Caracteristicas do Povo Português

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17 José Filipe Pinto * Sumário Com este trabalho pretende-se compreender a influência do elemento psicológico na História de Portugal, como factor fundamental da conquista da independência e de afirmação em períodos de aventura, como a expansão, ou em época de novas descobertas resultantes do fim de um Império mais imaginário que real. Palavras-chave: Estado Novo, Salazar, Nação, Elemento Psicológico, Independência, Afirmação, Portugal, Império Abstract This research tries to understand the influence of the psychological element on Portuguese History, as an essential factor of its independence conquest and affirmation in adventure periods, as the overseas expansion, or in epochs of new discoveries resulting of the end of a Empire which must be considered more imaginary than real. Keywords: The New State, Salazar, Nation, Psychological Element, Independence, Affirmation, Portugal, Empire O Elemento Psicológico como Factor da Afirmação de um País Chamado Portugal RES - PUBLICA Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais 2007, 5/6 pp. 17 -29 * U.L.H.T.

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Perfil psicologico do povo português

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José Filipe Pinto *

SumárioCom este trabalho pretende-se compreender ainfluência do elemento psicológico na História dePortugal, como factor fundamental da conquista daindependência e de afirmação em períodos deaventura, como a expansão, ou em época de novasdescobertas resultantes do fim de um Império maisimaginário que real.

Palavras-chave:Estado Novo, Salazar, Nação, Elemento Psicológico,Independência, Afirmação, Portugal, Império

AbstractThis research tries to understand the influence ofthe psychological element on Portuguese History,as an essential factor of its independenceconquest and affirmation in adventure periods,as the overseas expansion, or in epochs of newdiscoveries resulting of the end of a Empire whichmust be considered more imaginary than real.

Keywords:The New State, Salazar, Nation, PsychologicalElement, Independence, Affirmation, Portugal,Empire

O Elemento Psicológico como Factor da Afirmação deum País Chamado Portugal

RES - PUBLICARevista Lusófona

de Ciência Políticae Relações Internacionais

2007, 5/6pp. 17 -29

* U.L.H.T.

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Introdução

A mundanal afeição, teorizada por Fernão Lopese que decorre da dimensão humana, conduz, quaseimplicitamente, à interpretação subjectiva dosacontecimentos, acabando por condicionar ou, pelomenos, colocar em risco a universalidade de certosconceitos.

Por isso, e tomando como exemplo Portugal, asnoções de nação e de povo, apesar de poderem serdefinidas com alguma objectividade, têm sido objectode aproveitamentos que desvirtuam a essência dosconceitos em causa.

Foi assim durante o Estado Novo, pois paraSalazar o pensamento dominante era nada contra aNação, tudo pela Nação, assente na habilidadedialéctica de «substituir, no abstracto, a nação peloEstado e em esconder-se atrás da primeira, para nãoser criticado por sacrificar o indivíduo ao Estado»1.

Voltou a ser assim, quando, no período pós-25 deAbril, as forças ditas revolucionárias se arvoraramno direito de apenas considerar como pertencentesao povo cerca de 10 por cento dos portugueses.

No entanto, as constatações anteriores não seaplicam, pesem embora alguns resquícios deprovincianismo e de heterocentramento, ao problemada identidade.

Na verdade, Portugal não tem problemas deidentidade como, aliás, ficou sobejamentedemonstrado quando Adriano Moreira, na qualidadede presidente da Sociedade de Geografia, convidouos representantes das comunidades emigrantesfiliadas na cultura portuguesa para os Congressos quese realizaram em Lisboa e em Moçambique.

Como Adriano Moreira (1977:9) referiu «muitosjá não falavam a língua, há séculos que de geraçãoem geração se diziam portugueses sem nunca terempisado terra portuguesa».

No entanto, a adesão pronta e interessada à ideia,o desejo de estreitar os laços que a inércia do poderpolítico não conseguira quebrar, tudo em nome doorgulho de se sentir membro da portugalidade,

constituíram demonstração inequívoca de que, comoPascoaes (1998:13) afirmou, o Português, mesmoquando integrando a nação peregrina em terraestranha «é uma raça constituindo uma Pátria, porque,adquirindo uma Língua própria, uma História, umaArte, uma literatura, também adquiriu a suaindependência».

Por isso, quando «nos areais se perdeu uma nação»(Agostinho da Silva: 2002:28), o Rei não morreu, poisnão se tratava de uma individualidade, mas de umente colectivo.

Do mesmo modo, a queda do Império, maisimaginado que real, não significou mais do que umademonstração, necessária mas serôdia, de que asformas políticas das relações entre os povos, mesmoque marcadas pela injustiça e exploração,representam apenas um arranjo humano transitório.

Com este trabalho pretende-se, aproveitando oscontributos, nem sempre devidamente valorizados, deCunha Leão, Pascoaes, Jorge Dias, Gilberto Freyree Agostinho da Silva2, compreender o enigmaportuguês: a formação do povo português, as suascaracterísticas físicas e, sobretudo psicológicas, ascausas que proporcionaram a obtenção e manutençãoda independência política, única na Península Ibéricaface a Castela, a construção e a manifestação dosmitos colectivos e, finalmente, os momentos relevantesda vida contemporânea de um Portugal ainda àespera de compatibilizar as opções lusófona eeuropeia, condição necessária, e espera-se quesuficiente, para a sua afirmação.

Este projecto implicou um trabalho de selecção eanálise de obras relacionadas com o tema e queincluíam não apenas as perspectivas histórica egeográfica, mas sobretudo, as dimensões filosófica eantropológica, uma vez que se procurava uma análiseo mais abrangente possível.

Verificou-se igualmente necessária a consulta deobras espanholas, como modo de inferir arepercussão que os acontecimentos da História dePortugal tiveram em Espanha, país hoje vizinho, mas,

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outrora, principal ameaça externa da independênciae do projecto português.

Com este trabalho pretende encontrar-se umaresposta para a questão:

De que modo as características psicológicas dopovo português foram determinantes para aconstrução de um projecto independentista eexpansionista que se manteve tantos séculos?

A Formação do Povo Português

As teses acerca da formação do povo português,sobretudo no que diz respeito ao peso relativo dosdiferentes povos que se admite poderem estar na suabase, são díspares.

Uma dessas teses, a céltica, assim denominadapela valorização que faz do contributo dos Celtas, épartilhada quase por unanimidade pelos intelectuaisgalegos, dos quais se destacam Plácido Castro,Pedrayo, Vicente Risco, Rodriguez Gonzalez eSalvador Lorenzano, os quais justificam a sua opçãocom base em dados arqueológicos e históricos.

Aliás, também em Portugal, a posição que defendeque o povoamento foi maioritariamente celtaencontrou muitos defensores.

Um deles, Leite de Vasconcelos, fundamentou--se em «textos e onomástico, tanto ao sul do Tejo,como a Norte do Douro. Relativamente à regiãosituada entre o Tejo e o Douro não se conhecemtextos em que se mencionem Celtas; compensa-nosporém esta falta o onomástico»3.

Quanto a Oliveira Martins (1977:20), defendia atese céltica por pressupostos psicológicos, poisconsiderava que o elemento primitivamentedominante nas populações era, em Portugal, celta,uma vez que os seus frutos ingénuos e espontâneostinham a cor e a forma dos produtos dessa raça e porpressupostos onomásticos «os nomes próprios delugares, os nomes de pessoas e divindades tiradasdas inscrições latinas da Lusitânia e da Tarraconense,que constituem o nosso Portugal, provam apreponderância de um elemento celta».

Este historiador (1987:23) contestava a suposiçãode Humboldt de que os Iberos fossem de origem celta,pois «ou independentes ou filiados no ramo semita,os Iberos não é lícito confundi-los mais na estirpedos Celtas, porque estes últimos provêm da raça indo-europeia».

Segundo ele, os Celtas fundiram-se com os Iberose dividiram-se em cinco grandes tribos: Cantabros,Asturos; Vascónicos, que se fixaram no Norte eGalaicos e Lusitanos, que ocuparam o Ocidente. Istoexplicava a individualidade de carácter dos Lusitanos,pois tinham mais sangue céltico ou celta do queibérico.

No entanto, Oliveira Martins (1977:22) lançoualgumas dúvidas sobre a existência de uma tesetotalmente correcta, porque «até hoje todas assucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têmfalhado. Latinos, Celtas, Lusitanos e afinal Moçárabestêm passado: ficam os portugueses, cuja raça, se talnome convém empregar, foi formada por sete séculosde história».

Também Veríssimo Serrão 1979:43) advogou afavor da tese céltica, pois defendia que os Celtas,embora não provindo de um mesmo tronco migratório,encontraram uma terra despovoada em larga escalano século VI a C. Segundo ele, as marcas linguísticasda civilização celta foram «os nomes de lugares,pessoas e divindades. Aos antigos topónimos juntaramsufixos como dunum e briga».

Assim, a adesão à tese céltica parece justificar-se pela arqueologia – posição dos historiadoresgalegos, pela toponímia e onomástico–, teses de Leitede Vasconcelos e de Joaquim Serrão e até pelapsicologia – caso de Oliveira Martins.

Convirá, no entanto, referir que qualquer destasteses teve vários apoiantes para além dosmencionados e que outras teses foram apresentadassobre a origem do povo português.

Uma delas, formulada por Teixeira de Pascoaes(56), considerava que os povos que primitivamentepovoaram a Ibéria, e não apenas a região que hoje éPortugal, pertenciam apenas a dois ramos étnicos

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diferenciados por estigmas de natureza e moral: «umdos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas,etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes)».

Por outro lado, alguns investigadores atribuíamdominância a outros elementos, como foi o caso deMartins Sarmento (1891:17), que recusava a tesecéltica, pois considerava «a velha toponímia doOcidente anterior à aparição dos Celtas» e davarelevância ao elemento lígure, posição que não foiaceite por Mendes Corrêa (1918:61), que defendiaque «não há no onomástico português elementosbastantes para se definir uma filiação nos lígures e,além disso, o culto do cisne astral, tão famoso entreêstes, não figura nas Religiões da Lusitânia».

Também o antropólogo Fonseca Cardoso «julgouidentificar na população poveira um contingentefenício ou púnico»4, que corresponderia a 5 por centoda população, e Basílio Teles (1901:331) defendeu«uma diferenciação étnica entre o Norte e o Sul. Nestea semitização operada pelos contingentes fenícios,cartagineses, hebraicos e árabes; naquele, opredomínio ariano», posição prontamente refutada porAntónio Sardinha (1915;I), que considerava que era«o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferênciassedentárias, quem fundamenta as raízes da Pátria»,e que o dolicocéfalo loiro foi apenas um raptor orbis.

Por outro lado, Alexandre Herculano (1980:81-82) contestou as filiações lusitanas dos portuguesesporque «é impossível ir entroncar com elas a nossahistória ou delas descer logicamente a esta. Tudo lhefalta: a conveniência de limites territoriais, a identidadeda raça, a filiação de língua, para estabelecermos umatransição natural entre estes povos bárbaros e nós».

Para Herculano (1980:45-46), a Lusitânia abrangia,nos tempos da independência céltica e do domínioromano, «uma extensão mais que duplicada da larguraactual do nosso país» e, por isso, também a Galiza, aEstremadura Espanhola e até a Andaluzia poderiamreclamar o direito a considerar essas tribos célticas,denominadas Lusitanos, como seus antepassados.Além disso, «a antiga raça céltica, não só da Lusitâniamas também de outra parte da Península, corrompeu-

-se, desaparecendo por fim na sucessão de tantasinvasões e conquistas»5.

Mais uma vez Corrêa Mendes (1919:74-75)contestou esta tese, pois dizia que «se não há umasinonímia rigorosa entre Lusitano e Português, éinegável que os Lusitanos constituem entre osindígenas históricos do território o núcleo maisimportante da futura população portuguesa».

Por tudo o que foi apresentado, parece lícitoreconhecer razão a Cunha Leão (1973:96) quandoafirmou ser temerário «pretender atribuir talindividualidade a qualquer raça em particular, ou aopredomínio de uma delas».

Este investigador considerava que o contingentegalaico do além-Vouga, também ele já o resultado deuma mistura, se caldeou intensamente com o sanguelusitano, nas zonas por onde avançou a reconquistacristã, linha Norte–Sul e paralela ao mar. Quanto àsBeiras interiores, o relevo acidentado facilitou oisolamento dos genuínos Lusitanos. Assim «o galaicoimpregnou fortemente o luso-romano e o luso-árabe.Depois, deu-se em grande escala a absorção denórdicos, mediterrânicos, israelitas e até decontingentes de cor»6 .

Por isso, o povo português era a combinação felizdesta encruzilhada de povos.

Também o antropólogo Jorge Dias (1986:18)estudou a origem do povo português e considerouque a região que hoje constitui Portugal «estavadestinada a ser ponto de passagem e de encontrodas mais variadas raças», devido à sua localizaçãono Extremo Sudoeste da Europa. Por isso, consideravaque todos os povos, invasores ou comerciantes,deixaram as suas marcas: os Fenícios e osNormandos, duma maneira, superficial e no litoral;os Celtas, sobretudo a partir do séc. VI a. C., pois«fundiram-se com a raça autóctone e os Lusitanosresultaram desta fusão»; os Romanos, durante unsséculos, os povos germânicos, os Suevos, no séc.V,os Visigodos, no séc. VI, e os Árabes, nos princípiosdo séc. VIII.

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Outras teses poderiam ser mencionadas, mas nãoparece abusivo concluir que pouco adiantariam àsposições anteriormente expostas e que se podemagrupar em duas: valorização quase absoluta deapenas um elemento ou defesa de uma perspectivadiacrónica de formação, em que cada povo quechegava, contribuía, mais ou menos significativamente,com novos elementos para a combinação feliz – opovo português.

A Independência de Portugal

As teses sobre a independência de Portugal podemser agrupadas de acordo com os elementos que asvalorizam em geográficas, antropológicas e políticas,ou de circunstancialismo histórico.

A tese geográfica tende a considerar que Portugalconstitui uma individualidade geomorfológica naPenínsula Ibérica, pois «a forma rectangular, adistribuição dos seus degraus continentais, a funçãodominante do mar, particularidades da orientação dasmontanhas e das redes hidrográficas»7 contribuírampara individualizar Portugal. Esta ideia de umindividualismo geográfico como base da separaçãopolítica, foi defendida por Silva Teles e por outrosgeógrafos como Elisée Reclus e HermannLautensach.

No entanto, esta tese, por si só, tem dificuldadeem explicar que algumas províncias portuguesasapresentem mais diferenças entre si do que com ascontíguas espanholas, como se pode constatar dacomparação do Minho com o Algarve, tão diferentesentre si, mas tão semelhantes, o primeiro com aGaliza, e o segundo, com a Andaluzia. Por explicarfica também o precário suporte continental dePortugal, uma faixa estreita na proporção de 6 para2, devido ao seu comprimento máximo de 561km e àlargura de 218 km, construído na maior parte semuma protecção ou um suporte orográfico e com umalinha hidrográfica descontínua e facilmenteultrapassável em muitos pontos.

Oliveira Martins (1977:34) rejeita a tesegeográfica, porque «as cumeadas e os vales extensosmudam de nacionalidade naquele ponto convencionalque aos homens aprouve fixar», pois os rios e asserranias de Portugal dilatam-se até ao coração docorpo peninsular. Além disso, a metade sul de Portugalcontradiz de modo incontestável as opiniões queconsideram a orografia como fundamento daindependência portuguesa.

Também Orlando Ribeiro (1987:23) considera que«a posição de fachada marítima foi aproveitadalargamente pela civilização que se elaborou emPortugal; mas nem a determinou nem lhe éespecialmente favorável». Para ele, as teses que sefundamentavam no território e na raça estavamultrapassadas.

Parece pertinente, uma vez explicitados osmotivos da recusa da tese geográfica, apresentar osargumentos com que contraria a tese antropológica.

Nos distritos isolados do Nordeste, os valores doíndice cefálico são os mais elevados, e MendesCorreia já tinha considerado que a populaçãoportuguesa era a mais dolicocéfala e homogénea daEuropa. Por outro lado, «o espanhol vai dadolicocefalia menos pronunciada do português até àbraquicefalia»8.

Orlando Ribeiro (1987:25) aceitou essa diferençacomo uma consequência a posteriori da fronteira enão como um elemento condicionante do seu traçado,pois «os tipos humanos definem-se na Penínsulaatravés de influências, migrações e contactos numlapso de tempo muito longo». Também OliveiraMarques (1974:7) recusou a tese geográfica pois«muito mais importante do que uma pretensaindividualidade geográfica é antes a situaçãogeográfica que explica muitos dos traçoscaracterísticos da história portuguesa e a própriaexistência de Portugal como nação». Para OliveiraMarques (1974:67), a independência de Portugalesteve intimamente relacionada com certos problemasde administração eclesiástica, como «a luta entre osarcebispos de Braga e os de Toledo e pela tentativa

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de criar uma província metropolitana portuguesacoincidente com as fronteiras de Portugal».

Quanto à outra tese, a do acaso ou acidentehistórico, tão defendida pelos historiadores espanhóis,como Sanchez Albornoz e Américo Castro, importaver qual a sua fundamentação.

Américo Castro (1971:373) considerou aindependência de Portugal «como indirectaconsequência de Santiago». Este historiador(1971:376) defendia que «el futuro Portugal, antesde ser regido por el conde Enrique de Borgoña, noposeía una consciência colectiva desligada de la delos gallegos y leoneses» e classifica a crença de quePortugal já existia antes do século XII como umalenda.

Aliás, já em obra anterior, Américo Castro(1948:152) afirmara que, para ele, «a Portugal lohacen independiente», o que significa que aindependência de Portugal não foi apenas obra deportugueses, mas também da Aquitânia e Borgonhae da Ordem de Cluny, que usaram a peregrinação aSantiago de Compostela em benefício próprio,aproveitando «la debilidad de Alfonso VI, y suurgencia por enaltecerse él y su reyno».

Na verdade, este rei casara, primeiro, com Inêsde Aquitânia e, depois, com Constança, filha do duquede Borgonha. Seus genros, Henrique e Ramonpertenciam, tal como seu primo, o abade Hugo deCluny, à casa ducal de Borgonha, e a morte deRamon, herdeiro do trono, «perturbó los planesclunialenses en cuanto a Léon y Castilla, planes queentonces se concentraron sobre Portugal, feudootorgado por Alfonso VI a su yerno el conde Enrique».Aliás, D. Henrique tinha vindo à Península Ibéricapara estabelecer mosteiros nos lugares estratégicosdo caminho de Santiago, santuário de prestígiointernacional. Os interesses franceses ganharam maisapoios no Condado Portucalense com «la venida delos caballeros del Temple y de los monjes del Cister,igualmente enlazados com Borgoña» (Castro,1948:154).

Para Américo Castro não restavam dúvidas deque tinham sido estes laços com Borgonha e comCluny, a debilidade de Afonso VI e as guerras civisentre cristãos que possibilitaram a independência dePortugal.

Outro historiador que recusou a tese geográficafoi Oliveira Martins, ao defender que Portugal se tinhaformado com um retalho da Galiza, outro, de Leão eoutro, da Espanha meridional sarracena.

Para ele (1977:62) «é da data do óbito de Afonso VI

que deve contar-se a era da independência dePortugal», pois foi esse acontecimento que permitiuquebrar a cadeia de vassalagem devida por D.Henrique a Afonso VI. Este historiador (1977:27)considerava que, das várias causas possíveis para aindependência de Portugal, não era de desprezar,como causa fundamental, o merecimento pessoal doconde D. Henrique: «a causa da separação dePortugal do corpo da monarquia leonesa não éobscura, nem carece de largas divagações paradefinir-se: é a ambição de independência dogovernador do condado». Aliás, Oliveira Martinsdefendia que o conde pretendia mais a suaindependência pessoal e própria do que a fundaçãode uma nação.

Naquela altura havia uma anarquia sistemática daconstituição da sociedade, e o destino dependia dabravura e perspicácia dos chefes, e com a morte doconde e a mancebia da viúva com Fernando Peres, oque «não era caso que ofendesse o pudor particularnem público»9, mas dava origem a ciúmes entre osfidalgos, temeu-se a perda do que D. Henrique tinhaconseguido, mas a viúva «a condessa, infanta ourainha de Portugal – porque de todos estes títulosusou»10, soube defender as conveniências próprias,até à invasão de Afonso VII, que a obrigou a retrair--se aos primitivos limites e a jurar vassalagem.

Foi este facto aproveitado pelo arcebispo deBraga, D. Paio, e por outros nobres para apoiaremD. Afonso Henriques na luta e na vitória contra amãe. Toda a luta posterior de D. Afonso Henriques,a derrota de Tui e a consequente vassalagem, a vitória

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de Ourique, a paz de Valdevez e, finalmente, o Tratadode Zamora, apenas lhe garantiram, de acordo com odireito político dos Godos, a independência e asoberania até à sua morte. No entanto, a constataçãode que o direito canónico era superior ao feudal e osconselhos do cardeal Guido para que D. AfonsoHenriques se tornasse vassalo do papa, valeram-lheque Alexandre III lhe sancionasse o título de rei e lhegarantisse «a hereditariedade, sob condição de preitoe confirmação outorgada aos seus sucessores»,(Martins, 1977: 81), fundamento jurídico daindependência.

Em abono das teses que valorizam a intervençãodas ordens religiosas, mas também a do merecimentopessoal, deve, no entanto, referir-se que São Bernardode Cadaval se apressou a escrever a D. AfonsoHenriques.

Por tudo o que foi exposto, parece poder concluir--se pelo acerto da posição de Orlando Ribeiro (1987:20), que defende que «o problema não deve ser vistoapenas pelo lado “nacional”, mas no conjuntopeninsular» e que interpretações como a do «acaso»de Sanchéz-Albernoz e de Américo Castro estãocompletamente ultrapassadas, assim como as quevalorizam apenas o território ou a raça.

Como Cunha Leão defendeu, «a independêncianão só deflagrou com incrível pujança e tenacidadecomo se reforçou em formas originais e aoreflectirmos sobre os seus efeitos e suportespsicológicos condicionados teremos a chave daintrigante irredutibilidade portuguesa e dasobrevivência nacional»11.

Importa, pois, fazer a caracterização psicológicado povo português: as suas virtudes e os seus defeitos,se bem que, como defende Jorge Dias, o que foramvirtudes numa época podem ser defeitos noutra. Talvezse encontre nessas características psicológicas arazão fundamental para a independência de Portugal,uma vez que as outras causas apontadas parecem,quer individualmente quer em conjunto, incapazes degerar o consenso.

Aspectos Psicológicos do Povo Português

Vários autores já se encarregaram de traçar oretrato psicológico do povo português, tentando vernele a explicação para a soberania nacional. Convirárealçar desde já que, como Eduardo Lourenço(1992:21) constatou, «é nas camadas populares, ounos que estão mais próximos delas, que o vínculoimediato ao ser racional resiste, mesmoinconscientemente à coexistência superficialmentepacífica de espanhóis e portugueses», embora emalguns momentos determinantes – Independência eRestauração – não tenham sido as camadas popularesaquelas que se revelaram mais actuantes edeterminantes.

Teixeira de Pascoaes (1998:89) definiu o carácterportuguês como «o desenho íntimo da alma pátria,que se exterioriza por meio das suas qualidades emacção: génio de aventura, espírito messiânico,sentimento de independência e liberdade». Tambémreferiu defeitos, mas Pascoaes (1998:97) consideravaque «o homem possui as qualidades dos seusdefeitos... é possível que destes resultem aquelas, porcontraste ou evolução criadora». Por isso, realçou afalta de persistência como defeito, mas fez-lhecorresponder o génio de aventura como virtude; à viltristeza correspondia a saudade; a inveja tinha comovirtude o sentimento de independência e o poder deindividualidade. Salientou ainda os defeitos própriosde um povo que foi grande e decaiu: a vaidadesusceptível, que o leva a viver no sonho e na fantasiade ainda possuir os bens; a intolerância, uma formade vaidade susceptível, que representa uma maneirade se alimentar da sua quimera dolorosa, e o espíritode imitação, que surge quando o carácter adoece ese dilui.

Das qualidades apontadas por Pascoaes, nãoparece errado concluir que um povo que tem umsentimento tão profundo de independência e liberdadedificilmente poderia suportar uma situação devassalagem ou dependência.

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Também Jorge Dias (1986: 25) viu nascaracterísticas psicológicas do povo português umaforma de afirmação de independência, pois oPortuguês não tem como o Espanhol «um forte idealabstracto, nem a acentuada tendência mítica. OPortuguês é, sobretudo, profundamente humano,sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco».

É igualmente um misto de sonhador e de homemde acção, ou seja, um sonhador activo, cujas acçõesou actividades se alimentam do sonho e daimaginação. Aliás, até na religião não se viam osCristos lívidos e torturados de Espanha, ou as igrejasimponentes de Espanha, mas templos acolhedores,caiados ou sóbrios na pureza do granito e semprehabitados por santos bons e humanos. Este aspectoda religião em Portugal foi também evidenciado porGilberto Freyre (1952:169) que escreveu que há entreos homens e os santos «uma intimidade como quecaracterizada pelo compadrio». Não sendo fraco nemvingativo – na Literatura Portuguesa a vingançasangrenta do adultério de Lope de Vega ou Calderónfoi substituída pela solução feliz de Gil Vicente –, oPortuguês tem um temperamento brioso e por issoestá predisposto a terríveis lutas sangrentas, comoas rixas entre aldeias próximas, ou até entre amigose vizinhos, o que pode explicar o seu desejo deindependência política, pois sentia-se ultrajado pelavassalagem devida a um rei estranho. Ainda deacordo com Jorge Dias (1986: 36), até nas touradascom a tradição portuguesa de não matar o touro, quevem embolado para não ferir os cavalos nem mataros homens, existe uma contradição com a intensidadedramática da tourada espanhola. No entanto, «a notaviril da coragem física com as pegas, em que oshomens medem forças com o touro, que é dominadoa pulso», revela a valentia e o desejo de afirmaçãoque se sentiu também na arte, quando, não sentindocomo seu o gótico de Espanha e França, o Portuguêsacabou por criar um estilo próprio, onde a suareligiosidade típica melhor se exprime: o manuelino.Também neste aspecto o desejo de independência ea necessidade de afirmação parecem nítidos.

No entanto, o mais completo estudo psicológicodo Português, feito por oposição ao Castelhano, foielaborado por Cunha Leão (1973:117), defensor deque «no quadro hispânico a oposição psicológica, emmuitos aspectos diametral, de portugueses ecastelhanos, tem sido a prima razão e a salvaguardainstintiva da independência nacional».

Este historiador encontrou onze característicasque opunham os comportamentos portugueses ecastelhanos e que tornavam difícil a sujeiçãoportuguesa a Espanha, uma vez que evidenciavamformas diferentes de religiosidade, sensibilidade ànatureza, resistência à adversidade, solidariedade,interesses e tendências,

Das características apontadas pelo autor, e queno seu todo representam duas mundividênciasincompatíveis, parece pertinente realçar algumasdelas como elemento justificativo da independênciade Portugal.

No que diz respeito à resistência à adversidade,enquanto o Castelhano segue a regra de Séneca epreserva um reduto interior em que não entra aderrota, um inexpugnável mundo introspectivo, oPortuguês acredita na esperança «como ingénitosentimento capaz de subsistir autónomo de apoiosintelectuais e de objectivação», o que justifica acrença de providencialismo do nosso povo, uma fortecrença nas soluções milagrosas –Batalha de Ourique,Sebastianismo... Este modo de resistir e reagir àadversidade demonstra os dois tipos de religiosidade:imediata e impermeável à dúvida, no caso espanhol,e mediata e marcada pela ânsia de esclarecimento, nocaso português, o que lhe dá «predisposição a admitirmilagres e sinais complementares de Revelação».

Um facto parece ser comum a ambos os povos: apropensão para viver em afirmação. Mas, tambémneste ponto, as diferenças surgem, pois o Castelhanovaloriza o factor pessoal, a luta, o campo de batalha,enquanto o Português procura a luta mais táctica, depreferência envolvente e não em campo de batalharaso. Isto não significa fuga ao combate, pois «nosmomentos supremos, quando a premeditação se

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esgota e a necessidade o impõe, a emoção represadajorra com violência inaudita, ao serviço de umadeterminação amadurecida»12. Ora, todo o processode conquista da independência parece encaixar nacitação anterior.

No que diz respeito à solidariedade, a castelhanaé feita através do orgulho e hermetismo nacional e«perante os outros a expressão de todos, a expressãode Espanha e das hierarquias tem de ser grandiosa»,enquanto a portuguesa se consubstancia pelacomunhão dos afectos, transmissão do sangue ecoesão pela saudade. Esta diferença parece explicar,não só a atitude de ambos os povos durante a fase daexpansão, mas também que «o humano, demasiada-mente humano, a quase dissolução, é paradoxalmentesusceptível de fortalecer, de perpetuar o patriotismoe a existência livre de um povo». Talvez aqui seencontre a razão de Portugal, ao contrário de Navarra,ter sabido conservar a independência, apenas perdidadurante sessenta anos, e logo recuperada quando oSebastianismo se materializou em acção.

De facto, como Gilberto Freyre constatou, até nacomida a diferença entre Portugal e Espanha se fazsentir de maneira inequívoca. O prato típico espanhol,o puchero tem uma grande variedade, mas não revelaharmonia de composição e pode ser decomposto emvários pratos, cada qual mais atraente. Por outro lado,cada prato típico português representa uma harmoniade valores que perdem a beleza se forem separados.Ora, este modo de organização, esta procura deharmonia, talvez não possa coexistir com uma situaçãode dependência, limitativa da criatividade e dainiciativa de um povo que soube combinar ao longoda sua história a alternância da aventura com a rotina.Esta propriedade foi verificada por Fernando Pessoa,que realçou o menor ódio que o povo portuguêsdedicava às outras raças, e por Gilberto Freire(1952:140), que a salientou em Aventura e Rotina«surpreendo neles portugueses que amam a sua velhaaldeia mas têm o sentido, o pensamento, o coraçãodividido entre a aldeia transmontana e o orienteportuguês. Entre a rotina e a aventura».

Não parece abusivo concluir que, como AntónioQuadros (1988:57) afirmou, «o arquétipo do homemportuguês é o que emerge e se revela em determi-nados períodos históricos favoráveis, mas é tambémo que se oculta, ou é ocultado, o que se reduz a umavida estagnada e recalcada, nos períodos em que sedesfaz a sua païdeia». Assim, o elemento psicológicopode ter acção positiva ou negativa, de acordo com acircunstância.

Na correspondência que manteve com Pascoaes,Unamuno (1986:70) interessou-se pelo «fenómeno dela frecuencia con que se dan suicidios en Portugal,terra trágica». Para ele a brandura e a meiguice dopovo português estavam apenas à superfície eescondiam uma violência plebeia que chegava aassustar.

A constatação de que, em apenas dois anos, de1889 a 1891, Soares dos Reis, Camilo Castelo Brancoe Antero de Quental se tinham suicidado, levouUnamuno a definir os Portugueses como um povo desuicidas e a ver nesta supremacia do complexo deTânato a futura e próxima perda da independênciade Portugal «Portugal é um fruto maduro prestes acair por si próprio e a ser colhido pela Espanha, emcujo seio seria enfim feliz, pois vive hoje no derrotismoe não encontra já sentido para uma vida indepen-dente». Esta previsão, que aliás foi desmentida pelaHistória, assenta na mesma base, o elementopsicológico, que os pensadores anteriormente citadosusaram para justificar a independência de Portugal.

Finalmente, parece necessário voltar a referirFernando Pessoa, que na Mensagem revelou o homemportuguês como o paradigma do homem universal,aquele que luta pela redenção do ser, «numa epopeiamessiânica e por assim dizer ontológica». Pessoa viuo Português como um cosmopolita, que descobriu aideia de descoberta e que, com a sua imaginação eos dois mitos fundamentais, o mito do Quinto Impérioe o mito do Encoberto, «alimentou com o primeiro aenergia espiritual de toda a história portuguesa desentido universalista e com o segundo a esperança

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na regeneração da grandeza perdida»13, de modo acumprir Portugal.

Também Eduardo Lourenço (1988:18-19) viu«esse sentimento que o português teve sempre de sever garantido no seu ser nacional mais do que porsimples habilidade e astúcia humana, por um poderoutro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus».A simples constatação da existência dos mitoscolectivos, anteriormente referidos e a que podemser adicionados outros, como o milagre de Ourique,parece reforçar a importância do elemento mítico--psicológico em toda a História de Portugal e,consequentemente, na sua independência.

Há, no entanto, um aspecto que poderia pôr emcausa a validade desta tese: a constatação de que agrande diferença psicológica se verifica entre oCastelhano e o Português, mas que a personalidadeportuguesa era, no fundo, comum à Galiza , humanae culturalmente. Ora, como justificar que a Galizanão tenha também acedido à independência?

A resposta talvez possa ser encontrada emMattoso (1993:58), que defende que, quando AfonsoVII interveio em 1127 na Galiza e no CondadoPortucalense, pretendia, como aliás conseguiu, impora sua autoridade em ambos, pois o caso portuguêsnão se distinguia do da Galiza. No entanto, «com abatalha de S. Mamede, a situação mudou porcompleto. De resto, verificou-se também por essaaltura o progressivo desentendimento entre Gelmireze o rei e a própria decadência do seu prestígio políticoe religioso». Esta situação explica a passividadegalega, tanto de Gelmirez como de Fernão Peres deTrava – consorte da viúva D. Teresa, de quem tinhauma filha –, pois, após a morte de D. Teresa, nãotentaram recuperar a influência perdida em Portugal.Como a Galiza estava mais preocupada com adefinição das suas relações com Castela, não pôsem causa a legitimidade de sucessão do infante AfonsoHenriques, único descendente do sexo masculino. Porisso «o destino político de Portugal até aí intimamenteunido ao da Galiza, passava agora a distinguir-senitidamente do dela».

Por tudo o que anteriormente foi exposto, nãoparece abusivo concluir que é no elemento psicológicoque deve ser encontrada a justificação para aindependência de Portugal, e claro, para toda aHistória de Portugal: reconquista, expansão marítima,restauração, se bem que nesta não seja de excluir aimportância da aliança com a Inglaterra, potênciapouco interessada, sobretudo por força de exemplosque a História se encarregou de registar, numaPenínsula Ibérica unida sob o jugo ou comando deCastela14.

As Manifestações Contemporâneas doElemento Psicológico

O povo português tem um sentimento desegurança ontológica nacional que, apesar de fasesmais pessimistas, não esmorece sistematicamente nosmomentos difíceis, o que impede a crise de identidade,pois, segundo Eduardo Lourenço (1992:11), «tivemossempre uma vértebra supranumerária, vivemossempre acima das nossas posses, mas sem problemasde identidade nacional». Para uma melhorcompreensão dessa segurança ontológica nomomento presente, basta analisar duas das maiorestransformações que ocorreram na históriacontemporânea de Portugal: a queda do impériocolonial e a integração na Comunidade Europeia.

Quando, após o 25 de Abril de 1974, o império sedesmoronou, sem ter havido uma verdadeiradescolonização, a forma precipitada e anárquicacomo se processou a incompleta transmissão depoder e a necessidade de receber mais de meiomilhão de pretensos retornados poderiam criar condiçõesde depressão e crise de identidade, tendo em conta acostela supranumerária, a perda de uma possível fontede riqueza e de prestígio e o assumir de um encargo quenão tinha sido atempadamente previsto.

De facto, este processo que implicou umrepatriamento apressado dos portugueses residentesnas antigas colónias, mesmo daqueles que tinhamnascido no Ultramar e aí queriam continuar, pois

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consideravam que era a essa terra que efectivamentepertenciam, até porque muitos deles nunca tinhamestado na Metrópole, poderia ter custos identitáriosmuito elevados.

De facto, a fuga para salvaguardar a vida implicou,em muitos casos, o abandono de um magro pecúlioresultante de uma vida de trabalho.

Por outro lado, a inserção desse contingente deretornados no tecido social e produtivo do País,poderia pôr em causa não só a democracia, queestava longe de consolidada, mas provocar crises deidentidade.

No entanto, este processo doloroso e, em certamedida, absurdo, mostrou que «só em termos deimaginário, e de imaginário fabricado por umaideologia arcaizante e reaccionária, a identidadenacional estava vinculada à existência de territóriosultramarinos» (Lourenço, 1988:13).

De facto, como Eduardo Lourenço constatou,desde os meados do século XIX que pensadoresnacionais consideravam que a perda ou a venda dascolónias não poria em causa a identidade nacional,prova inequívoca de que já não faziam parte daessência portuguesa. Por isso, o luto foi vivido comserenidade, devido à constatação « dos limites óbviosdo nosso poder enquanto nação colonizadora, mastambém a prodigiosa irrealidade da imagem e dosmitos que nos permitiram usufruir candidamente – nummundo em plena metamorfose – da ideia de queéramos senhores de territórios desmedidos». Por issomesmo, «o luto foi assumido com uma mistura deinconsciência e de realismo». Quando o Brasil setornou independente em 1822, Pedro Calmon e outroshistoriadores mostraram que não houve uma reacçãoviolenta por parte de Portugal e, prova disso, foiquando, «em 1922, um dos nossos presidentes pôdedizer aos Brasileiros que nós lhes estávamos gratospela sua independência».

Também, alguns anos após a independência dascolónias, e talvez motivados pelas situaçõesdesastrosas em que algumas se encontram, osPortugueses pensam agora mais nas antigas colónias

do que durante a fase do império colonial. Estasituação parece ser um reflexo do paradoxo pessoano,que atribuía aos Portugueses a sublime vocação denão-identidade, ou seja, «aptos a ser tudo e todos,não seríamos ninguém»15, ou a hiperidentidade devidaà ductilidade e à capacidade de adaptação de umpovo europeu que soube, mesmo com erros, praticarum ecumenismo, baseado na bondade e nahumanidade e que se sentiu sempre em casa se «novasto mundo pôde cultivar a sua horta e o seu jardim»,ou teve uma quinta, ainda que só em pensamento,pois, como Freyre (1952:32) afirmou, «o gosto pelarotina da vida agrária está sempre no portuguêsautêntico», mesmo nos momentos de aventura longede Portugal.

Talvez que por isso os Portugueses tenhamassistido à queda do Império com tanta serenidade eaté com algum alívio. O perfil psicológico anterior-mente traçado permite dizer que o povo portuguêstem sonhos tão altos que «mesmo a parte de Sanchoque nos enraíza na realidade está sempre pronta atomar os moinhos por gigantes»(Lourenço: 1988: 23).

No entanto, o fim da aventura quixotesca doImpério, longe de provocar uma depressão colectiva,contribuiu para a queda da venda e permitiu vislumbraruma nova imagem de povo, mais serena, maisharmoniosa, mas sempre digna de um país em que«o surgimento como Estado foi traumático e daí osmitos historiográficos ligados ao nascimento dePortugal terem um perfil tão freudiano, com sacrilégiosmaternos e palavras quebradas» (Lourenço:1992:18).

No que diz respeito à integração na ComunidadeEuropeia, integração que outros povos recusaram emreferendo, talvez receosos de perder parte da suaidentidade, também não contribuiu para a desagre-gação do sentimento nacional.

Os Portugueses aceitaram o desafio europeu semcomplexos e sem valorizar a posição de uma minoria,sobretudo ligada aos partidos de esquerda, que vianeste desafio europeu uma nova perda da indepen-dência de Portugal. Afinal a Península Ibérica nãoera uma jangada de pedra a afastar-se do resto da

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Europa, mas dois países que, esquecidos das lutasantigas, procuravam a entrada no espaço europeu.

Para os Portugueses não se tratava de um desafionem de uma ameaça, pois «somos superlativamenteeuropeus porque já o éramos quando a Europa sedefinia na História do mundo como continentemedianeiro» (Lourenço, 1988:23).

O povo português, tal como na expansão, nãoteve medo de ser digerido pela Europa e de perder aidentidade. O povo português, cosmopolita paraPessoa e «que não gosta só de certas raças, gostaquase de todas», como afirmou Jorge Dias, não tevereceio de, ao abraçar a aventura europeia, contactarcom outros povos, outras culturas e com níveissuperiores de desenvolvimento económico.

Para Eduardo Lourenço (1988:35), «Portugal éuma componente económica, política e culturalmentemodesta para poder pretender inflectir ou impregnaro projecto da construção europeia de maneiradeterminante».

No entanto, esta situação não implicou quePortugal entrasse na Europa com um sentimento deinferioridade, ou de subserviência, como um lacaioem casa do senhor. Limitado territorialmente àsfronteiras do início da segunda dinastia, Portugal viuna Europa que durante séculos nos menosprezou oudeslumbrou, de quem sempre fomos periferia e nãocentro, um refúgio providencial e uma nova aventura,a que se seguirá talvez outro período de rotina.

A identidade continuará garantida, pois «há noPortuguês uma enorme capacidade de adaptação atodas as coisas, ideias e seres, sem que isso impliqueperda de carácter» (Jorge Dias, 1988:25).

Por isso mesmo, parece poder concluir-se que aentrada na Comunidade Económica Europeia e, maistarde, na União Europeia, o que implicou um maiorgrau de integração, com a consequente soberania deserviço teorizada por Adriano Moreira, não constituiupara o povo português um risco de perda deidentidade.

Dito de outro modo ou noutra perspectiva, talvezseja para a Europa que nós poderemos constituir não

um problema mas um desafio, se, aceitando participarna construção ou reconstrução europeia, nãofecharmos a nossa janela atlântica e lusófona deliberdade.

É que, pela primeira vez na nossa História, mesmosem poderio económico ou militar, podemos participarna tomada das decisões que nos afectam.

Nótula Final

Do estudo efectuado não parece abusivo concluirque o elemento psicológico foi, se não determinante,pelo menos muito importante na formação de Portugalcomo reino independente. O carácter portuguêsparece poder ser apontado como o principal vectorindependentista e grande responsável pela Históriade Portugal, nos seus momentos de apogeu e aventurae nos períodos de rotina e de aparente pessimismo.De facto, os outros factores, isolados ou em conjunto,não parecem suficientes para constituírem umaexplicação cabal da existência independente dePortugal e necessitam do elemento psicológico parauma explicação mais completa e com pretensão aser aceite por uma parte considerável dos estudiososdo enigma português.

Quanto à formação desse carácter, ou melhor, dopovo português, a multiplicidade de teses não parecedeixar outra hipótese que não a de aceitar que estetenha resultado de uma mistura de povos, alongadano tempo e extensa no número de elementosenvolvidos. Talvez tenha sido esse contactoprolongado de culturas, essa fusão de povos que possaexplicar a complexidade do Português – o único entedo mundo que atribuiu significado à saudade e soubelevar esse sentir ao mundo que ajudou a criar.

Não será por acaso que a canção-bandeira deCabo Verde se intitula Sodade.

Espera-se, ou pelo menos deseja-se, que a mesmase refira não ao passado mas ao futuro.

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Notas1 Jacques Georgel, 1985, O Salazarismo, Lisboa, Dom Quixote,

p. 67.2 O ensaio de Agostinho da Silva “Identificação de um

país…chamado Portugal”, foi publicado pelas Edições Lusófonase o título deste artigo representa uma singela homenagem aAgostinho da Silva, um pensador e construtor da lusofonia.

3 Cf. Francisco da Cunha Leão, 1973, O Enigma Português,2ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, p. 97.

4 Francisco da Cunha Leão, obra citada, p. 1005 Cf. Alexandre Herculano, obra citada, p. 82.6 Cf. Francisco da Cunha Leão, obra citada, p. 200.7 Cf. Francisco da Cunha Leão, obra citada, p. 86.8 Cf. Francisco da Cunha Leão, obra citada, p. 101.9 Cf. Oliveira Martins, obra citada, p. 68.10 Cf. Oliveira Martins, obra citada, p. 70.11 Cf. Francisco da Cunha Leão, obra citada, pp. 112-113.12 Todas estas referências pertencem à obra citada de Cunha Leão,

pp. 178,146,162, 174 e 176.13 Todas as citações são da obra de António Quadros, pp. 62,65 e

67.14 Esta aliança só foi posta em causa quando a Inglaterra sentiu que

os seus interesses podiam estar a ser questionados, comoaconteceu aquando do Ultimatum.

15 Todas as referências não identificadas são da obra de EduardoLourenço, pp. 13,22 e 14.

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