Capítulo4_Carla Osório&Leonor Araujo

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1 RESISTIR SEMPRE, PARAR JAMAIS: A HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL DA DECLARAÇÃO DE DURBAN À PROMULGAÇÃO DA LEI N. 10.639 Carla Maria Osório de Aguiar Leonor Araujo Neste texto buscamos traçar a trajetória histórica do Movimento Negro Brasileiro no século XX, com ênfase no período mais contemporâneo, entre os anos 1990 e 2009, destacando também os marcos legais que colocaram as reivindicações da comunidade negra na pauta das políticas públicas brasileiras. O negro no Brasil: uma história de lutas A luta dos africanos e seus descendentes no Brasil começa com a primeira carga de africanos escravizados trazidos para trabalhar na lavoura e mineração. A retirada forçada da população africana de seu continente deve-se a diversos fatores, como a centralidade do continente e sua rápida ligação com diversas partes do mundo; a mão de obra qualificada para a lavoura, artesanato e trato com diversos metais; uma das maiores concentrações populacionais do mundo; a desagregação dos reinos africanos com a entrada sistemática da Europa na África; entre outros. A resistência contra a escravidão foi constante e adquiriu formas como o suicídio individual e coletivo, o “banzo” (morte por depressão), evoluindo para lutas coletivas que tiveram em Palmares o seu território principal e que hoje é usado como exemplo quando queremos nos referir à luta travada pelos quilombolas contra o regime português e depois contra o Império Brasileiro. O exemplo de Palmares, o maior e mais bem organizado quilombo do período colonial brasileiro, não pode ser generalizado para todo o Brasil. Na maior parte das vezes, como no caso do Espírito Santo, as comunidades quilombolas eram constituídas por uma média de 15 a 60 pessoas, que ocupavam as terras não requisitadas pela lavoura ou mineração portuguesa. No século XIX, muitos desses quilombos estavam integrados à vida das vilas brasileiras, fornecendo produtos de primeira necessidade, principalmente gêneros alimentícios, como o

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RESISTIR SEMPRE, PARAR JAMAIS: A HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO

MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL – DA DECLARAÇÃO DE DURBAN À

PROMULGAÇÃO DA LEI N. 10.639

Carla Maria Osório de Aguiar

Leonor Araujo

Neste texto buscamos traçar a trajetória histórica do Movimento Negro Brasileiro no

século XX, com ênfase no período mais contemporâneo, entre os anos 1990 e 2009,

destacando também os marcos legais que colocaram as reivindicações da comunidade negra

na pauta das políticas públicas brasileiras.

O negro no Brasil: uma história de lutas

A luta dos africanos e seus descendentes no Brasil começa com a primeira carga de

africanos escravizados trazidos para trabalhar na lavoura e mineração. A retirada forçada da

população africana de seu continente deve-se a diversos fatores, como a centralidade do

continente e sua rápida ligação com diversas partes do mundo; a mão de obra qualificada para

a lavoura, artesanato e trato com diversos metais; uma das maiores concentrações

populacionais do mundo; a desagregação dos reinos africanos com a entrada sistemática da

Europa na África; entre outros.

A resistência contra a escravidão foi constante e adquiriu formas como o suicídio

individual e coletivo, o “banzo” (morte por depressão), evoluindo para lutas coletivas que

tiveram em Palmares o seu território principal e que hoje é usado como exemplo quando

queremos nos referir à luta travada pelos quilombolas contra o regime português e depois

contra o Império Brasileiro.

O exemplo de Palmares, o maior e mais bem organizado quilombo do período colonial

brasileiro, não pode ser generalizado para todo o Brasil. Na maior parte das vezes, como no

caso do Espírito Santo, as comunidades quilombolas eram constituídas por uma média de 15 a

60 pessoas, que ocupavam as terras não requisitadas pela lavoura ou mineração portuguesa.

No século XIX, muitos desses quilombos estavam integrados à vida das vilas brasileiras,

fornecendo produtos de primeira necessidade, principalmente gêneros alimentícios, como o

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caso da farinha de mandioca moída e torrada, um beneficiamento agrícola produzido pelos

“Quitungos”, conhecidos também como casas de farinha, nos quais utilizava-se uma técnica

trazida para o Brasil pelos africanos.

Imagem 1 – Habitação de negros semelhantes às de Palmares

A “convivência” entre os quilombos e a vida cotidiana colonial brasileira, que não

retirava dos primeiros a característica da resistência contra a escravidão, apontava para a

necessidade de inclusão dessa população, o que não foi conquistado com a Abolição. A

assinatura da Lei Áurea não significou o reconhecimento da importância dos africanos e de

seus descendentes na construção nacional, muito pelo contrário. Desde a dificuldade de

término do tráfico negreiro, passando pelo advento da Lei de Terras1, em 1850, e chegando as

Leis do Ventre Livre e Sexagenários, o panorama político e jurídico brasileiro fabricava

maneiras de deixar o negro à sua própria sorte, após a indefectível abolição.

A farsa da Abolição, como denunciou o Movimento Negro Brasileiro ao se recusar a

comemorar a data do 13 de maio, gerou a falta de oportunidades de inclusão do negro na

nossa sociedade, moldou a resistência e a militância incansável da comunidade negra

brasileira que se organizou, e até hoje se organiza, pela defesa e garantia de seus direitos, num

1 A Lei de Terras, numa leitura rápida e resumida, estabeleceu um mercado imobiliário no Brasil, criou o que

chamamos de “terra de negócio”, ou seja, a partir de 1850 a terra passa a ter preço e só poderia ser adquirida pela

compra acompanhada de seu devido registro nos Cartórios competentes. Fica evidente que a partir de então só

aqueles que possuíam dinheiro poderiam ter terra no Brasil, o que não era o caso dos negros brasileiros.

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longo e árduo caminho em busca da igualdade e do acesso às políticas públicas de educação

saúde, moradia, terra, religiosidade e muitas outras.

Imagem 2 – Parte dos negros emancipados pela Lei da Abolição estabeleceu residência nos

morros cariocas

A raiz do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil

É importante lembrar que a luta da população negra brasileira sempre foi no sentido da

inclusão, dos direitos cidadãos na garantia do republicanismo e da democracia. Isso quer dizer

que a luta travada pelos negros brasileiros não é uma luta particular e sim uma luta de todo

brasileiro que quer construir uma nação plural e que reconhece a identidade de seu povo.

As lutas inauguradas ou abraçadas pelos negros brasileiros provocaram mudanças

sociais e estruturais no status quo da nação que resultaram em importantes avanços para a

população historicamente excluída dos chamados “direitos constituídos”. Exemplo disso são

as contribuições dadas ao movimento de mulheres, a inclusão da escola pública e dos

indígenas na discussão da reserva de vagas no Ensino Superior, a introdução da História da

África e da temática da Educação das Relações Étnico-raciais que resultam na quebra da

preponderância eurocêntrica na educação brasileira.

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Um dos grandes exemplos do que discorremos acima é a Revolta da Chibata, ocorrida

em 1910 e que teve como líder João Cândido Felisberto, negro e marinheiro. As condições de

trabalho dos marujos brasileiros no início do século XX traduziam a permanência da

mentalidade colonial escravista junto à elite branca brasileira. Os marujos, na sua esmagadora

maioria negros e mulatos (conforme jornal da época), constituíam a marinhagem brasileira

submetida a um regulamento disciplinar que punia as faltas com soltaria a pão e água e

chibatadas. Os castigos corporais eram alvo das críticas dos marujos brasileiros, que também

não tinham nenhuma perspectiva de progressão na carreira, já que o oficialato continuava nas

mãos da elite.

Imagem 3 – Marinheiros na Revolta da Chibata (1910)

Imagem 4 – João Cândido, o “Almirante Negro”

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O movimento deflagrado por João Cândido e seus companheiros em 22 de novembro

de 1910, no Rio de Janeiro, modificou a marinha brasileira. A partir daí as chibatadas foram

abolidas, assim como outros castigos físicos. O salário foi melhorado e se instituiu a

preparação e educação para os marinheiros. As consequências se traduziram na melhoria do

tratamento a eles dispensado nas Forças Armadas brasileiras e no exemplo do “Almirante

Negro” que, apesar de toda perseguição do governo brasileiro, inspirou outros negros para se

organizarem e exigirem seus direitos.

A organização, a mobilização e a resistência de João Cândido marcaram uma das

primeiras entidades, se não a primeira, do Movimento Negro Brasileiro: a Frente Negra

Brasileira. Como qualquer outro movimento social, a Frente Negra Brasileira carrega as

marcas de seu tempo em sua organização e pauta de reivindicação. Criada em 16 de setembro

de 1931 na cidade de São Paulo, trazia as principais reivindicações para uma sociedade

urbana que buscava a modernidade: educação, assistência social e saúde, aquisição de bens e

inserção social.

Imagem 5 – Encontro da Frente Negra Brasileira (1932)

Foi constituída em um conselho com vinte membros, com os cargos mais importantes

sendo os de Chefe e de Secretário. Tinha ainda um Conselho Auxiliar formado por Cabos

Distritais da Capital, que denunciavam a admiração de seu líder Arlindo Veiga dos Santos

pelas regras de disciplina e autoridade, típico de uma época na qual o nazismo e o fascismo

influenciavam nas conduções políticas. Apesar de suas limitações caracterizadas pelo seu

público, urbano e de aspiração de classe média, conseguiu organizar e construir uma pauta de

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anseio nacional, já que abriu filiais em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do

Sul, entre outros.

A Frente Negra Brasileira ocupou um espaço deixado pelo Estado, sendo assim criou

escolas; qualificou trabalhadores para melhor inserção no mercado de trabalho; prestou

assistência médica, principalmente no combate à tuberculose, e também social; combateu a

discriminação racial em diversos espaços públicos incluindo e fazendo progredir seus

associados. Acima de tudo, criou territórios em suas sedes e ainda espaços de atuação, de

expressão e de organização dos negros, fortalecendo a sua auto-estima e sua participação

política ativa. Foi responsável também pela relevância dada ao tema da educação, pois

acreditava que a inclusão e o sucesso dos negros se daria a partir de seu domínio no campo

das ciências, literatura e artes.

Os avanços alcançados fizeram com que a FNB, em 1936, se transformasse em partido

político, que logo foi caçado pelo Estado Novo. Apesar das tentativas de seus membros, a

linha ditatorial do Estado Novo não permitiu sua continuidade, determinando assim seu

desaparecimento.

Imagem 6 – Núcleo de Teatro Experimental do Negro-SP (1951)

O que une a FNB ao movimento artístico, cultural, educacional e político denominado

Teatro Experimental do Negro (TEN), criado em 1944. O nome mais importante da militância

negra do século XX: Abdias do Nascimento. Ele é a maior personalidade negra brasileira da

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atualidade e tem seu nome cotado para a indicação do Premio Nobel da Paz, em 2010. Além

de fundar a FNB e o TEN, participou de todas as grandes e importantes lutas e manifestações

do Movimento Negro no século XX. Foi voz ativa nos dois períodos políticos ditatoriais

brasileiros, tanto no Estado Novo quanto na Ditadura Militar pós-1964. Em 1983, eleito para

o Parlamento brasileiro, concretizou em lei uma antiga demanda do movimento negro

brasileiro, transformando o dia 20 de novembro em Dia Nacional da Consciência Negra,

como homenagem a Zumbi dos Palmares, chefe da maior e mais organizada resistência negra

no período colonial.

Imagem 7 – Monumento dedicado a Zumbi localizado no Rio de Janeiro

No processo de democratização política pós Estado Novo foi criado o TEN. Indo além

das limitações artísticas que o nome pudesse sugerir, no TEN havia atividades educacionais,

verificando-se ainda a criação de uma escola de alfabetização e educação de jovens e adultos,

visando a ampliar as condições de acesso dos negros ao mercado de trabalho, ao que se

somava a formação de novas lideranças. Na concepção da produção artística do grupo, a

preocupação com o resgate da cultura africana era o tom. Resgatar o teatro, as artes em geral,

a religiosidade trazida do continente africano, também faziam parte do trabalho de pesquisa

do TEN. O pólo cultural criado por essa organização tinha como principal órgão de

comunicação de suas ideias o jornal Quilombo, que conseguiu abranger intelectuais negros e

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brancos com alcance nacional e internacional, mostrando que os afrobrasileiros produziam

análises intelectuais e participavam do acúmulo científico do pensamento brasileiro. Destaque

para um dos seus fundadores, considerado o maior poeta negro brasileiro, Solano Trindade.

Imagem 8 – Solano Trindade

Durante o período da Ditadura Militar o, Movimento Negro, assim como outros

movimentos sociais, não teve espaço e nem direito de se organizar. Os militantes continuavam

promovendo palestras, encontros e, na década de 1970, a idéia de afirmar e valorizar as

diferenças se junta ao combate ao preconceito e à discriminação de cor e raça.

Em 1978 foi fundado o Movimento Negro Unificado, resultado das articulações dos

grupos negros atuantes no período da Ditadura. O MNU, presente em vários estados

brasileiros, foi e continua sendo a força política fundante do atual movimento negro brasileiro.

A ação pública e sistemática do MNU, lutando contra a violência policial dirigida aos negros,

as péssimas condições de vida dos presidiários, as diferenças salariais entre negros e brancos,

a discriminação nos meios de comunicação e a favor da pauta histórica de educação, fez por

aliar a questão racial à luta de classes.

O MNU trabalhou para colocar a pauta da discriminação racial em todos os âmbitos

sociais e políticos, participando de partidos políticos, associação de moradores, sindicatos,

grupos religiosos, grupo de mulheres e jovens. A pauta do MNU criou a base da pauta de

reivindicação das políticas públicas de Ações Afirmativas, lutando pela promoção da

igualdade racial no país.

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Imagem 9 – Manifestação pública do Movimento Negro Unificado contra a

discriminação racial realizada em 7 de julho de 1978

A Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, promovida pelo Movimento Negro

Unificado em conjunto com várias entidades negras de todo o país, em Brasília, no ano de

1986, consolidou a pauta de reivindicações dos negros brasileiros para a Constituinte de 1988.

De Durban à Lei n. 10639: o século XXI marca a chegada da questão racial na

formatação das políticas públicas brasileiras

A Constituição Federal de 1988 foi marco legal importante para mudanças

substanciais no panorama ideológico e institucional com relação às questões raciais no Brasil.

O reconhecimento pela Constituição, sob forte mobilização e pressão popular, da diversidade

étnica, racial e cultural da população brasileira, resultou no fim da tutela estatal sobre os

povos indígenas e no reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e seus

territórios. Um relevante conjunto de conquistas jurídico-políticas foi coroado com artigos

que apontavam para a histórica pauta negra da educação: a previsão de que o ensino de

História deve levar em consideração “a contribuição das diferentes culturas e etnias para a

formação do povo brasileiro” (art. 242, § 2°) e o respeito devido pela educação aos valores

culturais (art. 210). A criação da Fundação Palmares, no fim da década de 1980, e os estudos

sobre educação e mercado de trabalho na relação raça e etnia do IPEA, marcavam o

reconhecimento do Estado brasileiro da existência do racismo.

O Brasil adota uma linha de programas, de pesquisas e de instituições na busca da

inclusão do negro brasileiro e que resultam na assinatura de diversos tratados internacionais,

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como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada e

transformada em legislação nacional em 2004, que garante o reconhecimento, pelo Estado

brasileiro, da autonomia e das diferenças entre os diversos grupos autóctones, tribais e

étnicos.

Nesse caminho, e com destaque para a mobilização e ativismo da militância das

mulheres negras, o Brasil chegou à Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, como

um dos principais países capazes de garantir a pauta de reivindicações e assumir liderança

junto aos países americanos, devido ao boicote dos Estados Unidos ao evento.

A III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e

as Formas Conexas de Intolerância ocorreu entre 31 de agosto e 7 de setembro de 2001, em

Durban, na África do Sul. Temas da modernidade, como a pós-derrubada do Muro de Berlim,

que tratavam das desigualdades estabelecidas pelos Estados na incompreensão da diversidade

sacudiram a conferência. Foram 173 países, 4 mil organizações não governamentais (ONGs) e

um total de mais de 16 mil participantes. O Brasil estava presente, com 42 delegados oficiais,

mais de 200 extra-oficiais e cinco assessores técnicos.

A brasileira Edna Roland, mulher, negra e ativista, foi a relatora geral da Conferência,

representando também as minorias vítimas de discriminação e intolerância. Ao fim da

Conferência, foram elaboradas uma Declaração e uma Plataforma de Ação, a fim de

direcionar esforços e concretizar as intenções da reunião. Em 2009, em Genebra, na Suíça, foi

realizada a reunião para revisão e análise da Declaração, que reafirmou os compromissos

assumidos pelos países signatários em 2001, exigindo-se rápida solução para os problemas

temas da Conferência.

Lei n. 10639: por que falamos em Revolução?

A Lei n. 10639/2003, promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

significou a concretização da pauta histórica de reivindicação do movimento negro para a

educação brasileira. É certo que todo racismo dos congressistas brasileiros fez com que o

texto da Lei tivesse vetos que, de alguma maneira, tentavam diminuir a revolução proposta na

escola brasileira.

A proposta maior da Lei, que altera a Lei de Diretrizes e Base 9394/1996 (LDB) em

seus artigos 26-A e 79-B, é combater o racismo na educação brasileira, oferecendo novos

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parâmetros científicos e culturais de interpretação da realidade nacional, propondo assim uma

verdadeira escola multicultural.

Quando citamos os diversos vetos à Lei n. 10639 no Congresso, foi para destacar a

importância da leitura e análise do conjunto legal que acompanham a mesma, ou seja, o

Parecer CNE/CP nº 03/2004 e a Resolução CNE/CP nº 01/2004. As matérias que dizem

respeito à educação brasileira votadas no Congresso e sancionadas pelo presidente da

República percorrem o caminho até o Conselho Nacional de Educação (CNE), que tem como

obrigação regulamentar a educação brasileira. No caso de novas temáticas ou disciplinas, o

CNE produz Diretrizes Nacionais que contextualizam a temática em currículos, orientando os

sistemas estaduais e municipais sobre o que ensinar, em que níveis e etapas.

O Parecer CNE nº 03/2004, que tem valor de orientação aos sistemas educacionais, foi

produzido pela Conselheira Petronilha da Silva e estabeleceu as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura

Afrobrasileira e Africana (ver Box 1). O Parecer deve ser lido na sua íntegra por qualquer

pessoa que queira entender o que significa uma educação que deva concorrer para formar

cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial e que compreendem que as diferenças

sociais, culturais e raciais não determinam inferioridade e, sim, diversidade.

Box 1

Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP Nº 3/2004), para as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico -Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

Destina-se, o parecer, aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de

estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus professores e a todos implicados na

elaboração, execução, avaliação de programas de interesse educacional, de planos institucionais,

pedagógicos e de ensino. Destina-se, também, às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os

cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, para nele buscarem orientações,quando

pretenderem dialogar com os sistemas de ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às relações

étnico -raciais, ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afrobrasileiros, à

diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao

estudo, mas também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa

e democrática.

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população

afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de

reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política curricular,

fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca

combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva,

propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que

eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos

indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação

democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.

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O sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas, visando a reparações,

reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros brasileiros depende

necessariamente de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para

aprendizagens; em outras palavras, todos os alunos negros e não negros, bem como seus professores

,precisam sentir -se valorizados e apoiados. Depende também, de maneira decisiva, da reeducação das

relações entre negros e brancos, o que aqui estamos designando como relações étnico-raciais.

Depende, ainda, de trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas

públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas

relações étnico-raciais não se limitam à escola.

CONSELHEIROS: Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (Relatora), Carlos Roberto

Jamil Cury, Francisca Novantino Pinto de Ângelo

Como o Parecer 03/2004 foi aprovado à unanimidade pelo conselho Pleno do CNE,

gerou uma Resolução nº01/2004, que, com força de Lei, detalha os deveres e direitos dos

sistemas educacionais e outras instituições na ação de implementação da Lei n. 10639. (ver

Box 2).

Box 2

Resolução Conselho Nacional de Educação CNE/CP Nº 01/2004.

Art. 2° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas constituem-se de orientações, princípios e

fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, e têm por meta, promover a

educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do

Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas,rumo à construção de nação democrática.

§ 1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de

conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à

pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que

garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da

consolidação da democracia brasileira

. § 2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento

e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de

reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das

indígenas, européias, asiáticas.

Importante ressaltar que tanto o Parecer 03 quanto a Resolução 01 avançaram sobre os

vetos sofridos pela Lei no Congresso. Diferentemente do que muitos pensam, a Lei não se

resume ao ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. O Parecer estabelece a

temática da Educação das Relações Étnico-raciais, a qual deve ser adotada como constituinte

do cotidiano escolar, pois ela traduz as ações necessárias ao combate à discriminação no

cotidiano escolar. Mais uma vez, a pauta da comunidade negra traz benefícios para toda a

população brasileira quando busca combater toda forma de discriminação, seja ela racial, de

gênero, de opção sexual ou de deficiência física.

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Combater a discriminação no cotidiano escolar não é tarefa apenas dos professores de

História, Educação Artística e Português, como profere a Lei, mas é obrigação de todo

cidadão que faz da escola seu espaço de atuação.

Colocar a África no nosso mapa afetivo e cognitivo significa trazer novos

conhecimentos para o ambiente escolar que permitirão a todos lidar, de maneira mais

qualificada, com as exigências do mundo atual. A História de Africanos, Afrobrasileiros e

também indígenas, com a nova Lei n. 11645/2008, permite resgatar auto-estimas, contemplar

novos conhecimentos científicos e dar às outras etnias que construíram o País seu devido

lugar na escola.

Mas, se parece que a Lei n. 10.639 resolveu os problemas da educação colocados

desde o século XIX pelos movimentos negros, isso é um engano. O racismo brasileiro,

principalmente o institucional, que cria armadilhas que impedem o combate e reafirmam a

discriminação, fizeram com que a implementação da Lei n. 10.639 fosse lenta, ignorada por

muitos gestores e profissionais da educação, obrigando o Movimento Negro à tomada de

ações no sentido de garantir a obediência a Lei.

Concorre para isso também a ausência da temática nos cursos de formação inicial e

continuada dos profissionais da Educação. A Resolução 01/2004, que atribuiu os direitos e

deveres dos entes federados na implementação da lei, no seu artigo 1º e conseqüentes

parágrafos estabelece a temática em todos os níveis, modalidades e etapas da educação

brasileira, determinando às Instituições de Ensino Superior a inclusão da mesma em

disciplinas e atividades curriculares de seus cursos de graduação, ação até hoje não cumprida

pelas IES, com raras exceções.

O Ministério da Educação, atendendo ao clamor do movimento negro pela agilização

da implementação da Lei n. 10.639, juntamente com outros parceiros importantes como a

SEPPIR, UNESCO, UNICEF, CEERT, CEAL, NEABS, CONSED, UNDIME, sistemas de

Ensino, Conselhos de Educação, movimento negro, sindicatos de professores, Ministérios

Públicos, entre outros, elaboraram e lançaram, em 13 de maio de 2008, o Plano Nacional de

Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

O Plano Nacional tem como finalidade institucionalizar a implementação da Educação

das Relações Étnico-raciais e, para isso, produziu um texto didático-pedagógico que busca

esclarecer e maximizar a atuação dos diferentes atores por meio da compreensão e do

cumprimento da Lei e de seu conjunto jurídico.

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Apesar do longo caminho percorrido, enquanto existir racismo no Brasil não haverá

descanso para as ações do Movimento Negro Brasileiro. Persistência, resistência, luta e

vitórias, palavras que acompanham os militantes negros brasileiros pelos tempos históricos de

construção de uma nação mais democrática que precisa respeitar as diversidades étnico-raciais

se quiser ser republicana e cidadã.

Saiba mais: CEAO/UFBA Centro de Estudos Afro Orientais – Universidade Federal da Bahia

CEERT Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades

NEAB Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros

ONG Organizações não governamentais

CONSED Conselho Nacional de Secretários de Educação

IPEA Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/1996

SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação

UNESCO Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial [da] República Federativa do

Brasil. Brasília, DF, 9 jan. 2003. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003

/L10.639.htm>. Acesso em: 12 jul. 2010.

_____. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das

relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.

Brasília: MEC, [s.d.]. Disponível em: <www.portal.mec.gov.br/cne/>. Acesso em: 12 jul.

2010.

_____. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes

curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de

história e cultura afro-brasileira e africana.13 de maio de 2008. Brasília: MEC, [s.d.].

Disponível em: <www.portal.mec.gov.br/secad/>. Acesso em: 12 jul. 2010.

_____. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília:

MEC/Secad, 2006.

CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES.

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Terceiro Prêmio Educar para a Igualdade Racial: experiências de promoção da igualdade

racial-étnica no ambiente escolar, ago. 2008. São Paulo: CEERT, 2008.

CONFERÊNCIA REGIONAL DA AMÉRICA LATINA E CARIBE PREPARATÓRIA

PARA A CONFERÊNCIA MUNDIAL DE REVISÃO DE DURBAN, Brasília, 2008. Anexo

ao documento de posição brasileira. Brasília: MEC, 2008.

GARCIA, Januario. 25 anos de Movimento Negro no Brasil. 1980 – 2005. 2ª edição, Brasília:

Fundação Cultural Palmares, 2008.

GOMES, Nilma Lino; MUNANGA, Kabengele. Para entender o Negro no Brasil de

Hoje:Histórias, realidades,problemas e caminhos. São Paulo: Ação Educativa, 2004.

IPEA. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição.

Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2008. Disponível em:

<www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/08_05_13_120 anos Abolicão V coletiva.pdf>. Acesso em:

12 jul. 2010.