Carandiru – um depoimento póstumo (2ª edição)

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Livro mediúnico de Renato Castelani. Prefácio intitulado "A incrível história da prisão do editor de 'Carandiru – um depoimento póstumo'".

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CARANDIRUUm depoimento póstumo

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Os direitos autorais desta obra foram doados para instituições sociais sem fins lucrativos, não recebendo o autor qualquer

remuneração proveniente da sua venda.

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RENATO CASTELANI

CARANDIRUUm depoimento póstumo

Romance mediúnico

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A incrível história da prisão do editor de Carandiru – um depoimento póstumo

O livro, psicografado por Renato Castelani, conta a história de Zeca, morto no massacre dos 111 presos. O editor da obra não tinha meios de checar a veracidade dos minuciosos dados do relato. Até que foi preso injustamente...

Por Paulo Henrique de Figueiredo1

Todas as cadeiras à volta da longa mesa estavam tomadas. A sessão estava cheia. Na atividade mediúnica, os espíritos recém-desencarnados descobriam sua nova situação num diálogo esclarecedor, por meio dos médiuns. Saindo do habitu-al, um espírito levantou-se, tímido, e requisitou licença para fa-zer um pedido. Um ar melancólico transparecia de sua figura.

1 Paulo Henrique de Figueiredo pesquisa o espiritismo e o magnetismo animal há 25 anos, é coordenador editorial da revista Universo Espírita e autor do livro Mesmer, a ciência negada e os textos escondidos.

Apêndice

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Renato Castelani

Renato Castelani ficou surpreso quando viu que o recado era para ele. O espírito, Zeca, desejava contar sua história para ser divulgada em um livro. “Que loucura!”, pensou Renato. Jamais psicografara, apesar de há muitos anos servir como médium psicofônico naquele mesmo trabalho.

Zeca morreu entre os 111 presos no “massacre do Carandiru”.2

O espírito confessa que fora um traficante. Começou crian-ça. Acreditou que poderia superar a pobreza da família pela opulência efêmera do comércio das drogas. Traído, acabou na prisão, dominado por um sentimento de vingança. Numa reviravolta de seus sentimentos, porém, o encontro com uma moça simples, filha de outro prisioneiro, tomou conta de sua atenção. Sonhou com a idéia de formar uma família. Deter-minado, fez de tudo para diminuir seu tempo recluso, pelo trabalho e bom comportamento.

Até que um dia houve um motim. O barulho de bombas e tiros espalhava terror. Zeca estava assistindo ao jogo de fu-

2 Em 2 de outubro de 1992 uma briga na Casa de Detenção, no comple-xo do Carandiru, zona norte da cidade de São Paulo, acabou se trans-formando em um dos episódios mais trágicos da história penitenciária mundial. Tudo começou com uma briga de presos no Pavilhão 9 e não terminou com a intervenção da Polícia Militar, mas com a morte trágica de 111 presos durante cerca de sete horas de invasão. Ex-detentos in-sistem que foram mais de 200 os mortos. O episódio, conhecido como “massacre do Carandiru”, teve repercussão internacional e virou tema de filmes e livros. A chacina levou o governo do estado a decidir pelo fim do gigantesco complexo do Carandiru, cujas dependências foram im-plodidas em 2002. Hoje o espaço funciona como parque público, com centro cultural, lazer e de formação profissional. O Carandiru remete a um período de uso da violência para conter o crime e, passados 16 anos, a tragédia ainda é lembrada.

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tebol. A polícia chegou, empurrando os presos em duas filas. Espremido entre seres apavorados, acabou num pavilhão des-truído. Cenas terríveis, tiros zunindo, desespero na pavorosa matança. E o sonho acabou, com Zeca morto.

Renato relutou para iniciar o trabalho. Não poderia ne-gar a ajuda ao Zeca, já um amigo do outro mundo. Mu-lher e filhos compreenderam e ajudaram. Os dois combi-naram um ritmo de trabalho, determinados dias e horários, e a obra surgiu. Um forte relato da vida no crime, prisão e morte, a surpreendente chegada num hospital da espiritu-alidade, o repensar sobre a vida, remorso, o reaprendizado das virtudes, uma trajetória de reconstrução e, finalmente, a oportunidade de contar sua história.

Mergulhado em dúvidasDepois de meses de sacrifício, Renato estava mergulha-

do em dúvidas. Nada do detalhado relato podia ser confir-mado. Foi quando o médium buscou um conselho do ex-periente Herminio Miranda, autor de clássicos da literatu-ra espírita. As perguntas borbulhavam. Deveria publicar? Como confirmar a veracidade? Não seria tudo uma fan-tasia ou loucura? Por que isso tudo foi acontecer comigo? Mas a resposta do sábio escriba foi simples e conclusiva: “Não temos a mínima idéia dos desígnios de Deus”.

O editor executivo Cristian Fernandes, em meio aos livros e textos empilhados cuidadosamente em sua mesa, ficou satisfeito com a edição e preparo do livro Carandi-ru – um depoimento póstumo. A escolha da capa agradou, com a sombra de um prisioneiro cabisbaixo, revelando ao

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fundo a luz entre as frestas da grade. “Imagem impactante e representativa do romance”, foi o comentário geral na Editora Lachâtre.

No preparo da obra, Cristian impressionou-se com a ri-queza de detalhes da vida na prisão, dados sobre pavilhões e descrição dos personagens. Mas a única testemunha era o próprio espírito, Zeca, e sua história. O Carandiru estava de-molido e não seria possível atestar os dados. O jeito foi supri-mir algumas informações específicas sobre os pavilhões. Por outro lado, mesmo como obra de ficção, o romance é coeren-te com a doutrina espírita e traz uma mensagem consoladora para seus leitores. Por tudo isso, o livro chegou às livrarias.

Como num filme policialSão Paulo, quinta-feira, dia 7 de fevereiro de 2008. Cris-

tian, fugindo da rotina, teve que sair mais cedo do trabalho. Contratempo comum nas cidades grandes, foi chamado a prestar esclarecimentos sobre um acidente de trânsito. Seu carro estava realmente amassado, coisa antiga. Deveria ser alguma confusão, que ele preferiu resolver para não ter dor de cabeça futura.

Chegando à delegacia, o mundo caiu sobre sua cabeça. Sem compreender os fatos inusitados, estava enfileirado com desconhecidos diante de um vidro espelhado. Como num filme policial, viveu a cena de reconhecimento e o ines-perado aconteceu: foi identificado por uma jovem vítima de assalto a mão armada e recebeu imediata voz de prisão!

A moça estava abalada, duas semanas após levarem seu carro. Sua irmã gêmea, dias depois, também reconheceu

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Cristian como o cúmplice que ficara no carro durante o as-salto às irmãs, na frente de casa. O suspeito estava longe, na esquina, em meio à escuridão da noite, mas o impulso de solucionar a agressão sofrida cegou o bom senso, culminan-do na acusação falsa por parte das vítimas. Cristian, no mo-mento do assalto, estava indo buscar seu filho do outro lado da cidade e, durante o depoimento, não se lembrou deste fato que, futuramente, diversas testemunhas iriam confir-mar. O tenso momento na delegacia terminou com a prisão preventiva do editor. Transferido para outro departamento de polícia, encontrou assassinos, traficantes, estelionatários e assaltantes. Cristian chegou lá com todo o receio de quem imagina, pelos filmes, a situação terrível de um inocente na prisão. Mas o medo durou pouco. Descobriu logo que o convívio entre prisioneiros segue regras rígidas de condu-ta e relacionamento. Ele era um “157” (roubo), dividindo a cela com vários “121” (assassinato) e “171” (estelionato), além de diversos “155” (furto), crime mais comum entre os jovens. É assim que os presos se identificam, pelos números dos artigos do Código Penal. Durante a noite, todos ladea-dos como sardinhas em lata, o editor dormiu como pôde no espaço diminuto que lhe coube, sobre uma surrada e velha manta de algodão.

Trabalho na prisãoCristian logo caiu na faxina. Essa é a tarefa dos últimos

quatro presos que chegam à cela. Lavar a louça, a cela e a parte do pátio em frente. Outros presos transformavam os bifes das marmitas em pratos mais elaborados, como estro-

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gonofe, cozido em banho-maria usando uma resistência de chuveiro. Os próximos prisioneiros assumiriam as tarefas ‘caseiras’, revezando, nos quatro meses em que Cristian fi-cou preso injustamente. Um cotidiano entediante. Comer, dormir e vagar no pátio.

O caso de Cristian comoveu amigos e o movimento espíri-ta. Enquanto dezenas de pessoas se mobilizavam, advogados mergulhavam no esforço para superar os enganos da lei. Toda a sua família sofria sem saber como agir. Cristian explicou ao seu filho de quatro anos todo o drama, e sempre aguarda-va, ansioso, seus contatos. Enquanto isso, ocupava seu tempo editando originais de livros, trabalhando atrás das grades.

Praticamente investiu todo seu tempo, que, aliás, tinha de sobra, ajeitando os seus papéis e corrigindo textos. Sua atividade literária foi recebida com respeito e interesse pelos prisioneiros. O espiritismo atiçou a curiosidade e, devagar, eles se aproximavam para conversar e fazer perguntas sobre a vida após a morte.

Aos poucos, ouvindo confissões e analisando as histórias de vida, o editor começou a indicar obras espíritas que tra-tavam do drama vivido pelos presos. Pedia para editoras e familiares, recebia exemplares das obras recomendadas e as emprestava. Essa atividade informal acabou por criar uma biblioteca circulante de obras espíritas. Circulavam O evan-gelho segundo o espiritismo, O livro dos espíritos, Nossos filhos são espíritos e tantas outras.

Casos e acasosUm detento perdeu seu filho recém-nascido; não acom-

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panhara o nascimento, mas o conhecera nas visitas de sua esposa. Depois de muito conversar sobre relações familia-res e a sobrevivência após a morte, Cristian ofereceu a ele o livro Na maior das perdas, de Regis de Morais, que, entre outros confortos, esclarece: “a vida é um intricado tecido de ganhos e perdas, o que faz dela um alegre sobressalto e, ao mesmo tempo, às vezes uma esperança com laivos de melancolia. Os temores, que sempre existem dentro de nós, têm que constantemente receber nossa assistência de fé, bem como – acima de tudo – a assistência do Divi-no Mestre através dos mensageiros do Plano Maior”. Em meio às confissões sinceras nas conversas pelos cantos do pátio, Cristian descobriu, em assassinos e ladrões, almas temerosas, marcadas pela dor, titubeantes, mas com sen-timentos profundos e com uma esperança de mudança, como todo ser humano.

O rapaz que perdera o filho, ao terminar a leitura do li-vro, perguntou de pronto ao Cristian:

– Bandido também chora?

– Não sei. Não sou bandido! – respondeu espirituosa-mente o editor.

– Pois eu chorei, e muito! Só de pensar em reencontrar meu filho nesse lugar espiritual aí, ganhei um motivo pra ficar vivo. Sinceridade!

O livro mais procurado era, obviamente, Carandiru – um depoimento póstumo. O dia-a-dia descrito por Zeca empolgava os presos pela identificação. A segunda parte do livro, contando a vida na espiritualidade, era uma no-vidade que afastava a condenação eterna no inferno, pen-

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samento mais comum. “A lei de Deus dá sempre uma nova chance”, diz Zeca. Há esperança, percebiam os condena-dos, de criar uma nova vida, trilhada por um novo cami-nho pela reencarnação.

O jovem criminosoMárcio, apesar de moço novo, tinha uma ficha reche-

ada de graves crimes. Aproximou-se de Cristian por uma simpatia natural. Conversaram muito nas horas longas e o diálogo saltava dos crimes passados aos conceitos da doutrina espírita, numa mistura que, convenhamos, só fazia sentido lá, num pátio de prisão, entre um bandido e um espírita preso injustamente. Amigos, trocavam confi-dências. Márcio escondia um rapaz alegre, sensível e inte-ligente por trás da máscara do terrível, cruel, frio e melan-cólico criminoso. Fora iniciado pela família da namorada aos 17 anos. Convidado para uma festança num sítio com estacionamento apinhado de carros importados, comida farta e alegria, não percebeu naquele dia que o ambiente fora todo planejado para convidá-lo ao crime. Participou de um assalto e todo o valor foi dado a ele pela quadrilha. O teatro estava armado para envolvê-lo e, finalmente, a tentação venceu o medo. Numa escalada abrupta e aterra-dora, sem dar-se conta do engano, já se tornara um trei-nado assassino.

Márcio devorou Carandiru. A identificação com a vida de Zeca foi profunda e marcante, as mesmas mazelas do cárcere, os mesmos dramas e sentimentos íntimos. Mas a vida após a morte marcou sua alma por uma novidade: a possibilidade de

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transformação. Márcio ficou fascinado por ter uma “chance”.

– Pensava, cara, que tudo ia acabar, que meu destino era viver pra sempre no inferno, atacado por diabinhos. Te confesso, em minha vida, as angústias nunca permitiram que eu tivesse remorso pelo que fazia. Certo da condenação pela morte, depois do primeiro crime, não tinha porquê parar mais. Mas, sabe, Cris, a vida do Zeca abriu uma chan-ce de uma nova vida, que até agora nunca tinha passado pela minha cabeça.

– Eu mesmo – disse Cristian – passei por muita dificul-dade antes de conhecer o espiritismo. Refletindo, estudan-do, encontrei respostas que mudaram minha vida. Tudo depende da gente. Não existe diabo. Nem mesmo Deus castiga. O que importa é a nossa consciência. Somos nós mesmos que escolhemos nossos passos e o destino de todo mundo é ser bom! Nunca ficamos sem uma nova chance. Basta querer mudar.

– Foi exatamente isso que eu pensei. Dá pra fazer diferen-te, cara. É uma barra, mas dá. E não preciso esperar morrer para mudar! – concluiu emocionado o jovem criminoso.

Márcio limpou uma lágrima em seu rosto. É verdade! Bandido chora.

Uma grande surpresaDias depois, uma surpresa. Márcio chega empolgado à

cela de Cristian, balançando freneticamente o livro em suas mãos. Em seu beliche de cimento, o editor baixou lenta-mente o calhamaço do original que corrigia, para lhe dar atenção. Márcio fizera uma descoberta! Sabia quem era um

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personagem do livro, chamado Camarão. Estivera com ele numa penitenciária. Os fatos batiam com os detalhes do li-vro, nas palavras de Zeca, em Carandiru: “Conheci um rapaz mais novo do que eu, o Camarão, apelido que ganhou por causa de seu cabelo cor de ferrugem e rosto todo pintado da mesma cor. Tinha feito parte de uma gangue perigosa e cruel que não deixara vítima nenhuma viva. Alguns ainda estavam em liberdade, depois que a polícia desbaratou o bando. Só corriam atrás de coisa rendosa. Atacar pobres e favelados era coisa para bandido pé-de-chinelo. Estes, quan-do encontravam pelo caminho, eram liquidados sumaria-mente. Por muito tempo a polícia confundiu seu bando com um grupo de justiceiros. Não faltaram apartamentos de luxo ou casas suntuosas onde não tivessem passado. O rapaz foi entregue como ‘boi-de-piranha’ nas mãos da po-lícia, para que os chefes do bando escapassem de um cerco. Pagou por todos. Antes de se entregar, feriu dois soldados e matou um sargento. Levou mais de um mês para poder ser apresentado à justiça, tamanha foi a surra que levou dos co-legas do policial assassinado. ‘Preferia ter morrido’, dizia-me ele. Andava preocupado com a namorada, menor de idade, que deixara lá fora. Nem sabe se permitiriam sua visita um dia. Isso o atormentava mais que as péssimas condições de vida do pavilhão.”

Além de confirmar toda a história do Camarão, Márcio disse que ele ainda estava preso. E mais: o companheiro de Cristian seria transferido nos próximos dias para a velha penitenciária no interior de São Paulo, poderia reencontrar Camarão e confirmar tudo pessoalmente.

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A transferênciaUm tempo depois, Cristian viu Márcio pela última vez.

Abraçaram-se. Finalmente a transferência saíra. O camburão foi embora. A partir daí, iriam se comunicar apenas por cartas.

A primeira chegou em 14 de maio, e num trecho, contava: “Ufa, cheguei no lar, doce lar. Confesso que estou feliz. Tô sorrindo até pras muralhas. Aqui nada mudou, tá tudo igual. Os mesmos presos, os mesmos funcionários e eu novamente. Mostrei o livro pro Camarão, ele se emocionou ao ler a história e ficou feliz por ter sido lembrado.” Segundo Cristian, a vida na delegacia de polícia é monótona e asfixiante. Já na penitenciária é possível construir um cotidiano útil. Tem trabalho, é possível estudar, manter um convívio. Isso explica a alegria de Márcio. Mas a notícia esperada sobre Camarão viria depois, na carta de 29 de maio:

“Acabo de receber sua carta e isso me deixou muito contente, afinal fui lembrado! Estamos fazendo um comentário sobre o livro. Realmente lágrimas rolaram. Todos os que leram o livro se emocionaram. Estou freqüentando as reuniões espíritas, tá crescendo o grupo, no momento estamos em 15. As reuniões são todas as quintas, das 16h às 17h. As cartas são como visitas para mim e esse é o meu passatempo predileto.” Finalmente a veracidade de Carandiru estava confirmada. As identidades de Camarão, Zeca e tantos outros foram reveladas pelos depoimentos das testemunhas. Outra revelação de Márcio sobre Camarão: bandido velho também chora!

Em 3 de junho, mais novidades: “Estou me ocupando bastante, me matriculei no curso de inglês, creio que no mês de julho já começo. Tô com o maior sono; nessa madrugada

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teve tentativa de fuga na Penitenciária I, que fica aqui ao lado e foi o maior tiroteio a noite toda. Só helicópteros iluminando e sirenes, que deixou todos com um zumbido no ouvido. ‘É, bom dia Vietnã’... Se a Keila chegar aí até você, peça para ela me escrever. As cartas são como visitas para mim e ajudam a aliviar o sofrimento. Até o presente momento estou trabalhando na administração, mas fiz ficha pra trabalhar na Funap.3 Lá paga mais. Aqui graças a Deus a paz tem imperado. Cada um faz a sua e a meta é a liberdade.”

A merecida absolviçãoMeses depois da prisão, a inocência de Cristian, enfim,

foi sentenciada pela juíza, conforme publicado pelo Tribu-nal de Justiça de São Paulo: “Arquivo: 391. 17ª Vara Crimi-nal. Processo número 050.08.010621-8/00. Justiça Pública x cristian fernandes. Resumo da sentença: Diante do exposto, absolvo cristian fernandes da imputação que lhe é lançada nestes autos, com fundamento no artigo 386, inciso vii do Código de Processo Penal.”

3 A Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel, conhecida como Funap, foi criada há 32 anos com a finalidade de contribuir para a recuperação social de presos e egressos e para a melhoria de sua condição de vida, através da elevação do nível de sanidade física e moral, do adestramento profissional e do oferecimento de oportunidade de trabalho remune-rado. Vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, é mantida com recursos públicos e recursos financeiros advindos da venda de produtos e serviços produzidos pelos presos. Em todo o Estado, são 16 oficinas nas áreas de educação, formação profis-sional, geração de renda para a continuidade dos programas da Funap, cultura, esporte e apoio ao sustento e à liberdade. Na vida em liberdade, o ex-presidiário conta com o programa de apoio ao egresso. Conheça mais sobre a Funap no site www.funap.sp.gov.br

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Liberdade! Cristian saiu da prisão e só queria abraçar seu filho e sua família. Reviu os amigos. Voltou para o trabalho na editora. Contou sua peculiar história no programa de rádio Universo Espírita – pensar e viver com liberdade. Um ouvinte especial foi o atento Renato Castelani, que, emocionado, viu seus anseios e dúvidas respondidos. Fora tudo verdade. Zeca existiu realmente. Além de radiante ao ver sua obra dar os primeiros frutos de renovação, pois “sempre existe uma nova chance”, Zeca deve estar agradecido pela benção da mediuni-dade ter permitido cumprir sua tarefa consoladora.

Em primeiro de julho, Cristian recebeu mais uma carta de seu amigo Márcio, como se fossem páginas de um novo romance, num drama da vida que nunca tem fim: “To bem contente pela sua liberdade. Demorou, mas chegou, né? O Camarão hoje é pastor de igreja pentecostal, mas isso não impede de falar sobre o Zeca, que foi seu companheiro de cela por meses. Aqui o mundo espiritual é visível. Como de praxe, os vultos e barulhos são por toda a noite”.

As reuniões espíritas continuam semanalmente na peni-tenciária. Camarão ainda faz seus sermões em nome da paz. A biblioteca circulante espírita está funcionando na dele-gacia de polícia, além de Márcio ter levado a idéia para seu “doce lar”. Castelani, quem sabe, está à disposição para o pe-dido de um novo espírito. E Cristian, seu filho e sua família estão aproveitando plenamente a volta da liberdade!

Ficamos por aqui, nesta história rica de emoção e signifi-cados, com uma certeza: não há limites na vocação transfor-madora do espiritismo. Ele representa, realmente, a espada do Cristo na regeneração da humanidade.

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Por fim, não poderíamos deixar de lembrar da sabedoria simples de Herminio Miranda: “Não temos a mínima idéia dos desígnios de Deus”. O Cristian que o diga!

Matéria publicada originalmente na edição nº 59 da revista Universo Espírita (seção Especial, páginas 62 a 69), em novembro de 2008.

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