz resultados positivos para

o desenvolvimento econômico do país de uma forma

geral, mas o escopo dos atuais programas ainda é

limitado, carecendo de ampliação.

O fato de que as pesquisas permanecem mais

acadêmicas ou realizadas em laboratórios, em vez de

serem aplicadas e voltadas para a viabilidade comercial,

constitui outro desafio. O número de pesquisadores

que trabalham em inovação tecnológica ainda é

pequeno, e eles ainda buscam estabelecer relações

mais estreitas entre as universidades e as empresas.

O caminho a seguir: uma nova sínteseEmbora o Brasil tenha alcançado grandes progressos

na criação de um ambiente propício à inovação, muita

coisa ainda precisa ser feita. É necessário criar novos

instrumentos, e os mecanismos existentes devem

ser aperfeiçoados. É também importante lançar

as raízes para o desenvolvimento de uma cultura

corporativa orientada para a inovação, principalmente

incentivando-se a interação e as sinergias entre

as universidades e as empresas. Um ambiente

propício à inovação caracteriza-se pela confluência

de conhecimentos, pela troca de capacidades e pela

diversidade de fontes, públicas e privadas. Para o

potencial de uma empresa deslanchar, o processo

de planejamento, embora importante, contribui

apenas parcialmente. As reflexões sobre a agenda

das inovações, portanto, apontam para a busca de

novas sinergias entre os setores público e privado

no Brasil, longe do “estatismo” protecionista e do

fundamentalismo de mercado que têm marcado

tantas vezes a história do país.

Para avançar, é imperioso lembrar que,

embora o Estado brasileiro tenha um importante

papel a cumprir no crescimento da inovação, o

governo não poderá pensar, formular, implementar

e avaliar novas políticas de desenvolvimento sem

lançar mão de consultas, cooperação e interação

com as empresas e com a sociedade civil. Para

que se enfrentem os desafios do século XXI, as

instituições geradas pelo Estado desenvolvimentista

precisam ser revistas e reestruturadas, de forma a

abrir-se o caminho para uma sociedade em sintonia

com seu tempo.

A arquitetura institucional do Estado brasileiro

mostra-se frequentemente inflexível e inadequada,

além de resistente às mudanças. É preciso repensar

o desenvolvimento, e buscar uma nova configuração

de políticas e instrumentos capazes de direcionarem

o Brasil para a globalização, e desenvolver-se um

sistema econômico no qual o conhecimento seja a

espinha dorsal. Será importante fazer a integração de

instrumentos que promovam a inovação tecnológica

em várias instituições. E isto só será possível se

o Estado contar com uma política de inovação

estratégica. E a presença, ou não, de uma dose

3. MOBILIZAÇÃO BRASILEIRA PELA INOVAÇÃO (MOBIT). Pesquisa do Observatório da Inovação e Competitividade nos Estados Unidos, Canadá, França,

Reino Unido, Finlândia, Irlanda e Japão. MOBIT, 2007.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Percorrendo o labirinto: inovação e desenvolvimento | Glauco Arbix

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de audácia nas estratégias das empresas também

dependerá do alcance e do entrincheiramento desta

futura visão. Os setores público e privado precisam

selar um novo compromisso com o país. O Brasil

necessita de uma nova síntese, mais agregadora e

menos polarizadora.

GLAUCO ARBIX é presidente da Financiadora

de Estudos e Projetos – FINEP, do Ministério da

Ciência e Tecnologia (MCT).

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O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O atual cenário energético mundial é marcado por

uma busca contínua de segurança energética e de

medidas para conter o aquecimento global. Com

um potencial energético vasto e diversificado,

o Brasil pode contribuir de maneira construtiva

para ambos estes processos. Além disso, o setor

energético tem um papel-chave no desenvolvimento

econômico nacional. A nossa dependência externa

de energia é inferior a 5%. O país conquistou a

autossuficiência em petróleo e dispõe de um setor

grande de energias renováveis, de forma que mais

de 47% da matriz energética brasileira constitui-se

de recursos renováveis.1 De fato, a realização do

potencial energético do Brasil é fundamental para o

crescimento econômico, a seguraça energética e a

redução mundial de emissões de carbono.

Petróleo e gás: novas descobertas, novos dilemasO Brasil, que nunca desempenhara papel relevante

entre os atores do mercado mundial do petróleo, viu

recentemente este quadro mudar. Importante pela

grandeza de seu consumo – cerca de 2 bilhões de

barris diários –, o Brasil vem assumindo papel de

crescente relevância no setor, em razão do sucesso

da exploração e produção ultramarina (off-shore) em

águas profundas. O país conquistou a autossuficiência

em petróleo e tem mantido nível de reservas

suficientes para sustentar a produção nacional por

30 anos. As perspectivas são de reservas adicionais

de mais de 50 bilhões de barris, equivalentes a 4%

das reservas mundiais provadas. Quanto ao gás, os

dados oficiais sobre reservas, produção e consumo

no Brasil não conferem ainda ao país destaque no

mercado internacional. Contudo, a exemplo do

petróleo, as descobertas de gás no pré-sal brasileiro

poderão modificar o panorama doméstico, ainda que

questões relacionadas ao custo não associado da

exploração dos poços de gás introduzam elementos

de incerteza quanto à produção. Apesar do otimismo

gerado pelas descobertas no pré-sal brasileiro,

ainda restam desafios importantes no que tange à

administração e regulamentação das reservas, assim

como à distribuição dos seus recursos. Qualquer

que seja a estratégia brasileira, é certo que estarão

presentes dois elementos fundamentais: integração

regional e apropriação soberana das riquezas geradas

por reservas de grandes proporções.

Biomassa: a vantagem comparativaGrande parte do território brasileiro se insere na

região do planeta mais propensa à produção da

biomassa. A dimensão continental do país e sua

diversidade geográfica, evidenciada pela variedade

climática e exuberante biodiversidade, além da

presença de um quarto das reservas superficiais e

subterrâneas de água doce do mundo, explicam por

que o país tem uma importante produção agrícola.

Considerando-se os principais produtos agrícolas,2

calcula-se que a oferta de resíduos no Brasil em 2005

foi de 560 milhões de toneladas, em base seca,3 o

que, em termos energéticos, equivale a 4,2 milhões

de barris por dia, o dobro da produção média atual

brasileira de petróleo.

Parte desse potencial já é aproveitado na

produção de eletricidade. São exemplos o bagaço

da cana e a lixívia. Um aproveitamento mais intenso

deste potencial requer investimentos em tecnologia

e em equipamentos para recuperar a biomassa

hoje subutilizada ou abandonada no campo.

As perspectivas são promissoras, especialmente

1. EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Balanço Energético Nacional 2010. Ano Base 2009. Rio de Janeiro: EPE, 2010.

2. Esses produtos compreendem cerca de 90% da área plantada e 85% da produção física.

3. EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). Plano Nacional de Energia 2030. Rio de Janeiro: EPE, 2007.

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O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

30 Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

para a geração de energia elétrica. Considerando-

se apenas o bagaço hoje disponibilizado, estima-

se o potencial da cogeração em 10 mil megawatts

(MW). Com o avanço da mecanização da lavoura e

o aproveitamento das pontas e palhas, este número

pode pelo menos dobrar.

Uma preocupação recorrente são os

possíveis impactos sobre a produção de alimentos

e os ecossistemas sensíveis ou de grande interesse

socioambiental. Estas ameaças inexistem no caso

brasileiro. Os números falam por si. A cana-de-

açúcar é um exemplo emblemático. Atualmente,

a área dedicada à produção de cana não chega a

6 milhões de hectares, menos de 0,7% de todo o

território nacional e menos de 7% da área disponível

para atividades agrícolas, já computados os

ecossistemas de grande interesse, como a Floresta

Amazônica. Há, pois, espaço para expansão da área

plantada sem ameaças à produção de alimentos

ou às regiões de alto interesse socioambiental.

Na bioenergia, a cana se destaca também pelos

avanços tecnológicos que fizeram do etanol e da

bioeletricidade produtos competitivos. O aumento

da produtividade, além de reduzir custos, contribui

decisivamente para a preservação de ecossistemas

e de áreas destinadas a outras culturas e usos. Nos

últimos 25 anos, “poupou-se” uma área equivalente

a 2 milhões de hectares, algo como metade da Suíça.

O avanço tecnológico não se deu apenas

do lado da oferta de energia. Os veículos flex, cujos

motores funcionam com qualquer proporção de

etanol e gasolina, são uma realidade irreversível.

A aceitação pelo consumidor foi tal que, apenas

seis anos após o lançamento em 2003, a frota de

veículos flex já corresponde a 35% da frota nacional

de veículos leves, cerca de 9 milhões de unidades.4

Considera-se relevante o desenvolvimento

de um mercado internacional de biocombustíveis.

Nele, países latino-americanos e africanos, por sua

situação geográfica favorável, poderiam desempenhar

papel relevante. O domínio da tecnologia e da cadeia

produtiva do etanol, produzido com os menores

custos de produção mundiais, confere caráter

estratégico para a bioenergia no Brasil e reserva ao

país posição de liderança nesta área.

Hidroeletrecidade: potencial multifacetadoA hidroeletricidade, principal fonte de geração de

eletricidade do país, é outro elemento diferencial da

matriz energética brasileira. Em 2009, respondeu

por 85% do total produzido.5 O Brasil detém 10%

do potencial hidráulico mundial tecnicamente

aproveitável. É o terceiro maior potencial do

planeta, inferior apenas aos de China e Rússia.

O aproveitamento deste potencial é estratégico

para o país. Entre todas as formas de geração

de eletricidade, a hidráulica é a única que reúne

simultaneamente quatro atributos absolutamente

relevantes: é renovável; não emite gases do efeito

estufa (GEE); é extremamente competitiva; e, no

caso do Brasil, a construção das usinas pode ser feita

com praticamente 100% de fornecimento e serviços

nacionais, o que significa geração de emprego e

renda no país.

Nos últimos 40 anos, a oferta primária

de energia hidráulica no mundo evoluiu

concentradamente em duas regiões: Ásia, com

destaque para a China; e América Latina, com

destaque para o Brasil, país no qual a potência

instalada cresceu 65 mil MW no período.6

No Brasil, esta evolução foi intensa no início dos

anos 1980, quando o mundo sofria as consequências

dos choques do petróleo e se instalavam no país

indústrias eletrointensivas. No final dos anos 1990,

refletindo as incertezas provocadas pelas alterações

institucionais então empreendidas, a expansão

4. LOSEKANN, L.; VILELA, T. Estimação da frota brasileira de automóveis flex e a nova dinâmica do consumo de etanol no Brasil a partir de 2003.

Disponível em: <http://infopetro.wordpress.com/2010/07/26/estimacao-da-frota-brasileira-de-automoveis-flex-e-a-nova-dinamica-do-consumo-de-etanol-no-

brasil-a-partir-de-2003>. Acesso em: outubro de 2010.

5. Considera a importação oriunda da parte paraguaia da usina de Itaipu.

6. Exclui a parte paraguaia da usina hidroelétrica de Itaipu (7.000 MW).

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O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

hidroelétrica foi relativamente pequena, o que

contribuiu para o racionamento de 2001.

De uma forma geral, países economicamente

desenvolvidos apresentam índices bastante elevados

de aproveitamento de seu potencial hidráulico.

São notáveis as estatísticas de França, Alemanha,

Japão, Noruega, Estados Unidos e Suécia, poucos

deles conhecidos por disporem de grande potencial

hidroelétrico. Em contraste, os índices em países da

África, Ásia e América do Sul (com exceção do Brasil)

são ainda muito baixos. Pressões contra usinas

hidroelétricas afetam, portanto, diretamente países

em desenvolvimento, que demandam energia em

volumes significativos e crescentes, em especial,

China e Brasil, pelo importante potencial hidroelétrico

de que ainda dispõem.

Estão em construção no Brasil dois grandes

projetos no rio Madeira – Santo Antônio e Jirau,

que somam 6.500 MW. Em 2010, foi decidida a

construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu,

com cerca de 11.200 MW. No mesmo ano, aprovou-

se a construção de uma usina no rio Teles Pires, com

capacidade de 1.820 MW. O Teles Pires é um dos

formadores do Tapajós – por sua vez um importante

afluente do Amazonas –, rio cujo potencial energético

promete ser superior a 10.000 MW.

Vários desafios se colocam para a expansão

da hidroeletricidade no Brasil. Quando se tem em

conta que dois terços do território nacional estão

cobertos por dois biomas de alto interesse do ponto

de vista ambiental, a Amazônia e o Cerrado, e que 70%

do potencial hidroelétrico brasileiro a ser aproveitado

se localizam nestes biomas, pode-se avaliar que tais

desafios não são pequenos nem triviais. Obviamente,

o desenvolvimento de qualquer potencial hidráulico

deve cuidar para que os impactos ambientais

provocados sejam mitigados ou compensados.

Muitas áreas no entorno de reservatórios já instalados

no país estão hoje entre as mais bem conservadas,

inclusive com relação à biodiversidade. Programas de

salvamento da flora e da fauna, e também de sítios

arqueológicos, têm sido, muitas vezes, a garantia de

conservação de elementos-chave do bioma atingido.

No aspecto socioeconômico, é emblemático o efeito

de projetos mais recentes, em torno dos quais

núcleos urbanos chegam a apresentar índices de

desenvolvimento humano superiores aos da região

da qual fazem parte. Assim, dentro de uma visão

mais contemporânea, usinas hidroelétricas são mais

que uma fábrica de eletricidade. Constituem, na

verdade, vetores do desenvolvimento regional e de

preservação ambiental.

Energia eólica: aumentar a competitividadeO Brasil dispõe de grande potencial eólico.

Há apenas cinco anos, operavam apenas 10 centrais

e menos de 30 MW. Em 2007, a potência instalada

subiu para 208 MW e, ao final de 2010, ultrapassou

830 MW. Em 2009, um leilão de compra de energia

dedicado a centrais eólicas resultou na contratação

de 1.806 MW, que estarão operando em 2012.

No ano seguinte, serão adicionados 2.050 MW,

contratados em leilões realizados em 2010. Em três

anos, a potência eólica instalada terá subido 530%,

ultrapassando 5.270 MW.

Essa evolução não é pequena diante

dos desafios que se apresentam. Além do

desenvolvimento de mão de obra qualificada,

coloca-se a necessidade de ampliar o quadro de

fornecedores, de modo a permitir efetiva competição.

Nesse sentido, os leilões foram auspiciosos, porque

conferiram dinamismo à expansão do parque eólico,

apontando para a expansão da capacidade de

produção da indústria, inclusive com atendimento de

encomendas no exterior. A perspectiva é, portanto,

de redução do custo de produção da energia eólica, e

aumento da competitividade desta fonte. Assegurar

a competição é o estímulo correto para acelerar a

expansão da geração eólica no país. Os mecanismos

para isso já existem no arranjo institucional vigente,

e o sucesso dos leilões de 2009 e 2010 atestam sua

adequação, uma vez que a um só tempo estimulam

a competição e conferem “bancabilidade” aos

projetos, por meio dos contratos de compra de

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O Brasil como potência energética | Maurício Tolmasquim e Amilcar Guerreiro

32 Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

energia de longo prazo. Em complemento, a ação

do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

e Social (BNDES), apoiando a expansão da

infraestrutura energética brasileira, em particular das

energias renováveis, demonstra que as condições

de financiamento disponíveis contribuem para o

desenvolvimento do potencial eólico.

O futuro próximoA política energética brasileira norteia-se por objetivos

que visam garantir o acesso de toda a população a

serviços de qualidade a preços justos, mantendo

rigorosos compromissos com a preservação do

meio ambiente e o manejo sustentável dos recursos

naturais. Tal política contribui simultaneamente para

o progresso econômico e social da população e para

a manutenção de uma das matrizes energéticas

mais limpas do mundo. A preocupação com a

dependência externa dos combustíveis fósseis tem

levado à maior diversificação das fontes de energia,

com preferência por fontes renováveis e de baixo

impacto ambiental. Hoje, o Brasil é reconhecido

internacionalmente por seu pioneirismo no

desenvolvimento de alternativas energéticas

eficientes e ambientalmente sustentáveis, entre as

quais se destaca o etanol.

A continuidade do aproveitamento do

potencial hidroelétrico nacional e a expansão de outras

fontes renováveis de produção de eletricidade –

como as centrais eólicas e a bioenergia –, tanto para

a produção de energia elétrica quanto para a oferta

de combustíveis líquidos, são elementos presentes

na estratégia brasileira de preservar limpa sua matriz.

Além disso, a expansão da produção doméstica de

petróleo e gás natural, com perspectivas concretas

de exportação de volumes expressivos de óleo,

permitirá que o país se consolide como importante

ator no cenário energético mundial. Nessas

condições, considerando-se ainda as dimensões

de sua economia, o equilíbrio macroeconômico

consolidado nos últimos anos, e a histórica

estabilidade político-administrativa que apresenta

o país, reconhecidamente a maior democracia do

Hemisfério Sul, têm-se reunidos os ingredientes

essenciais para a avaliação que hoje se faz do Brasil

como a potência energética do século XXI.

MAURÍCIO TOLMASQUIM é presidente da Empresa

de Pesquisa Energética (EPE) e foi secretário-executivo

do Ministério de Minas e Energia.

AMÍLCAR GUERREIRO é diretor de economia da

energia e meio ambiente da EPE e foi secretário de

energia do Ministério de Minas e Energia.

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Escapando à armadilha comercial | Yang Yao

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A afirmação da economia neoclássica de que o

livre comércio é fonte de melhoria do bem-estar

dos parceiros comerciais pode ser positivamente

contestada por duas grandes abordagens. De um

lado, a teoria da indústria nascente questiona a lógica

de que um país com pequeno setor manufatureiro

possa desenvolver-se sob condições de livre

comércio. Por outro lado, a teoria da dependência

contesta o saber convencional de que relações

de livre comércio entre o “centro” e a “periferia”

outorgarão sempre benefícios aos países mais

desfavorecidos. Além destas abordadas tradicionais,

mas ligada ao modelo de centro-periferia, encontra-

se a teoria da maldição dos recursos naturais,

formulada mais recentemente. De acordo com esta

linha de argumentação, os termos de comércio entre

o centro e a periferia definitivamente penalizam os

países exportadores de recursos naturais, pois criam

uma “armadilha do comércio”. A fim de escapar de

tal armadilha e alavancar sua economia nacional, a

China adotou, nas últimas décadas, uma política

comercial baseada fortemente na exportação.

Os riscos do comércio internacionalSegundo a teoria da indústria nascente, o processo

industrial é caracterizado por retornos crescentes, o

que acaba exigindo a existência de uma escala mínima

de eficiência (EME) para que uma empresa possa ter

lucro. Para sustentar a sobrevivência das empresas

até que elas atinjam sua escala, são necessários

preços elevados. Mas, no regime do livre comércio,

isto acaba sendo impossível, porque os produtos

estrangeiros, presumivelmente produzidos em

países mais adiantados, e onde as empresas operam

acima de sua EME, invalidam os preços internos. O

resultado disto é que um país mais pobre pode não

ser capaz de desenvolver um setor industrial viável

sob o regime de livre comércio – ele seria aniquilado

no nascedouro.

A teoria da dependência, por sua vez,

categoriza o mundo em centro e periferia. O centro

gera o progresso tecnológico e manufatura bens,

enquanto a periferia fornece os recursos. Ou seja,

a periferia depende do centro para seu crescimento.

Por seu turno, diversamente do que o saber

convencional afirma, o progresso tecnológico não

melhora as condições de comércio da periferia,

de modo que sua situação de bem-estar não se

aprimora. Esta melhoria só poderá ocorrer se o

progresso tecnológico do centro for: i) mais orientado

em direção à expansão da variedade do que à

eficiência na produção dos produtos existentes; ou

ii) se a elasticidade da substituição de preço entre os

produtos for elevada.

A teoria da maldição dos recursos naturais

afirma que a melhoria dos termos de comércio na

exportação de tais recursos pode até prejudicar as

empresas exportadoras do setor, ao invés de ajudá-

las. Ganhos nas condições e termos de exportação

destes recursos implicam, como contrapartida, o

endurecimento das condições de importação dos

bens manufaturados, uma vez que o setor industrial

não pode crescer e poderá até mesmo encolher se os

preços relativos recursos naturais/produção industrial

se alterarem de forma dramática. O mesmo efeito é

produzido por um choque positivo e considerável na

demanda, ou pela descoberta de grandes reservas

de recursos naturais. Assim, em razão da “maldição

dos recursos naturais”, um país rico nestes

recursos pode estar confinado à sua exportação,

agravando, desta forma, a dependência em relação

ao centro. As três teorias sugerem que os países

em desenvolvimento, e mais especialmente aqueles

que dependem substancialmente da exportação

de seus recursos naturais, poderiam cair no que é

chamado de “armadilha do comércio”, ou seja, um

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Escapando à armadilha comercial | Yang Yao

34

estágio no qual o país fica restrito à exportação de

bens primários.

O sucesso dos “tigres asiáticos”No entanto, existem países que conseguiram

escapar a tal armadilha. Entre os exemplos mais

significativos estão os “tigres” do Leste Asiático.

A China está seguindo os passos dos “tigres

asiáticos” no sentido de se apoiar nas exportações

para atingir um elevado crescimento econômico,

e da mesma forma como seus vizinhos do Leste

Asiático, suas exportações estão se tornando cada

vez mais sofisticadas do ponto de vista tecnológico.

No início dos anos 1980, a parcela de exportação

de bens primários da China estava próxima dos

60%. Em meados de 1990, esta parcela caiu para

10%, e as exportações de baixa tecnologia, tais

como vestuário e calçados, se tornaram a pauta

mais expressiva das exportações do país. Hoje, a

maior parte das exportações da China é de produtos

eletrônicos. Quais são as características comuns

das histórias de sucesso do Leste Asiático?

Em primeiro lugar, os governos do Leste

Asiático adotaram políticas que incentivaram a

exportação de bens não primários. Estas medidas

incluíam taxas de câmbio competitivas, menores

barreiras para o mercado exportador, e a ausência

de tarifas de exportação. Muitos países em

desenvolvimento – levando a sério o risco da

“armadilha do comércio” – supervalorizaram suas

moedas e taxaram as exportações de produtos

primários. A primeira medida destinava-se a

reduzir os custos de importação de equipamentos

e tecnologias estrangeiras, e o alvo da última

era a transferência de riqueza do setor primário

para outros setores – diversificando portanto a

economia nacional. A supervalorização das moedas

acabou, entretanto, por reduzir dramaticamente a

competitividade dos bens industriais destes países

nos mercados externos. Por seu turno, a taxação

imposta ao setor primário não foi eficazmente

usada para incentivar o desenvolvimento dos

outros setores. No Leste Asiático, taxas de câmbio

competitivas auxiliaram as economias a explorar

sua vantagem competitiva nos custos trabalhistas e

a exportar bens manufaturados por suas indústrias

de mão de obra intensiva, como primeiro passo

para escapar da armadilha do comércio.

Em segundo lugar, as vantagens das

exportações de bens primários foram distribuídas

a uma grande porção da população, especialmente

a população mais carente. Nos primeiros estágios

de desenvolvimento na Ásia, a exportação de bens

primários se concentrava no setor agrícola. À medida

que sua riqueza crescia, agricultores conseguiam

aprimorar suas tecnologias agrícolas, remunerando

melhor o trabalho na agricultura. Em muitos

países que exportam recursos naturais, contudo,

a propriedade dos recursos é concentrada. Como

consequência disto, os benefícios não alcançam os

cidadãos comuns e este canal de desenvolvimento

é amputado.

Em terceiro lugar, a política interna encoraja

o desenvolvimento do setor manufatureiro. Este

desenvolvimento inclui o reforço à educação básica

e o aprimoramento das capacidades de inovação,

ajudando a criar uma infraestrutura, e reduzindo as

restrições impostas pelo mercado de trabalho. A

forma mais efetiva de melhorar o nível de vida dos

pobres é fornecer empregos. Mas as restrições do

mercado de trabalho desestimulam a expansão da

indústria. Muitas empresas permanecem pequenas

para evitar a sujeição às leis trabalhistas restritivas

aplicadas às grandes empresas. Os países do

Leste Asiático lançaram mão de uma abordagem

gradual para aprimorar suas normas trabalhistas e

conseguiram evitar em grande parte este problema.

Além disso, estes países dão elevada prioridade à

educação e à inovação, com vistas a galgarem mais

facilmente a escada tecnológica, e aumentarem

assim suas exportações.

Em quarto lugar, uma abordagem realista e

gradual contribui para que as economias do Leste

Asiático evitem grandes contratempos. No final da

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Escapando à armadilha comercial | Yang Yao

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

década de 1970, os países da América Latina fizeram

vultosos empréstimos junto ao mercado internacional,

com vistas a melhorar a estrutura econômica em curto

período de tempo. Mas a crise da dívida externa que

se seguiu mergulhou estes países em duas décadas

de altos índices de inflação e baixos índices de

crescimento. No Leste Asiático, o progresso foi rápido,

porém também manteve um ritmo constante.

A experiência chinesaA China oferece um bom exemplo no que se refere

aos quatro pontos citados. Antes de 1978, quando o

país adotou uma política de portas abertas, a moeda

chinesa era supervalorizada. Nos anos 1980, o valor

oficial do iuane foi diminuindo pouco a pouco. Neste

meio tempo, os mercados se estabeleceram para

permitir que os exportadores trocassem seus lucros

externos em iuanes, a taxas determinadas pelo

mercado. Em 1994, a tendência oficial foi incorporada

à tendência do mercado, o que fez com que o valor

do iuane atingisse um nível competitivo. Com isto, a

exportação de produtos não primários da China teve

um grande impulso. Em 2001, a China passou a fazer

parte da Organização Mundial do Comércio (OMC),

que retirou as restrições externas às exportações

chinesas. Como resultado, as exportações chinesas

apresentaram um crescimento da ordem de 29% ao

ano entre 2001 e 2008.

Na década de 1980, as exportações de

produtos primários da China concentraram-se na

agricultura, trazendo aos agricultores renda e benefícios

cada vez maiores. Desta forma, eles foram capazes de

desenvolver uma indústria nativa de pequena escala,

que por sua vez transformou a estrutura exportadora

da China. A indústria rural foi responsável por metade

dos resultados da indústria chinesa, e por 40% das

exportações do país no início dos anos 1990.

Mesmo antes da abertura para o mundo, a

China considerou a melhoria da capacitação (capacity

building) uma prioridade máxima no âmbito da sua

política industrial. No entanto, a abordagem das “portas

fechadas” não resultou em conquistas compatíveis

com os esforços despendidos. Desde 1980, a China

passou a adotar uma abordagem completamente

diferente, ou seja, a estabelecer uma abertura para

investimentos externos diretos (IED) e vê-los como

parte coerente do plano nacional de promover a

estrutura industrial do país. Nos primeiros 20 anos,

o IED concentrou-se nas indústrias de mão de obra

intensiva, o que suscitou temores de que ele pudesse

transformar-se em um fator a mais para que a China

permanecesse refém da armadilha do comércio.

No entanto, as exportações chinesas tornaram-se

cada vez mais sofisticadas nos últimos dez anos,

e o IED desempenhou uma função positiva neste

processo; hoje o IED é responsável por metade das

exportações chinesas.

O gradualismo é um traço peculiar do processo

de transição da China, passando do planejamento

econômico para o mercado. Trata-se também de uma

das características das demais mudanças de políticas

públicas no país. Ao final da década de 1970, a China

também acompanhava o modelo latino-americano de

tomada de empréstimos junto ao mercado financeiro

internacional, principalmente para financiar suas

importações tecnológicas. Entretanto, a escala dos

empréstimos feitos pela China foi muito menor

do que nos países da América Latina, e a China

deixou rapidamente de tomar empréstimos após

observar os sinais de retração do mercado financeiro

mundial. A dependência do IED para aumentar suas

exportações é também resultado do pragmatismo.

O governo chinês foi capaz de resistir à tentação

de manter uma atitude de orgulho nacional, e não

teve pejo em utilizar-se da IED para impulsionar a

tecnologia chinesa.

Lições para o BrasilOs registros de sucesso do Leste Asiático deixam

lições para o Brasil. A exportação de recursos

naturais pode ser um elemento catalisador para o

crescimento econômico sustentável e de alcance

nacional. O segredo é a geração de externalidades

positivas que promovam o desenvolvimento da

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Escapando à armadilha comercial | Yang Yao

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produção industrial. Existem várias razões que

tornam esta atividade crucial.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento

da indústria pode ajudar o Brasil a reduzir sua

dependência da exportação de recursos naturais.

A exportação de bens primários exerce um

efeito de valorização sobre a moeda de um país.

Internacionalmente, reduz a competitividade do país

em termos de bens manufaturados; internamente,

aumenta o preço relativo dos serviços, prejudicando

ainda mais o crescimento da produção industrial.

Para contrabalançar estes impactos negativos, o

Brasil precisa contar com um plano concreto para

impulsionar a sua produção manufatureira.

Em segundo lugar, em um país grande como

o Brasil o desenvolvimento da produção industrial

constitui uma etapa indispensável rumo ao aumento

da renda. Os serviços expandem rapidamente

quando um país experimenta um crescimento nas

exportações de seus recursos naturais. Por este

motivo, algumas pessoas acreditam que um país

pode saltar a etapa da produção industrial. Trata-

se de uma conclusão errônea sob dois aspectos.

No que diz respeito ao primeiro, o crescimento

gerado pelo grande aumento da produção no

setor primário é insustentável, pois os serviços

não geram exportações, e ao final, quando as

exportações de recursos naturais diminuirem, o

país irá enfrentar déficits em suas contas correntes.

Quanto ao segundo aspecto, o histórico dos países

desenvolvidos tem comprovado amplamente

que a parcela da produção na economia nacional

apresentou uma trajetória oblíqua, isto é, um

aumento no primeiro momento, e um decréscimo

em uma etapa posterior. Os Estados Unidos

tiveram o seu ponto crítico em fins dos anos 1950.

O Brasil não atingiu este ponto crítico, portanto sua

produção ainda tem espaço para crescer.

Em terceiro lugar, a produção industrial é

particularmente efetiva no crescimento da renda

dos pobres, porque gera empregos. O Brasil possui

uma das mais desiguais distribuições de renda do

mundo. A exportação de bens primários não gera

muitos empregos. Os serviços geram empregos,

mas o crescimento dos serviços trazido por um

impulso na exportação de recursos naturais não é

sustentável.

YAO YANG é professor de economia no China

Center for Economic Research da Universidade de

Pequim.

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Parte 2:Tensões internas e coesão social

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Avançando o New Deal brasileiro | André Singer

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil que se configura após as últimas eleições

tem algo da atmosfera imaginária na qual, há mais de

meio século, a democracia norte-americana criou o

arcabouço de leis, instituições e ações do New Deal.1

A instauração deste ambiente – um legado dos dois

mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva –

pode moldar o “marco regulatório”, para usar uma

expressão do mundo jurídico, no qual ocorrerão as

próximas disputas eleitorais. Partidos e candidatos

divergirão quanto aos meios, mas os fins estão fixados

de antemão. Nesse caso, as eleições brasileiras de

2002 e 2006 poderão ser vistas, no futuro, como o

início de um longo ciclo político, semelhante ao que

aconteceu com as vitórias de Roosevelt em 1932

e 1936. Durante a vigência do ciclo, é possível até

haver troca de partidos no poder. Foi o que ocorreu

em 1952 e 1956, com a vitória republicana, a qual

não implicou o abandono dos grandes objetivos

nacionais: a diminuição da pobreza e o incremento

da igualdade.

No programa apresentado por Dilma

Rousseff na campanha eleitoral, o objetivo central

era eliminar a miséria extrema na década que

começa em 2011. Para a consecução deste

propósito, prometeu-se valorizar o salário mínimo,

ampliar gradualmente as transferências de renda e

reforçar o papel do Estado na economia. Também se

afirmou o objetivo de manter o Banco Central com

autonomia para conduzir a política monetária, deixar

o câmbio flutuante e exercer alguma rigidez fiscal.

Não se deve depreender da moderação deste arranjo

que ele esteja isento de embates importantes, cujos

desfechos definirão os contornos mais precisos do

caminho a ser trilhado nos próximos anos. A menos

que sobrevenha nova ascensão do movimento

social, em refluxo desde a década de 1990, uma

parte dos conflitos ocorrerá num plano relativamente

oculto, por meio de negociações intraestatais, sem

que o público amplo possa percebê-los de imediato.

Trata-se de uma delicada rede de pressões e

contrapressões no interior do Estado.

Crescimento econômico: indústria e commodities A redução da pobreza e da desigualdade depende

da manutenção do crescimento em um patamar

ao redor de 5%, como previa o Programa de

Aceleração do Crescimento (PAC). Para atingir este

patamar, que não foi alcançado sequer no segundo

mandato de Lula, haverá uma série de escolhas

a serem feitas. Carlos Lessa, ex-presidente do

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

e Social (BNDES), argumenta que há duas visões

conflitantes a respeito de como produzir a expansão

da economia. Em uma delas, seria necessário elevar

substancialmente a taxa de investimento público.

Deduz-se que os recursos devam sair, neste caso,

da diminuição do serviço da dívida, medida à qual o

Banco Central resiste.

Segundo outra proposta – a qual, no entanto,

implicaria um processo de desindustrialização do país –,

tal medida não seria necessária. Esta segunda visão

pressuporia que a exportação de soja, carne e minério

de ferro, por exemplo, daria conta do recado, sem

depender de o Brasil produzir mercadorias de alto valor

agregado. Por trás destes pontos de vista conflitantes

se encontram interesses sociais e econômicos

diferentes, cujo confronto definirá a dinâmica futura.

O peso das exportações no modelo

“inventado” pelo governo Lula é reconhecido

pelos seus defensores. Aloizio Mercadante mostra

que triplicou o valor exportado entre 2002 e 2008:

* Este texto é uma reprodução resumida do artigo publicado pelo autor na revista Piauí de outubro de 2010.

1. Conjunto de programas iniciados na primeira presidência de Franklin D. Roosevelt para fazer frente à crise de 1929, o New Deal permitiu um salto na

qualidade de vida dos pobres e propiciou maior igualdade entre os cidadãos americanos.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Avançando o New Deal Brasileiro | André Singer

40

de US$ 60 bilhões para quase US$ 200 bilhões.

Porém, destaca que o destino das mercadorias

mudou. Em 2002, os Estados Unidos recebiam

24,3% das exportações brasileiras, patamar reduzido

a 14,6% em 2008. Sem estardalhaço, o governo Lula

esvaziou a proposta da Área de Livre Comércio das

Américas (ALCA), que atrelaria o Brasil aos Estados

Unidos, e investiu na formação de um bloco sul-

americano forte, ao mesmo tempo que fortalecia os

vínculos com potências emergentes como a China.

O sucesso da estratégia externa

desempenhou, assim, um papel destacado na

economia política do realinhamento. O ex-ministro

Luiz Carlos Bresser-Pereira, no entanto, tem

chamado a atenção para o fato de o Brasil ser vítima

de “uma leve, mas real doença holandesa”, pela qual

os mecanismos de mercado tendem a levar um país

com extensos recursos naturais a ter um câmbio

cronicamente sobreapreciado.2

A consequência não é difícil de imaginar: torna-

se mais barato importar artefatos industrializados que

fabricá-los internamente. Para combater a doença

holandesa, afirma Bresser-Pereira, é indispensável

administrar o câmbio, em vez de deixá-lo oscilar ao

sabor do mercado. Em cálculo recente, ele indica que

o real deveria flutuar ao redor de 2,40 por dólar, o que

significaria uma desvalorização em torno de 25%.

O dilema cambialUma coalizão de interesses liderada pelo

capital financeiro tem obstado a desvalorização.

Como as importações baratas ajudam a controlar

os preços internos, garantindo o poder de compra

dos consumidores, em especial os de baixíssima

renda, há uma pressão no sentido de mantê-las

neste patamar. Elas permitem, na outra ponta, à

classe média tradicional, cuja poupança também é

beneficiada por juros elevados, o acesso a produtos

importados, e facilitam viagens internacionais.

Em terceiro lugar, o câmbio valorizado favorece os

detentores internacionais de capital, que lucram

no Brasil com a aplicação de dinheiro especulativo

remunerado a altas taxas de juros em moeda forte.

Na posição oposta se encontram os

empresários industriais, o proletariado fabril e

os exportadores. Os industriais observam com

preocupação crescente a queda das atividades fabris

desde o começo dos anos 1990. Também não é por

acaso que a Central Única dos Trabalhadores defende

“aplicar política cambial voltada para a defesa da

economia nacional”. Os exportadores querem ganhar

mais com o que vendem. Este tripé deu ao governo

sustentação para impor um imposto de 2% sobre o

capital especulativo em 2009, na vigência da crise

internacional. A medida, embora tímida, impediu

que a valorização da moeda aumentasse ainda mais,

além de sinalizar a existência de setores sociais

ponderáveis preocupados com a doença holandesa.

Taxas de juros e créditoEm que pese o Brasil possuir uma das maiores taxas

de juros do mundo, e parecer distante o momento

em que a coalizão “produtivista” consiga forçar a sua

diminuição, o balanço do último período mostra algum

abalo na liberdade do capital financeiro. A ampliação

do crédito no segundo mandato (quando passou de

25% para 40% do PIB) foi obtida apesar da oposição

dos bancos privados. Ela expressa o aumento da

capacidade do Estado – apoiado pelos três setores

mencionados e pelo fortalecimento dos bancos

públicos durante a crise – em obrigar o sistema

financeiro a emprestar ao público, em lugar de apenas

comprar títulos do governo. Nesse sentido, revelou-se

crucial o reforço do BNDES no papel de financiador,

a juros mais baixos, das empresas industriais.

Sabe-se que os juros altos inibem os investimentos

produtivos, pois o capital é remunerado sem participar

da produção. Além disso, transferem recursos

públicos – que poderiam ser usados para aumentar a

criação de infraestrutura – para os rentistas, que os

esterilizam ou usam em um consumo de luxo, com

aumento da desigualdade. Por isso, os empresários

2. A tese da “doença holandesa” foi desenvolvida a partir de uma análise dos efeitos dos ganhos com a exportação de gás naquele país, nos anos 1970.

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Avançando o New Deal brasileiro | André Singer

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

da área produtiva, para quem a taxa de juros é central,

e os trabalhadores em geral, para os quais o aumento

do emprego é decisivo, estão momentaneamente

juntos na batalha contra a “usura”.

A agenda socialSeja qual for o destino dos atritos que virão a marcar o

ciclo político, o objetivo de reduzir a pobreza por meio

da transferência de renda para os segmentos muito

pauperizados deverá ser a marca dos próximos anos.

Não haverá, contudo, direitos universais à saúde,

educação e segurança sem aumentar o investimento

público. No Brasil, ainda não há saneamento básico e

moradia de qualidade mínima para enormes setores

da população. Além dos programas de transferência

de renda, os relativos à saúde, educação e

segurança pública são fundamentais para a redução

da pobreza e da desigualdade. Isto requer vultosos

desembolsos, bem como um Estado equipado para

exercer funções de envergadura. Daí, igualmente,

advém a necessidade de continuar a valorização

do funcionalismo público, com a reestruturação

de carreiras de Estado e o aumento da folha de

pagamento dos servidores.

Embora o Bolsa Família caminhe para se tornar

um direito reconhecido na Constituição, sob a forma

de uma renda básica de cidadania, a ser proposta no

bojo da Consolidação das Leis Sociais que o próximo

governo deverá enviar ao Congresso Nacional, não

há consenso acerca do tamanho e abrangência

que o Estado deve ter no Brasil. Do mesmo modo,

não existe acordo a respeito da reforma tributária

que lhe deveria garantir os recursos. Enquanto as

organizações de trabalhadores sugerem enfatizar

o caráter progressivo da tributação, as entidades

empresariais, unificadas quanto a esta questão,

buscam diminuir a carga tributária em absoluto.

Neste item, capitalistas e assalariados se encontram

em campos opostos. A pressão da burguesia pela

contenção dos gastos do Estado deverá crescer.

Assim, a abrangência dos serviços públi-

cos de saúde e educação é um tema que separa

a coalizão majoritária em diferentes segmentos.

Para os trabalhadores, deve-se atender ao man-

damento constitucional de universalizar a saúde e

educação públicas. Para os empresários, a privatiza-

ção em curso, representada pelos planos de saúde e

escolas privadas, merece ser preservada e ampliada.

Contrapõem-se visões distintas a respeito do papel

do lucro no atendimento de necessidades funda-

mentais como saúde e educação. A divergência se

estende para o campo da previdência, e explica por

que medidas como a revogação da Contribuição Pro-

visória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em

dezembro de 2007, contaram com o ativo apoio do

setor empresarial e a oposição dos representantes

dos trabalhadores.

Esses conflitos espelham divisões sociais

mais amplas. O sociólogo Jessé Souza tem

chamado a atenção para o caráter profundamente

conservador da sociedade brasileira, que encara

como “natural” a extrema desigualdade. Talvez,

poderia se acrescentar, até resista à tentativa de

alterar um quadro longevamente estabelecido.

Buscando uma via autônoma de desenvolvimentoSão fundas as fraturas que separam as vastas legiões

de brasileiros pobres da classe média tradicional,

cuja superioridade relativa diminui à medida que

o movimento de ascensão social se intensifica.

A velocidade do percurso em direção a uma possível

sociedade “decente e similar” dependerá até certo

ponto da correlação de forças entre o proletariado

emergente e a classe média tradicional.

Essa classe média dá certa base de massa à

frente rentista, que tem como programa a autonomia

do Banco Central, a liberdade de movimento dos

capitais, o corte dos gastos públicos e, em uma

conjuntura favorável, uma reforma trabalhista que

retire direitos dos trabalhadores. Ao velho e novo

proletariado interessa a plataforma oposta, com

a adequação da política monetária às metas de

crescimento, a desvalorização do real para evitar a

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Avançando o New Deal Brasileiro | André Singer

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doença holandesa, e o aumento do gasto público

na direção de um Estado de bem-estar, com a

transformação dos programas sociais em direitos

que se somem aos da legislação trabalhista.

No plano partidário, o Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido dos

Trabalhadores (PT) parecem destinados a representar

posições divergentes na próxima etapa. Apesar

das fragilidades dos partidos brasileiros, em que o

excesso de pragmatismo dificulta levar ao terreno da

política os interesses de classe, o sistema permite

alguma refração das clivagens sociais. Desse modo,

o tamanho das bancadas legislativas do PMDB e do

PT – tanto na Câmara quanto no Senado – deverá

determinar o andamento de propostas decisivas,

como a Consolidação das Leis Sociais, no Congresso.

Os ventos internacionais, cuja temperatura e

intensidade costumam influenciar na balança interna,

mostram-se confusos, o que não é necessariamente

ruim para o sonho rooseveltiano brasileiro.

A grave crise financeira de 2008 produziu efeitos

contraditórios. Enquanto nos Estados Unidos resultou

em uma guinada progressista, com a vitória de Barack

Obama interrompendo a escalada conservadora dos

dois mandatos de Bush II, na Europa provocou uma

reação à direita, com intensificação da xenofobia e

adoção de políticas econômicas contracionistas.

Nos países emergentes, a crise clarificou

a percepção de que é preciso procurar uma via

autônoma de desenvolvimento que não dependa da

problemática recuperação dos centros capitalistas

tradicionais. O Brasil em particular, embalado pelo

desejo de transformar-se em uma sociedade de

classe média, tem, no destaque internacional que

alcançou, um impulso nesta direção.

O caminho será cheio de choques, de

resultado não previsível. Contudo, se a hipótese aqui

exposta estiver correta, durante um longo tempo o

norte da sociedade será dado pelo anseio histórico

de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil.

A luta de classes dirá em que grau e velocidade.

ANDRÉ SINGER é professor de ciência política na

Universidade de São Paulo (USP) e ex-porta-voz da

Presidência da República entre 2003 e 2007.

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A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

As sociedades constroem ao longo de sua

história uma série de mecanismos estatais que se

destinam a proteger e promover socialmente seus

membros.A proteção é conduzida por políticas de

seguridade social, destinadas a reduzir e mitigar as

contigências,riscos e vulnerabilidades a que qualquer

indivíduo está exposto numa sociedade de mercado,

enquanto a promoção é realizada por políticas que

pretendem garantir aos cidadãos oportunidades mais

amplas e mais equânimes de acesso aos recursos e

benefícios conquistados pela sociedade. Além deste

papel, as políticas sociais, mediante seus gastos, são

importantes vetores de crescimento da economia

nacional, configurando-se em elemento estratégico

para o desenvolvimento.

Gasto público e seu impacto social O patamar dos gastos com as políticas sociais no

Brasil vem sendo significativamente alterado desde o

final dos anos 1980. Principalmente a partir de 1993,

com o efetivo início da implementação das políticas

previstas pela Constituição, os gastos sociais passam a

aumentar de maneira sustentada. A análise dos dados

apresentados no gráfico 1 aponta uma tendência de

crescimento do gasto público social (GPS), de 2,7

pontos percentuais (p.p.) do produto interno bruto (PIB)

em 11 anos – um crescimento superior a 10%. Mais

importante que isto, tal crescimento não se dá apenas

na esfera federal – o crescimento de 0,2 p.p. no gasto

social estadual, e de cerca de 0,4 p.p. no gasto social

municipal, refletem uma tendência importante.

Tomando-se o volume de recursos,

apresentado no gráfico 2, observa-se que o núcleo da

política social federal foi permanentemente localizado

ao longo do tempo nas seguintes políticas sociais:

Previdência Social Geral; Previdência e Benefícios a

A construção de uma política social estratégica*

Jorge Abrahão de Castro

* Este texto é produto dos estudos, pesquisas e discussões realizadas nos anos últimos junto aos técnicos/pesquisadores da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. Sua realização tomou como base e referência primordial as publicações Políticas Sociais: acompanhamento e análise no 17 e Perpectiva da Política Social no Brasil.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro

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Servidores; Saúde; Assistência Social; Educação; e

Trabalho e Renda. Juntas, estas seis áreas absorvem

algo em torno de 95% do gasto no período de 1995

a 2005. Cresceram em importância no conjunto dos

gastos sociais as áreas de Assistência Social e de

Trabalho e Renda, consequência direta da drástica

reformulação destas políticas públicas no período.

Na Assistência Social, a substituição de um modelo

“assistencialista” por um modelo de direitos – com uma

atuação cada vez mais abrangente sobre a população

brasileira, tendo, mais recentemente, entrado em

curso nova ampliação com a criação do Programa

Bolsa Família (PBF) e a implantação do Sistema Único

de Assistência Social (SUAS). Na área de Trabalho

e Renda, simplesmente foi montado, ampliado e

consolidado um Sistema Público de Emprego (SPE),

que, embora sujeito a críticas nos seus três pilares

– intermediação, qualificação e seguro-desemprego

– constituiu uma enorme conquista e ampliação da

proteção social no Brasil, ao que correspondeu o

crescimento dos recursos aplicados neste setor.

A trajetória dos gastos nas políticas públicas

de Educação e de Saúde foi outra. Estas áreas,

quando comparadas suas participações no PIB, não

cresceram em importância até 2005. Ou seja, embora

em termos absolutos recebam atualmente muito

mais recursos do que antes, os seus gastos apenas

acompanharam o crescimento da economia, não se

convertendo em prioridade de governo. Enquanto

isso, a saúde privada mobilizou recursos da ordem

de 4,7% do PIB naquele ano. No período 1995-

2005, houve considerável diversificação e expansão

das políticas sociais, com mudanças no escopo da

Previdência Social, da Assistência Social e da Defesa

do Trabalhador, por exemplo. Neste contexto, seria

impossível que não ocorressem reposicionamentos

entre as diferentes áreas sociais. Quando se observa

a trajetória de gastos das áreas de Saneamento e de

Habitação e Urbanismo, verifica-se que, até 2005,

houve redução de recursos aplicados. O que não é

nem um pouco contraditório com o quadro social

com o qual estes setores se defrontam atualmente.

Conforme exposto até o momento, se houve

uma expansão do gasto social nos últimos anos,

pode-se esperar também que tenha ocorrido uma

extensão dos benefícios oferecidos e consequente

alteração no quadro social brasileiro e que pode ser

captada em seus indicadores. Em outras palavras, o

maior volume de gastos possibilitou a maior oferta

de bens e serviços sociais, o que resultou em uma

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A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

diversificação e em uma melhoria da proteção social/

geração de oportunidades para a população brasileira.

O duplo benefício: vantagens econômicasPouco se discute que grande parte da política social e

de seu correspondente gasto público têm um duplo

benefício – promovem o crescimento junto com

uma melhor distribuição de renda e de capacidades.

Isto ocorre porque a maioria dos gastos sociais do

governo beneficia os mais pobres – como no caso

do PBF, do Benefício de Prestação Continuada

(BPC) e dos benefícios subsidiados da Previdência

Social (trabalhadores rurais em regime de economia

familiar, empregado doméstico, microempreendedor

individual, entre outros) – e a classe média – caso

dos salários dos professores da educação básica,

ou da grande maioria dos benefícios urbanos da

Previdência Social no Brasil (85% destes são de até

Quadro 1 Situação social da população brasileira associada às política setoriaisÁreas de atuação Indicadores Resultados/valores

Anos 1990 Anos 2000

Previdência social % da população em idade ativa – PIA (16 a 64 anos) coberta - 64,9 (2008)

% de cobertura da população de 65 anos ou mais - 93,3 (2008)

% de benefícios menores que 1 salário mínimo (SM) - 2,0 (2007)

% de benefícios do maiores que 1 SM. - 42,0 (2007)

% de domicílios com indivíduos de mais de 60 anos que recebem aposentadoria ou pensão

72,8 (1995) 73 (2007)

Assistência social% da população vivendo com menos de R$ 131 per capita (linha superior de elegibilidade para o Bolsa Família em 2009)

27,3 (1995) 13,7 (2009)

% da população vivendo com menos de R$ 66 per capita (linha inferior de elegibilidade para o Bolsa Família em 2009)

10,7 (1995) 4,8 (2009)

Saúde Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) 47,1 (1990) 19,0 (2008)

Taxa de mortalidade na infãncia 53,7 (1990) 22,8 (2008)

Esperança de vida ao nascer (anos) 68,5 (1995) 72,1 (2007)

Trabalho e renda (proteção)

Taxa de cobertura efetiva do seguro-desemprego 65,9 (1995) 62,9 (2007)

Taxa de reposição do seguro-desemprego 50,9 (1995) 68,3 (2007)

Trabalho e renda (promoção)

Taxa de aderência da intermediação 39,2 (1995) 47,5 (2007)

Taxa de admissão da intermediação 1,5 (1995) 6,8 (2007)

Taxa de frequência à escola (0 a 3 anos) 7,5 (1995) 18,2 (2009)

Taxa de frequência à escola (4 a 6 anos) 53,4 (1995) 81,3 (2009)

Educação Taxa de frequência à escola (7 a 14 anos) 86,6 (1992) 98,0 (2009)

Taxa de frequência à escola (15 a 17 anos) 59,7 (1992) 85,2 (2009)

Taxa de frequência à escola (18 a 24 anos) 22,6 (1992) 30,3 (2009)

Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais) 17,2 (1992) 9,7 (2009)

Número médio de anos de estudos (15 anos ou mais) 5,2 (1992) 7,5 (2009)

Questão agrária Concentração fundiária – índice de Gini para propriedade da terra 0,838 (1998) 0,816 (2003)

Saneamento e habitação

% Abastecimento de agua (urbano) 82,3 (1992) 91,6 (2008)

% Esgoto sanitário (urbano) 66,1(1992) 81 (2007)

% Coleta de lixo (urbano) 79,8 (1992) 97,6 (2007)

% Domicílios urbanos com condições de moradia adequada 50,7 (1992) 65,7 (2008)

Déficit habitacional total (habitações) Dado não disponível. 5,7 milhões (2008)

Renda e desigualdade

Renda domiciliar per capita média em US$ PPC por dia 5,5 (1990) 12,1 (2008) Desigualdade de renda – Gini 0,601 (1990) 0,538 (2009)

% da população vivendo com menos de US$ PPC 1,25 por dia (situação de extrema pobreza) critério ONU/Objetivos do Milênio (ODM)

25,6 (1990) 4,8 (2008)

População total vivendo com menos de US$ PPC 1,25 por dia (situação de extrema pobreza) – critério ONU/ODM

36,2 milhões (1990) 8,9 milhões (2008)

% da renda nacional detida pelos 20% mais pobres 2,2 (1990) 3,1 (2008)

Salário mínimo em US$ PPC por dia 4,0 (1990) 8,4 (2008)

Fonte: Ipea (Acompanhamento e análise 17, 2009) e Ipea (ODM – Relatório nacional de acompanhamento, 2010).

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro

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3 salários mínimos). Ao distribuir melhor a renda, os

salários e os serviços, uma parte importante do gasto

social permanece no país e fortalece o circuito de

multiplicação de renda, pois estes estratos tendem

a consumir menos importados e poupar menos, o

que implica maior propensão a consumir produtos

nacionais, mais vendas, mais produção nacional e

mais emprego gerado no país.

Utilizando a Matriz de Contabilidade Social

de 2006 e as informações do Sistema de Contas

Nacionais e da Matriz Insumo-Produto e pesquisas

domiciliares, trabalho do Ipea que trata da perspectiva

da política social no Brasil chegou à importante

conclusão da existência de um multiplicador do PIB,

decorrente de um aumento nas variáveis exógenas

da demanda agregada provenientes do gasto social

de 1,37. Isto significa que, a cada R$ 100 gastos pelo

governo na área social, foram gerados R$ 137 de

PIB. O multiplicador do gasto social, em termos de

PIB, é consideravelmente maior que o multiplicador

dos gastos com os juros da dívida pública, 0,71, e

quase idêntico ao das exportações de commodities,

de 1,40%, mas é inferior aos do investimento em

construção civil, 1,54%.

Esse trabalho também mostra que, após

o impulso original do gasto autônomo e quando

percorrido todo o circuito econômico, voltam ao

Estado 56% do valor que deu origem ao impulso

inicial na forma de impostos recolhidos. Ou seja, de

cada R$ 100 gastos inicialmente voltam R$ 56 pela

arrecadação tributária nacional.

Quanto ao que ocorre com a renda das familias, as

simulações mostram que um incremento de 1% do

PIB nos programas e políticas sociais detalhados

eleva a renda das famílias em 1,85%, em média –

sabe-se que a renda das famílias constituiu cerca de

81% do PIB em 2006. O multiplicador do gasto social

sobre a renda das famílias é consideravelmente maior

que o multiplicador do investimento em construção

civil, de 1,14%, e das exportações de commodities,

de 1,04%.

Ou seja, esses resultados demonstram que

a ideia de que o gasto social é economicamente

inútil não é verdade. É, sim, um elemento muito

importante para a dinâmica da economia nacional,

principalmente daqueles segmentos voltados ao

mercado interno.

No caso das transferências monetárias, o

maior multiplicador do PIB e da renda das famílias

pertence ao PBF. Para cada R$ 1,00 gasto no

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A construção de uma política social estratégica | Jorge Abrahão de Castro

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

programa, o PIB aumentará em R$ 1,44 e a renda das

famílias, em 2,25%, após percorrido todo o circuito

de multiplicação de renda na economia. A título de

comparação, o gasto de R$ 1,00 com juros sobre a

dívida pública gerará apenas R$ 0,71 de PIB e 1,34%

de acréscimo na renda das famílias. Ou seja, pelo

menos em termos de geração de PIB, o pagamento

de juros tem maiores custos que benefícios. Por seu

turno, o PBF gera mais benefícios econômicos do

que custos, e este benefício é duas vezes maior que

o benefício gerado pelo pagamento de juros sobre a

dívida pública.

Não obstante, mesmo as transferências da

Previdência Social com aposentadorias, pensões e

auxílios, que são apenas levemente progressivas,

têm um efeito multiplicador substancialmente

maior, 1,23. A explicação está no fato de que, diante

de nossa ainda abissal desigualdade de renda,

uma transferência quase neutra atua minorando

fortemente a desigualdade e, assim, modificando a

propensão e o perfil de consumo da população como

um todo.

Em geral, as transferências de renda que

beneficiam mais os pobres elevam mais o PIB e

a renda das famílias. Isto porque pessoas mais

pobres tendem a consumir quase toda a sua renda

(não podem poupar) e a consomem com produtos

de origem nacional, com menos importados em

sua cesta de consumo – ou seja, neste caso os

vazamentos são bem menores.

Construindo bases sólidasA análise aqui efetuada revelou que não foram

poucos os avanços sociais no Brasil nos últimos

anos. Tais resultados exigiram um maior esforço da

economia e da sociedade em termos de recursos

para financiamento de programas e ações. Isto

permitiu a criação de uma elevada gama de aparatos

técnicos/administrativos, contratação e treinamento

de inúmeros profissionais, criação e construção

de imóveis diversos e aquisição de equipamentos,

sofisticados ou não, para a disponibilização dos bens

e serviços.

Esses recursos físicos, financeiros, humanos

e institucionais possibilitaram a estruturação de um

amplo e diversificado conjunto de mecanismos de

proteção social e de promoção social que estão sendo

fundamentais para ajudar a melhorar as condições

básicas de vida da população, inclusive aquelas

que dizem respeito à pobreza e à desigualdade.

Além disso, a política social transformou-se em

um poderoso instrumento, por meio da qual,

simultaneamente, possibilitou-se a ampliação da

demanda agregada, com capacidade de criar um

amplo mercado interno de consumo de massa

Os gastos oriundos das políticas sociais

dinamizaram a produção, estimularam o emprego,

multiplicaram a renda e reduziram a pobreza e a

desigualdade, e tiveram um papel indispensável

e estratégico como alavancadores da economia

nacional, não apenas para o enfrentamento de

situações conjunturais adversas, mas também para

a criação dos alicerces da construção de uma nação

economicamente mais forte e democrática.

JORGE ABRAHÃO DE CASTRO é diretor da

Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do

Ipea em Brasília.

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A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Um dos fenômenos sociais mais importantes do

último século no Brasil é o surgimento de um novo

agente social: a nova classe média. Formada em

grande parte por jovens e adultos em idade produtiva,

mulatos e mestiços que “vieram de baixo”, estudam

à noite e lutam para tocar seu próprio negócio, a

classe média se espalha pelo Norte, Nordeste e

Centro-Oeste, pela periferia das grandes cidades

e pelo interior do país. Mal surgiu e já está ditando

mudanças fundamentais na dinâmica econômica,

cultural, social, intelectual e política brasileira.

Compreender o significado destas mudanças é

importante para se entender o Brasil moderno,

seus problemas e possíveis soluções. Mais do que

isto, é passo decisivo para se apreender o peso da

responsabilidade histórica que recai sobre os ombros

de todos os brasileiros no presente e a oportunidade

que nós temos de contribuir com a humanidade.

O surgimento da nova classe média é

tema de análise e discussão em todo o país desde

que Roberto Mangabeira Unger pautou, com

profundidade, o assunto. Não há consenso sobre a

terminologia utilizada – classe média – para capturar

este fenômeno, nem sobre as causas específicas de

seu surgimento. Chama atenção, no entanto, uma

narrativa que ressalta como um conjunto de iniciativas

políticas sincronizadas ativaram o poder adormecido

do povo brasileiro. A manutenção da estabilidade

macroeconômica, combinada com a valorização

real do salário mínimo, investimentos maciços em

infraestrutura e em políticas urbanas e sociais de

transferência de renda colocaram nas mãos dos mais

pobres quantia significativa de recursos, até então

distantes de sua realidade. As pessoas passaram a

consumir em quantidade e qualidade mais elevadas,

dando origem a novo mercado de consumo no país. E

como uma enzima que ativa o espírito empreendedor

do cidadão comum, começam a surgir milhares de

pequenos e médios empreendimentos, informais e

de base familiar, onde até há pouco predominava

uma economia rudimentar e de subsistência. Em

Toritama, Pernambuco, um verdadeiro polo industrial

desabrochou no meio do Agreste nordestino e já

fornece cerca de um terço do jeans consumido no

país. Em Picos, Piauí, cooperativas de apicultores,

compostas por gente simples, sem qualificação

superior, desenvolveram tecnologia avançada que

permite processar e exportar mel para diversos

países. Exemplos como estes de empreendedorismo

e audácia científica atestam a existência de uma

economia promissora no interior brasileiro.

Mudança cultural e socialA nova classe média começa a impor mudanças

culturais. Com estilo e jeito de ser próprios, vai

rapidamente marcando contrastes com os valores

e práticas dominantes nos grandes centros.

Novos estilos musicais transcendem seus locais

de origem e ganham projeção nos meios de

comunicação de massa – alcançando, muitas vezes,

o mercado internacional. Novos sotaques e novas

personalidades vão gradualmente atraindo a atenção

do conjunto do país. Porém, o mais importante

aspecto desta mudança cultural é a proliferação,

por todo o território nacional, de novas igrejas e

associações, que inspiram o espírito de luta no povo

simples, reforçam o sentimento de solidariedade

para além da família, e muitas vezes ajudam a suprir

os déficits culturais e emocionais resultantes de uma

infância sem lar estruturado. É claro que há abusos

na exploração comercial da fé do pobre, e exageros

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas

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na aclamação do poder total do indivíduo, e só do

indivíduo, de alcançar a salvação. Mas o certo é que

as novas igrejas estão em geral esculpindo a alma do

povo brasileiro, e dilapidando a convicção racionalista

de que a decorrência natural do progresso é a

secularização. O Brasil é cada vez menos secular e

cada vez mais avançado.

Também quanto à sua estrutura social, o

Brasil tem experimentado rápidas transformações.

Pela primeira vez em nossa história, a classe média

representa mais de metade da população nacional.

Quase 30 milhões de pessoas já saíram da pobreza

na última década e mais de 35 milhões ingressaram

na classe média. Há anos, a região do país que mais

cresce economicamente já não é o Sudeste, onde

se localizam os principais centros da produção, mas

o Nordeste, seguido pelo Centro-Oeste e o Norte.

O estado brasileiro que mais cresceu nos últimos

anos foi Rondônia, no Norte do país. E as cidades

com maiores taxas de crescimento econômico

e populacional não são as grandes capitais, mas

as cidades médias no interior. Fluxos de êxodo

populacional vão se alterando a uma velocidade

incrível. Se, há algumas décadas, o pobre do interior

do Nordeste sonhava em se mudar para São Paulo

para trabalhar em uma grande multinacional, hoje é

mais provável encontrar o trabalhador da multinacional

paulista que sonha em regressar ao Nordeste a fim

de abrir seu próprio negócio. Cidades no interior de

Minas que ameaçavam desaparecer do mapa, tal o

número de pessoas que emigravam para os Estados

Unidos e a Europa em busca de oportunidades, hoje

se revigoram com o retorno de seus cidadãos.

Um paradigma movediçoEssas mudanças já começam a criar fraturas no

pensamento social dominante no Brasil. A síndrome

da “inautenticidade”, que – nas palavras do sociólogo

Jessé de Sousa – atacou a intelectualidade brasileira

no último século, acabou por aprisionar a consciência

nacional entre dois paradigmas equivocados: ou se

enxergava o Brasil, sua situação e seus desafios,

segundo a lógica de centros desenvolvidos e

periferias subalternas, ou segundo a lógica colonial

de senhores e escravos. Em ambos os casos, os

problemas foram considerados a partir de um centro

de gravidade externo, fora do nosso controle, que

se encontrava nas mãos dos líderes do sistema

econômico global ou ancorado em uma cultura

patrimonialista e opressora da qual dificilmente

conseguiríamos nos libertar. A ascensão do brasileiro

simples, batalhador, que consegue ingressar na

classe média com o apoio de políticas públicas

bem-sucedidas, devolve ao país uma autoestima e

um horizonte de reflexão que não combinam com a

timidez do “pensamento inautêntico”. Já não parece

suficiente dizer que a raiz dos nossos problemas

está em Nova Iorque ou em Londres. Ou que o

problema do Brasil é o “jeitinho” do brasileiro. É hora

de construir um pensamento social autêntico, que

considere a ação do brasileiro não como problema,

mas como solução.

É justamente isso que começa a acontecer,

com cada vez mais vigor, na política nacional. A

nova classe média vai rapidamente se organizando

e se posicionando. Grupos religiosos, associações

de bairro, agências regionais de desenvolvimento

se espalham pelo país e vão aquecendo o debate

sobre temas de seu interesse. Este novo agente

social já elege seus representantes locais: seus

vereadores, seus deputados, seus prefeitos. E

já pauta de maneira decisiva a agenda de alguns

governos estaduais – o de Sergipe, por exemplo. Na

política federal, apenas começou a influir nos seus

rumos, o que se observa no compromisso da então

candidata Dilma Rousseff em criar o Ministério das

Pequenas e Médias Empresas e o calor do debate

sobre questões morais no fim do primeiro turno

das últimas eleições presidenciais, entre outros

temas. A julgar pelo que se observa, contudo, já

não deve surpreender a ninguém que, em muito

pouco tempo, a pauta nacional seja determinada,

em larga medida, pelas crenças e expectativas

deste novo segmento.

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A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Contradições persistentesSobram motivos para que o Brasil se orgulhe

do momento em que vive. Quem se recusa a

reconhecer o valor das recentes transformações

sociais está refletindo de olhos vendados. Mas a

ascensão da classe média e a nova realidade que

se constitui também expõem, de maneira pouco

delicada, algumas das feridas mais dolorosas de

nossa história. Contradições que há muito tempo

partem o Brasil em dois: os “poucos” e os “muitos”.

Os “poucos” que usufruem de serviços públicos de

dar inveja à Suécia, os “muitos” que nada têm.

Alguns exemplos ilustram perfeitamente

esta divisão. No mercado produtivo, embora as

pequenas e médias empresas respondam pela maior

parte dos empregos e da renda, ainda sofrem por

falta de acesso a crédito, enquanto a vasta maioria

dos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) – dententor de mais

recursos que o Banco Mundial e o Fundo Monetário

Internacional (FMI) juntos – são distribuídos a uma

elite de grandes empresas bem relacionadas com

o governo. No mercado de trabalho, embora a

legislação brasileira seja reconhecida como cânone

da proteção aos trabalhadores, quase metade

da força de trabalho é formada por empregados

informais e precarizados, fora das grandes indústrias

tradicionais e à margem da proteção legal adequada.

Na agricultura, embora o pequeno e o médio

agricultor cumpram papel fundamental na produção

e comercialização de alimentos, ainda não contam

com assistência técnica adequada, mecanismos

avançados de seguro e garantia de comercializar

a produção a preço justo – condições das quais

o agronegócio exportador usufrui. Na educação,

enquanto áreas desenvolvidas do país contam com

serviços de educação básica e média (normalmente

privada e cara) de alta qualidade, o interior do Brasil

ainda convive com um sistema público de ensino

altamente deficiente.

Até quando? Pela primeira vez na história,

o Brasil tem a chance de exercer uma “opção

nacional”, em ambiente de paz, estabilidade

política e econômica, e com prevalência dos valores

democráticos. Deverá escolher entre prosseguir com

seu modelo tradicional de desenvolvimento, inspirado

nos cânones da social-democracia europeia, que

combina crescimento (no centro) com programas

sociais de transferência de renda (nas margens), ou

jogar fora a roupa usada e inaugurar um caminho

novo, autêntico e inexplorado, que escancare a porta

estreita da democracia representativa e da economia

de mercado vigentes. É a chance real e ímpar de

reconciliar-se consigo mesmo que a história hoje

oferece ao país.

Democratizar o mercadoAs bases desse novo modelo de desenvolvimento

deveriam incluir, entre outros, quatro conjuntos de

ações, muitas delas já formuladas e desenvolvidas na

Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência

da República.

Primeiro, a democratização da economia

de mercado, para que se amplie o acesso aos

instrumentos da produção. É necessária uma nova

política industrial, que torne mais abrangente e

descentralizado o acesso ao crédito produtivo, à

tecnologia e ao conhecimento, a fim de se permitir

que as pequenas e médias empresas liderem o

processo de inovação e desenvolvimento. Também

se deve prover o país com uma rede federada de

inovação e disseminação do conhecimento aplicado

à indústria, a exemplo do excelente trabalho realizado

pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

(Embrapa) na agricultura. E se expandir a vocação

do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas

Empresas (Sebrae), para conceder-lhe papel proativo

e capacidade de realizar, em comunhão com

lideranças locais e estaduais, verdadeira varredura

de capacitação técnica e gerencial no Brasil.

É preciso também mudar as bases da

agricultura, investindo no fortalecimento da pequena

agricultura de base empresarial, que agregue valor

no campo, interiorize a geração de renda, e consolide

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas

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uma classe média rural forte e harmonizada com

o meio ambiente. Para isso, convém começar

efetivando um sistema federado de extensão rural,

com proeminência dos estados e suporte da União,

como já houve no passado. Também se requer

profunda reforma na arcaica legislação trabalhista,

datada dos tempos de Getúlio Vargas. Isto exige

combater a informalidade, com medidas como a

desoneração da folha de salários, mas também

proteger e representar os trabalhadores precarizados,

criando novo regime laboral ao lado do já existente.

Lançar uma revolução de qualidade educacionalSegundo, a educação brasileira precisa passar

por uma revolução de qualidade. Se, por um

lado, avançou-se muito no acesso ao ensino nos

últimos anos, por outro lado o Brasil se posiciona,

há anos, nas últimas posições da fila de qualidade

educacional, quando comparado aos outros países.

O país precisa fortalecer sua pré-escola – é ali que

ocorre a constituição básica da capacidade cognitiva

do indivíduo. Também precisa transformar o ensino

médio, reorganizando seu modelo pedagógico e

tornando-o menos informativo e mais analítico,

menos comprometido com a formação técnica

voltada a ofícios rígidos e mais empenhado na

formação de profissionais com capacitações flexíveis.

É necessário, ainda, que se promova um “choque

de ciência”, o qual aproxime as universidades dos

empreendimentos mais avançados, criando-se

um círculo virtuoso entre inovação tecnológica e

economia de ponta. Isto não ocorrerá enquanto

o Brasil continuar a tratar seus maiores centros

de pesquisa como ilhas da fantasia habitadas por

intelectuais moralmente corruptíveis.

Reformar a política Terceiro, a política brasileira precisa se transformar.

A medida mais premente é a realização de uma

reforma que emancipe a política brasileira da

influência do dinheiro, sob pena de ela continuar a ser

considerada atividade suja e menor. O financiamento

público de campanhas e a democratização do acesso

aos meios de comunicação de massa são duas

das medidas que poderiam cumprir esta finalidade.

Ademais, é fundamental mudar, na raiz, a concepção

do constitucionalismo brasileiro. Constituição não é

para dizer que não pode, que não dá, para frear ou

interromper a política. Ao contrário, precisamos de

Constituição para ativá-la, para reunir e comprometer

o melhor de nossas inteligências e de nossa energia

no enfrentamento dos problemas mais prementes

e na realização de nossos sonhos mais elevados.

Para isso, deve-se substituir o esqueleto de aço

do federalismo e da separação de poderes por

regras mais maleáveis, que permitam e estimulem

a colaboração entre os poderes e entre os entes

federados, bem como entre consórcios de municípios

e estados com a União, ou entre regiões inteiras,

no enfrentamento de problemas comuns. Também

é importante oxigenar a democracia representativa

com meios de participação direta, ampliando

canais como plebiscitos e referendos, bem como

constituindo novos loci de manifestação popular, a

exemplo dos conselhos e ouvidorias.

Restaurar o EstadoQuarto, o Estado capaz de satisfazer todas estas

demandas ainda não existe nem no Brasil nem

em qualquer outro lugar do mundo. Não se trata

de mudar o Estado como fim em si mesmo, pela

mesma razão que uma empresa não cria um novo

departamento para só depois descobrir o que fazer

com ele. Deve-se mudar o Estado em nome da

realização deste novo modelo de desenvolvimento. O

Estado reconstruído resultará da combinação de três

tarefas. A primeira é aprofundar a profissionalização

da Administração Pública, reduzindo o número

de cargos comissionados de livre nomeação por

quadro profissional qualificado, supervisionado

interna e externamente, e operando segundo metas

flexíveis. A segunda é aprofundar a adaptação, ao

setor público, de métodos e princípios típicos do

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A opção nacional: jogar fora a roupa velha e construir novo modelo de desenvolvimento | Daniel Vargas

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

setor privado. A Administração Pública deve pautar-

se pela eficiência, mas sem perder de vista que, no

caso do Estado, a eficiência é ditada por normas

públicas e não pela ação livre do servidor. A terceira

é flexibilizar os critérios de prestação de serviços

públicos, como saúde e educação, aproximando o

Estado, o mercado e a sociedade civil, em regime de

colaboração, na satisfação de fins sociais. Para isso,

o Estado tem o papel central de treinar, monitorar,

equipar e controlar a prestação dos serviços por

organizações da sociedade civil, ao mesmo tempo

organizando a circulação de experiências exitosas e

o aprendizado coletivo.

Reivindicando o nosso futuroEsse conjunto de medidas mostra uma rota autêntica

para o desenvolvimento do país, capaz de oferecer à

grande maioria do seu povo a chance de aprender,

trabalhar e produzir. Ao fazer isso, o Brasil também

pode servir de inspiração para nossos irmãos

latino-americanos e africanos, para nossos amigos

asiáticos, e de lição para a Europa e os Estados Unidos

no seu desafio atual de superar a crise do arranjo

social-democrata. No século XIX, Hegel dizia que a

instauração de nova consciência no novo mundo –

os Estados Unidos – representava a expansão do

espírito. Espírito, para Hegel, significava forma de

vida autoconsciente, energia reflexiva, luz própria.

Os Estados Unidos, por assim dizer, representavam

a expansão autoconsciente das possibilidades de

pensar e de agir no planeta. Hoje, o novo mundo é

a América Latina, a África e a Ásia. É nestas regiões

que se começa a presenciar uma nova etapa da

expansão do espírito. A ascensão da classe média no

Brasil e o seu efeito ácido sobre a forma dominante

de organização da economia, da sociedade, da cultura

e da consciência escancaram o futuro diante de nós.

Cabe só a nós, agora, decidir se vamos assumir a

responsabilidade de construir um novo modelo de

desenvolvimento, que abrace a classe média, una o

país e contribua com a humanidade, ou se vamos

continuar vestindo a roupa velha.

DANIEL VARGAS é mestre e doutorando em direito

em Harvard, e foi ministro interino de Assuntos

Estratégicos.

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À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A Índia se encontra hoje submetida aos espasmos

de uma transformação tumultuada, provavelmente

mais profunda, no seu impacto social, que a transição,

há 74 anos, do colonialismo para a independência e

a democracia. Esta mudança tem sido fortemente

mediada pela globalização econômica, tecnológica

e cultural. A liberalização da economia indiana, no

início dos anos 1990, desencadeou a emergência de

uma poderosa pujança econômica e empresarial em

uma escala sem precedentes, e traduziu-se muito

rapidamente em surpreendentes taxas de crescimento

econômico, que levaram a Índia para o âmbito do G-20

e lhe valeram até mesmo um convite para cear na

mesa do exclusivo G-8. Esta transformação levantou

também uma onda invulgar de otimismo na sociedade

indiana, à medida que novas oportunidades traziam

a promessa de uma melhoria de vida para a vasta

maioria dos cidadãos indianos.

Vinte anos depois, apesar da história

extraordinária de mobilidade econômica e social,

os níveis atuais de desenvolvimento econômico

coexistem com um patamar de quase estagnação

no que diz respeito ao desenvolvimento humano. A

economia indiana ocupa o sétimo lugar no ranking

mundial do produto interno bruto (PIB), e o quinto

lugar no ranking do PIB em paridade de poder

de compra. Entretanto, no que tange ao índice de

desenvolvimento humano (IDH), a economia indiana

ocupa um modesto 119º lugar entre os 169 países

listados. Nunca foi tão difícil lidar com as contradições

de uma sociedade em que a pobreza profunda – que

equivale hoje, em números absolutos, à população

total da Índia na época da independência– coexiste

com uma riqueza de inimagináveis proporções.

Enquanto milhares de fazendeiros endividados se

suicidam, o homem mais rico da Índia está gastando

US$ 2 bilhões na construção de sua residência de 27

andares, que dispõe de três helipontos e uma equipe

de 600 empregados para atender a uma família de

seis pessoas.

A dualidade indivíduo – comunidadeExiste hoje um sentido onipresente de crise –

moral, social e institucional –, na medida em que

a sociedade indiana busca desesperadamente

encontrar algum sentido em um mundo social em

vertiginosa mutação, o qual parece ter lançado

suas fundações em areias movediças. O poder

colonialista sempre se esforçou por representar a

Índia como uma comunidade política constituída

por diversas comunidades sociais; os indivíduos,

principalmente, apenas como membros destas

comunidades. A Constituição indiana buscou

redefinir esta representação, dando-lhe a feição de

um relacionamento entre o Estado e os cidadãos

individuais, mas foi a globalização que deu ímpeto

ao projeto de transformar os membros deste

mundo social em indivíduos. No contexto da

economia, eles são cidadãos consumidores que

negociam um mercado de escolhas múltiplas,

adquirindo conhecimentos da língua inglesa como

instrumento de mobilidade social, e realizando suas

aspirações por meio da obtenção de um emprego

na área de externalização de serviços e nos setores

de tecnologia e serviços. Esta dinâmica é verificada

particularmente nas pequenas cidades da Índia,

cujos jovens estão abrindo caminho por meio da

meritocracia, e adentrando os mundos diversificados

e competitivos da indústria, do governo, do esporte

e da mídia.

Esse novo espírito de individualismo se

choca, de certa forma, com as configurações

costumeiras que a cidadania assume na política.

Com a prevalência das políticas de casta, região e

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal

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religião na maneira de fazer política no período que

precedeu as reformas econômicas, o relacionamento

entre os cidadãos e o Estado foi sempre mediado

pela comunidade. Embora estas formas não tenham

perdido totalmente sua validade enquanto meios de

legitimação política, existe atualmente certa tensão

criativa entre as dinâmicas rivais do individualismo –

nascido do mercado – e da comunidade, da forma

como ela é constituída na esfera da política. Novas

formas de cidadanias individualizadas estão sendo

impulsionadas pelo ativismo da sociedade civil e

pela mídia eletrônica, que abrem oportunidades

incomuns para a expressão da cidadania, mesmo que

fortemente restritas às classes médias instruídas e,

às vezes, beirando o vigilantismo.

As bases afetivas da política, contudo,

estão longe de ter desaparecido. As castas são um

instrumento bem mais poderoso na esfera política

que na esfera social ou ritualística. Os laços de

família também permanecem fortes e flexíveis,

especialmente onde o poder e o dinheiro estão

envolvidos. Se as maiores empresas privadas são

empresas de família, assim também são a maioria

dos partidos políticos. O princípio da dinastia

determina, com algumas exceções, a sucessão

em ambas as áreas. Um terço dos membros do

Parlamento – um número surpreendentemente

grande – provém de famílias políticas, e esta

tendência se repercute, de cima para baixo, até

as instituições de governança local. A liderança

da maioria dos partidos políticos é estreitamente

controlada por apenas uma pessoa e, com a

exceção de três partidos regionais liderados por

mulheres solteiras, o princípio da herança política

reina absoluto. Os interesses comerciais de muitos

caciques políticos – desde a posse de instituições

educacionais até as empresas de médio porte

– são bem conhecidos. O poder econômico se

traduz em poder político com a mesma facilidade

e fluidez com que o poder político se traduz em

poder econômico.

Sensação de criseA depressão moral que se constata hoje está forçando

a sociedade indiana a negociar de novo a questão de

como e onde traçar uma linha de separação entre

o público e o privado. O consenso da elite, nas

normas institucionais modernas que consagram

este limite, foi pela primeira vez questionado há

cerca de trinta anos, por uma nova linguagem

democrática, especialmente por parte das parcelas

mais baixas das castas. Sua impaciência em relação

a estas normas, e até sua rejeição, foi inicialmente

valorizada como uma resposta plebeia às normas

autobeneficiárias e hegemônicas estabelecidas

pelas classes e castas mais altas. Com o tempo,

entretanto, a fungibilidade destas normas significou

não mais a construção de um universo moral

alternativo, mas a quebra dos antigos consensos

normativos. Uma série de recentes escândalos

envolvendo o governo, interesses empresariais

e a mídia tem gerado preocupações acerca do

persistente e penetrante avanço da cobiça e da

corrupção, e da “fibra moral”da sociedade indiana.

Como ocorre com frequência, o que se chama

popularmente de crise moral é algo sintomático que

está inserido em um fenômeno maior.

O que as recentes denúncias de corrupção

têm mostrado, antes de mais nada, são as gigantescas

fontes de benefícios que representa a dominação

exercida pelos funcionários do Estado sobre o

licenciamento e controle das imensas e valiosas

extensões de terras, e dos volumosos recursos

naturais como o petróleo e os minerais – acrescidos

agora do domínio do espectro de banda larga para as

comunicações sem fio. O desenfreado clientelismo

entre servidores públicos – tanto os políticos quanto

os burocratas – e interesse privado nunca foi tão

marcante quanto agora. Nunca, desde a época em

que a escravidão era legal, a mercantilização dos seres

humanos foi tão celebrada; recentes manchetes nos

jornais indianos denunciaram que enquanto alguns

jogadores de críquete eram “leiloados” por grandes

ligas por quantias obscenas de dinheiro, outros não

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À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

conseguiam ser “vendidos”. Todavia, muito pior

que estes exemplos de escândalos comerciais é

o caso da crise ecológica e da cínica exploração e

marginalização dos povos tribais que vivem nas áreas

ricas em minerais e recursos florestais.

Inclusão social sem solidariedadeEsses déficits morais e institucionais são, sem dúvida,

o resultado de uma falha mais antiga: o fracasso da

antiga tradição – representada pelo que poderia ser

chamado de social-democracia indiana – em canalizar

a emotividade da comunidade para um sentido

mais secular de solidariedade social. A Constituição

transformou a pessoa humana na unidade política

fundamental do Estado, mas também permitiu que

as identidades grupais fossem reconhecidas, para

garantir direitos culturais às minorias religiosas e

assegurar a criação de quotas no emprego público

e no sistema educacional para as castas e grupos

tribais mais desfavorecidos. Não demorou muito

para que outras identidades comunitárias se

mobilizassem e, à medida que esta forma passou

a ser preeminente para a expressão das demandas

políticas, a agenda quase socialista foi se tornando

algo apenas retórico, fracassando na invenção de uma

ideologia igualitária que poderia tratar das diferenças

de classe e castas e transcendê-las. À medida que

as solicitações de identidades coletivas tomavam a

forma de reivindicações de igualdade substantiva,

a política de identitidade adquiria uma legitimidade

própria quase inconteste. A acomodação política

destas reivindicações acabou tornando-se uma

substituição para a retificação das desigualdades.

Dispositivos como as políticas de ação afirmativa e

de quotas tiveram, sem dúvida, algum sucesso na

criação de oportunidades para membros dos grupos

discriminados. Entretanto, estes dispositivos nem

sempre foram capazes de impedir a criação de

elites entre estes grupos, o que fez com que as

oportunidades tendessem a se reproduzir através

das gerações, consolidando-se a partir dos privilégios

concedidos à geração anterior sem estender-se nem

alcançar, necessariamente, aqueles que não tiveram

oportunidades semelhantes.

Em resumo, pode-se dizer que as políticas

de ação afirmativa permitiram que o projeto de

inclusão social nessa tão diversificada democracia

registrasse avanços bem-sucedidos, uma vez que

os grupos desfavorecidos têm modernamente uma

presença maior nas legislaturas, na burocracia e nas

universidades, embora reconhecidamente menor

na indústria e na mídia. Estes grupos têm sido

também instrumentos eficazes no gerenciamento

da diversidade, refreando assim o potencial de

conflitos sociais. Conquanto os conflitos sociais

tenham sido mantidos sob controle, a fragmentação

social não o foi, com implicações menos felizes

quanto à possibilidade de forjar a solidariedade entre

os cidadãos. A tarefa de reconstruir uma social-

democracia na Índia será, muito provavelmente,

dificultada por esta falta de solidariedade social e dos

sentimentos mútuos e fraternos que deveriam lhe

servir de base.

Lições para o BrasilO Brasil, por sua vez, mediante políticas progressivas

postas em prática pelos dois presidentes anteriores,

agora continuadas por sua primeira presidente,

consolidou uma social-democracia cujo sucesso

incrível na recuperação de 20 milhões de pessoas

que se encontravam abaixo do limiar da pobreza,

por meio do Programa Bolsa Família, provocou a

admiração do mundo inteiro. Ao mesmo tempo,

a questão de a desigualdade de oportunidades ser

influenciada pela raça levou ao estabelecimento de

uma quota de 20% de negros nas universidades.

Com uma sociedade tolerante com a variedade de

colorações, e dispondo de uma social-democracia

baseada na solidariedade, será, com certeza, muito

mais fácil fazer progredir um programa de inclusão

social e oferecer mais oportunidades aos grupos

raciais excluídos.

Embora a Índia tenha um razoável histórico de

gerenciamento da diversidade via políticas inclusivas,

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

À procura de uma bússola moral: a Índia pós-globalização | Niraja Gopal Jayal

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seu desempenho não é dos melhores, talvez até pior

que os países da África Subsaariana, nas áreas de

desnutrição endêmica, saneamento, água potável,

educação primária e atenção à saúde. Apenas muito

recentemente, alguns programas de natureza laica de

bem-estar social têm recebido estímulos, por meio

do reconhecimento de direitos sociais e econômicos

tais como o direito à educação, o direito ao trabalho,

e agora do que é uma iniciativa permanente – o

direito à alimentação. Os estudos mostram que,

embora a implementação destes programas seja

frequentemente prejudicada pela corrupção e pelo

desperdício, o monitoramento pela sociedade civil

tem ajudado bastante. O Programa Bolsa Família

suscitou grande interesse na Índia. Contudo, cabe

assinalar que fatores verificados no Brasil, como o

nível mais elevado de educação e a maior densidade

das redes da sociedade civil, fornecem indícios de

que um programa deste tipo poderia não funcionar tão

bem em um país predominantemente rural como a

Índia, onde, ademais, um grande número de pessoas

é analfabeto. Estes déficits ressaltam a urgência e a

importância, para a Índia, de uma melhor educação e

da criação de meios de vida. Estas ações, juntamente

com a energização e o reforço da sociedade civil no

sentido de mobilizar as demandas e as reivindicações

de forma mais efetiva, parecem ser as lições benéficas

que a Índia pode receber do Brasil.

NIRAJA GOPAL JAYAL é professora no Centro de

Estudos de Direito e Governança da Universidade

Jawaharlal Nehru em Nova Délhi

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Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Existem diferenças de princípios e também de

interesses em cada sociedade. Nas sociedades

livres, estas diferenças acabam encontrando sua

expressão nos conflitos políticos e sociais. A coesão

social, entretanto, não significa e não pode significar

a ausência de conflitos ou a conquista definitiva da

justiça. Ela requer, pelo contrário: i) um consenso

em relação às instituições e aos procedimentos

por meio dos quais os conflitos serão solucionados;

ii) a sensação de que a sociedade está avançando

em direção a justiça e inclusão mais amplas; e

iii) a convicção de que os grupos em competição são

membros de uma única comunidade que compartilha

um destino comum.

A unidade dos Estados Unidos repousa não na

descendência e etnia comuns, mas sobretudo na

aceitação de princípios, instituições e esperanças

por parte das pessoas. Os princípios estão

estabelecidos na Declaração da Independência;

as instituições, na Constituição elaborada durante

séculos de interpretação; e nossas esperanças, no

famoso “sonho americano” de que as pessoas que

estão dispostas a trabalhar duro e dentro das regras

estabelecidas poderão criar melhores condições

de vida para elas e para seus filhos. O movimento

em prol dos direitos iguais para os afro-americanos

derrotou o ”nacionalismo negro” precisamente pela

evocação das bases históricas da unidade americana.

Este movimento, na verdade, reivindicava a inclusão

e não a separação, e foi em parte bem sucedido

porque a white America não tinha condições de

refutar a força moral de suas reivindicações.

Pontos de tensãoIsto dito, não se pode negar, entretanto, que a

coesão nos Estados Unidos tem se enfraquecido

nas últimas décadas. A polarização entre os partidos

políticos baseia-se agora em orientações ideológicas

fundamentalmente distintas sobre o papel do

governo na vida econômica e social do país, sobre

a interpretação da Constituição e assim por diante.

Os partidos também representam eleitorados

diversos. O Partido Republicano, nosso partido

conservador, congrega a maioria dos americanos

brancos, dos americanos idosos, e do setor privado.

O Democrata, nosso partido de centro-esquerda,

reúne a maioria das mulheres, dos afro-americanos,

dos jovens adultos, dos trabalhadores sindicalizados

e dos eleitores vindos de países hispanófonos. Estas

diferenças de visão e de eleitorado estão complicando

os esforços para se obter progressos e consenso no

que concerne aos atuais – e assustadores – desafios

fiscais e econômicos.

Um elevado nível de fé e de observância

religiosa distinguiu sempre os Estados Unidos das

democracias europeias, e os estudiosos consideram

que a religião é uma das principais fontes de nossa

vibrante sociedade civil. Mas há já algumas décadas,

diferenças religiosas tendem a enfraquecer a

coesão social nos Estados Unidos. Protestantes

liberais, católicos moldados pelo Concílio Vaticano

II, e os seculares, têm se agregado a movimentos

de tendência esquerdista e se alinhado com o

Partido Democrático. Por sua vez, os protestantes

evangélicos, os católicos tradicionalistas e os

judeus ortodoxos tornaram-se os pilares da política

conservadora e do Partido Republicano. Os debates

sobre o aborto, sobre a pesquisa em embriões

humanos e sobre os direitos legais de gays e lésbicas

refletem e aprofundam as divisões existentes na

sociedade americana.

Embora os Estados Unidos se considerem

uma nação de imigrantes, a validade desta afirmação

não se confirmou sempre na nossa história. Entre

1924 e 1965, as portas para imigração se fecharam

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston

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e o volume de imigrantes caiu para 5% da população

americana. Um índice sem precedentes. A reforma

da legislação sobre imigração reabriu estes portões

e o surto de imigração que se seguiu quase triplicou

a parcela de imigrantes da população. O número de

imigrantes não somente foi gigantesco, mas suas

origens haviam mudado. Uma porcentagem muito

maior provinha de países hispanófonos, e muitos

deles violavam a lei para entrar ou permanecer nos

Estados Unidos.

Durante os anos 1980, essa questão tinha

se transformado em problema político, e assim

permanece até hoje. Às tradicionais preocupações

sobre os custos econômicos e sociais da imigração

foram acrescentados receios sobre o separatismo

cultural e linguístico. Muitos cidadãos americanos

veem em fenômenos como a divisão entre os

canadenses francófonos e anglófonos um resultado

a ser evitado. A história conturbada entre os

Estados Unidos e o México é uma complicação a

mais, especialmente pelo fato de alguns ativistas

tolamente recorrerem agora ao irredentismo como

argumento de separação. A imigração tem inclusive

causado divisões entre as fileiras conservadoras:

membros da comunidade de negócios aceitam

agora imigrantes qualificados e não qualificados para

exercer atividades que os nativos não podem ou não

querem desempenhar, enquanto os conservadores

sociais levantam problemas como a língua, a cultura,

a seguridade social e o crime.

A mudança nos padrões econômicos Além dessas tendências políticas, culturais e sociais

adversas, a coesão econômica também enfraqueceu

nos Estados Unidos. Nas três décadas que se

seguiram à Segunda Guerra Mundial, à medida

que a produtividade aumentava, todos os setores

da força de trabalho eram beneficiados por ganhos

econômicos rápidos, a classe média se expandiu,

e a pobreza reduziu-se de forma drástica. Por volta

dos anos 1970, a parcela de renda e de riqueza dos

três quintos da população básica havia alcançado

seu ponto máximo desde os anos 1920. Mas a

partir de então estas tendências se reverteram: a

renda cresceu menos; os ganhos consequentes à

melhoria da produtividade passaram a beneficiar, de

forma desproporcional, as famílias de rendimento

mais elevado; e a renda e a riqueza se tornaram

cada vez mais desiguais. A renda dos mencionados

três quintos da população manteve-se estagnada,

enquanto os rendimentos da parcela constituída

pelas camadas mais altas se beneficiavam de um

aumento de renda, ajustada à inflação, três vezes

superior. No início dos anos 1970, a remuneração

de um executivo típico era cerca de 30 vezes a

remuneração média ganha pelos operários. Por

volta de 2005, esta diferença chegou a 120 vezes.

Não é de surpreender que a parcela de famílias

com rendimento acima de US$ 100 mil mais do que

dobrou entre 1980 e 2005, de 9,4% a 20,2%, e que

10 % das famílias mais abastadas detinham 70% da

riqueza total.

Os analistas debateram longamente as

causas dessas tendências. Não há dúvidas de que

a imigração, a tecnologia, o comércio e o declínio

dos sindicatos de trabalhadores desempenharam

cada um sua parte. As modificações no seio do setor

industrial foram especialmente significativas porque

durante longo tempo após a Segunda Guerra Mundial

o setor manufatureiro havia sido uma grande fonte de

empregos de renda média para trabalhadores com

níveis modestos de educação e de especialização.

A produção industrial americana em 2010

foi maior do que em 2000, e os Estados Unidos

mantiveram sua posição de produtor líder de

bens industriais. Mas nesta mesma década, o

emprego na indústria reduziu-se em um terço,

de 17,20 milhões para 11,6 milhões. Contudo, os

ganhos consideráveis de produtividade permitiram

que as empresas baseadas nos Estados Unidos

permanecessem viáveis, apesar da pressão vinda de

seus competidores globais. Esta redução não teve

somente repercussões econômicas, mas também

sociais. Muitos trabalhadores desempregados foram

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Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

obrigados a aceitar novos empregos com salários

menores, outros nunca mais conseguiram trabalho

e foram forçados a se aposentar prematuramente,

com recursos limitados. Os estados e cidades

industriais da zona central dos Estados Unidos

foram particularmente afetados, o que exacerbou as

disparidades regionais.

A diminuição da mobilidade socialNa história dos Estados Unidos, sempre que

ocorriam períodos de desigualdade crescente, estes

eram compensados por um alto nível de mobilidade

social. Na verdade, foi a crença de que nos Estados

Unidos qualquer um, nativo ou emigrante, pode

escapar da pobreza através da autodisciplina e do

trabalho duro, que sustentou a coesão social, a

despeito de níveis de desigualdade que teriam, em

outras sociedades mais estáticas, gerado intensos

conflitos. Há evidências, atualmente, de que a

mobilidade nos Estados Unidos é mais difícil do que

já foi e ocorre com menos frequência do que em

outras democracias avançadas. Um estudo recente

mostrou que 42% dos trabalhadores homens, cuja

renda dos pais pertencia à faixa da população de

renda mais baixa, permaneceu nesta faixa, enquanto

os números comparáveis na Europa foram de 25%

para a Dinamarca, de 28%, para a Noruega, e de

30% para o Reino Unido .

Lamentavelmente, o sistema educacional

que sustentava antigamente a mobilidade americana

está agora solapando essa mobilidade. Cerca de

30% dos alunos do curso secundário abandonam

os estudos sem receber seu diploma, e um grande

número de alunos de baixa renda das universidades

deixam de completar seus estudos e de receber

seus diplomas de 2o ano e de 4o ano. Comparações

internacionais sugerem que os Estados Unidos estão

atrás de outras sociedades avançadas nos cursos

secundários e nos superiores, assim como nos

índices de complementação de curso.

No passado, os programas sociais ajudaram

a contrabalançar o crescente nível de desigualdade.

Desde a década de 1970, as despesas públicas de

auxílio – ajustadas à inflação – às famílias pobres

e de baixa renda mais do que triplicaram, e agora

alcançaram a cifra de US$ 600 bilhões por ano.

Infelizmente, este volume de despesas sociais está

sofrendo pressões sérias em todos os níveis da

esfera federal americana, pois o orçamento nacional

está acumulando déficits e dívidas em um ritmo

insustentável, e será muito difícil chegar a uma

situação de equilíbrio sem redução nos gastos sociais.

Na verdade, quanto maior a dificuldade política de

reduzir os gastos em aposentadorias e assistência à

saúde para a classe média, maiores cortes se farão

necessários em programas tais como o Programa de

Garantia de Renda Mínima (means-tested programs).

Além disso, a recente grande recessão foi um duro

golpe para as finanças estaduais e municipais e a

recuperação será lenta e dolorosa. Nesse meio-

tempo, mesmo que os governadores e prefeitos

tenham condições de aumentar os impostos (o

que já é difícil em circunstâncias normais), eles

terão certamente de cortar também recursos para

programas que financiam a saúde, a educação e os

serviços sociais para a população de baixa renda.

Um futuro esperançosoResumindo, no curto e no médio prazo as

perspectivas de uma melhor coesão social nos

Estados Unidos não são alvissareiras. Todavia,

há ainda esperanças no longo prazo. A chave para

conseguir progressos neste sentido será o retorno

a um crescimento econômico vigoroso cujos frutos

possam ser compartilhados de maneira ampla. E,

a despeito da contestação partidarista, há sinais do

surgimento de uma agenda consensual, em favor

do crescimento, para a segunda década do século

XXI. Tal agenda deve integrar quatro elementos

básicos. Em primeiro lugar, o prosseguimento

dos estímulos no curto prazo, acompanhados de

um plano multianual de consolidação fiscal e de

estabilização. Em segundo lugar, uma mudança nos

programas sociais universais, em direção a medidas

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Superar a polarização política: o futuro dos Estados Unidos | William Galston

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mais orientadas para as necessidades das famílias

pobres e de baixa renda, e novo foco em programas

como os que se preocupam com educação infantil

precoce e de alta qualidade, que comprovaram

haver beneficiado aqueles que se encontram no

patamar mais baixo da sociedade. Em terceiro lugar,

aumento dos investimentos em áreas vitais para o

crescimento de longo prazo, tais como pesquisa e

desenvolvimento, inovação, infraestrutura e reforma

educacional. E finalmente, novas iniciativas na área de

comércio internacional, incluindo tratados bilaterais e

multilaterais, juntamente com uma reunião de mútuo

consenso com a China sobre problemas financeiros

e de moeda.

Durante o século passado, houve períodos

em as pessoas se preocupavam com o fato de que

os Estados Unidos estivessem perdendo caminho

e de que os melhores dias já haviam passado. O

foco desta ansiedade passou – durante meu período

de vida – da Rússia para o Japão, depois para a

Alemanha, e agora para a China. Mas a estrutura

básica desta ansiedade continuou a ser a mesma

– a de que os Estados Unidos, conjunto singular de

organização econômica, de instituições políticas e de

entendimentos sociais, não estavam mais adaptados

às circunstâncias cambiantes. Mas todas as vezes os

pessimistas subestimaram a capacidade americana

de autocorreção, de adaptação e de renovação do

país. Na verdade, sua força interior permanece intacta

– uma população trabalhadora e cheia de energia, uma

economia que incentiva a capacidade empresarial,

um sistema social que premia a individualidade e a

inovação e um sistema educacional que, a despeito

de todas as suas deficiências, encoraja os alunos a

pensarem por si mesmos.

A grande dúvida que ainda perdura não

é nenhuma das que eu citei, mas diz respeito à

incerteza quanto à capacidade de as instituições

políticas sobrepujarem a polarização e a miopia, e de

se reunirem para tomar as medidas necessárias a fim

de se assegurar uma prosperidade compartilhada nas

próximas décadas. O declínio dos Estados Unidos,

se é que algum dia isto vai acontecer, não virá

pelas mãos de algum competidor, mas das feridas

autoinfligidas, das falhas de sua própria autonomia.

WILLIAM GALSTON é o titular da cadeira Ezra K.

Zilkha em Estudos em Governança na Brookings

Institution, em Washington, e ex-assessor do

Presidente Bill Clinton.

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Parte 3:Autonomia na era da interdependência

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A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Embora o extraordinário desenvolvimento econômico

e financeiro da economia brasileira tenha sido

acompanhado com muita atenção, não se examinou

de modo sistemático a crescente importância política

regional e global que o Brasil vem assumindo. Pode-

se dizer, sem receio de errar, que a emergência do

Brasil como ator político está fundamentada em

grande parte na boa gestão econômica de quatro

governos brasileiros – os de Fernando Henrique

Cardoso (1995–2002) e os de Luiz Inácio Lula da

Silva (2003–2010). Neste período de 16 anos, o

Brasil firmou sólida reputação internacional com

seus programas pragmáticos e flexíveis de reforma

bancária e de metas inflacionárias, além do pacto de

responsabilidade fiscal estabelecido entre Brasília

e os governos estaduais, e de uma série de outras

reformas que permitiram que o presidente Lula

pudesse afirmar que o Brasil foi o último país a

entrar na crise de 2008-2009, e o primeiro a sair dela,

relativamente incólume.

Desenvolvimento econômico através da consistência políticaA continuidade na política foi a chave desse

sucesso. Em seu período como ministro da Fazenda

(1993-1994) do governo Itamar Franco, Fernando

Henrique Cardoso instituíra um programa de

estabilização chamado Plano Real, que demonstrou

ser imprescindível. O plano conseguiu lidar de forma

efetiva com a crise financeira de 1999, durante a qual

a moeda vinha sendo desvalorizada em consequência

das pressões dos especuladores de moeda, e atuou

com rapidez e sucesso. A administração Fernando

Henrique Cardoso também apoiou com firmeza a

privatização das empresas estatais, a despeito da

feroz oposição dos trabalhadores e dos defensores

das políticas de esquerda. Diversamente dos

seus predecessores, FHC estabeleceu o princípio

da autonomia do Banco Central. Esta política,

responsável por grande parte da estabilidade atual,

foi posteriormente mantida pelo presidente Lula,

mesmo enfrentando as críticas dos membros de

seu próprio partido, que consideravam que o partido

no governo deveria fazer jus às mesmas políticas

inflacionárias de emissão de moeda empregadas

pelos governos anteriores.

O presidente Lula foi empossado em janeiro

de 2003, sob persistentes rumores de que não

daria continuidade às políticas fiscais e monetárias

de seu predecessor. Entretanto, na sua Carta ao

povo brasileiro, distribuída durante a campanha

presidencial, havia prometido reconhecer os

contratos, manter a estabilidade fiscal e reduzir a

dívida de seu país. Nomeou para o cargo de presidente

do Banco Central o conhecido e admirado Henrique

Meirelles, e, para ministro da Fazenda, o altamente

competente Antônio Palocci. A equipe econômica

trabalhou e se entrosou muito bem. Poucos meses

depois, estava perfeitamente evidenciado que os

avanços obtidos pelo governo anterior estavam

servindo de base para os subsequentes passos

necessários à modernização da economia.

O governo Lula teve também a extraordinária

ventura de começar sua administração no preciso

momento da expansão do mercado de produtos

primários (commodities), estimulada principalmente

pela China. O Brasil, um gigante agrícola, tem

sido – historicamente e na atualidade – fornecedor

de um amplo leque de alimentos para o mercado

internacional. É também um dos maiores produtores

mundiais de minério de ferro – utilizado na produção

de aço – e portanto, um elemento-chave para o

modelo de desenvolvimento chinês. Além disso, o

programa de biocombustíveis, área na qual o Brasil

é líder, desenvolveu-se bastante com a rápida

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett

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expansão da produção de etanol a partir da cana-

de-açúcar. Para coroar esta boa conjuntura, foram

descobertas, em meados do segundo mandato

presidencial de Lula, maciças reservas de petróleo

e de gás natural em uma área geológica chamada

de pré-sal em razão da localização das jazidas sob

espessa camada de sal, ao largo da costa sudeste

do Brasil.

Liderança da cooperação e integração regionalAssentando-se na estabilidade financeira e no

dinamismo produzido pelo crescimento do comércio,

o governo Lula continuou a expandir a influência do

Brasil na América do Sul e, mais seletivamente, no

cenário mundial. Embora o Brasil tenha sido encarado

com suspeição, durante séculos, pelos seus vizinhos

hispano-americanos, os governos brasileiros puseram

em prática, após a transição da ditadura militar em

1985, políticas ativas de integração e de cooperação

sub-regionais. Um dos exemplos mais marcantes é

o Mercado Comum do Sul (Mercosul), formado por

Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Esta é a primeira

iniciativa bem-sucedida de integração regional da

história do continente. No final de seu governo,

Fernando Henrique organizou em Brasília, em 2000,

a primeira conferência de cúpula de chefes de Estado

da América do Sul, momento decisivo nas relações

entre o Brasil e seus vizinhos. Nos anos seguintes,

o Brasil continuou a ser um parceiro respeitado e um

vizinho colaborativo. Uma segunda cúpula realizou-se

em 2002 na cidade de Guayaquil, no Equador.

A integração e a cooperação regional

foram sempre políticas perseguidas na América

do Sul. Por iniciativa do Brasil, uma terceira cúpula

foi realizada em Cusco, no Peru, em dezembro de

2004, revigorando de forma dramática o projeto. A

Declaração de Cusco estabeleceu as bases para a

Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa). O

objetivo era a reunião dos dois blocos sub-regionais

existentes na região: o Mercosul e a Comunidade

Andina de Nações (CAN). Na reunião de cúpula

subsequente, realizada em Brasília em maio de 2008,

um tratado constitutivo foi unanimemente aprovado,

criando a União das Nações Sul-Americanas (Unasul),

que veio substituir a Casa.

Além de trabalhar para a integração sul-

americana, o Brasil tomou a iniciativa de convocar

a primeira Cúpula da América Latina e do Caribe,

realizada na Costa do Sauípe, Bahia, em dezembro

de 2008. Simbolicamente, não foram convidados a

participar os Estados Unidos, o Canadá e a União

Europeia, como o foi, pelo contrário, o regime de

Fidel Castro. Esta decisão, de cunho muito político,

foi vista como uma crítica deliberada ao embargo

americano a Cuba.

Outra iniciativa importante do Brasil na região

foi a formação do Conselho Sul-Americano de Defesa

(CDS). Este órgão destina-se a servir de mecanismo

para a segurança regional e para a cooperação militar

na área da defesa. O acordo foi ratificado em março

de 2009, em reunião realizada em Santiago, no Chile.

O Brasil também apoia fortemente a nova Iniciativa

para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-

Americana (IIRSA), a livre movimentação das pessoas

na região e o Anel Energético Sul-Americano. Na

verdade, o Brasil tem agido na qualidade de paciente

parteiro no nascimento destes programas regionais,

e tem merecido crédito pelo papel exercido.

Uma voz influente no cenário internacionalO Brasil vem se tornando também um ator

imprescindível em grande número de iniciativas

globais. Durante a crise de 2008, as pressões das

economias de mercado emergentes haviam levado

o governo do presidente norte-americano George W.

Bush, já em fim de mandato, a procurar novo alento

no Grupo dos Vinte (G-20). Constituído pelas vinte

maiores economias do mundo, o grupo debateu e

buscou uma nova arquitetura financeira. Também

se reivindicou, com sucesso, um papel mais ativo,

no Fundo Monetário Internacional (FMI), por parte

das maiores economias em desenvolvimento. O

então presidente Lula e o ministro da Fazenda

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A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

criticaram severamente os países industriais pela

sua administração fraca, regulação permissiva e

falta de transparência. Nesse contexto, Lula gostava

de lembrar aos países em desenvolvimento que o

Brasil foi a última grande economia a entrar na crise

e a primeira a emergir dela. O Brasil continuará a

ser um ator-chave nas discussões em curso sobre

como prevenir outro desastre financeiro, da mesma

forma que tem sido um ator principal nas discussões

permanentes para a criação de um novo regime

de comércio internacional. As negociações sobre

o comércio internacional começaram em Doha,

Qatar, em 2001. A Rodada de Doha ainda não tomou

decisões, mas, em todas as reuniões, o Brasil tem

reivindicado com vigor um novo campo de ação para

as economias emergentes.

Talvez o sinal mais evidente do papel

emergente do Brasil seja sua liderança ativa no

bloco constituído por Brasil, Rússia, Índia e China –

o BRIC. Este acrônimo foi cunhado pelo banco de

investimentos Goldman Sachs, em 2001. Hoje, ele

representa a “passagem de bastão” das potências

industriais pós-1945 para as vigorosas economias

emergentes que irão, no correr das próximas

décadas, substituir os países europeus como

motores do crescimento da economia mundial. O

ex-presidente Lula hospedou a mais recente reunião

de cúpula dos países do BRIC em Brasília, em 2010,

e a próxima será realizada em Pequim, na China. As

relações entre o Brasil e a China se desenvolveram

rapidamente desde a visita de Estado do presidente

Hu Jintao em 2004. Em 2010, a China tomou o

lugar dos Estados Unidos como principal parceiro

comercial do Brasil. Hoje, o mercado chinês é um

grande comprador das matérias primas e alimentos

que o Brasil possui em abundância.

Prosseguindo na sua visão Sul-Sul da

diplomacia, o Brasil tem liderado também as ações

para a organização do Ibas – bloco constituído por

Índia, Brasil e África do Sul. Uma cúpula paralela deste

grupo foi realizada em Brasília durante a Reunião

de Cúpula dos BRICs em 2010. Reconhecendo a

importância crescente da África do Sul, o Brasil deu

apoio ao convite feito pela China de inclusão da África

do Sul na cúpula dos BRICs de 2011 em Pequim.

Existem, naturalmente, como é de se

esperar, tensões no relacionamento entre o Brasil e

a China. Segundo o Financial Times, dados recentes

do Banco Central confirmam que em 2010 a China

se tornou o maior investidor direto no Brasil – a

maior economia da América Latina –, investindo

U$ 48,46 bilhões na região. A principal fonte de

preocupação, no entanto, é o aumento dramático

das importações de produtos chineses baratos pelo

Brasil, insufladas pela valorização repentina do real.

Estas importações estão minando a competitividade

da indústria doméstica brasileira, enquanto a maioria

dos investimentos chineses dirige-se para indústrias

ligadas a commodities. O governo brasileiro talvez

tenha de contemplar a adoção de medidas para a

restrição dos investimentos diretos da China na

área da mineração, fixando quotas mínimas de

fornecimento interno e monitorando as transações

para garantir que estas sirvam tanto aos interesses

do Brasil quanto aos da China.

No nível global, percebe-se claramente que

a cooperação entre o Brasil e a China está em ritmo

de expansão. Alguns argumentam que o regime de

Pequim está querendo assumir o lugar de liderança

dos Estados Unidos na América Latina. Isto não

parece estar acontecendo de fato, mas não se sabe

que decisões estratégicas serão tomadas à medida

que a região for se tornando ainda mais importante

como fonte de matérias-primas e produtos agrícolas.

Os Estados Unidos vêm sendo cada vez mais

impopulares na região, em razão da identificação

deste país com as fracassadas políticas do chamado

Consenso de Washington na década de 1990. Este

conjunto de prescrições de políticas públicas exigia

mudanças significativas na política macroeconômica,

mas ignorava a questão do desemprego, a pobreza

e a desigualdade. Embora os Estados Unidos ainda

continuem a ser um ator de peso na região, não são

mais o protagonista. Na verdade, o poder de veto

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A ascensão cautelosa do Brasil | Riordan Roett

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americano não existe mais em relação às iniciativas

políticas da região, e suas prescrições políticas são,

de maneira geral, ignoradas.

O porta-estandarte da nova ordem mundial?Durante os últimos 15 anos, o Brasil vem surgindo

como ator cada vez mais sofisticado em assuntos

regionais e globais. Como os comentadores

têm observado, o Brasil não tem qualquer “falha

geológica” étnica, e está em paz com todos os

seus vizinhos. É uma democracia consolidada,

não é potência nuclear, nem tem ambições de se

transformar em uma. Quando o Brasil consolidar sua

posição como importante fornecedor de petróleo,

gás natural, commodities e minerais para o mercado

mundial, sua presença no contexto internacional se

tornará cada vez mais valiosa. Isto é significativo

no contexto da nova ordem mundial no qual a

Organização das Nações Unidas (ONU) deseja

reestruturar seu conselho de segurança, para incluir,

por exemplo, o Brasil como candidato natural para

representar a América Latina.

O jornalista Marc Margolis, da revista Newsweek,

chamou o Brasil de “a superpotência astuta”. Não

se sabe se gestores brasileiros concordam com

esta qualificação, visto que os progressos do Brasil

na sua agenda regional e global são marcados pela

cautela. Porém, pode-se dizer que este país, visto

hoje como um elemento sofisticado e necessário

para a governança global, poderá vir a representar a

nova realidade do século XXI.

RIORDAN ROETT é professor e diretor do programa

de estudos de Hemisfério Ocidental e América Latina

na Johns Hopkins University.

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O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

No momento em que a crise financeira global projeta

mudanças profundas na geografia do poder do

século XXI, o Brasil se vê diante de uma encruzilhada.

Deveria buscar uma aliança estratégica com outros

países emergentes, os futuros protagonistas de um

mundo em acelerada globalização? Ou aprofundar a

integração regional latino-americana, eixo central da

política exterior brasileira?

Globalizar ou regionalizar?Vale a pena unir esforços com um aglomerado

fragmentado de países vizinhos historicamente

unidos mais por conflitos comerciais do que por

uma visão comum? A distância econômica e cultural

entre o Brasil e seus vizinhos hispânicos sempre

militou em favor deste ceticismo. Já no século XIX,

a monarquia brasileira se perfilava como expressão

do imperialismo escravagista e expansionista contra

o qual os libertadores Bolívar e San Martín se haviam

insurgido. Descolar do entorno latino-americano: este

foi um objetivo nacional brasileiro tão intensamente

ansiado quanto mal disfarçado ao longo de muitas

décadas. Hoje, em tempos de globalização acelerada,

a consolidação do país como ator global pareceria

reforçar este desiderato: explorar sua massa crítica

demográfica e escala de produção industrial para

conquistar mercados e forjar parcerias extrarregionais

que emergem como os novos polos dinâmicos da

economia mundial. A forte diversificação do comércio

exterior brasileiro, assim como as parcerias com

potências emergentes do Sul, não deixam dúvidas de

que o Brasil explora estes novos horizontes.

Ao mesmo tempo, não há dúvida de que

o Brasil fez uma clara opção por aprofundar um

ambicioso programa de integração regional. As

empresas e bancos brasileiros de financiamento

estão na vanguarda de projetos rodoviários que

encurtam distâncias continentais, e esquemas

de interconexão energética que reforçam uma

conectividade natural. Brasília apoia a criação de

mecanismos supranacionais que tornem realidade

a antiga retórica de solidariedade regional. Porém,

enquanto os investimentos brasileiros angariam

aplausos em amplos setores da opinião publica

regional por aportarem capitais, tecnologia, renda

e empregos, a crescente presença empresarial

brasileira não deixa de suscitar desconfianças

nacionalistas e protestos protecionistas de setores

que se sentem ameaçados.

Democratizar para integrarNão haveria aí uma contradição? Terá o Brasil

abandonado a histórica ambição de superar sua

circunstância geográfica para projetar-se como um

global player? Na verdade, a opção do Brasil pela

integração regional não está em oposição às forças

da globalização. Muito pelo contrário, a agenda latino-

americana deve ser entendida como parte de uma

resposta estratégica às profundas transformações em

curso no cenário global. O que, muitos perguntarão,

tem a integração regional a ver com a mudança

climática, a crise econômica e financeira internacional

e a insegurança alimentar e energética?

Esses fenômenos, que ilustram a crescente

interdependência da agenda internacional, estão

diretamente vinculados a um desequilíbrio

fundamental da sociedade mundial contemporânea.

A incorporação competitiva das economias

emergentes na divisão internacional do trabalho

pressiona a oferta de insumos biológicos, minerais

e energéticos. Paralelamente, a globalização acelera

a migração de empregos, gente e investimentos do

Norte para o Sul. Como resultado, agravam-se as

tensões e incertezas estampadas nas manchetes de

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato

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jornais: saques de alimentos, reação xenófoba contra

imigrantes pobres, demandas protecionistas e uma

acirrada competição por recursos naturais.

Como responder a esse desafio?

Necessitamos reorganizar um modelo produtivo

que desperdiça recursos naturais finitos, ao mesmo

tempo que condena parcela importante da população

mundial a uma subsistência em condições infra-

humanas. Quem pagará os custos de reforma tão

radical? A lição dos últimos anos tem sido clara: a

globalização não está levando a um mundo cada

vez mais uniformizado, não estamos ficando todos

cada vez mais parecidos em termos de ideologia

política ou padrão de bem-estar, como os arautos

da globalização imaginavam. Pelo contrário, vemos

que a interdependência tende a reforçar o poder de

barganha dos mais fortes e ágeis. Não é por outra

razão que as principais vítimas do lado adverso da

globalização são os de sempre: os mais vulneráveis,

os menos capazes – técnica e financeiramente – de

se protegerem das crises globais.

A resposta está em democratizar os processos

decisórios em torno da agenda global. A demora em

reformar o Conselho de Segurança, assim como em

democratizar as instituições de Bretton Woods e a

Organização Mundial de Comércio (OMC), explica a

decisão brasileira de apostar em parcerias inovadoras

em torno de objetivos comuns e agendas definidas.

Em outras palavras, uma diplomacia de “geometria

variável” que forme alianças radicalmente diferentes

daquela organizada pelos Estados Unidos para invadir

o Iraque. Elas almejam reconstruir – e não subverter

– as instituições multilaterais.

Dessas parcerias inovadoras impulsionadas

pelo Brasil para reformar a agenda mundial, a mais

importante é a integração regional. Apesar de fortes

matizes político-ideológicos e especificidades nacionais,

a América Latina está passando por uma verdadeira

revolução – democrática e essencialmente pacífica. Ela

estriba-se em duas teses radicalmente heterodoxas.

Em primeiro lugar, nega-se a disjuntiva

herdada do período de governo militar de que ou se

faz a economia crescer ou se distribui renda. Ficou

demonstrado, ao longo da última década, que a

consolidação de um mercado de consumo de massas

ancorado na expansão do emprego e dos salários –

por sua vez decorrente de uma oferta ampliada de

crédito e de políticas de transferência de renda – é

a melhor garantia de crescimento sustentável, ainda

mais em tempos de recessão global.

Em segundo lugar, sabe-se que essa

restauração democrática é necessária, mas não

suficiente para garantir a inserção competitiva da

região na economia globalizada. Compartilhar valores

fundamentais – o compromisso com o diálogo, a

proteção dos direitos humanos, o resgate da dívida

social e a estabilidade econômica – por si só não nos

tornará um polo de poder relevante em escala mundial.

Integração regional: da ALALC à UNASULNessa caminhada, a região defronta-se com as

contradições de sociedades marcadas por baixos

níveis de institucionalidade e altos níveis de exclusão

socioeconômica e frustração política. O resultado

é o acirramento de tensões, não apenas na esfera

doméstica. A relativa frustração das expectativas

do programa de integração econômica lançado pela

Associação Latino-Americana de Livre Comércio

(ALALC), em 1960, e reinventado, em 1980, com

a Associação Latino-Americana de Integração

(ALADI), terminou, muitas vezes, por alimentar

rivalidades e desavenças nacionalistas mal resolvidas

de séculos passados. Embora tenha havido

significativo incremento do comércio intrarregional,

pouco se avançou no principal objetivo: criar um

espaço econômico-comercial capaz de distribuir

democraticamente o desenvolvimento por todos os

países e setores.

Seu principal instrumento – a conformação

de uma união alfandegária – tornou ainda mais óbvia,

se é que não agravou, a falta de competitividade

e complementaridade das economias menores

do bloco. De pouco servia assegurar-lhes acesso

privilegiado aos mercados consumidores maiores se,

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O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

em termos práticos, perpetuava-se o padrão histórico

de trocas desiguais. O superávit estrutural que o

Brasil, por exemplo, mantém com a maioria de seus

vizinhos reflete, em boa medida, a incapacidade das

economias menores de reduzirem a dependência,

denunciada há décadas por Raúl Prebisch, em relação

às exportações de produtos primários de baixo valor

agregado. Compreende-se assim que a “invasão”

brasileira destes mercados arrisca insuflar temores

econômicos e rancores nacionalistas contrários ao

projeto integracionista.

Isso não prova a impossibilidade de se fazer

do comércio e dos investimentos intrarregionais um

poderoso vetor de integração. Aponta, sim, para a

urgência de minorar as graves assimetrias entre

os membros do bloco. Na esfera bilateral, o Brasil

vem desenvolvendo programas de cooperação

técnica e estendendo linhas de crédito concessional

para promover a eficiência e competitividade de

setores prioritários de economias com menor

desenvolvimento relativo: modernização tecnológica

do agronegócio e da infraestrutura produtiva industrial,

programas de inclusão social e de formação técnica.

Nada disso é sustentável, no entanto, se na esfera

regional não avançarem – por intermédio do Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES) e em parcerias com o Banco Interamericano

de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Andina

de Fomento (CAF) – projetos de infraestrutura de

comunicação, transportes e energia que ajudam a

reorganizar o espaço econômico continental. Trata-se

de reverter uma lógica econômica fragmentada, pela

qual o subdesenvolvimento dos mercados locais era

reforçado por um isolamento decorrente de séculos

de comércio preferencial com as ex-metrópoles e

outras potências extrarregionais.

Ao mesmo tempo, a criação do Banco do

Sul, a ampliação do comércio em moeda local e o

aperfeiçoamento do Convênio de Crédito Recíproco

da ALADI estão oxigenando o espaço econômico

integrado que a nova infraestrutura constrói. O

exercício está mais avançado no âmbito do Mercosul.

Como parte do esforço para ampliar e fortalecer

seus mecanismos de governabilidade,1 lançou-se

o Fundo para a Convergência Estrutural (FOCEM),

que disponibiliza recursos para redução dos gargalos

estruturais das economias menores do bloco.

Refundação institucional: da Unasul ao Conselho da Defesa Se a globalização requer a “refundação” democrática

do sistema multilateral, a arquitetura regional latino-

americana também precisa passar por reformas. A

resposta está no lançamento da Unasul e do diálogo

Latino-América e Caribe, bem como no reforço do

Grupo do Rio – iniciativas todas de 2008. O que

alguns consideram uma multiplicação desordenada e

contraditória de foros espelha, em verdade, a enorme

experimentação institucional de uma região que busca

redefinir seu papel num cenário global igualmente

em mutação. É natural que este processo ganhe

ímpeto a partir da esfera sul-americana, onde unidade

geográfica e antecedentes históricos favorecem a

conectividade e a conformação de cadeias produtivas

regionais. A Unasul, em particular, oferece um guarda-

chuva institucional para superar o antigo reducionismo

mercantilista que pretendia restringir o esforço de

integração apenas à esfera comercial.

Historicamente, os países da região

viviam sob o temor atávico de intervenção e

ingerências mútuas, favorecidas no mais das vezes

pela persistente instabilidade de sociedades de

tardia consolidação institucional.2 As resultantes

rivalidades reforçavam o autoritarismo reacionário e o

nacionalismo militarista que por décadas mantiveram

estes países de costas economicamente uns para

os outros e postergaram a unidade continental.

Este cenário explica a importância crucial para a

integração regional da constituição do Conselho

da Defesa Sul-Americano. Ele oferece um foro de

1. No intuito de evitar reproduzir o “déficit democrático” que ameaça a União Europeia, busca-se ampliar a participação cidadã mediante a criação do

Mercosul Social, o Foro de Cidades e o Parlamento do Mercosul.

2. Explica-se assim a importância dos princípios de não intervenção e de intangibilidade das fronteiras consagradas no direito pan-americano.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil e a América Latina: integrar ou descolar? | Marcel Fortuna Biato

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diálogo e concertação permanente para discutir e

diluir tensões entre vizinhos. Sintomaticamente, sua

criação ganhou impulso na sequência do conflito

fronteiriço entre o Equador e a Colômbia, em 2008.

No mesmo ano, comprovou-se a eficácia deste novo

mecanismo. Sob sua supervisão, foi possível evitar

que as tensões entre La Paz e líderes autonomistas

da “meia lua” boliviana desaguasse numa guerra

civil, com graves consequências para a estabilidade

regional. Subjaz a todas estas iniciativas a convicção

de que a América do Sul não superará seus desafios

e problemas fundamentais se não buscar construir

respostas comuns. De outra forma, persistirão os

perigosos vazios de poder que servem de pretexto ou

tentação para a intervenção de atores extrarregionais.

Os primeiros aliados e a superação da históriaNesse esforço de projetar valores e objetivos

capazes de colocarem o país no centro dos grandes

fluxos e decisões mundiais, os primeiros e melhores

aliados do Brasil são seus vizinhos. São nações

que passam pela mesma trajetória, cada uma a

seu modo, de superação de uma longa história de

autoritarismo político a serviço do aprofundamento

da exclusão social e econômica. Em conjunto,

estes países dispõem de melhores condições de

promover as reformas – tanto domésticas como de

governabilidade global – necessárias para realizar

todo o potencial de um continente com vastas

reservas energéticas, mas onde falta eletricidade;

uma região de enorme biodiversidade, mas cujo

meio ambiente ainda não é plenamente respeitado;

uma das mais ricas províncias agrícolas e minerais do

mundo, mas onde permanecem profundas injustiças

sociais e assimetrias econômicas.

Somente uma atuação regional unificada

habilitará a América do Sul a superar históricas

mazelas sociais e fragilidades econômicas e, portanto,

efetivamente influenciar a direção das mudanças

em curso na ordem internacional. As elevadas

taxas de crescimento alcançadas na última década

sugerem que a região está no bom caminho. Como

assegurar que a demanda chinesa por commodities

e seu potencial de financiamento continuem a ser

fator de desenvolvimento na América Latina? Como

garantir que os recursos naturais da região, cada vez

mais valorizados, sejam uma fonte de prosperidade

autossustentável e autonomia tecnológica e não a

antessala da síndrome da doença holandesa? Como

fazer da excepcional biodiversidade da região um

fator de vantagem comparativa num mundo cada

vez mais urbanizado, e não de fragilidade frente

à ameaça da mudança climática? Em tempos de

questionamento de antigos paradigmas e de quebra

de mitos, é imprescindível ousar criar novos nexos

de interesse e sinergia. Para o Brasil, o ponto de

partida é nosso próprio continente.

MARCEL FORTUNA BIATO é embaixador do Brasil

na Bolívia.

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O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Um dos aspectos da política externa que pouco têm

merecido a atenção dos analistas e estudiosos é a

assistência técnica e financeira prestada pelo Brasil

a dezenas de países, especialmente da África e da

América Latina. Trata-se de um dos desdobramentos

da política Sul-Sul desenvolvida nos últimos oito anos

pelo governo brasileiro. Sem chamar muita atenção,

e gradualmente aumentando sua projeção externa, o

Brasil está se tornando um dos maiores doadores e

prestadores de assistência técnica e financeira para os

países de menor desenvolvimento relativo. Por meio de

diversas formas de ajuda, o Brasil, somente em 2010,

teria se comprometido com mais de US$ 4,5 bilhões.1

Reforçar a solidariedade com gestos

políticos do Brasil no mundo é a explicação

oferecida pelo Itamaraty. A cooperação técnica

brasileira é livre de condicionalidades e construída

a partir da manifestação de interesse de parte dos

parceiros; ou seja, é guiada pela demanda (demand

driven). Desenvolve-se sempre em sintonia com as

grandes linhas de ação da política externa brasileira,

priorizando o apoio ao crescimento socioeconômico

dos países de menor desenvolvimento relativo,

em especial latino-americanos e africanos. A

cooperação técnica brasileira caracteriza-se também

pela transferência de conhecimento, pela ênfase na

capacitação de recursos humanos, pelo emprego de

mão de obra local e pela concepção de projetos que

reconheçam as peculiaridades de cada país. Realiza-

se com base no princípio de solidariedade que

marca o relacionamento do Brasil com países mais

pobres e busca disseminar conhecimentos para o

desenvolvimento autônomo dos países beneficiados.

Escala e métodosSegundo informações coligidas pela revista The

Economist (15 de julho de 2010), os recursos

utilizados nessa ação externa chegam a US$ 1,2

bilhão, superando o Canadá e a Suécia, tradicionais

doadores e prestadores de ajuda aos países em

desenvolvimento. Os recursos oriundos da Agência

Brasileira de Cooperação (ABC), do Itamaraty,

representaram cerca de R$ 52 milhões em 2010 e

R$ 92 milhões em 2011. Estão em execução 221

projetos e 324 atividades isoladas, em 82 países: 19

na América Central e Caribe, 12 na Ásia e Oriente

Médio, dois na Europa, 38 na África e em todos os 11

da América do Sul. Os principais setores das ações

de cooperação Sul-Sul, no período 2003-2010, foram

agricultura (21,8%), saúde (16%), educação (12%),

meio ambiente (7%) e segurança pública (6%).

De outras instituições de cooperação técnica,

como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

(Embrapa) e a Companhia Nacional de Abastecimento

(Conab), saem US$ 440 milhões; para ajuda

humanitária a países afetados por desastres naturais,

US$ 30 milhões; recursos para o Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) somam US$

25 milhões; para o programa de alimentação da FAO

(em português, Organização das Nações Unidas para

Agricultura e Alimentação), US$ 300 milhões; de ajuda

para a Faixa de Gaza, na Palestina, US$ 10 milhões;

e para o Haiti, US$ 350 milhões (THE ECONOMIST,

15 de julho de 2010). Cite-se ainda a implantação de

escritório de pesquisas agrícolas em Gana; fazenda-

modelo de algodão no Mali; fábrica de medicamentos

antirretrovirais em Moçambique; e centros de

formação profissional em cinco países africanos.

Os empréstimos do Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

* Adaptação de artigo publicado pelo autor no jornal O Estado de S. Paulo em 11 de outubro de 2010.

1. THE ECONOMIST. Brazil’s foreign-aid programme - Speak softly and carry a blank cheque. 15 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.economist.

com/node/16592455>.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa

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e agora do Banco do Brasil para os países em

desenvolvimento, de 2008 ao primeiro trimestre

de 2010, elevaram-se para mais de US$ 3,3 bilhões

(THE ECONOMIST, 15 de julho de 2010), em

projetos na América do Sul, Haiti, Guiné-Bissau, Cabo

Verde, Palestina, Camboja, Burundi, Laos e Serra

Leoa. O Tesouro Nacional, por sua vez, aumentou

a contribuição do Brasil à Corporação Andina de

Fomento (CAF) para US$ 300 milhões, e incrementou

a ajuda ao Fundo para a Convergência Estrutural

(Focem), do Mercado Comum do Sul (Mercosul),

que sobe hoje a US$ 470 milhões, acrescidos de

US$ 100 milhões por ano, 70% representados por

contribuições do Brasil. Além de conceder créditos

de difícil recuperação a alguns países africanos,

a Cuba e à Venezuela, o governo brasileiro, nos

últimos anos, perdoou dívidas do Congo, de Angola,

Moçambique, Bolívia, Equador, Paraguai, Suriname

e, recentemente, da Tanzânia.

Até dezembro de 2010, coincidindo com o

final do governo do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, segundo se noticia, o governo brasileiro vai

doar US$ 300 milhões em alimentos (milho, feijão,

arroz, leite em pó) para, entre outros, Sudão, Somália,

Níger e nações africanas de língua portuguesa.

Serão igualmente beneficiados Palestina (região da

Faixa de Gaza), El Salvador, Haiti e Cuba. Segundo

a Coordenação Geral de Ações Internacionais de

Combate à Fome do governo federal, também

receberam ajuda brasileira África do Sul, Jamaica,

Armênia, Mali, El Salvador, Quirguistão, Saara

Ocidental, Mongólia, Iraque e Sri Lanka.

Princípios distintosOs programas de cooperação técnica são executados

por meio da ABC. Outros órgãos, como a Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq) são responsáveis

pela cooperação científica e tecnológica. A ABC,

desde 2008, tem buscado implantar uma nova

estratégia de ação, priorizando os projetos ditos

“estruturantes” no lugar da reprodução automática

do modelo tradicional de projetos pontuais. Os

projetos “estruturantes” tendem a ter um impacto

socioeconômico mais expressivo, asseguram maior

sustentabilidade dos resultados da cooperação e

facilitam a mobilização das instituições brasileiras

para a sua execução.

Essa forma de agir também contribui para

a criação de espaço para elaboração de parcerias

triangulares com outros atores internacionais. O

governo brasileiro, desde que os princípios que

regem sua cooperação técnica sejam respeitados,

não descarta, em princípio, a possibilidade de

desenvolver cooperação trilateral com qualquer país,

inclusive do “Sul”. Nesse caso, pode ser mencionado

o projeto de cooperação trilateral na área de saúde

no Haiti, que conta com ações conjuntas do Brasil

e de Cuba. O Brasil desenvolve cooperação técnica

trilateral na África, como no projeto de fortalecimento

do Instituto de Investigação Agrária de Moçambique

(IIAM), em parceria com os EUA (via United States

Agency for International Development – USAID), no

valor de US$ 12 milhões; e no projeto Pró-Savana,

de desenvolvimento das savanas tropicais em

Moçambique, com participação do Japão (por meio

da Japan International Cooperation Agency – JICA),

no valor de US$ 20 milhões.

Nessas situações, os países desenvolvidos

ou organismos internacionais começam a voltar-se

para o Brasil por suas capacidades técnicas, suas

características culturais e linguísticas ou sua forma de

atuar. Em todos os casos, a cooperação deve respeitar

os princípios da cooperação Sul-Sul brasileira, quais

sejam, a orientação pela demanda, o uso de recursos

locais e a ausência de fins lucrativos. O Brasil não se

considera um doador emergente (emerging donor).

Isto faz com que a relação do Brasil com outras

partes não seja caracteriza pela coordenação entre

doadores. O Brasil considera que a cooperação Sul-

Sul não é uma ajuda, mas uma parceria na qual as

partes envolvidas se beneficiam, ou seja, prevalece o

princípio da horizontalidade na cooperação.

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O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Fatores que guiam a assistência financeiraAs atividades da cooperação Sul-Sul brasileira, ou

trilaterais, com a participação do governo brasileiro,

não preveem lucros como resultado. Possíveis

impactos sobre as exportações ou os investimentos

brasileiros não são aspectos que determinam a

realização de um projeto de cooperação pelo Brasil.

Caso ocorram, são tidos como efeitos colaterais

positivos, mas não são pré-requisitos para a

aprovação de projetos. A vertente comercial escapa,

portanto, da análise dos projetos da cooperação Sul-

Sul brasileira.

Na realidade, algumas motivações políticas

também explicam a diplomacia da generosidade na

América Latina e na África nos últimos anos: a busca

de prestígio para o Brasil e para o ex-presidente Lula

e o esforço para obter apoio à pretensão brasileira de

um assento permanente no conselho de segurança da

Organização das Nações Unidas (ONU). Ao contrário

de outros países, o Brasil não impõe condições aos

países que recebem a ajuda, mas também, durante o

governo Lula, não levou em consideração valores que

o Brasil defende internamente, como a democracia e

os direitos humanos, deixando prevalecer a ideia de

que “negócios são negócios”.

Impacto na indústria domésticaPensando-se mais em considerações de política

externa e menos nos interesses de alguns setores

industriais afetados pela competição chinesa, pelo

custo Brasil e pelo câmbio apreciado, o Itamaraty,

durante o governo Lula, na área comercial, procurou

ajudar os países mais pobres pela iniciativa de abrir o

mercado brasileiro para produtos destes países com

tarifa zero e sem quota. O setor têxtil, por exemplo,

seria atingido gravemente pelas importações de

Bangladesh, que exporta para o mundo mais de US$

70 bilhões. Na mesma linha de abertura de mercados

para os países em desenvolvimento, o Itamaraty

concluiu a negociação para ampliar e aprofundar o

sistema geral de preferências comerciais (SGPC),

que, menos radical que o programa unilateral

anterior, oferece rebaixas tarifárias com quotas

para os países mais pobres. No tocante à abertura

de créditos para obras públicas em países africanos

e sul-americanos, a exemplo do que ocorre com

os países desenvolvidos, as empresas brasileiras

poderão vir a se beneficiar, ganhando concorrências

para a prestação de serviços e exportando produtos

brasileiros.

A generosidade externa é pelo menos

controvertida. Enquanto a taxa de investimento

interno é baixa, ao redor de 17%, o perdão dessas

dívidas e a duvidosa recuperação dos empréstimos

do BNDES fazem com que recursos deixem de ser

aplicados em programas de infraestrutura, habitação,

energia, alimentos e tantos outros setores carentes.

Dessa forma, a política brasileira de cooperação para

o desenvolvimento tem claras motivações políticas

baseadas no princípio geral de solidariedade com os

países mais pobres. Dado o volume dos recursos

empregados e o número de países envolvidos, a

assistência e a cooperação técnica nos últimos anos

passaram a ser uma das linhas de política externa,

em especial em relação à América Latina e à África.

A cooperação não envolve compromissos de

contrapartida por parte dos países receptores, nem

está vinculada à defesa de interesses domésticos

do Brasil. Tampouco visa defender interesses como

o crescimento econômico e industrial no Brasil ou a

estabilidade e a segurança nos países beneficiados.

Esta política não está relacionada com ajuda para o

fomento da inovação ou investimento em pequenas

e médias empresas, embora, em alguns casos,

seja desenvolvida com o apoio da Federação das

Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e entidades

congêneres de outros estados. Em diversos países,

especialmente na América do Sul, a ajuda está

voltada para a melhora da infraestrutura, com a

construção de estradas e outras obras públicas.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil e o Eixo Sul: a diplomacia da generosidade | Rubens Antonio Barbosa

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A direção do futuroA política de assistência técnica deverá ser mantida e

ampliada pelo governo de Dilma Roussef, em função

dos compromissos já assumidos no âmbito do

Mercosul e nas relações bilaterais com os países da

região e da África. É possível antecipar, contudo, que

o novo governo vai estar mais atento e evitará ampliar

seu engajamento com países que não respeitem os

valores que o Brasil defende internamente, como

direitos humanos e democracia.

Embora nos pronunciamentos iniciais

da presidente Dilma Rousseff e do ministro das

Relações Exteriores, Antônio Patriota, não tenha sido

explicitamente mencionada a prioridade das relações

com os países do Sul, como ocorreu no governo

Lula, o compromisso do governo brasileiro de prestar

solidariedade aos países de menor desenvolvimento

relativo deverá continuar. A assistência financeira,

além dos limites do Mercosul, poderá ser menos

intensa levando-se em conta a necessidade de

reduzir os gastos públicos para reequilibrar as

contas governamentais. O poder brando (soft

power) do Brasil tenderá a crescer à medida que

os princípios e as motivações que definem hoje o

modelo brasileiro de cooperação com os países de

menor desenvolvimento relativo sejam mantidos

sem condicionalidades, mas com a redução da ajuda

em relação aos países que não respeitem os direitos

humanos e os valores democráticos.

RUBENS ANTONIO BARBOSA é presidente do

Conselho de Comércio Exterior da Federação das

Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

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O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Uma das grandes novidades dos últimos anos foi

o vigor com que o Brasil se articulou para assumir

um papel crescente no cenário internacional. Houve

uma percepção clara, do governo e de vários setores

da sociedade, de que o projeto de retomada do

desenvolvimento sustentado com equidade e

inclusão social deveria ter uma contrapartida na

política externa brasileira, por dois motivos. Em

primeiro lugar, porque as assimetrias existentes

no mundo não favorecem o avanço do Brasil e dos

demais países em desenvolvimento com os quais

o país começou a se articular de forma ativa. Não

bastava, por exemplo, assistir passivamente aos

países desenvolvidos ditarem as regras para a nova

rodada da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Brasil entendia, neste caso, que para a defesa

do seu projeto de desenvolvimento seria preciso

articular-se com países com as mesmas aspirações,

o que deu origem ao G-20 comercial. Em segundo

lugar, cresceu a percepção do Brasil como um país

que, nas palavras do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, estava jogando no campo internacional abaixo

de seu potencial. De fato, sendo o quinto país do

mundo em população e em território, e caminhando

firmemente para ocupar também o quinto lugar

no ranking mundial do produto interno bruto (PIB),

caberia assumir o lugar devido como protagonista

das mudanças na configuração mundial de poder, de

forma ativa e criativa. Foi com esta percepção que

uma intensa diplomacia presidencial o levou Lula a

passar um oitavo do tempo de seus dois mandatos

(2003-2010) fora do país.

A elevação do perfil do Brasil nas relações

internacionais está, portanto, muito ligada às

estratégias de desenvolvimento no campo nacional.

Pré-condição para isto foi a identificação da sua

autonomia, em particular com relação à grande

potência, os Estados Unidos. O novo relacionamento

com este país foi pautado pela busca de uma relação

construtiva, mas com reconhecimento claro dos

interesses de cada parte. Assim, um dos primeiros

atos do governo Lula foi a paralisação do acordo

de uso da base de lançamento de satélites em

Alcântara, que daria quase um monopólio de seu uso

para os Estados Unidos, enquanto o Brasil começou

a querer estabelecer uma gama variada de relações.

Na mesma linha, a defesa clara de interesses, junto

com os demais países da América do Sul, levou

ao fim da proposta da Área de Livre Comércio das

Américas (Alca). E o país não hesitou para condenar

veementemente os Estados Unidos por sua guerra

no Iraque, bem como buscar condenação nas

instâncias da OMC pela política de subsídios do

algodão. Todavia, isto não significou um confronto

pelo confronto, mas simplesmente uma rearticulação

da relação ente os dois países, baseada em respeito

mútuo. A outra face desta política revelou-se, por

exemplo, na insistência do Brasil em incluir os Estados

Unidos no Grupo de Amigos da Venezuela, que tinha

como tarefa criar as condições para uma pacificação

das relações políticas e sociais, após a tentativa

fracassada de golpe contra o presidente eleito

Hugo Chávez. Houve um uso intenso da diplomacia

presidencial para que as relações Brasil – Estados

Unidos se estabelecessem em outro patamar, o

que resultou de fato em um diálogo abrangente de

política bilateral, formalizado em março de 2010 no

Diálogo de Parceria Global entre os ministérios de

relações exteriores dos dois países.

A busca de parceiros para compartilhar

as suas aspirações em defesa de maior justiça e

equidade no contexto internacional, em sintonia

com a estratégia de desenvolvimento resumida no

slogan Brasil para todos, levou a uma atuação ativa

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte

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e criativa, mas pautada pelo pragmatismo e por

algumas diretrizes objetivas. Pragmatismo porque a

configuração das alianças poderia mudar conforme

o campo específico e os assuntos em jogo. As

diretrizes objetivas foram cada vez mais enfatizadas

e transformadas em política de Estado. A primeira

na verdade corresponde até a uma obrigação

constitucional: a opção pela América do Sul.1 As

outras dizem respeito à busca de uma nova relação

com a África e com países parceiros para a reforma

da governança global em suas várias facetas.

No que diz respeito à América do Sul, houve

um processo de gradual integração política entre

os países dos dois principais blocos existentes, o

Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Comunidade

Andina de Nações (CAN). Os países-membros de

um bloco entraram, simbolicamente, para fazerem

parte do outro como membros-associados. O

passo seguinte foi dado em 2004, com a formação

da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa),

subsequentemente rebatizada e formalizada na

União de Nações Sul-Americanas (Unasul) com o

Tratado Constitutivo, em Brasília, em maio de 2008,

o qual entrou em vigor em fevereiro de 2011. A

Unasul pode ser considerada uma tentativa de criar

uma coordenação política que possa representar um

polo em um mundo que, de acordo com a visão do

Brasil e seus parceiros, tenha a opção saudável de

caminhar rumo a uma estrutura multipolar passível

de dar condições mais igualitárias para os países

escolheram e aprofundarem seus legítimos projetos

de desenvolvimento.

A nova inserção brasileira no mundo, mais

ativa, mais autônoma, não seria uma opção que

não entendesse a vocação sul-americana como

prioritária, apesar das inúmeras outras articulações

estratégicas que possam ser feitas. Conforme já

afirmado pelo célebre diplomata Barão do Rio Branco

no final do século XIX, a América do Sul não seria

uma opção, mas um destino. Enquanto na época

o objetivo era consolidar e pacificar as fronteiras,

hoje está em jogo avançar numa integração que

ultrapasse a esfera da retórica, sempre presente

nos discursos políticos latino-americanos, e avance

na construção de uma nova realidade, dando

resposta aos antigos e aos novos desafios. A

Unasul representa, portanto, mais que um projeto

inovador de integração regional e significa uma

visão estratégica que pretende consolidar uma

identidade própria. A integração física, energética

e no campo da defesa constituem a prioridade da

Unasul. Mas há também articulações fortes nos

campos da saúde e do combate às drogas. Ao

mesmo tempo, a Unasul mostrou a importância da

concertação ao contribuir com a superação da crise

política pela qual passou a Bolívia em 2008, bem

como com o debate sobre a instalação das bases

militares americanas na Colômbia. A Unasul pode

contribuir em muito para o uso sustentável das

riquezas dos 12 países-membros na área energética,

de alimentos, mineral e da biodiversidade, em

um projeto de modernização com inclusão social,

transformando a região em um polo do novo mundo

em construção, que merece ser reconhecida como

tal. Nesse sentido, a revista The Economist acertou

ao publicar, em setembro de 2010, uma reportagem-

capa com o título Nobody´s backyard, the rise of

Latin America. A Unasul não substitui nem interfere

na consolidação do Mercosul, pelo contrário, abre

maiores condições para o seu avanço. No âmbito do

Mercosul, vale ressaltar a ampliação da sua agenda,

envolvendo praticamente todas as esferas da política

pública e apostando firmemente na construção de

uma identidade e cidadania mercosulina, o que

deve ganhar maior força com a eleição direta para

o Parlamento do Mercosul, a partir de 2012. O

reconhecimento das assimetrias existentes levou

os países-membros a criarem em 2004 o Fundo

de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem),

cujos aportes tiveram aumentos exponenciais em

1. O parágrafo único do Artigo quinto da Constituição Federal estipula que “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social

e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”

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O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

2010, a fim de se atender, inclusive, ao avanço da

eletrificação do Paraguai.

O setor privado aproveitou as

novas oportunidades e o novo processo de

internacionalização das empresas brasileiras – outra

característica da nova inserção do Brasil no mundo

–, e começou a atuar cada vez mais intensamente

na América do Sul, adquirindo escala e competência

para, posteriormente, ingressar em outros

mercados. Este movimento ajuda ao mesmo tempo

a estabelecer uma integração produtiva considerada

fundamental para o avanço do processo de integração

no Mercosul e na América do Sul como um todo.

A segunda diretriz, que retomou algumas

experiências antigas que tinham sido abandonadas,

foi a abertura para a África, continente com o qual

o Brasil tem relações históricas, sendo o país com

mais negros fora da África, número inclusive superior

à quase totalidade dos próprios países africanos,

com exceção da Nigéria. A diplomacia presidencial

foi fundamental para colocar o continente num

outro patamar nas relações externas brasileiras

e na própria percepção da opinião pública, tão

acostumada a ver seus presidentes apostarem

única e quase exclusivamente nas relações com os

países desenvolvidos para a superação dos desafios

do país. Esta opção tinha como contrapartida

interna uma política tão ou mais polêmica de

reconhecer a existência da profunda desigualdade

em oportunidades baseada em raça e a necessidade

de se introduzir uma gama de políticas públicas

coordenadas por um novo ministério, a Secretaria

de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(SEPPIR). Deu-se ênfase à política educacional,

com acesso às universidades para um contingente

que historicamente nunca teve tal oportunidade, e a

história afrobrasileira entrou no currículo obrigatório

das escolas, o que se constitui em detalhe de grande

significado simbólico. A relação que se buscou

com a África não pode, portanto, ser interpretada

unicamente em termos geopolíticos. No decorrer

de seus dois mandatos, o presidente Lula realizou

não menos de 33 viagens ao continente, visitando

23 países, em muitos casos tratando-se da primeira

visita de um chefe de Estado brasileiro. Houve uma

grande preocupação em transformar esta política de

governo em uma política duradoura de Estado, entre

outras coisas abrindo ou reabrindo 16 embaixadas,

ampliando a presença brasileira com representação

permanente para 35 dos 53 países do continente

africano. Evidentemente, há uma atenção especial

para os cinco países de língua portuguesa.2

A nova relação com a África foi expressa

num crescimento significativo do comércio e

dos investimentos brasileiros, de um lado e, de

outro, em inúmeras iniciativas de cooperação

para o desenvolvimento. De fato, o Brasil, que até

recentemente se enxergava como país receptor de

cooperação internacional, entendeu que a sua nova

posição implicaria em assumir responsabilidades

também neste campo, apesar de esta alteração não

ser necessariamente compreendida imediatamente

pela opinião pública interna. Assim, a Agência

Brasileira de Cooperação (ABC) passou, ao longo dos

últimos anos, de uma agência organizada para receber

cooperação a uma agência voltada para contribuir

com o desenvolvimento em outros países do Sul, em

particular no continente africano. A ênfase é dada à

cooperação que expressa o know-how adquirido pelo

Brasil, como o apoio ao combate à AIDS, baseado no

sucesso de sua própria política de prevenção e acesso

universal aos remédios para os portadores de HIV,

em parte possibilitado pela produção de remédios

genéricos. Dessa forma, o Brasil está contribuindo

com a instalação em Moçambique de uma fábrica

para a produção de medicamentos antirretrovirais.

No âmbito multilateral, participa ativamente

com outros países da UNITAID, uma central de

compras de medicamentos para o combate de

malária, tuberculose e AIDS no continente africano.

Outros exemplos dizem respeito à mobilização do

conhecimento técnico agrícola com a abertura de

2. Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte

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um escritório regional da Empresa Brasileira de

Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Gana e a

parceria para divulgar as tecnologias de produção

do etanol. Esta abertura com a África foi, inclusive,

compartilhada com os parceiros sul-americanos por

meio da criação de um foro de discussão América do

Sul – África (ASA).

Da mesma forma, houve uma nova

reaproximação com o mundo árabe. Logo no

primeiro ano da sua gestão o presidente Lula fez

uma histórica visita ao Líbano e à Síria, que somente

havia sido visitada no século XIX por D. Pedro II.

O Brasil detém a maior colônia de origem libanesa

no mundo, o que mais que justificou priorizar esta

visita. Também no caso da abertura para o mundo

árabe houve uma articulação sul-americana, com

a organização em 2005, em Brasília, da I Cúpula

América do Sul – Países Árabes (Aspa), seguida de

uma segunda em 2009, em Doha. O crescimento

do perfil internacional do Brasil levou o governo

a se envolver mais ativamente no processo de

paz do Oriente Médio, defendendo firmemente a

posição histórica da opção pelos dois Estados. Na

percepção do governo brasileiro há espaço para a

entrada de novos interlocutores que tragam novas

perspectivas à negociação. Neste contexto, além

de apoio político às negociações diretas entre Israel

e a Autoridade Nacional Palestina (ANP), o Brasil

tem prestado contribuição, técnica e financeira,

para a reconstrução dos Territórios Palestinos

e o fortalecimento político-institucional da ANP,

considerada fundamental para a construção

do Estado Palestino independente. No mesmo

espírito o Brasil articulou junto com a Turquia

uma intermediação com o governo iraniano, o que

provocou uma reação dura e ambivalente ao mesmo

tempo por parte do governo dos Estados Unidos

e dos demais interlocutores tradicionais. Apesar

do envolvimento com o processo de negociação

com o Irã ter sido talvez o mais ousado na recente

diplomacia ativa ele é coerente com as posições

do Brasil no que diz respeito ao Tratado de Não

Proliferação de Armas Nucleares, em particular, o

direito do uso para fins pacíficos do urânio.

Por último, mas não menos importante, há

a opção para o Brasil se articular politicamente com

outras potências médias e regionais em defesa

de uma mudança de governança global rumo

a um mundo menos assimétrico, com maiores

oportunidades para todos. Nesta perspectiva houve,

já em 2003, a mencionada articulação na OMC, e a

constituição de uma articulação mais permanente

com África do Sul e Índia, dois países democráticos

e potências médias com posições fortes nos seus

respectivos continentes, chamado Foro IBAS (Índia,

Brasil, África do Sul; ou IBSA, na sigla em inglês).

O foro tem funcionado como concertação política,

cooperação setorial (mediante grupos de trabalho

envolvendo ministérios fins) e cooperação para

o desenvolvimento por meio do Fundo Ibas. A

concertação política permitiu ao Brasil e aos demais

membros projeção com mais ênfase no cenário

internacional a respeito de alguns temas da agenda

global, sempre que puderam ser encampadas pelo

grupo, fortalecendo assim sua inserção na política

internacional. Com a Índia, a Alemanha e o Japão,

o Brasil se articulou no G-4 para a reforma do

Conselho de Segurança da Organização das Nações

Unidas (ONU), defendendo na prática um assento

permanente para cada um dos quatro países, mais

um país africano (África do Sul ou Nigéria) e um país

árabe. Nesta área a resistência foi muito grande e,

depois da saída do chanceler Gerhard Schroeder, a

Alemanha diminuiu o seu interesse. De outro lado, a

Índia conseguiu durante a visita do presidente Barack

Obama no final de 2010 o apoio dos Estados Unidos,

dentro do jogo político sino-americano.

O empenho com a ONU deu um novo salto

quantitativo e qualitativo quando o Brasil assumiu em

2004 o comando das tropas da Missão das Nações

Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), dentro

de uma clara perspectiva de latino-americanizar o

processo de pacificação no Haiti, opção que teve

contrapartida de vários outros países sul-americanos

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O Brasil ocupando seu lugar no mundo | Giorgio Romano Schutte

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

que enviaram tropas, em particular Uruguai e Chile.

Esta responsabilidade assumida pelo Brasil provocou

grandes debates internos que refletem em parte a

rapidez da mudança da sua atuação internacional,

que precisa de maior debate e participação da opinião

pública e dos setores organizadas da sociedade

civil. Na prática toda a participação brasileira no

Haiti contribui com este processo. Numa entrevista

concedida à revista Desafios do Desenvolvimento,

do Ipea (maio/junho de 2010), o ministro de

Relações Exteriores, Celso Amorim, comentou que a

participação no Haiti, além de representar um desafio

e uma oportunidade para o Exército brasileiro, que

começou a contar com um centro de excelência

de treinamento militar no Rio de Janeiro (Centro de

Instrução de Operações de Paz), “o próprio Itamaraty

passou a ter melhores condições de refletir sobre

a dinâmica dos conflitos contemporâneos”. Ao

mesmo tempo, o governo brasileiro mobilizou

vários outros ministérios, atuando nas áreas de

segurança alimentar, treinamento profissional, saúde

e infraestrutura, para pôr em prática a sua convicção

sobre a relação estreita entre prevenção de conflitos

e desenvolvimento socioeconômico, chamado pelo

próprio ministro de doutrina brasileira.

Nesse contexto, a crise financeira global veio

em um momento no qual o Brasil estava preparado

internamente, porque a política econômica de orientação

desenvolvimentista implementada desde 2005 tinha

dado frutos e musculatura para o país se defender, com

um mercado interno, políticas sociais e de redistribuição

de renda com força anticíclica e com reservas

internacionais expressivas. E, externamente, porque

o governo brasileiro soube se articular de imediato

com os novos parceiros para provocar uma ampliação

do foro de coordenação da reação mundial à crise. A

transformação do G-7 no G-20 como foro principal

permitiu ao Brasil, ao lado de Argentina, da África do

Sul e dos demais países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia

e China), defender suas posições, por exemplo, com

relação à reforma da governança do Fundo Monetário

Internacional (FMI), que resultou no aumento do seu

poder de voto, que pulou de 18o para 10o lugar. Ou, mais

em geral, incluir na pauta do G-20 assuntos relacionados

aos desafios para o desenvolvimento sustentado, além

da crise financeira, como, por exemplo, a defesa do

trabalho decente. O Brasil reagiu de forma propositiva à

crise, tanto economicamente, gerando já em 2009 cerca

de 1 milhão de postos de trabalho, como politicamente,

se consolidando como um país que não só quer jogar

no grupo especial, mas que de fato está jogando e se

saindo bem.

Sem dúvida, há muitas deficiências a

serem superadas, tanto internamente quanto na

própria articulação internacional. Nos últimos anos,

e mais ainda com os acontecimentos pós-quebra

do Lehman Brothers, o Brasil abriu muitas portas

e muitas portas se abriram para o Brasil, que nem

sempre esteve preparado para ocupar e consolidar as

posições, assumindo inclusive as responsabilidades

que isto implica. Dois temas serão ainda objeto de

grandes debates. Primeiro, o envolvimento com

a defesa dos direitos humanos, assunto no qual

há certa tensão entre não querer um alinhamento

automático com as posições das forças ocidentais,

em particular os Estados Unidos, de um lado, e, de

outro, mostrar respeito pelas trajetórias dos países

colocados no “banco dos réus”. Segundo, e talvez

mais crucial ainda, a relação com a China. Por um

lado, este país é grande parceiro no combate às

assimetrias existentes, mas, por outro, demonstra

potencial de ser a fonte de novas assimetrias que

não necessariamente coincidem com os interesses

do povo brasileiro. Seja como for, não há dúvida de

que a primeira década do século XXI representou

uma mudança que veio para ficar na posição do

Brasil no mundo.

Dr. GIORGIO ROMANO SCHUTTE, professor da

Universidade Federal do ABC (UFABC), bolsista do

Programa Nacional de Pesquisa em Desenvolvimento

do Ipea e ex-assessor especial para assuntos

internacionais da Secretaria-Geral da Presidência da

República.

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Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil tem desempenhado um papel central nos

debates concernentes à política pública do HIV/AIDS.

Seu programa nacional de HIV/AIDS, louvado pela

Organização das Nações Unidas (ONU) como o melhor

de seu tipo no mundo em desenvolvimento, tem servido

de modelo para 31 outros países em desenvolvimento,

assim como para a política global de HIV/AIDS adotada

pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2003.

Em particular, o programa de tratamento antirretroviral

brasileiro tem constituído o aspecto mais inovador,

polêmico e consequente da resposta do país ao HIV/

AIDS. Significativamente, o Brasil foi o primeiro país

a fornecer terapias contra a Aids gratuitamente para

todos os pacientes para os quais tais terapias foram

receitadas. Em 2010, cerca de 200 mil pacientes se

beneficiaram delas no país. No entanto, o tratamento

da AIDS no Brasil tem sido desafiado pelos altos custos

dos medicamentos antirretrovirais patenteados e pela

falta de capacitação tecnológica na produção destes

medicamentos, em especial dos seus princípios ativos.

Direitos à saúde e democraciaA política brasileira de oferecer tratamento para

AIDS tem sido moldada pela interação entre atores

domésticos, estrangeiros e transnacionais. Um

amplo movimento pela reforma do sistema de saúde

e pela democratização, conhecido como movimento

sanitarista, abriu o caminho para o desenvolvimento

desta política, incorporando na Constituição de 1988

uma concepção de saúde como direito do cidadão e

dever do Estado, e estabelecendo o novo Sistema

Único de Saúde (SUS), baseado nos princípios da

integralidade e participação comunitária. Além disso,

o programa brasileiro de tratamento antirretroviral

foi criado a partir da confluência de esforços das

organizações não governamentais (ONGs) locais

que trabalhavam com a AIDS, as quais surgiram no

contexto de democratização do país e apresentaram

diversas ações judiciais exigindo o acesso gratuito e

universal ao tratamento, e de servidores do governo

responsivos às exigências de tais organizações.

Os direitos constitucionais de saúde no Brasil

e a abordagem integral aos serviços de saúde, que

combinaram esforços de tratamento e prevenção

à AIDS, se encontravam claramente em desacordo

com as prescrições de políticas que prevaleciam no

momento e eram defendidas por instituições como

o Banco Mundial, a OMS, o Programa Conjunto

das Nações Unidas para o HIV/AIDS (UNAIDS), a

Organização Pan-Americana da Saúde e a Agência dos

Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional

(USAID), entre outros. Em vez de tentar fornecer o

tratamento antirretroviral, estas instituições instavam

os países em desenvolvimento a concentrar seus

recursos escassos em estratégias de prevenção

supostamente mais custo-efetivas. No entanto, o

Brasil provou que o tratamento antirretroviral pode

ser não apenas viável, mas também altamente bem-

sucedido mesmo em países em desenvolvimento.

A relação custo – benefício do tratamento da AIDS1

O sucesso do programa de tratamento antirretroviral

no Brasil é claramente corroborado pelos dados

epidemiológicos do país relativos ao HIV/AIDS.

Embora a incidência de infecções oportunistas no país

tenha subido acentuadamente no período de 1984 a

1995, ela caiu 80% desde 1996, quando as terapias

triplas começaram a ser distribuídas, até 2001.

1. A não ser quando outra fonte é indicada, os dados apresentados nessa seção são derivados de MELLO e SOUZA, A. M. Defying globalization: effective

self-reliance in Brazil. In: HARRIS, P. G.; SIPLON, P. D. (Eds.). The global politics of AIDS. Boulder-Co: Lynne Rienner Publishers, 2007.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza

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Como resultado, cerca de 358 mil casos de

internações hospitalares relacionadas à AIDS foram

evitadas no país. Surpreendentemente, o número

de tais internações diminuiu, apesar do aumento

substancial do número de pacientes de AIDS até

2002, fazendo com que o Ministério da Saúde

economizasse mais de US$ 1,2 bilhão.

Ademais, os coquetéis antirretrovirais também

têm prolongado e melhorado sensivelmente a vida

das pessoas vivendo com AIDS no Brasil. Um estudo

realizado em todo o país encontrou um aumento de

12 vezes no tempo médio de sobrevida de pacientes

com AIDS a partir dos anos 1980 até 2000, resultado

semelhante aos observados em países de alta renda.

O estudo também mostrou que as terapias triplas

têm permitido que estes pacientes continuassem a

trabalhar e interagir com seus familiares e amigos.2

Assim, após seguir uma curva ascendente, as taxas

de mortalidade por AIDS diminuiram 50% no Brasil

a partir de 1996, apesar do aumento já mencionado

do número de pacientes com a doença. Estimativas

indicam que, de 1994 a 2002, quase 91 mil mortes por

AIDS foram evitadas no país.

Conquanto em 1992 o Banco Mundial tenha

projetado que até 2000 o Brasil teria 1,2 milhão de

pessoas HIV-positivas, o país teve de fato apenas

metade deste número, cerca de 600 mil. De 1994 a

2000, estima-se que a política de tratamento brasileira

tenha evitado mais de 58 mil casos de AIDS. O

tratamento antirretroviral tem, desta forma, também

reduzido significativamente os custos econômicos

gerados pela perda de produtividade dos indivíduos

falecidos ou incapacitados pela epidemia.

A experiência brasileira, portanto, tem

demonstrado que o tratamento antirretroviral é viável

em locais com poucos recursos, abrindo o caminho

para um novo consenso de políticas de saúde. As

estratégias de prevenção e tratamento da AIDS podem

ser ambas implementadas e se reforçam mutuamente,

mesmo nos países em desenvolvimento.

A estratégia de produção doméstica de genéricosA importação de medicamentos antirretrovirais caros e

patenteados drenava recursos do Ministério da Saúde.

Por este motivo, laboratórios públicos brasileiros

começaram a empregar técnicas de engenharia reversa

para descobrir as fórmulas destes medicamentos

e reproduzi-los. É significativo, contudo, que estes

laboratórios permanecem em geral incapazes de

produzir a parte mais cara e que representa o maior

valor agregado destas drogas, qual seja, seus princípios

ativos, os quais têm sido importados principalmente

da Índia, mas também da China.

Não obstante, o tratamento de AIDS no Brasil

tem dependido decisivamente da produção doméstica

de antirretrovirais genéricos como estratégia para

conter os custos do tratamento. Esta estratégia não

apenas permitiu a substituição de importações de

medicamentos anti-AIDS que não eram patenteados,

mas também obrigou as empresas multinacionais

farmacêuticas a conceder grandes descontos nos

preços de medicamentos patenteados a fim de evitar

que os seus direitos de monopólio fossem derrubados

pelo licenciamento compulsório.

Todos os produtos que tinham sido

comercializados em qualquer lugar do mundo antes

de 14 maio de 1997, quando a Lei de Propriedade

Industrial brasileira entrou em vigor, tornaram-se

para sempre inelegíveis para o patenteamento

no país. Como resultado, dez medicamentos anti-

AIDS mantiveram-se sem proteção patentária

no Brasil e puderam ser legalmente produzidos.

Fundamentalmente, uma vez que o Ministério

da Saúde começou a substituir as importações

caras com equivalentes genéricos nacionais, os

preços dos medicamentos antirretrovirais não

patenteados caíram em média 80,9% no Brasil

entre 1996 e 2001 (figura 1). Até 2009, nove dos

19 medicamentos anti-AIDS oferecidos no Brasil

foram fornecidos domesticamente.3

2. MARINS, J. R. P. Dramatic improvement in survival among adult Brazilian AIDS patients. AIDS, n. 11, p. 1675-1682, 2003.

3. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de DST, AIDS e hepatites virais. Brasília.

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Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

A produção doméstica de genéricos

também foi decisiva para a redução dos preços

dos antirretrovirais patenteados, visto que ela

se tornou um elemento crucial de aumento do

poder de barganha do governo brasileiro com

relação às multinacionais farmacêuticas. De

fato, tal produção forneceu ao Ministério da

Saúde uma fonte alternativa mais barata de

medicamentos antirretrovirais, permitindo-lhe fazer

ameaças críveis de licenciamento compulsório.

As multinacionais farmacêuticas inicialmente

mostraram-se dispostas a conceder descontos

significativos para estes medicamentos, a fim de

não perder seus direitos de monopólio, obtidos por

meio do patenteamento. A produção doméstica

de genéricos também forneceu informações

fundamentais sobre os custos de produção dos

medicamentos antirretrovirais, as quais permitiram

ao governo negociar reduções de preços para

estes medicamentos de forma mais eficaz. Como

resultado de tais reduções de preços, os gastos

do Ministério da Saúde com terapias anti-AIDS

diminuiu de 1999-2002, ainda que o número de

doentes tratados tenha continuado a aumentar

substancialmente (Mello e Souza, 2007, p. 46).

Desafios à sustentabilidade do programaA sustentabilidade do programa do Brasil de

tratamento da AIDS permanece em risco, devido

à falta de capacitação tecnológica do país na

produção farmacêutica e às dificuldades de

importação dos medicamentos antirretrovirais

necessários para terapias de segunda e terceira

gerações, no contexto da implementação do

Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de

Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio

(conhecido pela sigla em inglês TRIPS). Uma vez

que estes medicamentos tratam, mas não curam,

o HIV/AIDS, eles precisam ser tomados por um

período indeterminado; e um número crescente

de pacientes necessita migrar de terapias

antirretrovirais ao desenvolver resistência viral.

Isto significa que o Ministério da Saúde cada vez

mais necessitará oferecer terapias de segunda e

terceira gerações, baseados em medicamentos

novos que são ou serão patenteados no Brasil.

Figura 1Custos de antiretrovirais não patenteados no Brasil (1996-2007)

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Coquetéis para todos: as realizações e desafios do tratamento da AIDS no Brasil | André de Mello e Souza

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A estratégia brasileira de negociar reduções

de preços com multinacionais farmacêuticas

perdeu muito de sua eficácia. Os resultados destas

negociações têm sido cada vez mais insatisfatórios,

refletindo o fato de que as ameaças do governo

de licenciamento compulsório se tornaram menos

críveis. Exemplos incluem os acordos com a empresa

americana Abbott sobre o preço do antirretroviral

Lopinavir, que foram revistos em face de fortes

críticas de grupos organizados da sociedade civil e

podem levar o governo a pagar mais que o preço de

mercado deste medicamento, que já é relativamente

obsoleto e cuja patente irá expirar em breve.

O licenciamento compulsório do antirretroviral

Efavirenz, patenteado pela empresa americana Merck,

também revelou a crescente dificuldade do Ministério

da Saúde de obter descontos satisfatórios nos preços

dos antirretrovirais importados. O princípio ativo do

Efavirenz é produzido atualmente por um consórcio

privado brasileiro, mas o atraso de oito meses no

início desta produção constitui mais uma evidência da

falta de investimentos na capacitação tecnológica do

setor farmacêutico brasileiro.

Como resultado da perda de poder de

barganha do governo em relação às multinacionais

farmacêuticas, os custos do tratamento da AIDS

no Brasil aumentou significativamente desde 2003,

superando o aumento do número de doentes

tratados. Em 2006, as despesas com antirretrovirais

representaram 80% das despesas do Ministério

da Saúde com medicamentos. Enquanto em 2000

metade do total de antirretrovirais comprados pelo

ministério foi produzido domesticamente, em 2007

os genéricos de laboratórios públicos nacionais

representaram apenas 20% das compras. Segundo

estimativas recentes, o produto interno bruto (PIB)

brasileiro terá de crescer a uma taxa anual de cerca de

6% para sustentar a política do país de tratamento da

AIDS, sem que se cortem despesas em outras áreas.4

Ademais, desde 2005 os fornecedores

de princípios ativos genéricos para o Brasil, e

especialmente a Índia, adotaram leis de patentes

mais rígidas em concordância com o TRIPS,

comprometendo o comércio internacional de

medicamentos. Felizmente, os antirretrovirais de

segunda geração não são patenteados na Índia,

mas os de terceira geração muito provavelmente o

serão. Embora existam opções legais disponíveis às

quais o Brasil pode recorrer para a importação de

medicamentos antirretrovirais patenteados, estas

são muitas vezes complicadas e dispendiosas, e

podem depender da vontade política das empresas

farmacêuticas e autoridades indianas. Como

resultado, os custos crescentes dos medicamentos

anti-AIDS patenteados só podem ser efetivamente

controlados por meio de nova e contínua capacitação

tecnológica da indústria farmacêutica brasileira.

ANDRÉ DE MELLO E SOUZA é doutor em ciência

política pela Universidade de Stanford e Técnico de

Planejamento e Pesquisa do Ipea.

4. GRANGEIRO, A. et al. Sustentabilidade da política de acesso a medicamentos antirretrovirais no Brasil. Revista de Saúde Pública, n. 40, p. 60-9, 2006.

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Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O Brasil é um país abençoado entre as potências

emergentes mundiais. Ascende em uma região

particularmente pacífica, composta em sua maioria

por regimes democráticos. Se comparada com

o Leste Asiático, com a Ásia Meridional, com o

Oriente Médio e com a África, a América Latina –

em particular a América do Sul – desfruta de uma

condição ímpar, por não existir, na área, competição

geopolítica. Esta é uma das razões pelas quais nem

o Brasil nem qualquer um de seus vizinhos da

América Latina possuem armas nucleares. A Índia,

como o Brasil, é uma potência emergente com uma

democracia estável, mas está localizada em uma

região bastante perigosa, e tem um longo histórico

de rivalidades com o Paquistão e a China – motivo

pelo qual os três países dotaram-se de armas

nucleares. Em suma, o desenvolvimento brasileiro

ocorre em um ambiente político e geopolítico

singularmente favorável.

O Brasil deveria capitalizar essas condições

positivas ao mapear sua estratégia para o futuro. Sem

as amarras das limitações políticas e estratégicas

enfrentadas por outras potências emergentes, o Brasil

vê-se livre para desempenhar uma função de liderança

na formulação da nova ordem internacional em gestação.

Seria conveniente que o Brasil, Estado em ascensão,

aproveitasse esta oportunidade para atuar como ponte

na transição entre a ordem vigente – dominada pelo

Ocidente – e uma ordem em que o poder e a autoridade

sejam distribuídos de maneira mais ampla.

Este artigo estabelece alguns princípios

destinados a orientar a evolução da política externa

do Brasil à medida que o país continue a crescer.

De uma forma geral, o Brasil deveria estar atento

à necessidade de manter o equilíbrio entre seus

recursos e compromissos. É recomendável que o

país busque um caminho paulatino e prudente que

amplie a influência do país e evite os riscos inerentes

a uma ambição exacerbada.

A importância da estratégiaAs potências emergentes devem desenvolver tanto

sua capacidade política e suas instituições quanto os

recursos intelectuais necessários para a formulação

e implementação de uma estratégia de alcance

global significativa. A vontade política e as escolhas

estratégicas intencionais que orientam os países

emergentes não surgem naturalmente de moto

próprio; precisam ser cultivadas e alimentadas.

Os Estados Unidos, por exemplo, já eram

uma grande potência econômica bem antes de aspirar

a uma abrangência global. Foi somente na década de

1890 que o país começou, de forma intencional, a

transformar seus recursos materiais em influência

geopolítica. Tal transformação somente foi possível

devido a mudanças institucionais: o governo federal

reforçou seus poderes com relação aos estados

autônomos, e o Poder Executivo reforçou sua posição

em relação ao Congresso. O começo do que passou

a ser chamado de “presidência imperial” permitiu

que os presidentes norte-americanos McKinley e

Roosevelt, e os demais que se seguiram, alocassem

recursos para construir uma frota naval e desenvolver

uma formidável estratégia de engajamento global.

Durante o século XX, os Estados Unidos prosseguiram

na edificação da ampla e profunda estrutura de

segurança nacional que existe atualmente, da qual o

Departamento de Estado, o Pentágono e o Conselho

de Segurança Nacional são suas manifestações mais

visíveis. Conta-se ainda com uma base formada por

universidades, instituições de ensino de políticas

públicas e grupos de reflexão.

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan

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A lição a ser assimilada pelo Brasil consiste

em investir e desenvolver o capital humano e a

infraestrutura institucional essenciais para orientar

e sustentar a ascensão brasileira ao status de ator

mundial. Isto significa a alocação de novos recursos

para ampliar as instituições de ensino superior

destinadas a formar tanto diplomatas quanto analistas

políticos e especialistas em relações internacionais.

O Brasil deveria também continuar a investir em sua

força diplomática e em sua representação no exterior.

Além disso, deveria ainda contemplar a necessidade

de estabelecer mudanças em suas estruturas

decisórias e consultivas, para aprimorar a formulação

e a implementação de sua estratégia nacional. Como

ficou claro com o exemplo dos Estados Unidos, as

instituições são fundamentais.

O poder começa em casaA força de um país reside em uma combinação de

capacidade econômica e coesão política. A coesão

política e a boa governança são importantes para

transformar a capacidade material em poder brando

(soft power) e em poder pesado (hard power). A

China, por exemplo, atingiu taxas de crescimento

bem mais elevadas que a Índia, em parte porque um

Estado autocrático – sem as idas e vindas da política

democrática – permitiu uma governança mais focada,

competente e hierárquica. O resultado foi uma

política inteligente que maximizou o crescimento e

reduziu enormemente a pobreza. A China também

considerou o crescimento econômico interno sua

prioridade máxima, e ajustou sua política externa

adequadamente. Por sua vez, a Índia enfrenta uma

situação política mais complicada e fragmentada.

Suas decisões muitas vezes objetivam satisfazer

uma ampla gama de eleitorados domésticos, mais

que fortalecer o crescimento. Não se trata de

enaltecer, com estes comentários, a autocracia, mas

de reforçar o grau de ação de uma sólida política

doméstica – principalmente no campo econômico –,

essencial para manter um crescimento constante do

poder do Estado.

O Brasil, portanto, deve continuar a

concentrar sua atenção na sua frente interna,

buscando uma combinação entre uma sólida

política macroeconômica, a redução da pobreza

e o crescimento equilibrado em todos os setores

de sua economia. Este foco na área doméstica é

particularmente importante considerando-se que os

países emergentes que experimentam um rápido

crescimento econômico estão propensos à prática

de excessos estratégicos que são, muitas vezes, um

subproduto do deslocamento social. As mudanças na

hierarquia social, provocadas pelo desenvolvimento

econômico interno, podem levar ao “imperialismo

social” – recurso empregado com políticas externas

agressivas como forma de consolidar o controle

interno por meio do populismo e do nacionalismo.

A Alemanha, antes da Primeira Guerra

Mundial, foi um exemplo bastante elucidativo desse

fenômeno. Da unificação em 1871 até meados dos

anos 1890, o país seguiu uma estratégia sustentada e

ponderada, que evitava deliberadamente a rivalidade

direta com seus vizinhos. Ao final dos anos 1890,

contudo, um conflito interno contrapondo o aço e

o centeio (os industrialistas e a aristocracia rural)

contra a classe operária ascendente levou o governo

a lançar mão da política externa como arma de

manipulação doméstica. O rápido desenvolvimento

naval, combinado à propagação de uma ideologia

nacionalista, conseguiu aglutinar o país em torno

da weltpolitik. Entretanto, a virada na estratégia

global alemã abalou o equilíbrio de poder na Europa,

enredando os líderes do país na sua própria propaganda

nacionalista e arrastando as grandes potências na

direção da Primeira Guerra Mundial. O crescimento

pacífico da Alemanha foi vítima de uma estratégia

destrutiva gerada pelas disfunções políticas internas.

Apesar do impressionante avanço econômico

do Brasil, o país ainda se depara com diversos

desafios internos, como a redução da desigualdade

econômica e da pobreza, a distribuição mais justa da

posse da terra, e a garantia de uma representação

política equilibrada de todas as classes e raças. O

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Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

rápido crescimento econômico, a despeito de seus

benefícios, tem o potencial de trazer em sua esteira

o deslocamento social e o populismo, além do

imperialismo social que muitas vezes os acompanha.

Embora experimentando um forte desenvolvimento

econômico, o Brasil deverá resguardar-se das

tentações de exportar tensões políticas internas –

ou seja, usar a política externa como ferramenta da

política nacional.

A centralidade da integração regionalAs condições estratégicas positivas que cercam o

crescimento brasileiro originam-se em grande parte

do bem-sucedido processo de integração regional

que ocorreu durante as três últimas décadas.

Brasil e Argentina começaram a trilhar a senda da

reaproximação no início de 1979, abrindo caminho

para o lançamento e o desenvolvimento do Mercado

Comum do Sul (Mercosul) durante os anos 1990.

Caso este esforço em prol da integração regional

falhasse, o crescimento brasileiro provavelmente

traria consequências consideráveis para a América

do Sul, incentivando a Argentina e outros países

da região a unirem-se contra o poder do Brasil. O

desenvolvimento de países como China, Índia e

Turquia está causando uma incerteza geopolítica

considerável precisamente porque estes países

estão crescendo em regiões ainda assoladas por

perigosas rivalidades.

Embora os horizontes estratégicos do Brasil

estejam se expandindo no mesmo ritmo de sua força

internacional ascendente, o país deve continuar a

investir tempo e energia em sua integração regional.

A transição de uma interdependência econômica,

proporcionada pelo Mercosul, para uma cooperação

política e estratégica mais profunda, possibilitada pela

Unasul, constituiriam um importante passo à frente.

A União Europeia (UE), afinal, teve tanto sucesso

na promoção de uma paz duradoura na Europa por

ser muito mais que um bloco comercial; juntamente

com a Organização do Tratado do Atlântico Norte

(Otan), a UE provê a estrutura para o gerenciamento

coletivo da segurança na região. Sem dúvida, a

importância crescente do Brasil trouxe-lhe os meios

para que se torne um ator no Oriente Médio e em

outras regiões muito além das suas fronteiras. Mas

a consolidação da paz e da prosperidade na América

do Sul deve continuar a ser considerada prioridade

máxima. Somente a continuidade da estabilidade e

da colaboração na região fará com que o Brasil seja

capaz de projetar sua voz de forma efetiva e defender

seus interesses em regiões mais distantes.

O exercício da limitação estratégicaQuando se trata do escopo de influência internacional

e da ambição internacional das potências emergentes,

menos é mais. Os países emergentes que agem com

prudência e falam com moderação terão um crescimento

menos problemático e turbulento que os países que

adotam uma atitude de intimidação e truculência.

Bismarck foi tão bem-sucedido em sua

forma de conduzir o desenvolvimento inicial da

Alemanha porque refreou a ambição do país,

concentrando-se no crescimento econômico e na

influência diplomática, em detrimento do poderio

militar. Mostrou-se contrário à aquisição de colônias,

argumentando que o império de além-mar desviaria

a Alemanha de sua vocação continental, e provocaria

uma desnecessária rivalidade com a Grã-Bretanha

e a França. Bismarck foi vitorioso em aumentar a

influência germânica, ao transformar o país no eixo

diplomático da Europa. Seus sucessores pagaram

um alto preço por fazerem exatamente o contrário.

Propagaram mitos nacionalistas dentro do país,

e lançaram-se em um fortalecimento militar que

levou a Alemanha a um isolamento e a uma guerra

não intencional entre potências. O exercício de

limitação estratégica funcionou positivamente para

a Alemanha, ao passo que a ambição sem limites

levou o país à derrocada.

O histórico diplomático da China também

deixa suas lições. Durante a década passada, a

China concentrou-se no seu crescimento interno,

e praticou uma política externa circunscrita; seu

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Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan

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crescimento, consequentemente, encontrou pouca

resistência. Mais recentemente, a China adotou uma

postura mais robusta, e passou a usar um tom mais

contundente no que diz respeito aos seus “interesses

essenciais” no Mar do Sul da China, enfrentando o

Japão em torno de uma disputa de ilhas, e recusando-

se a isolar a Coreia do Norte mesmo após esta ter

afundado um navio da Coreia do Sul e bombardeado

uma ilha sul-coreana. A reação internacional foi

imediata. Os Estados Unidos reforçaram sua rede

de alianças no Leste da Ásia, e lançaram uma nova

parceria estratégica com a Índia. O Japão anunciou

a mudança de seu foco estratégico militar, tirando o

foco do Norte e passando a concentrar suas atenções

na ameaça chinesa às suas ilhas meridionais. A

diplomacia mais agressiva da China causou mais

danos que benefícios à sua posição estratégica.

Fica para o Brasil a lição de que é preciso

assegurar que, mesmo pretendendo exercer alguma

influência internacional proporcional ao seu peso, é

preciso agir com cautela e ponderação. Brasília deve

concentrar-se em medidas destinadas a contribuir

para a provisão de bens públicos e a reforçar uma

ordem ditada por regras, evitando ações que

pareçam conter intenções provocadoras ou destinar-

se a proveito próprio. Por exemplo, a iniciativa entre

Brasil e Turquia de estabelecer um acordo com o

Irã sobre a exportação de suas reservas de urânio

foi uma atitude construtiva. Os Estados Unidos e a

UE deveriam ter reagido de maneira mais favorável

e utilizar o fato como base para futuras discussões.

No entanto, a aproximação cordial do presidente

Lula com o presidente iraniano Ahmadinejad foi um

equívoco. Brasília parecia acolhê-lo no momento em

que a comunidade internacional buscava reforçar

o isolamento do regime. A medida pode ter sido

destinada a reforçar as credenciais do Brasil como

ator independente, mas causou mais danos que

benefícios à posição internacional do país. Conforme

deixaram claro documentos divulgados pela

organização Wikileaks, até mesmo no Oriente Médio

Ahmadinejad está longe de ser um líder respeitado.

Aproximando países desenvolvidos e em desenvolvimento Graças a uma situação geopolítica positiva, a um

governo democrático estável e ao seu histórico

de boas relações com países desenvolvidos e

em desenvolvimento, o Brasil poderia buscar a

construção de uma ponte entre os dois grupos.

Brasília deveria alinhar-se, quando apropriado,

com o Ocidente, e, quando apropriado, com seus

parceiros do BRIC e outros grupos de nações em

desenvolvimento. Em lugar de procurar manter-

se em um determinado papel, ou de aderir a

uma determinada ideologia, ao Brasil seria mais

pertinente orientar-se segundo uma agenda

pragmática, voltada para a resolução de problemas.

Neste particular, o Brasil deveria agir como

um gerador de normas – um país que colabora

de forma consciente na recriação de uma ordem

internacional fundamentada em regras. Neste

ponto da transição para um sistema internacional

pós-ocidental, os países emergentes estão bem

preparados para expressar claramente aquilo que

não desejam – um sistema internacional sob a

hegemonia do Ocidente –, mas ainda não estão

preparados para expressar aquilo que desejam –

em outras palavras, quais as regras que poderiam

conduzir a uma ordem pós-ocidental. O Brasil

encontra-se em uma posição particularmente

favorável para ajudar a preencher essa lacuna. É

um país que, além de contar com a credibilidade

popular – “a credibilidade das ruas” – das

potências emergentes, possui uma economia

aberta e instituições democráticas que funcionam

como poderosas credenciais entre as potências

ocidentais.

Antes do engajamento comercial, a diplomaciaÉ consenso que a integração comercial é um

ingrediente fundamental para a paz, e que a

interdependência econômica leva à estabilidade

geopolítica. Este consenso, entretanto, está errado.

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Traçando rumos para a ascenção do Brasil | Charles A. Kupchan

Traçando novos rumos: o Brasil em um mundo multipolar

O principal ingrediente para a construção da paz é a

diplomacia, e somente depois que os diplomatas

concluírem sua tarefa a integração comercial poderá

ajudar a selar o acordo. A experiência do Brasil confirma

esta premissa. A reaproximação com a Argentina

ocorreu primordialmente em virtude da diplomacia;

a integração comercial manteve-se bastante limitada

durante os anos críticos das trocas, do diálogo e da

construção da confiança. Somente após as relações

entre Brasil e Argentina atingirem um nível muito mais

positivo o Mercosul entrou em ação e conseguiu

intensificar a interdependência econômica.

O Brasil deve forjar a sua estratégia regional

e internacional seguindo essa linha. A expansão do

engajamento econômico é importante em si mesma;

ela facilitaria o crescimento brasileiro e contribuiria

para a prosperidade mundial. Mas a estratégia de

engajamento adotada pelo Brasil deve conter uma

alta dose de iniciativa diplomática. Nas Américas, no

Oriente Médio e em outras regiões, o Brasil deverá

capitalizar seu crescente nível de poder e influência para

auxiliar na solução de conflitos difíceis de negociar, e

evitar que novos conflitos venham a ocorrer. O efetivo

desempenho desta função ajudaria a marcar o advento

do Brasil como grande potência responsável.

CHARLES A. KUPCHAN é professor de relações

internacionais na Georgetown University e pesquisador

sênior no Council on Foreign Relations em Washington

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CoordenaçãoCláudio Passos de Oliveira

SupervisãoMarco Aurélio Dias Pires

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RevisãoLuciana Dias Jabbour

Reginaldo da Silva Domingos

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Leonardo Moreira de Souza (Estagiário)

EditoraçãoBernar José Vieira

Claudia Mattosinhos Cordeiro

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Renato Rodrigues Bueno

Luís Cláudio Cardoso da Silva

CapaJeovah Herculano Szervinsk Júnior

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