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52 CAPÍTULO III AS GENTES DO DOURO E A SUA RELIGIOSIDADE É fácil estabelecer laços com a História e com as gentes do Douro; no campo, no rio ou na serra, as gentes do Douro partilham com os visitantes a calorosa convivialidade duriense e por vezes até os segredos da cozinha regional e doçaria conventual 1 . É, por isso, fácil referenciar algumas características comuns às gentes que modificaram e habitam estas terras. A franqueza e a hospitalidade são as mais referidas, sem contudo esquecer a inteireza de carácter, a seriedade e a fidelidade à palavra dada. Convém, contudo, realçar duas características, ainda que, à primeira vista, pareçam contraditórias, mas que estas gentes sabem harmonizar: o individualismo e o comunitarismo. Se, por um lado, se bastam a si próprios, por outro associam-se ao parente, ao vizinho, ao amigo, a todo o povo do lugar, na criação de estruturas comunitárias que respondam com maior eficácia a determinadas necessidades 2 . 1 – A Intervenção Humana Foi o factor humano que interveio na transformação daquilo que podemos chamar matéria-prima física original e que imprimiu carácter a cada um dos tipos de paisagem. É uma paisagem marcada pela acção do homem, que a poder de braço arroteou aqueles montes, transformando-os num autêntico jardim agrário, que muda de cor com as estações do ano. 1 Daí que se ouça muitas vezes falar em: lagosta S. Silvestre, lulas com molho divinal, bacalhau de Natal, bifes de S. Valentim, cabrito de Natal, papos de Anjo, toucinho do céu, orelhas de abade, ovos de Páscoa, bolo de convento, marmelada do convento, súplicas, pastéis de S. Clara, celestes. 2 O forno do povo, a eira, o granjeio, a exploração de terras comuns, certas formas de entre- ajuda.

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CAPÍTULO III

AS GENTES DO DOURO E A SUA RELIGIOSIDADE

É fácil estabelecer laços com a História e com as gentes do Douro; no

campo, no rio ou na serra, as gentes do Douro partilham com os visitantes a

calorosa convivialidade duriense e por vezes até os segredos da cozinha

regional e doçaria conventual1. É, por isso, fácil referenciar algumas

características comuns às gentes que modificaram e habitam estas terras. A

franqueza e a hospitalidade são as mais referidas, sem contudo esquecer a

inteireza de carácter, a seriedade e a fidelidade à palavra dada.

Convém, contudo, realçar duas características, ainda que, à primeira

vista, pareçam contraditórias, mas que estas gentes sabem harmonizar: o

individualismo e o comunitarismo. Se, por um lado, se bastam a si próprios,

por outro associam-se ao parente, ao vizinho, ao amigo, a todo o povo do

lugar, na criação de estruturas comunitárias que respondam com maior

eficácia a determinadas necessidades2.

1 – A Intervenção Humana

Foi o factor humano que interveio na transformação daquilo que

podemos chamar matéria-prima física original e que imprimiu carácter a cada

um dos tipos de paisagem. É uma paisagem marcada pela acção do homem,

que a poder de braço arroteou aqueles montes, transformando-os num

autêntico jardim agrário, que muda de cor com as estações do ano. 1 Daí que se ouça muitas vezes falar em: lagosta S. Silvestre, lulas com molho divinal, bacalhau de Natal, bifes de S. Valentim, cabrito de Natal, papos de Anjo, toucinho do céu, orelhas de abade, ovos de Páscoa, bolo de convento, marmelada do convento, súplicas, pastéis de S. Clara, celestes. 2 O forno do povo, a eira, o granjeio, a exploração de terras comuns, certas formas de entre-ajuda.

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Pelo muito que se tem dito e escrito sobre esta região, apercebemo-nos da

sua importância, como a mais impressionante epopeia do mundo do trabalho,

como habilmente descreve António Barreto:

“Basta ver a enorme bibliografia existente sobre o Douro e sobre o vinho do Porto para se perceber que algo de muito importante esteve em jogo durante muito tempo. O século XIX, em particular, produziu centenas de livros, brochuras, panfletos, artigos e jornais, a traduzirem viva polémica e muito fortes interesses. Com efeito, muito esteve em causa nesse período: o liberalismo económico e o intervencionismo do estado; os impostos e as receitas do comércio externo; a luta entre o vinho do Douro e os vinhos das outras regiões; o aceso à actividade comercial ou a protecção dos que já a exercem; os interesses dos nacionais e os privilégios dos estrangeiros”3.

Amizades, sabores e aromas perduram no tempo; dilui-se a fronteira

entre o passado e o presente, entre a história medieval, as lendas, o património,

a paisagem, o convívio e a boa disposição, sempre presente nas hospitaleiras e

tradicionais refeições de cabrito assado com batatinhas e arroz de forno, ou do

arroz de lampreia, mas sempre, sempre acompanhadas pelo vinho da mais

antiga região demarcada do mundo.4 Como diz António Barreto, aqui nada foi

fácil:

«No Douro, os homens desbravaram o mato, subiram as encostas, aterraram e surribaram. Desfizeram a pedra, fabricaram a terra, levantaram muros, construíram milhares de quilómetros de socalcos, serra acima, vale adentro. Quebraram a rocha, cavaram a terra, saltaram os rios, procuraram água e marcaram sítios para viver. Plantaram, enxertaram, podaram as vides, colheram as uvas, pisaram, trasfegaram, transportaram, fizeram o vinho (...). E o vinho fez uma região, fez os solares, as quintas e os casebres. Fez os lagares e os cardenhos; as pipas e os rabelos; os ricos e os pobres. Nada de importante, no Douro, é independente do vinho.»5

3 BARRETO, António, Douro, Lisboa, Edições Inapa, 1993, p. 25. 4 http://www.douronet.com/dourogeral/valedodouro/historia.html em 04-07-2002. 5 BARRETO, António, Douro, Lisboa, Edições Inapa, 1993, p. 10.

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João de Araújo Correia, querendo dar a ideia da grande epopeia

executada pelos homens fortes que “conheciam o Doiro palmo a palmo, a

íngreme dureza das suas encostas, o peso dos cestos vindimos6, a luz mortiça

dos lagares”7, quis, por seu lado, comparar o duriense com o holandês que,

subtraiu ao mar a terra que o sustenta, enquanto que o duriense a arrancou

palmo a palmo a uma natureza tão brava como o mar.

É sobretudo Miguel Torga quem, na sua obra, mostra esses homens sem

desfigurações e deixa à vista homens universais com um sangue quente que

referve, com um calor humano cuja irradiação é impossível não sentir. Em

especial, nos “Contos” faz uma representação da gente esforçada e firme que

não recua perante a hostilidade da natureza. Esta gente que ele descreve como

que a querer autopsiar a sua natureza psicológica:

“Incapazes de uma obediência imposta de fora, os habitantes da terra apenas consideram naturais e legítimos os imperativos da própria consciência. O eco duma ordem estranha à sua harmonia interior desliza pela crosta das almas sem as perturbar. As mais altas dignidades de além fronteiras nada mais representam do que puras expressões nominais de valores abstractos. No pormenor, no que não é seiva de ninguém, dão sentenças o Regedor e o Senhor Abade, que, afinal, pregam editais nas portas e sermões nas igrejas...”8

Para evidenciar o seu carácter, aborda os instintos do homem originário

em toda a sua força e brutalidade. Estas pessoas descritas nos seus

personagens e que estão habituadas ao perigo, à tenacidade, à angústia e à

astúcia são retratadas assim:

“Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes. Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Fiéis à palavra, amigos do seu amigo,

6 Os cestos vindimos representaram, para muitas gerações que o utilizaram, um esforço sobre-humano; nesses cestos de madeira transportavam às costas mais de 70 quilos de uvas. São o símbolo do esforço e do árduo trabalho que representavam as vindimas no Douro 7 TORGA, Miguel, Vindima (edição, tendo por base o texto da 5ª. edição), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001, p. 22. 8 TORGA, Miguel, Portugal, 3ª. ed. revista, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, pp. 29-30.

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valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a voz confiada nos responde: – Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira”9.

Por ocasião do II Congresso Trasmontano, em Setembro de 1941,

António Alexandre de Matos caracterizava assim os trasmontanos e durienes,

salientando a sua coragem, franqueza e hospitalidade:

“Nas terras de Trás-os-Montes de tão vastos horizontes

enquadradas p’lo Marão mai-lo Douro vinheirão, a qualquer hora do dia ou já noite velha até, p’ra fujir à ventania, à chuva, à neve, ao trovão d’inverneira ou calmaria, a Nobreza, o Clero e o Zé topam sempre albergaria! Seja p’ra roupa enxugar em volta de uma fogueira, desalforjar o farnel e o sono escabecear, carinhosa, hospitaleira, sabe a macio frouxel a rija pedra do lar; seja para dar ração de feno fresco ou de grão, matar a sêde à montada em águas claras das fontes das serras de além-Marão... nas brenhas de Trás-os-Montes, inda que a vida vá torta, todos encontram poisada! Passante que bata à porta e brade rijo: – Ó DA CASA! – ouve de dentro: – LÁ VAI !... – Sente gente pôr-se a pé,

9 Idem, Ibidem. pp. 36-37.

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saltar do catre, num ai ir acender a candeia ao fôgo vivo da brasa... alçar a barra da tranca, abrir a porta com fé e convidar, em voz cheia, estremunhada, mas franca: FAZ FAVOR.... ENTRE QUEM É...”10

Segundo Torga, “estes homens não têm medo senão da pequenez...

gastam cem contos numa pedreira a fazer uma horta... cavam a vida inteira. E,

quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega

honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia”11. Quando emigram

“mourejam como leões, fundam centros de solidariedade humana por toda a

parte, deixam um rasto luminoso por onde passam”12. Por isso é que ele dá um

certo realce à sua posição privilegiada:

“Rico ou pobre, tosco ou civilizado, cosmopolita ou não, o transmontano sabe que apenas uma oportunidade lhe foi dada na vida: ser transmontano. Pode cobrir-se de todos os disfarces, tentar desfigurar-se com as tatuagens mais bizarras. No cerne, no cerne, a verdade dele é só uma: ser um caibro no tecto de Portugal”13.

Mais do que a paisagem e as condições climáticas desta região, foram as

relações humanas, genuínas, destas gentes que atraíram, primeiramente, os

ingleses e continuam a atrair, actualmente, milhares de turistas. Continuam de

portas abertas, para receber com refinado agrado e gentileza e até

carinhosamente; é que a paisagem e as gentes do Douro são arrebatadoras.

Com um turbilhão de contrastes, António Barreto enaltece o esforço desta

gente dizendo:

“No Douro, a Natureza foi pródiga ao dar o sol, o xisto, o rio e o abrigo das serras. Sem tudo isto, não haveria região nem vinho. Mas

10 MATOS, António Alexandre, Trás-os-Montes, Lisboa, 1941, pp. 19-20. 11 TORGA, Miguel, Portugal, 3ª. ed. revista, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, pp. 37-38. 12 Idem, Ibidem, pp. 37-38. 13 TORGA, Miguel, Traço de União, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2 1969, p.71.

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também foi madrasta quando deu o cascalho, as encostas, a rudeza e a solidão. No Douro, para fazer vinho ou, simplesmente, para viver, tudo é difícil, tudo exigiu esforço”14.

Também, no dizer de Torga, “a vida destas pessoas tem sido uma

ladainha de dores, um rosário de desilusões; sentem-se um Cristo e um

Cireneu, mas com uma alma franca, emotiva, capaz de valer ao seu

próximo”15. Numa outra passagem fala assim destas gentes, realçando a

exploração a que estiveram sujeitos:

“muita paciência têm tido eles! Onde é que se viu uma exploração tão ignóbil como a que se passa no Doiro? Nem salários decentes, nem comida suficiente, nem alojamentos razoáveis... Nada! Um homem a alombar o dia inteiro, para chegar ao fim e receber uns ridículos vinténs que não chegam sequer para encher de broa a barriga dos filhos”16.

Em 19 de Agosto de 1979, quando convidaram Torga para falar sobre o

homem duriense, ele descreveu, nessa “via-sacra” dolorosa, o sofrimento do

homem inserido no mundo rural, e ao mesmo tempo auto-retrata-se como um

escritor profundamente humano que vive os momentos mais dramáticos destas

gentes:

“E aqui estou a meditar em voz alta na história trágico-telúrica desse herói singular, escrita nas fragas com a tinta do suor. Herói modesto, despretensioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso... E quem bebe o cálice de vinho fino, julga que o néctar doirado mana das cepas por obra e graça da mãe natureza... É a própria realidade, na sua crueza, que grita aos quatro ventos que o milagre é feito por quem, na fome e na miséria, mal a filoxera acabava de o prostrar, se ergueu de ferro e pá na mão a repor os mortórios, mal a trovoada esbarronda a parede do socalco a levanta de novo, mal uma queima destrói a novidade começa a granjear a vindoira. Sem essa pertinácia obstinada, que a força dos elementos não vence nem a

14 BARRETO, António, Douro, Lisboa, Edições Inapa, 1993, p. 12. 15 TORGA, Miguel, Orfeu Rebelde, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2 1970, p. 24. 16 Idem, Vindima, p. 72 .

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incompreensão dos poderes desanima, secariam as cubas nos armazéns de Gaia... É o obreiro do prodígio que deve ser chamado para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Santas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro de pedra da nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem. O homem duriense”17.

Por isso os naturais do Douro, homens de antes quebrar que torcer, não

se deixam vergar ante os problemas que lhes surgem: a filoxera, o míldio;

enfrentam “uma região de difícil acesso, hostil, agreste, isolada”18, enfrentam

crises19 frequentes, incríveis injustiças, concorrência interna desleal, enfrentam

uma natureza que, apesar de ser generosa, lhes dá, frequentes vezes, “uma

geada que queimava a vinha, uma trovoada que destelhava a casa”20, granizo,

temporais que provocam um dilúvio, cheias, enxurradas, destroços,

devastação, enfrentam um rio que “dá a vida e dá a morte”21, acidentes de

navegação, as cheias22, as intempéries... “cavam de sol a sol, comem um caldo,

mas são felizes”23. Perante todas as adversidades, perante este “naufrágio

cósmico”24, quando se sentem exaustos, quando lhes restam poucas forças,

17 TORGA, Miguel, Diário XIII, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, pp. 1304-1305. 18 Idem, Orfeu Rebelde, p. 25. 19 Crises da lavoura, das instituições ou quando as casas exportadoras não compram os vinhos à lavoura. 20 TORGA, Miguel, A Criação do Mundo (sexto dia), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001, p. 501. 21 BARRETO, António, Douro, Lisboa, Edições Inapa, 1993, p. 36. 22 “Bem piores do que os acidentes de navegação, eram as cheias que, periodicamente, desolavam o vale, destruíam o que pairava ou vivia perto do rio e faziam entrar a água pelas casas adentro. Reputadas ficaram as terríveis cheias de 1727, 1739, 1779, 1788, 1823, 1860, 1909, 1910, 1962 e 1978. As piores de todas foram, por ordem, as de 1739, 1860, 1909, 1779 e 1962. Na Régua, em Vila Nova de Gaia e no cais da Ribeira, no Porto, nas paredes das casas ribeirinhas ou nos pilares das pontes, ainda são visíveis, macabras recordações, as marcas das cheias mais importantes”, in Douro, p. 36, de António Barreto. 23 TORGA, Miguel, Diário I, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 19. 24 Idem, Vindima, p. 199.

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prestes a sucumbir, viram-se para Deus ou para os Santos para que lhes

retemperem as forças.

A este homem, definido como “um ser que em todos os momentos se

sente irmão do próximo e que em todas as circunstâncias reage sem

covardia”25, deve-se “admirar-lhe o esforço, a honradez e a bondade”26.

1.1 – Manifestações de Religiosidade O fenómeno religioso, geralmente, manifesta-se de igual modo na grande

maioria dos povos, variando contudo em alguns pormenores de índole

antropológica. A este propósito, numa comunicação na semana de Estudos

Teológicos, que se realizou na Faculdade de Teologia de Braga, o P.e Peter

Stiwel referiu: “Os conceitos e as práticas laicas de hoje necessitam de saber

conviver com o fenómeno religioso. O fenómeno religioso é universal e Jesus,

um caso singular”27 .

A Exortação Apostólica de Paulo VI sobre a Evangelização no Mundo

Contemporâneo refere-se à religiosidade popular do seguinte modo:

“Tocamos um aspecto da evangelização a que não se pode ser indiferente. Queremos referir-nos àquela realidade que com frequência vai sendo designada nos nossos dias com a expressão ‘religiosidade popular’. Tanto nas regiões onde a Igreja está estabelecida desde há séculos como naquelas onde se está a implantar, descobrem-se no povo expressões particulares da busca de Deus e da fé. Consideradas durante muito tempo como menos puras, e por vezes desprezadas, estas expressões constituem hoje o objecto de uma nova descoberta quase generalizada. Certamente que a religiosidade popular tem as suas limitações; frequentemente está exposta a muitas deformações da religião, ou seja, a superstições. Muitas vezes resume-se a um nível de manifestações culturais, sem chegar a uma verdadeira adesão de fé”28.

25 TORGA, Miguel, Diário VII, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 677. 26 Idem, ibidem, p. 676. 27 Director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica (Lisboa). 28 Evangelii Nuntiandi, n. 48, de 8 de Dezembro de 1975.

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O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se

mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano.

Esta religiosidade manifesta-se em votos e promessas, peregrinações e

um sem número de devoções, baseada na recepção dos sacramentos, em

especial o baptismo e a primeira comunhão, recepção que está mais nas

repercussões sociais do que num verdadeiro influxo no exercício da vida

cristã.

Na expressão da religiosidade popular estão presentes algumas virtudes

verdadeiramente cristãs, em especial o apoio nas catástrofes, onde sobressaem

a solidariedade e a caridade; esta última quando há deficiências na conduta

moral. No entanto, “a participação na vida cultual oficial é quase nula e a

adesão à organização da Igreja é muito escassa”29.

Do ponto de vista da vivência religiosa, sabemos que nem todos aceitam

e vivem a mensagem religiosa da mesma maneira; a um nível pessoal, cada

um experimenta etapas diversas na sua resposta a Deus, e a nível social nem

todos manifestam a sua religiosidade nem a sua fé de um modo único. O povo

tem necessidade de expressar a sua fé de um modo simples, emocional,

colectivo. É uma religiosidade mais de tipo cósmico em que Deus é a resposta

a todas as incógnitas e necessidades do homem:

“no seu núcleo, a religiosidade popular é um acervo de valores que respondem com uma sabedoria cristã às grandes interrogações da existência. A sabedoria popular católica tem uma capacidade de síntese vital; assim congrega criativamente o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e corpo, comunhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria, inteligência e afecto. Essa sabedoria é um humanismo cristão que afirma radicalmente a dignidade de toda a pessoa como filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina a encontrar a natureza e a compreender o trabalho, e proporciona as razões para a alegria e o humor, ainda que no meio de uma vida muito dura”.30

29 Segundo depoimentos dos Párocos. 30 Documento de Puebla (1979), n. 321.

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O deambular do homem pela agrura destas terras, o estremecimento entre

o dia e a noite, o espanto com o crescimento das sementes que lançava à terra,

o terror da trovoada, o encanto de uma chuva mansa, tudo isto levou o homem

a sentir-se incompleto ou talvez inseguro face à insegurança de outros homens.

Perante estes sinais da natureza, tornou-se crente e achou que para lá da

natureza havia um poder maior que a força da corrente e do trovão, encontrou

Deus. E viu-o no sol e nas estrelas, na árvore solitária e benfazeja e no rio, na

fonte e nessa terra-mãe que se soltava em frutos.

Tornou sagrados os lugares onde sentiu que o seu Deus se revelava;

tornou sagrado o território da morte, o lugar do cemitério, inventou lugares e

formas de honrar e estar mais perto desse Deus e dos seus Santos. Por isso

construiu igrejas e capelas, cruzeiros e nichos de alminhas, bem como Passos

da Via Sacra e inventou orações e preces públicas, procissões e cânticos.

1.2 – Religiosidade (Popular) Entre Deus e os homens houve sempre laços; a forma como eles se

construíram ao longo da história dos homens sobre a terra é que se chamou

religião. Foram os homens que estabeleceram as regras e os ritos, adaptando-

os às circunstâncias e alterando-os de forma a justá-los aos seus

comportamentos. Relativamente à evolução da atitude religiosa, José Serra,

Psicólogo Clínico, refere:

“a natureza da atitude religiosa ou da religiosidade tem sido objecto de estudo e de aceso debate entre os especialistas da psicologia da religião já desde os anos cinquenta do século passado, os quais têm procurado compreender e clarificar o núcleo de tal experiência, alcançando, por vezes, resultados paradoxais e contraditórios. As muitas investigações que se têm realizado em contextos culturais e religiosos heterogéneos evidenciam, significativa e amplamente, o carácter multidimensional da atitude religiosa, ou seja, o facto de não ser um fenómeno monolítico e unívoco, redutível a um só aspecto da experiência humana, mas, pelo contrário, um fenómeno

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complexo e composto por cinco dimensões fundamentais: emocional, social, ritual, cognitiva e existencial-consequencial”31.

Na continuação da análise da atitude religiosa, o mesmo clínico salienta

que:

“estas dimensões interagem, influenciam-se reciprocamente e concorrem para uma maior ou menor integração da religiosidade no contexto da própria vida. Uma religiosidade somente ritual, por exemplo, em que escasseia o envolvimento existencial-consequencial, pode conduzir a um ritualismo desencarnado (de que, infelizmente, sofrem muitos dos exibicionismos litúrgicos das celebrações religiosas de todos os credos e religiões). Do mesmo modo, uma atitude religiosa elevadamente emocional, da qual está ausente o conhecimento dos conteúdos da fé e dos textos sagrados, pode levar a uma religiosidade intimista e, por vezes, sincrética (por exemplo, participação efusiva na missa ao domingo e consulta do horóscopo ou «ida à bruxa» durante a semana). Pelo contrário, uma atitude religiosa integral, global e, por isso mesmo, mais autêntica e verdadeira, implica a presença dinâmica e interactiva das cinco dimensões”32.

Do ponto de vista da psicologia, e partindo do seu carácter

multidimensional, é possível definir a atitude religiosa como:

“um compromisso mais ou menos consciente do ser humano com Deus e com o transcendente, que se manifesta na totalidade da pessoa e da sua personalidade, que envolve experiências, crenças e maneiras de pensar, motivando-a para a devoção, para o comportamento moral e outras actividades”33.

A história das religiões e a antropologia cultural têm vindo a constatar a

universalidade do fenómeno religioso e a existência de diferentes formas de

conduta religiosa em todas as épocas, quadrantes geográficos e culturas.

31 In Família Cristã – Janeiro 2003, p. 34-35: 1-Dimensão emocional: o mundo profundo das emoções, dos afectos e dos sentimentos; 2-Dimensão social: os laços sociais e comunitários, as relações interpessoais; 3-Dimensão ritual: as práticas cultuais, a participação sacramental, a oração; 4-Dimensão cognitiva: conhecer os conteúdos fundamentais da fé, dos ritos, das tradições, dos textos sagrados, dos documentos oficiais; 5-Dimensão existencial-consequencial: as consequências da atitude religiosa na vida de todos os dias dos indivíduos e nos seus projectos globais de vida. 32 Idem, p. 35. 33 K. Tamminem, psicólogo da religião, citado in Família Cristã - Janeiro 2003, p.35.

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Assim, poderíamos apontar, tal como é referido no citado artigo de José Serra,

para as seguintes formas de religiosidade:

• Rituais animistas e mágicos presentes na religiosidade primitiva e

contemporânea. Em particular, devem ser recordados o

visionarismo religioso, o miraculismo espiritualista, o ritualismo

do escrupuloso, o culto dos mortos, o espiritismo, o devocionismo

que existe em determinados santuários, etc.

• A prática religiosa tradicional. Em particular, a participação na

missa e nos outros sacramentos, as bênçãos, as práticas de

devoção, as orações quotidianas, as orações litúrgicas, etc.

• As instituições religiosas que dinamizam e estimulam um

compromisso. Em particular, é importante recordar alguns centros

e locais de espiritualidade actualmente muito significativos:

santuários, comunidade de Taizé, comunidade de Bose, certos

mosteiros, etc.

• As experiências dos místicos do passado e do presente dentro e

fora do cristianismo. Cada época apresentou formas de

misticismo: por exemplo, S. Paulo, S. Francisco de Assis, Santa

Teresa de Ávila e S. João da Cruz, etc.

Ao invés também se constata a presença perene no espaço e no tempo,

ainda que minoritária, de pessoas ou grupos que assumem em relação ao

fenómeno religioso uma postura ateísta ou de não crença em que o sagrado

não é um factor que motiva decisões, comportamentos, etc.34 Na análise do

fenómeno religioso, o clínico José Serra conclui, como que a dar a ideia do

retorno da religiosidade e do sagrado:

“Sobretudo nos três últimos séculos, o fenómeno do ateísmo tem vindo a problematizar a validade e a autenticidade do fenómeno religioso. São paradigmáticas as posições dos «três mestres da suspeita» que contestam de maneira veemente a religiosidade: K.

34 Nos nossos dias está muito na moda o declarar-se agnóstico; mais grave ainda é o indiferentismo de muitos perante o fenómeno religioso.

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Marx, para quem a religião é «o ópio do povo»; F. Nietzsche, para quem a religião é um instrumento de autocompensação para pessoas inferiores e débeis; e S. Freud, para quem a religião é uma neurose compulsiva a que os indivíduos e as sociedades recorrem perante as frustrações da vida. Nos últimos anos, porém, e talvez devido ao desmoronar das grandes ideologias e narrativas que fizeram os séculos XIX e XX, temos vindo a assistir a uma espécie de retorno do sagrado e da religiosidade: veja-se a este respeito o aparecimento de novos movimentos religiosos (New Age, Scientology, Hare Krishna...) e a procura cada vez maior da religião como oferta de cura, saúde e salvação”35.

Poder-se-ia definir a religiosidade como o conjunto de disposições

referentes ao sagrado antes que estas sejam socialmente elaboradas e

socializadas. Curiosa é a definição de religiosidade que faz o Dr. M. J. Cristo

Martins:

“A religiosidade é: ▪ Um impulso natural para o Transcendente, como a planta se sente atraída para a luz; ▪ um reflexo nebuloso da espiritualidade, como o luar é um pálido reflexo do sol; ▪ um valor sócio/cultural/religioso, como o orvalho matinal não fertiliza. A religiosidade manifesta-se: ▪ pela religião do assistir - religião das tradições ▪ pela religião do sentir - religião das devoções ▪ pela religião do cumprir - religião das obrigações ▪ pela religião do visitar - religião do turismo religioso. Estas religiões dispensam a fé e a autenticidade, basta embarcar e seguir a favor da corrente. Estas religiões dispensam a esperança e a vitalidade, basta procurar as fugidias novidades emocionais. Estas religiões dispensam o amor e a fraternidade, basta colaborar nas campanhas de solidariedade. Estas religiões movimentam-se em círculo fechado: ▪ a ignorância faz boiar no mar da indiferença ▪ o individualismo ergue fronteiras em todos os espaços ▪ o ritualismo rende-se às exigências sócio/culturais

35 In Família Cristã - Janeiro 2003, p. 36.

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▪ a impotência prega e virtualiza a paciência ▪ são alimentados e fortalecidos os divórcios: - entre a fé e a vida, fica-se pela fé religiosa - entre o Evangelho e a cultura, fica-se pelo infantilismo - entre a oração e a acção, fica-se pela passividade - entre valores e atitudes, fica-se pelas arbitrariedades36.

Apesar de tudo, na religiosidade popular encontram-se elementos

preciosos de uma fé autêntica, não sentimentos vagos, como formas de

manifestação religiosa.

A religiosidade popular, ligada à cultura popular, tem sido olhada, até há

pouco tempo, com desprezo pelos bem pensantes. Aliás, quando se fala de

religiosidade popular subentende-se uma forma inferior de religião, na qual

sentimentos, crenças e práticas referentes ao sagrado se encontram em estado

primitivo, não lhe sendo atribuída a mesma dignidade das religiões

propriamente ditas. Só recentemente começou a ser objecto de interesse pela

teologia e sobretudo pela pastoral. Entendia-se que só as pessoas que detinham

o saber, o ter e o poder eram cultas. Se o povo, entendida a palavra em

oposição àquele grupo social, não era culto, então não se podia falar de cultura

popular. Aliás, Luis Maldonado esclarece:

“podemos recordar que o termo “povo” designa aquele grupo da sociedade que mantém patente e íntegra a sua abertura ao deslumbramento, ao fascinante, ao mágico; que põe em movimento essa admirável capacidade humana ao longo das suas festas, das suas reuniões, das suas celebrações estelares dos seus festejos. Desse modo, o povo é um dos órgãos privilegiados do sentimento religioso da sociedade”37.

Algo semelhante acontecia com a religiosidade popular, com a agravante

de que esta estava ligada, por vezes, a certas tradições de origem pagã.

Só estudando a sua origem mais antiga, a sua realidade enquanto dom do

Espírito, o seu dinamismo teocêntrico, poderemos compreender melhor a

36 In Síntese (revista trimestral de actualidades eclesiais), Abril - Junho 2000, p. 28. 37 MALDONADO, Luís, Religiosidad Popular Nostalgia do Magico, Madrid, Ediciones Cristandad, 1975, p. 78.

66

religiosidade, não apenas no sentido litúrgico, o seu percurso e o seu valor

como acto religioso. Nas formas de piedade encontramos, por vezes um

profundo humanismo e um cristianismo sólido que impregnam e fazem vibrar

as mais pequeninas fibras do homem; esta religiosidade reflecte uma sede de

Deus, que só os pobres e os simples podem conhecer. A sua generosidade e o

seu sacrifício podem chegar ao heroísmo, quando se trata de manifestar a sua

fé e comporta um sentido agudo de atributos profundos de Deus: a

paternidade, a providência, bem como a presença amorosa e constante.

Paciência, sentido da cruz na vida quotidiana, desprendimento, abertura aos

outros e devoção, são outras tantas virtudes interiores que raramente se

encontram nos que não possuem esta religiosidade.

A religiosidade popular, a nível antropológico, gira em torno dos

fenómenos da natureza e dos principais acontecimentos familiares. Assim

ligadas aos solstícios, temos as festas do Natal e do S. João; aos equinócios, a

Páscoa e o S. Martinho.

Ligadas às actividades agrícolas, temos várias manifestações religiosas,

como as Têmporas, o S. Miguel, etc. Relacionados com a vida familiar, há

ritos religiosos para o nascer, o crescer, o casamento, a doença e a morte. Daí,

portanto, que a natureza seja vista “como uma grande hierofania ou, melhor,

como uma constelação de hierofanias”38.

1.3 – As Procissões As procissões são a forma mais evidente da religiosidade popular. Tudo

o que diz respeito às ligações entre Deus e o homem é tão íntimo e, por vezes,

misterioso, que não admite enquadramentos em sistemas rígidos; a relação do

homem com Deus assume portanto aspectos intimistas que se vive sobretudo,

num culto popular, nas festas e romarias.

38 Idem, ibidem, p. 94.

67

Festas, procissões e romarias são palavras, que estão muito ligadas entre

si, são as que melhor exprimem o culto, a devoção, a fé e a religiosidade

popular. Se, desde o alvorecer da nacionalidade, o país está cheio de imensa e

profunda fé Mariana, o facto é amplamente testemunhado na crença e até na

toponímia da nossa região. Por toda a parte permanecem as “alvas capelinhas”

magistralmente homenageadas por Guerra Junqueiro, poeta da Fé e do

bucolismo, e pela emocionante poesia de Miguel Torga.

Portugal é um país católico e os seus numerosos santuários atraem

grandes quantidades de peregrinos. Muitos santuários estão situados na antiga

rota seguida pelos peregrinos a caminho de Santiago de Compostela em

Espanha, onde se crê que se situa o túmulo do Apóstolo S. Tiago.

Entre a Páscoa e as vindimas, por conseguinte, entre a Primavera e o

Outono, têm lugar muitas festas religiosas em cidades, vilas e aldeias, situadas

na região duriense: são as denominadas romarias, procissões sagradas

acompanhadas de festas nas quais o povo se veste a rigor com o trajo da

região, desfiles de símbolos alegóricos, feiras rurais, viagens de barco, etc.

Estas festas são extremamente coloridas, com música e danças

tradicionais que nos dão uma visão de antigos rituais, bem como da sua

componente de devoção, ou seja, há quase sempre uma parte religiosa e outra

profana. E como o profano se tem sobreposto, constata-se que:

“Hoje as procissões são acusadas de uma certa ostentação de fé que, verdadeiramente, não se vive, dum certo folclore e triunfalismo. Algumas procissões aparecem como simples deambulações pelas ruas da localidade das imagens dos santos, por entre os seus devotos mais ou menos de circunstância. – Mas não trará essa presença da imagem uma consciência mais viva da sua intercessão pela terra que lhe presta culto?”39

As procissões, muito concorridas, percorrem as habituais ruas da

localidade; à passagem da imagem da(o) Padroeira(o), das janelas ou das

39 CLEMENTE, Manuel, A Fé do Povo (compreender a religiosidade popular), Apelação, Paulus Editora, 2002, pp. 34-35.

68

portas das casas emergem lágrimas de alguns rostos que, em silêncio,

suplicam o pedido de alívio desejado.

Na altura da procissão, as localidades ganham vestes iluminadas e os

crentes montam altares de rua. E é precisamente nesses momentos que é difícil

saber se o que nos impressiona mais é o que vemos ou o que sentimos. Nas

ruas há um misto de melancolia e de paixão, olhos baixos e corações abertos,

as lágrimas da tristeza misturando-se com as da alegria. A procissão, rica em

ornamentações dos andores e acima de tudo no que respeita à emoção das

pessoas que assistem, é o ponto alto: o silêncio respeitoso esmaga, há algo

dentro que, sem dúvida, emociona qualquer um.

A chegada dos emigrantes é também um fenómeno sazonal a ter em

conta, o que leva muitas vezes a que as festas em honra de determinado Santo

não seja no seu dia litúrgico.

Na procissão não faltam adereços que, à primeira vista, parecem

profanos. Profano é o que está fora do espaço sagrado, mas o mundo e tudo

quanto nele existe é o templo de Deus. Tudo, no fundo, pode concorrer e

concorre para glória de Deus e redenção dos homens. Só o pecado é profano,

porque esse é obra das mãos humanas.

António Nobre, melhor do que ninguém, descreve-nos com todos os

pormenores a procissão, que faz parte fundamental das nossas tradições:

“...anda ver meu país de romarias e procissões!... Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão Estralejam foguetes e morteiros lá vem o Pálio e pegam ao cordão honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, parecem Torres de David, na amplidão! Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde. Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, olhos leais fitos no vago... não sei onde! Os anjinhos!

69

Vêm a suar: infantes de três anos, coitadinhos! Mãos invisíveis levam-nos de rastros que eles mal sabem andar. Esta que passa é a Noite cheia de astros! (assim estava, em certo dia, na Judeia) aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!) e aquela outra é a Lua-Cheia! Seus doces olhos fazem luar... Essa, acolá, leva na mão os Dados, mas perde tudo se vai jogar. E esta que passa, toda de arminhos, (vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, criança em flor que ainda os não tem. E que bonita vai a Esponja de Fel! Mal ela sabe, inocentinha, nas suas mãos, a Esponja deita mel: abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira. Lá vem a Lança! A bainha traz ainda o sangue da Sexta-feira... Passa o último, o Sudário! o corpo de Jesus, Nosso Senhor... Oh que vermelho extraordinário! Parece o sol-pôr... Que pena faz vê-lo passar em Portugal! Ai que feridas! e não cheiram mal... E a procissão passa. Preia-mar de povo! Maré-cheia do Oceano Atlântico! O bom povinho de fato novo, nas violas de arme soluça, romântico, fadinhos chorosos da su’alma beata”40...

A procissão é sempre o momento mais esperado das festas. Velhos e

novos, todos esperam pela procissão; ruas, varandas e janelas enchem-se de

gente que esperam a passagem da majestosa procissão. É que muitas vezes

numa vida que decorre no meio de tristezas, doenças e epidemias, procura-se

não só a saúde espiritual, mas também a corporal. Por isso é que muitos vêem

na procissão o momento de acções e intervenções milagrosas e extraordinárias

para poderem sair de situações muitas vezes angustiosas. 40 NOBRE, António, Só, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981, pp. 34-36.

70

2. – As Festas No quotidiano da nossa sociedade transparece a necessidade que o

homem tem de fazer festa; a realidade da festa é, na aparência, tão diversa que

parece impossível abarcá-la. Quando falamos de festa tanto podemos referir-

nos à festa de aniversário, da amizade, dos bombeiros, do padroeiro, do Natal,

como à festa cósmica das vindimas. As motivações e os ritos são diferentes e

até contraditórios; os modos de participação são numerosos e variados.

Contudo há um elemento comum: é o carácter de ruptura que a festa apresenta

em relação com a vida ordinária. Se a festa fosse algo que se fizesse todos os

dias, deixaria de ser festa, distingue-se da monotonia de todos os dias, rompe

com a ordem habitual, é um momento de loucura, de transgressão. Os homens

que as fazem, fazem-se nelas e a sociedade que as realiza, projecta-se nelas.

Referindo-se aos transmontano-durienses, diz Torga: “Alegrias gratuitas têm

poucas. Embebedam-se nas festas e nas feiras”41.

É nas festas cristãs que se revelam as melhores formas de expressão da

religiosidade popular. “A festa religiosa, entre outros valores, oferece marcas

sensíveis de uma ligação com o invisível e manifesta, em diversos níveis e

graus, embora por vezes de modo muito confuso, alianças do povo com

Deus”.42 A complementar esta ideia, Luis Maldonado acrescenta:

“A dimensão festiva é uma das mais evidentes da religiosidade popular. Não é necessário demonstrá-la, nem sequer mostrá-la. Está aí bem à vista. A religiosidade do povo consiste, antes de tudo, no circuito interminável das suas festas, festividades e festejos decorrentes, suas celebrações, solenidades, funções, cerimónias, negócios, romarias, procissões...”43

41 TORGA, Miguel, Portugal, 3ª. edição revista, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, p. 38. 42 António dos Santos, Bispo da Guarda - Carta Pastoral sobre Festas Religiosas, p. 3. 43 MALDONADO, Luis, op. cit. p. 192.

71

Os cristãos reúnem-se regularmente, em certos dias que eles mesmos

chamam “de festa” e durante os quais celebram, em atitude de fé, tal ou qual

aspecto do mistério cristão. É uma forma de glorificar ou de exaltar uma

pessoa (celebrar um santo). A “festa” surge na sua essência, como um

comportamento, uma maneira de ser e de agir, que procede das tendências

profundas (necessidades, desejos, angústias...) do grupo que faz a festa. É

neste sentido que se fala de festa como um “facto social total”44.

A festa, para Jesus, é a alegria do surdo que se sente sair do seu

isolamento e escuta o grito do povo; é a dança do coxo, liberto, agora, do seu

desconforto, por ter encontrado a justeza dos seus passos de homem; é a acção

de graças daquele que sai da sua cegueira ou do leproso que se descobre

purificado e limpo depois de ter expulso toda a impureza que o tempo tinha

nele depositado... Toda a festa, mesmo profana, se é festa de verdade, é, por

conseguinte, portadora certa desta fermentação. Quanto a este aspecto, a festa

cristã não constitui excepção no que respeita à festa profana, humana.

Em todos os concelhos do Douro, as festas são um elemento

imprescindível na vida das suas gentes. Religiosas ou populares, feiras ou

mercados, marcam momentos especiais nos calendários das populações.

Vivendo as festas, as pessoas alegram-se e animam-se; a grande meta é

trazer os conterrâneos espalhados pelo país e estrangeiro, proporcionar, aos

que nos visitam, o conhecimento da nossa região e dar, aos que aí vivem,

alguns dias diferentes. As festividades são manifestações de alegria que

provocam uma pausa no trabalho rural chamando as atenções para o lúdico...

A fé do povo traduz-se nas muitas preces que, ao longo do ano, solicitam a

Nossa Senhora ou ao Santo Padroeiro e na oração de agradecimento à

passagem da procissão. As festas mostram a identidade do povo, reforçam os

laços da comunidade e ajudam as pessoas a manifestarem a sua fé.

Gente de todas as condições sociais, novos e velhos, que nestes dias de

festa e convívio, se reúnem em torno de uma só ideia: confraternizar sob a 44 Definição utilizada por Marcel Mass, in Festas e Celebrações Cristãs, Equipa de Teólogos, Lisboa, Edições Paulistas, 1979.

72

protecção dos patronos da festa, onde se unem o sagrado e profano, a devoção

popular e as folias.

Os mais velhos recordam com alguma saudade a maneira antiga de

festejar: “havia bandas de música e concertinas, agora é só gritaria”; “a

nossa procissão é das mais bonitas”; os sinos soam, a banda entoa, os andores

deixam a igreja na bênção à localidade, sempre seguidos de perto pelas

pessoas da terra, acotovelando-se pelas ruas. Outras, espreitando a procissão,

debruçadas nas janelas e varandas, engalanadas por colchas coloridas. Muitas

vezes, sem esconder a emoção que lhes escorre pela face. É sempre assim, o

povo junta-se para orar como já faziam os seus antepassados, cada vez há mais

gente na missa e na procissão; é uma devoção muito antiga, mas não se deve

ficar apenas pela tradição. Certas manifestações religiosas conseguem, por

mérito próprio, impor-se aos tempos modernos; até podemos afirmar que o

desenvolvimento de algumas localidades se deve em parte à popularidade das

festas.

Com o objectivo de conquistar gentes de todas as idades e gostos, as

festas reservam um vasto leque de iniciativas que dão cor e vida durante os

dias em que duram e onde não faltarão, como é da tradição, o fogo de artifício,

os espectáculos de música e desporto, as procissões e celebrações religiosas.

Numa festa há sempre mil eventos, actividades para todos os gostos e feitios,

consubstanciados no esforço dos mordomos em apresentar os grupos musicais

mais badalados, as girândolas de maior efeito, enfim, um conjunto de

novidades, capazes de atrair o maior número de pessoas e proporcionar a

confraternização e o convívio salutar entre todos.

Se os “actores” principais da festa são os mordomos e os Párocos

convinha ouvi-los para podermos tirar algumas conclusões acerca da

organização e da forma como decorreram as festas.

Para avaliar a importância das Festas e das Procissões, fizemos um

levantamento das várias Comissões de Festas existentes na Região do Douro;

posteriormente, elaborou-se um inquérito dirigido a cada Comissão de Festas

73

que foi enviado por correio em carta registada; obteve-se uma amostra

aleatória de vinte inquéritos.

a) – Inquérito dirigido ás Comissões de Festas:

0 0

10 10

0

2

4

6

8

10

Quantidade

1 2 3 >3

Dias de Festa

Gráfico 1 – Por quantos dias se prolongou a festa?

Geralmente a festa prolonga-se por três ou mais dias.

0 0 0 0 0 0

6

12

2

0 0 00

2

4

6

8

10

12

Jane

iro

Fevere

iro Abril

MaioJu

nho

Julho

Agosto

Setembro

Outubro

Novem

bro

Dezem

bro

Gráfico 2 – Em que mês ou meses têm lugar as festas?

Ainda que todos os dias sejam bons para festejar, é sobretudo nos meses de Junho (Santos Populares), Julho, Agosto e Setembro que têm lugar as principais festas.

74

6

0

6

8

012345678

0 - 50 51 - 100 > 100 Não sabe

Gráfico 3 – Há quantos anos se celebram as vossas festas?

Alguns responderam há 50 ou mais anos; no entanto, nalguns casos, perde-se no tempo a memória das festas.

0 0

8

12

02468

1012

1 2 3 > 3

Gráfico 4 – Quantos conjuntos musicais actuaram nas festas?

Para animar musicalmente a festa actuam três ou mais conjuntos musicais; geralmente um por noite.

10

6

2 2

0

2

4

6

8

10

1 2 3 >3

Gráfico 5 – E quantas Bandas Filarmónicas actuaram? Apesar das Bandas Filarmónicas estarem a cair em desuso, a sua presença

continua a ser imprescindível na festa; daí que em todas as festas haja a actuação de uma ou mais bandas.

75

12

8

0

5

10

15

Sim Não

Gráfico 6 – Houve actuação de ranchos folclóricos?

Nalgumas festas é costume actuarem ranchos folclóricos.

10

0

10

0

2

4

6

8

10

Conjuntos Bandas Ambos

Gráfico 7 – No arraial actuaram apenas conjuntos ou também bandas?

A animação do arraial está a cargo dos conjuntos musicais; no entanto, também as bandas costumam actuar até à meia-noite “para animar os velhotes”.

20

0

0

5

10

15

20

Sim Não

Gráfico 8 – Houve fogo preso?

Nestes últimos verões o flagelo dos incêndios preocupou toda a gente, tendo-se proibido o lançamento de foguetes e optando-se mais por este tipo de fogo.

76

4

16

0

5

10

15

20

Sim Não

Gráfico 9 – O fogo de artifício causou algum incêndio?

Efectivamente, nalguns casos, o fogo de artifício causou alguns incêndios.

2

10

6

2

0

0

2

4

6

8

10

0 1 2 3 >3

Gráfico 10 – Durante as festas quantas procissões se realizaram?

Nas festas religiosas há pelo menos uma procissão, chamada principal ou do triunfo; para lá desta podem ter lugar outras, como seja a procissão de velas ou a procissão apenas com o(a) padroeiro(a).

10

8

0

0

2

4

6

8

10

0 - 10 11 -- 20 > 20

Gráfico 11 – Quantos andores compunham a procissão principal?

Habitualmente a grandiosidade da procissão mede-se também pela quantidade de andores.

77

20

0 0 0 0

0

5

10

15

20

Pesso

as

Animais

Tractor

/Carr

inha

Outro

Tractor

/Pes

soas

Gráfico 12 – Os andores eram transportados por quem?

Aqui há uns anos atrás, devido à extensão das procissões e à comodidade das pessoas, eram utilizados tractores e carrinhas para fazer esse transporte. Apenas em Lamego os andores são puxados por bois.

4

2

12

0

2

4

68

10

12

0 - 10 11 -- 20 > 20

Gráfico 13 – Quantas figuras alegóricas compunham a procissão?

As figuras alegóricas também contam para a grandiosidade da procissão.

2

18

0

0

5

10

15

20

Armador Pessoas dalocalidade

Ambos

Gráfico 14 – Os andores foram ornamentados por quem?

A ornamentação dos andores, que antes estava ao cuidado de um armador, passou a ser feita pelas pessoas da localidade.

78

20

0 0

0

5

10

15

20

Naturais Artificiais Ambas

Gráfico 15 – As flores eram naturais ou artificiais?

E porque as pessoas da localidade gostam que os seus andores sejam os mais bonitos, começaram a utilizar flores naturais (muitas vezes dos seus jardins).

12

4

2

0

0

2

4

6

8

10

12

1 2 3 >3

Gráfico 16 - Quantas bandas acompanharam a procissão?

Nas festas mais pequenas a procissão é acompanhada por uma banda; nas de maior impacto costumam ser duas ou três bandas.

14

6

0

5

10

15

Sim Não

Gráfico 17 – Actuaram fanfarras?

Na grande maioria das vezes a abrir a procissão aparece uma fanfarra dos bombeiros ou até da GNR.

79

10

8

0

2

0

2

4

6

8

10

Nomeados Escolhidos Eleitos Livre Vontade

Gráfico 18 – Os mordomos são escolhidos, nomeados ou eleitos?

Habitualmente é a comissão cessante que nomeia os mordomos da próxima comissão.

11

0 0

9

0

2

4

6

8

10

12

1 2 3 >3

Gráfico 19 – Por quantos anos se mantêm os mordomos em função?

Dado ser um trabalho desgastante, a grande maioria das comissões apenas se mantém em funções durante um ano; noutros casos, o mandato ultrapassa os três anos.

12

8

0

2

4

68

10

12

Sim Não

Gráfico 20 – As receitas foram suficientes para cobrir as despesas?

A crise é generalizada e nem sempre as receitas cobrem as despesas.

80

Conclusões deste inquérito: a despesa duma festa de aldeia (mediana) ronda os vinte mil euros,

numa festa das vilas ou duma romaria mais famosa, a despesa duplica, triplica e, nalguns casos, quintuplica.

a procissão foi apontada, pela maioria das respostas, como o momento

a não dispensar.

o que correu muito bem foi a Missa Solene, a procissão e o arraial.

o peso dos andores varia entre os 150 e os 950 Kg.

a procissão, a tradição, a hospitalidade, a fama dos conjuntos, foram os motivos apontados para “chamar” os milhares de pessoas às festas.

cada vez há mais gente nas festas.

b) – Inquérito aos Párocos:

2

6

10

8

0

2

4

6

8

10

Quantidade

1 2 3 >3

Festas

Gráfico 21 – Nas paróquias a seu cargo quantas festas se realizaram?

Sabendo que os Párocos têm quase todos três paróquias, a grande maioria das paróquias teve mais do que uma festa.

81

2 2

1012

02468

1012

Quantidade

1 2 3 >3

Procissões

Gráfico 22 – E quantas procissões?

Era de prever que, em relação ao gráfico anterior, os Párocos tenham que presidir a inúmeras procissões.

12

4

10

0

2

4

6

8

10

12

Banda Grupo Coral Ambos

Gráfico 23 – A Missa foi animada por quem?

Geralmente, e até porque é festa, costuma ser a banda a animar a Eucaristia.

82

14

12

11

12

13

14

Sim Não

Gráfico 24 – Para além da procissão principal realizaram-se outras procissões?

Na grande maioria das festas e durante os vários dias de festa há mais procissões para além da principal; muitas vezes a anteceder esta realiza-se, à noite, a procissão de velas.

Dado que as perguntas feitas aos Párocos, relativamente à procissão, aos

andores, à ornamentação destes e ao seu transporte, eram muito semelhantes

às das Comissões de Festas, conclui-se:

há uma grande coincidência entre aquilo que responderam os

mordomos e os Párocos.

há cada vez mais gente na missa e na procissão.

em relação a um Domingo normal, há uma percentagem maior de participação na Missa da Festa, atingindo, nalguns casos, os 50%, 70% e 150%.

As procissões são ponto de atracção e contribuem para o turismo

religioso.

quanto à caracterização religiosa do “Homem do Douro”, os Párocos

responderam:

- “tradicionalista, mas pouco profundo nas suas convicções;

pouca cultura religiosa e também pouca participação na Eucaristia dominical e outros actos de culto; mentalidade anti-clerical, pois não fazem nada sem o Padre”.

- “crente, mas pouco praticante”.

83

- “ o homem do Douro é religioso. Religião tradicional, fundada na emoção; não possui conhecimentos para fundamentar e defender a sua fé”.

- “as mulheres participam mais nos actos litúrgicos. Os homens

que praticam são mais convictos. Muitos homens não praticam por respeito humano”.

- “pouco participativo na missa dominical, mas muito efusivo nas

festas e em tudo o que envolve a Igreja nesses dias”.

- “pouca prática religiosa, mas cristãos de procissões”.

- “numa grande percentagem, um homem de festas, que vai à missa nas festas, funerais, casamentos e festividades do género. Mas é fiel à sua tradição e religião”.

- “religioso. Bairrista”.

- “o homem do Douro é religioso, embora a sua religião seja

mais de tradição e, por isso, com muito pouca influência na vida do dia a dia, sobretudo com o outro”.

- “bastante crente (crendeiro), de pouca formação religiosa,

muito tradicionalista. Pesa sobre este povo o autoritarismo de seus antigos senhores”.

- “crente à sua maneira; supersticioso e temente a Deus. Pouco

praticante”.

2.1 – A Festa das Vindimas Propositadamente, nos dois primeiros capítulos deste trabalho não me

referi a este tema porque acho que as vindimas são, apesar do penoso trabalho,

a expressão máxima das festas no Douro. Ainda que muitos, sobretudo os que

trabalham estas terras, não concordem inteiramente com esta ideia, sempre as

vindimas foram uma verdadeira festa, como diz Torga: “certamente que toda a

festa é uma festa, mormente enquadrada num cenário de sol, de folhas e de

84

frutos maduros”45. Com as vindimas alegram-se estes patamares e socalcos à

beira-Douro situados; milhares de turistas visitam a região para verem ao vivo

como nascem os vinhos do Douro.

“Vou ao Douro às vindimas”, é a canção do povo duriense,

espiritualizando dessa forma uma das mais belas actividades agrícolas da

região e ao mesmo tempo das mais duras. Entram em duelo as ladainhas

populares com os sons metálicos das tesouras. O Douro cumpre o seu destino,

transformando em vinho o fruto criado pelo sol, pela pedra e pelo homem; a

matéria elevada à condição de dádiva espiritual. Ir ao Douro às vindimas é

quase como fazer uma peregrinação, uma caminhada de natureza religiosa

para agradecer o acto criador do homem duriense.

Propositadamente quis incluir aqui as vindimas porque, segundo o meu

ponto de vista, pelo menos antigamente era assim, se pode afirmar que as

vindimas no Douro são uma festa, uma procissão, uma autêntica romaria46.

As encostas do Douro adquirem o máximo da sua beleza no Outono, a

época das vindimas. Em qualquer lugar se poderá apreciar a espantosa beleza

cromática das videiras ao longo do ano. Após o castanho escuro do Inverno,

do verde titubeante dos primeiros rebentos, na Primavera, do verde intenso,

pontilhado pelos cachos de frutos negros ou dourados, à medida que vão

amadurecendo, no Verão, chega-se ao vermelho cor de fogo no Outono:

cumprida a sua função de oxigenação das cepas e da protecção dos cachos, as

folhas das videiras, começam a amarelecer, passando por um laranja claro até

se tornarem num vermelho fogo, quase incandescente.

É também e desde sempre que nas terras durienses se vive a lufa-lufa da

colheita ou a angústia de uma má “novidade”: a vindima que anualmente se

repete, com um mesmo ritual e alegria desde há séculos.

Tal como no passado, esta é a verdadeira festa de toda uma região, a

“eucaristia”47 de um povo que labuta um ano inteiro de sol a sol, para ver dar- 45 TORGA, Miguel, Vindima, (obra completa, tendo por base o texto da 5ª. edição), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001, p. 17. 46 Anexo IV.

85

se o mistério da transformação do suor, sangue e lágrimas de homens e

mulheres, em vinho fino e generoso que a natureza xistosa e cálida produz.

Todo este trabalho frenético relembra as tarefas lentas de todo o ano:

“No ritmo tradicional das vindimas alegres e ligeiras, o instinto dos homens evocava ancestrais fadigas na surriba e na poda, na escava e na levanta, na enxofra e na desfolha, no sulfato e na redra, num rememorar subterrâneo e dorido de todos os passos do calvário onde a própria vida tinha de vez em quando a sua crucificação... a fila de acarretadores serpenteava agora pelas encostas, como um formigueiro negro”48.

Setembro e Outubro são os meses que marcam a chegada das vindimas: a

festa da colheita anual, que povoa montes cobertos de vinho, com homens e

mulheres, recolhendo da vinha o fruto sagrado que são as uvas que geram o

Vinho do Porto. Nesta altura apressa-se o corre-corre:

“Desde o amanhecer, mal as perdizes começaram a cacarejar pelos socalcos... as mulheres cortavam, as crianças despejavam as cestas cheias, os homens erguiam sobre as trouxas os vindimeiros, e o som cavo do bombo ia abafando pelas valeiras fora o repenicado do harmónio e o dindim dos ferrinhos”49.

É o culminar de um ano de trabalho; as vindimas coincidem com o

momento de contabilizar receitas ou de avaliar as perdas. Seja qual for a sorte

da colheita, as vindimas são sempre momentos de festa.

A azáfama na época das vindimas introduz um dinamismo e corrupio

muito próprios na paisagem duriense. Logo pela manhã ranchos de homens e

mulheres imprimem um ritmo de bulício que mais parece uma romaria50. É

uma actividade secular que, apesar de tudo, pouco mudou (as mulheres cortam 47 Entendida como uma acção de graças. O termo «eucaristia» significa acção de graças pela obra salvífica de Cristo. 48 TORGA, Miguel, op. cit., p. 51. 49 Idem, ibidem, p. 15. 50 Não há muitos anos que os trabalhadores eram acompanhados por tocadores de tambores, ferrinhos e concertinas.

86

as uvas e os homens carregam-nas), exceptuando a circunstância de haver cada

vez menos gente a realizar este trabalho e de se constatar também que o

pessoal é cada vez mais de idade avançada. É toda uma azáfama, transformada

em festa e peregrinação:

“Outros ranchos desciam por outros caminhos em direcção a outras quintas. Vinham numa nuvem de pó e num redemoinho de som de todos os lados da serra. Nos rostos ossudos de cada bando lia-se a mesma felicidade nómada de ciganos libertos, com os haveres numa saca. Cantavam, riam paravam a dançar nas encruzilhadas, comiam, bebiam, sem horas e sem ave-marias. A grande festa do mosto ia começar. E os peregrinos acorriam de longe, chamados pelo aceno das vides”51.

Quem melhor pinta este painel das vindimas e descreve a realidade

humana é Miguel Torga, sobretudo no seu romance Vindima, onde “descreve

com maior colorido paisagístico e psicológico a grandeza dessas terras e

dessas gentes que, no tempo das vindimas, fundem sua fisionomia com a dos

forasteiros que jornadeiam para as rogas”52. Essas gentes que, com o caminhar

da vindima, com o passar dos dias num trabalho penoso sofrem uma

profunda transformação:

”O Doiro tem essa estranha mão transfiguradora. Passada a primeira semana, em que as caras se conservam humanas e domingueiras, a barba cresce, a roupa esfarrapa-se, encarde-se de surro e de mosto, e todos adquirem um ar feroz, de animais”53;

Apesar de tudo há um desejo incontido de participar na vindima, pois de

todas as terras circunvizinhas descem os ranchos a vindimar no Douro, tal

como descreve Miguel Torga:

“... e a palavra «vindima» soa como uma senha de recurso e libertação. De resto, o grande sonho, em todo o ano, é entrar numa

51 TORGA, Miguel, op. cit., p. 12. 52 FREIRE, António, Lendo Miguel Torga, Porto, Edições Salesianas, 1990, p. 232. 53 TORGA, Miguel, op. cit., p.232.

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roga. Vai-se à festa pagã da colheita dos cachos com a seiva da mocidade a florir ou com a secura da velhice a reverdecer... E em Setembro parece brotar em cada natureza o desejo irreprimível de transpor o insosso horizonte rotineiro ...o harmónio, o bombo e os ferrinhos acertaram a voz”54.

Actualmente, para a festa das vindimas tem havido pormenorizados

programas culturais que, através de várias iniciativas, procuram atrair os

turistas. O fomento da animação cultural na região duriense tem como

objectivo, segundo os seus promotores, “atrair mais visitantes e aumentar o

seu tempo de permanência na região, bem como fidelizar os turistas e

incentivá-los a voltar mais vezes ao Douro”.

Nos nossos dias já nem todos os lavradores vinificam as uvas nas suas

próprias adegas, porque as modernas tecnologias só justificam investimentos

para grandes extensões de vinha. Mas as boas tradições não se perderam; no

Douro, o corte das uvas continua a ser uma tarefa manual, embora outros

trabalhos sejam já mecanizados, aliviando-se assim as pessoas de tarefas

outrora quase desumanas, como realça Miguel Torga: “embora doridos dos

rins, do trabalho e da rigidez cautelosa, pareciam estátuas derrubadas.

Estoicamente, concentravam as forças e o sofrimento para a possível

salvação”55; é que “a romaria às terras do vinho embebedava-os e

rejuvenescia-os”56.

Continua, no entanto, nalguns casos, a pisa a pé, porque as máquinas não

conseguem dar a oxigenação que o mosto requer para um vinho de tanta

qualidade como este é. Aliás, tem havido o cuidado em preservar a vindima

tradicional, pois a vindima no Douro é um dos trabalhos agrícolas mais

típicos, havendo assim uma certa resistência à mecanização; a força do

homem ainda manda nos socalcos e patamares durienses.

54 Idem, ibidem, pp. 7-11. 55 Idem, ibidem, p. 35 56 Idem, ibidem, p. 10.

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Há muitas quintas onde ainda se cumpre a tradição da vindima, sendo

esta feita por processos manuais; ouvem-se ainda os bombos e os realejos e,

no fim, o ramo57, feito pelas mulheres e homens, é entregue ao patrão, como

sinal de agradecimento e termo da vindima. Desta tradição assim nos fala

Torga:

“Os patrões chegam logo... e é preciso dar-lhes as boas-vindas do costume. As raparigas entrançam vides e fazem arcos, os homens, formados de um lado e de outro da alameda, erguem os cestos vazios, os do toque estrondam a valer, deitam-se foguetes... vinho à descrição. À noite, baile, claro... Era praxe obrigatória, na recepção, um do rancho limpar à chegada as botas do patrão. Adiantava-se dos companheiros de lenço branco na mão e, ajoelhado, procedia ao ritual. Este gesto de submissão e respeito abria o sorriso do patrão e a carteira”58.

Também os velhos lagares de granito, entretanto, recuperados, e alguns

com mais de 150 anos, são verdadeiros locais de festa, onde os turistas são

convidados a pisar e a cortar59 eles próprios as uvas.

E quando as vindimas terminam, ficam os homens e as cepas a sonhar

novas aventuras como refere Torga neste poema:

“O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura... e que a doçura que se não prova se transfigura numa doçura muito mais pura e muito mais nova”60.

57 Também na apanha da azeitona havia a “entrega dos ramos aos patrões”; um ramo de oliveira enfeitado com rebuçados, doces, chocolates. Como retribuição o patrão dava as filhós à camarada; neste lanche incluíam-se alheiras, salpicão, azeitonas, carne de porco assada, pão, bolo, vinho, etc. 58TORGA, Miguel, op. cit., pp. 16-17. 59 Faz-se o corte do lagar (primeira pisa, quando se esfacela a película do bago) durante quatro horas. Depois, todos os dias durante a fermentação, são feitas duas pisas de duas horas durante quatro a cinco dias.

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2.2 – Festa dos Santos Populares Santo é todo aquele que anseia por Deus, que responde ao seu

chamamento e que entusiasma os seus irmãos a seguirem o mesmo caminho

de santidade. Por essa razão se verifica que:

“O número dos Santos é incontável, por isso não admira que nos calendários «civis»61 seja atribuído a cada dia do ano, inclusive aos domingos, o nome de um Santo. O número dos santos recordados no calendário romano é de cerca de 180; por isso muitos outros ficam de fora, pelo que estamos perante um numerus clausus, pois um terço dos dias do ano está ocupado pela celebração da obra e da pessoa de Cristo, porque o ano é d’Ele62 e não dos Santos”63.

A partir dos séculos III e IV a veneração dos mártires foi continuada e

aperfeiçoada com o culto dos Santos. Estimados oficialmente como modelos

de virtude e intercessores espirituais junto de Deus, nalguns casos numa

espécie de divindades de segunda classe especializadas na cura de doenças ou

na obtenção de algumas graças especiais. Apesar de ser considerável o número

dos Santos, este número não cobre totalmente os dias do ano porque:

“alguns tempos especiais do ano estão centrados no mistério de Cristo (como a Quaresma, a semana depois da Páscoa e a semana antes do Natal); além disso, alguns dias ficam livres para que as dioceses e ordens religiosas possam dedicá-los à memória dos Santos por elas venerados”64.

Às vezes, os cristãos, na sua vida diária e nos problemas rotineiros, não

quiseram dirigir-se directamente a Deus, dirigindo-se aos Santos, cujos restos

60 TORGA, Miguel, Cântico do Homem, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 4 1974, p. 81. 61 O ano civil começa no dia um de Janeiro, ao passo que o ano litúrgico se inicia no primeiro domingo do Advento, tempo “forte” como preparação para o Natal. No que se refere aos calendários Torga comenta: “é certo que os calendários civis e religiosos apenas perpetuam heróis e santos”. (Diário I), p. 106. 62 «Anno Domini»,escreviam os antigos. 63 FALSINI, Rinaldo, A Liturgia, Apelação, Paulus Editora, 1999, p. 144. 64 FALSINI, Rinaldo, op. cit., p. 144.

90

e imagens conheciam, podiam ver e tocar e cujas vidas admiravam e

desejavam imitar. Por isso no Calendário Romano, aprovado em 1969 por

Paulo VI, em consequência das disposições do Concílio, indicam-se:

“as principais celebrações litúrgicas, cujo momento mais alto é a Páscoa que, pela sua mobilidade (a data da celebração corresponde ao domingo depois da lua-cheia da Primavera), determina a colocação dos domingos e festas. A par das festas de Jesus Cristo, desde o seu Natal, fixado no dia 25 de Dezembro, até à Ascensão, com o ritmo semanal do domingo como dia da sua ressurreição, celebraram-se com formas rituais mais ou menos solenes, as figuras dos santos mais importantes, desde Maria, mãe de Deus, aos Apóstolos, aos Mártires e aos Santos de todos os tempos e lugares”65.

A festa dos Santos populares tem muito a ver com a cultura e a fé das

pessoas; a proximidade do solstício do Verão em que, por razões de

evangelização, a Igreja colocou a festa da natividade de S. João Baptista, tal

como havia feito pelas mesmas razões com a natividade de Jesus em relação

ao solstício do Inverno, arrastou a festa de S. Pedro e S. Paulo e a própria festa

do nosso santo Frei António para o cortejo do que agora se chama santos

populares. Todos foram parar às cascatas onde os nossos antepassados pagãos,

adoradores do Sol, o astro rei, dantes colocavam devotamente os seus ídolos e

lhes dedicavam grandes festejos. Por transferência, os oragos pagãos deram

origem aos santos da Igreja.

As festas dos Santos Populares associam na visão hagiológica três

momentos da História: o pré-cristianismo, com S. João Baptista, o início da

evangelização cristã, com S. Pedro (o S. Paulo fica algo esquecido), e o

esplendor espiritual da Idade Média, com a figura emblemática de Santo

António. A tradição popular reuniu-os em torno do solstício do Verão, cujas

festas a Igreja quis cristianizar colocando padroeiros aos folguedos.

Segundo as respectivas biografias, S. António, S. Pedro e S. João

viveram vidas santas, o que não impediu o povo de associar as suas imagens à

folia dos meses de Verão. Estas três figuras simbolizam, de alguma forma a

65 Idem, ibidem, p. 143.

91

aproximação entre o sagrado e o pagão; a razão para esta aproximação

permanece ainda um mistério. S. António foi um franciscano exemplar, tido

como protector dos marinheiros, leiteiros e curador de infertilidades. São

João66 foi um percursor do Cristianismo e São Pedro67 foi discípulo de Jesus.

Daí ao povo começar a chamar-lhes “santos casamenteiros” foi um passo.

O facto de serem celebrados no Verão – uma altura encarada como de grande

fecundidade da terra e das mulheres – constitui mais uma achega para adensar

o mito.

A fama de casamenteiro68 de S. António cresce a partir de 1950, quando

este apadrinha diversas uniões de classes mais pobres, por iniciativa do jornal

“Diário Popular”. Segundo a tradição, talvez um pouco lendária, o Santo tinha

uma memória fora do comum, sabendo de cor não só as Sagradas Escrituras,

como também a vida dos Santos Padres. O facto de ter sido canonizado, pelo

Papa Gregório IX, que lhe chamou “Arca do Testamento”, um ano após a sua

morte, mostra bem qual a importância que teve a sua vida, para lhe ser

atribuída tal honra. Considerado Doutor da Igreja, os autores, que escreveram

a sua biografia, são unânimes em considerá-lo como um homem superior, daí

os diversos atributos que lhe foram conferidos: «martelo dos hereges, defensor

da fé, arca dos dois Testamentos, oficina de milagres, maravilha da Itália,

honra das Espanhas, glória de Portugal, querubim eminentíssimo da religião

seráfica, etc.»69.

66 Há uma lenda que conta que São João faz milagres no seu dia (24 de Junho) porque não consegue resistir à comemoração e assim desce à Terra, ficando mais perto dos seus fiéis. 67 São Pedro representava, para as moças solteiras, a última chance de encontrar um marido. A superstição afirmava que Santo António indicava rapidamente um pretendente, São João demorava mais para escolher, mas o melhor marido era o indicado por São Pedro, já que o Santo tinha a fama de fazer as coisas bem feitas. 68 Segundo a lenda, conta-se que uma moça solteira, desejando casar, ouviu o conselho de uma amiga e começou a fazer uma novena a Santo António. Apesar da sua fé, a moça viu os dias a passar e pretendente nem vê-lo. Aborrecida, prometeu que se não aparecesse ninguém até ao nono dia, deitaria fora o Santo. Quando no último dia acabou de rezar e vendo que nada acontecia, atirou o Santo pela janela. Nesse momento passava na rua um jovem que foi atingido com a imagem. Ao aperceber-se disso a moça correu para o socorrer e pedir desculpas; desse encontro fortuito surgiu uma grande paixão e, mais tarde, casaram-se. 69 Paula Ramos, in Família Cristã, Junho 2000, p. 41.

92

Normalmente Santo António é apresentado com um livro numa mão e o

Menino Jesus na outra, com a flor de lis, o Crucifixo colorido, os peixes a

escutar os seus Sermões, o burro ajoelhado perante a Hóstia; todos estes factos

reflectem o papel que o Santo desempenhou na cultura europeia. Por isso é

que este Santo é reconhecido e venerado nos mais diversos lugares, mormente

no Douro:

“No século XIII Santo António já era patrono de cerca de quarenta Igrejas em Portugal. Não se sabe ao certo quando o culto foi divulgado no nosso país. No entanto o povo tomou para si este Santo, que se tornou, no século XVI, o Santo Nacional dos Portugueses, moldando-o às suas próprias necessidades. Aparece nos altares das Igrejas com diversos atributos: protector da cidade, das casas e das famílias, advogado das almas do Purgatório, advogado dos bons casamentos, protector dos animais, fazedor de milagres, advogado dos objectos perdidos, ajudante dos que combatem, curador dos doentes, protector dos náufragos, aquele que livra os homens das tentações demoníacas, etc. Não faltam lugares e quintas com o seu nome; aliás, a própria toponímia do país está recheada com o seu nome”.

São João é, na verdade, o santo mais festejado em todo o país; pelo

menos, é o que diz o povo no seu versejar: “Até os mouros na Mourama /

festejam o São João. / Quando os mouros o festejam / que fará quem é

cristão.” A noite de S. João é a noite das previsões por excelência. Desde

casamentos, ao ano agrícola e ao clima, tudo se pode saber nesta altura.

Segundo alguns registos, nomeadamente do Cancioneiro Popular, São João é o

santo menos confiável, por causa da fama de sedutor, como dá a entender esta

quadra popular:. “São João fora bom santo/se não fora tão gaiato/levava as

moças para a fonte/iam três e vinham quatro.”

O São João é, por vezes, considerado um santo «brejeiro»: certamente

que não é por acaso que as práticas próprias da sua celebração acentuam este

carácter – sortes, adivinhações e crenças, em que o motivo e objectivo

fundamental é a felicidade, que nas versões completas, se definem em relação

ao casamento.

93

A piedade e a vivência popular encarregou-se do resto: atribuiu a cada

um a sua missão protectora, organizou-lhe festividades, congregou-se na

celebração pelo sacro e pelo profano. Acolheu-se à sua protecção, porque para

todas as ciladas que os homens se armam uns aos outros sempre é favorável

um unguento divino.

Assim se engendrou um Santo António casamenteiro e um S. João, não

penitente e austero, nem mestre de conversões, mas protector e folgazão.

Assim nasceram as festas de uma cidade, a do Porto, que se acolhe ao S. João,

mas que não deixa de venerar o Santo António.

Sem apadrinhar todas as «folias» que se enraizam mais na religiosidade

natural do que na revelação, não podemos contudo esquecer que S. João

Baptista é uma figura da alegria, daí que seja festejado em muitas localidades

do Douro.

Outra figura muito venerada é Santa Bárbara, a defensora das trovoadas,

a quem os viticultores recorrem recitando esta oração:

Santa Bárbara bendita, Que estais com a torrinha na mão, Pedi a Nossa Senhora Que nos livre do trovão.

Santa Bárbara bendita, Que no céu estais escrita Com papel e água benta, Livrai-nos desta tormenta.

Apesar de haver muitas orações dirigidas a Santa Bárbara, não costuma

ser ela a mais frequentemente invocada, o que vem justificar o provérbio: “só

se lembra de Santa Bárbara quando toa”. Nessas ocasiões é costume rezar

também esta oração:

“Santa Bárbara se calçou, Ao caminho se botou, Jesus Cristo encontrou, Ele lhe perguntou: - Onde vais Barba? - Vou espalhar as trovoadas Por esse monte maninho, Onde não há pão nem vinho

94

Nem raminho nem rameira Nem florinha de oliveira”70.

Outra tradição, esta já com alguma superstição, consiste em queimar os

ramos secos do último Domingo de Ramos pois, dizem que protege contra

raios, trovões, ventos fortes e chuvas intensas. Para isso, diz a crença popular,

basta queimar os ramos e rezar para Santa Bárbara esta oração:

“Santa Bárbara, que sois mais forte do que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de frontes erguidas e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da minha vida. Santa Bárbara, rogai por nós”.

Nos 21 concelhos do Douro, segundo indicação do Guia Cultural do

Douro – 2003, celebram-se mais de duas centenas de festas em honra dos mais

diversos Santos; os Santos chamados populares arrecadam: S. João, 7 festas,

realizando-se as Marchas de S. João em Trevões, Cinfães, Régua e Vilar

Maçada; S. Pedro, 8 festas; S. António, 8 festas (em Vila Real é feriado

municipal e realizam-se as marchas de S. António); S. Sebastião, 8 festas; S.

Bárbara, 15 festas, sendo invocada e venerada em muitas mais localidades; S.

Martinho, 4 festas, mas festejado por toda a gente71, inclusive as escolas,

acrescentando-se a feira anual de S. Martinho e feriado municipal em Alijó.

No dia de S. Martinho muitos aproveitam para saciar a sede; assim o

povo de Maçores, Torre de Moncorvo começa a festa logo de manhã com

missa e procissão, mas a verdadeira tradição só se cumpre à tarde. Após o

almoço, um grupo de pessoas percorre a aldeia com um caldeirão, batendo a

todas as portas e pedindo vinho novo. Um litro aqui, outro acolá, o caldeirão

enche-se de diferentes qualidades do néctar e é transportado para o largo da

aldeia, onde a palha alimenta a fogueira que assa inúmeros quilos de

70 FERREIRA, Joaquim Alves, Literatura Popular de Trás-os-Montes e Alto Douro III Volume - Devocionário, Vila Real, Minerva Transmontana, 1999, p. 137. 71 No velho costume dos magustos em que se prova o vinho novo acompanhado das castanhas, assadas em grandes fogueiras.

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castanhas. O povo junta-se à volta da fogueira, rebuscando as castanhas

assadas, e vai molhando os lábios (alguns molham-se todos, por dentro e por

fora) com a explosiva mistela que repousa no caldeirão. Há quem retire o

vinho com um copo, mas a tradição manda que se beba directamente do

caldeirão. E a festa continua animada pela noite dentro.

Enquanto que a celebração da festa de S. Martinho vive do desejo que

cada devoto alimenta no seu coração, pelo contrário, as festas dos Santos

Populares, embora desejadas e participadas, decorrem, na sua maioria, da

execução de um calendário anual de realizações que se prende cada vez mais

com a promoção do turismo e com a necessidade de equilibrar a situação

financeira das colectividades que as programam.

2.3 – A Festa do(a) Padroeiro(a) Referindo-se aos padroeiros, diz Miguel Torga: “Padroeiros da nossa

devoção! São tantos, e não chegam para os milagres de que necessitamos”72.

Também Manuel Clemente lembra que “as celebrações dos padroeiros

são profundamente vividas nalgumas comunidades locais, envolvendo

frequentemente comemorações religiosas e profanas”73.

Existem muitos locais de culto neste nosso país; para além dos grandes

santuários a que muitos dos peregrinos se dirigem, existem inúmeras

localidades mais pequenas com os seus padroeiros regionais, de quem, as

pessoas das localidades vizinhas e da região, são devotas. Todos os locais têm

algo em comum: dão consolo religioso e conferem novas forças para a vida,

como se costuma ouvir: “Tudo o que pedimos, a Senhora dá. Eu vou pedir

muita saúde; quem dá a Deus nunca perde”.

Da adoração dos deuses e ídolos, os nossos pais passaram ao culto e

cultura da comunhão dos Santos que deram o nome ou patrocínio às pessoas e

72 TORGA, Miguel, Diário XV, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 1539. 73 CLEMENTE, Manuel, A Fé do Povo - Compreender a Religiosidade Popular, Apelação, Paulus Editora, 2002, p. 31.

96

às comunidades, aos lugares e aos tempos, aos sítios e às situações. Foi a

origem histórica e geográfica dos padroeiros das nossas paróquias, igrejas,

capelas e oratórios, alguns dos quais deram o nome às nossas terras, aldeias e

vilas, cidades e, depois com as Descobertas, a paises inteiros. Não foi uma

simples transferência entre os santos pagãos e os santos cristãos; há uma

diferença absoluta e irredutível: os primeiros vieram todos do Céu (astrais) e

são ficções, são todos falsos, enquanto os segundos vieram todos da Terra e

são reais, todos verdadeiros.

Pelas mais diversas razões e situações os nossos antepassados tornaram-

se devotos e adoradores da Lua, simples satélite cheio de pedras e de poeira,

divindade feminina preferenciada entre os adoradores dos Astros; mas Santa

Maria, Mãe de Deus, com a interminável litania dos belos nomes que, de

século em século, lhe foram dados e acrescentados, tem na escolha local dos

padroeiros a grande preferência entre os Portugueses. “Nos belos ícones, que

ainda os há, Santa Maria, pintada e esculpida, é-nos apresentada com a Lua a

seus pés e esmagando a cabeça da serpente, símbolo da idolatria”74.

O santuário é o centro das manifestações de religiosidade popular e, em

seu redor, agiganta-se uma verdadeira feira em que se vende de tudo. Dos

santinhos ao calçado, passando pelos remédios naturais, “bons para o coração

e para os intestinos”, conforme propaganda dos vendedores da “banha da

cobra”.

É aí também que ao seu Deus ou Santo(a) Padroeiro(a) se fazem

promessas dolorosas (caminhar de joelhos, rastejar, subir os degraus de

joelhos, etc.) que, muitas vezes, chegam a deixar marcas físicas. E quando se

faz algum reparo, ouvimos como resposta: “olhe, eu fiz a promessa ao meu

Deus e vou entender-me com Ele, Ele vai ajudar-me; vou cumprir, custe o que

custar”. É como diz Torga “as contas com o sobrenatural saldavam-se

agora...”75.

74 In Voz Portucalense de 10.07.02. 75 TORGA, Miguel, op. cit., p. 10.

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Numa síntese perfeita, o número 50 da Constituição Dogmática Lumen

Gentium do Concílio Vaticano II resume assim as virtualidades do culto dos

santos:

«Não veneramos a memória dos santos apenas pelo exemplo que nos dão; fazemo-lo mais ainda para que a união de toda a Igreja no espírito santo se consolide pelo exercício da caridade fraterna. Pois, do mesmo modo que a comunhão cristã, entre os que peregrinam neste mundo, nos coloca mais perto de Cristo, assim também a familiaridade com os santos nos une com Cristo. Todo o amor autêntico que manifestamos a Cristo e termina n’Ele, ‘coroa de todos os santos’ e, por Ele, termina em Deus que é admirável nos seus santos e neles se glorifica».

Convém, contudo, realçar que no culto dos santos aparece muitas vezes a

veneração das relíquias que continua, hoje, a estar presente na religiosidade

popular, como adverte Manuel Clemente:

“numa perspectiva negativa, tal veneração pode constituir um perigoso desvio dos sentimentos religiosos, em que a espiritualidade se sufoca num horizonte estreito, supersticioso e material”76.

Aliás, o culto dos Santos, que eram padroeiros dos Estados, das regiões,

cidades, artes e ofícios foi típico da Idade Média e, em grande parte, chegou

até nós. Tal como hoje, “as relíquias dos Santos eram objecto das igrejas que

albergavam as relíquias mais antigas ou mais famosas”77.

2.4 – Festas Marianas No quadro do culto aos santos, estes são vistos não apenas como

exemplos a imitar, mas também como irmãos maiores aos quais se pede ajuda;

os cristãos sentem-se legitimados a invocar a protecção junto de Deus com

orações ou com bênçãos78.

76 CLEMENTE, Manuel, op. cit., p. 32. 77 DUÉ, Andrea, Cristianismo 2000 Anos de História, Lisboa, Edições Inapa, 1999, p. 188. 78 A “bênção” é uma invocação e auspício de benevolência divina.

98

Também a devoção e culto a Nossa Senhora estão muito enraizados entre

o nosso povo; Nossa Senhora está perto da nossa condição humana, atraindo a

nossa simpatia e despertando em nós sentimentos de familiaridade, de amor. É

que estando perto de nós, parece-nos mais humana; quanto mais perto da

nossa condição, quanto mais atributos humanos terá connosco.

Parece que as pessoas descobriram que Ela é “gente como a gente”79 e

que no seu caminhar há matizes humanos que a colocam bem pertinho de nós.

Desde sempre os portugueses demonstraram um carinho e reconhecimento

muito especiais para com Maria. Tanto assim é que Portugal é conhecido

como “Terra de Santa Maria”80; daí a razão de terem surgido por todo o lado

monumentos, templos e santuários em sua honra, numa manifestação pública e

jubilosa da fé cristã e do amor à Mãe de Cristo e Mãe de todos os homens.

Em toda a história de Portugal Maria foi invocada, venerada e celebrada

ao longo dos tempos. Actualmente não há aldeia, vila ou cidade, em todo o

Portugal, que não tenha uma devoção especial a Nossa Senhora. De norte a sul

Ela é festejada, celebrada, tanto em pequenas capelinhas,81 feitas com pedras

toscas, como em santuários e templos mais artísticos. É na grandeza das

serras, lá no alto, mesmo no ponto mais alto, que se erguem as pequenas

capelinhas para assinalar, por um lado, a pequenez do homem, e por outro, o

apreço e devoção para com Maria.

79 COUTINHO, Ana Paula Saraiva, Maria de Nazaré, Lisboa, Edições Paulistas, 1986, p. 30. 80 Em 1646 decorria um período difícil da vida nacional, tanto do ponto de vista político e económico, como social e eclesial. Nas Cortes o Rei D. João IV fez esta declaração: “Assentamos de tomar por Padroeira de nossos Reinos e Senhorios a Santíssima Virgem da Conceição...”. Estamos perante um acto de grande transcendência que envolveu toda a nação e cujo sentido mais profundo se deve ir buscar à sua própria história. Na verdade, desde a sua origem, o povo português tem a assinalá-lo a devoção a Santa Maria, Mãe de Deus. É um dos valores que fazem parte da sua fé. Já o Fundador da nacionalidade se colocara, por um acto público e solene, sob a tutela e protecção de Nossa Senhora. 81 No Douro há, de facto, muitas capelinhas, sobretudo nos lugares mais elevados. Nesses lugares mais altos da criação poder-se-á voltar a encontrar Deus: “d’Ele são os cumes das montanhas” (Sl 95,4. As montanhas exercem um papel importantíssimo na conservação das tradições culturais e religiosas. Daí é possível apreciar a excelência e a excepcionalidade da paisagem que nos enche a alma e os pulmões; vêem-se serras, vales e povoados e ouve-se o encanto de lugares solitários que transmitem ao homem a relatividade do ser e da vida.

99

A estas capelinhas, observando desde a Senhora da Cunha82, S. Mamede

de Riba Tua, chama Miguel Torga “um marco geodésico da nossa fé. Cá estou

no topo, a olhar, maravilhado, outros ao longe, sobranceiros ao deslumbrante

panorama duriense, e a fazer com eles a triangulação da alma religiosa da

pátria”83.

Nota-se que há um sentido religioso muito acentuado, particularmente

em relação a Nossa Senhora. E, se o culto popular, prestado sobretudo nos

grandes centros de peregrinação, foi sempre altamente significativo, não

reveste menor relevo o testemunho dado pelas pessoas durienses. Uma

afirmação expressiva desta devoção encontra-se no extraordinário património

cultural que nos foi legado pelos nossos antepassados nos mais diversos

monumentos.

A imagem de Nossa Senhora dos Barqueiros, numa rocha ao lado do rio,

em Porto de Rei, próximo de Barqueiros, depressa nos faz recordar que nunca

foi fácil navegar no Douro. E se antigamente os homens do rio confiavam a

sorte à Santa84, desde 1997 que cabe ao Instituto de Navegabilidade do Douro

(IND) zelar pela segurança de quem escolhe o rio Douro para fazer dele parte

de uma vida de trabalho e lazer.

O dia 15 de Agosto dá início à doce desfilada das festas de Maria: a

Assunção; a 22 de Agosto, na oitava da Assunção, a festa em honra do

Coração Imaculado. A 8 de Setembro, a Natividade de Nossa Senhora; a 12, o

Nome de Maria. Na oitava da Natividade, em Setembro a 15, as Sete Dores

“feixe de espadas”. A Apresentação, a 21 de Novembro. Em cerca de três

meses, sete das grandes festas marianas sucedem-se no calendário litúrgico, 82 Daqui avistam-se as capelinhas das “sete primas” ou “sete irmãs”: Senhora da Cunha (Alijó), Senhora da Assunção (Vila Flor), Senhora da Graça (Carrazeda de Ansiães), Senhora da Piedade (Sanfins do Douro), Senhora dos Remédios (Lamego), Senhora da Azinheira (S. Martinho de Anta), Senhora da Guia (Abaças) assim conhecidas as Nossas Senhoras veneradas nos lugares mais altos, podendo-se avistar, em dias mais claros e apesar da distância, umas às outras. 83 TORGA, Miguel, Diário XIII, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 1255. 84 Anexo III; Como descreve um ex-voto, patente na exposição “Jardins suspensos”, na Régua.

100

até que chegue o dia em que “um sinal grandioso apareça nos céus e o Sol

ilumine de luz indizível a Mulher Grávida que repousará os pés na lua e

surgirá com a cabeça rodeada por doze estrelas”85.

Todas ou quase todas essas festas têm raiz no Oriente bizantino, que

precedeu o Ocidente no lugar dado a Maria. Roma só as aceitou dois séculos

depois (século VII) no tempo do Papa Sérgio. Mas se, já no século XIII, S.

Bernardo largamente falava do nome que significa “stella maris”, só Inocêncio

XI, em 1683, instituiu a Festa do Nome, em acção de graças pela vitória de

Sobieski sobre os turcos, às portas de Viena. S. Bernardo dizia ser perfeita a

comparação com o astro,

“pois que tal como o astro emite o brilho dos seus raios sem nele haver alteração alguma, assim, sem que haja sofrido qualquer lesão, a Virgem dá à luz um filho. Nem o raio diminui a claridade do astro, nem o filho a integridade da Virgem”.

Só no século XIX (1854) Pio IX proclama o dogma da Imaculada

Conceição e só no século XX (1950) Pio XII define o da Assunção. Seis anos

antes, em 1944, o mesmo Papa, após consagrar o género humano ao

Imaculado Coração de Maria, decretou (estava-se em plena guerra) que todos

os anos se celebrasse a festa dela. Festas em torno d’Aquela cuja vida se

passou de silêncio em silêncio, do silêncio da adoração ao silêncio da

transformação.

São muitas as festas em honra de Nossa Senhora; de facto, a Igreja tem o

seu calendário composto por tempos fortes e preenchido por Solenidades,

Festas e Memórias – celebrações em graus de valor diferente para evocar os

Mistérios de Cristo, Nossa Senhora e os Santos.

Do primeiro ao último dia do ano civil podemos encontrar estes

“convites” a lembrar e honrar Maria, a Mãe de Deus (Theotokos). São

pequenos sóis que iluminam, aquecem e alegram as possíveis horas que no

85 Ap 12,1.

101

decorrer do ano se nos deparam menos luminosas, menos quentes, menos

alegres86. Diz-nos Manuel Clemente que a devoção mariana:

“é a característica mais vincada da religiosidade popular. Manifesta-se especialmente no apego a Nossa Senhora sob variadas invocações, ou aos mistérios mariais e outras qualidades da Mãe de Deus. Quanto às invocações locais (ex.: Nossa Senhora deste ou daquele sítio), ou correspondem à comemoração dum facto milagroso aí ocorrido, revelando assim a confiança na intervenção solícita de Nossa Senhora, ou representam a consagração duma determinada comunidade à Mãe de Deus e dos homens sob cujo patrocínio se coloca ao dedicar-lhe um templo. As invocações ligadas a situações vitais (Senhora dos peregrinos, senhora da boa viagem, senhora da boa morte...) expressam a mesma fé enquanto garantia da continuada assistência de Nossa Senhora, sempre a corresponder com os momentos marcantes da vida. As invocações ligadas às grandes verdades mariais – Conceição, Virgindade, Assunção – são uma óptima base de evangelização. Partindo dessas comemorações, podem-se levar os fiéis à consideração mais alta do mistério cristão”87.

Conforme se pode verificar no quadro seguinte, são muitos os apelidos

com que as gentes do Douro invocam e veneram Nossa Senhora; também

podemos ver que as festas em sua honra se realizam mais durante os meses de

Agosto e Setembro. É de salientar ainda que, apesar de Janeiro começar com a

festa litúrgica de Santa Maria Mãe de Deus, Outubro ser o mês do Rosário e

Novembro começar com a Festa de Todos os Santos e Fiéis Defuntos, nestes

meses não se realiza qualquer festa de vulto (a nível popular) em honra de

Nossa Senhora.

No entanto, conforme se poderá ver no esquema, a seguir apresentado, e

segundo o levantamento efectuado, aproximam-se da centena as festas

realizadas na região do Douro em homenagem a Nossa Senhora; só no mês de

Agosto têm lugar perto de meia centena (48) de festas, nas mais diversas

localidades.

86 Nestes Verões (2003-2004) a mais invocada, devido à catástrofe dos incêndios, foi a Senhora e o Senhor dos Aflitos. 87 CLEMENTE, Manuel, op. cit., pp. 29-30.

102

MÊS DIA FESTA EM HONRA DE LOCALIDADE Janeiro 01 Santa Maria, Mãe de Deus Todas – Dia Santo Fevereiro

02 02 11

Nossa Senhora da Graça Senhora das Candeias Nossa Senhora de Lurdes

S. João de Lobrigos – S. Marta Louredo – S. Marta Penaguião Frechas – Mirandela

Março

25 25

Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Ribeira

Noura – Murça Valença do Douro - Tabuaço

Abril

20 21 21 27

Senhora Senhorinha Nossa Senhora de Lurdes Senhora do Rosário Nossa Senhora do Campo

Murça – Vila Nova de Foz Côa Nagoselo do Douro – S. João Pes São João da Pesqueira Almendra – V. N. de Foz Côa

Maio

04 30

Senhora da Rosa Senhora do Rosário

Sampaio – Vila Flor Vila Marim – Mesão Frio

Junho 27 Nossa Senhora da Guia Foz Tua – Carraz. de Ansiães Julho

06 13 13 27

Nossa Senhora dos Prazeres Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora dos Aflitos Nossa Senhora das Dores

Monte da Cunha – Alijó Pinhão – Alijó Murça Castedo – Alijó

A

G

O

S

T

O

01 01 03 03 03 03 03 03 03 -- 03 03 03 08 10 10 10 10 10 15 15 15 15 15 15 15 15 15 15 15 15 16 17 17 17 21 31 31

Nossa Senhora das Neves Senhora da Assunção Nossa Senhora do Loureiro Senhora da Graça Senhora das Neves Nossa Senhora do Amparo Nossa Senhora de Fátima Nossa Senhora da Guia Nossa Senhora do Bom Juizo e Nossa Senhora de Conduzende Senhora das Graças Nossa Senhora da Piedade Nossa Senhora dos Aflitos Nossa Senhora da Costa Nossa Senhora da Piedade Senhora do Rosário Nossa Senhora da Veiga Nossa Senhora do Viso Nossa Senhora da Guia Santa Maria Maior Nª. Sª. dos Montes Ermos Nossa Senhora da Piedade Nossa Senhora do Socorro Santa Maria de Barrô Nossa Senhora da Azinheira Nossa Senhora do Sabroso Nossa Senhora da Assunção Senhora da Glória Romaria da Senhora da Assunção Nossa Senhora da Assunção Nossa Senhora dos Prazeres Nossa Senhora da Saúde Nossa Senhora dos Remédios Nossa Senhora do Aviso Nossa Senhora da Esperança Nossa Senhora dos Remédios Nossa Senhora dos Aflitos Senhora dos Remédios

Pinhal do Norte – C. Ansiães Vilarinho da Castanheira Aldeias – Armamar Folgosa – Armamar Vila Seca – Armamar Mirandela Martim – Murça S. Miguel Lobrigos – S. Marta Adorigo – Tabuaço “ “ Róios – Vila Flor Sebadelhe – V. N. de Foz Côa Cedovim – V. N. de Foz Côa Seixo de Ansiães Sanfins do Douro – Alijó Freixiel – Vila Flor Vila Nova de Foz Côa Custóias – V. N. de Foz Côa Abaças – Vila Real Alijó Freixo de Espada à Cinta Oliveira - Mesão Frio Peso da Régua Barrô - Resende S. Martinho de Anta - Sabrosa Barcos - Tabuaço Torre de Moncorvo Peredo dos Castelhanos - Moncor Vilas Boas - Vila Flor Chãs - Vila Nova de Foz Côa Horta do Douro - V.N. Foz Côa Santa Comba - V. N. Foz Côa Carlão - Alijó Frechas - Mirandela Murça - Vila Nova de Foz Côa Lousa - Torre de Moncorvo Pegarinhos - Alijó São João da Pesqueira

103

A G O S T O

-- -- -- -- -- -- -- -- --

Senhora do Castelo Nossa Senhora do Bom Despacho Santa Maria Nossa Senhora da Nassa Nossa Senhora das Neves Nossa Senhora do Socorro Senhora da Alegria Senhora da Graça Senhora do Rosário

Adeganha - Torre Moncorvo Mafómedes, Sever - S. Marta Oiliveira - Mesão Frio Soutelo do Douro - S. João Pesq. Soutelo do Douro - S. João Pesq. Ervedosa do Douro - S. João Pes Riodades - S. João Pesqueira Trevões - S. João Pesqueira Vale de Figueira - S. João Pesq.

S

E

T

E

M

B

R

O

01 05 07 07 07 07 07 08 08 08 08 08 14 14 15 15 21

Senhora do Monte (Feira) Nossa Senhora da Graça Nossa Senhora das Graças Nossa Senhora de Jerusalém Nossa Senhora do Viso Senhora dos Remédios Nossa Senhora da Carvalha Nossa Senhora das Dores Nossa Senhora da Paixão Nossa Senhora dos Remédios Nossa Senhora do Torrão Nossa Senhora do Rosário Nossa Senhora da Pena Nossa Senhora de Belém Nossa Senhora da Boa Morte Senhora da Fonte Santa Nossa Senhora da Soledade

São João da Pesqueira Samorinha - C. Ansiães S. Mamede de Ribatua - Alijó Romeu - Mirandela Fontes - S. Marta Penaguião Vilarinho das Azenhas - V. Flor Freixo de Numão - V N Foz Côa Cotas - Alijó Arnal - Linhares - C. Ansiães Lamego Longroiva - Meda Sabrosa Mouçós - Vila Real Fontelonga - Meda Castanheiro - C. Ansiães Provesende - Sabrosa Mós do Douro - V.N. Foz Côa

Outubro Novembro Dezembro

08 08 08 08

Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Conceição

Meda Concieiro, Sever – S. Marta Pe Tabuaço Murça

Seria fastidiosa, por longa, a explicação e justificação destas festas, em

que se celebram mistérios, títulos e nomes atribuídos a Nossa Senhora; embora

fosse interessante saber quais e porquê tantos nomes, é de somenos

importância. Que importa saber se Maria é a Senhora do Socorro ou dos

Aflitos, da Graça ou dos Prazeres, de Lurdes ou dos Remédios, se é assim

invocada pelo povo? Sabemos, isso sim, que a mais clara expressão da

religiosidade popular das gentes do Douro é a devoção a Nossa Senhora.

No entanto, olhando para o quadro das festas em honra de Nossa

Senhora, também podemos concluir que a nossa linguagem popular duriense

está crivada de preces e de queixumes à Virgem. A esta Virgem, que devia ser

sorriso e esperança, chamamos-lhe Senhora da Agonia, das Dores, da Saúde,

da Boa Morte, dos Aflitos, do Perpétuo Socorro. Só num país muito pessimista

o socorro, em vez de ser uma coisa de surgimento rápido e relativamente rara,

104

é perpétuo. Mesmo a Senhora dos Remédios, parecendo que traz a solução,

mais não faz do que prolongar o queixume: o remédio remedeia mas não cura,

perante todo o obstáculo resignamo-nos com um «que remédio!»

2.5 – A Festa do Natal No centro do Natal não está apenas uma doce e dramática história

familiar, explorada pelo consumismo. No centro do Natal reside o mistério

fundamental do cristianismo, a Encarnação, em que Deus se veste da

fragilidade humana para a salvar. Sobre esse tempo litúrgico, o Directório

Sobre Piedade Popular e Liturgia, no nº. 106, refere:

“No tempo de Natal, a Igreja celebra o mistério da manifestação do Senhor: o seu nascimento humilde em Belém, anunciado aos pastores, primícias de Israel que acolhe o Salvador; a epifania dos Magos «vindos do Oriente» (Mt 2,1), primícias dos gentios, que em Jesus recém-nascido reconheceram e adoraram o Cristo Messias; a teofania junto do rio Jordão, em que Jesus é proclamado pelo Pai «Filho muito amado» Mt 3,17) e inaugura publicamente o seu ministério messiânico; o sinal realizado em Caná com que Jesus «manifestou a sua glória e os discípulos creram nele» (Jo 2,11) ... a piedade popular, precisamente porque intui os valores inerentes ao mistério do Natal, é chamada a cooperar na salvaguarda da memória da manifestação do Senhor, de modo que a forte tradição religiosa conexa com o Natal não se torne terreno de operações de consumismo e infiltrações de neo-paganismo”.

Realçando os dons que advêm do Natal, no dia 24 de Dezembro de 1985,

Miguel Torga, através de uma atitude interior de grande humildade e

reconhecendo a necessidade destas datas, escreve:

“Natal. E, só pelo facto de o ser, o mundo parece outro. Auroreal e mágico. O homem necessita cada vez mais destas datas sagradas. Para reencontrar a santidade da vida, deixar vir à tona impulsos religiosos profundos, comer88 e beber ritualmente, dar e receber

88 Se confrontarmos a Bíblia, aí aparece mil vezes a palavra comer; enquanto que a palavra rezar aparece cem vezes, realçando-se assim a atenção de Deus às necessidades básicas do Homem;

105

presentes, sentir que tem família e amigos. São dias em que estamos em graça, contentes de corpo e lavados de alma, ricos de todos os dons que podem advir de uma comunhão íntima e simultânea com as forças benéficas da terra e do céu... o dom de um Deus de amor e perdão, contra os mais pertinentes argumentos da razão”89.

O Natal é a afirmação de que Deus quis estar próximo do homem, de tal

forma que podemos dizer que o destino do homem é o destino de Deus. Por

isso dizemos que o Natal é festa, não porque o Pai Natal distribui prendas, mas

porque num dia longínquo, numa pequena aldeia da Palestina, a noite se fez

luz e essa luz tem rasgado as trevas do nosso coração e tem feito nascer nele a

esperança num mundo melhor.

Jesus Cristo não é um mito ou uma ideologia, é uma pessoa que entra na

raiz da nossa história e que até foi registado nos censos imperiais e que faz

parte da história humana. Por isso, Paola Cerami e Benno Scharf descrevem a

forma como se chegou à celebração dessa data:

“Nos primeiros séculos, a Igreja não celebrava o Natal. A data da Natividade era incerta (chegou a haver quatro datas diferentes para recordar o acontecimento) e são prova disso as opiniões discordantes dos Padres da Igreja. Por exemplo, Clemente de Alexandria, no início do século III, julgava «curiosidade demasiado extrema» a de querer saber o dia preciso em que nasceu o Senhor. A primeira vez em que aparece como data do Natal cristão o dia 25 de Dezembro é em 336 em Roma. No fim do século IV, a solenidade estava já difundida na Igreja, como nos confirma Santo Agostinho e, no século seguinte, também grande parte do Oriente aceitou essa data”90.

Aliás, no ano 274, o imperador Aureliano, preocupado com a expansão

da nova doutrina, tinha mandado construir o templo ao Sol «vencedor das

trevas» e tinha-o inaugurado no dia 25 de Dezembro, fazendo disso uma festa

popular pagã; provavelmente, a Igreja quis substituí-la por uma festa cristã.

89 TORGA, Miguel, Diário XIV, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 1453. 90 In Família Cristã, Dezembro 2002, p. 39.

106

Outra hipótese sobre a data é que a Criação teria sido iniciada no

equinócio da Primavera; ora interpretando literalmente o Génesis, o Sol teria

sido criado no quarto dia, isto é, no dia 25 de Março. Sendo Cristo o novo Sol

do mundo, a sua concepção, quer dizer, a Anunciação deveria ter-se verificado

no mesmo dia e, por conseguinte, o seu nascimento teria sido nove meses

depois, ou seja, no dia 25 de Dezembro.

Vários são os estudiosos que consideram muito pouco provável que esta

data esteja correcta. A explicação mais pertinente para este facto encontra-se

na própria Bíblia: «Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto,

ordenando o recenseamento em todo o Império» (Lc 2,1). Na explicação de

Rita Bruno, num artigo da Família Cristã, é referido que:

“Este censo de que se fala nunca poderia ter sido feito no pico do Inverno, pois os homens que percorriam as cidades não podiam fazê-lo com os caminhos impedidos pelas chuvas e pela lama. O facto de se celebrar o Natal a 25 de Dezembro está mais relacionado com uma conveniência dos homens do que propriamente com uma data histórica. Na cultura romana comemorava-se inicialmente neste dia o solstício de Verão, ou seja o início dos dias mais longos, a festa do Sol”91.

A este propósito, argumenta Peter Stilwell:

«num gesto que é comum à tradição cristã, de chegar a uma terra e procurar assumir a sua cultura, os cristãos transformaram a festa do “Sol astro” na festa do “Sol nascente” – que na Bíblia é Jesus Cristo – e da salvação que se inaugura com Ele. Festejar o Sol nascente permitia que quem se convertesse ao cristianismo não perdesse inteiramente as práticas e as referências culturais anteriores, mas as convertesse também.»92.

O Natal motiva vários eventos em torno do presépio, entre eles o da

apresentação de «presépios vivos», situados em locais estratégicos dos núcleos

urbanos. A instalação nos centros das vilas dos presépios decorativos e ao

vivo, deixa antever a intenção de valorizar aquelas zonas, onde existe bastante

91 In Família Cristã, Dezembro 2003, p. 39. 92 Explicação de Peter Stilwell, in Família Cristã, Dezembro 2003, p. 39.

107

comércio. Como já é tradição o Natal é festejado e vivido em comunidade e,

nos últimos anos, a recriação bíblica do Natal tem sido promovida pelas

edilidades e associações locais. A realização dos Presépios ao vivo pretende

revitalizar os valores da família e, simultaneamente, constitui uma

manifestação cultural com a participação da população local; pretende também

criar laços de união entre os membros da comunidade e elevar o espírito de

convívio.

O Natal é a grande festa da família ou, como diz Ramalho Ortigão, “das

tradições domésticas”. Mas se, primeiro, as famílias se reuniam à luz da

candeia, desfiando da memória histórias e lendas, agora, raras são as que

valorizam esses momentos, tronando-se muito mais atractivos os lugares de

diversão.

No meio de todas estas mutações, apenas sobreviveu a gastronomia:

quem é que hoje prescinde do bacalhau, do polvo, das tradicionais rabanadas,

dos bolinhos de bacalhau e de tantas outras iguarias? Constata-se que o Natal

está a perder a tradição. O que antes era uma época de muito carinho, união e

amor, em que as prendas oferecidas tinham apenas um valor simbólico,

transformou-se numa época de consumismo, onde a principal preocupação é a

troca de valiosas prendas.

Tendo por base algumas datas históricas, Paola Cerami e Benno Scharf

descrevem o aparecimento e a tradição dos presépios, que se foram tornando

um símbolo de encontro e reunião familiar e, ao mesmo tempo, espalham o

sentido da humildade, do amor e da paz entre os homens:

“As primeiras representações remontam aos finais do século III e princípios do século IV. A princípio, a cena da Natividade é representada nos sarcófagos: o Menino aparece representado numa manjedoura, com frequência num cesto de vime, por vezes até debaixo de um pequeno tecto, com um burro e uma vaca ao lado. Os pastores e os magos completam a cena. Depois, os artistas fundiram os elementos transmitidos pelos evangelhos de Lucas (a manjedoura e os pastores) e de Mateus (os Magos) com os relatos dos evangelhos apócrifos de Tiago e do Pseudo-Mateus, em que aparecem pela primeira vez o burro e a vaca.

108

O primeiro presépio foi realizado por S. Francisco de Assis em Greccio na noite de Natal de 1223. Era um presépio vivo, com personagens de carne e osso, isto é, aquilo a que depois se chamou a «a sagrada representação»”93.

A tradição espalhou-se, e igrejas e confrarias repetiram a cena. O termo

praesaepium (ou praesaepe em Santo Ambrósio) significava originalmente

«manjedoura» e o nome foi dado por extensão a todo o conjunto. A ideia do

presépio foi acolhida por toda a Europa e, a partir dos mosteiros, o presépio foi

cultivado como arte, tal como continuam a descrever Paola Cerami e Benno

Scharf:

“a passagem para o pequeno grupo escultório, isto é, para as estátuas de diversas dimensões, efectuou-se bem depressa: de facto, remonta a 1280 o presépio mais antigo que chegou até nós. Obra de Arnolfo di Cambio, encontra-se no Oratório do Presépio na Basílica de Santa Maria Maior em Roma. Só depois de 1600, por obra dos Franciscanos e dos Jesuítas, também nas casas privadas entra o costume de evocar a Natividade com um presépio próprio. Combatido pelos iluministas, que o consideravam um desperdício inútil, o presépio teve nova vida com o romantismo que via na construção cénica uma expressão da personalidade do artista. Autênticas obras-primas são conservadas hoje em museus e colecções especializadas”94.

E, se há tradições que nos encantam são certamente as tradições do Natal:

a consoada, a tradição da ceia, onde o bacalhau, as batatas e as couves parece

que até têm um sabor diferente dos outros dias!

Na nossa região as festividades da noite de Natal concentram-se na ceia

da Consoada; é uma ceia abundante que se serve ao calor da lareira, onde as

batatas, as couves e o bacalhau são bem regados com azeite e vinho, e que

reúne toda a família. No fim vêm as rabanadas, as filhoses, o arroz doce, a

aletria, o creme e os mais variados doces, prolongando a noite até à Missa do

Galo. Nalgumas aldeias não há a tradição da Missa do Galo; a missa é na

93 Imagem inventada por S. Francisco, que criou um presépio vivo com um menino e animais da aldeia, para melhor fazer passar a mensagem do nascimento do Messias. 94 in Família Cristã, Dezembro 2002, p. 41.

109

manhã do dia de Natal, com a igreja a “abarrotar” de gente, para “beijar o

Menino” e “admirar o presépio”.

A quadra natalícia está carregada de tradições e lendas cujo significado

muitas vezes é desconhecido. A dita mercantilização do Natal foi-se

apropriando do que de mais genuíno encerram estas tradições95. Fazem-se

árvores de Natal96, usam-se velas, vai-se à missa do galo, acendem-se as

lareiras, quase sempre, sem atender ao seu simbolismo. Um pouco para

reavivar o significado de alguns dos sinais natalícios, aqui fica a explicação de

alguns deles, sem contudo deixar em aberto outras hipóteses:

Por ocasião do Natal costuma usar-se como ornamento das casas, o

pinheiro e o abeto. Isso tem uma explicação e não é incompatível com o

presépio, como às vezes se diz. Quer um quer outro, sendo de folha perene,

simbolizam a vida eterna. Como é sabido, Jesus veio para que tenhamos a vida

e a tenhamos em abundância. Ele mesmo se apresentou como um tronco de

que somos os ramos. Na Sagrada Escritura fala-se da árvore da vida. Na

representação dos “mistérios” medievais era frequente o recurso à “árvore da

vida” que, segundo a lenda, se transformou na árvore da cruz da qual pendeu o

Salvador do mundo. Sendo Cristo, pendente da Cruz, o pão vivo descido do

céu, costumavam os medievais ornamentar a árvore do presépio com ofertas,

símbolo da Eucaristia, como fruto do sacrifício da Cruz. Daí o aparecimento

da árvore de Natal, carregada de frutas e guloseimas que Jesus oferece às

crianças. A tradição da árvore de Natal é de origem germânica e data do tempo

de S. Bonifácio. Foi adoptada para substituir os sacrifícios do carvalho

sagrado ao deus pagão Odin, festejando-se uma árvore de homenagem ao

Deus-Menino.

Uma das primeiras pessoas a adoptar o costume da árvore de Natal

parece ter sido a rainha Carlota, esposa de Jorge III, de Inglaterra, que nas

festas cristãs do fim do ano, a enfeitava com brinquedos, doces e lanterninhas.

95 in Voz Portucalense de 19.12.2001. 96 Na época de Natal, sobretudo nas vilas durienses, é costume iluminar uma grande “Árvore de Natal”.

110

Além do pinheiro e do abeto usam-se na quadra natalícia, para adorno

das casas, outras árvores. Cada uma delas tem o seu significado. O azevinho,

por exemplo, com folhas agudas e as bagas vermelhas, cor de sangue, lembra-

nos que Jesus nasceu para usar, por nosso amor, uma coroa de espinhos.

Simboliza também a sarça ardente, no meio da qual Deus falou a Moisés. O

azevinho liga-se à história cristã como a planta que permitiu esconder Jesus

dos soldados de Herodes. Em compensação, diz a lenda, foi-lhe dado o

privilégio de conservar as suas folhas sempre verdes, mesmo durante o mais

rigoroso dos invernos.

Também a Fogueira de Natal tem a ver com um sapateiro que há muito,

muito tempo, vivia numa cabana no meio da floresta, bastante longe da

povoação. Passavam por ali muitos viajantes e, para que não se perdessem nos

trilhos da floresta, o sapateiro, ainda que muito pobre, colocava durante a noite

uma vela acesa na janela da cabana. Mesmo nos invernos mais rigorosos ou

nos períodos de guerra, ou mesmo quando estava doente, nunca o sapateiro

deixou de ter a vela acesa. Pensa-se que o uso de colocar velas nas janelas

durante as festas natalícias, sobretudo na Idade Média, terá aqui a sua origem.

Podemos assim dizer que a vela de Natal simboliza o nascimento do Menino

Jesus, a Luz do mundo. Também a tradicional Fogueira de Natal tem raízes

profundas em muitas localidades do Douro; depois de se juntarem troncos e

toda a lenha possível, depois da ceia e antes da Missa do Galo, as pessoas

juntam-se, em alegre convívio, à volta da enorme fogueira97, que muitas vezes

dura vários dias98.

A missa do galo é outra tradição que está ligada a Toledo, Espanha. No

dia 24 de Dezembro, por volta da meia-noite, os lavradores de Toledo

matavam galos, lembrando aquele outro que cantou três vezes quando Pedro

negou Jesus. Os galos eram de imediato levados para a igreja e oferecidos aos

pobres para o almoço do dia de Natal. Posteriormente, em Espanha e em

97 Geralmente a fogueira tem lugar junto à Igreja ou no largo central da localidade. 98 Anexo V.

111

Portugal, os lavradores começaram a levar um galo vivo para a missa do dia

de Natal, celebrada ao alvorecer. Se o galo cantasse durante a missa, para os

lavradores era prenúncio de um ano próspero. Caso contrário, era sinal de mau

ano agrícola. Com o tempo esta missa do romper da aurora foi caindo na meia-

noite, ficando-lhe a marca de “missa do galo”.

Lê-se no Evangelho apenas que “alguns sábios” vindos do Oriente

disseram: “vimos a sua estrela (de Jesus) e viemos adorá-lo”99. Não diz

quantos eram nem o seu título de realeza; a tradição popular fixou o número

de três e passou a chamar-lhes Gaspar, Melchior e Baltasar. Nesta data alguns

grupos de pessoas e jovens costumam cantar os Reis ou Janeiras, indo pelas

ruas, de porta em porta, entoando canções apropriadas:

Ano novo, ano novo, ano novo, melhor ano; vimos cantar as Janeiras como é de lei cada ano. Boas festas, santas festas, está a alba a arruçar; venham-nos dar as Janeiras que temos muito p’ra andar. Levante-se daí, senhora, desse banquinho de prata; venha dar-nos as Janeiras, que está um frio que mata.

Manda também a tradição que, em casa de pessoas avarentas se cante

quadra malandra.

No dia 6 de Janeiro, festa de Reis, a tradição ainda é o que era nalgumas

localidades, em especial, Amieiro (Alijó) e Porrais100 (Murça): grupos de

pessoas percorrem as ruas levando o Menino Jesus, cantando e desejando as

boas-festas e um bom ano novo aos moradores, cantando versos como estes:

99 Mt 2,2. 100 Costuma ser no dia um de Janeiro e o leilão tem lugar no fim da missa do domingo seguinte.

112

No dia 6 de Janeiro, quando o sol ia a raiar, baptizaram o Deus Menino numa pia de cristal. E estes Reis que nós cantamos são da imagem da cruz, e as esmolas que nos derem são para o Menino Jesus.

Visitam todas as casas da aldeia, dão o Menino a beijar e recebem em

troca dinheiro, produtos da terra ou fumeiro. O dinheiro e os produtos, depois

de leiloados, revertem para a Igreja. Em Amieiro a honrosa tarefa de

transportar o Menino Jesus, é decidida em leilão.

2.6 – A Festa da Páscoa Começou por ser uma festa judaica que assinalava a libertação do povo

hebreu da escravatura egípcia. Antigamente era a festa da primavera que

coincidia, nas tribos nómadas, com a partida dos rebanhos para o pasto e a

manducação do cordeiro cozido com ervas amargas do deserto.

A Páscoa cristã celebra a paixão, morte e ressurreição de Jesus; é o

tempo do júbilo e da exultação de toda a criatura: o homem, em primeiro

lugar, com o Aleluia; mas toda a criação, representada nos timbres

instrumentais, acompanha, intensifica e prolonga a exultação da humanidade.

Nesta altura surgem nos campos as flores por revoadas de cor; ou seja, por

altura da Páscoa são violetas, semanas depois só nascem espécies amarelas

(malmequeres, tremoceiros, giesta, mimosas, narcisos, lírios, etc.), seguindo-

se-lhe uma nova onda, desta vez encarnada, com as papoilas a darem nas

vistas. Porque será? Uma questão de sol, de composição química da terra,

efeito dos extraterrestres, ou preferência cromática de Deus Nosso Senhor?

Se a festa cristã possui alguma originalidade, deve-a a um facto decisivo

e fundamental, donde aquela tira todo o seu sentido: Jesus que morrera, está

agora vivo. Cá está o centro de funcionamento de toda a festa cristã, a

celebração da Ressurreição de Cristo, que venceu a morte.

113

Como não podia deixar de ser, Miguel Torga fala assim desta festa: “Era

Páscoa. O Pedro Só, o sacristão, trazia a mesma opa vermelha, reluzente, cheia

de pingos de cera, e o crucifixo vinha como outrora enfeitado de amores-

perfeitos”101.

A visita pascal ou compasso, como vulgarmente é conhecido, constitui

uma tradição anualmente celebrada no Douro, desde sempre no recuar da

memória das gentes. É considerada a mais cristã das tradições e era preparada

com entusiasmo; era uma paragem nos trabalhos agrícolas, para fazer a grande

limpeza anual na casa, caiá-la por fora e por dentro, etc.

A entrada em casa da Cruz, cuidadosamente enfeitada, e do Pároco era

um momento de solene respeito, em que todos ajoelhavam. O sacerdote

aspergia os presentes e o lugar com a água benta e todos beijavam a Cruz.

Desde há alguns anos que esta tarefa é desempenhada por seminaristas e leigos

dado que o prior não pode chegar a todo o lado. Eles vão contactar a fé dos

homens e levar consigo a memória daquele que esteve pregado numa cruz,

mas que ressuscitou e restituiu a alegria e a esperança ao mundo.

Nestas equipas há que salientar a acção dos leigos e o passo dado com a

presença das mulheres nessa acção de piedade popular, partilhando a breve

celebração do anúncio de Cristo ressuscitado. Trata-se de uma prática que

deve ser fomentada, não apenas pelo seu carácter comunitário de celebração e

presença, mas também porque pode permitir o conhecimento e o diálogo entre

habitantes de um mesmo edifício, que tantas vezes até mal se conhecem.

Assim a vivência da fé pode também ajudar a criar comunidade. O religioso

assume por essa via a sua missão: promover o entendimento, a compreensão e

a caminhada comum das pessoas.

A tradição manda que se limpem e arejem as casas, no dia anterior ao

Domingo de Páscoa, da mesma forma que o preceito católico o determina para

as almas nesta quadra. A tradição manda que se receba a cruz de Cristo

ressuscitado nas suas casas, pelo Domingo de Páscoa, e o povo de Deus assim

101 TORGA, Miguel, A Criação do Mundo (Obra Completa), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001, p. 152.

114

o faz em alegria e respeito, beijando com devoção a Cruz; a tradição ainda é o

que era, no país profundo, nas terras durienses. Nas aldeias nunca se extinguiu

a ancestral tradição das terras nortenhas. Nas cidades houve tempos em que

ela parecia definhar e morrer. Nos últimos anos, porém, notou-se uma

revivescência digna de registo e de análise sócio-religiosa. Apesar de algumas

reticências e resistências por parte de conceitos e práticas pastorais, a

restauração do compasso tornou-se um sinal da afirmação da religiosidade

popular, que vale mais pelo que significa do que pelo que é. Regista e reafirma

a tradição e isso não nasceu nem de decretos nem de orientações oficiais, mas

da vontade do povo que representa e vivencia nela a presença da sua alma e da

sua fé.

O rapaz da sineta, o homem da caldeirinha com a água benta, o homem

com a Cruz florida e o abade ou alguém que o substitua, assim se forma um

compasso pascal para levar Cristo ressuscitado a todos os lares. Celebrar a

Páscoa é também adoçar a boca; mais que as amêndoas e os chocolates, há

tradições na doçaria que ainda não se perderam e enfeitam, nesta ocasião,

muitas mesas.

Durante o compasso era hábito colocar sobre a mesa um prato com ovos

e outro com laranjas102; o significado desta tradição, segundo algumas

versões, é que a laranja representa o coração de Cristo, enquanto que o ovo

simboliza a Sua Ressurreição (como imagem do início da Vida).

Também as amêndoas, pela sua configuração, julga-se simbolizar a

consagração do ovo. É um presente alimentar cerimonial dos mais populares e

característicos da doçaria desta quadra.103

102 A quantidade (meia dúzia, uma dúzia ou mais) dependia das possibilidades do ofertante. 103 Particularmente famosas são as amêndoas da Páscoa de Torre de Moncorvo (amêndoas cobertas).

115

2.7 – A Festa do Corpo de Deus Procissão levada a efeito cada vez com mais entusiasmo e adesão

popular. É que quando se acredita nem o intenso calor de Junho é capaz de

desmobilizar o povo. A abrir o cortejo em tom festivo o garbo e aprumo da

fanfarra, agrupamento de escuteiros, as Cruzes Paroquiais e sob o Pálio, o SS.

Sacramento nas mãos do sacerdote. Logo após o Pálio seguem as autoridades

civis e militares e, finalmente, muito povo.

Com orações, cânticos e trechos musicais executados pela Banda, se vai

percorrendo o trajecto, engalanado com colchas em muitas varandas, “verdes”

e flores pelo chão: beleza única dos tradicionais tapetes de flores, feitos com

pétalas de flores naturais. Nunca será demais realçar o respeito, o muito

respeito, com que as pessoas “assistem” à passagem do SS. Sacramento. Não

se pode medir a fé de cada um mas o silêncio, a reverência e, muitas vezes, o

ajoelhar diante de Cristo que passa debaixo do pálio, são sinais inequívocos

dessa fé.

A procissão do Corpo de Deus é uma forma de manifestação pública da

fé em Cristo - Eucaristia, o sustento dos apóstolos e dos mártires. É uma

manifestação pública porque a vida dos cristãos não se pode confinar aos

templos nem ao culto privado.

A procissão do Corpo de Deus é Cristo a percorrer os caminhos dos

homens, os mesmos por onde andamos todos os dias. É Cristo a calcorrear as

ruas das cidades, das vilas ou das aldeias, para continuar a dizer a todos os

homens o mesmo que disse, há já dois mil anos, nos caminhos da Palestina:

Este é o Pão vivo que desceu do céu...

A fé na Eucaristia104 está no centro da vida cristã; Jesus está presente nas

espécies do pão e do vinho para alimento espiritual dos cristãos. Foi Ele

mesmo que deixou esse divino testamento aos seus, antes de morrer. Na 104 Que levou S. Tomás de Aquino a exclamar: “Adoro-te, Deus escondido / Presente debaixo das espécies do pão e do vinho / Não vejo as tuas chagas como Tomé, / Mas confesso-te como meu Senhor e meu Deus. / Peço-te que me dês o que mais desejo: / Ver-te face a face na glória!”

116

Quinta-feira santa, sentado à mesa para a Última Ceia, disse: Isto é o Meu

Corpo... Este é o Cálice do Meu Sangue... Fazei isto em memória de Mim.

Roubar ou deixar esmorecer esta fé seria defraudar parte da nossa vida.

Na liturgia ou culto público da Igreja, a festa do Corpo de Deus aparece

em pleno século XIII, numa atmosfera de louvor e exultação espiritual, de

meditação sobre as inesgotáveis riquezas da Eucaristia e de agradecimento a

Cristo pelo dom total de Si mesmo. E nesta festa religiosa que hoje chamamos

“Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo” entra, como

manifestação pública a procissão – “procissão do Corpo de Deus” – a

designação que se tornou clássica no mundo cristão, onde era costume

integrarem-se todos os corpos sociais. Num artigo sobre esta festa, José de

Farias revela que:

“a primeira vez que a Festa do Corpo de Deus foi celebrada em toda a Igreja foi no ano de 1265 e, de então para cá tem sido uma celebração contínua, sendo entre nós dia Santo de Guarda, com dignidade igual à do Domingo”105.

O povo português tem uma profunda e sincera devoção ao Santíssimo

Sacramento; celebra esta solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

com amor, fé, devoção, entusiasmo e alegria interior. Em todas as sedes de

concelho se realiza a Festa do Santíssimo106; entre nós, é em Vila Real que tem

maior realce. Por exemplo, o jornal “O Vilarealense”, de 21/06/1962, diz o

seguinte:

“Esta tarde e de acordo com respeitáveis e velhos hábitos, que se renovam de ano para ano, na fé e na crença dos povos, sai da secular igreja de S. Domingos, hoje elevada à categoria de Sé, a sumptuosa Procissão de Corpus-Cristi. No cortejo, que revestirá a maior pompa, encorporam-se, além do ilustre Prelado da Diocese, as autoridades civis e militares e tudo que é representativo no meio, incluindo o povo em eloquente multidão”.

105 FARIAS, José Jacinto Ferreira de, scj, in Família Cristã, Junho 2003, p. 42. 106 Festa do Corpus Christi, expressão litúrgica, assumida em 1247, ano em que em Santarém, aconteceu o Santíssimo Milagre. A procissão do “Corpus Christi” remonta aos tempos medievais e tem um protocolo rigoroso.

117

2.8 – Algumas Tradições Na sua linha de conselhos sábios e pertinentes S. Paulo tem uma

expressão cheia de vigor: tenete traditiones que quer dizer conservai as

tradições (1Ts 1,20). Este verbo latino, com força e densidade, exprime a ideia

de segurar qualquer coisa, neste caso, segurar, agarrar, guardar as tradições,

“conservar as tradições” (1 Cor 11,2).

Como diz Gustave Le Bom, “as tradições representam as ideias, as

necessidades, os sentimentos do passado. São a síntese da raça e pesam muito

sobre nós... os verdadeiros guias dos povos são as suas tradições”107.

É nas nossas aldeias que ainda se vivem as mais belas tradições. Por isso,

é que nada pode substituir as festas da aldeia (Santos Populares e Padroeiro/a),

as vindimas, as malhadas, a matança do porco...

A riqueza arqueológica desta região vai da Pré-História Paleolítica,

passando pela Civilização Castreja, à Idade Média. Aqui moram pessoas que

respeitam e sabem valorizar a herança dos seus antepassados; aliás, o próprio

cultivo do vinho é uma herança secular dos Romanos.

Costuma-se ouvir dizer que “a tradição já não é o que era...” mas, ao

longo do ano, teimosamente, ainda têm lugar certas tradições ligadas à vida

das pessoas. Isto acontece mais nas aldeias onde “a vida tem um ritmo que a

cidade nunca poderá entender”108. Por isso é que subsistem ainda muitas

tradições:

“Os casamentos” no Carnaval: consistia em casar as pessoas solteiras

umas com as outras. Na véspera de Carnaval, à noite, um grupo de

homens ia para o cimo de um monte com um funil grande e

anunciavam os casamentos de maneira a fazê-los rimar:

“Rapazes e raparigas

107 BON, Gustave Le, Psicologia das Multidões, Mem Martins, Publicações Europa-América, p. 54. 108 TORGA, Miguel, Diário IV, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 387.

118

Uma coisa vos vou dizer , Oh que rico casamento Eu agora vou fazer! O Carlos que é muito inquieto Vai casar-se com a Ana Filha do Senhor Norberto”109.

No meio da quaresma fazia-se a partilha do burro que consistia no

seguinte: alguns homens iam para um lugar alto e, com um grande

funil, iam dividindo o burro, dando a cada comadre uma porção,

incluindo as tripas e as patas, dando as piores porções às mulheres por

quem tinham menos simpatia. Depois, na semana seguinte, faziam as

divisões do boi para os compadres, procedendo da mesma maneira.

Em Nogueira, no primeiro dia de Maio, os homens que andavam todo o

dia a lavrar voltavam para casa, ao fim da tarde, vestindo-se de

Maias110 e percorriam as ruas da localidade com as enxadas, cantando

“viva, viva, viva o Maio”. Com bombos, música e alegria o desfile das

Maias é uma tradição que ainda se vive, baseada numa outra: a de

colocar giestas, nas portas de casa, “para não deixar que a fome lá

entre”.

Dia 13 de Dezembro, dia de Santa Luzia, nos calendários dos

enamorados de Vila Real, é marcada a tradição da namorada ou esposa

oferecer o “pito”111 ao companheiro.

O dia costuma ser festejado com Missa e procissão, em honra de Santa

Luzia. Mas esta é a primeira parte da tradição, pois no dia de S. Brás

tem continuidade a tradição; os rapazes entregam às namoradas as

109 Nalgumas localidades do concelho de Murça. 110 Assim chamadas as giestas de Maio. 111 Doce conventual, cuja receita tem como ingredientes: farinha, banha, água e sal amassados, e um recheio de doce de abóbora, em forma de uma pequena troucha.

119

“ganchas”112, retribuindo assim a oferta do “pito”, feita no dia de Santa

Luzia. Para alegrar a troca há música e a habitual programação religiosa

em honra de S. Brás. As “ganchas” são compradas junto à capela de D.

Dinis, onde está a imagem de S. Brás, ou nalgumas casas de doçaria

tradicional. A tradição da romaria de S. Brás, que se perde no tempo, é

cumprida a preceito e lembrada por aqueles que sofrem da boca e

garganta. Conta a lenda que S. Brás113 encontrou uma pobre mulher que

tinha ao colo uma criança com uma espinha entalada na garganta;

colocou as suas mãos no rosto dela e na zona dorida e, ao fim da

oração, deu-se o milagre: a espinha desapareceu. Associada a esta lenda

apareceram as “ganchas de S. Brás”, um original rebuçado, em forma

de bengala (a imitar um ícone do báculo episcopal) e utilizado,

também, como remédio para curar os males da garganta, cuja forma

serviria como espátula, para fazer chegar à zona afectada do enfermo,

algumas substâncias para aliviar as suas dores, nomeadamente o mel,

ervas medicinais e outros unguentos. Também há quem garanta que

serviria para desimpedir a garganta de alguma espinha ou osso

arreliador.

A piedade popular à Bem Aventurada Virgem, variada nas suas

expressões e profunda nas suas motivações, é um facto eclesial

relevante e universal. Daí que na tradição ainda se continue a dedicar o

mês de Maio a Maria, o que leva as pessoas a sair de casa,

nomeadamente à noite, para o «mês de Maria». Esta é uma tradição

antiquíssima em toda a região, como relata “O Vilarealense”, de

16/05/63, na sua rubrica “Há 50 Anos” (15-5-1913): 112 As garridas e doces “ganchas” estão associadas a uma brejeirice, de raízes populares, na qual aparece o outro doce tradicional: os “pitos”. Estes, oferecidos pelas raparigas aos rapazes, no dia 13 de dezembro, têm a retribuição da “gancha”, por parte destes, no dia de S. Brás. A “gancha é um doce que na sua composição leva água, açúcar, limão ou, em alguns casos, eucalipto e ervas balsâmicas. Todos estes ingredientes são misturados e levados ao lume até atingirem o “ponto de rebuçado” ; esta massa é estendida num tabuleiro e cortada às tiras. Em seguida, segundo a imaginação de cada um, é moldada pelas mãos. 113 S. Brás viveu nos primórdios do séc. IV e foi Bispo, em Sebaste, na Arménia.

120

“Na Capela Nova tem continuado, com a presença de grande número de senhoras e cavalheiros, num conjunto de fieis, vindos de todo o concelho, os exercícios religioso do Mês de Maria. Abrilhantaram o acto audições de canto e órgão, que são muito apreciadas. O encerramento, em 1 de Junho, far-se-á com luzidas cerimónias, as quais rematam com sermão pelo Rev. P.e Luís de Azevedo Castelo Branco”.

Em Celeirós do Douro, no dia 8 de Dezembro, pelas dez horas, há

missa solene e procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição; às

dezasseis horas procede-se à distribuição gratuita de uma chávena de

chocolate quente, no Largo da Capela da Fonte, seja a quem for, da

freguesia ou visitante.

A seis de Agosto, em Sabrosa, celebra-se a festa do Divino Salvador,

padroeiro desta vila; também aqui há uma tradição bastante antiga:

andores pequenos transportados por crianças, daí ser conhecida como a

“Festa das Crianças”.

Nalgumas localidades (por ex. Valença do Douro - Tabuaço) é costume

levar a efeito o Auto da Paixão de Cristo; além de serem recriados

alguns quadros bíblicos por vários figurantes, há um homem que, ao

longo de alguns quilómetros, transporta uma pesada cruz (130 quilos),

qual Cristo a caminho do Calvário.

Na Páscoa, durante o compasso, há em Murça uma tradição

denominada “o rapé do Seixo”; consiste este num pó esquisito que faz

espirrar e que o senhor Abade tem de oferecer aos do Seixo para poder

entrar no referido bairro. O rapé do Seixo faz espirrar “de maneira tal

que os lenços normais não bastavam para acudir ao corrimento que do

nariz corria pela barba, depois das tossidelas ásperas, repetidas”114. Não

se ficava por aqui a narrativa: “À saída para o fundo do Cabo, teria de

entregar um ramo de flores a dois senhores que, no ano seguinte,

114 MURÇA DOS ANOS 10 A 30 (MEMORIAS DE INFANCIA E DE JUVENTUDE) por Francisco Fernando de Freitas, citado in António Luís Pinto da Costa, O Concelho de Murça (Retalhos para a sua História), Murça, Câmara Municipal de Murça, 1992, p. 413.

121

pegariam no honroso cargo de oferecer dois almudes de vinho para

aquela gentinha toda se refastelar... não proves, nem toques sequer com

os lábios nos copos, que estão besuntados de malagueta”115 - era

instrução a ter em conta.

“Abrir cancelas”, “furar os cântaros” (que aguardavam vez nos

fontanários), “roubar” ou trocar os vasos das plantas (que,

misteriosamente, apareciam no largo da aldeia), “serrar a velha”,

“queimar o Judas”, participar nas segadas e malhadas, são algumas,

entre tantas, das tradições que, perante outras referências e valores da

nossa sociedade, se vão ingloriamente perdendo.

3 – As Romarias

Cada povo, cada homem tem a sua identidade própria, inconfundível.

Perante a vida e a morte, desde sempre o homem sentiu a sua fragilidade,

colocou nos deuses o seu destino e com eles negociou alianças; o homem é um

animal religioso. É nas romarias que se nos revela uma das melhores formas

de expressão da religiosidade popular. O movimento, a cor, a música, o

folclore, a devoção, a missa, a procissão, a promessa, a feira, a merenda, o

convívio, o regresso a uma natureza mítica, purificadora, o renovar energias

perdidas, o mergulhar as raízes na terra de origem, tudo isto faz parte da festa,

tudo faz parte da romaria.

Cremos não haver ruptura entre religião oficial e religião popular, até

porque quem frequenta uma, participa na outra. Os Santos que uns veneram na

nas igrejas, outros festejam nas romarias; as orações são iguais e os actos de

culto, centrados sempre na Missa e na Procissão, também não diferem.

A romaria é sem dúvida uma tradição cultural ainda hoje imponente no

contexto etnográfico português. Se, por um lado, a evolução histórica tem

desvanecido certas características proeminentes da mesma, por outro,

115 Idem, ibidem, p. 413.

122

contribuiu para a sobrevivência e afirmação de outras. O impacto e o

enraizamento da romaria é deveras impressionante nalgumas zonas do País,

nomeadamente no Douro.

Não podemos descurar, também em todo o recheio específico das

romarias a assinalável participação dos ranchos folclóricos e as filarmónicas

ou bandas de música que não deixam de marcar presença nas referidas

romarias.

As romarias são uma herança e as forças mestras da expressão cultural

que se propalam de geração em geração. A romaria não é somente uma

iniciativa momentânea; ela é também a afirmação do que já se tornou habitual

em tempos mais recuados: um rito ligado ao costume dos antigos.

As romarias de Verão estão bem enraizadas nos hábitos e costumes das

gentes do Douro; durante este período, não há concelho que não tenha festas

espalhadas pelas suas aldeias ou na sede do município. Muitas delas, com

origem em celebrações de índole religiosa, transformaram-se em verdadeiros

festejos populares em que a música e o comércio ambulante são os principais

ingredientes.

Para definir o perfil biográfico da gente transmontana e duriense, Miguel

Torga, numa pincelada de religiosidade mais ou menos folclórica, diz assim:

“Nas romarias, verdadeiramente, não se divertem. Pagam nelas o dízimo espiritual ao santo ou à santa com quem têm contratos pelo ano fora, e fazem a barrela das suas relações humanas. A capela da devoção fica no alto do mais alto monte que rodeia a freguesia. E eles sobem então pela serra acima, quer à vara do pálio, quer a alombar o andor, quer de joelhos, a abrir uma chaga de sofrimento no corpo pecador. Sobem numa penitência inteira”116.

As romarias são um prolongamento, um espaço mais amplo de liberdade,

onde a expressão corpórea se dimensiona de forma diferente e tudo se

processa com mais calma e alegria. Na Igreja entra-se a correr e sai-se a

correr; mal se tem uma conversa, porque não se tem tempo, porque o almoço

116 TORGA, Miguel, Portugal, 3ª. ed. revista, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, p. 39.

123

está por fazer, não se bebe um copo porque parece mal ir a cheirar a vinho...

na romaria já não é assim. Há tempo para tudo, até para feirar, para provar a

merenda dos amigos, para dormir uma soneca; cada um vai para seu lado, sem

ninguém a olhá-lo ou a censurar as suas atitudes. O povo gosta de se

movimentar, de se sentar ou levantar, de fazer o seu comentário117 se vier ao

caso, sente necessidade de se expandir; olha as árvores, contempla a natureza,

compara os campos à volta com os seus, pede ao Santo a água ou o sol118. As

duas vertentes ocupacionais do homem antigo eram a terra e o mar; por

consequência, é aí que florescem as romarias.

À solenidade das grandes festas religiosas, vividas no interior das igrejas

e catedrais, como a Imaculada Conceição, o Natal, a Páscoa, o Corpo de Deus,

o Santo Padroeiro, junta-se, sem se opor, a romaria alegre, desinibida, lúdica,

onde o canto, a dança, o folclore dão as mãos.

As romarias desempenham uma função social tão importante que é quase

impossível quantificar os seus benefícios; elas são, de certeza, o elemento

mais fortemente agregador dos membros de uma comunidade. O regresso à

terra, o mergulhar das raízes no passado, o reavivar dos laços familiares, de

amizades, o matar saudades, o renovar de energias, o convívio, o saborear do

bom vinho, pão, azeitonas e chouriço caseiro, o sentar-se à volta da lareira

com o velho pai e mãe, conhecer os que, entretanto, nasceram, tudo é alimento

do ser humano. Mas, em todas as romarias, a grande força que agrega e atrai

os fiéis é a sua devoção e fé; quanto mais milagreiro for o Santo, mais devotos

tem.

A maior parte das romarias situa-se nos outeiros, no alto dos montes, nos

despenhadeiros sobre o mar, nos vales; sempre em lugares que foram e

continuam a ser privilegiados pela natureza. As romarias têm quase sempre

uma dimensão local, outras são apropriadas por uma região e são raras as que

usufruem o direito de abranger um país inteiro.

117 Ouvido de passagem: “os tremoços amarujam”, “vamos bochechar”; é quase um código para dizer que os tremoços amargam e vamos beber. 118 É que ele sabe que “no tempo só Deus é que manda e ainda bem”.

124

Às capelas das romarias também é usual dar-se o nome de ermida; vem-

lhes o nome dos monges Ermitas, que procuravam o isolamento do mundo na

montanha, em lugares ermos, quase sempre privilegiados pela natureza, que

convertiam a sua gruta em templo e na penitência realizavam a sua ascese.

Afinal, “a romaria é dos simples: pobres, caçadores, pastores,

agricultores, viandantes, ciganos, cumpridores de promessas; no alpendre da

ermida os pobres convivem com os santos, partilham a mesma merenda e

aquecem-se à mesma fogueira”119.

3.1 – Nossa Senhora dos Remédios Num primeiro momento, ao atribuir este título à Virgem Maria,

poderemos pensar que ela é a «maravilhosa farmácia» onde se pode encontrar

um lenitivo eficaz para qualquer doença ou aflição. Com certeza que alguns

assim crêem. Segundo consta, esta invocação terá sido pregada em Portugal

pelos membros da Ordem Trinitária, que a trouxeram e espalharam no nosso

país.

Na verdade, narra-se que S. João da Mata, juntamente com S. Félix de

Valois, fundara aquela Ordem para a redenção dos cativos (séc. XII) e que,

não tendo dinheiro para o fim em vista, lhe aparecera Nossa Senhora,

entregando-lhe uma bolsa cheia; desta maneira, deu «remédio» a uma grave

situação. E, a partir daí, começaram a dar à Virgem o nome de Nossa Senhora

dos Remédios. Talvez por isso, as suas imagens aparecem com a mão direita

estendida, como quem oferece alguma coisa, enquanto que a esquerda segura

o Menino, fonte do poder contra os males.

O actual santuário deve-se à iniciativa do cónego José Pinto Teixeira. A

primeira pedra foi lançada a 14 de Fevereiro de 1750 e em 1771 estava

119 Ana Vicente, António Romeiro et alt., Cultura Popular Portuguesa - Investigar para recordar, com passado, presente e futuro, Idanha-a-Nova, Centro de Formação de Associação de Escolas da Raia Centro, 1999, p. 26.

125

erguido o templo, que foi benzido a 22 de Julho do referido ano. As obras do

escadório só vieram a concluir-se no século XX.

A monumental escadaria é constituída por 772 degraus120, interrompidos

por três patamares. No primeiro, vê-se a Fonte do Pelicano, de onde jorra a

fresca água do monte; no segundo, encontra-se uma capela octogonal que o

bispo D. Manuel de Noronha mandou edificar em honra da Virgem Maria; o

terceiro é o pátio dos reis.

A devoção a Nossa Senhora dos Remédios, além de muito antiga,

continua ainda a ser muito querida do povo. A atestá-lo estão não apenas as

freguesias121 que a tomaram como orago, mas as muitas capelas levantadas em

sua honra, o número de imagens espalhadas pelo país e as festas que em sua

honra se celebram.

As primeiras notícias relativas a estes festejos remontam a 1745, mas a

grande popularidade não irá além do início do século XIX, quando se passa a

incluir luminárias, músicas, passando Lamego a atrair anualmente gente de

todo o Norte e Sul do país.

A romaria de Nossa Senhora dos Remédios tem início em Agosto, com

os habituais preparativos das festas, onde não faltam: concentração de

motards, espectáculos musicais, as rusgas populares, a marcha luminosa, os

festivais de pirotecnia e a procissão que atraem todos os anos milhares de

pessoas que enchem as ruas de Lamego para “ver a festa dos Remédios”; no

dia 6 de Setembro, a imagem de Nossa Senhora é levada em procissão, desde

o Santuário até à Igreja das Chagas. No dia 8 é o auge, com a Procissão do

Triunfo. O cortejo religioso é aqui invulgar: os andores, representando cenas

da vida da Virgem, são puxados por juntas de bois122, situação única no país e

120 Em cumprimento de promessas, há quem suba todo o “escadório” de joelhos. 121 No Continente: Messejana, no concelho de Aljustrel, diocese de Beja: Corticeiro de Cima, concelho de Cantanhede, diocese de Coimbra; Bom Sucesso, concelho de Figueira da Foz. Nas ilhas: Fajãzinha e Remédios, diocese de Angra do Heroísmo; Quinta Grande, no concelho de Câmara de Lobos, diocese do Funchal. 122 Como são já raros na região, os bois que puxam os andores pertencem a lavradores das zonas de Aveiro e do Minho; esta tradição está ligada a esses animais que nas margens do rio Douro puxavam também os barcos rabelos.

126

que teve autorização especial da Santa Sé, a partir de Abril de 1925. A

utilização dos bois tem a ver com o peso dos andores e com o uso do carro de

bois como meio de transporte agrícola. O desfile, com muitos figurantes de

quadros litúrgicos e anjinhos, composto por mais de 300 figuras bíblicas, três

bandas de música e cinco andores, – a que concorre a curiosidade e a emotiva

participação e assistência popular – percorre várias artérias da cidade até à

Igreja de Santa Cruz. Segundo a organização as festas deste ano (2003)

custarão à volta de cinquenta e cinco mil euros.

A romaria de Nossa Senhora dos Remédios, que ocorre em Lamego, tem

o seu ponto alto de 6 a 8 de Setembro, é um caso de evocação da Virgem,

comum a outras romarias: Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora do

Socorro, etc, formas diversas que a devoção popular encontrou para louvar

Nossa Senhora.

3.2 – Nossa Senhora da Piedade Segundo consta, a primeira festa realizou-se em 1829; já em 1909,

Joaquim Feijão na “Ilustração Transmontana” se referia a esta festa nos

seguintes termos:

«Sete, oito e nove de Agosto de 1909. Dias quentes, de quebrantar músculos e nervos, membros lassos a pedir cama. ... Em Sanfins, monte acima, em zig-zag, as diferentes capelas, com as suas imagens, distraem e deleitam os romeiros, extasiados e comovidos na contemplação da maior capela do santuário, onde a Senhora da Piedade, com Cristo morto nos braços, na desolação do maior sofrimento que jamais teve o coração de Mãe, está ali relembrando o complemento doloroso da pavorosa cena do Calvário. Em dez léguas em redondo, não há santa de maior veneração do que a Senhora da Piedade...»123

Em Sanfins do Douro, no segundo Domingo de Agosto, tem lugar a

secular romaria que atrai gente dos mais diversos pontos do país e do

estrangeiro. E para arrastar multidões, o que acontece todos os anos, as 123 GRÁCIO, Joaquim, Monografia de Sanfins do Douro, Alijó, Câmara Municipal de Alijó, 2 1990, pp. 69-70.

127

sucessivas comissões têm que se desdobrar e empenhar a fundo apresentando

nos seus programas as mais diversas actividades e espectáculos para motivar e

chamar a atenção dos romeiros. É nesta altura que se vivem com mais alegria

e entusiasmo os costumes e tradições da terra. Apesar do programa das festas

conter várias procissões, apenas nos detemos na Procissão de Gala que se

inicia na Igreja Matriz com a imagem da Senhora da Piedade que,

anteriormente também em procissão viera da ermida que dista do centro da

vila cerca de dois quilómetros. O andor, em talha dourada, é elegante e

grandioso, pesando, segundo nos informam, cerca de 960 quilos (o Andor, a

Imagem e a Cruz, no seu conjunto). Mas antes, na Missa da manhã, aí por

volta das 10 horas, dá-se a “Arrematação do Andor” que consiste no leilão

disputado por dois grupos da terra; quem mais der é que terá a honra de

transportar a Padroeira. É a demonstração do bairrismo destas gentes que

assim querem exteriorizar a sua fé e ajudar com o seu donativo a custear as

despesas da festa. É uma tradição que se mantém viva e cada vez motiva mais

entusiastas, tendo ganho nos últimos 15 anos uma força que tem surpreendido

tudo e todos. A tradição da arrematação do andor começou a criar raízes a

partir de 1952 e todos os anos faz vibrar as pessoas; em 2002 a arrematação

começou mais ou menos nos 900 contos e chegou aos 7.000 contos (35.000

Euros). A Procissão é, sem dúvida, o ponto alto, composta por centenas de

figuras bíblicas, doze andores finamente ornamentados com flores naturais,

bandas de música, fanfarras, bombeiros, que percorrem as ruas apinhadas de

gente. Perante a admiração e interrogação de alguns: “Pagar para carregar

um peso destes?! É uma honra muito grande levar o andor da padroeira; não

se compreende, vive-se!” – rematam os que transportam o andor.

3.3 – Outras Romarias Não podia deixar de incluir neste apontamento outras festas e romarias

que, da mesma forma, arrastam multidões:

128

• Nossa Senhora do Socorro, na Régua, que, apesar de não ser a

padroeira, desde há muito que é a principal referência religiosa da cidade,

pois era invocada com frequência pelos tripulantes dos barcos rabelos,

quando navegavam no rio Douro e quando as suas vidas corriam perigo.

• Nossa Senhora da Assunção, em Vilas Boas – Vila Flor, com fortes

tradições e pendor religioso, onde acorrem todos os anos milhares de

“pagadores de promessas”. Muitos peregrinos, devido à fé sustentada em

histórias de aparições e milagres, numa entrega de devoção e louvor à

santa, sobem de joelhos as escadas que vão da aldeia até ao santuário. Na

procissão com 12 andores, sobressai o da Senhora da Assunção que,

devido ao peso e tamanho tem de ser transportado por cerca de meia

centena de homens.

• Nossa Senhora do Amparo, em Mirandela (cidade das estátuas, das

pontes e dos jardins), onde se integram as festas da cidade, tendo um

vasto programa que inclui os mais diversos espectáculos, salientando-se a

marcha luminosa e noite dos bombos onde, sobretudo, a juventude dá

largas à sua alegria. De salientar também o já famoso e ansiado festival

de pirotecnia e multimedia na ponte e no espelho d’água. No programa

religioso destaca-se a secular e majestosa procissão solene em honra de

Nossa Senhora do Amparo.

• Nossa Senhora da Pena, em Mouçós, que tem a particularidade da

altura fora do comum dos seus 14 andores, que leva as pessoas a

exclamar: “não existem no Mundo andores como os nossos”. Destaca-se

o andor da Senhora da Pena pelos cerca de vinte metros de altura124,

homenageando assim as localidades da freguesia. Milhões de alfinetes e

de metros de panos variados, desde as rendas aos cetins, ornamentam os

124 O maior andor, que transporta a Senhora da Pena, tem cerca de 20 metros de altura e dez de largura, sendo precisos mais de 70 homens para o carregar aos ombros. É arrepiante ver tanta gente debaixo do andor!

129

andores gigantes que, na procissão, são apresentados por ordem crescente

de tamanho e que, anualmente, atraem milhares de forasteiros.

A origem da festa, considerada uma das mais importantes do Norte do

País, é desconhecida, mas sabe-se que tem já séculos de história, uma vez

que se realizava antes de existir a actual capela da Senhora da Pena, que

começou a ser construída em 1755. O Padre Joaquim Alves Ferreira,

citando um documento existente na Torre do Tombo refere:

“... à qual capella concorre munta gente em romaria, pellos muntos milagres que a Senhora tem feyto e está fazendo... E mais acrescenta: a festa da Senhora da Pena é, sem sombra de dúvida, a mais famosa e concorrida do nosso Distrito e uma das mais importantes do norte de Portugal ”125.

Também Miguel Torga, na sua observação constante e pormenorizada

sobre os comportamentos humanos, em 13 de Setembro de 1981, descreve

assim esta romaria:

“O povo em festa. Meio Trás-os-Montes a dar largas à vitalidade da alma e do corpo numa romaria onde a fé e a força se desmedem, uma de joelhos a suplicar e a agradecer, e a outra erecta, a emborcar copos de vinho e a sopesar andores monumentais que deslizam seguros por cordas e lembram veleiros a navegar num mar de gente. O que eu daria para, ao menos por alguns momentos, ser capaz de tanta devoção, tanto brio, tanta alegria, tanto desbordamento!”126

4 – Monumentos (religiosos) Capelas e Igrejas, muralhas e torres, são testemunhos preciosos de

diversos momentos da história duriense; as suas pedras já desafiaram os

tempos e os sonhos de muitas gerações. Por isso é que o Director do Museu de

Lamego afirma:

125 FERREIRA, Padre Joaquim Alves, A Capela e a Festa da Senhora da Pena, Vila Real, Minerva Transmontana, 2002, pp. 24-37. 126 TORGA, Miguel, Diário XIII, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 1352.

130

“Da diversa e rica produção artesanal às raras preciosidades dos tempos passados, encontramos um requintado e apurado gosto dos seus artistas de outrora. Pintura, escultura, ourivesaria, talha dourada ou azulejaria são algumas das espécies, sacras ou profanas, que podemos apreciar em toda a região, espalhadas pelas igrejas, conventos ou solares ou nos Museus Municipais. Cada igreja no Douro é um monumento: entre a Capela Visigótica de São Pedro de Balsemão (século VII) e o esplendoroso Santuário de Nossa Senhora dos Remédios (século XVIII), há um sem número de igrejas, conventos, castelos, casas e solares nobres ou pontes com pormenores arquitectónicos notáveis, que fazem desta região um caso patrimonial único. O Douro não se explica por palavras. É preciso conhecê-lo para se perceber que tudo o que se disser sobre a região ficará sempre aquém da realidade”.127

É longa a lista dos monumentos religiosos existentes na região do Douro;

no entanto, muitas das capelas e igrejas, que constituem um valioso

património, estão já incluídas nos mais diversos roteiros turísticos da região.

Na maioria das aldeias, as capelas ou igrejas existentes são quase sempre

a sua maior riqueza em termos de património construído; por isso são ponto de

interesse e chamariz para aqueles que por lá passam. Salvo raras excepções,

também nas vilas os edifícios principais são religiosos, destacando-se a Igreja

Matriz onde, no seu interior, se podem apreciar os seus altares de talha

dourada e também se podem admirar algumas curiosas capelas, verdadeiras

obras de arte128.

A importância deste património religioso é realçada por Miguel Torga,

quando refere: “chego a uma terra, portuguesa ou estrangeira, e a primeira

coisa que faço é visitar os seus monumentos religiosos”129.

127 Dr. Agostinho Ribeiro (Director do Museu de Lamego). 128 Para lá da citada Capela de S. Pedro de Balsemão e a título de exemplo, não resisto em referir a Capela de Nossa Senhora do Loreto (Guiães), a Capela Nova (Vila Real) e a Capela da Misericórdia (Murça). É pena que esta última esteja votada quase ao abandono e não se façam quanto antes obras de restauro. Pelo Douro fora há muitas outras que merecem toda a atenção. 129 TORGA, Miguel, Diário (VIII), Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 825.

131

4.1 – O Culto aos Mortos A morte também marca o definitivo na vida humana; toca no mais íntimo

do homem e faz nascer um certo sentimento de fascinação e medo diante da

grandeza e do mistério; pode-se-lhe chamar religioso ou sagrado. Qualquer

que seja o qualificativo, o certo é que só a morte o produz com essa

intensidade. A morte, embora por um caminho doloroso e trágico, chama a

nossa atenção para outra porta, um «mais além», obscuro e misterioso,

impreciso, mas onde brilha um pequeno raio de esperança. Ao menos, obriga-

nos a interrogar-nos sobre a transcendência da vida, como afirma o P.e

Francisco de Babo:

“a morte não aterra o cristão, não o abala, não o exaspera, não o desalenta. A morte aviva, espevita a Esperança. «A vida muda-se, não acaba», lê-se no prefácio belo da missa dos defuntos. E, por isso, a gente sabe que, tempos volvidos, os que ficam ainda aquém passarão além, para a eterna vida feliz, da suprema bem-aventurança”130.

«Mostrou apenas desejo de que nos lembrássemos dela junto do vosso

altar»131- assim se dirige Santo Agostinho a Deus nas Confissões, ao narrar os

últimos momentos de sua mãe. Esta ideia é ainda reforçada pelo Padre

Francisco ao referir: “Decorridos vinte anos sobre a morte de sua mãe, Santo

Agostinho pedia ainda orações por ela. Não é diferente a conduta da Igreja

para com os finados; por todos ora, ainda que falecidos há séculos”132. Daí

que, tal como diz Rinaldo Falsini, é um gesto de fé e de caridade cristã mandar

celebrar missas em sufrágio dos defuntos:

“Era normal que os cristãos recordassem os defuntos no rito eucarístico. Da oração, pedindo que fossem levados para a glória celeste, passou-se facilmente à celebração da eucaristia por eles.

130 BABO, Padre Francisco de, Alminhas - Padrões de Portugal Cristão, Ermesinde, Colégio de Ermesinde, 5 1968, p. 46. 131 Santo Agostinho, Confissões, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 13 1999, p. 210. 132 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 148.

132

Ainda não se tinha ideias muito claras sobre a sorte dos defuntos; é precisamente com São Gregório Magno (falecido em 604) que se assiste a uma viragem histórica sobre a existência do Purgatório e sobre a utilidade dos sufrágios. São Gregório atribui à oração a segurança da salvação dos defuntos ainda não reconciliados e em perigo de condenação eterna. Fala disso longamente no quarto livro dos Diálogos, onde ilustra a teoria da expiação depois da morte com uma série de aparições que, na sua opinião, confirmam o que expõe”133.

Estas aparições, usadas nas pregações, surtiram bastante efeito no povo

cristão, levando à celebração consecutivas de missas pelas almas dos

defuntos134. Relativamente a este assunto, diz o mesmo autor:

“Outras práticas semelhantes tiveram o favor popular, como a missa durante quatro, cinco, sete e até quarenta e um e quarenta e cinco dias. Enquanto estas foram lentamente desaparecendo, a do «trintário» manteve-se inalterável, apesar das advertências do Concílio de Trento sobre os abusos de carácter supersticioso, entretanto introduzidos (sessão 22, de 1562), e o convite, no decreto respectivo, a que se ensinasse a sã doutrina sobre o Purgatório e sobre os sufrágios (sessão 25, de 1563). O mesmo Concílio, no citado decreto, precisou a doutrina católica sobre o Purgatório, afirmando que «as almas nele retidas podem ser ajudadas pelos sufrágios, sobretudo, pelo sacrifício do altar, verdadeiro e agradável (a Deus)»”135.

O que acontece para além da morte não foi revelado de modo directo e a

Igreja limita-se à oração de sufrágio que consiste na sua valiosa intercessão

junto da misericórdia de Deus a favor dos defuntos, sobretudo, oferecendo o

sacrifício de Cristo.

Se o homem é um escravo da morte é preciso não esquecer que o homem

crente é um peregrino da eternidade, um caminheiro ao encontro de Deus. No

dia 1 de Novembro a Igreja Católica celebra a Festa de Todos os Santos e no

133 FALSINI, Rinaldo, Liturgia, Apelação, Paulus Editora, 1999, p. 63. 134 Denominadas “trintário gregoriano”, uma prática devocional popular ligada à figura do santo Pontífice. 135 FALSINI, Rinaldo, op. cit., p. 64.

133

dia 2 o Dia dos Fiéis Defuntos; estas duas celebrações têm muito a ver entre si,

por isso se realiza uma na sequência da outra. No seguimento desta ideia, Rui

Osório136 acrescenta:

“O fundamento histórico do culto dos Santos tem a sua raiz na memória cristã dos mortos, da qual nasceria a veneração particular dos mártires. A proximidade actual do Dia de Todos os Santos e do Dia dos Fiéis Defuntos no calendário litúrgico, ontem e hoje, vem da iniciativa do abade cluniacense Odilão (998-1048), ao ordenar aos seus monges que comemorassem todos os fiéis defuntos. Essa piedade estender-se-ia depressa a toda a França, Inglaterra e Itália; depois, a partir do século XIV, a liturgia romana torná-la-ia universal. A piedade popular encarregou-se de fazer a união do culto dos santos com a memória dos defuntos, para reforço da sua esperança na vida eterna”137.

No dia de todos os Santos, lembram-se na liturgia aqueles irmãos, “uma

grande multidão que ninguém podia contar” 138, que estão na felicidade em

Deus, nos altares ou fora deles, que viveram segundo a vontade de Deus e

cantaram as suas glórias e beleza criadas. O dia de Todos os Santos é uma

efeméride sempre renovada e aproveitada para se prestar homenagem a todos

aqueles que nos deixaram. Flores, velas e outros artefactos são colocados nas

campas e jazigos dos nossos entes queridos; Santos e Fiéis Defuntos em

comunhão, os que já partiram e os que estão a caminho.

Na tarde do dia de Todos os Santos é costume imprescindível fazer uma

romagem ao cemitério139, arranjado com flores e velas em homenagem aos

que ali foram sepultados. Milhões de velas e de flores lembram a saudade, o

amor para com aqueles que pelas mais diversas circunstâncias a morte levou.

No que se refere aos mortos, o seu culto também é venerado; os cemitérios,

pelo asseio que revelam e o respeito que inspiram, são também locais de culto.

136 Comentador religioso no Jornal de Notícias. 137 Rui Osório, in Jornal de Notícias (02.11.02). 138 Ap 7,9-10. 139 A palavra cemitério deriva do grego “koimeterion”, que significa dormitório; daí que na linguagem popular é o lugar do “descanso”.

134

O culto dos mortos é uma afirmação mais a favor da Vida do que da morte,

um apelo à esperança e uma recusa da resignação, uma resposta ao apelo dos

mortos na qual se lhes leva uma mensagem de ternura e de saudade – que os

mortos só morrem com o esquecimento.

É uma crença na plenitude da Vida, que absorve e integra a morte e nos

transforma a todos numa torrente de Esperança que nos projecta para além da

dor e da amargura, apesar da morte descer à rua vestida de flores, de lágrimas

e de luto.

Sucede a todos dirigirmo-nos ao cemitério para visitar e colocar uma flor

na campa dos defuntos queridos, que quase sempre nos são recordados

também visivelmente por uma foto. Não creio que devam ser classificados

como superstições os gestos de acariciar a lápide ou beijar a fotografia.

“Tocar” é restabelecer um contacto físico com a pessoa querida; “beijar” a

foto ou acariciá-la é confirmar o afecto que a ela nos ligava e que a morte não

interrompeu.

Acender uma vela diante dessa fotografia ou até manter acesa uma

pequena lâmpada, significa recordar os entes queridos e assegurar que a nossa

presença junto da campa continua também depois que vamos embora,

chamados por outras necessidades da vida quotidiana.

Por outro lado, depor uma flor testemunha a doçura típica da flor, do

nosso afecto e da nossa recordação.

Se depois a pessoa defunta nos foi particularmente querida, conservamos

a sua fotografia visível em casa ou também na carteira. Tudo isto é

superstição? Ou, em vez disso, tais gestos não encontram a sua primordial e

fundamental autenticidade no espírito e no sentimento que os inspira?

Os cemitérios são espelhos de cultura, espaços místicos ou lugares de

convivência entre mortos e vivos. O culto dos mortos é milenar e imortal;

existe um forte apego à terra onde estão os nossos mortos. Este apego resulta

de uma «continuidade cósmica»140 entre nós e os que nos precederam.

140 Ana Vicente, António Romeiro et alt., op. cit., p. 172.

135

Tive a oportunidade de entrar nalguns cemitérios e confesso que se nota,

nalguns casos, os rios de dinheiro que se gastaram com boa intenção, mas que

fazem sobressair logo a comparação humana e a vaidade dos vivos. Nota-se,

apesar de tudo, o bom gosto dos vivos mas o que os nossos mortos precisam é

mais das nossas orações e de seguirmos os exemplos que nos deixaram.

Não deixam de ser curiosas e significativas algumas inscrições que se

vêem nas campas, mas também achei interessante a inscrição numa placa:

“CAMPO DA IGUALDADE”141 e outra142 com este poema:

OS MORTOS

AQUI FINDAM AS VAIDADES COM QUE O MUNDO NOS SEDUS (sic) AQUI HÁ PAZ E DESCANSO À SOMBRA DA ETERNA CRUZ. O QUE VÓS AINDA HOJE SOIS TAMBÉM NÓS AINDA ONTEM FOMOS E AMANHÃ TAMBÉM SEREIS O QUE NÓS JÁ HOJE SOMOS. ANCORADOS NESTE PORTO LIVRE JÁ DA TEMPESTADE OS MORTOS SÓ PEDEM LÁGRIMAS NUMA PRECE DE SAUDADE. Oferta de Miguel da Silva (Malpica) 31-10-76

Além disso, sobretudo nas zonas mais antigas dos cemitérios143, podem-

se ver e admirar a arte e beleza de alguns símbolos cristãos que manifestam

uma fé profunda.

141 Cemitério de Candedo (Murça). 142 À entrada do cemitério de Poiares (Régua). 143 Quase todos os cemitérios têm uma parte mais antiga e outra mais moderna, dado que, desde uns anos a esta parte, muitos tiveram obras de ampliação.

136

Também nos cemitérios têm «actuado» os larápios, assaltando sobretudo

jazigos, de onde levam quase sempre crucifixos e castiçais de prata, daí o ter

sido olhado com alguma desconfiança, antes de me identificar.

O homem não se destina à morte, mas à vida; a comemoração de Todos

os Fiéis Defuntos é, acima de tudo, um convite à vida, que como um banquete

será celebrada na intimidade de Deus. A morte física não será mais que a porta

para esta vida.

É necessário transformar um “culto dos mortos” sem grande sentido para

esta perspectiva que encontramos em Isaías (25,6a.7-9): “o anúncio dum

banquete que Deus quer oferecer a todos os povos”. Por isso, o Directório

Sobre a Piedade Popular e a Liturgia, no capítulo VII, acrescenta:

«A morte é a passagem à plenitude da verdadeira vida, pelo que a Igreja, subvertendo a lógica e as perspectivas deste mundo, chama ao dia da morte do cristão “dies natalis”, dia do seu nascimento para o céu» (nº. 249)... «os sufrágios são uma expressão cultual da fé na comunhão dos Santos» (nº. 251).

Esta fé encontra a ocasião de se exprimir na celebração do sacrifício

eucarístico e em muitas outras expressões de piedade como orações, esmolas,

obras de misericórdia. Ocasião privilegiada para estes sufrágios são as

«celebrações exequiais que têm na celebração eucarística o seu momento

culminante» (nº. 252).

“Para aqueles que morrem a vida não acaba, apenas se transforma e no

céu se adquire uma habitação eterna”: até que ponto as lembranças ou as

lágrimas, as flores ou as luzes das velas guardam esta verdade num mundo

materializado? Eis uma importante questão que se deve levantar às hodiernas

mentalidades. Aliás, a importância da oração pelos mortos é realçada nesta

transcrição:

“Santo é o pensamento de rezar pelos mortos. Lembrar a muitos mais as almas do Purgatório parece oportuno e santo. Um nicho que tenha um painel de azulejo, tábua pintada, ou um quadro qualquer, devidamente aprovado pelos Bispos do lugar, ajuda a recordarmo-nos do além, do Purgatório, doutrina tão consoladora para todos nós”144.

144 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 136.

137

4.2 – As Alminhas Ao seu Deus e aos seus santos, levantaram os homens os monumentos

mais imponentes e também os mais simples e humildes.

Fruto da religiosidade e da superstição (nalguns casos) popular, as

alminhas aí estão, nos cruzamentos das aldeias, vilas ou cidades; são pintadas

em madeira ou azulejo e representam as almas do purgatório. Encontram-se

em nichos próprios, engalanados com flores campestres. Despertam a atenção

daqueles que passam e há frases que fazem meditar e convidam à oração: “ó

vós que ides passando, lembrai-vos dos que estão penando”. A superstição, o

sentimentalismo religioso, a fé ou o conjunto de todos estes factores, levaram

a que as alminhas apareçam à beira das estradas e caminhos, nos cruzamentos

ou nos locais onde tenha havido um crime de morte.

Diz Luís Pinheiro que “as alminhas surgem no século XVI, mas Leite de

Vasconcelos diria que são a continuação do uso romano e pagão de levantar

nas encruzilhadas dos caminhos, entradas das pontes e junto das habitações,

aedicullas ou aras em honra dos Lares compitales e Lares viales”145.

O P.e Francisco de Babo, que foi, na década de cinquenta, o grande

incentivador da construção e reparação destes singelos monumentos referindo-

se à origem das Alminhas, acrescenta:

«Segundo parece, o quinhentista do fim do século, Luís Álvares de Andrade, descendente de família de boa linhagem galega, foi escritor religioso e pintor de mérito, tendo ganho celebridade em Lisboa sobretudo pelos painéis146 que representavam as Santas almas envolvidas pelas chamas do Purgatório, que lograram simpatia e se espalharam por toda a cidade. O povo começou a denominar “Alminhas” os ditos painéis e a pôr lâmpada de azeite147 acesa diante delas»148.

145 PINHEIRO, Luís, Alminhas, Nichos e Cruzeiros de Portugal, Fasc. I, Litografia do Minho, 1957, p. 3. 146 Actualmente os antigos frescos ou pintura na caliça (ainda encontrei pinturas em madeira e zinco) foram substituídos por azulejos que têm a vantagem de maior duração, quando não são partidos à pedrada. 147 Actualmente o azeite foi substituído por velas envolvidas em invólucros de plástico.

138

Definindo as Alminhas como “humildes monumentos”, também

acrescenta que estão enraizados nas tradições portuguesas:

“humildes monumentos de fé e piedade, que representam uma tradição singular de exteriorização de são e vivo cristianismo do povo português; são uma cristalização ingénua e linda, meiga e mística, da sensibilidade cristã e piedade enternecida para com as Almas do Purgatório; são manifestação peculiar portuguesa dessa piedosa sensibilidade. É caracterizadamente portuguesa a multissecular tradição das «Alminhas» dos caminhos, a despertar e a alimentar a piedade dos vivos em benefício dos mortos”149.

Nesses painéis, diz o mesmo autor, estão representadas as mais diversas

imagens que têm a ver com as devoções portugueas relacionadas, por sua vez,

com as almas benditas:

“Ordinariamente, por tradição, a figura central é Nossa Senhora do Carmo ou Nossa Senhora do Alívio, estendendo a primeira o escapulário e a segunda o Rosário às benditas almas, a seus pés. Há-os, porém, com Jesus Crucificado e os emblemas da Paixão; com o Cristo na Cruz e S. Miguel Arcanjo estendendo a balança, símbolo do juízo particular, e o nosso tão popular Santo António. Ainda os há com os padroeiros da freguesia ou do lugar”150.

A década de cinquenta foi a época de restauração e construção de muitos

destes pequenos monumentos, verdadeiras obras de arte popular, tal como

relata o P.e Francisco:

“A época de restauração, que felizmente é aquela em que vivemos151, dá-nos o ensejo de acudirmos a tantos humildes, como que envergonhados nichos, que, ainda em mais de metade de Portugal, subsistem, remoçando-os, alindando-os, restaurando-os com a mesma Fé e devoção com que o fizeram nossos maiores... Em Vila Real de Trás-os-Montes foram restaurados quatro nichos,

148 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 6. 149 Idem, ibidem, pp. 19, 129. 150 Idem, ibidem, p. 73. 151 Refere-se a 1954, ano Mariano e ano da edição da obra citada.

139

tendo sido da rota liberalidade da boa Senhora152 amarantina a contribuição dos painéis... de Vila Real fotografias de nichos e de painéis azulejados vieram como testemunho de que a maré cresce e não foi vã a confiança manifestada de que o ano mariano ficasse assinalado entre nós por uma faceta muito característica, poética e cristã”153.

Nesta onda de restauração, no que respeita aos quadros ou painéis

pintados sobre zinco, madeira ou mesmo cal, recomenda-se a melhor maneira

de o fazer:

“Importa que aqueles cujas tintas estão delicadas, descascadas ou cujas tábuas de madeira apodreceram, sejam restaurados. O melhor, por mais belo e mais durável, é substituí-lo por azulejos, policromados ou simplesmente da cor donde tiram o nome. Esta cor azul é de recomendar para os mais antigos e de boa arquitectura, guarnecendo-os de moldura azul e amarela, bizarria e estilo de tempos idos. Para os nichos mais pobrezinhos poderiam preferir-se os painéis a quatro cores, sendo neste caso, as figuras a azul nítido, os rochedos do purgatório a castanho, as chamas cor de fogo e o ambiente que envolve a imagem da Senhora do Carmo ou outra, a amarelo pálido”154.

Em todos os tempos houve descuido na preservação destes monumentos

tal como, em Setembro de 1953, o P.e António Resende alertava, nestes

termos, para o desaparecimento das Alminhas:

“Ainda há três décadas, eram sem conta possível as Alminhas que, por todas as encruzilhadas de Portugal, se ofertavam à piedade rude da nossa gente. Em sua capelinha ou nicho, brancos, muito bem cuidados, elas pediam ao caminhante a esmola de um Pai Nosso pelos que já não moram neste mundo de provação e esperança. ...Os estragos irreparáveis do tempo andaram depressa. Mal volvidos os anos duma escassa meia vida, já nem ruínas restam desses humildes padrões da Fé popular. As Alminhas

152 Refere-se à senhora D. Sara Cardoso que “muitos anos se dedicou ao formoso apostolado dos nichos que o povo denomina Alminhas”. 153 BABO, Padre Francisco de, op. cit., pp. 20-26, 61. 154 Idem, p. 72.

140

desapareceram de todo, sem deixar rasto do seu lume piedoso na cerração das almas”155.

Apesar de tudo “nas cidades, vilas ou aldeias, estas sentinelas humildes a

apontar a eternidade, surgem à beira de caminhos, estradas, ruas e praças; há

arte e beleza na arquitectura de algumas, apesar de, muitas vezes, se recorrer

apenas ao mestre de obras ou simples pedreiro”156.

Tal como diz o P.e Francisco de Babo, “podemos chamar Património das

Almas aos nichos tradicionais, que imprimem à fisionomia da terra portuguesa

um cunho único”157. Estes pequeninos monumentos, velhos ou novos,

humildes ou toscos, esbeltos ou artísticos, ou até de pedra bem lavrada,

pincelam a paisagem, atestam a fé, a piedade e a crença de gerações passadas.

Mas faz pena que alguns tenham desaparecido ou estejam votados a um estado

de abandono e desleixo.

Por isso mesmo estamos plenamente de acordo quando se alerta para o

facto de que, nos nossos dias, alguns são destruídos ou simplesmente

ignorados:

“a pretexto de rectificação e aformoseamentos, de progresso e desempoeiramento de espírito, muitos nichos têm sido considerados velharias obsoletas, revivescências ou reminiscências de tempos ultrapassados, que se não coadunam com o presente progressivo e avançado em que vivemos!”158

No entanto, apraz-me registar que nas localidades que percorri, encontrei

algumas Alminhas históricas, artísticas, rústicas, curiosas; umas bem

conservadas e restauradas e outras nem por isso. Algumas encontram-se

condenadas a desaparecerem a pouco e pouco, quer pela acção do tempo, quer

pela inércia dos homens.

155 Idem, ibidem, p. 91. 156 Idem, ibidem, p. 123. 157 Idem, ibidem, p. 42. 158 Idem, ibidem, p. 80.

141

É de salientar ainda algumas datas imperceptíveis, datas de restauração e

muitas curiosas inscrições ou legendas que “recordam aos vivos a necessidade

da oração”159 e, ao mesmo tempo, lembram “a fineza da devoção às almas do

Purgatório e o ardor com que na alma do povo ela é cultivada que, por vezes,

se revelam em pormenores curiosos, duma delicadeza tão sentimental, que só

a Fé cristã pode inspirar”160. Exemplo do que afirmamos são as legendas

seguintes:

As alminhas pedem rezas A quem passa no caminho Um Pai Nosso ou Ave Maria Rezai por elas baixinho.161 Pára e ora por nós Que rezaremos por vós.162 Socorrei ó almas pias As tristes almas fiéis Lembrai-vos que em breves dias No mesmo fogo estareis.163 VOS QUE IDES PAÇANDO ONDE LEVAIES OCENTIDO VEM CA E FALA COMIGO VEEIS QUE ESTOU PENANDO164 P.N.A.M.

159 CASTRO, José Fernando Rua de, Cruzeiros, Alminhas e Pelourinhos, Guimarães, Editora Cidade Berço, 2002, p. 25. 160 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 111. 161 Alminhas (1982) em S. Mamede de Ribatua (Alijó). 162 Alminhas (1831) em Vila Verde (Alijó). 163 Alminhas em Pegarinhos (Alijó); “mandada restaurar por M. Girão e A Abel - 1956”. 164 Pintura das Alminhas na porta principal do santuário de Nª. Sª. da Boa Morte em Pópulo (Alijó); esta inscrição, que é perceptível, está sobreposta noutra, que é imperceptível.

142

VÓS QUE OUTRORA NOS AMASTES COM A MAIS TERNA AFEIÇÃO PAIS, IRMÃOS, FILHOS, AMIGOS TENDE DE NÓS COMPAIXÃO SOCORREI ÀS ALMAS PIAS AS TRISTES ALMAS FIEIS LEMBRAI-VOS QUE EM BREVES DIAS NO MESMO FOGO ESTAREIS PARA ALÉM DA SEPULTURA NO LUGAR DA EXPIAÇÃO QUANTA DOR, QUANTA AMARGURA AS DUAS SOFRENDO ESTÃO AS ALMINHAS SÃO DE TODOS POIS QUEM É QUE LÁ NÃO TEM UM PARENTE OU UM AMIGO UM BOM PAI OU SANTA MÃE165 Ó tradicionais Alminhas Que encontro pelo caminho! Ainda que eu queira esquecê-las, Lembrais-me o eterno destino. Deixai a vossa esmolinha, Fazei-lhes uma oração, Que as Almas do Purgatório Por vós a Deus pedirão.166 As Alminhas dos caminhos Com singeleza e com graça Lembram o eterno destino Ao viandante que passa. Podeis dizer que não tendes Alminhas a sufragar? Pai ou mãe, irmãos, amigos, Podem estar a penar.167

165 Alminhas em Noura (Murça). Estas quatro quadras fazem parte de um soberbo painel em azulejos, tendo ao centro a imagem de Nossa Senhora do Carmo e no chão uma pedra em cantaria que tem inscritas as iniciais A I M e o ano 1866. 166 Alminhas em Brunhais, freguesia de Santa Cristina (Mesão Frio). 167 Alminhas no cemitério de Mesão Frio.

143

Ao passar pelas Alminhas Não deixo de as sufragar. Posso eu ter contribuído Para que outrem esteja a penar.168 A vossa oração venha até nós, às benditas almas que esperam por vós. Vós que passais e, se em oração, por nós rezais para o eterno perdão169.

As alminhas existentes por todos os recantos do Douro são a nota viva da

fé e dos sentimentos religiosos das pessoas.

Nalgumas paróquias havia também o costume muito antigo de amentar as

almas: aquele que faz promessas de amentar as almas, começará na quarta-

feira de Cinzas, para terminar só no Sábado Santo. Então, todas as noites,

embora chova torrencialmente, sai com o seu lampião e um bordão, sem olhar

para trás, nem falar. Em primeiro lugar, vai à porta da Igreja, bate com seu

bordão três vezes nela e diz: Almas benditas, acompanhai-me / e as más,

desamparai-me. Sobe a três colinas da freguesia, para que sua voz possa ser

bem ouvida em redor, e canta numa música religiosa e dolente:

Alerta! Alerta! Alerta! Pecadores! Alerta!. A vida é curta! e a morte é certa! Hora incerta! Juizo rigoroso, Inferno ou Céu para sempre. Se estais a dormir,

168 Alminhas em Matos, freguesia de Vila Jusã (Mesão Frio). 169 Alminhas em Poiares (Régua).

144

acordai; Se estais acordados, rezai um “Padre Nosso” e uma Ave Maria pelas almas do Purgatório170.

A devoção às Almas do Purgatório está profundamente enraizada em

Trás-os-Montes e Alto Douro e é, talvez, um dos aspectos mais curiosos do

culto aos mortos existentes no nosso país. Com esta prática religiosa171

procura-se infundir piedade nos vivos pela alma dos mortos, juntando-se em

preces fervorosas de maneira a alcançarem o perdão de Deus para os pecados

dos parentes, amigos ou conterrâneos já falecidos.

Irmão, lembra-te que és terra!... Torga apressa-se a explicar :

“é um verso da encomendação das almas, que meia dúzia de mulheres, embuçadas cantam neste momento no cruzeiro. É funéreo, mas é pedagógico. Quem não acredita no céu, fica pelo menos a acreditar no cemitério”172.

O encomendador ou encomendadores são levados pelo sentimento ou

pelo cumprimento duma promessa ou penitência, incitando os vizinhos a rezar

pelos mortos, para os aliviar das penas do Purgatório.

Esta devoção às Almas do Purgatório exterioriza-se de diversas

maneiras173:

• Nas numerosas promessas que lhes faz: «Ai Alminhas do

Purgatório, valei-me nesta aflição»; • Nos acompanhamentos; • Nas «Procissões das Almas» que, antes das missas dominicais, ou

nas primeiras segundas-feiras de cada mês, ou quando da «desobriga», se fazem;

170 Almanaque BOA NOVA 2001 - p. 36. 171 Também chamada «Encomendação das Almas». 172 TORGA, Miguel, Diário IV, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 362. 173 Estas maneiras eram comuns em todos os concelhos de Trás-os-Montes e Alto Douro, especialmente em Torre de Moncorvo e Freixo de Espada-à-Cinta. No entanto, têm tendência a desaparecer.

145

• Nas Confrarias, embora a maior parte vivam sem estatutos; • Nas esmolas174 que, de porta em porta, ou durante as missas

dominicais, se tiram «para as benditas Almas que estão nas penas do Purgatório»;

• Nos toques das Almas, noite alta; • Nas dezenas de Padre-Nossos e Avé-Marias «pelas Alminhas do

Purgatório» que, nas missas do saimento, terceiro, sétimo, e trigésimo dias, lhes reza em alta voz o Ofertório;

• Nas deixas, embora modestas, que lhes faz; • Nos oratórios, toscos uns, artísticos outros, que, nos atalhos, e

encruzilhadas, lhes levanta; • Nos «toques a finados»; • Nos «meses das Almas»; • Nos responsos que, a toda a hora, manda rezar; • Nos ofícios de defuntos175 que manda cantar ou rezar; • Nas «encomendações das Almas».

Na «encomendação das Almas» constituem-se grupos, quase sempre, de

cinco pessoas a que se juntam muitas outras por devoção e só para

acompanhar, e cantam em todas as estações176 estes «versos»:

Acordai que estais dormindo Nesse sono em que estais, As Almas se estão queixando Que delas vos não lembrais; Lembrai-vos com um Padre-Nosso, Por alma dos vossos pais. Olha, cristão, que és terra, Olha que «há-des» morrer, Olha que «há-des» dar contas, Do teu bom e mau viver. Vós, que estais nas vossas camas, Dormindo e descansando,

174 Segundo o livro de Tobias “a esmola livra da morte e impede que se caia nas trevas. Dom valioso é a esmola” (Tb 4,10-11); no mesmo livro diz o anjo Rafael: “é melhor praticar a esmola do que acumular ouro. A esmola livra da morte e purifica de todo o pecado. Os que dão esmola terão longa vida” (Tb 12,9). 175 Algumas Confrarias e Irmandades das Almas, regularmente, mandam celebrar o Ofício de Defuntos; há muitos anos atrás também as Bandas de Música participavam nessa Missa e Offissio de Deffunctos, conforme partitura (de 2 de Maio de 1884), em anexo VI. 176 As «estações» ou «paragens» eram feitas junto às esquinas, cruzeiros ou capelas.

146

Ficai-vos com Deus, ficai-vos, Que eu com Deus me vou andando.

A designação das Alminhas, parecendo não ter importância de maior,

está cheia de Cristianismo. Podemos pois afirmar que está na tradição, a

devoção do nosso povo pelas almas dos que partiram desta vida.

Também Miguel Torga, com este belo poema (1944), retrata os singelos

monumentos, dispersos pelos lugares durienses:

Almas rústicas, agrestes, Pintadas a cal e a vinho, A arder nas penas celestes Da térrea paz dum caminho. Quem passa, reza ou não reza Conforme pensa ou não pensa Na desgraça que lhe pesa Por sobre a crença ou descrença. E as almas lá permanecem A olhar as silvas vergadas De amoras, que amadurecem Ao sol das coisas passadas177.

4.3 – Os cruzeiros 178 Tal como as alminhas ou nichos também os cruzeiros são o reflexo de

uma religiosidade declarada; aliás, os cruzeiros e as alminhas “representam

marcos indestrutíveis do nosso património colectivo e permitem avaliar o tipo

de cultura que herdámos”179.

«Os Judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria; nós, porém,

anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os Judeus e loucura para os

177 TORGA, Miguel, Diário III, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 249. 178 Anexo VII. 179 CASTRO, José Fernando Rua de, op. cit., p. 4.

147

pagãos»180. Estas palavras, dirigidas por S. Paulo aos Coríntios, fornecem-nos

a chave de leitura do drama da Paixão que, ao longo dos séculos, inspirou

muitos artistas. A cruz de Cristo quase não pode ser figurada de maneira

completa porque todos têm na mente uma representação daquela cena que está

no centro de todas as igrejas, de muitos lugares e casas, e sobretudo no centro

da história e do coração de milhões de pessoas. Por isso, refere o Padre João

Parente que “o povo das nossas aldeias vê Cristo presente, em pessoa, nos

crucifixos. É que a religiosidade popular não é racional ou intelectualista, mas

imaginativa e sentimental”181.

Até ao Édito de Milão (313)182, em que cessaram as perseguições aos

cristãos e o imperador Constantino183 lhes ofereceu uma certa paz, proibindo,

por respeito à morte de Cristo, que daí em diante os criminosos, não cidadãos

romanos, fossem crucificados, a cruz, como objecto, não era venerada pelos

primeiros cristãos; constituía algo de repugnante. Numa espécie de código, os

primeiros cristãos usavam o ICTUS, o desenho de um peixe sobre o qual

desenhavam o monograma de Cristo, as duas primeiras letras do nome em

grego: o qui (X) e o rô (P). Costuma-se ver fotografias de uma antiga gravação

em pedra: nela se vê o ICTUS e uma cruz na ponta. Essa pedrinha só pode ser

“posterior ao século IV em que a Cruz, como objecto, passou a ser

180 1 Cor 1,22-23. 181 PARENTE, Padre João, Os Cruzeiros da Diocese de Vila Real, Vila Real, Edição do Autor, 2004, p. 9. 182 PIERRARD, Pierre, História da Igreja, São Paulo, Edições Paulinas, 3 1989, p. 42. 183 Segundo a lenda, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, terá encontrado a verdadeira Cruz num dia 14 de Setembro. Por outro lado, é também conhecida a devoção de Constantino pela Cruz à qual atribuíu a vitória na decisiva batalha de Ponte Mílvio em 312; teria tido a visão de uma Cruz liminosa com a inscrição: «In hoc signo vinces». O certo é que Constantino mandou grvar nos seus estandartes o monograma de Cristo: as duas do nome Cristo em grego (qui=X e rô=R) sobrepostas; a partir de 315 este monograma aparece cunhado em moedas. No dia 13 de Setembro de 335 foram dedicadas em Jerusalém as basílicas do Martyrium (no Gólgota) e a da Anástasis (Santo Sepulcro) edificadas graças à munificência de Constantino. No dia seguinte, foi exposto solenemente à veneração do povo fiel o madeiro da Cruz. Foi assim que em Jerusalém (nos lugares onde Jesus foi crucificado e sepultado para ressuscitar ao 3º. Dia) teve início a festa (Exaltação da Santa Cruz) em honra da Cruz que a Igreja continua a celebrar a 14 de Setembro.

148

representada e venerada por toda a parte e, nos nossos dias, quase banalizada e

tantas vezes utilizada como instrumento de superstição e sortilégio”184. Apesar

disso a Igreja celebra, na sua liturgia, a festa da Exaltação da Santa Cruz; daí o

eco de um hino primitivo: “toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor

Jesus Cristo!”185

A Cruz é símbolo por excelência do Cristianismo, pois corresponde ao

instrumento de suplício que foi usado para a morte de Jesus, mediante a qual

alcançamos a Redenção. A sua simbologia remete para o «eixo do mundo»,

cujas hastes indicam os quatro pontos cardeais. A haste maior (vertical) indica

o sentido da relação da Humanidade com Deus e de Deus com a Humanidade;

a haste menor (horizontal) indica a ligação fraterna dos homens. Um hino da

Liturgia das horas da Sexta-feira Santa canta assim o mistério da Redenção,

simbolizado na Cruz:

“Ó Cruz bendita, só tu nos abriste os braços de Jesus, o Redentor, \balança do resgate que arrancaste nossas almas das mãos do inimigo”.

O que é loucura para uns, escândalo para outros, aparece, a um olhar

mais atento e respeitoso, como um testemunho e acima de tudo a imagem de

Cristo crucificado aparece como uma prova de amor à humanidade. A este

propósito, o Padre João Parente escreve:

“Mas a cruz, de símbolo de morte ignominiosa, veio a tornar-se sinal da Vida; de símbolo de maldição, transformou-se em penhor de misericórdia. Foi nela que Jesus culminou a Sua vida redentora desde a Encarnação e lhe deu sentido; foi nela que baseou a Sua libertadora Ressurreição. É por isso que a cruz aparece frequentemente com as pontas floridas, a lembrar que dela nasce a Vida, como as flores da Primavera. Pela mesma razão, o crucifixo, embora representado morto ou moribundo, costuma ostentar uma coroa gloriosa, a lembrar que Ele venceu a morte... a sublimação do amor consiste em amar os inimigos. A cruz é o lugar onde se prova o que pode o amor... é este infinito mistério de amor expresso no

184 Leonel Oliveira, in Voz Portucalense, de 17/9/03, p.4. 185 Hino cantado na Sexta-feira Santa, quando da adoração da Cruz.

149

sofrimento e morte de Jesus, Filho de Deus, que contemplamos nos crucifixos erguidos nos nossos velhos e singelos cruzeiros. Eles não são especulações teológicas. São poemas em pedra que falam eloquentemente de amor infinito e de infinita misericórdia. Eles patenteiam, na sua simplicidade, que Jesus ama tanto os seres humanos que morre por eles”186.

A fé do povo não se limitou apenas a levantar as igrejas e capelas, onde a

sua alma ansiosa se recolhe em meditação e se abre em preces fervorosas na

esperança de alcançar um favor ou na alegria de receber uma graça. A fé

simples das gentes do Douro está assinalada por outros monumentos humildes,

por vezes rústicos, como humildes aqueles que os ergueram. Porém, há alguns

mais rebuscados que revelam um gosto mais requintado e que, muitas vezes,

se inspiram nos mais diversos modelos187; a este propósito, não deixa de ser

curiosa a colecção de cruzes188 que o “Jornal de Notícias” lançou de 1 de

Fevereiro a 5 de Março.

Encontramos alguns cruzeiros que no seu reverso ostentam outras

imagens; muitas vezes aparece Nossa Senhora ou, nalguns casos, o padroeiro

ou padroeira do lugar, tal como é descrito pelo Padre João Parente:

“o costume de representar a Virgem Maria nos reversos dos cruzeiros remonta ao século VI, quando o crucifixo entrou no culto público e universal... dão-se muitos títulos à Senhora dos cruzeiros, porém a escultura mais generalizada é a Senhora da Piedade... nos cruzeiros aparecem outras imagens de Santos: Santo António, Santa Maria Madalena, São João Evangelista, que às vezes é confundido pelo homónimo Baptista. O Santo de Lisboa, por ser o mais popular; os outros, por estarem ligados à cena da crucifixão”189.

Muitas vezes encontramos cruzeiros que, na base, também aparecem as

almas do Purgatório; por isso “os cruzeiros possuem certas afinidades com as

alminhas, oratórios de madeira ou de pedra colocados nas povoações e áreas

186 PARENTE, Padre João, op. cit., p. 6. 187 Anexo – várias formas de cruzes. 188 Anexo – Colecção do Jornal de Notícias. 189 PARENTE, Padre João, op. cit., pp.11-12.

150

rurais para invocação das almas, que tinham uma estrutura bem distinta, mas

as suas funções simbólicas eram paralelas”190.

Através dos tempos as alminhas e os cruzeiros constituem um património

popular de grande relevância; “executados por artífices regionais, integram-se

nos modelos estéticos da arte e da iconografia populares”191.

Geralmente, na construção dos cruzeiros, é utilizado o granito e a

madeira, tal como é descrito por Maria Clara Mendes:

“Grandes cruzes de pedra colocadas em adros, praças, santuários, cemitérios e caminhos rurais, a sua origem, muito remota, integra por vezes elementos de religiosidade pagã e cristã. Os cruzeiros são estruturalmente constituídos por uma base, uma coluna ou tronco e um remate onde figuram a cruz de Cristo de representação latina, imagens da Virgem ou pietàs, além de outros elementos escultórios de carácter decorativo. Formados apenas pela cruz de madeira ou de pedra, durante os primeiros séculos do cristianismo, como símbolos da nova religião, eram colocados nos espaços públicos mais importantes e nos cruzamentos das grandes vias e caminhos. Assim, alguns cruzeiros, além das funções evocativas de carácter religioso cristão, serviam de marcos e divisórias de propriedades e termos. Outros, especialmente os que estavam implantados em encruzilhadas, vales e montes, mantinham certas reminiscências pagãs de carácter invocativo com a finalidade de obter a protecção dos grandes espíritos para males e catástrofes naturais. A partir do século XII, o cruzeiro passou a ser ornamentado com figuras escultóricas e decorações, adquirindo uma identidade própria que conservou até ao século XVIII. Muitas destas esculturas pertencem ao património da estatuária de carácter regional. No fim da Idade Média, as decorações estilísticas de carácter erudito foram também introduzidas no braço maior da cruz ou no tronco, e mesmo no remate que suportava as composições decorativas e escultóricas”192.

190 MENDES, Maria Clara, Por Terras de Portugal, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1985, p. 35. 191 Idem, ibidem, p. 35. 192 Idem, p. 35.

151

Muitos dos cruzeiros observados “estão ao ar livre, outros sob alpendres,

numa arquitectura cuidada, pensados e desenhados com mais preceito”193. No

século XVIII, cobrem-se alguns cruzeiros com baldaquinos, transformando-os

em oratórios onde figuram ainda grupos escultóricos e composições barrocas.

No prefácio de Cruzeiros, Alminhas e Pelourinhos, como que querendo

realçar o significado e a importância dos cruzeiros e alminhas e, por sua vez, o

comportamento humano perante eles, é referido a determinado passo:

“A fenomenologia religiosa sempre acompanhou o homem e nele incutiu dois sentimentos e que consubstancia em cruzeiros e alminhas, como reproduz em hierofanias, em mitologemas ou em mitos sagrados. Esses sentimentos resumem-se no binómio: temível e fascinante. Estes dois vocábulos geram no homem um mistério que o liga, inevitavelmente, a um mundo imaginário e inacessível. Essa incapacidade humana para dar resposta ao temível e fascinante mundo que o espera, gerou no homem, através dos tempos, a necessidade de agarrar-se à fé, que reconhece na cruz, no oratório, no lampadário da via pública. Esses símbolos de religiosidade popular representam um tipo de cultura que deve aprender-se e reflectir-se , sob pena de quebrar-se um imperativo hereditário”.194

O “vale de lágrimas” que é a vida do homem duriense tem o seu reflexo

na denominação dos Cristos dos cruzeiros: Senhor dos Desamparados, Senhor

do Bom Caminho, Senhor dos Aflitos, Senhor da Agonia, etc. Com efeito,

Manuel Clemente acrescenta que: “o problema do sentido da dor, o enigma da

morte, o mistério da vida e da sua razão de ser... a perplexidade, a angústia,

fazem sentir, vivencialmente, a necessidade de serem salvos”195.

Daí que se note um certo “esmagamento”196 não apenas nas atitudes, mas

também nestes monumentos pois, como diz o P.e João Parente:

193 CASTRO, José Fernando Rua de, op. cit., p. 12. 194 Idem, op. cit., p. 4. 195 CLEMENTE, Manuel, op. cit., p. 41. 196 Por isso é que esse “esmagamento” está presente nas imagens do Senhor Morto ou do Senhor dos Passos que, em boa parte, existem em todas as igrejas e capelas do Douro.

152

“a arte popular cristã mostrou sempre preferência pelos sofrimentos e pela morte de Jesus, em prejuízo da Sua encarnação e ressurreição. É na cruz que se manifesta melhor a humanidade de Cristo e, de certa maneira, a divindade. A encarnação não é taõ sensível e a ressurreição é demasiado espiritual e transcendente. O povo prefere a paixão, porque impressiona, comove e apela ao sentimento . Compreende-se que o crucifixo seja a imagem mais comum contemplada no esplendor das catedrais como na simplicidade dos cruzeiros das recônditas encruzilhadas”197.

Daí que cruzes, paragens, encontros e pequenos episódios da narração

evangélica tornaram-se precisamente as “estações” da Via-Sacra, a famosa

prática devocional já existente no tempo das Cruzadas e que, nos nossos dias,

ainda é representada ao vivo nalgumas localidades, entre as quais se destaca

Trevões (Tabuaço), Sanfins do Douro, Murça, etc. A Via Sacra (Sexta-feira

Santa) é dinamizada por grupos de jovens que pretendem recriar tradições,

através de encenações originais de acontecimentos que antecederam a morte

de Cristo; promovem um conjunto de iniciativas, recuperando e preservando

tradições cada vez mais importantes para a cultura popular.

Tal como o «Diário do Norte», do Porto que, no seu número de 23 de

Junho de 1954, “lamentava o violento desaparecimento e supressão dos

cruzeiros humildes e ingénuas Alminhas”198, façamos nosso o apelo:

“defendamos os cruzeiros e as alminhas, vítimas, em muitos sítios, mais do

que da ignorância, da malvadez e impiedade latente ou manifesta de quem

abastardou a própria alma”199. O desleixo, que por vezes se observa, é bem

demonstrado nesta descrição:

“Depois, nos anos 30, vi o conjunto (uma base, com ares de centenária, e uma grande cruz, com o Senhor pintado), jazendo numa loja da casa vizinha da escola Bermudes. Na altura da construção das novas escolas, desmontaram-nas, mas não se deram ao trabalho de as transferirem para outro sítio”200.

197 PARENTE, Padre João, op. cit., p. 9-10. 198 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 62. 199 Idem, ibidem, p. 81. 200 COSTA, António Luís Pinto da, op. cit. p. 410.

153

Nos nossos dias podemos dizer que o lema dos cartuxos201 continua a

fazer sentido: “Stat crux dum volvitur orbis”: a cruz permanece enquanto o

mundo gira; ou então como dizia, por 1940, Mons. Moreira das Neves: «uma

cruz basta para dizer, na História, quem é Portugal»202.

Ao conservar estas venerandas relíquias da nossa fé cristã, estamos

certamente a honrar e a respeitar a memória dos nossos antepassados, pois,

tanto as alminhas como os cruzeiros, “espiritualizam a paisagem, sagram os

lugares e são, quando venerados, pára-raios de calamidades”203.

Na região do Douro fiz o registo fotográfico de duas centenas de

Alminhas e de Cruzeiros204. Quanto aos cruzeiros tinham a função de padrão

paroquial, padrão funerário, de assinalar as estações da Via Sacra e, acima de

tudo, são padrões de fé. Os nossos avós tiveram grande devoção por muitos

dos que havia espalhados pela região. Quantos seriam? Ao certo ninguém

sabe, mas eram muitos. É certo que não beneficiavam de grandes primores

artísticos, mas eram obras rústicas, singelas, esculpidas em granito da região

por anónimos canteiros. O progresso não foi benéfico para estes cruzeiros e

alminhas.

Abriram-se novas ruas e avenidas, alargaram-se outras, construíram-se

jardins. E muita coisa acabou por ser “engolida” pela onda do progresso. Os

cruzeiros e alminhas foram algumas dessas coisas. Muitas vezes até há quem

dirija petições ao Bispo no sentido de que sejam retirados, dos locais onde

estavam, alguns cruzeiros “por estarem a emperrar a marcha do progresso”.

201 Monges em clausura; Ordem fundada por S. Bruno, em 1 084. 202 BABO, Padre Francisco de, op. cit., p. 39. 203 Idem, ibidem, p. 106. 204 Foi nos concelhos de Vila Real e Alijó que encontrei o maior número de exemplares..