CARLA DE OLIVEIRA - repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/.../1/Oliveira_Carlade_M.pdf ·...
Transcript of CARLA DE OLIVEIRA - repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/.../1/Oliveira_Carlade_M.pdf ·...
i
CARLA DE OLIVEIRA
MULHERES CUIDADORAS, MULHERES PROFESSORAS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA CRECHE ÁREA DE SAÚDE DA
UNICAMP
CAMPINAS 2014
ii
iii
iv
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de CampinasBiblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
Oliveira, Carla de, 1982- OL4m OliMulheres cuidadoras, mulheres professoras : história, memória e formação
profissional na Creche Área de Saúde da Unicamp / Carla de Oliveira. –Campinas, SP : [s.n.], 2014.
OliOrientador: Maria do Carmo Martins. OliDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.
Oli1. Educação infantil. 2. Memória. 3. Formação profissional. I. Martins, Maria do
Carmo,1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Caregivers women's, teachers women's : history, memory andvocational training in Creche Área de Saúde da UnicampPalavras-chave em inglês:Early Childhood EducationMemoryVocational trainingÁrea de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e ArteTitulação: Mestra em EducaçãoBanca examinadora:Maria do Carmo Martins [Orientador]Adriana Missae Momma-BardelaRúbia Cristina Cruz MenegaçoData de defesa: 27-11-2014Programa de Pós-Graduação: Educação
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
iv
v
vi
vii
Resumo
A Educação Infantil vem consolidando-se como campo de pesquisa tanto no que se refere às práticas pedagógicas, quanto no processo de formação profissional para atuação nesta área, que, a partir de 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (9.394/96), passa a constituir a primeira etapa da Educação básica nacional. Sobre este segundo tópico (formação profissional) foi que a presente dissertação de mestrado pretendeu abordar e contribuir para o campo de pesquisa a partir da discussão da temática. O texto em questão fundamentou-se no trabalho com as histórias de vida, e valeu-se do conceito de memória como categoria de análise, relacionando assim, história e memória na construção de uma “pequena” história da Educação Infantil. Tomou para isso, como pano de fundo, uma creche fundada em 1990, dentro da Universidade Estadual de Campinas, cujas protagonistas do trabalho foram mulheres que ingressaram na instituição desde o início de seu funcionamento, e que continuam no mesmo local, exercendo hoje, a profissão regulamentada de professoras, com formação em nível superior, realidade muito diferente da que conheceram há 24 anos, quando eram ainda denominadas “recreacionistas”. A pesquisa, além de possibilitar um resgate histórico sobre a criação da instituição creche no país, apontou em grande medida, para a problematização no que tange à formação profissional. Afinal de contas, o curso de Pedagogia, hoje indicado como curso superior para atuar nesta etapa de ensino, prepara para atuação com crianças de 0 a 3 anos? Longe de buscar uma resposta única para a questão, as memórias aqui narradas apontaram para a formação em contexto como possibilidade de repensar antigas práticas e reinventar a atuação do profissional que lida com uma faixa etária repleta de especificidades.
Palavras-chave: Educação Infantil, memória, formação em contexto.
viii
ix
Abstract
Early Childhood Education has been consolidated as a field of research both
in regard to teaching practices, and in the process of vocational training for work in
this area, which, from 1996, with the promulgation of the Lei de Diretrizes e Bases
(9394 / 96), becomes the first stage of the national Basic Education. On this
second topic (vocational training) was that this dissertation master's degree
intended to contribute to the search field from the discussion of the theme. The text
in question was based on the work with the stories of life, and he took advantage of
the concept of memory as a category of analysis, thus linking history and memory
in the construction of a "small" history of early childhood education. For this, as a
backdrop, a creche founded in 1990, inside the Universidade Estadual of
Campinas, whose protagonists were working women who entered the institution
since the beginning of its operation, and keep on in the same place, acting today,
regulated profession of teachers, graduated in higher education, very different from
that experience they had 24 years ago, when they were still called "recreationists".
The research, in addition to enabling a historical review of daycare institution in the
country, noted largely for questioning in relation to vocational training. After all, the
pedagogy course, nowadays considered higher education to work in this stage of
education, prepares for action with children 0-3 years? Far from seeking a single
answer to the question, memories recounted here pointed to the vocational training
in context to rethink old practices and reinvent the acting of the professional who
handles with a so specific age group.
Keywords: Early Childhood Education, memory, vocational training.
x
xi
Sumário
Resumo...................................................................................................................vii
Abstract....................................................................................................................ix
Sumário....................................................................................................................xi
Agradecimentos......................................................................................................xv
Relação de Figuras................................................................................................xvii
Relação de Siglas...................................................................................................xix
Introdução...............................................................................................................1
A Creche Área de Saúde: o início da história e antecedentes teóricos....................3
Memória e história de vida........................................................................................8
A formação profissional e em contexto...................................................................12
Os documentos.......................................................................................................13
As professoras e suas memórias: o trabalho com as entrevistas...........................14
Objetos biográficos.................................................................................................18
Capítulo I: O surgimento da creche como instituição social: a Creche Área de Saúde e sua herança histórica............................................................................21
As creches no Brasil...............................................................................................21
A década de 1980: o Estado de São Paulo e a redemocratização da sociedade................................................................................................................26
O Cantinho da Física na UNICAMP........................................................................38
A Creche Área de Saúde........................................................................................42
Século XX e as trabalhadoras das creches............................................................45
Capitulo II: Mulheres cuidadoras e suas memórias. A creche na década de 1990........................................................................................................................51
Primeiros fios da memória......................................................................................51
xii
Treinamento X formação em contexto na creche: uma primeira experiência..............................................................................................................61
Início de funcionamento: a chegada das crianças..................................................63
Capítulo III: Mulheres professoras e suas memórias. A profissionalização.................................................................................................75
O retorno aos estudos no início dos anos 2000.....................................................75
As novas professoras da creche.............................................................................80
A formação em nível superior.................................................................................84
Final dos anos 2000: mudanças no trabalho e reconhecimento do nível superior...................................................................................................................93
A formação continuada e em contexto...................................................................98
Capítulo IV: Mulheres cuidadoras, mulheres professoras: a importância
da formação continuada e da valorização da experiência..............................103
As mulheres da/na história...................................................................................103
Experiência e pobreza..........................................................................................106
Tecendo fios entre experiência e formação..........................................................110
Bibliografia..........................................................................................................119
Artigos de Jornal...................................................................................................119
Fontes e Documentos...........................................................................................119
Fotografias............................................................................................................121
Livros e Artigos.....................................................................................................121
Anexos.................................................................................................................127
Anexo I: Roteiro de questões para as entrevistas................................................127
Anexo II: Transcrições das entrevistas.................................................................128
xiii
À minha tia Silvana, que infelizmente hoje está somente em minha memória, ou na história sobre ela, que é possível para mim, rememorar.
xiv
xv
Agradecimentos
O processo de formação que a pós-graduação me possibilitou não teria
ocorrido da mesma maneira se não pudesse contar com muitas pessoas que de
formas diferentes caminharam comigo. A todos e todas, meus sinceros
agradecimentos.
Primeiramente, à professora Carminha, por todas as orientações,
conversas, ensinamentos. Sobretudo por me ensinar que o caminho da pesquisa
pode ser leve e apaixonante. Por toda sua humildade, paciência e
comprometimento.
Aos meus queridos colegas do grupo: Priscila, Maurício, Giselle, Getúlio,
Rayane e Carla. Obrigada pelas trocas intelectuais e afetivas. Pessoas tão
diferentes de mim, mas que juntos, formamos um grupo de professores
pesquisadores, com ideias comuns de uma educação melhor em nossos
respectivos segmentos de trabalho.
Às professoras Bianca e Adriana, pela minuciosa leitura que fizeram em
meu texto de qualificação e apontaram caminhos para o desenvolvimento e
finalização da pesquisa.
À minha irmã Carolina, pelas leituras e pelas escutas; mais que isso, pelo
caminhar de toda a vida.
Ao Henrique, que mesmo durante as dificuldades da vida a dois, sempre
me incentivou a seguir em frente com os estudos.
Ao meu filho Vinícius, por me tirar da solidão da escrita e me levar para
brincar e comer pastel com água de coco.
À minha avó e meu avô, por cuidarem do meu filho durante minhas
ausências.
Ao meu cunhado Paulo, por todo “auxílio tecnológico”.
Aos meus pais, Silvia e Carlos, pela vida.
Às minhas amigas professoras Karina, Sandra e Marcela, muito mais que
colegas de trabalho, participaram cada qual a sua maneira, do processo de
elaboração desta dissertação.
xvi
À minha amiga professora Rosineide, pela ajuda na leitura, pelo
compartilhar das fontes, e por todos os anos de trabalho que temos juntas,
dividindo os mesmos desejos, angústias e alegrias na Educação Infantil.
Às professoras protagonistas deste trabalho, representadas aqui por seus
nomes fictícios: Ana, Antonia, Eliana, Flor e Maria Queiróz. Obrigada por
confiarem em mim e serem parceiras desta pesquisa. Vocês, sem dúvida, fizeram
e fazem a diferença na história da Educação Infantil.
Por fim, e talvez mais importante, agradeço a todas as crianças da Creche
Área de Saúde que passaram por minhas mãos e meus saberes de professora.
Vocês me mostraram e me mostram a cada dia o significado particular que o
trabalho público deve ter. A vida faz mais sentido quando estou com vocês.
xvii
Relação de Figuras
Figura 1: Ficha de controle diário das atividades dos bebês que frequentavam o CCI, a ser preenchida pela atendente responsável pela criança...........................34
Figura 2: Imagem destacada no jornal da UNICAMP datado de 20/01/1990 que informava à comunidade sobre a construção da nova creche...............................51
Figura 3: “Trepa-trepa”: brinquedo do parque do Maternal....................................64
Figura 4: Peniqueiro utilizado no processo de retirada de fraldas das crianças..................................................................................................................79
Figura 5: Brinquedo escorregador do parque do Maternal II..................................82
Figura 6: Armário de medicamentos da sala de enfermagem................................85
Figura 7: Mesa utilizada pelas crianças para atividades diversas: refeições, pinturas, colagens, etc............................................................................................91
Figura 8: Cadeirinha utilizada pelas crianças.........................................................92
Figura 9: Brinquedo gira-gira do parque do Maternal II........................................117
xviii
xix
Relação de Siglas
CAD............................................................................. Câmara de Administração
CAS...................................................................................Creche Área de Saúde
CCI.........................................................................Centro de Convivência Infantil
CECI......................................................................Centro de Convivência Infantil
CECOM........................................................... Centro de Saúde da Comunidade
CICF....................................................... Comunidade Infantil Cantinho da Física
CLT................................................................Consolidação das Leis do Trabalho
CONSU..............................................................................Conselho Universitário
DEdIC.......................................... Divisão de Educação Infantil e Complementar
DNCr..............................................................Departamento Nacional da Criança
ESTEC.......................................................................Escritório Técnico de Obras
FCM....................................................................Faculdade de Ciências Médicas
FUSSESP.....................Fundo Social da Solidariedade do Estado de São Paulo
HC..........................................................................................Hospital de Clínicas
INAM.............................................. Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição
IRCAMP....................................................Instituto de Reabilitação de Campinas
LBA.................................................................... Legião Brasileira de Assistência
LDB......................................................... Lei de Diretrizes e Bases da Educação
NUDECRI.......................................... Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade
PPP............................................................................Projeto Político Pedagógico
PRODECAD............................................Programa Integral de Desenvolvimento
xx
da Criança e do Adolescente
SIARQ........................................................... Sistema de Arquivos da UNICAMP
xxi
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi
sentados na terra escovando osso. No começo achei que
aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali
sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois
aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles
faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles
queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações
que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo
pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum
lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu
queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados
dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras
possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas
significâncias remontadas. Eu queria então escovar as
palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para
escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos.
Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha.
Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto,
trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que
eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a
eles, meio entressonhado, que eu estava escovando
palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu
joguei a escova fora.
Manoel de Barros1
1 BARROS, Manoel. Memórias Inventadas. São Paulo. Editora Planeta, 2010.
xxii
1
Introdução
Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é uma outra história. Inacabamento.2 (RICOEUR, 2007, p.172)
Este é um trabalho sobre memória. Não somente a memória das
professoras que iniciaram suas atividades como recreacionistas de uma creche
chamada Área de Saúde há vinte e quatro anos. As memórias destas mulheres
em certa medida encontram-se com as minhas, pois iniciei também um percurso
profissional que em determinado momento da história cruzou-se com o destas
professoras, tendo como cenário, a creche. Atuo nesta creche, como professora
de educação infantil desde o ano de 2004, quando fui convocada após a
aprovação no concurso público para tal função. Neste período, já havia concluído
o curso de magistério, cujo diploma foi exigido para o trabalho na instituição,
diferentemente da exigência requerida de minhas colegas professoras, cujas
memórias foram aqui narradas. Em 2004 ainda, cursava a graduação em
Psicologia, finalizada no ano de 2006. Atuei por um período como psicóloga clínica
infantil, pois o trabalho na creche de 30 horas semanais me permitia exercer outra
profissão.
No entanto, meu percurso de vida pessoal e profissional foi se direcionando
cada vez mais para o trabalho com os bebês e as crianças pequenas, e com o
tempo acabei optando pela atuação como professora, embora minha formação em
psicologia, e mais precisamente, os estudos em psicanálise iniciados na
graduação e que fazem parte de minhas leituras e reflexões até hoje exerçam
influência em meu trabalho e na maneira como concebo as relações e o
desenvolvimento das crianças. O viés psicanalítico sem dúvida permeou toda a
escrita deste texto, não com o intuito de psicanalisar as histórias, mas sim, na
ideia proposta por Lacan de conceber a psicanálise como uma ética, um
2 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
2
compromisso com o desejo que, embora inconsciente, é definidor de nossas
escolhas, de nossos atos3.
Mesmo já possuindo uma graduação, o trabalho na creche exigiu outra
formação acadêmica, no curso de Pedagogia, cuja conclusão se deu em 2011.
Antes ainda desta segunda graduação, participei, entre os anos de 2008 e 2009,
do curso de Especialização em Sexualidade Humana – Latu Sensu-, na Faculdade
de Educação da UNICAMP.
Meu percurso profissional foi relacionando-se à área da Educação, e o
interesse pela Educação Infantil ficando cada vez mais nítido. Trabalhos de
Conclusão de Cursos, artigos escritos, comunicações apresentadas em eventos.
Tudo sempre voltado para o trabalho com as crianças pequenas, e,
principalmente, para a divulgação de práticas desenvolvidas na Creche Área de
Saúde - CAS. A dissertação em questão apresentou a história desta instituição tão
repleta de significados para mim. O recorte da memória (minha própria e das
professoras entrevistadas) demarcou um olhar peculiar desta história já contada
em outros trabalhos, que foram aqui também abordados.
Este é também um trabalho sobre histórias de vida. Nesse sentido,
memória e histórias de vida entrecruzam-se intimamente. As professoras
entrevistadas foram convidadas a rememorar suas trajetórias desde quando
ingressaram na creche, em 1990, e, embora o foco das entrevistas fosse o
processo de formação profissional em serviço, a creche fez e ainda faz parte de
suas histórias em todas as instâncias, inclusive a pessoal.
Por fim, este é um trabalho sobre formação profissional e em serviço. As
professoras da creche ingressaram por concurso público, mas sem nenhuma
formação profissional requerida, sendo exigência para atuação, qualquer tipo de
experiência prévia com crianças, ainda que fosse com o próprio filho, conforme
narrado por elas. A partir de mudanças no cenário político e educacional nacional,
como a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, a
3 Psicanalista francês que propõe um retorno às leituras de Freud, fundador da Psicanálise e que, destaca, em suas obras, especialmente no “Livro 7: A ética da psicanálise”, a questão do desejo inconsciente que permeia todas as nossas ações e relações e, quão fundamental seria o sujeito responsabilizar-‐se deste fato, assumindo uma ética do desejo.
3
formação passou a fazer parte do contexto da creche, tendo início com o então
curso de magistério, em nível médio, e dando continuidade aos estudos com a
formação em nível superior em Pedagogia. Além disso, outras modalidades de
cursos fizeram parte da construção profissional das professoras.
Assim, memória, histórias de vida e formação profissional são categorias de
trabalho que questionam e refletem sobre uma história aparentemente linear, mas
que se apresentou como um processo social e político de lutas e conflitos, tanto
no que se refere à concepção de criança e infância, quanto na formação do
profissional que atua com a faixa etária de 0 a 3 anos. A formação de nível
superior em Pedagogia, embora não seja exigência requerida para atuação na
creche, é hoje o curso que legitima a profissão de professor de educação básica
no país. Contudo, tal formação é sinônimo de qualidade do trabalho na creche? O
que mudou, na prática, para as antigas recreacionistas que se formaram
professoras?
A questão da formação foi, ao longo do texto, delineando-se como principal
pergunta de pesquisa a ser problematizada. A história da creche e as memórias
das professoras abarcaram uma série de temáticas que aqui podem ser
encontradas, tal como o percurso histórico da educação infantil, um pouco sobre
suas práticas, a vida das mulheres trabalhadoras e sua condição feminina.
Contudo, a própria história e o desejo da pesquisadora acabaram por buscar uma
costura entre todo este contexto com os fios que envolvem a formação do
professor de educação infantil.
A discussão do trabalho, obviamente, não se concluiu com respostas
universais, tampouco verdades absolutas, - até pelo fato de que os pesquisadores
sobre a formação profissional do professor apontam para opiniões e concepções
divergentes sobre a questão - mas pretendeu suscitar uma discussão acerca do
campo de conhecimento e sugerir novos caminhos para o trabalho na educação
infantil. Como fios de um tecido que começam a se unir para formar uma colcha,
iniciei um percurso histórico que teve início há mais de vinte anos, e que ainda
hoje continua a ser costurado...
4
A Creche Área de Saúde: o início da história e antecedentes teóricos
Contar a história de uma creche chamada Creche Área de Saúde é
escrever uma narrativa no mínimo, peculiar. Por várias vezes, já pude compartilhar
experiências sobre esta creche em momentos diversos e para diferentes públicos
(em trabalhos apresentados em eventos sobre educação infantil, por exemplo). As
perguntas que chegam a respeito do nome da instituição são de todos os tipos:
“Essa creche fica dentro do hospital?”, “Cuida de crianças doentes?”, “É para
atender filhos de médicos?”.
De fato, o nome faz menção ao vínculo que a creche apresenta, desde sua
origem, a um segmento de atividade específica da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP -, e que, durante as décadas de 1980 e 1990 consolidou-
se no campus de Barão Geraldo, local de construção da CAS. Entre os anos de
1985 – quando foi inaugurado o primeiro leito do Hospital de Clínicas da
UNICAMP - HC – até o início dos anos 90, vários setores do hospital conhecidos
nos dias de hoje – Centro de Saúde da Comunidade da UNICAMP- CECOM -
Hemocentro, Centro Cirúrgico, enfermarias – já haviam sido instalados no campus
(LIMA, ROCHA, PINSETTA, 2002).
A transferência do Hospital de Clínicas da UNICAMP da região central do
município para Barão Geraldo impulsionou a criação de uma creche que
funcionasse de acordo com os “turnos” de trabalho das mulheres do HC com filhos
em período de amamentação. Dessa forma, a referência à área médica da
Universidade se fez presente não somente no nome da creche, mas também
instituiu um conjunto de práticas, como o funcionamento aos finais de semana e
feriados, por exemplo. Contudo, à medida que mudam as concepções sobre
criança e infância, e a creche passa a fazer parte da educação básica, de acordo
com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN Nº 9.394) o
vínculo com a saúde torna-se alvo de conflitos e questionamentos que, dentre
outras histórias, fazem parte das memórias aqui narradas4.
4 Capítulo I – Da Composição dos Níveis Escolares. Art. 21º. A educação escolar compõe-‐se de: I-‐ educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
5
Dentro da Universidade, a Creche Área de Saúde é o último local a ser
construído para atender filhos e filhas de funcionárias, entrando em funcionamento
em 19905. Antes dela, outras três unidades foram construídas durante a década
de 1980, respectivamente, o Centro de Convivência Infantil – CECI - prédios do
berçário e do maternal, e o Programa de Desenvolvimento da Criança e do
Adolescente – PRODECAD. Suas histórias se aproximam em determinados
pontos, distanciam-se em outros, e, alguns autores já abordaram recortes da
história deste conjunto de instituições que, no passado, foi denominado
“Programas Educativos da UNICAMP. O primeiro deles refere-se à dissertação de
mestrado de Magali Fagundes Reis (1997), que construiu uma narrativa sobre a
primeira creche inaugurada na Universidade, o Centro de Convivência Infantil,
CECI. Em seu trabalho intitulado “A creche no trabalho...o trabalho na creche. Um
estudo sobre o Centro de Convivência Infantil da Unicamp: Trajetória e
Perspectivas”, a autora, que foi pedagoga da Creche Área de Saúde apresentou
um panorama político e social da época que deu origem aos primeiros anos do
CECI, denominado, na época, CCI (que tinha o mesmo significado de Centro de
Convivência Infantil). Segundo Reis, a primeira manifestação em prol da
construção de uma creche dentro da Universidade ocorreu no ano de 1975,
quando um ofício foi enviado à Coordenadoria de Assistência Social:
A implantação de uma creche na Unicamp apresenta-se como oportuna medida a ensejar que família e universidade se beneficiem e se reforcem. A promoção do bem estar físico, espiritual e social do homem constitui o objetivo primordial da universidade (...) As mães que trabalham ou estudam na universidade deixam de dedicar a atenção, o cuidado e carinho aos filhos (...) muitas destas mães, não contando com pessoas capacitadas para suprir sua permanente ausência do lar, sentem-se preocupadas, angustiadas e tristes com reflexos visíveis no desempenho de suas atividades na Unicamp. (UNICAMP, 1975, apud REIS, 1997, p. 36)
5 No início de funcionamento, as creches contavam com vagas apenas para mulheres trabalhadoras da Universidade. Com o passar dos anos, novas reivindicações foram feitas, e os servidores homens também passaram a ter direito de vaga para seus filhos na creche, e a questão de gênero deixou de ser fator de exclusão.
6
Ainda no trabalho de Reis (1997) destacou-se a criação da creche
“Cantinho da Física”, localizada dentro do Instituto de Física da Universidade, que
atendia apenas crianças cujos pais ou mães trabalhassem na Unidade. Esta
creche funcionou entre os anos de 1982 a 1986, e, embora nunca tenha sido parte
dos Programas Educativos da UNICAMP, deu origem às primeiras profissionais
pedagogas que, com a inauguração do CECI, passaram a compor a equipe do
novo local. Algumas especificidades do Cantinho da Física foram abordadas no
Capítulo I deste trabalho.
A dissertação de Reis fez uma crítica à creche no que se refere ao
aleitamento materno como exigência para que a mulher trabalhadora tivesse vaga
para seu bebê. Este dado apareceu também nas narrativas das professoras da
CAS, mesmo sendo uma creche criada já nos anos 90. É importante
contextualizar a questão do aleitamento materno, já que na década de 1980 havia
Programas Nacionais de incentivo a tal prática, como destacou Sousa (2006), A Assembleia Mundial de Saúde estabeleceu, em 1981, o Código Internacional de Comercialização de Sucedâneos do Leite Materno e nesse mesmo ano foi implementado o PNIAM (Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno), pelo Ministério da Saúde, ligado ao Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAM). As atividades do PNIAM tinham o objetivo de atingir todos os grupos e segmentos sociais, tais como: profissionais de saúde, serviços de saúde, inclusive os hospitais, a mãe e suas condições trabalhistas, escolas, comunidade em geral e indústria dos alimentos infantis. (SOUSA, 2006, p.30)
A partir do dado anteriormente apresentado, pode-se considerar que, dentro
da Universidade, havia todo um contexto que favorecia a exigência determinada
pela creche CECI, uma vez que se tratava de um local destinado a filhos e filhas
de mulheres trabalhadoras que deveriam ter assegurado seus direitos trabalhistas
(CLT 1943), e que seria dirigido por uma mulher, enfermeira, até então profissional
da área da saúde da UNICAMP. Além disso, o histórico da instituição creche, de
maneira geral, é marcado pelo viés da saúde e assistência, e a este resgate
histórico é destinado um capítulo desta dissertação.
Sueli Palmen (2005) também abordou a origem das creches em seu
trabalho. A autora apresentou em sua dissertação um panorama da criação delas
7
nas Universidades Estaduais Paulistas: Universidade de São Paulo –USP -,
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP -, e Universidade Estadual
Paulista – UNESP -, trazendo ao leitor uma série de fontes documentais sobre os
processos de construção, organização e implementação das creches que tinham
por objetivo abrigar e cuidar dos filhos dos servidores paulistas. Embora a
dissertação da autora tenha contribuído com as questões históricas das creches
universitárias, por questões metodológicas seu trabalho não foi muito utilizado
como referência na presente narrativa, que optou pela ênfase da memória como
fonte de pesquisa.
Sobre a questão da formação de professores, Pinheiro (2006) que foi
primeiramente professora do PRODECAD e em seguida atuou como
coordenadora pedagógica da Creche Área de Saúde apresentou em sua
dissertação “A formação profissional na prática cotidiana: o que nos contam as
educadoras” narrativas de professoras comparadas com profissionais de outra
creche do município de Campinas. Abordou o processo de formação em serviço
das professoras, tanto no que se refere à formação acadêmica, quanto na
iniciativa de formação oferecida pelos Programas Educativos da UNICAMP (CAS,
CECI e PRODECAD) desde 1992, por meio de eventos denominados “Jornada
dos Educadores” e “Aprimoramento profissional”. Pinheiro valeu-se de narrativas
das professoras sobre a formação em serviço e a visão delas sobre o trabalho, e
pontuou também, um pouco da concepção de educação infantil que permeava a
organização da formação por parte da então “equipe técnica” dos Programas6.
Alguns aspectos de seu trabalho foram aqui abordados pela proximidade da
temática da formação profissional.
Por fim, destaco a dissertação de Arnais (2003) que, embora tivesse como
tema principal, a inclusão de crianças com deficiência na creche, teve em seu
contexto, o espaço da CAS, e as professoras e crianças como suas personagens,
já que a autora atuou como coordenadora pedagógica da instituição desde sua
inauguração, sendo também diretora do local em um dado período.
6 Equipe técnica: denominação dada à equipe gestora de cada uma das unidades dos Programas Educativos, composta por enfermeiras, pedagogas, psicólogos, nutricionistas, e assistente social.
8
Além das dissertações aqui apresentadas, trabalhos de Conclusão de
Curso, tanto de graduação quanto de especialização em áreas diversas foram
escritos sobre os Programas Educativos da UNICAMP. Dentre eles, destaquei
alguns escritos também por professoras do programa que dissertaram sobre seu
local de trabalho: Rosineide Santos da Silva abordou a prática das professoras de
berçário em “Os saberes e fazeres das professoras de bebês: construindo pontes
entre a teoria e a prática” (2006). Já a professora Luciane Siqueira das Chagas em
seu trabalho de conclusão do curso de Pedagogia intitulado “Construção da
Pedagogia da Educação Infantil e a formação continuada e em serviço das
professoras da Creche Área de Saúde” (2006), falou sobre a Jornada dos
Educadores da UNICAMP, a história, os objetivos e as primeiras organizações
deste evento que fez e ainda faz parte do contexto da DEdIC, como uma proposta
de formação e aprimoramento profissional.
A também professora Suellen Pierri, contou um pouco sobre a história do
Centro de Convivência Infantil (CECI) no trabalho “Contando histórias: O Centro
de Convivência Infantil da UNICAMP (2011).
Memória e história de vida
Mas o que significa então escrever mais uma história, dentre tantas já
existentes sobre as creches da UNICAMP? Qual a relevância e a contribuição que
esta temática ainda pode abarcar? Consideramos, em primeiro lugar, que este
trabalho trouxe uma importante relação entre história e memória, e este é o
principal fio que costura todo o tecido deste texto7. O trabalho a partir da memória
como construção social apresentou um diferente recorte daqueles que até então
encontrei em diversos autores que tiveram a creche e os Programas Educativos
como contexto, e, nesse sentido, valho-me de Bosi, quando, em entrevista narrada
7 Até aqui, a introdução vêm sendo escrita na primeira pessoa do singular por se tratar de uma contextualização da pesquisadora em sua pesquisa, ou seja, os caminhos que me levaram a construir a dissertação. Contudo, o uso do plural a partir do momento em que o texto destaca as concepções teóricas e metodológicas refere-‐se à parceria imprescindível com a professora orientadora Maria do Carmo Martins, que permitiu que os caminhos da pesquisa fossem trilhados de uma maneira não usual, sem descaracterizar o rigor metodológico necessário à pesquisa científica, porém, destacando a importância de se construir outras possibilidades narrativas nas ciências humanas.
9
para a Revista do programa de pós-graduação em comunicação social da
Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas tratou da questão da memória,
Porque o passado reconstruído não é um refúgio, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar. Então, a memória deixa de ter aqui um caráter de restauração do passado e passa a ser a memória geradora do futuro: memória social, memória histórica e coletiva. (BOSI, 2012, p. 196)
Sendo a memória categoria de análise presente em todo o trabalho, faz-se
necessário contextualizar em que perspectiva fizemos aqui uso deste conceito.
Em uma primeira leitura, pode parecer que o trabalho com a memória é algo
puramente subjetivo e intrínseco ao sujeito que narra suas histórias de vida. Uma
questão puramente individual. Se assim o fosse, estaríamos então simplesmente
contando uma história de pessoas anônimas. De fato, não é esta a proposta do
trabalho com a memória, mas sim, na possibilidade de, a partir da individualidade
de sujeitos que vivem em um contexto comum, contribuir para a reflexão sobre
processos sociais, culturais e políticos do período em que viveram. Martins (2007)
apresentou em seu artigo sobre História, Currículo e Práticas Pedagógicas uma
definição sobre o trabalho com a memória,
Algunas veces a memória es un refugio bucólico, un puerto seguro. Otras veces activamos la temática de la memoria para hablar de la identidad del sujeto, de las innumerables possibilidades de construcción de identidades individuales y colectivas, hablamos de memoria para hablar de cultura. Estas imágenes sobre memoria y su asociación con la evocación, como sucedió con las lenguas latinas presentan la memoria como central en la identificación del sujeto con los procesos vividos, con la possibilidad de continuar viviendo, con los deseos y los temores. La memoria vincula, en esse caso, razón y emoción, remite a los sentidos de la experiencia vivida y a la capacidad de lidiar con los tiempos y espacios del sujeto. Por supuesto que la memoria no se valoriza únicamente porque nos permite um enorme adelanto cognitivo, relativo al aprendizaje constante y creciente, sino porque com ella activamos el pensamiento, actualizando el pasado. (MARTINS, 2007, p. 137)
10
A definição destacada pela autora apresenta a ideia central sobre a
memória que o texto pretendeu abordar. Embora fazendo parte da gama de
processos cognitivos do ser humano, a memória é também parte da construção da
identidade dos sujeitos, que só é possível pela vivência do coletivo, da cultura.
Dessa forma, qualquer trabalho que pretendesse abordar a questão da memória
de maneira puramente psíquica, ou da mesma maneira, tratar das histórias de
vida a partir apenas das configurações sociais do trabalho, por exemplo,
empobreceria a narrativa que se constitui quando pensamos em sujeitos que não
se dividem entre interno/externo. Esta dicotomia, herança da ciência positivista
não se configurou como aporte teórico para este trabalho. Nem mesmo quando
destacamos a questão da memória a partir de uma perspectiva psicanalista,
visivelmente presente nos escritos benjaminianos, com os quais dialogou-se aqui,
é solicitado que se faça esta separação. Figueiredo Filho (2006) em artigo que
destacou possíveis afinidades entre história e psicanálise fez um apontamento
pertinente para o tema em questão:
O historiador ou cientista social que queira fazer uso da psicanálise, evidentemente deve ter o devido cuidado para não psicologizar os processos sociais, esvaziando-se dos móbices econômicos e políticos. Os abusos são facilmente cometidos, e os erros que dele derivam podem ser grosseiros, como a tentativa de explicar o nazismo e a perseguição aos judeus a partir do complexo de Édipo de Hitler. Vimos, tanto no caso do pintor, quanto no da persistência da agressividade e da destrutividade humanas, a atuação de forças psíquicas, de ordem inconsciente. A maneira como elas se expressam, necessariamente, estão em acordo com a cultura e os aspectos históricos vividos pela sociedade em questão. Por estes motivos, estamos convencidos de que a História e a Psicanálise são ciências afins, e que, adequadamente trabalhadas, podem contribuir para a elucidação de processos históricos. (FIGUEIREDO FILHO, 2006, p.9)
Fazer uso aqui da psicanálise em relação com memória e história aponta
para o fato de que embora os estudos psicanalíticos tenham como foco os
processos internos do sujeito e, fundamentalmente, o inconsciente, não
11
consideram o indivíduo e seus processos como isolados do social e da cultura8.
Qualquer interpretação da teoria freudiana nesse sentido apresentar-se-ia como
superficial e incompleta. Renato Mezan, psicanalista e estudioso dos escritos
Freudianos, realizou uma análise das obras do autor em “Freud, pensador da
cultura”, em que destacou a indissociação dos estudos da psicanálise e sua
relação com o contexto social,
A ideia de uma vida pulsional desligada da “realidade” é um conceito vazio, já que, mesmo se ela não se reduz às relações com outrem (na medida em que as pulsões são internas ao corpo), a satisfação da pulsão – seja ela sexual, agressiva ou de autoconservação – está vinculada necessariamente à existência de objetos exteriores à psique do indivíduo. É por essa razão que Freud pode afirmar que a psicologia individual é desde o início psicologia social. (MEZAN, 2006, p.506)
O próprio criador da psicanálise, em seu texto “Projeto de uma psicologia
científica”, de 1895, descreveu minuciosamente os processos neurológicos dos
quais faz parte a memória, e complementou que aquilo que é lembrado ou
esquecido vai além do aparato físico neural, relacionando-se com aquilo que é
específico de cada sujeito, do que habita sua consciência, e principalmente, de
seu inconsciente. (FREUD, 1996)
Embora não se trate, contudo, de uma dissertação sobre a psicanálise é
certo que, em inúmeras passagens em que me inscrevi no texto alinhavaram fios
de reflexão a partir desta base teórica, bem como dialogaram com autores
também neste recorte. Dentre eles, Walter Benjamin, que abordou a temática da
história e sua relação com a memória, especialmente, sobre os conceitos de
memória e rememoração. Dessa maneira, Gagnebin (2006) abordou a
rememoração em Walter Benjamin como sendo,
Uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao
8 Inconsciente: para Freud, o inconsciente é a esfera mais ampla do aparelho psíquico, composto ainda pelas instâncias pré-‐consciente e consciente. O inconsciente “é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é apresentado de forma tão incompleta pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais”. (FREUD, 2001, p584)
12
esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN, 2006, p.55)
No que se refere às relações entre história e memória iniciamos os
trabalhos a partir de uma sistematização para tal abordagem, haja vista a gama de
possibilidades que o trabalho com a memória apresenta. Nóvoa (1992) destacou
que as produções acerca das memórias da profissão docente e das histórias de
vida enquadram-se nas chamadas “abordagens (auto) biográficas que, para o
autor, ao mesmo tempo em que são ricas narrativas também apresentam
dificuldades tamanha a diversidade metodológica,
Esta diversidade dificulta a categorização dos estudos centrados nas histórias de vida dos professores. Cada estudo tem uma configuração própria, manifestando à sua maneira preocupações de investigação, de acção e de formação. É muito difícil separar analiticamente as distintas abordagens (auto)biográficas, na medida em que elas se caracterizam justamente por um esforço de globalização e de integração de diversas perspectivas. (NÓVOA, 1992, p. 20)
No entanto, o autor destacou no mesmo texto uma categorização
fundamentada nos objetivos e nas dimensões que as pesquisas desejam alcançar
e que, embora não se tratem de categorias exclusivas, configuram fatores
privilegiados em cada um dos tipos de estudos. Para tanto, uma diversidade de
estratégias e materiais podem ser utilizados, sendo destacados, diários, materiais
escritos ou orais, fotografias, número irrestrito de entrevistados, entre outros. De
acordo com a categorização proposta por Nóvoa (1992), é possível considerar que
o presente trabalho construiu para sua pesquisa “objetivos essencialmente
emancipatórios, relacionados com a dimensão investigação-formação versus
profissão (de professor)”. Nesta perspectiva, o trabalho configurou-se como
emancipatório porque a narrativa pretendeu dar voz aos professores que
13
apresentam suas histórias de vida e percurso profissional, sendo possível, ao
revisitar o passado, refletir também sobre o presente. Vale dissertar aqui sobre a
expressão “dar voz aos professores”, utilizada pelo autor: não se considera que,
antes deste trabalho os professores “não tinham voz”, ou qualquer interpretação
no sentido de que eram silenciados. A questão que se coloca é tão somente o fato
de tornar pública uma narrativa de um grupo de pessoas comuns que, através de
suas histórias, de vida e de profissão, dentro de um determinado contexto social,
tem algo a contar. E tais histórias, relacionam-se à construção de um campo de
conhecimento, que é a Educação Infantil.
Não podemos mais fechar os olhos para o fato de ser a memória uma das grandes categorias responsáveis pela identificação do indivíduo com o grupo social. Junte-se a isso o fato de poder, ao resgatar a memória das pessoas envolvidas, atribuir publicamente a elas uma dimensão política que o isolamento e o trancafiamento das lembranças individuais não permitiriam. (MARTINS, 1996, p. 19)
A formação profissional em contexto
As histórias de vida das professoras personagens deste texto entrelaçaram
seus fios quando passaram a fazer parte de um grupo de mulheres trabalhadoras
de uma creche. Além do trabalho, a formação profissional também surgiu como fio
que as uniu, e, nesse sentido, a perspectiva teórica encontrada nos trabalhos de
Ivor Goodson (1992) sobre as histórias de vida de professores trouxe importante
contribuição para a análise das narrativas,
a vida dos professores pode ajudar-nos a ver o indivíduo em relação com a história de seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecção da história da vida da sociedade esclarecendo assim, escolhas, contingências e opções com que se depara o indivíduo (GOODSON, 1992, p. 75)
Os trabalhos de Goodson configuraram-se como importante aporte teórico à
medida que o autor trabalha com as histórias de vida de professores sempre
buscando uma relação com o contexto histórico, político e social de cada época.
14
Para tanto, diferencia, em sua língua de origem os termos “life story” e “life
history”, sendo o primeiro definido como relatos de vida que, ao serem situados
em um contexto histórico são transformados em “life histories”. Nas palavras do
autor, “la tarea de esta transformación es hacer visible lós modos em que lós
relatos de vida personales están mediados por imperativos culturales y políticos
más amplios”(GOODSON, 2005).
Assim, tão relevante quanto abordar a importância que a formação
profissional demarcou nas histórias de vida das professoras da CAS, é abordar
esta profissionalização no contexto histórico mais amplo da inserção da creche
como instituição social e sua demanda de atuação. A obra de Ivor Goodson
corrobora para esta análise de mão dupla.
Os documentos
Para a construção desta narrativa optamos pela utilização de fontes
documentais que materializaram a história de construção e implementação da
creche, encontradas tanto dentro da própria instituição, quanto no Sistema de
Arquivos da Universidade – SIARQ: processos que tratam da construção da
creche, convênio entre instituições que implantaram as primeiras atividades
(Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP -, Fundo Social da
Solidariedade do Estado de São Paulo – FUSSESP -, Faculdade de Ciências
Médicas da UNICAMP – FCM), edital do processo seletivo de recreacionistas,
relatórios sobre o primeiro ano de funcionamento da creche.
A narrativa é construída usando documentos. Estes emitem sinais que teremos que desvendar. Para poder desvendar esses sinais, transformamos os documentos em fontes, nas quais saciamos a nossa sede de conhecer (MARTINS, 1996, p. 15)
Os documentos foram tão importantes quanto as entrevistas,
complementando-as. Embora o destaque tenha sido mantido nos relatos das
professoras, ao longo do trabalho, tais fontes trouxeram informações em
instâncias que as histórias de vida não puderam abarcar.
15
As professoras e suas memórias: o trabalho com as entrevistas
Ao optar pelo trabalho a partir de entrevistas, foi necessário primeiramente,
elencar um critério de escolha das professoras. Como o trabalho dizia respeito à
questão da memória da instituição, o primeiro ponto a ser definido foi encontrar as
professoras aprovadas no primeiro concurso público para atuar na creche logo no
início de seu funcionamento, em 1990. A fonte documental que continha esta
informação, contudo, apontava para o nome de cinquenta aprovadas e que foram,
aos poucos, convocadas. Destas, algumas já não atuavam mais, outras, foram
para outras unidades de trabalho (como o CECI, por exemplo, já que hoje, é
possível esta mobilidade). Surgiu então, o segundo critério de escolha:
estabelecer relação entre nomes de aprovadas no primeiro concurso público para
recreacionista (UNICAMP, SIARQ, 1990) e nomes de atuais professoras do
quadro profissional da Creche Área de Saúde. Encontrei seis nomes.
Dessa forma, o trabalho foi tecido com recortes da história obtidos a partir
de entrevistas individuais com as professoras da creche que foram contratadas
através do primeiro concurso público para a “nova creche da UNICAMP” 9. No que
se refere às questões metodológicas, o primeiro passo foi realizar um encontro
com as seis professoras da creche que foram aprovadas para a função de
recreacionistas, em 1990, a partir dos dados encontrados em fontes documentais.
Neste dia, tivemos a oportunidade de narrar um pouco sobre meu trabalho e
verificar a disponibilidade das professoras em participar das entrevistas. Todas
concordaram em participar da pesquisa e apresentaram melhores datas e horários
para a realização desta etapa. Logo em seguida, iniciamos o processo de
elaboração das entrevistas, optando pela efetivação de momentos individuais com
cada uma delas, e elaborando um roteiro inicial de questões comuns a todas. As
questões tinham como objetivo contribuir para a rememoração de alguns períodos
9 De acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa – CEP -‐, trabalhos que envolvem seres humanos, como é o caso da utilização de entrevistas, devem ser submetidos à aprovação. Dessa forma, o presente trabalho foi encaminhado ao órgão responsável no dia 08/05/2013, sendo aprovado no dia 10/06/2013, sob o parecer de número 299.841. Após a aprovação, as entrevistas foram realizadas.
16
marcadamente históricos para a creche, como o ingresso das professoras, o
concurso pelo qual foram aprovadas, os estudos do magistério e a formação
superior, e as práticas pedagógicas desenvolvidas ao longo dos anos. (Anexo I)
No entanto, a intenção também foi deixar as histórias surgirem à medida que as
professoras fossem narrando suas memórias, e que a pesquisadora também
colocasse questões adicionais nas entrevistas, de acordo com aquilo que seria
rememorado por cada uma. Não gostaríamos que as entrevistas ficassem
limitadas a um roteiro de perguntas, mas algumas foram importantes para iniciar
as histórias. Para construir uma documentação a partir da história oral, seguimos
os quatro “passos” descritos por Vidal (1998), sendo eles: a preparação da
entrevista (seleção das personagens, roteiro, cuidados com equipamento), a
situação da entrevista, transcrição, e por fim, o retorno da transcrição ao
entrevistado.
Da preparação da entrevista, que corresponde ao primeiro passo, de início
seriam realizadas seis entrevistas, com cada uma das professoras escolhidas por
serem as únicas que continuam em exercício na creche até os dias de hoje. Uma
delas, no entanto, estava com problemas de saúde no período determinado para a
realização deste procedimento da pesquisa, e, posteriormente, entrou em período
de férias institucionais. Dessa forma, não foi possível entrevistá-la, definindo-se
então, cinco professoras participantes do trabalho. O equipamento e situação de
entrevista foram o mesmo para todas, sendo estes momentos realizados em uma
sala da própria instituição, com duração aproximada de uma hora.
A transcrição foi o passo mais trabalhoso, demandando muito tempo e
concentração para que as falas fossem o mais literal possível, sem interpretações
por parte da entrevistadora. A única alteração feita nas transcrições foi com
relação a nomes. Em alguns momentos das entrevistas, as professoras relataram
acontecimentos envolvendo nomes de outras pessoas, como por exemplo, de
diretoras e coordenadoras que atuaram na creche e, nesses casos optamos por
preservar os nomes, substituindo-os por nomenclaturas dos cargos ocupados à
época, e, em alguns trechos, apenas a letra inicial dos nomes.
17
Por fim, sobre o retorno da transcrição, as entrevistadas tiveram a
oportunidade de ler, aprovar ou solicitar ajustes às transcrições, bem como
escolher o nome fictício de suas personagens, além de se apresentarem na
narrativa. A escolha de outro nome que não o verdadeiro foi importante para que
se sentissem mais seguras com relação ao que seria posteriormente publicado,
pois se trata de um passado recente, e de uma história a qual todas ainda fazem
parte, ou seja, a creche continua em funcionamento e a maioria dos integrantes
desta história continua atuando no mesmo local.
As entrevistadas então foram as seguintes:
Ana – 43 anos: Foi entrevistada no dia 13/06/2013. Ingressou na creche
tendo cursado o Ensino Médio e nunca havia atuado com crianças. Já trabalhava
na universidade, exercendo função administrativa. Ao longo dos anos, concluiu o
curso de magistério (nível médio), e ingressou na graduação em Biologia, mas não
chegou a finalizar. Depois se formou em Pedagogia.
Antônia – 54 anos: Foi entrevistada no dia 14/06/2013. Atuava como técnica
em enfermagem no setor de Pediatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP
quando realizou o concurso para a função de recreacionista da creche. Concluiu o
magistério e há alguns anos o curso superior em Pedagogia.
Eliana – 49 anos: Foi entrevistada no dia 12/06/2013. Ingressou na creche
com escolaridade de nível médio. Antes de começar a trabalhar como
recreacionista já trabalhava com crianças, em uma escola de educação infantil
exercendo o cargo de “monitora de ônibus” de transporte escolar. Cursou
magistério e pedagogia.
Flor – 51 anos: Sua entrevista foi feita no dia 11/06/2013. Ao prestar o
concurso da creche, já trabalhava com crianças como monitora na educação
infantil. Havia concluído o ensino médio, e posteriormente, fez magistério e
Pedagogia.
Maria Queiróz – 63 anos: Entrevista realizada em 17/06/2013. É a única das
professoras entrevistadas que, ao ingressar na creche, já havia concluído o curso
de magistério. Trabalhava como empregada doméstica quando participou do
concurso para recreacionista, e, permaneceu exercendo ambas as funções
18
durante muitos anos. Concluiu o curso de Pedagogia e também uma
especialização.
É importante pontuar que, além da apresentação das profissionais aqui
destacadas, no decorrer do texto, à medida que suas falas apareceram pela
primeira vez na narrativa, logo em seguida escrevi um breve relato apresentando-
as novamente, mas, desta vez, pela perspectiva delas mesmas, ou seja, solicitei a
cada uma, uma escrita sobre como gostariam de se apresentar aos leitores. Das
cinco, Antonia foi a única que preferiu que eu mesma redigisse. Maria Queiróz
pediu alguns dias para pensar e escrever. No entanto, um acontecimento trágico
ocorreu em sua vida durante este período. Sua única filha faleceu vítima de um
atropelamento. Dessa forma, Maria ficou por um período afastada do trabalho, e
optamos por escrever sua apresentação.
Uma vez estabelecidas as questões metodológicas, iniciou-se o processo
de escrita da narrativa. O primeiro capítulo do trabalho apresentou um panorama
histórico da origem da instituição creche no país ainda no final do século XIX e,
posteriormente, os precedentes históricos, dentro da Universidade, que
contribuíram para o surgimento da Creche Área de Saúde. Assim, destacou-se
uma série de acontecimentos contextualizados na década de 1980. Já no capítulo
seguinte emergiram as primeiras memórias das professoras sobre o início de
funcionamento da creche, suas atividades, o concurso público para o cargo de
recreacionista, e a chegada das crianças. As memórias perpassaram
aproximadamente uma década. No item três, demarcou-se um novo período a
partir dos anos 2000, tanto para a CAS quanto para a Educação Infantil de
maneira geral, já que se tratava de um momento histórico de novas exigências
legais para a atuação com crianças de zero a três anos de idade. As cuidadoras
tornam-se professoras10. Os fios entrelaçaram-se em um último capítulo,
10 O termo “cuidadora” apareceu em grande parte da narrativa, inclusive como adjetivo emergente no título. Muito embora a nomenclatura inicial de trabalho das mulheres da creche fosse “recreacionistas”, como destacado no edital do Concurso Público aqui utilizado como fonte, o termo cuidadora foi marcante nas entrevistas e definiu uma prática comum desde os primórdios do trabalho em creche por se tratar de um atendimento a crianças pequenas, que dependem da figura do adulto. Ao longo do tempo, as práticas começaram a ser questionadas e necessariamente relacionadas à educação, instaurando-‐se então, o binômio “Cuidar e educar” como práticas indissociáveis na educação infantil.
19
finalizando um pequeno tecido, um recorte sobre a história da Educação Infantil e
as professoras que constituíram suas vidas neste contexto. Apresentam-se as
contribuições finais para esta temática e a compreensão, a partir das histórias e
memórias, de que o caminho da formação profissional é necessário e
fundamental, mas problemático quando não se considera a experiência do
trabalho e as especificidades de atuação com crianças de 0 a 3 anos. Quais as
possibilidades a seguir, então?
Objetos biográficos
Em uma última consideração no que se refere à introdução do texto,
destaco as razões pelas quais optamos pela utilização de algumas imagens que
vão, pouco a pouco, surgindo em meio à trama do tecido desta história, e que de
certa forma, apresentaram-se como um “bordado” em meio à costura de fios da
creche. As imagens refletem aquilo que Bosi (2003) denominou de “Objetos
Biográficos”, que seriam aqueles que, em certa medida envelhecem com seus
donos e são praticamente incorporados à vida das pessoas.
São estes os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante... Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva do morador. (BOSI, 2003, p.26)
Assim, na tentativa de relacionar memória, história e imagens, busquei, nos
espaços da creche, e com a ajuda das professoras, objetos que, assim como elas,
estão na creche desde seu primeiro dia de funcionamento. É certo que, alguns
deles não permaneceram no espaço apenas por uma relação de afeto com as
pessoas que ali estão; pode-se pensar sobre eles, como uma espécie de “Cultura
Material” de um espaço voltado ao atendimento de crianças; ou ainda, refletir
sobre a dificuldade de um órgão público adquirir novos bens materiais para o
trabalho. Inúmeras seriam as possibilidades de reflexão sobre as imagens aqui
apresentadas. Contudo, a opção de relacioná-las às narrativas e histórias de vida
20
contribuiu para a temática do trabalho. “Nossa, isso aqui ta aqui desde sempre!”,
disse uma das professoras. “Passei minha vida olhando para isso aqui no parque”,
contou-me outra.
O processo de identificação dos objetos biográficos aconteceu em um dia
de trabalho. No horário de descanso das crianças, perguntei às professoras se se
lembravam de materiais que estavam na creche desde 1990. Imediatamente, Ana
levantou-se do chão, onde estava sentada ao lado de uma criança que já dormia
em seu colchão, e me levou aos objetos. Olhava para uma mesa, e recordava-se
de uma história. E então, realizávamos o registro fotográfico. E assim aconteceu
com alguns dos objetos que cotidianamente utilizamos com as crianças. Por
vezes, reclamamos por se tratar de algo “tão velho”. Outras, sequer nos damos
conta disto, talvez por já estarem tão incorporado em nossa rotina de trabalho.
Quanto mais voltados ao uso quotidiano mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda. (BOSI, 2003, p.26)
A partir destes fios que começaram a ser tecidos na presente introdução, o
trabalho buscou em suas linhas uma costura que valorizou a relação história e
memória para narrar o percurso histórico de uma instituição e suas profissionais,
alinhavando os depoimentos das histórias de vida destas mulheres com as tramas
políticas, sociais e culturais da história da educação infantil. Mais ainda, o olhar
destas professoras acerca de todo este percurso. O que a história pôde contribuir
para problematizar os desafios da profissão?
21
Capítulo I: O surgimento da creche como instituição social: a Creche Área de Saúde e sua herança histórica.
As creches no Brasil
Em muitos paizes da Europa, que se acham na vanguarda da civilisação e do progresso, há uma instituição, filha da caridade, destinada á primeira infância, cujos beneficos resultados a experiência tem cabalmente demonstrado, de sorte que nestes ultimos tempos Ella se tem generalisado de modo notável. Essa instituição philantropica é denominada em francez creche, nome que conservamos, já porque falta em nossa língua um termo que o traduza perfeitamente, já também porque tal denominação se acha aceita por todos quantos aqui e em Portugal tem tratado desse assumpto. [...] No Brazil ainda não existe a creche, entretanto sua necessidade me parece palpitante, sobretudo nas actuaes condições em que se acha o nosso paiz depois da moralisadora e humanitária lei de 28 de setembro de 1871, em virtude da qual nelle não nasce mais um so escravo. (VINELLI, A CRECHE, in Jornal “A mãi de família, 1879)
A citação acima, parte da primeira edição do Jornal “A mãi de família”
(1879) que teve publicação no Rio de Janeiro e circulou até 1888, trazia, pela
primeira vez no país, informações sobre o surgimento da instituição creche na
Europa. Além da informação, apontava para a necessidade de creches também no
Brasil, que promulgara a “Lei do ventre livre”11 (BRASIL, 1871). Segundo a
publicação do jornal, as escravas, teriam enorme dificuldade em encontrar um
local para trabalhar ao chegarem com seus filhos nos braços. No entanto, caso
“exista na proximidade do lugar em que Ella trabalha um asylo em que Ella possa
deixar durante o dia sem receio, o filhinho, em que ella possa vir dar-lhe de mamar
[...] vêde como a scena muda. [...]”
O redator principal e também fundador do jornal, Dr. Carlos Costa, era
médico higienista e se propunha, nas páginas de comunicação, a ensinar tudo
aquilo que dizia respeito à educação física da criança a partir dos conhecimentos
das “ciencias dos homens”, já que para ele, as mulheres da sociedade brasileira
não cumpriam de maneira adequada seu papel:
11 De acordo com a Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco”, todas as crianças, filhas e filhos de mulheres escravas, a partir de 28 de setembro de 1871, nasceriam livres.
22
As mulheres em nosso paiz não cumprem tanto quanto deviam os sagrados deveres de mães... umas por vaidade, outras por pobreza e finalmente muitas por desculpada ignorância não cumprem sua missão sublime, a unica que lhes foi confiada, a da Maternidade! (A mãi de família, 1879, p.1)
Dessa forma, tinham destaques matérias sobre o aleitamento materno,
moléstias da infância, e a nova instituição creche. Este último item, principal para
nós, propunha um local para filhos das escravas, ou seja, não seria um abrigo
adequado para toda e qualquer criança, mas sim, destinado à infância pobre da
época.
A “Mai de família” voltava-se para a leitura de mulheres brancas e da elite, e
teve boa aceitação no Rio de Janeiro, circulando também em São Paulo e Minas
Gerais (CARULA, 2012), e foi neste período, que começaram a surgir no país
algumas iniciativas de atendimento à primeira infância. Iniciava-se ainda, por
influência da organização de tal atendimento nas sociedades europeias, a
distinção entre os termos creche e jardins de infância. O primeiro, como já
destacado, voltado aos filhos de mulheres pobres e operárias e de até dois anos
de idade. Às crianças um pouco mais velhas, os jardins de infância, por sua vez,
destacar-se-iam como um “lugar propício para o desenvolvimento e cultivo de
bons hábitos”, porém, apenas para os filhos da elite do Rio de Janeiro
(KUHLMANN JR., 2000).
Ainda tratando-se da preocupação com a infância pobre brasileira, a
literatura demarcou a instituição creche como sendo também uma solução para o
problema enfrentado com a “casa dos expostos”, já que, havendo um local de
abrigo para as crianças, a mãe não mais necessitaria abandonar seu filho e, ao
mesmo tempo poderia trabalhar, “contribuindo” para nova organização da
sociedade12.
12 A “casa dos expostos” ou “roda dos expostos” abrigava, tanto na Europa, quanto no Brasil, bebês abandonados. Em geral, localizavam-‐se anexas aos hospitais e eram mantinhas pelas Santas Casas de Misericórdia. Segundo Kuhlmann Jr., (2000), os bebês eram deixados em uma espécie de roda de madeira, que garantia o anonimato daquele que ali deixasse a criança. A casa, encaminhava os bebês à amas de leite
23
Cabe aqui uma breve ressalva destacando duas questões que, embora, ao
longo da pesquisa não se configuraram como principais fios condutores, mas que
em certa medida permearam toda a discussão acerca da formação profissional
daquela que compreendemos hoje como professora de educação infantil. O
primeiro ponto tratou da concepção de criança que, desde os primórdios da creche
voltou-se a atenção os discursos científicos, demarcando a relação não muito bem
definida entre diversas áreas de conhecimento, como saúde e educação, por
exemplo. Este ponto desmistifica a ideia de uma história linear do trabalho na
creche que define um processo único de passagem da assistência à educação e
que as Leis atuais consolidaram. Verificou-se, ao longo da pesquisa que,
considerando o contexto da época, era possível visualizar também concepções
educativas na creche. Na mesma medida, é possível encontrar, ainda nos dias de
hoje, unidades de educação infantil e concursos que não exigem a formação
profissional para atuar com as crianças pequenas. Esta visão, contudo, não é
consensual entre autores que dissertam sobre a temática, mas é a ideia aqui
defendida.
O outro ponto refere-se a figura demarcada do gênero feminino. Ambos,
criança e mulher, são público alvo a quem se destinava o discurso da importância
do surgimento da creche. A criança, sempre de infância pobre que deveria ser
protegida. Já a mulher, ora para aquelas de abastadas classes sociais que
necessitariam da mão de obra da mulher pobre, ora, para a própria mulher pobre
que, sem condições para sustentar seu filho, deveria aderir ao “mal necessário” da
creche para garantir sua sobrevida13. E, sobretudo, a mulher cuidadora das
crianças que passaria então a atuar na creche. De fato, não é possível negar a
influência destes discursos durante todo o percurso que a creche percorreu, que os criavam até a idade para poderem frequentar o internato. A creche surgiria então, como uma alternativa para que as famílias pobres não abandonassem seus filhos na roda. 13 Segundo pesquisas como a de Vieira (1988) o termo “mal necessário” foi utilizado para caracterizar a necessidade de adesão ao atendimento das creches no início do século XX pelas mulheres pobres por duas questões principais. A primeira delas, já destacada no texto, pela necessidade de trabalhar para sobreviver e sustentar o filho. A segunda dizia respeito ao fato de que, havia na época uma prática realizada por mulheres que, em suas próprias casas cuidavam de crianças vindas de várias famílias enquanto as mães estavam trabalhando. Estas mulheres, chamadas de “cuidadeiras” ou “tomadeiras de conta”, segundo a literatura não adotavam hábitos corretos e necessários aos cuidados de crianças tão pequenas, e, este atendimento, era responsável pela grande taxa de mortalidade infantil.
24
tampouco desconsidera-lo aqui. Tais discursos estiveram presentes em toda a
construção narrativa sobre as mulheres professoras do século XXI. Embora a
questão demarcada do gênero não emergiu como categoria de análise, em
momentos diversos ela apresentou-se como pano de fundo no texto.
Retomando o processo de implementação das creches no Brasil, Kuhlmann
Jr. (2000) ressaltou que somente no ano de 1899 foi criada a primeira creche no
país, justamente no Rio de Janeiro, para atender aos filhos de operárias da
“Fábrica de Tecidos Corcovado”. A partir desta primeira referência, o autor
destacou uma série de outras iniciativas, mas que foram paulatinamente
acontecendo no cenário nacional, não acompanhando a demanda existente à
época. Antes disso, destacou o surgimento dos então denominados “jardins de
infância”, sendo o primeiro deles fundado em 1875 no Rio de Janeiro, e, e no
Estado de São Paulo, em 1896, em anexo ao Colégio Caetano de Campos.
O texto de Kuhlmann Jr. apresentou um panorama riquíssimo de
informações sobre este período histórico do surgimento das creches no Brasil,
associando a instituição à criação de diversos órgãos de proteção à infância que
emergiam no cenário político, como a fundação do “Instituto de Proteção e
Assistência à Infância do Rio de Janeiro” no mesmo ano em que fora inaugurada a
primeira creche no país. O instituto foi responsável, no início do século pela
criação de outras creches, porém, não sendo o único órgão a desempenhar tal
atividade. Em 1908, por exemplo, a entidade “Patronato de Menores”, organizada
por juristas e senhoras da sociedade carioca, criava a “Creche Central”. Em São
Paulo, a “Associação Feminina Beneficente e Instructiva” também organizava o
atendimento em creches. (KUHLMANN JR., 2000). No mesmo sentido, Spada
(2005) corroborou em seu artigo com a história de implantação das primeiras
creches no país, associando-as a iniciativas de natureza filantrópica,
as creches em muitos aspectos aproximavam-se dos asilos infantis, pois as entidades que foram instaladas em São Paulo, no final do século XIX, como as de Anália Franco, têm o intuito de minimizar os graves problemas de miséria vividos por mulheres e crianças, além do importante atendimento em regime de internato oferecido às crianças órfãs e abandonadas.
25
Um aspecto de grande influência na caracterização do tipo de serviço prestado pela creche, bem como sua percepção – pelos funcionários e pela população – como um local que oferece atendimento caritativo aos desvalidos tem suas origens no próprio processo de criação da instituição e também no fato de que o Estado não teve qualquer participação na implantação e funcionamento inicial das instituições de atendimento infantil. Este atendimento é, durante um longo período, realizado por entidades de natureza filantrópica, quase que exclusivamente por entidades religiosas, especialmente pela igreja católica. (SPADA, 2005, p.3)
O discurso de proteção à infância perpassava pelas diversas áreas de
conhecimento, ocasionando em todo o cenário nacional iniciativas para
organizações de creches. Aqui, as primeiras relações entre assistência, higiene e
saúde e educação começaram a estabelecer-se, mais ainda sem um foco definido.
A falta de uma política pública nacional que unificasse e solidificasse as propostas
de trabalho permitiam que iniciativas com infinidades de propósitos e objetivos
fossem criadas sem uma reflexão sobre a creche que passava lentamente a
integrar a gama de instituições sociais. Em geral, as iniciativas eram tidas como
“favores” de órgãos sociais à população pobre, e não um dever do Estado, como
se compreende na atualidade.
Assim, na primeira metade do século XX ocorreu uma paulatina expansão
das creches no país. Um dos marcos políticos que se relacionou intimamente a
essa expansão foi a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT- de
1943. Nela, destacava-se a importância das empresas prestarem atendimento aos
filhos da mulher trabalhadora, como destacado no artigo 389:
Art. 389. Todo empregador será obrigado: [...] Parágrafo único. Quando não houver creches que atendam convenientemente à proteção da maternidade, a juízo da autoridade competente, os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos trinta mulheres, com mais de 16 anos de idade, terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar, sob vigilância e assistência, os seus filhos no período de amamentação. (BRASIL, CLT, 1943)
26
Ainda sobre a década de 1940, Vieira (1986) destacou a criação de
políticas voltadas a assistência à maternidade, e, com isso, uma série de
instituições passaram a trabalhar ativamente nesta questão. Assim, o
Departamento Nacional da Criança (DNCr), o Ministério da Educação e Saúde e a
Legião Brasileira de Assistência (LBA) seriam órgãos atuantes na criação de
creches. Destacou-se neste período o fato de que, as iniciativas, embora ainda
existentes, de criação de creches por entidades filantrópicas, estas passariam a
dividir seu espaço com órgãos governamentais. Interessante também foi verificar a
denominação do órgão “Ministério da Educação e Saúde”, que já pelo nome,
demarcava a relação entre as áreas de conhecimento e que permanece até os
dias atuais nas creches.
Destacados alguns dos marcos importantes do início do século XX, que
consolidaram a creche como uma instituição social, ainda com um caráter de
assistência às famílias pobres (embora já existissem outros órgãos voltados à
educação das crianças pequenas), é na década de 1980, ou seja, no contexto de
redemocratização do Estado que, no interior da Universidade Estadual de
Campinas, ocorreu o surgimento da primeira creche. Iniciava-se o trabalho que
passaria a ser denominado posteriormente “Programas Educativos da UNICAMP” 14.
A década de 1980: O Estado de São Paulo e a redemocratização da sociedade
Durante a década de 1980, o Estado de São Paulo foi marcado por uma
série de mudanças políticas e sociais. Dessa forma, antes de abordar o
surgimento da CAS como um órgão específico, e a história em que as
protagonistas deste trabalho estavam inseridas, destacou-se um pouco sobre o
contexto social da época, bem como a implantação, dentro da Universidade, de
14 Posteriormente, em 2010, a nomenclatura do órgão foi alterada para Divisão de Educação Infantil e Complementar da UNICAMP.
27
outros órgãos que foram também criados com o intuito de atender as crianças da
comunidade.
Sader (1988) contextualizou a década de 1980 em sua obra “Quando novos
personagens entraram em cena”, que tratou dos movimentos e reivindicações
sociais deste período em que era urgente e emergente que o Estado criasse
projetos que atendessem a tais manifestações.
Embora as pessoas se encontrem, de saída, numa sociedade estruturada já de determinada maneira, a constituição histórica das classes depende da experiência das condições dadas, o que implica tratar tais condições no quadro das significações culturais que as impregnam. E é na elaboração dessas experiências que se identificam interesses, constituindo-se então coletividades políticas, sujeitos coletivos, movimentos sociais. (SADER, 1988, p.44-45)
O autor destacou que as décadas de 70 e 80 foram marcadas por grandes
lutas e movimentos sociais de trabalhadores que, embora “engolidos” pelo sistema
capitalista de produção, foram se constituindo como sujeitos coletivos e, como
resultado desta coletividade, organizaram-se movimentos como as “comunidades
de base”, “clube de mães”, entre outros que alteraram a concepção de um sujeito
individual, para um sujeito que se constitui nas relações sociais e de trabalho. A
questão do trabalho feminino, que ascendia à época, conota ainda outra
especificidade destas relações destacada pelo autor,
Há finalmente uma outra característica marcante para compreensão dos significados presentes na experiência do trabalho nesse período: a crescente participação da mulher nas atividades remuneradas. A percentagem das mulheres na população economicamente ativa da Grande São Paulo passou de 25,4% em 1950 para 28,2% em 1970 e 32,8% em 1980. Houve aumento da participação feminina em praticamente todos os setores e ocupações, inclusive em ramos industriais até então mais resistentes ao trabalho da mulher a partir de critérios como o da menor resistência física [...] Professoras, enfermeiras, secretárias, além das operárias não qualificadas, parecem reunir a maioria das categorias do trabalho feminino. (SADER, 1988, p.85)
28
Caracterizar o trabalho marcadamente feminino desta época é importante já
que os dados sobre a origem das creches da UNICAMP indicam que as vagas
para as crianças deveriam ser prioritariamente para filhos de mulheres
trabalhadoras e em período de amamentação, o que faz referência ao artigo 389
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, 1943) aqui já citado. Também é
importante dizer que, no que se refere à criação das creches – CECI e CAS –
fontes documentais apontaram para a composição de um clube de mães que teve
participação ativa por determinado período nestas instituições.
A partir da nova configuração política e social e a inserção feminina cada
vez maior no mundo do trabalho, uma das medidas tomadas pelo Governo do
Estado de São Paulo, sob assessoria do Fundo de Assistência Social do Palácio
do Governo (FASPG) foi a criação do Decreto N. 18370 de 08/01/1982, que
determinava a instauração do Programa Centros de Convivência Infantil- CCI -,
em resposta à grande demanda social que dirigia as mulheres para o trabalho fora
do lar, e que precisavam de um local para abrigar e cuidar de seus filhos durante o
tempo em que estivessem no trabalho. Dessa maneira, os Centros de Convivência
Infantil surgem tendo como característica a
prestação de serviços a um segmento populacional determinado: mães, trabalhadoras do serviço público, assalariadas. Desta forma, o universo a que se destina ao nível institucional é: a administração pública direta (secretarias estaduais), e a administração pública indireta (Autarquias – por exemplo as universidades e empresas estatais).” (REIS, 1997, pag. 64-65).
O projeto de implantação dos CCI’s fundamentava-se ainda em dados que
remetiam às mudanças sociais da época, como a existência de um número
reduzido de creches, - principalmente para o atendimento de alguns órgãos
estaduais -, o crescente número de mulheres no mercado de trabalho e a
necessidade de atender seus filhos (SÃO PAULO, 1998, apud REIS, 1997, p. 64).
O Governo do Estado de São Paulo, por meio da criação desse programa de atendimento a infância e sua família, tinha como meta o ajustamento das repartições públicas estaduais às determinações da Consolidação das Leis Trabalhistas (1943),
29
quanto ao atendimento aos filhos de suas funcionárias no local de trabalho, quando este tivesse em seu quadro mais de 30 mulheres trabalhando. Até mesmo as universidades públicas estaduais, cuja administração caracteriza-se como descentralizada, deveriam se adequar ao referido decreto pelo fato de comporem o quadro das repartições públicas. (PALMEN, 2005 p.181)
O mesmo Governo do Estado, chefiado por Paulo Maluf que começava a
implantar os CCI’s no início da década de 1980, indicou o nome do Dr. José
Aristodemo Pinotti ao cargo de reitor da Universidade Estadual de Campinas,
elegendo o 11º nome indicado em consulta pública à comunidade.
Em 1981, o Conselho Diretor (Condi), precursor do Consu (Conselho Universitário), formado predominantemente por diretores de unidade, delegou às entidades de representação das três categorias (alunos, funcionários e estudantes) a realização de consulta paritária à comunidade. Porém, o governador do Estado à época, Paulo Maluf, selecionou o 11º colocado na consulta, o professor José Aristodemo Pinotti, para o cargo de Reitor no período de 1982 a 1986 (USP, ADUSP, 2005).
A escolha do novo reitor trouxe grande insatisfação à comunidade, que
havia indicado como primeira escolha em consulta pública o nome do professor
Paulo Freire. A nova gestão, então, precisava dar início às suas atividades
atendendo a algumas demandas dos trabalhadores, dentre elas, a abertura de
uma creche para filhos e filhas de funcionárias que, retornando ao trabalho após a
licença maternidade de quatro meses (ou menos em alguns casos), teriam ainda,
o direito de amamentar, de acordo com o artigo 396 da “Consolidação das Leis do
Trabalho” (BRASIL, CLT, 1943)15. A primeira iniciativa que se teve registro então
foi a de alugar uma casa nas proximidades da Universidade, para atender a 30
bebês. O ano era 1982. A casa alugada configurou-se como o início das
atividades do atual Centro de Convivência Infantil, o CECI, à época, sob a sigla de
CCI, que correspondia também ao Programa Estadual que começava a entrar em
vigor.
15 Art. 396. Para amamentar o próprio filho, até que este complete 6(seis) meses de idade, a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho, a 2(dois) descansos especiais, de meia hora cada um.
30
As reivindicações por creches na Universidade iniciaram-se, contudo,
segundo Reis (1997) antes deste período. E, por parte da UNICAMP enquanto
empregadora, a primeira manifestação em prol da construção de uma creche
ocorreu no ano de 1975, quando um ofício da própria Coordenadoria de
Assistência Social é divulgado abordando a questão:
A implantação de uma creche na Unicamp apresenta-se como oportuna medida a ensejar que família e universidade se beneficiem e se reforcem. A promoção do bem estar físico, espiritual e social do homem constitui o objetivo primordial da universidade (...) As mães que trabalham ou estudam na universidade deixam de dedicar a atenção, o cuidado e carinho aos filhos (...) muitas destas mães, não contando com pessoas capacitadas para suprir sua permanente ausência do lar, sentem-se preocupadas, angustiadas e tristes com reflexos visíveis no desempenho de suas atividades na Unicamp. (UNICAMP, Processo administrativo nº 3384. 1975, apud REIS, 1997, p. 36)
A autora apontou ainda que neste período, as reivindicações sindicais em
defesa dos direitos trabalhistas, já incluíam em sua pauta a criação da creche. A
então chamada Associação dos Servidores da Unicamp – ASSUC -recebia críticas
por ser composta por funcionários da “alta burocracia da universidade”, e surgiu
então, uma nova chapa de caráter sindical, que incluía em sua luta a creche como
um dever do Estado:
POR UMA CRECHE QUE ATENDA ÀS NOSSAS NECESSIDADES...CRECHE é obrigatório por lei. A maioria dos servidores da UNICAMP (funcionários e professores) tem crianças pequenas em idade não-escolar. Propomos uma comissão de creche formada por interessados, que deverá ser apoiada e incentivada pela Diretoria da Associação, para batalhar por uma creche, que deverá ser mantida pela UNICAMP em condições estabelecidas pelos servidores. (Boletim da ASSUC, s/d, apud REIS, 1997, p.48).
A casa alugada para receber as crianças foi uma resposta dada pela reitoria
para “acalmar os ânimos” da comunidade, após sete anos do primeiro ofício que
abordava a reivindicação. E, embora o atendimento inicial reproduzisse o
pensamento do início do século de abrigar e dar assistência às crianças,
31
aparentemente sem nenhum planejamento das questões educativas, tanto no que
se refere às profissionais que atuariam com as crianças, quanto em questões de
instalações, materiais e mobiliário, a supervisão do local já era realizada por uma
profissional da área da educação.
No ano de 1992, já havia mais de 150 CCI’s no Estado de São Paulo, não
havendo, contudo, nenhuma articulação entre eles. O trabalho de Reis (1997)
destacou que o programa CCI dispunha de diretrizes a serem seguidas na
implantação das creches, mas o Projeto era utilizado apenas como roteiro para
estas instituições, e que, na verdade, só foi colocado em prática nas repartições
públicas que dispunham de recursos humanos e financeiros para tal.
Retomando a discussão sobre a vinculação histórica tanto com as questões
de abrigo e cuidado de crianças, quanto com o trabalho feminino, o CCI da
UNICAMP, que iniciou seu atendimento com capacidade para apenas 30 bebês
em 1982 (UNICAMP, DEdIC, sem data). Tinha como critério para seleção de
matrículas que a servidora da Universidade estivesse em período de
amamentação e esta configurar-se como exclusivamente natural, ou seja, o
aleitamento materno. No ano seguinte foi construído o prédio do CCI, à Rua
Monteiro Lobato, com capacidade para 120 crianças, entre dois meses a dois
anos de idade, porém, mesmo com a ampliação das vagas, o critério da
amamentação natural permaneceu. Neste mesmo ano, no mês de setembro
(UNICAMP, SIARQ, 1984) a direção do espaço elaborou um documento no qual
apresentava seus critérios para atendimento, e também seu primeiro “Regimento
Interno”, que tratava da organização do trabalho.
No início do documento destaca-se que, no mês de abril do ano de 1983, o
Reitor da Universidade designou uma Comissão que ficou responsável por
organizar e implantar o Centro de Convivência Infantil no campus. Dessa forma,
foram criadas então, duas comissões, sendo que uma delas ficou responsável por
organizar os trabalhos no berçário, e a segunda, foi designada para o futuro
maternal, para as crianças mais velhas. Dentre os trabalhos das comissões,
destacaram-se visitas a creches de outras localidades, estudos sobre o tema
creche, seleção de materiais, escrita de documentos, elaboração de treinamento
32
para os funcionários. O documento enfatizou ainda que o aleitamento materno
como critério de seleção justificava-se pelo fato de não haver vagas suficientes
para atender a demanda dos trabalhadores da Universidade, e que, sendo este
um dos critérios para utilizar dos serviços da creche, favoreceria o maior número
de funcionárias, além de contribuir para o desenvolvimento das crianças.
Após inúmeras deliberações, a Comissão chegou a duas conclusões principais: dever-se-ia encontrar uma solução que permitisse favorecer o maior número possível de funcionárias e promover o desenvolvimento satisfatório das crianças. Considerou-se que a maneira mais efetiva de favorecer o maior número de funcionárias seria através de um Berçário para bebês que estivessem sendo amamentados. O fato da lei permitir que a mãe deixe o serviço para amamentar, duas vezes por dia, até o bebê completar 6 meses de idade, significaria uma maior rotatividade no preenchimento das vagas, do que aceitando crianças até qualquer idade fixada arbitrariamente. A exigência da amamentação visava para os bebês o melhor no que diz respeito a sua alimentação nos primeiros meses de vida e consequentemente para sua saúde tanto física quanto emocional, porque os vários contatos diários com a mãe favorecem e fortalecem o elo mãe-filho. (UNICAMP, CCI, Regimento Interno, 1983)
A comissão preconizava ainda que seis meses de amamentação não
seriam suficientes para o bebê, e, dessa forma, a criança ficaria no berçário até os
nove meses de idade, podendo, após este período, ser amamentada pela mãe,
apenas no início da manhã, antes dela sair para o trabalho, e depois, ao final do
dia, quando a mãe retornasse para casa.
Interessante notar que a valorização do aleitamento materno foi uma prática
que permeou por muito tempo o trabalho das creches dentro da Universidade e de
como esta norma para frequentar a creche foi se naturalizando ao longo do tempo
para esta comunidade específica. Nota-se ainda, a força de um discurso científico,
no caso, da saúde, que ensinava e orientava as mulheres a cuidar de seus bebês,
bem como o Dr. Carlos Costa do século XIX. Maria Queiróz, quando iniciou suas
atividades da Creche Área de Saúde, em 1990 deparou-se também com esta
realidade. E aqui, uma primeira memória aparece no trabalho,
33
porque no começo só tinha vaga a mãe que amamentava, porque o intuito era trazer a mãe pra amamentar aqui, [...] Tinha aquela coisa de achar que se a mãe não amamenta, ela não é boa mãe. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.174)
Maria Queiróz tem voz fina, bem baixinha, tom de criança. Dentro dela, a
força de quem saiu do Nordeste menina para buscar uma vida melhor em São
Paulo. Embora esteja na creche desde a década de 1990, nunca deixou os
afazeres domésticos na casa da senhora que a acolheu em sua chegada à
Campinas. Cuidou da casa e da patroa até sua morte, há pouco tempo. As
crianças do Maternal II pensam que Maria Queiróz é mágica, pois de vez em
quando troca sua peruca e aparece totalmente diferente na creche, além de pegar
as cigarras que aparecem nas árvores do parque para cantar em suas mãos.
A memória de Maria acerca da exigência da amamentação natural nos
primórdios da CAS, contudo, foi um pouco diferente das orientações destacadas
no primeiro regimento interno da instituição (UNICAMP, CAS, 1989). Nele, há a
referência também à crianças que poderiam frequentar o berçário mesmo sendo
alimentadas com leite artificial. No entanto, na página sete, sobre os critérios de
seleção para admissão das crianças, indicava-se que, em caso de demanda maior
que a oferta, o primeiro critério de desempate para a vaga seria o fato de o bebê
ser alimentado pelo leite materno.
Ainda sobre o documento redigido um ano após o início das atividades do
CCI berçário, foi possível encontrar alguns pontos que, além da valorização do
aleitamento materno, também se constituíram como práticas da época. Dentre
eles, a ideia de se ter um berçário que funcionasse como “a continuação do lar”. O
local deveria fornecer assistência integral à criança, possuir um espaço tranquilo e
sadio. No caso da falta de vagas, haveria ainda uma classificação sócio-
econômica, que classificava famílias de menor renda com maior pontuação e,
portanto, melhor classificada para conseguir a vaga. Este critério reforçava a ideia
existente na origem da instituição creche de que o serviço deveria destinar-se às
crianças carentes e de fato, não havia ainda, neste período, nenhuma menção
legal de que o Estado deveria garantir creche para todos, por se tratar de um
direito da criança.
34
O trabalho das cuidadoras, denominadas de “atendentes de berçário”
também foi destacado em outra fonte documental, que dizia respeito ao
“Regulamento Interno do CCI”.
Zelar pelo bem-estar da criança, receber as crianças, verificando seu estado geral, higiene pessoal e as trocas de roupas; anotar na ficha de controle diário qualquer informação fornecida pela mãe com relação à saúde da criança; efetuar os cuidados rotineiros de higiene tais como: banho, asseio de cavidades, troca de fraldas; pesar as crianças semanalmente; caso necessário, efetuar controle de temperatura; administrar alimentação complementar segundo as necessidades da criança; manter em ordem a unidade da criança; anotar a informação correspondente à alimentação e à eliminação da criança na ficha de controle diário. Na mesma ficha deverá anotar observações a respeito do estado geral da criança; comunicar à auxiliar de Enfermagem qualquer alteração no comportamento da criança; preparar a criança e suas roupas para a saída diária do Berçário (UNICAMP, CCI, Regulamento Interno do CCI, sem data)
.
Figura 1: Ficha de controle diário das atividades dos bebês que frequentavam o CCI, a ser preenchida pela atendente responsável pela criança. Fonte: UNICAMP/SIARQ
35
O fragmento do Regimento do CCI que indicava as funções da atendente
de berçário, bem como a ficha de controle diária acima apresentada são fontes
que indicam uma atuação voltada para as relações de cuidado e higiene dos
bebês, ilustrando o modelo de trabalho preconizado à época para o atendimento
em creches, conforme aqui já destacado. É possível supor, contudo, que as
práticas de cuidado não se configuravam como únicas dentro da rotina de
trabalho, pois o espaço, desde sua implantação, já contava com uma pedagoga
em sua coordenação. No entanto, o que chama a atenção é o fato de que, estas
práticas de cuidado vinculadas à saúde e assistência perduraram por muitos anos.
Quando eu ingressei na creche, por exemplo, no ano de 2004, por meio de um
concurso público para o cargo já denominado “professor de educação infantil nível
médio”, uma das ações realizadas pelas professoras semanalmente era o controle
de peso das crianças. No trocador, local específico para higiene e troca de fraldas,
havia uma balança e uma prancheta e todas as segundas-feiras, as professoras
pesavam e registravam o peso das crianças de seu grupo. Somente neste período
começou-se a questionar tal tarefa e a pesagem passou a ser feita pela
enfermeira da creche. Nesse mesmo sentido, Maria Queiróz rememorou
algumas práticas que permearam o trabalho ainda na década de 1990,
Antigamente a gente tinha que dar remédio pra criança, lembra quando a gente administrava remédio, fazia inalação, ficava mais ou menos meia hora pra fazer uma inalação, vinha criança com piolho, e gente catava os piolhos das crianças, conjutivite, sabe coisas que não era pra criança ficar na creche, mas ficava. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p. 177)
Retomando os fios sobre a origem das creches dentro da Universidade, em
1983 o clube de mães que havia se constituído na época redigiu o “Regulamento
do Clube de Mães” (UNICAMP, CCI, 1983). O documento apresentava as
responsabilidades do Clube no trabalho do CCI, dentre elas, as “atividades
sociais”, as quais se incluía a promoção de festas em datas comemorativas, a
organização de festas de aniversários das crianças e das “tias” (professoras),
36
compra de materiais, e contribuição em dinheiro mensal. O clube de mães, ao
mesmo tempo em que tem destaque como uma nova organização de um
movimento social, tais quais aqueles descritos por Sader (1988), em especial, a
organização que surgiu na periferia sul de São Paulo ainda na década de 1970,
também implicava em práticas de participação ativa das mães no trabalho da
creche, o que, nos anos seguintes, com as mudanças Legais na área da
Educação, constituiu razão de conflito, especialmente com as “mães do hospital”,
mas esses são fios que serão tecidos adiante. Em 1986, mais duas ações que denotavam o despreparo da Universidade
foram realizadas para atender a crescente demanda dos funcionários pela
ampliação de vagas na creche, bem como da extensão do “benefício” às crianças
de dois a quatro anos. O salão nobre da Faculdade de Educação da Unicamp foi
ocupado por uma equipe do Centro de Convivência Infantil, ampliando o
atendimento das crianças por faixa etária (UNICAMP, CCI, 1986). Além dele, outra
casa próxima à reitoria foi alugada para ampliar o número de vagas para a faixa
etária entre dois e três anos. No ano de 1986, as primeiras crianças que
ingressaram no CCI – denominados “os pioneiros”-, já deveriam frequentar o que
hoje denominamos de “pré-escola”. Na ocasião, a seguinte circular foi enviada às
famílias:
Da: Coordenadora do Centro de Convivência Infantil Às mães usuárias do CCI: informamos às mães que: 1) Em relação as crianças da casinha: com data prevista para o dia 02/06/86, 19 crianças da casinha (os pioneiros) passarão para o salão nobre da Universidade, em espera do prédio definitivo da pré-escola. [...] Aproveitamos para solicitar as mães das crianças do grupo da Magali que doem um prato para seus filhos, porque os pioneiros levarão seus pratos (doados pelas mães) quando forem embora. [...] (UNICAMP, CCI, Circular Interna n 002/86, 1986)
Cabe aqui uma reflexão sobre o fato de que neste período, havia um projeto
Estadual para a implantação de creches dentro das Universidades. No entanto,
pelo menos no que se refere ao CCI da UNICAMP, não havia recursos financeiros
nem para a compra de pratos para a alimentação das crianças. O trabalho foi, aos
37
poucos, se constituindo, pelo comprometimento dos profissionais que ali iniciaram
suas atividades, pelas mães que se configuraram como um movimento social, e
algum apoio oriundo da própria Universidade. Todos os espaços físicos,
originalmente foram impróprios, começando pelo berçário, maternal e por fim, a
pré-escola. Finalmente, em 1987, a construção de um segundo prédio foi
concretizada, e o CCI, tendo sua nomenclatura modificada para CECI contava
então com um local próprio para atender as crianças com idade entre quinze
meses a quatro anos16. Com o novo prédio, construído com salas amplas,
ambiente externo com brinquedos de parque, tanque de areia, refeitório,
visualizava-se o início de um trabalho mais vinculado à educação e às questões
pedagógicas, do que a assistência à mulher trabalhadora.
No período posterior, mais precisamente nos oito anos que se seguiram, a
UNICAMP construiu três prédios com a finalidade de prestar atendimento aos
filhos de servidoras, sendo cada um, correspondente a uma parte de uma colcha
de retalhos que, mais tarde, formaria os “Programas Educativos”. Em meio a
tantos fios, a história foi delicadamente se constituindo e novas linhas foram
trazendo outros personagens: novas crianças, novas leis, novas concepções
sobre a educação. Dessa forma, em 1987, foi inaugurada a “Escola Municipal de
Educação Infantil – EMEI Maria Célia Pereira” através de um convênio entre a
UNICAMP e a Prefeitura Municipal de Campinas. Por ser uma escola municipal,
atendia, além de filhos de funcionários, crianças moradoras da região, com idade
entre quatro e seis anos, período escolar denominado pré-escola. Interessante
notar que o espaço físico da EMEI era dividido com o CECI. Ao entrar no prédio
de três andares, na rampa de entrada do lado direito ficavam as crianças
matriculadas na EMEI. No lado oposto, funcionava o Maternal do CECI.
No ano de 1988, iniciava-se o atendimento das crianças com idade entre 7
a 14 anos, no Programa de Integração e Desenvolvimento da Criança e do
Adolescente – PRODECAD. O órgão foi criado também para atender uma
demanda já existente. Havia muitos filhos de funcionários que frequentavam o
16 A mudança na nomenclatura refere-‐se à questão de que, dentro do Hospital de Clínicas, havia um departamento que já utilizava a sigla CCI, que correspondia ao Centro de Controle de Intoxicações.
38
ensino fundamental em escolas da região de Barão Geraldo. No entanto, as
escolas tinham seu funcionamento em meio período do dia. Os pais, trabalhando
em jornada de 40 horas semanais, requeriam um local para deixar seus filhos no
período oposto ao da escola regular. Em 1987, a Universidade firmou um convênio
com o Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP-, e o Fundo Social de
Solidariedade do Estado de São Paulo – FUSSESP-, e tem início a construção do
PRODECAD. Antes disso, contudo, assim como a história da origem da creche
CECI, uma casa foi alugada para iniciar o atendimento.
Dentre os objetivos gerais e específicos do atendimento deste novo espaço
educacional, estava a organização de atividades que promovessem a formação
integral da criança e do menor deficiente carente, em consonância com as
Diretrizes do Governo do Estado, promover ações integradas da área da saúde e
educação, contribuindo para o desenvolvimento físico, social, emocional e
cognitivo, favorecendo sua integração social, fazer parcerias de trabalho com
Faculdades e Institutos da Universidade, atuar como centro de difusão de modelos
e técnicas de atendimento, estabelecendo programas de estágio e treinamento de
profissionais (UNICAMP, 1987). Ainda segundo o convênio, a população atendida
deveria ser a de filhos de funcionários da universidade, com prioridade aos mais
“carentes”, bem como crianças provenientes de famílias menos favorecidas que
residissem próximas ao campus.
O Cantinho da Física
Fez-se necessário aqui, um pequeno recorte da história que tratou da
criação de uma creche intitulada “Cantinho da Física”. A dissertação de Reis
(1997) apresentou esta instituição desconhecida por muitos que fazem parte da
comunidade da UNICAMP, e, remeter-se a ela neste trabalho é importante, pois,
além do fato de que esta creche também se configurou como parte da história da
educação infantil dentro da Universidade, hoje, 16 anos após a escrita da autora
que apresentou esta creche em seu trabalho, novos fios da história surgiram em
meio ao tecido desta narrativa por meio de fontes documentais encontradas.
39
Existiu, portanto, no início da década de 1980 uma creche dentro do
Instituto de Física Gleb Wattagin (IFGW), conhecido como “Cantinho da Física” –
CICF. Segundo Reis (1997), os dados obtidos foram através de entrevistas com
funcionários que trabalharam no Instituto no período, considerando que eles
próprios relataram que todos os documentos referentes à creche foram queimados
por um dos diretores.
A CICF foi uma creche alternativa, seja por tratar-se de uma iniciativa da própria comunidade do instituto, seja por ter características diferentes das do CECI, tanto no que se refere à estrutura funcional, quanto pela participação da família na organização e gestão da creche. [...] A CICF teve apoio e incentivo da reitoria, tendo inclusive, a presença de assessores do reitor em sua inauguração, em outubro de 1983. Também houve a contribuição da reitoria na contratação de pessoal. [...] Tais fatos levaram os dirigentes do Instituto a considerar a CICF como uma atitude inovadora, que seria bem-vinda principalmente para as funcionárias, pois acreditavam que com a creche as funcionárias poderiam trabalhar melhor. Também a oferta de vagas era extensiva a alunos e professores, o que a diferenciava do CECI, que atendia apenas a filhos de funcionárias durante o período de amamentação. Além do que, a instalação da CICF significava uma certa independência em relação aos órgãos centrais da universidade (REIS, 1997,p.72).
Embora a informação cedida à época de que não haveria mais documentos
sobre o Cantinho da Física, o Sistema de Arquivos da UNICAMP – SIARQ -,
dispõe atualmente dos seguintes materiais: Regimento Interno, Regulamento e
Normas para utilização do Cantinho da Física, todos datando do ano de 1984 e
assinados pelo então Diretor do Instituto de Física, Marcus Guenter Zwanziger.
Também destaquei que uma das primeiras funcionárias da CICF, que, atuou
posteriormente no CCI e foi diretora dos Programas Educativos da UNICAMP,
cedeu-me cópia do “Regimento Interno da CICF”, documento em que algumas
informações foram encontradas:
Regimento da Comunidade Infantil “Cantinho da Física” IFGW/ UNICAMP Art. 1º: A Comunidade Infantil “Cantinho da Física” “CICF”, instalada no pavilhão de ensino do Instituto de Física “Gleb
40
Wattaghin”, da UNICAMP tem como finalidade abrigar, entreter e educar, os filhos de servidores discentes e docentes durante o expediente normal, de acordo com o presente Regimento Interno. Art. 2º: A CICF proporcionará às crianças matriculadas os seguintes benefícios:
I) Alimentação: fornecida conforme orientação nutricional para as diversas idades, nos horários convenientemente estipulados. Quando houver necessidade de alimentação diferente daquela fornecida pela CICF, juntamente com prescrição médica, deverá ser trazido pronta de casa.
II) Medicação: que será ministrada à criança mediante receita médica, cumprindo aos responsáveis fornecerem os respectivos medicamentos e receita.
III) Recreação: com atividades variadas, sob orientação da equipe técnica.
IV) Aconselhamento e orientação Pedagógica para as crianças e, em função destas, extensivos aos seus responsáveis através do Psicólogo. Nos casos em que se fizer necessário, haverá orientação de encaminhamento para as instituições que disponham dos recursos necessários para o atendimento, sempre que tais recursos não possam ser fornecidos pela CICF.
V) Educação: através de pessoal especializado e mediante material criteriosamente selecionado para atender ao desenvolvimento geral de cada criança. [...] (UNICAMP, SIARQ, 1984)
O regimento da creche tratava ainda do número máximo de crianças a
serem atendidas (35), e dos serviços prestados:
Capítulo III – Dos serviços oferecidos e das responsabilidades dos pais Art. 8º: A CICF oferecerá seus serviços a crianças compreendidas na faixa etária de 3 meses a 5 anos e 11 meses, distribuídas em: Berçário, Maternal, Infantil I e Infantil II. Art. 9º: A mudança de uma turma para outra será feita levando-se em consideração a maturidade da criança e não a idade cronológica. Somente quando ocorrer mudança da criança do berçário para o maternal, será considerado para efeito de adaptação ao novo ambiente, e quando necessário, o acompanhamento de um responsável (pai ou mãe) passarem a cumprir a rotina estipulada nas normas de operação. [...] Art. 10º Será vedada a entrada nos recintos da CICF de criança que, embora matriculada, se apresente sem a higiene devida, febril ou portadora de moléstia infecto-contagiosa. [...] Art. 20º: Berçário e Maternal: os profissionais da CICF com experiência em infantes prestarão os seguintes serviços:
41
I. Receber as crianças, verificando: estado geral, higiene pessoal, trocas de roupas e caderneta.
II. Conferir a caderneta; passar as informações à equipe para facilitar o melhor atendimento; anotar as anormalidades da criança verificadas na CICF para o responsável tomar ciência.
III. Manter em ordem a unidade da criança (sacola, objetos pessoais). IV. Controlar as crianças que pertençam ao grupo. V. Brincar e conversar com as crianças. VI. Ministrar as refeições. VII. Incentivar as crianças quanto à aceitação de novos alimentos. VIII. Dar banhos diários. IX. Dar banhos de sol. X. Fazer as trocas de fraldas. XI. Zelar pelo material de consumo e permanente que estejam sob
sua responsabilidade, conservando-os em perfeito estado de limpeza e funcionamento.
XII. Anotar as informações constantes da ficha-padrão de controle diário.
XIII. Comunicar o responsável pelo setor de saúde, qualquer alteração no comportamento da criança.
XIV. Fazer a estimulação sensório-motora progressiva de acordo com a idade-maturidade da criança. Preparar as crianças e suas roupas para a saída (UNICAMP, SIARQ, 1984).
No artigo 21º, o regimento versava sobre os serviços prestados ao Infantil I
e II. Os profissionais que atuavam nesta faixa etária deveriam realizar todas as
ações descritas acima, aumentando o repertório de ações para estimulação das
crianças: “fazer a estimulação verbal, corporal, auditiva, visual, tátil, olfativa,
gustativa, da linguagem, motora e coordenação espacial”.
A CICF contava ainda com o trabalho de psicologia, nutrição e
enfermagem, fazendo parte de uma “equipe técnica”, juntamente com o
coordenador pedagógico.
A creche funcionava em horário administrativo da Universidade, das
08hs.:30min. às 17hs.:30min., e, neste período, organizava a rotina das crianças e
das famílias, a partir do momento que instituiu o horário da visita (pais ou mães
deveriam, no horário de seu almoço, visitar os filhos na creche), além de dois
intervalos durante o dia para amamentação dos bebês menores de seis meses de
idade.
42
Os detalhes sobre o funcionamento do Cantinho da Física disponíveis em
seu Regimento Interno foram relevantes já que a Creche Área de Saúde, embora
inaugurada somente em 1990, manteve algumas práticas que se originaram na
CIFC. A formação da equipe técnica, por exemplo, seguia a mesma configuração.
As atribuições das “cuidadoras” das crianças, também. Este recorte da história,
em certa medida, desmistificou a ideia de que, as práticas da CAS, fossem
totalmente vinculadas à área hospitalar. “Vistoriar” as crianças, averiguar se
estavam em “bom estado geral”, eram práticas higienistas, mas não de
pertencimento exclusivo de uma creche vinculada ao hospital. Estas práticas
apontam para a linha histórica de uma educação infantil já apresentada aqui. No
entanto, há que se considerar também que, no Cantinho da Física, havia uma
preocupação com relação aos “estímulos” e atividades que contribuíssem para o
desenvolvimento das crianças.
Em 1986, as atividades do Cantinho da Física foram encerradas, e as
crianças atendidas, foram então acolhidas pelo CECI, que havia ampliado seu
número de vagas.
A Creche Área de Saúde17
Quando a CAS foi criada, toda uma estrutura havia sido organizada dentro
da Universidade, atendendo aos filhos e filhas das servidoras (em sua grande
maioria), e servidores que ali trabalhavam. A área da saúde, por sua vez,
necessitava de vagas na creche em horário compatível com a jornada do hospital,
os chamados “turnos”, e, embora o CECI atendesse algumas mães trabalhadoras
do hospital, o horário administrativo de funcionamento da creche não resolvia a
questão das mães. Além do vínculo com a área médica da Universidade, outra
característica marcante da CAS é que ela iniciou suas atividades em prédio 17 Nas fontes documentais utilizadas, nota-‐se que a CAS recebeu, no início, diferentes nomenclaturas: Creche do Hospital de Clinicas da UNICAMP, creche sub-‐programa PRODECAD, Creche da Área da Saúde, Creche Área de Saúde. As diferentes denominações dificultaram, inclusive, a pesquisa de documentos no SIARQ, pois, quando se optava para a pesquisa nos arquivos com um dos nomes, os outros que são diferentes excluíam-‐se automaticamente da pesquisa. No entanto, a partir do momento em que se institui a creche como parte dos “Programas Educativos da UNICAMP”, todos os documentos que seguem passam a nomear a creche como “Creche Área de Saúde”. Assim, na narrativa este foi o nome definido.
43
próprio. Não houve nenhuma casa alugada ou espaço adaptado para receber os
bebês. A demanda existia e a iniciativa de construção veio por parte da própria
Faculdade de Ciências Médicas, que, ao firmar parceria de trabalho com outros
órgãos conveniados, conseguiu recursos para o início da obra e por sua
manutenção. No ano de 1987 começou a tramitar na Universidade o processo de
efetivação do convênio para a implantação da creche, entre os meses de agosto
(data encontrada na primeira versão do texto enviada à Procuradoria Geral da
Universidade) e outubro (quando o documento foi aprovado pela Câmara de
Administração – CAD-, e Conselho Universitário - CONSU)(UNICAMP, 1987).
A composição do convênio teve a seguinte configuração: Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP-, Fundo Social de Solidariedade do Estado de
São Paulo- FUSSESP-, Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP-,
Faculdade de Ciências Médicas- FCM- e Hospital de Clínicas- HC-, ficando a cada
um, as seguintes responsabilidades (UNICAMP, 1987):
UNICAMP: responsável pela construção do prédio, localizado em anexo ao
PRODECAD, dispondo de 1000m² de área livre e 300m² de área coberta. Além da
construção, deveria colaborar com recursos financeiros para a alimentação das
crianças, a refeição dos funcionários, materiais de apoio e consumo,
equipamentos e utensílios necessários às atividades do Programa, dentro de suas
possibilidades;
FUSSESP: prestação de assessoria técnica ao Programa, em consonância
com os Programas do Governo do Estado. Também colaborar na alimentação
suplementar;
Faculdade de Ciências Médicas: Repassar ao IRCAMP 5% da verba extra-
orçamentária, durante seis meses consecutivos a partir da assinatura do convênio
(prazo este que poderia ser ampliado). Colaborar com pessoal especializado para
o trabalho, em caso de solicitação do IRCAMP;
Hospital de Clínicas: responsável pela alimentação da creche, incluindo
sábados, domingos e feriados, bem como pela lavagem de roupas. Deveria ainda
fornecer medicamentos e materiais de consumo necessários ao atendimento,
44
colaborar no transporte dos usuários, e fornecer pessoal especializado, caso
solicitado pelo IRCAMP;
IRCAMP: administrar todas as atividades do convênio e colaborar com a
UNICAMP por meio de repasses financeiros. Elaborar também, planos de
atividades para as crianças, considerando os Programas das Secretarias do
Estado e da Educação. Promover recursos para manutenção de equipamentos e
utensílios, e por fim, fornecer atendimento médico e dentário aos usuários.
O mesmo documento que identificava as partes e suas atribuições na
implantação da creche, também dispunha dos objetivos gerais e específicos do
atendimento. A creche deveria ter como objetivo geral, “a promoção do bem estar
do menor, em consonância com os planos e diretrizes do Governo do Estado”, e
acolher os filhos de servidores da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital
de Clínicas. Como objetivos específicos destacava-se o atendimento às crianças
entre dois meses a três anos de idade, o favorecimento ao desenvolvimento físico,
emocional, social e cognitivo dos usuários, e sua posterior integração ao
PRODECAD. A atuação da creche, também deveria tornar-se um modelo de
atendimento, e receber, inclusive, crianças portadoras de deficiência e/ou atraso
no desenvolvimento.
O documento foi finalizado, com a indicação de um Conselho Normativo, a
ser constituído após a conclusão das obras. O referido conselho ficaria
responsável pela construção do primeiro Regimento Interno, e pela política
assistencial da creche, sendo constituído por representantes da Reitoria, do
FUSSESP, IRCAMP, Faculdade de Ciências Médicas, Serviço Social da
UNICAMP, ASSUC, Clube de mães da FCM e HC.
No ano seguinte, quando teve início as obras, fez-se necessário a
instituição de uma comissão que acompanharia toda a execução, uma vez que o
conselho seria criado posteriormente. Assim, em 1988, o Reitor da Universidade
determinou a seguinte portaria (UNICAMP, SIARQ, GR nº332/87):
Fica criada, junto à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, uma Comissão de Assessoria Técnica, composta pelos elementos abaixo, para, sob a coordenação do primeiro,
45
exercer o acompanhamento da implantação da creche da Faculdade de Ciências Médicas do Hospital de Clínicas desta Universidade, até a posse do Conselho constituído nos termos da Clausula Quinta do convênio IRCAMP/UNICAMP: Renato Arruda Fagundes, Cecília Guarnieri Batista, Lucilia Eliana Moreira Sandoval, Dra. Sofia Helena Valente de Lemos Marini, Dra. RiyokoTsuda Bellentani, Sergio Antonio de Simone, Gioconda Picarelli Russo, Paulo Roberto Barbosa Crivelenti. (Em 10 de dezembro de 1987).” Paulo Renato Costa Souza – Reitor da Universidade (UNICAMP, SIARQ, 1987)
Sobre os integrantes da Comissão de Assessoria Técnica indicados pelo
Reitor ressalto que, à parte os funcionários do Núcleo de Desenvolvimento e
Criatividade – NUDECRI - e do Escritório Técnico de Obras – ESTEC - (Sergio
Antonio e Paulo Roberto), que ficaram responsáveis pela obra da creche, os
demais integrantes eram todos pertencentes à área da saúde da UNICAMP,
possivelmente, por se tratar de uma instituição para atender a demanda específica
desta população. Renato Arruda exercia sua atividade como dentista desde 1983.
Cecília Guarnieri era psicóloga e veio como representante do IRCAMP para
compor a comissão. Lucila, que tem como formação acadêmica a enfermagem,
diretora do CECI e, provavelmente fez parte da comissão pela experiência que já
tinha adquirido com a primeira creche da UNICAMP. Dra. Sofia era pediatra e
docente da Faculdade de Ciências Médicas, e Gioconda Picarelli atuava como
Assistente Social do Hospital de Clínicas. A enfermeira Riyoko Tsuda Bellentani,
que à época era funcionária do Hospital de Clínicas, tornou-se diretora da Creche
Área de Saúde desde sua inauguração e permaneceu até o ano de 1999.
Desta forma, em fevereiro do ano de 1988 teve início a construção da
creche do Hospital de Clínicas. O projeto arquitetônico foi elaborado pelo
NUDECRI, e sua execução ficando sob responsabilidade do ESTEC. As
instalações ficaram prontas em março de 1990, e o início das atividades data de
26 de junho do mesmo ano. Sua localização foi escolhida justamente pela
proximidade com a área hospitalar da Universidade. Seu início de atendimento,
assim como o CECI, destinava-se exclusivamente à mulher trabalhadora e em
período de amamentação, e, posteriormente, ampliou seu número de vagas aos
46
servidores e também alunas. A história desta creche entrelaça-se com histórias de
vida de mães, crianças, profissionais da área da saúde, e, fundamentalmente,
mulheres, em especial àquelas que desde o início de seu funcionamento
estiveram naquele espaço atuando junto às crianças, de início como
recreacionistas, e depois, constituindo-se como profissionais da Educação. Esta
história, foi contada por elas a partir do início da década de 1990, quando a
Universidade divulgara o concurso público para a função de recreacionista para o
trabalho na creche que acabara de ser construída, e naquele mesmo ano,
ingressaram na instituição.
Século XX e as trabalhadoras das creches
O trabalho diretamente com as crianças das creches do século XX é
demarcado pela ausência de formação profissional para a função. Embora
existisse o interesse de diferentes áreas do conhecimento, e houvessem
iniciativas que definiam algumas funções dentro da instituição com um nível maior
de instrução, como aqui já demarcado, descrevi aqui um panorama geral do
processo de formação que ocorreu neste período e que ainda no século seguinte
teve influência na organização do trabalho junto aos pequenos de 0 a 3 anos de
idade.
Quando a creche foi criada, ainda nos últimos anos do século XIX, o curso
Normal, que formava professores para atuação no ensino primário já existia.
Accácio (2006) destacou a trajetória das escolas normais brasileiras, demarcando
o surgimento da primeira delas na então província do Rio de Janeiro, em 1835. No
ano seguinte, outra escola normal foi criada na Bahia e, em São Paulo, em 1846,
o curso normal foi fundado e destinado somente a homens.
Este primeiro panorama de instrução de professores no país caracterizava-
se como escasso e com pouca preparação para atender ao ensino primário.
Inicialmente destinado à formação de professores homens, somente anos depois
foi instaurada a educação mista (homens e mulheres), porém sendo ainda os
alunos separados por salas de acordo com o gênero. Nesse contexto, a
47
creche ainda era instituição inédita no país, e ainda assim, quando surgiu, não
havia vínculo entre creche e educação. No entanto, é possível supor, como
destacado por Kuhlmann Jr. (2000) que algumas das professoras formadas pelo
curso normal, posteriormente, encontraram, nas creches um campo de trabalho,
Mesmo que em geral, as mulheres que atuassem diretamente com as crianças nas creches não tivessem qualificação, é de se supor que muitas das que participavam ativamente da supervisão, da coordenação e da programação das instituições eram professoras, carreira escolar que se oferecia para a educação feminina, inclusive para as religiosas, responsáveis pelo trabalho em várias creches. A educação da mulher previa a sua preparação nos mistérios da puericultura, de modo que se tornassem mães-modelo. (KUHLMANN JR., 2000, p.479)
A educação da mulher para se tornar boa mãe seria suficiente para o
trabalho junto às crianças. Caberia, contudo, àquelas cuja formação profissional
diferenciava-se por terem concluído o curso normal, à supervisão e coordenação
do trabalho. Tal realidade definia uma questão importante nas práticas cotidianas
da creche. Por um lado, mulheres que cuidavam das crianças partindo, em grande
medida, de sua própria experiência enquanto mãe; de outro, coordenadoras e
supervisoras formadas pelo curso normal, mas que, provavelmente, não tiveram
nenhum conteúdo ou preparação específica para a atuação neste novo espaço
que começava a ter lugar na sociedade. Não fazendo parte da educação, por certo
o trabalho com os bebês e crianças pequenas não seria referendado no curso de
formação de professores da época. Assim, seria uma profissão a ser construída,
inventada, independentemente do grau de instrução ou função que ocupasse
qualquer pessoa dentro da creche.
Este perfil de organização de atendimento perpassou todo o período em
questão e sua semelhança com o século XXI, não seria mera coincidência. No que
se refere à criação do CECI e da CAS, no período de vai dos anos 80 até a virada
do século, o trabalho também se pautava em tal configuração, ou seja, a
supervisão e coordenação da creche destinava-se às pedagogas (não mais o
magistério), que dividiam o trabalho com outras áreas de conhecimento, como a
48
enfermagem, por exemplo. Àquelas contratas para atuarem com as crianças
(recreacionistas), não havia exigência de formação.
Se o curso normal enfatizava em seus primórdios o ensino primário, em
1896, no Estado de São Paulo criava-se o primeiro jardim de infância do município
ligado ao Ensino Normal do Colégio Caetano de Campos, que deveria então,
viabilizar o estágio para as professoras formadas pela nova proposta educacional
da República. Abria-se aqui, mais um campo de trabalho para as professoras: a
educação pré-primária.
O jardim-de-infância anexo à Escola Normal Caetano de Campos, construída na cabeceira da praça da República na capital de São Paulo, é a primeira instituição pública a ser criada, em 1896, materializando-se a proposta educacional do Partido Republicano Paulista. A escola primária e o jardim anexos seriam um local de estágio para as professoras e difundiriam modelos para as escolas oficiais em todo o estado, por meio da Revista do Jardim de Infância, que teve dois números publicados (KUHLMANN JR., 2000, P.477).
Kishimoto (1988) ressaltou, contudo, que a iniciativa do Colégio Caetano de
Campos permaneceu como único modelo que atrelava a formação do professor e
seu campo de estágio por pelo menos trinta anos, fato que possibilita a reflexão
acerca da falta de uma política do Estado que enfatizasse a formação do
professor para a atuação na Educação Infantil.
Também a partir daí, a profissão, inicialmente demarcada pelo gênero
masculino, passava a ser função das mulheres. Como exemplo, verificou-se que,
em 1901 a Escola Normal do Distrito Federal restringiu as matrículas do curso
normal exclusivamente às moças. (ACCÁCIO, 2006)
Data dos anos 30 o surgimento dos cursos de Pedagogia no país e, neste
período inicial, somente duas Universidades Federais ofereciam a habilitação para
atuação dos professores na etapa que se denominava pré-escolar. Nas duas
décadas que se seguiram, esta habilitação foi extinta, retornando aos cursos
federais somente na década de 1960. Nos anos 50, uma Universidade Estadual e
cinco particulares passaram a oferecer tal formação (KISHIMOTO, 1988).
49
A oscilação na oferta de cursos que formassem professores para atuar na
educação infantil somava-se a uma precária expansão do atendimento para a
faixa etária. A mesma autora que apresentou dados anteriormente indicados
ressaltou ainda que, nos anos 50, por exemplo, haviam 500 pré-escolas no estado
de São Paulo, que seriam fiscalizadas por um serviço composto por professores
“emprestados” de outros órgãos, e sequer possuía um estatuto próprio que
regesse o trabalho. (KISHIMOTO, 1988). Importante frisar que até aqui, não
apareciam informações referentes às creches, cenário mais complicado ainda,
mas difícil de precisar pela falta de dados estatísticos. No entanto, confirmou-se,
no mesmo texto a questão do exercício do trabalho junto às crianças realizado
fundamentalmente por leigos.
Finalizando o panorama geral da formação profissional (ou falta dele) que
caracterizou o século XX e, consequentemente, teve influência na formação do
profissional que hoje atua em creche, apresentaram-se dados de pesquisa
realizada em 1998 que verificava a formação de professores de pré-escola no
Brasil. De um total de 219.593, 20% possuíam formação de nível superior,
contrapondo-se à 66,57% com ensino médio completos. Os demais integrantes do
percentual total, praticamente distribuíram-se entre aqueles que haviam concluído
o ensino fundamental, e outros que não finalizaram esta etapa de escolarização
(KISHIMOTO, 1988).
É neste período (final da década de 1990) que a política nacional
determinava a “Década da Educação”, ou seja, a previsão de que, no prazo de
dez anos as políticas de formação profissional para a educação básica deveriam
prever a formação em nível superior dos professores. E, no intuito de corroborar
para tanto, criava-se uma nova modalidade de curso: o “Normal superior”. E aqui,
uma breve explanação acerca desta modalidade de ensino para formar
professores por duas questões: a primeira, pelo fato de que o curso normal
superior emergiu nas memórias de uma das professoras aqui entrevistadas. Além
disso, tratava-se de uma formação específica para atuação em educação infantil e
séries iniciais do ensino fundamental. A narrativa destacou a iniciativa de
50
separação entre pedagogia e normal superior como retrocesso na formação de
professores.
O artigo 63 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, MEC, Lei
nº9394/96, 1996) destaca a seguinte questão sobre a formação dos profissionais
da educação:
Art. 63. Os institutos superiores de educação manterão: I - cursos formadores de profissionais para a educação
básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental (BRASIL, 1996).
Dessa maneira, o Conselho Nacional de Educação regulamentava em
1999, os cursos normais superiores com a finalidade de formar professores, em
geral, que já atuavam na educação infantil e/ou séries iniciais do ensino
fundamental. Com uma carga horária inicial de 3200 horas, o tempo de duração
do curso poderia ser reduzido para até 1600, sendo 800 atribuídas àqueles que já
haviam concluído o nível médio na modalidade normal, e ainda, 800 horas
atribuídas à atividades de práticas de ensino para todos que já atuavam na área
da educação. (KISHIMOTO, 1999). Dentre as críticas que tal modelo de formação
recebeu, destacam-se a separação entre formação profissional e formação
universitária e práticas de ensino sem supervisão ou problematização. O curso
normal superior foi extinto no ano de 2006, prevalecendo a formação universitária
e o curso de Pedagogia como aquele responsável pela formação de professores
no país.
Vale lembrar, contudo, que a legislação vigente, ao mesmo tempo em que
legitima o professor desde a educação infantil, valorizando seu processo de
formação continuada, também acaba por flexibilizar as exigências para atuação na
área. Como exemplo, é possível citar a Lei nº 12796, de 2013, que faz alterações
na LDB de 1996, porém, mantém o mesmo conteúdo ao abordar, no artigo 62, a
formação do professor:
51
Art. 62.: A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal (BRASIL, 2013).
Tais informações sobre o processo histórico de formação de professores e
origem e expansão das creches no país apontam para uma série de contradições
que já estavam presentes no surgimento da CAS, em 1990, e que, no decorrer de
sua primeira década de funcionamento apenas reiterou, não somente na CAS,
mas na educação infantil de maneira geral, o campo de conhecimento ainda em
construção e em disputa. Afinal, ao mesmo tempo em que a LDB de 1996 integra
a educação infantil na educação básica, cria um curso destinado àqueles que já
atuavam com as crianças pequenas. Além disso, enfatiza a formação continuada,
mas delibera o nível médio como suficiente para atuação.
Contudo, o capítulo seguinte retorna aos anos de 1990 e apresenta as
protagonistas da narrativa que passariam ainda por todo este processo.
52
53
Capítulo II: Mulheres cuidadoras e suas memórias. A creche na década de 1990.
Primeiros fios da memória
Figura 2: Imagem destacada no Jornal da UNICAMP datada de 20/01/1990 que informava a comunidade sobre a construção da nova creche.
Fonte: SIARQ/UNICAMP
Creches preveem mais 470 vagas “Creche 24 horas Ao lado do prédio da pré-escola, também próximo ao Pronto-Socorro, e com projeto do Laboratório de Habitação do Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade (Nudecri), a creche para atender aos filhos do pessoal da saúde terá cerca de mil metros quadrados de área interna construída e de área externa. O local está em fase de acabamento e deverá estar pronto em fins de março. Até lá, as crianças serão atendidas no Ceci, porém no horário normal de funcionamento. (...) A proposta, no entanto, é que essa creche receba as crianças durante 24 horas, em esquema de três turnos, sendo 120 crianças de dois meses e meio a quatro anos em cada período (...)” (Jornal da UNICAMP, 20/01/1990)
O jornal da UNICAMP anunciava aos servidores que a nova creche estava
quase pronta. De lá para cá, vinte e quatro anos se passaram. Para tecer os fios
desta história poderia escolher diversas maneiras, e buscar interlocução com
diferentes perspectivas teóricas. O tecido que decidi costurar, contudo, buscou
alinhavar suas linhas a partir das histórias de vida e de formação das professoras
e o trabalho do pesquisador a partir da memória e, principalmente, do conceito de
história e rememoração em Walter Benjamin,
54
O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (BENJAMIN, 1985, p.232).
O texto “Sobre o conceito de história” (1940) de Walter Benjamin destacou
o termo rememoração como fundamental para o trabalho do historiador que rompe
com a ideia linear da construção histórica,
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo (BENJAMIN, 1985, p.232).
A impossibilidade de “desfiar os acontecimentos” é perceptível, por
exemplo, no capítulo anterior. Mesmo sendo uma escrita que se baseou em
fundamentação teórica sobre a história da instituição creche, seu surgimento no
Brasil e seu desenvolvimento por determinado período, os estudos benjaminianos
contribuem para um olhar histórico não linear. As rupturas e conflitos de cada
período, a relação dúbia entre educação e assistência, os “estilhaços” do passado
em constante relação com o presente, tecem fios que se entrelaçam o tempo todo,
e põe em prova inclusive aquilo que a história “oficial” tem a contar. Ou seja, a
historicidade de uma instituição está para além de sua legalização ou daquilo que
quaisquer documentos oficiais possam abarcar. E aqui então, defini-se a
importância de relacionar história e memória.
55
Assim, passado e presente costuram-se na história da creche tanto no que
se refere às fontes documentais, quanto nas fontes orais, como é o caso das
memórias que emergem ao texto a partir de agora. De início, as professoras
foram convidadas a rememorar seu ingresso na instituição, narrando um pouco
sobre as atividades que exerciam antes de iniciar o trabalho na creche,
aproximadamente no período em que a notícia de jornal acima circulava dentro da
Universidade.
eu trabalhava, era monitora de ônibus, sabe assim, numa escolinha que tinha no Cambuí, e a gente ficava assim, no ônibus orientando as crianças, e descia com as crianças, tinha um guarda-sol enorme que a gente descia se tava chovendo, pra levar as crianças até o adulto que vinha buscar, e, tanto quando levava pra casa, quando trazia pra escola, e.... a gente ia cantando com eles, brincando, era monitor de ônibus mesmo, era essa minha profissão. (ELIANA, 2013, p.145)
Eliana é educadora há vinte e oito anos e durante todo este período sempre
trabalhou com educação infantil. Quando pedi a ela que pensasse em uma
apresentação sobre si mesma, e sobre o que gostaria que as pessoas soubessem
sobre ela, destacou o fato de que jamais poderia ter feito outra coisa na vida,
senão estar com as crianças. “As crianças me ensinaram, principalmente, a não
levar a vida muito a sério”.
O trabalho de Eliana como monitora de ônibus era suficiente para
comprovar sua experiência de trabalho com crianças, conforme exigia o edital
Nº014/90 (UNICAMP, SIARQ, 1990), que tornava público o processo seletivo para
a função de “Técnico de Atividades Operacionais Médio A (Recreacionista)”, na
Universidade. As condições para inscrição eram que o candidato tivesse no
mínimo 18 anos, 2º Grau incompleto e experiência prévia com crianças, em
quaisquer segmentos de trabalho. Cabe aqui, uma informação importante no que
se refere a alguns trabalhos que dissertaram sobre a creche, e citaram
informações sobre o concurso em questão.
Dois Trabalhos de Conclusão de Curso – TCC – e uma dissertação de
mestrado apresentaram como fonte documental o edital de número 018/88
56
(UNICAMP, SIARQ, 1988) que trazia informações sobre um processo seletivo
público para o cargo de recreacionista. Acontece que tal informação não procede,
considerando que este concurso provavelmente referia-se ao CECI, pois, no ano
de 1988 (publicação do edital), a CAS não estava pronta. Além disso, as fontes
documentais encontradas, tanto no SIARQ, quanto na CAS, que tratavam
sequencialmente, do edital de abertura do concurso, da relação dos candidatos
habilitados, e finalmente, da convocação para o início dos trabalhos, formam uma
parte importante do tecido da história da creche que havia sido narrada
erroneamente. Afinal de contas, um dos trabalhos que utilizou como referência o
edital errado, trazia a informação de que, para ingressar na CAS, a recreacionista
deveria possuir o curso de magistério, o que não se confirmou, nem a partir da
documentação correta, tampouco com as memórias das entrevistadas.
Retomando a questão sobre as exigências para a realização do concurso
das recreacionistas, a candidata Antonia trazia em sua história de vida outro tipo
de experiência com crianças,
Então, eu tava no hospital. Porque na verdade assim, era duas coisas que eu tinha um sonho, era ser professora e ser enfermeira. Primeiro era ser professora, mas era aquela coisa de criança né, que você tem sempre uma professora que você gosta e admira. Então queria ser professora. Mas depois, quando eu tinha uns 15 anos eu decidi que ia ser enfermeira. E eu vim pra Campinas e aí tive uma oportunidade de fazer um cursinho de 3 meses que era de atendente de enfermagem, e foi na época que a UNICAMP tava realmente chamando o pessoal pro hospital começando aqui em Barão Geraldo. Daí vim, e era como atendente. Aí no caminho eu falei, meu Deus não é isso que eu quero. Eu trabalhava na pediatria e aí assim, me deixava muito triste as coisas, sabe, eu ficava deprê mesmo (ANTONIA, 2013, p.136).
Antonia não quis apresentar-se no texto, preferiu que eu escrevesse algo
sobre ela. O que dizer sobre a primeira professora que conheci ao ingressar na
creche? Ao chegar à creche, em meu primeiro dia de trabalho, passei a conhecer
os espaços e a observar a atuação das recreacionistas. Encontrei Antonia, no
espaço denominado “trocador”, em um momento de higiene de um dos bebês de
sua turma. Mãos tranquilas e afetivas trocavam a fralda enquanto palavras em tom
57
suave conversavam com a criança que a olhava atentamente. Próximo a ela, no
carrinho, outro bebê aguardava sorridente sua vez de ser atendido. Esta é a cena
que aparece como uma das primeiras memórias que tenho logo que ingressei na
creche. A professora Antonia me fez desejar estar ali, mesmo que à época,
fossem para mim tão nebulosos e indefinidos os objetivos do trabalho na creche,
me fez pensar sobre quão privilégio seria fazer parte da vida de alguém tão
pequeno e vulnerável.
Outro exemplo de que a experiência prévia a que o edital se referia fazia
menção a qualquer tipo trabalho em que houvesse contato com crianças, fosse
como babá, monitora, enfermeira, ou simplesmente, mãe apareceu também na
narrativa de Ana,
minha ex sogra trabalhava aqui e falou que ia ter um concurso pra professor, não, pra recreacionista e ela conhecia a diretora que era a R., a R. era diretora dela na época e ela falou que ia vir pra creche e que ia pegar bastante funcionários e que tinha que ter experiência com criança, não importa ser professora ou ter trabalhado em alguma creche, não. Tinha que ter experiência com criança e eu tinha experiência com o meu próprio filho (ANA, 2013, p.121).
Ana é professora da creche desde seu primeiro dia de funcionamento e a
faixa etária que mais se identifica e gosta de trabalhar são as crianças de zero a
dois anos (berçário). Relatou que, nesses mais de vinte anos como educadora da
mesma instituição, já fez parte da educação de centenas de crianças. Fato este,
que lhe traz muito orgulho. Para ela, cuidar e educar é um prazer. Dentre tantas
crianças e tanto tempo, já teve até mesmo a oportunidade e o privilégio de cuidar
de uma criança filha de uma mulher que fez parte de sua primeira turma, em 1990.
Passar por esta e outras tantas experiências a deixa muito feliz e realizada.
Das cinco professoras entrevistadas e aprovadas no concurso, apenas Flor
tinha experiência profissional como auxiliar em uma escola de educação infantil.
No que se refere à formação profissional, Maria Queiroz havia concluído o antigo
curso de magistério. Ana, Antonia, Eliana e Flor tinham o Ensino Médio completo.
Maria Queiroz, que concluiu o magistério no ano de 1985, trabalhava como
58
empregada doméstica e morava na casa em que exercia esta atividade. O local de
sua residência era próximo ao Colégio Carlos Gomes, que oferecia o curso na
época. Então trabalhava e estudava. Sua experiência com crianças foi
comprovada por uma carta de uma ex-patroa de que Maria havia atuado com
babá.
As experiências das candidatas às vagas de recreacionistas da nova creche
remeteram ainda a um período anterior à promulgação da Constituição Federal de
1988. Embora a Creche Área de Saúde tenha sido inaugurada em um período pós
Constituição de 1988, não houve exigência nem de experiência, nem formação
profissional específica para o trabalho com educação infantil, fato que refletia
ainda os aspectos legais existentes antes da última publicação do novo
documento Constitucional. A última versão, contudo, já apresentava a importância
da valorização do magistério e da elaboração de plano de carreira para os
profissionais da área em seu artigo 206:
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I- Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II- Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; III- Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência
de instituições públicas e privadas de ensino; IV- Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V- Valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da
lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurando regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;
VI- Gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII- Garantia de padrão de qualidade. (BRASIL, 1988)
Em 1990, a professora Maria da Gloria Gohn, à época, representante da
Pró-reitoria de Assuntos Comunitários da Unicamp – PREAC- (UNICAMP, acervo
DEdIC, 1990), órgão da Universidade ao qual a creche vinculou-se em 1992,
apresentou um estudo que tratava da Legislação Brasileira a respeito da criança
de zero a seis anos de idade. A autora destacava em seu texto a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional datada de 1961, e que este documento
59
tratou da educação pré-escolar – à época denominada de educação pré-primária –
em dois de seus artigos. O primeiro deles, artigo 23º apenas mencionava que a
educação pré-primária era voltada para as crianças menores de sete anos de
idade, e o artigo seguinte incentivava que empresas que contassem com os
serviços de mulheres que tivessem filhos em idade pré-primária criassem
instituições de educação18.
Dessa forma, na LDB de 61 não houve nada específico, nem com relação
ao atendimento educacional para esta faixa etária, nem com relação à formação
dos profissionais para atuarem junto às crianças. A próxima versão das Diretrizes
Nacionais para Educação foi publicada dez anos depois, em 1971, pela Lei Nº
5692, mas que novamente abordou a questão da Educação pré-primária de
maneira superficial. No entanto, a autora destacou que, a despeito da omissão
legal, a década de 70 é marcada pelo surgimento de berçários e maternais em sua
grande maioria particulares, voltados para a população das classes média e alta, e
a criação de uma rede de pré-escolas públicas. Contudo, nos anos 70 ainda é
marcante a questão assistencial e médica para todo e qualquer atendimento
voltado a crianças até sete anos. Em nível nacional, por exemplo, em 1972 é
criado o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição – INAM -, órgão este
vinculado ao ministério da saúde que tinha como objetivo propor programas de
assistência alimentar para esta população. Já na década de 1980, a demanda
social por creches fez com que o Governo iniciasse o projeto dos Centros de
Convivência Infantil – CCI - como já destacado no primeiro capítulo deste trabalho,
além de uma série de novas iniciativas, dentre elas, a criação do “Fórum Nacional
de Educação”. Esse período foi marcado também pela publicação da Constituição
Federal, que, pela primeira vez,
Inaugura um novo momento na história da legislação para as crianças de 0 a 6 anos. Constitui-se um novo sujeito jurídico: o direito da criança de 0 a 6 anos. Após sua promulgação, surgem
18 Art. 23º: A educação pré-‐primária destina-‐se aos menores até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardins de infância. Art. 24º: As empresas que tenham a seu serviço, mães de menores de sete anos, serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria, ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de educação pré-‐primária.
60
debates em torno de um novo projeto de lei para a Educação Nacional levando a construção de uma nova terminologia: a Educação Infantil para a faixa etária de 0 a 6 anos. (UNICAMP, 1990, p.2)
Após a promulgação da Constituição de 1988 muito começou a ser
discutido sobre a Educação Infantil que começava a se instituir, buscando cada
vez mais desvincular-se das questões de assistência. Repasse de verbas, direito
das crianças, objetivos da educação infantil, instituição de grupos de trabalho
voltados para a temática, enfim, uma série de novas organizações do Estado
entraram em atividade neste período que precedeu a nova e última versão da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgava em 1996. Gohn
(Unicamp, 1990) destacava o “Projeto Jorge Hage”, elaborado em 1990 como um
dos precursores para uma nova LDB:
o projeto Jorge Hage foi elaborado a partir de uma articulação entre diferentes setores que participaram das discussões em torno de uma proposta de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em junho de 1990, o substitutivo que levou o nome de seu relator, o deputado baiano do PSDB, Jorge Hage, foi aprovado pela Camara Federal. Ele contém todo um capítulo sobre a Educação Infantil. [...] A Educação Básica foi subdividida em três grandes fases: a Infantil, de 0 a 6 anos; a Fundamental de 7 a 14 anos e o Ensino Médio, posterior ao fundamental. A Educação Infantil foi subdividida em dois ciclos: creches para a faixa etária de 0 a 3 anos e pré-escolas para 4 a 6 anos. Ela é considerada como a 1º etapa da Educação Básica (UNICAMP, 1990, p. 13).
Sobre a Constituição de 1988, faz-se oportuno atentar para o fato de que o
atendimento em creche aparece no documento em dois tópicos diferentes, sendo,
o primeiro deles, enfatizando o local como direito social dos trabalhadores e em
assistência aos seus filhos:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [...] XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas (BRASIL, Constituição Federal, 1988).
61
Na seção destinada à educação, a creche insere-se um direito a ser
garantido pelo Estado:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade (BRASIL, Constituição Federal, 1988).
Em meio a toda esta discussão política que ocorria no cenário nacional,
dentro da UNICAMP surgia a Creche Área de Saúde. Em sua organização, a
relação destacada por Kuhllmann (2000) no capítulo anterior entre educação e
assistência seria notada por fatores como a não exigência de formação das
recreacionistas, porém, coordenadas por uma pedagoga; a direção da unidade
desempenhada por uma enfermeira deslocada do Hospital de Clínicas para a
creche apontava para o vínculo com a saúde, que inclusive deu nome à
instituição. Mesmo o CECI, de 1982, originalmente configurando-se como uma
proposta de Centro de Convivência infantil, contava com a enfermagem em sua
direção. Mas a relação com a área da saúde, a princípio, não incomodou Flor.
Trazendo em sua história uma experiência de trabalho em outra instituição de
educação infantil, quando chegou à CAS percebeu o espaço como diferenciado e
inovador:
Antes eu já trabalhava com criança, em uma escolinha como auxiliar, mas era muito diferente. Uma creche nova, cheirava tudo a novo, um espaço totalmente diferenciado. Eu lembro que até suspirava, eu tava encantada, porque era uma coisa que nenhuma escolinha tinha. E quando a gente chegou ainda não tinha criança, então nós enfeitamos a creche. Pintamos, recortamos, colamos. E ficou tão bonito! Eu lembro que em uma das salas tinha um enfeite de coração com um zíper, e desse coração saía um monte de coraçõezinhos. Muito legal! (FLOR, 2013, p.160)
Aprovada em 22º lugar no concurso público para recreacionista da creche,
Flor atua no mesmo local desde então, sendo no berçário, seu período de maior
62
experiência. Para ela, tudo passou muito rápido, “o tempo voou diante de meus
olhos”. É apaixonada por contar histórias, com certeza por carregar em sua
memória as que sua mãe contava quando Flor era criança. “As crianças da rua
vinham até minha casa ouvir as histórias de mamãe”. De vez em quando é
possível ver Flor, andando pela creche, fantasiada de princesa, com sua fila de
crianças atrás, inventando algum conto. Com sua voz forte, impossível não notar.
A voz alta, no entanto, pronuncia palavras de carinho para os pequenos, que são
diariamente, recebidos e chamados de “meus amores”, “flor do campo”, “meus
queridos”.
O encantamento de Flor remete a duas questões. A primeira delas é o fato
de que a Creche Área de Saúde foi pensada e construída exclusivamente para
receber as crianças. Diferentemente daquilo que a história destacou como
iniciativas pouco preparadas de atendimento ao público infantil (geralmente locais
adaptados sem nenhuma especificidade para a faixa etária), sua construção foi
pensada em módulos, separando as crianças por idade. Cada um dos módulos
dispunha de banheiros e cozinhas próprios, destinados às crianças que ali
estariam, além de três áreas externas separadas. O berçário, com espaço para o
“banho de sol” dos bebês. O maternal I com um pequeno parque com tanque de
areia, e o Maternal II, para as crianças de 2 a 3 anos, com um parque bem maior,
com amplo espaço para brincar. Para sua inauguração, foi feita uma lista de
compras de tudo aquilo que era necessário para receber as crianças: berços e
colchões novos, utensílios de cozinha, materiais de enfermagem, dentre tantos
itens requisitados ao Hospital de Clínicas da UNICAMP e que foram atendidos
(UNICAMP, DEdIC,1990). A inauguração daquele espaço foi uma ação
totalmente inovadora. Até mesmo em meu caso, que cheguei em 2004, contratada
mediante concurso público já para o cargo de professora e havia cursado
magistério entre os anos de 1997 e 2000, nunca tinha vivenciado, nos estágios
obrigatórios do curso, espaço destinado às crianças da maneira como aquela
creche se organizara. Dessa forma, embora a visão de início ainda remetesse à
assistência e ao direito da mãe trabalhadora, o espaço físico já apontava para
63
uma mudança de paradigma no que se refere às práticas pedagógicas da
Educação Infantil.
Contudo, a segunda questão trazida a partir da rememoração de Flor
aponta para uma reflexão passível de ser realizada a partir dos estudos da
memória e que contribui para pensar sobre a atuação do professor de educação
infantil. Se é verdadeira a premissa de que “não existe um ‘passado em si’, mas
apenas um passado visto com os olhos do presente” (OTTE, 1996), com os olhos
de hoje, algumas das iniciativas trazidas por Flor não seriam vistas da mesma
maneira. A inovação pode ser compreendida no sentido de que tudo foi pensado
para receber as crianças. Os adultos se prepararam e organizaram o ambiente
para a chegada dos bebês, o que foi e é fundamental. Mas hoje, algumas práticas
como a decoração do espaço são questionadas a partir de uma nova concepção
de educação infantil, compreendida muito mais no sentido de centrar-se na
produção da própria criança e na construção de espaços ricos em vivências e
possibilidades de exploração e desenvolvimento. Assim, este “modelo” de
creche não seria mais tão inovador. Longe de criticar o passado, ele deve ser
revisitado e repensado a partir do presente. Reflexão esta que se relaciona às
histórias de vida, mas fundamentalmente, à formação profissional.
Treinamento X formação em contexto na creche: uma primeira experiência
E sobre tal formação, foi ainda em 1990 que aconteceu o primeiro
“treinamento”, para as recreacionistas contratadas, logo nos primeiros dias de
trabalho. Durante as entrevistas, vários termos surgiram para denominar esta
primeira semana: treinamento, curso de formação, palestras, estágio. De fato, foi
um período organizado pela equipe técnica como um momento de treinamento
inicial para o trabalho, já que muitas não tinham nenhuma experiência dentro de
uma creche. E, mesmo para aquelas que tivessem, estava ali sendo inaugurado
um espaço diferenciado, com horários específicos e turnos de trabalho. Embora as
entrevistadas não se recordem ao certo quantos dias ficaram neste processo,
estimou-se que este período durou uma semana inteira de trabalho, dividindo-se o
64
tempo entre reuniões e orientações, além de um estágio no CECI, que era a
creche que já funcionava na Universidade desde 1982.
cheguei aqui na creche, e fomos fazer um estágio em vários lugares, né, berçário e maternal, lá no CECI. No berçário amei! Meu Deus é isso! É isso mesmo que eu quero pra mim, é aqui mesmo que eu quero ficar. Aí fiquei 15 anos trabalhando no berçário. Eu me apaixonei pelos bebês (ANTONIA, 2013, p.137).
Após o período de estágio no CECI, as professoras tiveram uma espécie de
treinamento com as profissionais da então denominada equipe técnica,
Depois veio aqui pra creche, aí a coordenadora pedagógica dava as instruções, a gente ficou quase uma semana e não tinha criança, era só treinamento. Aí de orientação tinha assim, eu lembro que teve uma dinâmica que ela trazia uma boneca pra gente saber como trocar a criança, mas isso era da enfermagem, e tinha uma dinâmica também sobre a mãe, como se fosse a mãe que chegava com a criança, então alguém chegava na mãe e perguntava o que ela comia, sabe aquele procedimento que a gente tem, saber o que a criança gostava de comer, se tinha chupeta, se tinha alguma restrição a comida, ah, muita coisa. A gente conheceu o espaço, procurou saber as duplas com quem que iria ficar. No começo eu fiquei com a Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu primeiro grupo (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p171).
Ana também rememorou esta primeira semana de trabalho com as
orientações que teve, e, em especial, seu encantamento pelo trabalho com os
bebês,
Do jeito pra trocar, o banho a alimentação, mais voltada mesmo pra higiene pessoal e o cuidado mesmo com as crianças. É, e também, aí depois o meu estágio foi no berçário do CECI. Lá naquele prédio, lá embaixo. Era aquele prédio e nisso acho que elas ficavam observando a gente, né, não sei, não lembro direito, mas acho que tinha alguém observando, pra vê o perfil, porque, depois que terminou que elas foram separar as professoras pros módulos que era berçário, maternal I e maternal II, elas disseram que eu tinha perfil pra berçário. E eu adoro o berçário (ANA, 2013, p. 122).
65
Contudo, a partir daquilo que foi destacado nas narrativas, não é possível
nomear este período como um momento de formação. Havia o objetivo de
transmitir informações e conhecimentos acerca do trabalho e inclusive um tipo de
estágio supervisionado pela equipe técnica da unidade. No entanto, as atividades
centravam-se no treino, nas ações práticas a serem desempenhadas pelas
recreacionistas. Não parece ter havido um compartilhar de conhecimentos entre a
equipe, e nem reflexão sobre a atuação na creche. O trabalho reflexivo seria
fundamental para que se considerasse este momento da histórica como formação
em contexto, para além de um treinamento. Ainda assim, até os dias de hoje, as
professoras rememoram este período como importante para o trabalho, e, quando
algum funcionário (professor ou estagiário) ingressa na creche sem nenhum
momento específico de formação inicial (ou até mesmo treinamento) anterior ao
contato com as crianças – fato que é visto constantemente na realidade atual – há
a vivência por parte do grupo de uma perda na qualidade do atendimento a ser
oferecido.
Os fios da história da Creche Área de Saúde começaram a costurar-se
então da seguinte maneira: prédio recém-construído, recreacionistas concursadas,
equipe técnica formada por enfermeiras, assistente social, psicóloga, nutricionista,
pedagoga, toda uma equipe para os serviços gerais, recursos financeiros oriundos
do convênio entre órgãos distintos, curso preparatório para as cuidadoras. Tudo
pronto para receber as crianças, que no dia 26 de junho de 1990, começaram a
chegar.
Início de funcionamento: a chegada das crianças
Eu lembro que na minha primeira turminha a primeira criança foi um menino que chamava R., porque a gente começava assim com 2, 3 crianças, depois iam chegando mais e ia aumentando, e o R. era levado, gente, como no começo era só ele, então era tudo pra ele, só ele então, ele ficava solto, corria naquele espaço grande só pra ele, ahhh, ele era levadinho, loirinho, bem levadinho” (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.171,172).
66
Maria Queiroz rememorou R. com muita emoção e ternura, pois foi a
primeira criança de quem cuidou na creche. Logo que ingressou, foi alocada no
módulo que ficavam as crianças do Maternal I, com idades entre um e dois anos.
Na entrevista, perguntei a ela como era o trabalho neste início da creche,
A gente dava o lanche, depois ia pro parque, fazia atividade, atividade não, brincava de bola, bambolê, brincava. Depois da brincadeira a gente entrava, ia tomar banho, trocava, depois ia pro almoço, almoçava, dormia, aí a mãe chegava e ia embora, não tinha aquele planejamento que você fazia todo dia, depois que começou o planejamento. Aí a coordenadora já tinha o planejamento semanal que ela fazia, era ela que fazia e a gente desenvolvia aquilo lá. Então às vezes ela colocava: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, ela que fazia e a gente colocava em prática alguma atividade que se encaixasse ali dentro, e o projeto era uma folhinha, não tinha esse projetão que a gente faz hoje, com objetivos, essas coisas. Era uma folhinha de projeto, por exemplo, do dia das mães, projeto da semana da alimentação, quer dizer, tinha projeto mas já vinha pronto, era ela quem dava pra gente fazer, pra executar (MARIA QUEIRÓZ, 2013, 172, grifo meu).
67
Figura 3: Trepa-trepa: brinquedo do parque do Maternal Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013
A imagem do brinquedo “trepa-trepa” vincula-se às memórias de Maria
Queiróz e traz a reflexão sobre os materiais utilizados para brincar na educação
infantil. Todas as crianças que passaram pela creche, de alguma maneira
passaram também por entre o emaranhado de traves horizontais e verticais que
permitem aos corpos explorar, subir, descer, passar por dentro, por cima e por
baixo. É possível supor, porém, por sua altura, que o “trepa-trepa”, instalado na
CAS em 1990 era um brinquedo utilizado por crianças mais velhas, maiores.
Embora o objeto ainda seja o mesmo, sua altura foi reduzida há alguns anos atrás,
serrando-se a base. Isso porque as crianças, por volta dos três anos já
conseguem subir até o topo do brinquedo, o que, comparando-se à altura delas,
acabava por tornar a brincadeira perigosa pela possibilidade de queda. Assim,
ressalta-se a ideia da invenção da educação infantil, e da não reprodução de
práticas vindas do ensino fundamental. Nesse, sentido, os objetos tão habituais no
cotidiano da creche devem também ser utilizados para tal problematização.
Assim como a imagem do trepa-trepa, muito pode ser dito a partir da
memória de Maria Queiroz com relação ao trabalho desenvolvido no início dos
anos 90. A começar pela palavra “atividade”, que ela mesma, em sua fala, corrigiu
pelo termo “brincava”. Esse é um importante ponto de discussão até os dias de
hoje quando se reflete sobre o trabalho na creche e que será discutido adiante. Na
realidade, a partir do momento em que a creche passou a fazer parte da educação
básica, configurando-se como um espaço educativo e de direito da criança, há que
se reinventar as práticas de atuação. Surgia então um conflito entre aquilo que
antes era aceito (brincar) e aquilo que agora se pretende ensinar (pedagógico). O
que se defende, contudo, é que não haja tal dicotomia, e que todos os momentos
dentro da rotina da creche estejam contemplados na proposta pedagógica,
inclusive a brincadeira19. E, ao “corrigir” sua fala, Maria Queiroz talvez
19 O conceito de trabalho pedagógico é abordado por diversos autores que atuam nos estudos sobre a educação. No que se refere à educação infantil, especificamente, optei aqui pelo conceito utilizado no
68
demonstrasse que esta concepção ainda não é tão claramente definida nos dias
de hoje. Ou seja, há uma compreensão de que nos anos 90 ainda não havia
intencionalidade naquilo que era proposto às crianças, diferente do que ocorre
hoje.
No entanto, brincar como proposta pedagógica ainda é alvo de conflitos,
como se fosse uma palavra que uma professora não devesse utilizar. Então,
substitui brincar por atividade. Em recente publicação, o Ministério da Educação
promove reflexão acerca da temática, definindo a brincadeira como:
a atividade principal da criança. Sua importância reside no fato de ser uma ação livre, iniciada e conduzida pela criança com a finalidade de tomar decisões, expressar sentimentos e valores, conhecer a si mesma, as outras pessoas e o mundo em que vive. [...] A pouca qualidade ainda presente na educação infantil pode estar relacionada à concepção equivocada de que o brincar depende apenas da criança, não demanda suporte do adulto, observação, registro nem planejamento (BRASIL, MEC, 2012, p.11).
Ainda sobre as memórias de Maria Queiróz, mais uma de suas falas
apontaram para as práticas das recreacionistas na creche.
Não, aqui era só cuidar, o tipo de atendimento era ó cuidar, tinha aquela coisa da recreação que a gente brincava com as crianças. Não tinha aquela coisa de colocar no papel, por exemplo, brincar de bola, não tinha nenhum objetivo pra atingir como uma atividade dirigida era só brincar, e todas as atividades eram assim, não tinha objetivo específico. No fim em toda a brincadeira a criança retém alguma coisa e aprende, mas não era pensado nisso, era brincar por brincar (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.173).
Esta reflexão, segundo ela, veio após a formação profissional e os estudos
sobre educação infantil, muito tempo depois que iniciou o trabalho na creche. documento “(Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil – Volume II – (Brasil, MEC, 2006, p.32) ) no que se refere à proposta pedagógica. Nesse sentido, destaca: a organização intencional das atividades, tanto livres quanto dirigidas; a interação entre as diversas áreas do conhecimento e a intervenção dos profissionais que atuam diretamente com as crianças para suprir suas necessidades. Toda o trabalho deve ser permeado por práticas de cuidar e educar como ações indissociáveis.
69
Antes, contudo, para ela, o trabalho consistia no brincar, na recreação. No
entanto, Maria Queiroz destacou que o planejamento escrito pela pedagoga da
creche mencionava que o trabalho das recreacionistas deveria atingir algum
objetivo: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, como apresentou
em sua fala. Mas como o planejamento chegava pronto, “pra executar”, era como
se a ação, a prática ainda não fosse capaz de tecer fios junto aos aspectos
teóricos sobre a educação infantil que começavam a se alinhavar através da
história. Duas questões podem ser apontadas aqui: a divisão que historicamente é
estabelecida entre o trabalho prático e o saber teórico, e mais uma vez, a divisão
entre brincar e educar.
O primeiro ponto e que emergiu fortemente na creche somente nos anos
2000, com a chegada das “novas” professoras remetia à crítica na história da
educação infantil pela pouca exigência de formação para atuação junto às
crianças, mas que de certa forma era suprida pela formação da coordenação ou
direção, que, no surgimento das creches, aparecia como o curso normal, e,
posteriormente, com a formação em nível superior (pedagogia ou normal
superior). Afinal de contas, qual seria a finalidade de uma cuidadora possuir
formação acadêmica? O que seria pré-requisito para aquelas que iriam somente
brincar com as crianças?
Então a gente fazia assim mais era a parte de cuidar, muito cuidar e mais aquela coisa assim da recreação mesmo, a gente tinha muita coisa assim, toda data tinha festa da primavera festa não sei do quê, brincadeira não sei do quê, porque toda data comemorativa tinha que ter aquelas brincadeiras porque era recreação com a criança a criança brincava muito, então a gente fazia dinâmicas no parque, porque tinha que ser assim porque era recreação, e a criançada..... ah, criança é sempre criança né (ELIANA, 2013, p.148).
Eliana também trouxe em sua fala referência às práticas de cuidado e o
trabalho baseado nas brincadeiras. Apontou ainda, para uma característica
marcante no trabalho da educação infantil, que se relacionava à celebração de
“datas comemorativas”, prática hoje também questionada. No entanto, Maria, a
única recreacionista entrevistada que havia concluído o curso de magistério
70
relatou que inclusive em seu curso as datas comemorativas eram apresentadas
como importantes na educação,
A gente dava muito papel pras crianças, mas tudo já feito pra criança pintar, desenho mimeografado, eu me lembro que eu tinha uma pasta enorme, a professora do magistério mandava a gente fazer aquelas pastas coloridas de datas comemorativas, e aquilo lá era uma sensação pra mim. Usava porque era a prática da época. Não tinha uma que não usava aquela pasta. Tinha aqueles desenhos do dia do índio, aquilo lá pra gente é uma relíquia. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.172)
E assim, o trabalho com as crianças foi iniciando sua trajetória. A instituição
de uma rotina de cuidados diários, com trocas de fraldas no caso do berçário,
banhos, alimentação, sono, foi importante para organizar o trabalho, e, nesse
sentido, a questão da assistência e saúde foi marcante, inclusive porque algumas
práticas da área da saúde foram incorporadas como parte do trabalho das
recreacionistas, como pesar as crianças semanalmente, aferir temperatura,
ministrar medicamento. Práticas estas, inclusive, que perduraram até o ano de
2004, quando as professoras do novo concurso público começaram a chegar e
questionar a finalidade das mesmas.
O trabalho começou, e os anos foram passando. Muitas crianças e suas
mães viveram naquele espaço, que seguiu por anos uma rotina de trabalho
pautada no direito da mulher trabalhadora, e nas práticas de cuidado e assistência
às crianças pequenas. As recreacionistas que trabalhavam aos sábados,
domingos ou feriados, de acordo com uma escala mensal organizada pela equipe
técnica, tinham direito à folga durante a semana, assim como a organização do
trabalho do hospital, e, tal gerenciamento perdurou por muitos anos,
naturalizando-se como prática comum da creche.
Em tanto tempo de trabalho, muitas histórias, infinitas memórias. Muitas
delas ficaram na lembrança das recreacionistas, e, algumas foram rememoradas
nas entrevistas, e, como destacou Seligman-Silva (2000) em seu artigo
“Auschwitz: história e memória”, em que trata dos desafios da historiografia em
71
lidar ainda com um passado recente e das memórias do período nazista, em que
se estimou a morte de aproximadamente seis milhões de judeus, não há como
separar, de forma rígida, história e memória, e, nesse sentido, o historiador pode
valer-se da psicanálise para refletir sobre as memórias da história. Nesse sentido,
Se é verdade que no campo da memória ocorre uma seleção dos momentos do passado e não o seu total arquivamento, ou seja, a memória só existe ao lado do esquecimento, por outro lado, cabe ao historiador – assim como individualmente a cada um de nós- não negar ou denegar os fatos do passado, mesmo os mais catastróficos. Como na figura do catador de trapos que Benjamin identifica com a do historiador: devemos salvar os cacos do passado sem distinguir os mais valiosos dos aparentemente sem valor, a felicidade do catador-colecionador advém da sua capacidade de reordenação salvadora desses materiais abandonados pela humanidade no seu caminhar cego em direção ao “progresso” (SELLINGMAN-SILVA, 2000, p. 84).
A partir da psicanálise é possível pensar que não por acaso, uma destas
memórias “catastróficas” foi selecionada por Ana em sua entrevista. No ano de
1991, quando teve início sua nova turma de bebês, uma das crianças passou mal
na creche e veio a óbito. O ocorrido foi a primeira memória que Ana abordou em
sua entrevista, e trouxe muita emoção naquele momento de rememoração.
Primeiramente, relatou um fato ocorrido no CECI, antes da inauguração da Creche
Área de Saúde:
Na verdade eu era mensageira né, e trabalhei 3 anos e 9 meses no CAISM, e, tive 1 filho aos 18 anos, e na época que eu tive meu filho faleceu uma criança no berçário do CECI, e eu ia trazer meu filho, fui na entrevista de gestante tudo, ia trazer, mas na minha licença faleceu uma criança e eu fiquei com medo e não quis trazer ele a creche, chorei muito, vim trabalhar 1 dia, minha irmã até ficou com ele, ele tava com 4 meses, e no outro dia eu vim e pedi demissão. Aí fiquei em casa com ele 9 meses, antes de prestar o concurso pra recreacionista (ANA, 2013, p. 121).
Depois relatou o ocorrido com seu grupo de crianças,
Aí esses bebês entraram no começo do ano, em 91, em maio mais ou menos e era época de greve, e a gente revezava pra greve,
72
então em um dia saía uma, outro dia, a outra. E naquele dia eu não tava bem, eu me senti mal, e aí a gente voltava pra creche pra revezar com o horário de almoço de quem tinha ficado porque não tinha quem ficasse com as crianças. E aí tinha entrado essa criança, uma menina, e era o terceiro dia dela na creche, ela tinha três meses. E a mãe falou que era pra coloca-la pra dormir de lado, não era pra colocar de bruços, só que a gente tinha uma norma da enfermagem, a gente tinha que pôr todo bebê de bruços, não interessa o que a mãe falava. E essa menina mamava na mamadeira. Aí nesse dia eu fui almoçar, e a gente almoçava no restaurante do HC, aí eu cheguei na porta do restaurante e não entrei. Voltei pra creche. Quando eu cheguei, tinha gente do lado de fora chorando, aí eu entrei assim, e foi horrível, porque eu senti que tinha alguma coisa errada. Aí me explicaram que a mãe veio amamentar, e eu justamente não queria trazer meu filho por causa disso, eu tinha medo, e aí aconteceu justo comigo né, porque era da minha sala, aí a mãe veio amamentar às 11 horas da manhã, eu tinha saído um pouquinho antes, e agente fazia assim, pegava a criança, trocava e ia colocando no berço e a gente ficava fazendo aquele caminho dentro do quarto e olhando, mesmo que estivesse sozinha, você ficava toda hora entrando com um, com outro, e era na porta do quarto o trocador, sempre na porta, e aí a mãe veio e a professora falou que tinha acabado de colocar no berço, e eu lembro que ela gritava, tinha um choro diferente e até se arranhava, parecia que tinha uma dor, sabe, e aí quando a mãe foi pegar ela tava roxa, aí a mãe começou a gritar, e ela tava de bruço, a mãe gritava: você matou minha filha, eu falei que não era pra coloca-la de bruços. Aí a enfermagem fez os primeiros socorros, e levaram ela pro HC, aí já foi direto pra UTI. Aí a gente foi até lá pra ver, aí ela tava entubada, era muito pequenininha, magrinha, foi horrível. Aí naquele dia eu não fui embora, a gente saía cedo, mas eu fiquei aqui fora sentada, aí quando foi umas 4 horas tocou o telefone a diretora atendeu e começou a chorar, a criança tinha falecido. Eu fiquei desesperada. No outro dia a gente foi no enterro, a mãe não olhava pra gente, mas depois saiu um laudo depois de uns 15 dias falando que ela tinha um problema no coração. Porque assim, ela não tinha vomitado, nada, então foi um problema no coração que a mãe também não sabia. E essa menina era a segunda filha dessa mãe, e aí depois ela teve outra filha, mas ela não trouxe mais pra creche. E depois ela veio e nos pediu desculpas, tudo. E isso foi uma tristeza pra mim porque aconteceu justo na minha sala, eu que tinha tanto medo, e eu lembro que depois a gente não colocava criança nenhuma naquele berço, era estranho, o quarto era pra 10 bebês, mas a gente nunca tinha 10, era sempre 9 (ANA, 2013, p.124,125).
Ana chorou muito neste momento da entrevista, a sensação era de que
aquela tragédia acabara de acontecer, nem parecia que havia se passado vinte e
73
dois anos. E, no acervo da creche, o único documento encontrado sobre o ano de
1991 tratava exatamente deste fato, um relatório escrito pela diretora na época,
em que foi descrito todo o ocorrido naquela manhã de maio. De fato, mesmo não
havendo culpados pelo ocorrido, algumas práticas mudaram na creche após
aquele dia. Sempre que houvesse crianças dormindo nos quartos, era obrigatória
a permanência de um adulto. A orientação se mantém até os dias de hoje.
Além disso, o ato de lembrar configura-se como um processo seletivo. Para o sujeito que narra, é impossível narrar tudo, lembrando-se apenas dos momentos significativos do passado. No ato de lembrar, evocamos momentos vividos, remontamos a vivências, trazemos à memória conteúdos vividos, valendo-nos de nossas referências atuais. Nesse ato, experiência e memória se imbricam num processo de metamorfose no qual a identidade se constitui (VIEIRA, 2006, p.16).
De certa forma, a experiência vivida por Ana fez parte de sua constituição
como professora, tanto que ela fez questão de narrar esta história. Tornar pública
esta história, talvez a libertasse de um “fantasma” do passado. Mesmo depois do
ocorrido, ela permaneceu trabalhando no berçário por quinze anos. Além disso,
suas memórias apresentaram ainda outra questão, comum às mulheres que
trabalharam e trabalham na creche. Sua grande maioria foi formada por mulheres,
profissionais e mães, cujos papéis em certa medida misturavam-se em
determinadas épocas, pois, sempre que alguma mulher trabalhadora da creche
tinha um filho, ao retornar da licença maternidade, voltava como profissional, e
como ‘mãe de creche”, e seus filhos tinham vaga na instituição. Nem sempre foi
assim,
Eu lembro também que não iam dar vaga pra gente, quem era mãe não tinha vaga. Aí depois de um certo tempo que completou tudo o quadro de vagas, a lista de espera, aí sobrou as vagas e eu pude trazer meu filho, e ele veio com 1 ano e 2 meses, no maternal I (ANA, 2013, p.126).
Depois, o direito à vaga para os filhos e filhas das mulheres trabalhadoras
da creche constituiu-se como prática comum. Então as mulheres tinham seus
74
filhos, quando retornavam ao trabalho, passavam a atuar nos módulos do
Maternal I ou Maternal II, já que as crianças ficavam no berçário. Quando o filho
crescia e mudava para o Maternal I, se a mãe estivesse trabalhando lá tinha que
trocar de espaço também. E assim, a atuação das mulheres mães ficava sempre
vinculada ao seu filho, até o momento em que este saía da creche, mais ou menos
com quatro anos de idade.
E assim a década de 1990 se passou. O trabalho na CAS solidificou-se e
constituiu-se como referência na Universidade. Muitas mulheres trabalhadoras da
área da saúde tiveram seus filhos na creche.
Tive uma criança na minha primeira turma, um menino que nasceu de seis meses e meio, pesava 650 gramas, cabia numa caixinha de sapato. Ele teve fechamento precoce da moleira e teve que fazer uma cirurgia, e como ele ficou na incubadora queimou a retina, então ele era uma criança que não enxergava e também não podia bater a cabeça. E aí foi difícil! Ele começou a engatinhar e como a gente ia fazer? Ele não podia bater, não podia cair. Aí ele ficou mais tempo no berçário do que as outras crianças, porque demorou mais para engatinhar e andar, e quando ele começou a andar foi para o maternal I. Mas assim, a gente tinha 9 crianças mais ele, nossa turma era de 10 crianças. Com o tempo ele conhecia todas as professoras pela voz e ele ficou na creche até os 4 anos e ele ia sozinho a todos os espaços da creche. Pouco tempo atrás fiquei sabendo que hoje ele é músico. Mas trabalhar com essa criança foi um desafio muito grande (ANA, 2013, p.129).
A equipe de funcionários se manteve por todo o período. Em 1996, com a
promulgação da LDB, novos fios começam a transformar o tecido desta história.
Nas entrevistas, uma das questões dirigidas referia-se a este momento político,
queria saber se as entrevistadas recordavam-se de alguma discussão a respeito
das novas Leis para a Educação Nacional, e, principalmente, da nova exigência
da formação profissional para o trabalho com a educação infantil,
Quando começou a mudar a Lei e disseram que todo mundo tinha que ser professora, mas um pouco antes disso a coordenadora já começou a falar algumas coisas pra gente. A gente fazia o planejamento e passava pra ela e ela via acho que quinzenal e ela dava ok. Então ela já fazia isso antes da Lei que começou a exigir que todo o profissional da Educação tinha que ter pedagogia ela já
75
tinha um fundamento disso aí. Então antes da lei, a creche já tava virando educação (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.174).
Quando Maria Queiróz relatou que, mesmo antes da LDB, a creche “já
estava virando educação”, evidencia algumas práticas que, ainda durante a
década de 1990 começavam a trazer para o âmbito da creche um direcionamento
para o trabalho. Sobre estas práticas, foi possível rememorar nas narrativas as
reuniões que a equipe realizava leitura de materiais que traziam reflexões acerca
do trabalho. E, no contexto maior dos Programas Educativos da UNICAMP, teve
início, em 1992, a “Jornada de Educadores”, que, segundo Chagas (2006) foi o
primeiro evento que integrou todas as unidades do programa (CAS, CECI e
PRODECAD) com o objetivo de oferecer formação em serviço. A autora destacou
que a jornada de educadores, a princípio era oferecida durante o horário de
trabalho, mas que, a partir de 1996, passou a suspender suas atividades em um
dia específico do ano destinada à formação.
No ano 2000, o evento completava sua décima edição, e dispunha inclusive
de inscrições para a comunidade externa à Universidade. Então, para resgatar um
dos objetivos iniciais da jornada, que era a integração entre as unidades a jornada
passava a acontecer a cada dois anos, intercalando suas atividades com um novo
evento que foi denominado “Encontros de Aprimoramento Profissional”, restritos
aos Programas Educativos (CHAGAS, 2006).
E eu lembro que na creche sempre teve um tipo de formação em serviço, até antes de vocês entrarem já tinha, a gente lia algumas coisas, até mesmo da LDB, a gente tinha reunião, às vezes uma vez por mês no sábado vinha todo mundo. Aí tinham os encontros, tinham as jornadas (FLOR, 2013, p.166).
Com relação à retomada dos estudos, tanto em nível médio, quanto
superior, as mudanças passaram a acontecer também nos anos 2000, quando as
cuidadoras iniciaram a costura de novos fios de suas histórias, de vida e
profissionalização, sempre mantendo como tecido de fundo, a creche.
76
77
Capítulo III: Mulheres professoras e suas memórias. A profissionalização
O retorno aos estudos no início dos anos 2000
Uma década de trabalho havia se passado. O trabalho na creche era
organizado em uma rotina diária de atividades, em grande medida, baseadas em
ações de cuidado – troca, banho, alimentação, horário de sono -, entre algumas
brincadeiras denominadas como recreação. Cabe ressaltar aqui, o cuidado em
não se cometer nenhum tipo de anacronismo, pois, da mesma maneira que o
trabalho a partir da memória não abarca uma história linear ou desenvolvimentista,
também não é possível pensar em um trabalho melhor ou pior sem que
contextualize as questões. Assim, como já foi aqui problematizado, as práticas
constituíam-se como aquilo que era possível, ou seja, era a prática que se tinha, e
que inclusive ainda hoje permeia uma série de discussões no campo de pesquisa
sobre a educação infantil, em especial, a creche, e esta é uma importante reflexão
que o trabalho a partir da rememoração possibilitou. Nesse sentido, a narrativa de
Flor destacou pouco sobre as práticas dos primeiros anos de trabalho, e algumas
relações que já eram estabelecidas entre o cuidar e o educar, ainda que não
houvesse clareza da concepção que se estabeleceria a posteriori sobre a
importância deste binômio.
era muito assim cuidar mesmo, muita higienização, era pautado muito no cuidar mesmo e nós trocávamos muitas idéias entre nós sobre o que fazer na sala de atividade, fazia muita coisa com giz de cera, eu lembro que nós cantávamos muito, contávamos muitas histórias de livros, eu sempre tive materiais de feltro que era algo diferenciado na época, aquele famoso flanelógrafo, algumas das meninas tinham fantoches, então eu lembro que a creche começou a comprar isso, livros, a pedagoga muitas vezes trazia as atividades e nós desenvolvíamos, então nós trocávamos muito entre nós, então ficou aquele grupo ali das amigas. Eu vejo sempre as crianças daquela época como felizes, nós não éramos tão didáticas, mas nós éramos amorosas (FLOR, 2013, p.164).
A rememoração de Flor compõe um cenário do trabalho à época. Pensava-
se sobre possíveis materiais, utilização de livros para contação de histórias,
78
fantoches, enfim, algumas iniciativas denominadas hoje como “pedagógicas” já
apareciam neste período. E quando Flor disse que elas (as recreacionistas do
passado) não eram “tão didáticas”, porém “amorosas”, é como se dissesse que
hoje, com a formação, algo mudou na relação com as crianças. Afinal, o professor
de educação infantil pode ser amoroso? Ou demonstrar afeto implica não se tornar
um profissional qualificado? Quem é, e o que faz o professor de educação infantil
nos dias de hoje? São questões que permearam toda a narrativa e que ao final,
buscaram algumas possibilidades de respostas para tais inquietações.
As narrativas das professoras destacaram que, aproximadamente ao final
da década de 1990, a coordenação da unidade começou a falar sobre a nova LDB
e sobre a obrigatoriedade da profissionalização para atuar na Educação Infantil,
considerada a partir de 1996 então, como primeira etapa da Educação Básica.
Uma das questões dirigidas nas entrevistas foi relacionada a esta questão legal
com o intuito de perceber se houve alguma discussão acerca das novas Diretrizes
Nacionais para a Educação na creche. Ana contou que uma das coordenadoras
da creche fez uma reunião com todas as recreacionistas e orientou sobre a
necessidade de adequação à nova Lei,
A coordenadora começou a falar da LDB, que todo mundo tinha que ter o magistério, mas em Campinas não tinha mais nenhuma escola que oferecesse o magistério, isso a gente já tava no ano 2000 e pouco já, acho que 2003, e daí só tinha o curso de magistério em Hortolândia, e era à distância, ou então em Paulínia que era todo dia20. Aí eu optei por Hortolândia, que era 3 vezes na semana, por causa das crianças, porque o P. ainda era bebê. E foi um sacrifício total (ANA, 2013, p.128).
Assim, o primeiro grupo de recreacionistas iniciou o curso de magistério no
início dos anos 2000. Foi uma primeira iniciativa de uma série de novos
acontecimentos que foram alterando as linhas da história desta creche.
20 Optei por utilizar o termo “coordenadora” todas as vezes que as entrevistadas mencionaram o nome da então coordenadora pedagógica da creche, por conta de manter o anonimato da profissional.
79
Fui fazer o magistério em 2002 e tinha uma pressão pra gente ir estudar sim, eu não sei o que poderia acontecer com a gente, mas tinha que ir estudar, porque ficava aquela coisa no ar, aí foi aquela luta pra gente conseguir fazer, aí começamos a fazer em Paulínia, e foi muito legal porque eu realmente não tinha noção nenhuma de nada. Não conhecia nenhum autor, nem de Vygostky, Freinet, Piaget, nada! Por que pra gente era realmente cuidar da criança e pronto! Então o magistério foi muito bom mesmo, eu acho que pra todas nós. No primeiro dia de aula eu cheguei em casa quase 2 horas da manhã, porque não tinha perua pra gente ir embora (ANTONIA, 2013, p.139).
Utilizando a metáfora dos fios que vão tecendo a história, foi como se novos
fios, com cores totalmente diferentes daquilo que se estava habituado a usar
chegassem para compor o tecido da história. Afinal, não se tratava apenas de
voltar aos estudos, mas sim de iniciar uma série de discussões sobre as práticas
daquela instituição, que haviam se perpetuado por uma década. Por exemplo: se a
LDB exigia a profissionalização, dentro da Universidade não havia nenhum plano
de carreira para estas mulheres que estavam voltando aos estudos. Não haveria
nenhum aumento salarial ao concluírem o curso. Outra questão que apareceu
posteriormente tratava-se do fato de que a creche não tinha – e ainda não tem –
nenhum vínculo com órgãos institucionais da Educação Nacional, como as
secretarias municipais ou estaduais. Não há registro junto ao Ministério da
Educação sobre a existência desta creche, aliás, como era a realidade de todas as
creches públicas existentes dentro das Universidades Paulistas – USP, UNICAMP
e UNESP-. Mas esta questão fomentou discussões em um período posterior, a
princípio, a questão pautava-se na viabilidade para que aquelas recreacionistas
voltassem a estudar.
Não me lembro muito bem, mas eu acho que foi porque disseram que se não tivesse magistério não ia poder ficar na creche, aí a maioria começou a estudar, e eu lembro que as meninas iam ter que estudar longe, e com isso o que aconteceu: essas meninas trabalhavam à tarde, e à tarde tinham menos crianças e menos adultos, então nós tivemos que socorrer a turma da tarde. E eu trabalhava de manhã, aí eu tinha que revezar, ia um dia de manhã, outro dia à tarde, porque esse curso tinha só lá em Paulínia, então elas tinham que sair mais cedo pra pegar condução e ir estudar á noite. Eu lembro que eu ficava no berçário pra ajudar e naquela
80
época eu lembro que eu fiquei com a R., que foi na época que o pessoal do concurso novo já tinha chegado (FLOR, 2013, p.163).
O curso de magistério realizado pela primeira turma teve duração de um
ano e oito meses. Quando concluíram, foi a vez de um novo grupo iniciar os
estudos. Neste grupo estava Eliana e para ela, voltar a estudar aconteceu
somente pelo medo de ficar longe das crianças,
Tinha um boato assim, que quem não fizesse o magistério ia ter que sair da creche, então pensa o medo que ficou o povo! Como que a gente ia largar as crianças! Mas era só boato porque teve uma que nunca quis estudar e tá aqui até hoje. Mas eu fiquei com tanto medo de ficar longe das crianças que eu fui fazer. E logo que eu terminei já iniciei a Pedagogia (ELIANA, 2013, p.153).
Este processo durou entre os anos de 2002 a 2005, aproximadamente, e foi
nesta mesma época que novas funcionárias, aprovadas no concurso público
começaram a chegar. As recreacionistas passaram a construir uma nova história,
rumo à profissionalização. E, embora a nomenclatura e a carreira ficassem ainda
estagnadas por mais um tempo, as práticas começaram a mudar.
O curso de magistério me fez olhar para a criança de maneira totalmente diferente, a gente começa a ver a influencia que temos na vida daquela criança, porque antes a gente tinha umas coisas assim: “ah, deixa ele chorar, daqui a pouco ele dorme” sabe, e às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso em como a gente era ignorante mesmo, então eu vejo que mudou bastante, o olhar para a criança mudou, então eu vejo hoje que eu tenho algo mais a fazer. Às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso, nossa como a gente era ignorante, então o olhar com a criança mudou (ANTONIA, 2013, p.139).
81
Figura 4: Peniqueiro utilizado no processo de retirada de fraldas das crianças Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.
A imagem do móvel denominado “peniqueiro” ilustra a narrativa de Antonia
sobre o olhar diferenciado que se passou a ter sobre a criança21. O processo de
retirada de fraldas constitui-se como prática comum na creche. No entanto, no
passado determinava-se uma idade aproximada para o treino de controle do
esfíncter e iniciava-se este trabalho com todo o grupo de crianças. O móvel com
capacidade para três penicos, um ao lado do outro, indicava a proposta de retirar
fraldas de maneira coletiva. No banheiro do maternal havia três peniqueiros como
o da foto. Hoje, no entanto, a ideia de que é preciso observação atenta às
questões maturacionais, físicas e emocionais da criança, apresenta a retirada de
fraldas como um processo individual, e, embora o móvel ainda seja utilizado (mas
21 O móvel denominado peniqueiro é um objeto particular das creches da UNICAMP. Não se tem conhecimento, por exemplo, de ser um utensílio disponível para compra, já que era feito pela unidade de Marcenaria da Universidade. Segundo as professoras e a diretora da CAS que inicou seu trabalho ainda na década de 1980 no CECI, o peniqueiro foi criado no CECI, provavelmente pensado pela primeira diretora do espaço. Em 1990, algumas peças foram levadas para a nova creche CAS.
82
com uma criança por vez), a concepção acerca desta importante etapa do
desenvolvimento da criança é outra.
As novas professoras da creche A chegada das novas professoras à creche foi lembrada em todas as
entrevistas, mesmo não fazendo parte do roteiro inicial de questões. Dois
concursos públicos seguidos foram realizados, respectivamente, em 2003 e 2004.
O primeiro deles, divulgado através do Edital Nº038/2003 (UNICAMP, 2003) tinha
como exigência mínima a formação em nível médio/magistério e experiência
profissional, mas a nomenclatura do cargo ainda era recreacionista. Já o processo
do ano seguinte (Edital 19/2004) não exigia comprovação de experiência, e tinha
como exigência o magistério, ou o curso normal superior, ou a graduação em
Pedagogia, também aceitando se o candidato habilitado estivesse cursando, e,
embora a exigência na formação fosse maior, o salário das novas servidoras era o
mesmo do que o daquelas que ainda não tinham formação específica22.
Dentro do grupo de funcionárias da creche, houve uma espécie de divisão,
ficando então as recreacionistas antigas e as “novas professoras”. As entrevistas
rememoraram este período, ao mesmo tempo com entusiasmo já que todas
apresentaram de maneira positiva o fato de novas pessoas, com outras
experiências ingressarem na creche, mas também com certa tristeza, falando
sobre um período em que o trabalho das então cuidadoras foi desvalorizado por
parte da equipe técnica,
quando chegavam as colegas novas, traziam experiências, porque nós ficamos muito tempo só nós aqui, tinham as contratadas da Funcamp mas era só nós, e assim, ficamos muitos anos só, eu
22 Perguntei à atual diretora da CAS, que, nos anos 2000 atuava como pedagoga do CECI o motivo da diferença entre os dois processos seletivos no que se refere à comprovação de experiência em um deles. Apesar de não ter total certeza da resposta, relatou que o primeiro concurso visava principalmente, as recreacionistas que atuavam na creche em regime de trabalho da FUNCAMP ( contratação de cargos não efetivos), e que passavam por um processo de demissão. Com a abertura do concurso, muitas delas tiveram a oportunidade de realizar a prova e serem aprovadas. Contudo, a aprovação não foi suficiente para o número de vagas existentes, e, por isso, no ano seguinte, novo processo foi aberto, mas sem a exigência da experiência.
83
trabalhei praticamente 12 anos com a mesma colega, tinha assim no módulo, mas a gente não trocava, não tinha a experiência que tem agora, e... eu lembro bem do primeiro concurso que teve, depois acho que de 16 anos, e que chegaram as colegas novas assim e traziam ideias novas, coisas novas, eu acredito que elas aprenderam com a gente e nós aprendemos também, mas era muito bom (ELIANA, 2013, p.154,155).
As memórias de Eliana apresentaram de maneira positiva a chegada das
novas colegas de trabalho, depois de muito tempo em que o mesmo grupo se
manteve. No entanto, outras memórias narraram momentos de conflito desta
história, ou seja, alguns nós em meio a costura da história da creche,
No começo, como a gente vinha de uma educação mais assistencialista, vocês vieram dar uma coisa nova pra gente sabe, vocês traziam coisas novas e a gente aprendia, já não era mais só aquela coisa de atividade no papel, começaram todo mundo fazer os projetos, as oficinas, então pra gente que vinha de uma coisa bem fechada de só comer, dormir, brincar, foi bom. A gente tinha o tempo de experiência, mas parecia aquela coisa do “Tempos modernos”, era uma máquina de trocar criança, a gente fazia tudo rapidinho. Uma vez a coordenadora falou que a gente era “braçal” sabe, e vocês eram de fazer projeto (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.178).
Quando Maria falou sobre o “trabalho braçal”, a qual a equipe técnica se
referia ao comparar as atividades das “antigas recreacionistas” com as “novas
professoras”, o sentimento era de desvalorização de um trabalho que foi realizado
por anos.
A coordenadora falava umas besteiras pra gente, falava que a gente tinha que grudar em vocês porque vocês sabiam das coisas e a gente não sabia nada. Eu lembro que antes de vocês chegarem ela fez uma reunião e falou que vocês iriam chegar, que ia ter gente nova, algumas estavam fazendo faculdade, outras já tinham terminado, mas o ar da conversa era sempre no sentido de que a gente era burra e não sabia nada, era assim que a gente se sentia (ANA, 2013, p.131).
84
Figura 5: Brinquedo Escorregador do Parque do Maternal II Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada po Karina de Oliveira, 2013.
A ação das crianças de descer pelo escorregador remete a uma ação
contínua e repetitiva. Subir a escada e sentar-se à base que fica no alto dele,
esticar as pernas e deixar o corpo deslizar pela inclinação do brinquedo. Vez ou
outra aparece alguma criança que escorrega de maneira diferente. Abre as pernas
ao invés de fechar, ou escorrega com a cabeça para baixo, enfim, faz outro uso de
um objeto tão naturalizado nas brincadeiras do parque, indicando que não há um
jeito certo e único para se escorregar.
O mesmo movimento aconteceu com a chegada da nova equipe de
professoras à creche. O discurso preparado pela equipe técnica (de que estavam
chegando profissionais capacitadas) tinha a intenção de renovar antigas práticas,
mas, ao mesmo tempo em que havia este desejo, elas também estavam há muito
tempo nesta equipe, desde seu início, constituindo uma relação difícil de se
alterar. Dessa forma, o fator de mudança então seriam as novas profissionais que
ali chegavam. Porém, a atitude delas causou muito mais conflito do que
aproximação, que somente a convivência de trabalho foi capaz de superar.
85
Então eu lembro de uma fala de uma chefe que ela falou assim: agora está entrando gente capacitada! E quando ela disse isso nós ficamos paradas assim, olhando, porque era como se nós em todo esse tempo não tínhamos feito nada, e você vai falar o que pra uma pessoa dessa. E quando esse pessoal entrou, praticamente para “nos ensinar”, então o que nós fizemos: nos afastamos e deixamos elas aparecerem para ver o que elas iam nos ensinar. [...] E a gente via que se falava-se muito, mais atuava-se pouco. Uma vez estávamos no parque, e tinha um menininho, e eu ficava só observando que muitas coisas eram de assustar mesmo, porque falava-se muito bem, escreve-se maravilhosamente bem, então eu ficava só olhando, porque você imagina eu que ainda ia fazer o magistério falar alguma coisa pra uma tão gabaritada, eu não tinha o poder da caneta, digamos assim, mas eu observava muito, e o menino no parquinho e a professora tratava mal o menino, ela falava “não suporto esse menino”, “esse menino fede”, ela pegou a fralda e lançou no rostinho do menino, o menino vivia com uma fraldinha bem encardidinha, mas é criança né. E essa professora era considerada como ‘a top’!” (FLOR, 2013, p.165).
Flor, Ana e Maria Queiróz mais uma vez contribuíram, por meio de suas
memórias, com a reflexão necessária acerca do suposto conhecimento que a
formação profissional implicava, contra a experiência daquelas que possuíam
somente a prática do trabalho. Aqui, a dicotomia não se fazia presente somente na
relação das mulheres cuidadoras e suas chefias. A dubialidade permeava também
o próprio grupo de colegas, recreacionistas e professoras. Quem delas estaria
preparada para atuar na creche? Aquilo que elas observavam, na prática, era que
a formação não significava um trabalho de qualidade para as crianças. A formação
técnica muitas vezes até desconsiderava as práticas de cuidado como essenciais
para a faixa etária. E, de fato, quando viam algumas práticas e logo imaginavam
que algumas das profissionais que ingressaram na creche não ficariam ali por
longa data, com o tempo se confirmou.
Em meio a conflitos, novas e antigas funcionárias atuando juntas, o trabalho
foi sendo realizado, afinal, as crianças continuavam chegando, crescendo e
convivendo naquele espaço, e, em 2005 praticamente todas as recreacionistas já
haviam concluído o magistério. Também se tornaram professoras!
86
A formação em nível superior
Aí terminou o magistério, então eu pensei: agora não preciso fazer mais nada! Mas assim, eu gostei do que eu fiz, porque muita coisa que eu vi ali eu já fazia mas não sabia o porquê. Por exemplo: no berçário, tinha as atividades mas não era registrada (escrita), eu não sabia nada sobre o desenvolvimento do bebê (ANA, 2013, p.128).
Assim, as cuidadoras que tinham tantos anos de prática passaram a
conhecer também alguns aspectos teóricos sobre a Educação a partir do
magistério. Junto a elas, as professoras recém-chegadas que também possuíam
uma fundamentação teórica acerca do trabalho passaram a questionar algumas
condutas, como por exemplo, o fato de as professoras ministrarem medicamentos,
aferirem temperatura e até mesmo realizarem procedimentos como inalações em
crianças que frequentavam a creche, muitas vezes doentes. Eliana rememorou
bem este período,
A gente começou a estudar e queríamos mostrar que o professor não é pra fazer isso, ainda mais com tanta enfermeira aqui. Na época tinha tanta enfermeira na creche. E aí aconteceu comigo de questionar a enfermeira e ela me dizer que era uma colaboração que eu tinha que dar e eu falei que não era, porque uma criança minha teve que fazer 15 sessões de inalação e eu fiz as 15, e nessa época a gente começou a fazer projeto pedagógico, e às vezes tinha que parar com a atividade pra ir fazer inalação, e a gente começou a questionar (ELIANA, 2013, p.153).
87
Figura 6: Armário de medicamentos da sala de enfermagem Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.
A sala de enfermagem, onde se localizava o armário de medicamentos,
tinha lugar de destaque no pavimento central da creche. Depois, as mudanças nos
espaços foram alterando tal localização, mas o móvel continua em utilidade, hoje,
muito mais usado pela própria enfermeira da creche em ações pontuais, como por
exemplo, os primeiros atendimentos a uma queda de criança, picada de inseto, do
que àquilo rememorado por Eliana anteriormente.
A partir de então, muito se começou a discutir sobre as práticas na creche.
A equipe contava com reuniões semanais para planejamento do trabalho e
estudos. Foi também durante esse processo que se começava a falar na
possibilidade de continuidade dos estudos, ou seja, de que a LDB previa que
todos os profissionais da Educação Básica deveriam cursar o nível superior em
Pedagogia. No entanto, na época, a maioria das professoras não se mobilizou
com essa questão, mas Ana não foi uma delas,
88
Então, aí em 2005 tinha um convênio entre as prefeituras de Campinas e da região com a UNICAMP, que era o PROESF, que era o curso de Pedagogia para quem atuava na área, e era assim: os professores da Faculdade de Educação coordenavam e orientavam os mestrandos e doutorandos que davam aulas neste curso23. E aí a gente tinha terminado o magistério em 2004 então eu incentivei as meninas porque era uma oportunidade pra gente, porque o convênio era só para as prefeituras, mas o sindicato daqui foi atrás e conseguiu liberar pra gente também. E era a última turma do PROESF. Só que as meninas ficaram com medo, acharam que a prova seria igual ao vestibular, muito difícil. Mas não custava tentar! Aí elas não quiseram, as professoras mais velhas, da minha época, algumas meninas novas do concurso foram, mais eu não conhecia direito, então eu fui sozinha. No dia de fazer a inscrição eu não tinha dinheiro e quase desisti, mas aí a V. me ligou no final da tarde, dizendo que ia imprimir minha inscrição e ia pagar pra mim. E nessa época a gente ir estudar não ia mudar o salário em nada, mas eu achava que ia ser bom pra gente, pro nosso trabalho, mas aí eu fui. E foi um sacrifício, porque era todo dia, e meus filhos eram pequenos (ANA, 2013, p.129).
Assim como Ana, várias outras professoras que só tinham o magistério e
acabavam de ingressar na creche, aproveitaram a oportunidade que o PROESF
viabilizou e foram estudar. Além da formação profissional, o curso de Pedagogia
também possibilitou o estreitamento de laços entre as professoras, e a equipe foi
se tornando cada vez mais uma unidade, graças aos objetivos comuns de trabalho
e formação.
Aí depois da faculdade eu conseguia fazer os projetos. Em 2006 quando eu ainda estava estudando, eu lembro que no maternal I a gente fez o projeto da casinha que foi super legal, aquele ano o trabalho fluiu, e ao mesmo tempo em que eu estava estudando também tinham vocês novas do concurso (ANA, 2013, p.130).
23 PROESF: Programa Especial para a Formação de Professores em Exercício na Rede de Educação Infantil e Primeiras Séries do Ensino Fundamental da Rede Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de Campinas. Curso oferecido pela Faculdade de Educação, do qual algumas professoras da creche fizeram parte. O programa funcionou entre os anos de 2002 a 2008 e formou um número aproximado de 1600 professores que já atuavam na área. (SIVALLE, 2009) file:///D:/Carla/Downloads/SivalleLucianaTeston_TCC.pdf
89
Eliana trouxe em sua narrativa o fato de ter ingressado no chamado curso
“Normal superior” juntamente com a dúvida se tal graduação seria adequada para
sua função. E, por fim, a extinção do mesmo e sua mobilidade para o curso de
Pedagogia. Este exemplo demarcou um pouco sobre o período destacado por
Kishimoto e que foi aqui descrito.
então eu lembro que eu comecei fazendo o curso, era normal superior, e o pessoal falava que esse curso não iria valer mais, e eu queria fazer pra poder melhorar meu salário, eu não queria sair da UNICAMP, [...] Só que eu tava fazendo, era eu, a Flor, mais um pessoal. Aí o que aconteceu: no meio do curso eles mudaram a grade do curso, porque realmente não ia mais ter esse curso. Aí aumentaram o curso em 6 meses, e aí virou Pedagogia (ELIANA, 2013, p.154).
Na mesma medida em que o magistério e a continuidade da formação em
nível superior emergiram nas narrativas como possibilidade outra de desempenhar
o trabalho junto às crianças e, principalmente, a maneira de compreender as
relações que se estabeleciam entre saúde, assistência e educação na creche,
desde sempre naturalizadas na equipe, os estudos foram também criticados pela
ausência de relação entre os saberes e as práticas da creche.
Mas eu aprendi realmente muito pouco lá (na faculdade). Era um grupo que não queria nada com nada sabe, porque eu acho assim, mesmo sendo à distância, se você quiser aprender e aproveitar, você consegue, dá pra fazer muita coisa, mas aí a professora também não queria. Duas vezes eu cheguei a discutir na sala, mas aí, mesmo no meu grupo de colegas, elas realmente só queriam o diploma, então não adiantava (ANTONIA, 2013, p.140).
A dificuldade em estabelecer esta relação aparecia ao longo da história,
seja na dicotomia entre o saber da coordenação pedagógica e o trabalho “braçal”
das recreacionistas; seja no impacto que as “novas professoras” trouxeram ao
chegarem à creche com diploma, porém com pouca ou nenhuma experiência. E,
nas narrativas, muitas vezes a formação profissional apareceu como importante
pelo fato da retomada aos estudos e pela legitimação de um saber que já existia
90
nas recreacionistas. Porém, o conteúdo do curso em si não se destacou como
principal elemento para aprimorar o trabalho,
O magistério ajudou muito! A faculdade também ajudou. Porque nas aulas nós conversávamos entre nós. Tinham pessoas de outras áreas que também contribuíram, porque nessa época o Estado começou a pedir para os professores de outras áreas a Pedagogia também. Então foi enriquecendo. [...] Eu acho que o conhecimento amplia, te abre novos horizontes. Você aprende mais, presta mais atenção, fica com os ouvidos mais antenados nas crianças (FLOR, 2013, p.166).
Há que se problematizar esta questão. Por que a profissionalização, que
deveria contribuir, aprofundar, aprimorar a prática acaba por surgir como fator de
conflito?
Kishimoto (2005) publicou artigo sobre a temática que vai ao encontro com
as questões pontuadas pelas professoras. Nele, analisou doze relatórios de
avaliação de cursos de Pedagogia com magistério em Educação Infantil de
instituições privadas. Tais documentos referiam-se ao período entre 1998 e 2001.
De acordo com os dados da pesquisa, de maneira geral os cursos eram
organizados em dois grandes blocos, sendo o primeiro e maior das disciplinas de
formação comum, e as demais relacionadas a habilitações (pelos menos duas). A
estrutura curricular enfatizava a formação do pedagogo e falha na falta de
especificidade, principalmente no que tange à Pedagogia da Infância,
O desenvolvimento e a aprendizagem, tratados de forma teórica e positivista, não contemplam o contexto da criança até os seis anos, não focam seus saberes, as questões de subjetividade, pluralidade e diversidade culturais, gênero, classe social e etnia. A superposição e a fragmentação de conteúdos são constantes, sem eixos integradores para a formação do adulto, futuro(a) professor(a) e da criança (KISHIMOTO, 2005, p.3).
Outro ponto importante destacado pela autora tratou da falta de foco na
formação do professor pesquisador. Para ela, o professor incentivado e orientado
a formar-se também como pesquisador, tem maior capacidade de refletir sobre
91
sua própria prática, torna-se mais competente, documenta mais seu trabalho,
aproximando teoria e atuação. No entanto, os cursos de Pedagogia compilavam
as disciplinas de pesquisa a teorias metodológicas e métodos estatísticos, o que
acabava por produzir um efeito oposto no professor, distanciando-o da pesquisa
(KISHIMOTO, 2005).
Os cursos de Pedagogia analisados pela autora destacaram-se ainda pelo
pouco conteúdo específico sobre Educação Infantil, constituindo em torno de dez
a dezesseis por cento da grade curricular. Dado este refletido diretamente na
prática do trabalho. E mais uma vez, cabe aqui a pergunta: o que faz um professor
de creche? O que se trabalha com crianças tão pequenas, com os bebês?
Considerando o período estudado por Kishimoto (2005), pode-se supor que,
possivelmente, as recreacionistas da creche, ao retomarem seus estudos, foram
inseridas nesta forma de matriz curricular dos cursos de nível superior em
Pedagogia. Assim, embora todas as narrativas destacassem a importância da
retomada dos estudos, o conteúdo em si dos cursos não emergiu claramente em
suas falas. Em alguns momentos, como destacou Eliana, era possível visualizar a
prática ao ouvir a teoria,
Tinha coisa que a gente via e ria porque a gente tava lá na aula e a professora falava alguma coisa e uma olhava para a outra e ria, porque ela falava de coisas que a gente fazia mas não sabia o porquê. E ela tava mostrando pra gente, a teoria! (ELIANA, 2013, p.153).
Havia, portanto, um processo de legitimação dos saberes já existentes. No
entanto, não ficou evidente nas narrativas, que houve uma apropriação deste
saber teórico. Nenhuma das entrevistadas chegou de fato, a abordar nenhuma
questão teórica, e, esta constatação, vai ao encontro dos estudos de Kishimoto
(2005) aqui abordados. Se não há uma ênfase na formação do professor
pesquisador, e se os conteúdos visam muito mais o trabalho no ensino
fundamental do que na educação infantil, como corroborar de fato, com aquelas
que voltaram aos estudos muito mais por uma necessidade do que por um desejo,
e que já atuavam na creche há tanto tempo? É certo que a retomada dos estudos
92
possibilitou certa clareza e entendimento acerca do trabalho pedagógico a ser
desenvolvido na creche. Porém, ficou claro ainda, relacionando as narrativas com
uma breve análise sobre os cursos, que não é qualquer trabalho pedagógico que
pode ser considerado adequado dentro da educação infantil, especialmente, na
creche.
Como exemplo material, as imagens que seguem da mesa e cadeira
utilizadas na creche ilustram a importância de pensar sobre este ponto. Estes
objetos que têm finalidades diversas (desde alimentação, até realização de
atividades como desenhos, pinturas, etc), vêm de um modelo do ensino
fundamental. O tamanho não é adequado às crianças da creche, ou seja, sua
altura não permite, por exemplo, que uma criança de dois anos, permaneça
sentada com os pés alcançando o chão. Há alguns anos, algumas das mesas
disponíveis na creche tiveram sua altura adaptada, seus pés foram diminuídos
para que ficassem mais baixas.
À parte a questão do tamanho adequado dos objetos, sua funcionalidade
também pode ser questionada, uma vez que a realização de atividades
consideradas pedagógicas em que as crianças permaneçam sentadas em
cadeiras, também é uma reprodução do modelo de trabalho do ensino
fundamental. Fazer um desenho, por exemplo, precisa ser necessariamente
utilizando cadeira e mesa? Não há outras possibilidades a serem inventadas na
educação infantil? Certamente que sim.
93
Figura 7: Mesa utilizada pelas crianças para atividades diversas: refeições, pinturas, colagens, etc. Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de
Oliveira, 2013.
A ausência de conteúdos sobre o trabalho na creche evidencia a falta de especificidade da Educação Infantil, reitera a antecipação da escolaridade e o descuido com pressupostos de qualidade, como a integração entre o cuidado e a educação. (KISHIMOTO, 2005, p.)
94
Figura 8: Cadeirinha utilizada pelas crianças
Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.
As relações de cuidado para com a criança pequena não emergiram em
nenhuma das entrevistas como parte do saber pedagógico ou das teorias
estudadas no curso superior. E, muito embora conseguissem estabelecer relações
entre seu trabalho e aquilo que vivenciavam nos cursos de pedagogia, aquilo que
elas já tinham como saber a partir das vivências no trabalho eram supostamente
desvalorizados pelo discurso acadêmico e científico que se estabelecia.
Agravando ainda mais a situação, algumas professoras que ingressaram nos
concursos de 2003 e 2004 traziam em suas experiências práticas do ensino
fundamental diferente daquilo que era vivência na creche. Ora, mas então o que
elas faziam em sua atuação era correto, ou precisavam mudar?
95
Porque tinha muita atividade que a gente fazia, por exemplo, atividade de percepção que a gente fazia com os pequenininhos, tinha muita professora do concurso novo que acordava criança para fazer atividade e muitas vezes eu falava em reunião que não deveria ser assim, eu não era compreendida, porque aí a gente tava vendo só a teoria e jogando a criança fora (ELIANA, 2013, p.154).
O dilema entre “novas” e “antigas” professoras refletia um pouco da
realidade do trabalho na educação infantil. O discurso científico cada vez mais
desconsiderava práticas originárias do atendimento em creche, porém incitava
uma nova organização baseada muitas vezes no saber escolarizado do ensino
fundamental que, por sua vez, não seria adequado à faixa etária que compreende
a educação infantil. Emerge fortemente nesse sentido, no passado mas
especialmente no cenário atual, uma disputa entre as diversas áreas de
conhecimento no campo da educação infantil.
Final dos anos 2000: mudanças no trabalho e reconhecimento do nível superior À parte as diferentes concepções sobre o trabalho na creche que
paulatinamente emergiam na equipe, a relação entre as professoras se fortalecia,
e a profissionalização mais uma vez tornava-se alvo de fios conflituosos com a
equipe técnica, principalmente com as profissionais da área da saúde. Nesta
época, a creche contava com uma enfermeira na direção da unidade, além de três
outras que faziam inclusive o trabalho de supervisão das professoras. Os anos de
2005, 2006 aproximadamente foram períodos de muitos questionamentos a
respeito do trabalho. A pesagem semanal dos bebês no berçário já não era mais
feita pelas professoras, que apenas levavam as crianças à balança e cabia à
enfermeira tal procedimento (que, posteriormente, foi extinto). Aparentemente
estas ações poderiam ser vistas como simples, mas para toda a equipe mudar
práticas que permaneceram por muitos anos configurou-se como grande tensão.
96
Como se os fios que tecessem aquela história estivessem para romper a qualquer
momento.
E teve uma vez quando eu tava cursando a faculdade que a diretora me chamou na sala dela e falou: mas pra quê tanta pedagoga na creche? Não precisa. Esse curso vai ter o diploma da UNICAMP? É igual? E eu mesmo assim insisti, porque eu queria estudar, queria crescer, entender as coisas, porque eu gostava do meu trabalho eu queria melhorar para as crianças. Então a gente tinha o incentivo pra estudar da parte das pedagogas, mas da parte da enfermagem não tinha incentivo nenhum (ANA, 2013, p.133).
No contexto maior dos Programas Educativos da UNICAMP – CAS, CECI,
PRODECAD, EMEI Maria Célia Pereira e Escola Estadual Sérgio Pereira Porto
(sendo estes dois últimos órgãos conveniados, cujos profissionais não faziam
parte dos servidores da Universidade) -, a busca pela profissionalização e os
questionamentos com relação ao trabalho do professor também acontecia. No
PRODECAD, no entanto, os professores eram todos pedagogos, pois a exigência
da formação profissional foi requerida no edital do concurso. Os professores
reivindicavam valorização profissional, credenciamento das creches junto ao órgão
competente. As equipes técnicas de cada unidade reuniam-se com a direção geral
dos Programas Educativos e indicavam que novos fios precisariam começar a ser
tecidos. A direção geral, por sua vez, ocupada por uma das primeiras pedagogas
do CECI, também atuava para que algumas mudanças começassem a acontecer.
No dia 25 de janeiro do ano de 2007, um documento foi enviado à Coordenadoria
da Diretoria Geral de Recursos Humanos – DGRH -, órgão da Universidade do
qual os Programas eram – e são ainda – vinculados, descrevendo um pouco sobre
o trabalho desenvolvido nas unidades, bem como as reivindicações dos
profissionais que lá atuavam. (UNICAMP, DEdIC, 2007).
Sobre o trabalho desenvolvido, o documento referia-se à nova LDB e os
requisitos apontados pela lei sobre a profissionalização dos profissionais que
atuam nas creches, o que justificou, no ano de 2002, a criação de duas novas
funções na carreira da Universidade, sob a nomenclatura de “Professor de nível
médio em Educação Infantil” (para atuação nas creches) e “Professor de nível
97
superior para Educação Infanto-juvenil” (para atuação no PRODECAD). No que
se referia às reivindicações dos professores, o documento seguia com cinco
pautas: Projeto Político Pedagógico – PPP -, Credenciamento dos Programas
Educativos na Secretaria Estadual de Educação, Direito à aposentadoria especial,
carreira dos professores e jornada de trabalho e salários (UNICAMP, DEdIC,
2007).
Sobre o Projeto Político Pedagógico destacava-se a necessidade de
unificação dos programas, constituindo um documento único elaborado por vários
segmentos da comunidade da qual os Programas Educativos faziam parte.
Também neste item tratava-se da criação de um Conselho de Escola. A
elaboração do PPP também seria requisito para atenderem ao próximo tópico da
pauta, que abordava a necessidade do credenciamento dos Programas
Educativos junto à Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.
Dizia que, os CCI’s da UNESP, por exemplo, já haviam sido credenciados.
O documento tratava ainda sobre a aposentadoria especial, prevista na
Legislação trabalhista para professores da Educação Básica com 25 anos em
serviço, além da necessidade da UNICAMP em rever a questão da carreira. Este
ponto trazia dados importantes sobre a situação dos professores com relação à
formação profissional. Em 2007 havia noventa e nove vagas certificadas para
professores de nível médio nos Programas. Destes, vinte e oito haviam concluído
a graduação, seis concluiriam naquele ano e mais quinze no ano seguinte. Oito
professoras haviam ingressado no curso também em 2007, com término da
graduação previsto para 2010. Dessa forma a implantação de um plano de
carreira para esta categoria fazia-se necessário.
No último tópico, sobre jornada de trabalho e salários, a reivindicação vinha
no sentido de ampliar a jornada de trabalho dos professores que atuavam 30
horas semanais, considerando quatro horas diárias com as crianças, e outras
duas em demais atividades afins, como planejamento pedagógico, organização de
materiais, reuniões pedagógicas. No CECI, e em alguns casos na CAS, o trabalho
de oito horas diárias já existia, mas as professoras permaneciam todo o período
com o grupo de crianças, ficando por conta da equipe técnica a organização de
98
horários, dentro da rotina do grupo, para planejamento (durante o horário de sono
das crianças, por exemplo).
De todos os tópicos levados à reitoria, o que se referia ao Projeto Político
Pedagógico era o “nó mais fácil de desatar”. Afinal, o documento já tinha uma
primeira versão escrita por uma comissão que havia sido criada para trabalhar em
sua elaboração, composta por vários integrantes da equipe. O Regimento Interno
para todo o Programa também estava pronto. Para validar tal documentação,
faltava a aprovação da Câmara de Administração da Universidade – CAD- órgão
que no dia 14/04/2009 aprovou o Regimento Interno (UNICAMP, SIARQ, 2009), e
em 02/06/2009 aprovou o PPP. (UNICAMP, SIARQ, 2009). Interessante notar que,
em ambos os documentos, a nomenclatura de “Programas Educativos” foi alterada
para “Divisão de Educação Infantil e Complementar – DEdIC-. A mudança no
nome dos programas consolidava a união das unidades CAS, CECI e
PRODECAD além de configurar uma ação rumo ao credenciamento, pois, se o
registro junto ao órgão da Educação acontecesse de maneira individual, o
PRODECAD provavelmente não conseguiria vincular-se por se tratar de uma
educação não-formal. Dessa forma, a unificação por meio de uma “divisão de
educação” englobaria creche, pré-escola e agora, educação complementar.
Ainda no ano de 2009 a pauta específica de reivindicações retornou no
período em que os trabalhadores da Universidade entraram em greve na época da
campanha salarial, entre os meses de maio e junho. Uma nova coordenação
acabara de chegar à Diretoria Geral de Recursos Humanos da UNICAMP –
DGRH, unidade a qual a DEdIC é vinculada.
E depois, em 2009 quando eu já tinha terminado a faculdade, teve a greve e a Dra. P. veio e a UNICAMP reconheceu o nível superior de quem já tinha aí as meninas que não tinham feito a pedagogia ficaram desesperadas e foram fazer também (ANA, 2013, p.133).
Interessante resgatar este período da DEdIC, mais precisamente, um dia
em específico que fez a diferença na história das professoras. Em todos os
períodos de greve na universidade, a creche realizava sua mobilização, porém
sem interromper totalmente seu atendimento. Em geral, havia uma espécie de
99
revezamento entre as professoras para atender uma quantidade mínima de
crianças. No ano de 2009, contudo, um destes dias de mobilização foi diferente.
No primeiro dia em que a nova coordenadora do DGRH assumiu sua função,
todas as professoras da creche interromperam seu atendimento (com exceção
daquelas recém-contratadas e que estavam ainda em período probatório)
reivindicando, entre tantos itens da pauta específica, o reconhecimento da
escolaridade em nível superior.
No ano seguinte, as professoras graduadas em Pedagogia tiveram seu
curso reconhecido e avançaram no plano de carreira da Universidade, de nível
médio, para nível superior. Contudo, neste período houve uma mudança geral de
carreira dentro da Universidade. Todos os servidores passaram a integrar a
denominada “Carreira PAEPE” (Profissional de Apoio ao Ensino, Pesquisa e
Extensão), e, as professoras, além de não serem atendidas na reivindicação de
uma carreira específica para o magistério, ainda “perderam” a nomenclatura de
professoras, sendo, portanto, consideradas dentro do quadro geral dos
funcionários, como “técnicas”.
A diretora não incentivava a gente a nada. Ela falava: ‘não adiante vocês irem estudar porque isso aqui não vai mudar’. A coordenadora também chegou a falar, ainda mais sendo uma faculdade à distância. Mas eu achava assim, que pelo menos eu ia ler, ia ter aquele compromisso de estudar. E foi bom, porque realmente depois de 1 ano que eu tava estudando teve uma grande mudança aqui que foi com relação ao salário né (ANTONIA, 2013, p.139).
Ainda assim, aquelas que não haviam começado a estudar tiveram o
incentivo do aumento salarial e também foram em busca de formação. Juntamente
com a retomada dos estudos, outras mudanças ocorriam neste período. Em 2010,
a professora R., que havia ingressado no ano anterior como assessora
pedagógica na unidade DGRH, assumiu a direção da Divisão de Educação Infantil
e Complementar. Ela, que havia concluído seu doutorado em Educação, alterou
toda a organização da então equipe técnica que ali permanecera por 20 anos,
retirando a enfermagem das funções de direção e supervisão das unidades,
100
delegando tais funções às pedagogas. Ponto importante também e do qual a
presente narrativa limitou-se a abordar, foi a iniciativa de um curso específico
voltado para o trabalho com crianças de 0 a 3 anos de idade, considerando-o
como parte importante do processo de profissionalização das professoras e
permitiu a reflexão acerca da especificidade do trabalho na creche.
E o trabalho com a organização do espaço, o trabalho com os cantos, isso não foi nem na faculdade, foi no curso, o trabalho com o bebê também, porque na faculdade eu não aprendi nada sobre o bebê, foi com ela, o trabalho com berçário as pessoas não sabem, não conhecem, então o curso trouxe muita coisa, e agora aquela coisa de trabalhar no berçário com planejamento e não com projeto ficou melhor ainda (ANA, 2013, p.133,134).
No ano de 2012, um diretor administrativo passa a compor o trabalho com a
diretora R., e, ao final deste mesmo ano, a direção pedagógica deixa a DEdIC,
ficando a cargo do profissional recém-chegado, a direção geral do órgão. Em
2013, alterava-se novamente o organograma da equipe, compondo juntamente
com a direção, a assessoria pedagógica, assumida por mim, e as diretoras das
unidades (CAS, CECI e PRODECAD) formando um conselho pedagógico que
deveria atuar em conjunto nesta nova organização. No entanto, a eleição de um
novo reitor no mês de maio do mesmo ano, inviabilizou toda a proposta de
trabalho, pois a reitoria nomeou nova profissional para a direção geral da DEdIC e
esta modificou novamente a organização da equipe. Mas estes são fios a serem
tecidos em outras histórias, quiçá por outras memórias.
A formação continuada e em contexto Durante todo o tempo de funcionamento das creches da Unicamp,
iniciativas de formação continuada passaram a ter espaço dentro da rotina de
trabalho. Considerando sempre a época e as concepções políticas, educacionais e
sociais marcantes no trabalho da creche, os cursos tinham nomes, conteúdos e
organizações diversas. O evento denominado “Jornada dos Educadores da
Unicamp”, por exemplo, acontecia desde 1992, e foi ganhando contornos e
101
costuras diferentes com o passar dos anos. Tal iniciativa deliberava dois dias
anuais de suspensão do atendimento às crianças que eram destinados à
formação dos profissionais das creches e do PRODECAD.
No ano de 2010, contudo, a direção geral das Unidades que acabara de
assumir a gestão propôs um curso diferenciado e específico para as professoras
das creches. Com formação em educação e especialização strictu sensu em
educação infantil, a diretora coordenara ainda o curso PROEPRE, voltado para a
formação do profissional de creche24. A partir então desta experiência, propôs a
organização de um curso para as professoras da DEdIC. Foram organizadas três
turmas de professoras para a realização do curso, de duração aproximada de 1
ano, com aulas semanais. À parte os conflitos que surgiram desta organização (o
curso era obrigatório e ofertado dentro do horário de trabalho, o que exigia uma
série de arranjos na dinâmica junto às crianças, o que resultou em muitas críticas
à gestão), a formação foi abordada pelas professoras entrevistadas como positiva
e fator de grandes mudanças na prática pedagógica na creche.
Mas o curso dela deu uma visão de criança, das atividades, de trabalhar os cantos, lá na minha sala tem o cantinho da fantasia, trabalhar com grupos pequenos, porque antes a gente fazia com todo mundo de uma vez e às vezes não conseguia, e no começo eu achava que tinha que ficar que nem mãe, com todo mundo, tudo as crianças perto da gente, então no começo eu não gostei de dividir os grupinhos, mas com o tempo eu vi que dividir o grupo fica mais fácil, você coordena melhor o trabalho, dá pra dar mais atenção pras crianças (MARIA QUEIROZ, 2013, p.176).
O conteúdo do curso ministrado pela própria diretora, e que eventualmente
contava com alguns professores convidados trazia questões específicas da
Educação de zero a três anos de idade. Partindo de apontamentos teóricos como
o histórico das creches no Brasil, e a psicologia do desenvolvimento da criança
(conteúdos comuns nos cursos universitários), um segundo bloco enfatizava a
importância dos materiais e espaços físicos ricos em vivências para as crianças, e 24 PROEPRE: Programa de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Criado na década de 1980 por um convênio entre o Ministério da Educação e a Faculdade de Educação da Unicamp, visa a formação continuada de professores. Disponível em http://www.proepreemacao.com.br/?page_id=398, acesso em 30/07/2014.
102
a atuação do professor neste espaço muito mais como organizador do mesmo,
mediador e observador dos bebês. Para tanto, além dos textos o curso oferecia
vídeos e vivências baseados no modelo de educação infantil europeu,
principalmente no trabalho desenvolvido em “Reggio Emilia”25.
Os projetos desenvolvidos a partir do interesse e curiosidade das crianças
foram temas de diversas aulas do curso de formação. A prática denominada como
“Pedagogia de Projetos”, difundida em diversos países já era conhecida pelas
professoras da creche, porém, aprofundada com a formação.
Também se discutiam as culturas infantis, linguagens e expressões das
crianças, além da importante documentação e avaliação pedagógica do trabalho,
que deve estar presente durante todo o processo. Uma das temáticas que mais
chamava a atenção referia-se ao trabalho no berçário e na possibilidade de
oferecer novas e positivas vivências aos bebês. O conceito de “educador-
referência” e da atenção exclusiva e individual às crianças de menor idade
fundamentavam-se na obra de “Emmi Pikler”, totalmente desconhecidos por nós
até então, embora, na prática, Eliana, por exemplo, já tinha consigo alguns
fundamentos deste trabalho26,
Uma vez eu tava filmando uma criança pra um estágio do magistério. E eu fui filmar uma professora do concurso novo que chegou trocando uma criança, e ela me falou assim: “mas você vai me filmar nessa atividade decadente?” E eu pensei meu Deus, coitada dessa criança que tá na mão dessa professora. Porque tudo o que você faz é uma atividade, você vai conversar com a criança enquanto tá trocando... A criança vai passar um tempo da vida dela usando fralda, então pra ela aquele momento é importante (ELIANA, 2013, p. 150,151).
25 A abordagem Reggio Emilia tem origem na cidade italiana de mesmo nome é referência mundial de excelência em Educação Infantil. Sua história tem inicio após a Segunda Guerra Mundial, período em que toda a comunidade uniu forças para reconstruir a cidade e apostaram na importância da escola para as crianças. Assim, o sistema criou um trabalho inovador, cuja filosofia, currículo e metodologia de trabalho e organização são considerados como um dos melhores do mundo. 26 Emmi Pikler foi uma pediatra húngara que trabalho também no pós-‐guerra com bebês órfãos. Seu trabalho consistia no cuidado com os bebês baseado no respeito e atenção individual. Seu trabalho também é referência e, embora se trate de um contexto diferente do encontrado na creche, tem importante contribuição no que se refere ao desenvolvimento do bebê e na relação que se estabelece entre adulto e criança. Disponível em http://pikler.org/PiklerPractices.html, acesso em 30/07/2014.
103
As narrativas das professoras trouxeram exemplos de como o curso de
formação específico pôde contribuir efetivamente para a mudança e reinvenção
das práticas. Mas que isso também as deixou um pouco “perdidas”. Mais uma vez
o discurso científico se apresentava como o saber adequado para o trabalho com
a educação de 0 a 3, e desconsiderava a experiência de trabalho construída por
anos. A diferença, é que de fato, o conteúdo do curso contribuía para reflexão e
aprimoramento das práticas, mas na mesma medida, indicava o certo e o errado,
estando a atuação das antigas recreacionistas, nesta última posição. Hoje no berçário, por exemplo, eu trabalho muito o “cesto do tesouro”, que foi uma coisa que veio com o curso da R. que valeu pra caramba! Você percebe a alegria da criança de mexer nos materiais diferentes do cesto. Mas eu também vejo que muitas coisas as crianças perderam com esse negócio que às vezes a gente não sabe mais o que pode ou não fazer (ELIANA, 2013, p.153).
Não era mais permitido, por exemplo, trabalhar com desenhos prontos,
estereotipados. A “nova” pedagogia da infância pretendia extinguir dos espaços da
creche quaisquer produções realizadas pelos adultos. As paredes – salas,
corredores, salão, área externa – deveriam conter produções das crianças, tornar
visíveis as criações daqueles que são os protagonistas da creche: os pequenos. E
ainda, a grande maioria das ações dos adultos deveria pautar-se na observação
atenta dos interesses de cada grupo, desenvolvendo assim, os projetos.
A afirmação acima vai de encontro com aquilo que se defende aqui neste
trabalho – muito embora o foco dele não seja a problematização das práticas
pedagógicas na educação infantil -, ou seja, a creche e a pré-escola devem atuar
no sentido de valorizar as experiências das crianças e oportunizar vivências de
criação e aprendizagem. No entanto, ao apontar para esta nova concepção ao
grupo que atuou durante vinte anos de outra maneira, os conflitos certamente
emergiriam.
Além disso, a imposição daquilo que a partir de então seria o “certo” em
detrimento das práticas anteriores trouxe certo desconforto ao grupo. O que
104
significava então tudo aquilo que as professoras tinham vivido dentro da CAS até
então. Estava tudo errado?
105
Capítulo IV: Mulheres cuidadoras, mulheres professoras. A importância da formação continuada e da valorização da experiência.
O título deste último capítulo que segue amarrando os fios da história aqui
narrada aponta para algumas possibilidades e reflexões acerca do campo de
conhecimento da Educação Infantil e busca algumas respostas para questões ao
longo do texto apresentadas. Assim, ao finalizar este pequeno recorte sobre as
histórias de vida, trabalho e formação de cinco mulheres professoras da Creche
Área de Saúde, mereceu destaque a condição feminina, que desde o título do
trabalho é demarcada, a valorização da experiência, e a formação continuada
como possibilidade de reinvenção das práticas de atuação na creche.
As mulheres da/na história A condição feminina não apareceu no texto como categoria de análise de
pesquisa. Isso porque as memórias das professoras em nenhum momento
apresentaram essa questão como fundamental na constituição de suas vidas
profissionais. Um fator que pode ter levado a isso pode se dever ao roteiro de
questões que não enfatizava este ponto. Contudo, mesmo quando livres para
narrarem suas histórias, em momentos não dirigidos das entrevistas, o fato de
serem todas mulheres não apareceu como marcante em suas trajetórias.
Ainda assim, a história do surgimento das creches como instituição social
está sempre atrelada à questão feminina, seja pelo direito da mulher trabalhadora
que precisa inicialmente, de um abrigo para seu filho, seja pelo exercício do
magistério que aos poucos foi se tornando um campo marcado pela separação do
gênero.
E, nas memórias das professoras, a questão feminina apareceu em alguns
momentos marcada pelos conflitos de gênero que também têm grande influência
da sociedade, como rememorou Ana,
106
Meu marido brigava porque não queria que eu estudasse, rasgava meus livros de ciúmes. E eu ia lá e comprava de novo. Nossa, foi uma tormenta, era ciumento demais, ele me levava e me buscava e mesmo assim ainda rasgava os meus livros. Eu comprava de novo, às vezes eu comprava e pedia pra meninas guardarem na casa delas (ANA, 2013, p.128).
O exemplo de Ana demarcou a luta destas mulheres para voltar aos
estudos. Dentre tantas dificuldades encontradas (falta de apoio da chefia, conciliar
a vida no trabalho com a vida pessoal e os estudos), havia ainda a condição
sexista colocada pela sociedade. E, apesar de não se tratar aqui de um trabalho
sobre gênero, fez-se importante demarcar esta questão. Afinal de contas, quais
marcas são imbuídas em mulheres que passaram por estas experiências? Como
bem apontou Goodson, histórias de vida e de profissão são como fios que se
entrelaçam no contexto em que as pessoas encontram-se inseridas.
In studying the teacher’s life and work in a fuller social context, the intention is to develop insights, often in a grounded and collaborative manner, into the social construction of teaching. In this way, teachers’ stories of action can be reconnected with ‘histories of context.’ Hence teacher stories, rather than passively celebrating the continual reconstruction of teaching, will move to develop understandings of social and political construction. It is a move from commentary on what is to cognition of what might be27 (GOODSON, 2008, p.16).
Além da condição de gênero, a questão racial apareceu nas memórias de
três das professoras entrevistadas. Em duas delas, a condição racial veio à tona
de maneira velada, mas o fato de ambas serem negras possibilitou realizar tal
amarra de fios. Flor falou sobre a questão da aparência física como fator marcante
no momento da chefia escolher em qual locar ela deveria atuar.
27 Tradução livre: Ao estudar vida e trabalho do professor em um contexto social completo , a intenção é desenvolver uma compreensão , muitas vezes de forma fundamentada e colaborativa, para a construção social da função do professor . Desta forma, histórias de professores em serviço podem ser reconectadas com " histórias de contexto". Portanto histórias de professores, em vez de celebrar passivamente a reconstrução contínua do ensino, passam a desenvolver a compreensão de uma construção social e política. É um movimento de comentar sobre o que é a cognição do que poderia ser.
107
Tudo novo, muita gente diferente, eu sempre fui muito tímida, então tinha muita gente diferente que eu tinha que conversar. É... eu lembro, deixa eu ver... de professoras também negras, deixa eu ver se eu não to sendo maldosa, tinha eu e Maria Queiroz, só (FLOR, 2013, p.160).
Aparentemente, só havia mulheres brancas no berçário no início do
atendimento, em 1990. E, não por acaso, ela teve como parceira de trabalho,
Maria Queiróz, também negra. E ainda, o primeiro espaço físico de trabalho foi a
“última salinha”, no Maternal I.
A chefia falava que as pessoas tinham “perfil”. Assim, tinham pessoas que tinham perfil para trabalhar no berçário, mas na realidade era a aparência que contava. Eu elas falavam que tinha perfil para o maternal I e o II. Berçário não. Não era só pra mim que elas falavam não (FLOR, 2013, p.164). No começo eu fiquei com a Flor, depois eu fiquei com outra professora, mas primeiro foi com a Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu primeiro grupo (MARIA QUEIRÒZ, 2013, p.175).
A questão racial apareceu em outra vertente na narrativa de Ana. Seu
primeiro filho, que frequentou a creche, era negro, e, segundo ela, havia uma
relação de preconceito até mesmo de algumas das colegas recreacionistas, que
tinham posturas diferentes de trabalho com as crianças determinadas pela cor da
pele ou até mesmo condição econômica.
tem uma coisa muito triste que aconteceu no maternal I quando ele tava lá, como mãe eu falo, assim, me doeu muito foi que ele as meninas faziam diferença pela cor, tinha muito isso [...] as mães que eram enfermeiras, médica, tinha um tratamento diferente.... isso foi muito ruim e assim eu como professora mesmo trabalhando lá dentro elas me tratavam mal (ANA, 2013, p.126).
Possibilitar que temáticas como estas viessem à tona nas entrevistas e que
ganharam visibilidade na narrativa permitiu, além de consolidar a questão
metodológica proposta por Nóvoa (1992) que define o trabalho da história oral
como campo essencialmente emancipatório, pensar também na creche como
108
instituição social que tem uma infinidade de discursos que precisam ser cada vez
mais problematizados pelos profissionais e pesquisadores interessados na
educação de 0 a 3 anos. A creche, parte da educação básica e instituição
consolidada na sociedade é lugar de conflitos, ora aparentes, ora velados, mas
principalmente, de histórias que permitem a criação de novos discursos, outros
olhares, reinvenção de práticas.
E, interessante pontuar que estas questões (racial e de gênero) que não
eram temas contemplados no roteiro inicial das entrevistas surgiram em falas
pontuais em exemplos de situações vividas pelas professoras. Por que utilizar
deste espaço demarcado (narrativas que seriam utilizadas em um trabalho
acadêmico) para abordar situações tão pessoais? Retorno então, aos pontos
essenciais e introdutórios do trabalho, que apontam para a indivisível relação entre
as questões sociais e pessoais, e àquilo que a psicanálise pode contribuir neste
sentido. Olhar para o sujeito como alguém que realiza suas escolhas, - no caso,
que “escolhe” suas memórias – a partir de conteúdos internos, mas que estão em
constante relação com seu contexto.
Experiência e Pobreza Inicio este tópico com um trecho do texto “Experiência e pobreza” de Walter
Benjamin, em sua obra “Magia e Técnica, Arte e Política” (1985) para fomentar
algumas considerações e reflexões que foram possíveis a partir deste trabalho
que reuniu história e memória.
Havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio de tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: “Ele é muito jovem, em breve poderá compreender”. Ou: “Um dia ainda compreenderá”. Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em
109
provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1985, p.114)
A transmissão da verdadeira experiência por meio das narrativas é
marcante neste trecho da obra de Benjamim, tema inclusive, que o autor abordou
também em outro texto – “O Narrador”- salientando uma série de aspectos que
têm levado à modernidade ao fim das narrativas. Ambos ficaram em minha
memória marcadamente após a realização das entrevistas, momento em que
todas as professoras rememoraram o quanto sua experiência de trabalho com as
crianças não pôde ser transmitida para a nova geração de professoras que
ingressou na creche nos anos 2000. Ao contrário, era preciso aprender com as
novas profissionais. É certo que o novo tem muito a contribuir e isto também foi
destacado pelas entrevistadas. No entanto, havia ali uma experiência de mais de
uma década e que todas trouxeram o sentimento de “descarte” de suas vivências.
E, assim como o vinhedo da parábola, certamente não havia ali nenhum tesouro a
ser encontrado nas práticas das professoras, mas sim, experiências de cuidado,
de relações entre adulto e criança que valiam mais que ouro, pois aquelas
pessoas fizeram da creche uma das experiências fundamentais em suas vidas,
A creche é a minha vida. Eu gosto muito de bebês, de criança, é um lugar que eu trouxe os meus filhos, e apesar de terem coisas que eu não gostei, é um lugar muito bom. A creche da UNICAMP, a CAS, eu acho que é diferente, é um lugar que eu gosto, e se alguém me falar que eu tenho que ir para o CECI eu não vou, não só pelo lugar mas pelas pessoas que trabalham e você acaba tendo um vínculo com as pessoas, acho que quando eu aposentar eu vou continuar vindo aqui, e não é só a creche, a UNICAMP, porque eu entrei aqui com 15 anos, e tudo o que eu vivi foi aqui dentro. E quando você não gosta de criança você não fica tanto tempo assim, mas eu gosto e por isso eu fiquei. Tem gente que trabalha mesmo só por causa do dinheiro e não por causa das crianças. E eu não (ANA, 2013, p. 134).
110
A desvalorização da experiência e a importância que o trabalho na creche
possui para a experiência de vida que Ana trouxe na narrativa vêm ao encontro
com alguns trabalhos de Ivor Goodson sobre os professores e suas histórias de
vida. Em trabalho intitulado “A luta pelo significado privado e o propósito público”
(2007), o autor apresentou dados sobre pesquisas que vêm realizando nos últimos
30 anos de sua carreira que tem foco em histórias de vida e histórias de trabalho.
Em uma delas, em que pretendia levantar dados sobre as mudanças que vêm
ocorrendo ao longo do tempo nas escolas, entrevistou professores que foram
distribuídos em três grandes grupos, sendo critério de divisão a atuação
profissional em cada período. Dessa forma, o grupo I era formado por professores
que atuaram nos anos de 1950 a 1960; o segundo grupo contava com
profissionais que trabalharam nos anos de 1970 e 1980; já o terceiro, professores
da década de 1990 até os dias atuais. Uma das questões feitas a todos os
entrevistados referia-se a algum projeto de vida, algo que quisessem falar a
respeito. Para os dois primeiros grupos, a educação apareceu como seu
significado de vida e projeto de trabalho.
Ensinar, para muitos deles – embora, naturalmente, não para todos – era sua ‘vida de trabalho’ e uma fonte duradoura de paixão e compromisso. Ensinar deu às suas vidas significado pessoal como um projeto coletivo ou vocação que expressava valores e crenças profundas. Então, nas suas vidas profissionais, o significado pessoal e o propósito público estavam carregados de equilíbrio que fornecia sentido e significado à vida do trabalho (GOODSON, 2007, p.15).
O terceiro grupo, porém, remetia-se à educação “apenas como um
trabalho”, cujo engajamento era mínimo e suas práticas bem longe de se
organizarem a partir de um propósito de vida profissional. A diferença marcante
entre os dois primeiros grupos e o último é a questão principal para o autor
remeteu ao seu título. Se não há um significado privado para aquele trabalho, fica
difícil desenvolver um propósito publico para uma prática extremamente coletiva
como requer a docência. E, as professoras da creche, embora tenham ingressado
no trabalho docente na década de 1990, elas, pelo menos as entrevistadas,
111
corroboraram com os dados dos dois primeiros grupos da pesquisa realizada em
escolas americanas e canadenses. Apresentaram, em suas narrativas, o trabalho
como parte de suas vidas, tanto que permanecem atuando até os dias de hoje. E
o que elas viram em muitas das professoras que ingressaram depois, foi essa
“mecanização” de um trabalho reconhecido como “profissional”, mas que não tinha
nenhum valor pessoal para aqueles que desempenhavam suas tarefas.
Obviamente que assim como bem destacou Goodson, não é possível generalizar
essa característica para todos, e, no caso da creche, acredito ainda que quem
tinha esse perfil particular, não conseguiu se manter no trabalho por duas razões
principais: a primeira diz respeito ao salário, que até o ano de 2009 não era
atrativo aos professores.
Em segundo lugar, considero que o trabalho na creche define uma prática tão
peculiar e ainda em construção para os profissionais da educação, que somente é
possível se manter no campo de atuação se algum sentido particular for atribuído
ao trabalho. Ou seja, para atuar junto aos bebês e crianças pequenas não basta
aplicar um projeto pedagógico, tampouco preparar uma aula, conforme as
disciplinas metodológicas orientam os alunos. E, como destacou Barbosa (2010),
quando pensamos nas crianças bem pequenas, isto é, nos bebês temos dúvidas sobre como propor este currículo. Ora, não será certamente através de aulas, de exposições verbais, mas a partir da criação de uma vida cotidiana com práticas sociais que possibilitem alargar horizontes, ampliar vivências em linguagens, para que os bebês experienciem seus saberes. Serão exatamente esses primeiros saberes, essas experiências vividas principalmente com o corpo, através das brincadeiras, na relação com os outros – adultos e crianças – que irão constituir as bases sobre as quais as crianças, mais tarde, irão sistematizar os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico. [...] Educar bebês não significa apenas a constituição e a aplicação de um projeto pedagógico objetivo, mas implica em colocar-se, física e emocionalmente, à disposição das crianças e isto exige dos adultos comprometimento e responsabilidade (BARBOSA, 2010, p.5).
Há que se apontar ainda, que as “novas profissionais”, muitas vezes
traziam a referência de atuação do ensino fundamental e valiam-se de tal
112
experiência para o trabalho com as crianças pequenas. O que acontece é que
realizar este caminho não contempla as especificidades do trabalho na creche,
configurando-se como prática inadequada.
Sobre o sentido privado que cada um atribui à profissão, Antonia
rememorou o período em que voltou ao trabalho, após nove meses de
afastamento para o tratamento de um câncer,
Só de voltar já me sinto melhor. O médico não queria me liberar, mas eu quis muito voltar. Eu tava careca ainda, e isso foi uma coisa que me pegou bastante, aí voltei de lenço, e as meninas falavam: joga esse lenço fora, aí que decidi tirar o lenço, o cabelo tava bem curtinho aí eu passava uma maquiagem, e as meninas falavam que eu tava parecendo a Elis Regina. E aí eu fui voltando aos poucos e deu tudo certo, porque trabalhar faz tão bem! Principalmente se for com criança (ANTONIA, 2013, p.141).
Tecendo fios entre experiência e formação
A parte que eu gosto mesmo é de cuidar, tanto que eu falo que Deus coloca as pessoas certas na minha vida, porque eu sempre fico com parceiras de trabalho que gostam dessa parte, e que apesar de toda essa parte pedagógica ser importante, a gente sabe que tem uma parte que é assim, não cuidar só e trocar, por exemplo, mas de você conversar, de você ensinar, e que são coisas que você não precisa escrever nem aparecer e que são muito importantes, e eu gosto mesmo, das crianças, de fazer as coisas com elas. (ANTONIA, 2013, p.142)
Dessa forma, o intuito aqui não é rememorar o passado de práticas das
professoras como algo idealizado nem supervalorizado. Tampouco, afirmar que a
formação em magistério e nível superior garantiu o sucesso do trabalho na creche.
A continuidade dos estudos é fundamental. Embora a composição dos
conteúdos curriculares dos cursos de formação de professores não se configurou
como adequada à realidade do trabalho com a educação infantil, ficou evidente
que o contato com as leituras, autores, a contextualização histórica da educação
impulsionaram as professoras a visualizaram outras formas do trabalho, tanto com
as crianças quanto entre as relações hierárquicas estabelecidas na creche. Além
113
disso, a formação em nível superior legitimou o trabalho das antigas
recreacionistas, que passaram a ser consideradas professoras.
Por outro lado, a falta de referência de um trabalho que integrasse cuidado
e educação, que possibilitasse um olhar para as práticas de cuidado (já existentes
na experiência das professoras) como parte fundamental do processo, acabava
por reforçar referências do ensino fundamental e desconstruir o trabalho na
educação infantil. Obviamente, há que se rever antigas práticas, mas parte-se do
pressuposto, a partir da construção desta narrativa, de que muitas das práticas de
cuidado duramente criticadas, necessitariam apenas, de uma melhor
problematização dentro do contexto de trabalho para integrar-se ao movimento
educativo que deve ser específico na creche, ou seja, uma maneira de cuidar e
educar da criança que não há em nenhum outro espaço de vivência que ela possa
ter.
Tal problematização deve ocorrer na formação continuada e em contexto. A
iniciativa do curso específico para atuação em creche, destacado no capítulo
anterior (embora não tenha sido conduzido no sentido de valorizar a experiência)
apontou para esta costura de fios que culmina na qualidade e identidade do
trabalho.
Nesse sentido Campos (2002) defende a importância da formação em
contexto para garantir um trabalho na educação infantil baseado em reflexão
sobre a prática e consolidação da autonomia do professor que está em constante
formação,
Nesse processo, o papel de educadores e educadoras emancipados, com um domínio de conhecimentos necessário para ser autores de sua própria prática, é fundamental. A capacidade de leitura e escrita, a autonomia pessoal e intelectual que possibilita a busca de informações ou escolha de materiais, a identidade profissional bem definida, condição para um bom contato com as famílias e a comunidade, a abertura para incorporar novos conhecimentos e práticas no trabalho com as crianças, são condições adquiridas ao longo da escolaridade básica obrigatória, de uma formação profissional prévia e em serviço, de uma educação continuada e de uma experiência de trabalho refletida e constantemente revista (CAMPOS, 2002, p.XXI).
114
Para a autora, embora tais características não possam ser encontradas em
professores leigos, quando estes são submetidos ao processo de formação, estão
mais abertos às mudanças, embora possam também ser mais dependentes,
dificultando o processo de autonomia profissional.
Esta concepção vai ao encontro com as memórias das professoras da
creche, conscientes sobre a mudança das práticas e da importância da formação.
E, no que se refere à formação básica obrigatória, tanto as pesquisas quanto as
histórias de vida revelaram não adequadas ao trabalho na creche, mas que pode
ser ampliada, modificada e reinventada a partir da formação continuada e em
contexto.
Na tentativa de responder às questões aqui levantadas a partir de tudo o
que foi explicitado considerou-se então que, para um trabalho supostamente ideal,
que compreenda as especificidades da faixa etária entre 0 a 3 anos de idade, faz-
se necessário que as instituições de educação infantil, no caso, as creches,
ofereçam às suas professoras e professores a possibilidade de formação
continuada. E, mais que isso, que a equipe consolide-se a partir de uma reflexão
constante sobre suas próprias práticas, contribuindo inclusive para que o
profissional da educação trilhe caminhos rumo à pesquisa. A formação em serviço
só faz sentido quando em relação com o cotidiano da creche.
Vale refletir ainda sobre o fato de que os processos formativos não devem
tornar-se uma imposição ao trabalho, tampouco definir-se como únicos no que se
refere às concepções teórico-metodológicas. O que a experiência na creche tem
demonstrado é que, quando há espaço para a valorização da experiência
juntamente com a reflexão acerca do trabalho, os próprios profissionais sentem a
necessidade da formação continuada. Contudo, quando a formação é imposta
como tarefa obrigatória e às vezes sem contextualizar o espaço e as práticas já
existentes na creche, pouca contribuição é notada.
Sobre as relações de cuidado presentes na rotina de trabalho da instituição,
há que se valorizar cada uma das ações, já que o atendimento a crianças de tão
tenra idade abarcam uma relação de dependência do adulto. Trocar fraldas,
alimentar o bebê, coloca-lo para dormir são tarefas do professor de creche. E aqui,
115
vale a pena abordar um ponto fundamental que difere a CAS de outras instituições
de educação infantil.
Devido ao fato de a legislação flexibilizar a formação do profissional de
educação infantil e séries iniciais (é possível ingressar na área apenas com o nível
médio na modalidade normal, como aqui já destacado), é comum, nos municípios,
como é o caso de Campinas, as creches contratarem dois profissionais distintos:
agentes de apoio infantil e professores, sendo os primeiros, com menor
escolaridade, incumbidos das funções voltadas ao cuidado (banho, trocas,
alimentação). Já aos professores graduados em nível superior, são atribuídas as
tarefas denominadas pedagógicas. A presente narrativa, contudo, foi realizada em
uma creche onde não há essa divisão de trabalho que organiza-se, em grande
medida, na desvalorização das ações de cuidado, e como se estas não pudessem
ser atribuições do professor de creche.
A ideia aqui defendida é a de que o professor de creche deve ter, em suas
atribuições, o cuidado e a educação das crianças em sua integralidade, sendo
estas práticas indissociáveis. E, as professoras protagonistas do presente texto
trouxeram em toda sua trajetória de vida e profissão a importância de construir e
consolidar tal prática. Em nenhum momento, mesmo depois de graduadas em
Pedagogia elas cogitaram a possibilidade de separar cuidado e educação na
creche. E, talvez, este seja o maior aprendizado que suas histórias podem trazer.
A relação entre creche e área de saúde – condição específica da instituição
aqui estudada - também mudou, e, embora ainda existam lutas a serem
enfrentadas, como a busca pelo credenciamento da creche, o fim do
funcionamento aos finais de semana e feriados (atendimento compreendido hoje
como assistência à família e não parte do processo educativo, devendo, portanto,
ser delegado a outro órgão que não a DEdIC), as professoras partilham de novas
ideias sobre como o trabalho deveria hoje ser conduzido, embora há que se
considerar a história da instituição.
Sobre a relação com o hospital, facilitou a vida das mães, foi uma luta delas, mas para as professoras e para as crianças não, isso
116
não é bom. As crianças têm que ficar com a família, e hoje, mesmo o plantão sendo remunerado eu acho que ele tem que acabar, o direito à educação é garantido sim, mas de segunda a sexta-feira. Em janeiro também, porque que tem que ficar aberta a creche? Ela tem uma especificidade diferente, mas isso pra criança não é bom. Ela chega e não tem a professora que é a referência, as crianças são outras, ela chora, sofre (ANA, 2013, p.135).
As reflexões sobre o vínculo com a área de saúde da Universidade
emergiram claramente a partir do momento em que as professoras teceram fios da
história rumo à profissionalização, costura esta, feita na coletividade do trabalho.
No começo, que eu não entendia nada de Pedagogia, pra mim era tudo normal, era aquela coisa de cuidar mesmo, tinha a parte da saúde, da enfermagem. Aí depois do magistério eu comecei a ter outra visão, comecei a ver que não era só isso que a criança precisava, então aquela coisa de fazer muitas trocas de fralda no dia, tudo muito limpo, não precisava nada daquilo. O importante é a gente ver que a criança ta bem, brincando, está feliz. Então antes a creche era a extensão do hospital né (ANTONIA, 2013, p. 143).
Hoje, as professoras da creche trabalham todas juntas, sem distinção entre
“velhas” e “novas” funcionárias. Se há conflitos? Certamente! Seria possível um
local onde há história não haver divergências? As rememorações trouxeram
relatos de um período de grande mudança na creche e na Educação Infantil de
maneira geral. No entanto, a “grande” história da invenção deste modelo
educacional para as crianças pequenas não é capaz de abarcar tensões e
conflitos existentes do lado de dentro das instituições. No caso da Creche Área de
Saúde, estas nuances apareceram nas entrevistas, ora de maneira explícita, ora
imbuídas nos discursos, quase que escapando da oralidade consciente. Dentre
elas, o conflito entre as áreas educação e saúde foi o mais visível. Ao mesmo
tempo em que há a luta pelo fim dos plantões, pelas férias institucionais e recesso
nos meses de janeiro e julho, há ainda o vínculo histórico de um local construído
para este tipo específico de atendimento. Ao mesmo tempo em que as
professoras reconhecem o papel educacional da creche e anseiam por mudanças,
também titubeiam em algumas de suas narrativas.
117
Porque eu acho que aqui não visa bem a criança, mas sim a mãe que vem trabalhar, eu sei que desde o começo essa creche foi feita assim, e a gente tenta mudar mas o histórico dela é esse, é pra mãe que precisa trabalhar não é pensando na criança. E a mãe quando vem sempre pergunta: ele comeu? Fez cocô? Não pergunta assim: ele fez alguma coisa diferente (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p. 176).
Já sobre a relação conflituosa um tanto quanto velada refere-se ainda à
questão da formação profissional das antigas recreacionistas e daquelas que
ingressaram professoras. Embora hoje todas tenham passado pelo processo de
formação e sejam consideradas “igualmente professoras”, a marca de uma história
de assistência que estas mulheres viveram e guardam em suas memórias,
provoca, às vezes, certo pesar pelas mudanças, como se o tempo vivido tivesse,
em certa medida, sido “melhor”
mas era diferente, era uma coisa assim artesanal sabe, dava banho na criança, trocava a criança, era diferente de hoje, a gente tinha mais um vínculo assim, não é que hoje não é afetivo, era mais de cuidado sabe, hoje a gente tem mais restrição assim, não é restrição assim que você pode dar amor assim, mas era diferente, você tinha mais contato físico com a criança, hoje em dia você tem o contato mas é diferente, tem os carrinhos pra levar, antigamente era tudo no colo, no abraço, você pegava a criança e levava no colo, agora não, você pega a criança e coloca no carrinho, você não tem mais aquela coisa do contato olho a olho com a criança, era ruim pra coluna, mas esse contato pra criança eu acho que era melhor né (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.176).
Apareceu ainda, em algumas falas, a ideia de que realmente, as novas
professoras são as reais detentoras do conhecimento pedagógico, como quando
Antonia referiu-se à escrita e registro do trabalho pedagógico.
Então, eu escrevia, mas era difícil. Depois melhorou, mas eu sempre tive muita dificuldade de escrever, pra escrever uma coisa pequena eu levava muito tempo, porque eu mesmo fico olhando e pensando que não tá bom, porque eu quero fazer uma coisa bonita, mas eu sei que não é por aí, porque você vai aprendendo fazendo, não tem outro jeito né, mas ainda tenho dificuldade. Mas melhorou bastante porque no começo era um desastre. Ás vezes eu anotava as coisas aqui, levava pra casa e ficava tentando fazer
118
alguma coisa que ficasse legal, e depois que chegou esse grupo novo de professoras, aí tinha sempre alguém que queria fazer, aí a gente vai deixando. E eu adorei quando vocês chegaram! (ANTONIA, 2013, p.142).
Encerrando aqui a escrita desta narrativa, porém não a ampla temática, o
que se propõe é que se valorize cada vez mais a formação em contexto. As
experiências aqui rememoradas comprovam aquilo que os pesquisadores
dissertam sobre as possibilidades de construção de uma educação infantil de
qualidade que só é possível com a formação continuada, que traga, além de
recursos teóricos, espaços para que estes profissionais tragam suas experiências
de vida e profissão, na tentativa de unir saberes e recriar os mesmos. Talvez não
seja o único, mais é um caminho possível a construir.
As memórias aqui narradas constituíram fios de uma pequena história da
educação infantil, que iniciou seu atendimento com práticas de cuidado e
assistência, de acordo com os preceitos de cada época, e seguiu por um avanço
significativo de formação profissional e mudanças de concepções para uma nova
visão de atuação com as crianças pequenas. Certamente muitas outras histórias
poderiam ser narradas sob este fio condutor com diferentes personagens. Mas
esta é a história de uma creche chamada “Área de Saúde”, um local onde é
possível encontrar professoras que fizeram da profissão parte fundamental de
suas vidas. A relação com o trabalho público, com as questões coletivas da
profissionalização são tão marcantes que inclusive suas memórias são parecidas,
e os momentos de luta, conflitos e conquistas são narrados por todas de maneira
muito semelhante.
Olhar para o passado da creche a partir de uma perspectiva presente
remeteu as professoras a uma reflexão sobre como a concepção de infância e
educação infantil mudou. No entanto, os conflitos, as dúvidas sobre como atuar,
as dificuldades com relação à escrita e pesquisa na área apontam para a
necessidade de aprofundar cada vez mais a temática sobre a construção do
profissional de educação infantil, especialmente, de creche.
119
Apresentando por fim, a imagem do brinquedo “gira-gira” que há mais de
vinte anos destaca-se como tão “especial” para as crianças quando brincam no
parque, é possível pensar em seu movimento em relação com o trabalho na
creche. Ou seja, o “gira-gira” realiza um movimento de rotação que nunca cessa,
roda e está sempre no mesmo lugar. Assim, podem permanecer as práticas
quando não problematizadas e questionadas, e é o cessar deste movimento que o
trabalho com a formação em contexto deve possibilitar. Contudo, mesmo girando
sempre em si mesmo, o brinquedo precisa dos pezinhos de todas as crianças ali
inseridas tocando no chão de areia do parque e movimentando-se numa mesma
direção. Quando uma criança se cansa de girar todos têm de parar os pés para
que ela desça, e, então, a brincadeira recomece. A formação em contexto precisa
de todos, cada qual com suas memórias, suas experiências, porém com os
mesmos objetivos, a mesma busca por um trabalho de cada vez mais qualidade.
Nesse sentido, todos só tem a ganhar, especialmente, as crianças.
Figura 9: Brinquedo gira-gira do parque do Maternal II
Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.
120
121
Bibliografia
Artigos de Jornal:
RIO DE JANEIRO. A mãi de família. Jornal Scientifico, Litterario e Illustrado. Rio
de Janeiro, Ano 1, nº1, 1879. Disponível em
http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Acesso em 24/06/2014.
UNICAMP. Jornal da UNICAMP. Creches prevêem mais 470 vagas. 20/01/1990.
USP. Informativo ADUSP. São Paulo, abril 2005. Disponível
<http://democracianauspja.wordpress.com/category/uncategorized/page/2/>
Acesso em 30/07/2013.
Fontes e Documentos:
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, 1943.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 20/12/1961.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nº 5.692 de
11/08/1971.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nº 9.394 de
20/12/1996.
BRASIL. Lei Nº 12.796 de 04/04/2013. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor
sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências.
BRASIL. Lei do Ventre Livre. Nº 2.040 de 28/09/1871.
BRASIL. Ministério da Educação. Brinquedos e Brincadeiras nas creches. Manual
de Orientação Pedagógica. Brasília, 2012.
BRASIL. Palácio do Governo do Estado de São Paulo (FASPG). Decreto Nº
18.370 de 08/01/1982. Determina a instauração do Programa Centros de
Convivência Infantil – CCI. Disponível <http://governo-
sp.jusbrasil.com.br/legislacao/201635/decreto-18370-82> Acesso em 20/05/2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Nacionais de Qualidade para a
Educação Infantil. Vol II, Brasília, 2006.
122
UNICAMP. Acervo CAS. Regimento Interno Creche Área de Saúde. 1989.
UNICAMP. Acervo DEdIC. Relatório Anual PRODECAD – Creche Área de Saúde,
1990;
UNICAMP. Acervo DEdIC. Objetivos da Creche do Hospital das Clínicas, sem
data;
UNICAMP. Acervo DEdIC. Convênio IRCAMP/UNICAMP/FUSSESP. Conselho
Normativo. 1987.
UNICAMP. PROEPRE: Programa de Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Disponível em http://www.proepreemacao.com.br/?page_id=398, acesso em
30/07/2014.
UNICAMP. SIARQ. Circular Interna do Centro de Convivência Infantil, Nº002/86,
1986.
UNICAMP. SIARQ. Deliberação CAD Nº 134/2009, de 02/06/2009. Aprova o
projeto político Pedagógico da “Divisão de Educação Infantil e Complementar –
DEdIC- 2009.
UNICAMP. SIARQ. Deliberação CAD Nº 203/2009, de 14/04/2009. Aprova o
Regimento Interno da “Divisão de Educação Infantil e Complementar – DEdIC,
2009.
UNICAMP. SIARQ. Edital nº 018/88. Torna público o processo seletivo para a
função de recreacionista, 1988.
UNICAMP. SIARQ. Edital Nº 014/90. Torna público o processo seletivo para a
função de recreacionista, 1990.
UNICAMP. SIARQ. Edital Nº 038/2003. Torna público o processo seletivo para a
função de recreacionista, 2003.
UNICAMP. SIARQ. Edital Nº19/2004. Torna público o processo seletivo para a
função de professor de educação infantil nível médio. 2004.
UNICAMP, SIARQ. GR Nº 332/87. Portaria que estabelece comissão de
assessoria técnica para acompanhamento e implementação da creche área de
saúde, 1987.
UNICAMP, SIARQ. Regimento Interno do Centro de Convivência Infantil, CCI,
1983.
123
UNICAMP, SIARQ. Regimento Interno da Comunidade Infantil “Cantinho da
Física” IFGW/UNICAMP, 17/12/1984.
UNICAMP. SIARQ. Regulamento Interno do Centro de Convivência Infantil, CCI,
sem data.
UNICAMP. SIARQ. Torna pública a relação de aprovados no processo seletivo
para a função de recreacionista, 1990.
Fotografias:
OLIVEIRA, Karina. Professora da Creche Área de Saúde. Arquivo pessoal.
Livros e Artigos:
ACCÁCIO. Liéte Oliveira. Formando o professor primário: a escola normal e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro. 2006. Disponível em
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Liete_Oliveira_Accacio_
artigo.pdf. Acesso em 27/07/2014.
ARNAIS, Magali Aparecida de Oliveira. Novas crianças na creche. O desafio da inclusão. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
BARBOSA, Maria Carmen. As especificidades da ação pedagógica com os bebês. 2010. Disponível em: Acesso em 20/10/2014.
BARROS, Manoel. Memórias inventadas. São Paulo, Editora Planeta, 2010.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e
história da cultura. 1º Edição. Tradução: Sergio Paulo Rouane, São Paulo, Editora
Brasiliense. 1985. Vol. I.
124
BOSI. Ecléa. Memória. Enraizar-se é um direito fundamental do ser humano. In:
Revista do Programa de pós-graduação em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Nº 2, 2012, p.196-199.
_____, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São
Paulo. Ateliê Editorial, 2003.
CAMPOS, Maria Malta. A formação de profissionais de Educação Infantil no
contexto das reformas educacionais brasileiras. In: Formação em Contexto: uma estratégia de integração. São Paulo, Ed. Thomson, 2002.
CARULA, Karoline. Perigosas amas de leite: aleitamento materno, ciência e
escravidão em A mãi de família. In: Revista História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, supl., dez 2012, p.197-214.
CHAGAS. Luciane Siqueira. Construção da Pedagogia da Educação Infantil e a formação continuada e em serviço das professoras da Creche Área de Saúde. 2006. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Educação.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
FIGUEIREDO FILHO, Celso Ramos. História e Psicanálise: Possíveis Afinidades.
In: Academos Revista Eletrônica. Vol. II, nº 2 julho-dezembro 2006, pp. 12-21.
Disponível em <intranet.fainam.edu.br/acesso_site/fia/academos/revista2/2.pdf >,
Acesso em 20/07/20113.
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro,
Imago Editora, 1996.
______, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro, Imago Editora,
2001.
125
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. 1º Edição, São Paulo,
Editora 34, 2006.
GOODSON, Ivor. Conversación com Ivor Goodson. Estudiar las historias de vida
em El momento de la mediación. In: Conciencia Social, 9, 2005, p.99-119.
_________, Ivor. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o
seu desenvolvimento profissional”. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. Porto, Ed. Porto, 1992.
_________, Ivor. Investigating the Teacher’s Life and Work. Education
Research Centre, University of Brighton, UK, 2008. Disponível em
https://www.sensepublishers.com/media/537-investigating-the-teachers-life-and-
work.pdf. Acesso em 02/08/2014.
_________, Ivor. Política do Conhecimento. Vida e trabalho docente entre saberes e instituições. Tradução: Raimundo Martins e Irene Tourinho. Goiânia.
149 f – (Coleção Desenredos). CEGRAF, 2007.
_________, Ivor. Questionando as reformas educativas: a contribuição dos
estudos biográficos na educação. In: Pró-Posições, Campinas, SP, v.18, nº2(53),
maio-agosto 2007, pp. 17-37.
KISHIMOTO, Tizuko. Morchida. A pré-escola em São Paulo (1877 a 1940). São
Paulo: Loyola, 1988.
__________, Tizuko.Morchida. Pedagogia e a formação de professores (as) de
Educação Infantil. In: Pro-Posições, V. 16, nº 3- set/dez.2005. p.181-193.
126
__________, Tizuko Morchida. Política de formação profissional para a educação
infantil: Pedagogia e Normal Superior. In: Educação e Sociedade, Campinas, v.
20, nº68, dezembro, 1999, p.61-79.
Lacan, Jacques. O seminário, livro 7. A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar, 1985.
KUHLMANN JR. Moysés. Educando a Infância Brasileira. In: 500 anos de Educação no Brasil. 2º edição, Belo Horizonte, 2000. P. 469-496.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 7. A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar Editora, 1991.
LIMA, Maria Bernadete, ROCHA, Maria do Rosário, PINSETTA, Willians José.
Curso de Capacitação Gerencial para Dirigentes Hospitalares. Diagnóstico da Unidade Hospitalar. Agosto 2002. Disponível <
http://www.hc.unicamp.br/qualidade/001.pdf > Acesso em 30/07/2013.
MARTINS, Maria do Carmo. A construção da proposta Curricular de História da CENP no período de 1986 a 1992: confrontos e conflitos. 1996, Dissertação
(Mestrado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
________, Maria do Carmo. “ Historia, currículo y práticas pedagógicas: sobre
memorias y narrativas”. In: HERRERA, Martha Cecília (Org.) Encrucijadas e indícios sobre América Latina: Educación, Cultura y Política, Bogotá,
Universidad Pedagógica Nacional, 2007.
MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. Rio de Janeiro. Companhia das
Letras, 2006.
127
NÓVOA, António. “Os Professores e as histórias da sua vida”. In: NÓVOA, Antonio
(org). Vidas de Professores. Porto, Ed. Porto, 1992.
OTTE, Georg. “Rememoração e citação em Walter Benjamin”. In: Aletria. Revista de Estudos de Literatura. Vol. 22, nº 3 1996. Disponível em <
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1145/1247>.
Acesso em 30/07/2013.
PALMEN, Sueli de Camargo. A implementação de creches nas universidades públicas estaduais paulistas: USP, UNICAMP, UNESP. 2005, 283 f.
Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade
Estadual de Campinas, Campinas.
PIERRI. Suellen. Contando histórias: o Centro de Convivência Infantil da UNICAMP. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Educação.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
PIKLER/LÓCZY FUND USA. Concepts and Practices of the Pikler Approach.
2014. Disponível em http://pikler.org/PiklerPractices.html. Acesso em 30/07/2014.
PINHEIRO. Márcia Aparecida. A formação profissional na prática cotidiana. O que nos contam as educadoras. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação).
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
REIS, Magali Fagundes. A creche no trabalho...o trabalho na creche. Um estudo sobre o Centro de Convivência Infantil da Unicamp: Trajetória e Perspectivas.1997,Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de
Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
128
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain
François et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
SADER. Eder. Quando Novos Personagens entraram em cena. Experiências e
lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. 1º Edição. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1988.
SELINGMANN-SILVA, Marcio. Auschwitz: história e memória. In: Pró-Posições.
Vol. 1, nº5, julho 2000.
SILVA, Rosineide Santos. Os saberes e fazeres das professoras de bebês: construindo pontes entre a teoria e a prática. 2006. Trabalho de Conclusão de
Curso. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
SIVALLE, Luciana Teston. Fragmentos da construção da identidade docente: estudo dos memoriais de formação de alunas do PROESF. 2009. Dissertação.
(Mestrado Centro de Ciências Sociais Aplicada). Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, Campinas.
SOUSA. Leandra Adréia. Promoção – Apoio ao Aleitamento Materno. Binômio ou Antítese. 2006, 188 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública). Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
SPADA, Ana Corina Machado. Processo de Criação das primeiras creches
brasileiras e seu impacto sobre a educação infantil de zero a três anos. In: Revista Científica Eletrônica de Pedagogia. Nº5, janeiro 2005. Disponível em
http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/iG3tNqxQCLnBRLr_
2013-6-28-12-6-20.pdf, acesso em 20/08/2014.
129
VIEIRA, Lívia Maria Fraga. Mal necessário: creches no Departamento Nacional da
Criança (1940-1970). Cadernos de Pesquisa São Paulo, novembro, 1988, p. 3-
16.
VIEIRA, Maria Clarisse. Memória, História e Experiência: Trajetórias de
Educadores de Jovens e Adultos no Brasil. 2006. Tese (Doutorado em Educação).
Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
VIDAL, Diana. A Fonte Oral e a Pesquisa em História da Educação: Algumas
Considerações. In: Educação em Revista. Nº27, julho 1998, Belo Horizonte, pp.
7-16.
130
131
Anexo I - Roteiro de questões para as entrevistas:
1) Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco sobre sua entrada
na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o que você fazia
antes, enfim, como estava sua vida na época.
2) Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com as crianças
durante o período em que elas ficavam na creche?
3) E o que estava acontecendo na creche nessa época em que as
recreacionistas voltaram a estudar?
4) Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que mudou?
5) Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso, alguma coisa que
você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na educação
infantil?
6) E como você vê essa relação da creche com a área da saúde, tanto no que
se refere à chefia, quanto na relação com as mães.
132
Anexo II - Transcrições das entrevistas
1º Transcrição:
Data: 13/06/2013
Professora entrevistada: Ana
Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco
sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o
que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.
Na verdade eu era mensageira né, e trabalhei 3 anos e 9 meses no CAISM,
e, tive 1 filho aos 18 anos, e na época que eu tive meu filho faleceu uma criança
no berçário do CECI, e eu ia trazer meu filho, fui na entrevista de gestante tudo, ia
trazer, mas na minha licença faleceu uma criança e eu fiquei com medo e não quis
trazer ele à creche. Chorei muito, vim trabalhar 1 dia, minha irmã até ficou com
ele, ele tava com 4 meses, e no outro dia eu vim e pedi demissão. Aí fiquei em
casa com ele 9 meses, antes de prestar o concurso pra recreacionista. Aí fiquei
em casa com ele nove meses e a minha ex sogra trabalhava aqui e falou que ia
ter um concurso pra professor. Não, pra recreacionista e ela conhecia a diretora
que era a R. A R., ela era diretora dela na época e ela falou que ia vir pra creche e
que ia pegar bastante funcionários e que tinha que ter experiência com criança,
não importava ser professora ou ter trabalhado em alguma creche, não. Tinha que
ter experiência com criança e eu tinha experiência com o meu próprio filho.
Pesquisador: Não importava se era com o filho (experiência)?
Não, tinha que ter alguém que colocasse que você cuidou, e como eu tinha
experiência com ele (filho) mesmo, pôde. Eu fiz a inscrição e eu lembro que na
época tinham quinhentos inscritos e a gente fez a prova no ETECAP e eu falei:
nossa com tanta gente, eu não vou nem passar, era muita gente naquela época,
hoje tem muito mais, né. Eu lembro que iam pegar de cem a cento e cinquenta
professores, porque, não era só pra a CAS, iam pegar pro CECI também, para o
período manhã, tarde e noite na época falavam. E eu pensava: bom, talvez, eu
133
passe, talvez não, mais eu estava sem esperança nenhuma. Aí , quando saiu o
resultado eu tinha passado em 5º lugar, porque, na entrevista eu caí com a ex-
diretora do CECI e ela pediu pra eu contar a minha experiência com o P., não,
com o B. (filhos) e aí tudo o que eu falava era na faixa etária de berçário, e eu
acho que ela gostava muito de berçário, não sei né, eu acho que ela gostava.
Porque, ela se empolgou em e ouvir contando que ele fazia, o que ele comia. E
também na prova caiu sobre as vacinas, sobre o desenvolvimento, tudo eu sabia.
Tinha tudo fresquinho na minha cabeça. Então, tive uma boa avaliação na
entrevista e na prova também e aí fique em 5º lugar. Aí, já chamou na primeira
turma. Creche nova, né! A gente teve reunião com as enfermeiras, eu lembro.
Pesquisador: Você lembra o mês que você começou, aqui?
A prova na verdade foi no começo do ano, era pra começar a trabalhar em
maio, é verdade, e aí não, ...., no mês de maio foi no CAISM que eu comecei a
trabalhar e aqui era junho e aí tiveram as palestras, reuniões com enfermeiras
falando de cuidado, né, orientação de cuidado. A pedagoga eu nem me lembro
dela falando, eu não lembro. Eu lembro mais das enfermeiras.
Pesquisador: Você lembra mais ou menos o que elas falavam?
Do jeito pra trocar, o banho, a alimentação, mais voltado mesmo pra higiene
pessoal e o cuidado mesmo com as crianças. É, aí depois o meu estágio foi lá no
berçário do CECI. Lá naquele prédio, lá embaixo. Era aquele prédio, e nisso acho
que elas ficavam observando a gente, né, não sei, não lembro direito, mas acho
que tinha alguém observando, pra ver o perfil, porque, depois que terminou e elas
foram separar as professoras por módulos que eram berçário, maternal I e
maternal II, elas disseram que eu tinha perfil pra berçário. E eu adoro o berçário.
Eu fiquei quinze anos no berçário, mesmo, eu adoro berçário, gosto muito
do berçário. Aí, selecionaram as professoras, separaram, eu lembro que eu fiquei
no berçário junto com a A., que hoje não trabalha mais na creche, fez curso
técnico de enfermagem. Aí, a inauguração da creche foi antes da gente começar
a trabalhar, tanto é que tem uma placa lá que fala do dia da inauguração, esse dia
134
a gente não tava aqui ainda. A inauguração parece que foi em março, abril, é uma
data diferente de quando começamos a trabalhar. A gente foi a primeira turma a
trabalhar.
Daí inaugurou o prédio, pra começar a trabalhar mesmo foi assim, eu
lembro que foi uma semana de estágio e reuniões, tudo certinho, e aí começou.
Meu horário era das 07:00 às 13:00hs. A minha entrada foi dia 19 e a minha turma
eu lembro eram crianças do CECI. Eles já tinham entre 8 a 9 meses, uma turma
um pouquinho maior, não tinha ninguém tipo assim, que terminou a licença e já
veio pra creche. As crianças do CECI que as mães trabalhavam no hospital, todas
elas vieram pra creche, né, inclusive as crianças maiores também, maternal I,
maternal II, subiu tudo e junto subiram algumas professoras do CECI.
Pesquisador: Ah, Elas vieram!
Elas vieram junto, foram formando duplas, né. Eu lembro que a minha dupla
era com a A., as minhas crianças eram de oito meses, eu lembro até o nome de
algumas crianças da época.
Pesquisador: Mais essas professoras que vieram, elas eram do concurso
anterior, né?
Elas eram, né, no caso que nem a F., uma professora bem antiga, ela nem
era recreacionista, era atendente de enfermagem, atendente ao publico, elas
tinham um outro nome, não tinham essa nomenclatura.
Pesquisador: Mais ficavam com as crianças?
Ficavam com as crianças. Elas já tinham 15, 10 anos de creche, já, então
elas vieram e eu lembro que eu falei, assim, nossa, 10 anos! Eu não vou ficar tudo
isso aqui, não,...eu tô aqui há vinte e três. Eu era a mais nova das professoras.
Pesquisador: Eu, quando entrei falei a mesma coisa.
E eu não quero sair nunca, porque a gente gosta do que faz, né. Eu, lembro
que a dona R. falava que eu era a caçula, porque, eu tinha dezenove anos, eu era
135
a professora mais nova, recreacionista mais nova da creche e ela me chamava
bastante atenção de tudo, parecia que eu não sabia nada.
Aí depois quando terminou a primeira turma minha, foi uma coisa do destino
não sei nem se você leu o livro, foi muito chocante pra mim. Porque dai, no outro
ano eu lembro que a A. falou assim: “agora a gente vai pegar bebezinho, a gente
vai ter que tomar o maior cuidado, que eles são diferentes desses, né”, ela era
mais experiente, já era mais velha que eu, acho que ela tinha uns trinta anos né.
Eu, falei é verdade a gente tem que tomar o maior cuidado! E fiquei meio com
medo mesmo de pegar os recém-nascidos, tipo assim, vinham com três meses.
Então, aí chegou a hora de pegar esses bebês, eu lembro que eles
entraram no começo do ano também.
Pesquisador: 91?
Isso. Aí esses bebês entraram no começo do ano, em 91, em maio mais ou
menos e era época de greve, e a gente revezava pra greve, então em um dia saía
uma, outro dia, a outra. E naquele dia eu não tava bem, eu me senti mal, e aí a
gente voltava pra creche pra revezar com o horário de almoço de quem tinha
ficado porque não tinha quem ficasse com as crianças. E aí tinha entrado essa
criança, uma menina, e era o terceiro dia dela na creche, ela tinha 3 meses. E a
mãe falou que era pra colocá-la pra dormir de lado, não era pra colocar de bruços,
só que a gente tinha uma norma da enfermagem, a gente tinha que pôr todo bebê
de bruços, não interessava o que a mãe falava. E essa menina mamava na
mamadeira. Aí nesse dia eu fui almoçar, e a gente almoçava no restaurante do
HC, aí eu cheguei na porta do restaurante e não entrei. Voltei pra creche. Quando
eu cheguei, tinha gente do lado de fora chorando, aí eu entrei, e foi horrível,
porque eu senti que tinha alguma coisa errada. Aí me explicaram que a mãe veio
amamentar, e eu justamente não queria trazer meu filho por causa disso, eu tinha
medo, e aí aconteceu justo comigo né, porque era da minha sala. Aí a mãe veio
amamentar às 11 horas da manhã, eu tinha saído um pouquinho antes, e agente
fazia assim, pegava a criança, trocava e ia colocando no berço e a gente ficava
fazendo aquele caminho dentro do quarto e olhando, mesmo que estivesse
136
sozinha, você ficava toda hora entrando com um, com outro, e era na porta do
quarto o trocador, sempre na porta. E aí a mãe veio e a professora falou que tinha
acabado de colocar no berço, e eu lembro que ela gritava, tinha um choro
diferente e até se arranhava, parecia que tinha uma dor, sabe, e aí quando a mãe
foi pegar ela tava roxa, aí a mãe começou a gritar, e ela tava de bruço, a mãe
gritava: “você matou minha filha, eu falei que não era pra coloca-la de bruços”. Aí
a enfermagem fez os primeiros socorros, e levaram ela pro HC, aí já foi direto pra
UTI. A gente foi até lá pra ver, aí ela tava entubada, era muito pequenininha,
magrinha, foi horrível. Aí naquele dia eu não fui embora, a gente saía cedo, mas
eu fiquei aqui fora sentada, aí quando foi umas 4 horas tocou o telefone a R.
atendeu e começou a chorar, a criança tinha falecido. Eu fiquei desesperada.
No outro dia a gente foi no enterro, a mãe não olhava pra gente, mas
depois saiu um laudo depois de uns 15 dias falando que ela tinha um problema no
coração. Porque assim, ela não tinha vomitado, nada, então foi um problema no
coração que a mãe também não sabia. E essa menina era a segunda filha dessa
mãe, e aí depois ela teve outra filha, mas ela não trouxe mais pra creche. E depois
ela veio e nos pediu desculpas, tudo. E isso foi uma tristeza pra mim porque
aconteceu justo na minha sala, eu que tinha tanto medo, e eu lembro que depois a
gente não colocava criança nenhuma naquele berço, era estranho, o quarto era
pra 10 bebês, mas a gente nunca tinha 10, eram sempre 9. Nós, A gente não
trocava muito de sala, ficava sempre na mesma sala e a dupla era a mesma, tanto
é que eu trabalhei com a A. durante dez anos, depois ela foi pra tarde, ela fez um
curso de enfermagem foi pro HC. Saiu da creche e eu continuei no berçário. Eu
tinha os filhos e voltava, porque, não podiam ficar com a mãe, né, no mesmo lugar
trabalhando. E aí, fiquei durante quinze anos assim.
Eu sempre fugia da pedagogia, também, eu fui fazer biologia em 1994, fiz
três anos de biologia, tinha um filho só, falava que ia ter um filho só.
Só que no terceiro ano de biologia fiquei grávida da G., porque, eu tive que
tirar o DIU, porque, tava com uma infecção. Continuei estudando, tava de licença
e continuei estudando, tava no segundo ano quando fiquei grávida dela, mais aí o
médico falou, assim, “você vai tomar anticoncepcional durante a amamentação”,
137
eu tomei, era uso contínuo. Só que ela no sexto mês ela não quis mais mamar,
não mamava de jeito nenhum, mesmo assim, eu continuei a cartela. Terminei
cartela eu fui ao médico e aí eu tava grávida do terceiro. Eu quase morri. Aí parei
de estudar. Eu não queria outro filho de jeito nenhum, nossa, pra mim foi um
susto. Eu olhava pra G. com seis meses eu chorava, chorava muito, não
trabalhava direito mais. Levei muita bronca por causo disso. E assim, eu
lembro que por causa dos filhos na avaliação, a chefia sempre me falava que eu
vivia em função dos filhos, e eu era mal avaliada. Assim, eu falo que o meu
trabalho até hoje é o mesmo, não mudei o jeito de trabalhar, então, tudo era
motivo, tipo assim se tava doente eu ia dar um remédio, não podia. Não podia
passar no corredor pra ver os meus filhos. Eu lembro também que não iam dar
vaga pra gente, quem era mãe não tinha vaga na creche. Aí, depois de um certo
tempo que completou todo o quadro de vagas, a lista de espera, aí sobrou as
vagas e eu pude trazer meu filho, e ele veio com 1 ano e 2 meses, no maternal I.
E tem uma coisa muito triste que aconteceu no maternal I quando ele estava lá,
como mãe eu falo, assim, me doeu muito foi que as meninas faziam diferença pela
cor, tinha muito isso (choro).
Pesquisador: As professoras?
As professoras, as mães que eram enfermeiras, médicas, tinham um
tratamento diferente.... isso foi muito ruim e assim, eu como professora mesmo
trabalhando lá dentro elas me tratavam mal, eu não podia passar pelo maternal I,
me davam bronca mesmo. (choro) Eu lembro uma vez que assim, quando ele
entrou era fralda de pano, a gente tinha que trazer as fraldas dobradas e tinha um
jeito certinho de dobrar a fralda.
Pesquisador: Quem ensinava?
A enfermagem na época. Elas ensinavam a gente e a gente, ensinavam as
mães. Naquela semana, como se fosse o planejamento hoje, elas ensinavam
numa boneca como colocava a fralda e como era dobrada essa fralda. O jeito era
muito bom, eu gostei do jeito porque a gente usava fralda de pano e a gente
explicava pra mãe quando a mãe vinha na matrícula, certinho. Tinham seis trocas,
138
a calça plástica, três calças plásticas eu lembro, e os saquinhos, até hoje os
saquinhos. (para colocar roupa suja)
Era terrível, imagina levar uma fralda de cocô no fretado, né, aquilo virava
uma bomba. E na história que aconteceu com meu filho, eu lembro que eu
entreguei ele de manhã e a gente fazia a primeira troca, óbvio, porque era fralda
de pano, fralda descartável só pra ir ao médico e olha lá. Aí eu troquei ele de
manhã, moreninho, você já viu meu filho, troquei ele e coloquei essa fralda no
saquinho, quando eu vim buscar ele, ele tava chorando muito e a hora que eu
peguei eu já senti, tava de cocô e eu fui trocar. Nossa isso me doeu muito, ele
tava todo assado na carne viva, saiu até aguinha. Eu lavei dei o meio banho e fui
trocar, fui pegar a fralda na bolsa, ele tava encharcado e eu vi que só eu tinha
trocado ele de manhã. A troca que eu fiz de manhã ficou o dia inteiro, nossa, mais
ele tava em carne viva, eu troquei tudo e naquela hora eu não falei nada, fui
embora chorando. E era assim, tinha uma professora que ela não trabalha mais na
creche, que ficava na prancheta, eu lembro que era a única que tinha magistério,
ela ficava na prancheta e na recepção, não ficava com as crianças como a gente
faz hoje. Eu lembro que a gente tinha que falar tudo da noite pra ela, eu vim no
outro dia de manhã, cuidei dele voltou quase seco e, eu falei pra ela assim, olha
ontem aconteceu isso, só eu que fiz a troca, ele tava todo assado, ninguém trocou
ele. Ela me respondeu assim: “você tinha que ter falado na hora, agora eu não vou
saber se você tá falando a verdade ou não”. Não acreditou no que eu falei! Então
assim, desprezavam as minhas crianças, as de baixa renda e a cor também, eu
falo que é verdade.
Pesquisador: Bom, queria voltar um pouquinho na questão da formação
profissional. Você teve que parar de estudar e quando você entrou aqui na creche,
você tinha terminado o ensino médio?
Eu tinha o ensino médio. Eu fui pra biologia, saí da biologia por causa dos
filhos, mais quando eu tava com cinco filhos eu lembro que a pedagoga começou
a falar do problema da LDB, que tinha que ter magistério, mais em Campinas não
tinha mais o magistério, não tinha em lugar nenhum.
139
Pesquisador: Que ano era? Você lembra?
Eu lembro que eu entrei na Pedagogia na Unicamp em 2005, foi em
seguida. 2003, alguma coisa assim, tinha alguma coisa da lei.
A coordenadora começou a falar da LDB, que todo mundo tinha que ter o
magistério, mas em Campinas não tinha mais nenhuma escola que oferecesse o
magistério, isso a gente já tava no ano 2000 e pouco já, acho que 2003, e daí só
tinha o curso de magistério em Hortolândia, e era à distância, ou então em
Paulínia que era todo dia. Aí eu optei por Hortolândia, que era 3 vezes na semana,
por causa das crianças, porque o P. ainda era bebê. E foi um sacrifício total. Meu
marido brigava porque não queria que eu estudasse, rasgava meus livros de
ciúmes. E eu ia lá e comprava de novo. Nossa, foi uma tormenta, era ciumento
demais, ele me levava e me buscava e mesmo assim ainda rasgava os meus
livros. Eu comprava de novo, às vezes eu comprava e pedia pra meninas
guardarem na casa delas.
Aí, eu lembro que terminou, foi um ano e oito meses, mais ou menos,
lembro que a gente terminou em outubro de 2004 e em 2005 tava fresquinho
ainda, né, tinha acabado e não ia estudar mais de jeito nenhum, né, era só o
magistério tava bom.
Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que
as recreacionistas voltaram a estudar?
Então, primeiro, porque assim pra mim, minha mãe sempre quis que eu
fizesse o magistério e eu não fiz. A escola que eu fui tinha a opção de fazer o
magistério, minha mãe falando, minha mãe que queria, e eu não. Não, quero ser
professora. Mas não teve como fugir, o destino me levou. Saí da Unicamp, voltei
pra Unicamp. Eu era recreacionista, não tinha a ver com o professor,
recreacionista era o cuidado. E aí a pedagoga falou tanto do magistério que a
gente tinha que se adequar a nova lei, que eu fui fazer, aí, eu gostei.
Eu lembro que a coordenadora fez uma reunião e falou, e as meninas
resistentes, quase ninguém queria ir. Aí, cinco dias não dava pra mim de jeito
nenhum, por causa dos filhos. Aí fomos fazer o curso a distância, ocupava o
140
tempo do mesmo jeito, porque tinha um monte de coisa pra fazer em casa, né. Aí
terminou o magistério, então eu pensei: agora não preciso fazer mais nada! Mas
assim, eu gostei do que eu fiz, porque muita coisa que eu vi ali eu já fazia mas não
sabia o porquê. Por exemplo: no berçário, tinham as atividades mais não era
registrada (escrita), eu não sabia nada sobre o desenvolvimento do bebê.
Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que
mudou?
No berçário tinham as atividades, mas não era registrada e tipo assim o
desenvolvimento, as fases eu não sabia, eu não entendia nada, pra subir, descer,
engatinhar, não sabia. Pra mim é o normal do ser humano, não deixa de ser, mais
as atividade que a gente fazia eram com música, a gente cantava muito com eles
no salão, deixava dormir, assim, eu lembro que depois começava acorda pra fazer
atividade e não precisava nada disso, coitado deles.
A gente deixava dormir, a preferência era o sono e alimentação, o básico
aqui do berçário, o cuidado. Mais tinha no berçário os brinquedos, o espelho, os
rolos pra subir, pra descer, eles faziam isso normal, mais eu não sabia porque, né,
aí eu comecei a entender. Ah, esqueci de falar de uma criança que eu tive lá na
primeira turma.
Pesquisador: Pode falar.
Tive uma criança na minha primeira turma, um menino que nasceu de seis
meses e meio, pesava 650 gramas, cabia numa caixinha de sapato. Ele teve
fechamento precoce da moleira e teve que fazer uma cirurgia, e como ele ficou na
incubadora queimou a retina, então ele era uma criança que não enxergava e
também não podia bater a cabeça. E aí foi difícil! Ele começou a engatinhar e
como a gente ia fazer? Ele não podia bater, não podia cair. Aí ele ficou mais
tempo no berçário do que as outras crianças, porque demorou mais para
engatinhar e andar, e quando ele começou a andar foi para o maternal I. Mas
assim, a gente tinha 9 crianças mais ele, nossa turma era de 10 crianças. Com o
tempo ele conhecia todas as professoras pela voz e ele ficou na creche até os 4
anos e ele ia sozinho a todos os espaços da creche. Pouco tempo atrás fiquei
141
sabendo que hoje ele é músico. Mas trabalhar com essa criança foi um desafio
muito grande.
Pesquisador: Bom, então você acabou o magistério e foi fazer pedagogia?
Aí, foi. Terminou o magistério Então, aí em 2005 tinha u convênio entre as
prefeituras de Campinas e da região com a UNICAMP, que era o PROESF28, que
era o curso de Pedagogia para quem atuava na área, e era assim: os professores
da Faculdade de Educação coordenavam e orientavam os mestrandos e
doutorandos que davam aulas neste curso. E aí a gente tinha terminado o
magistério em 2004 e então eu incentivei as meninas porque era uma
oportunidade pra gente, porque o convênio era só para as prefeituras, mas o
sindicato daqui foi atrás e conseguiu liberar pra gente também. E era a última
turma do PROESF.
Só que as meninas ficaram com medo, acharam que a prova seria igual ao
vestibular, muito difícil. Mas não custava tentar! Aí elas não quiseram, as
professoras mais velhas, da minha época, algumas meninas novas do concurso
foram, mais eu não conhecia direito, então eu fui sozinha. No dia de fazer a
inscrição eu não tinha dinheiro e quase desisti, mas aí a V. me ligou no final da
tarde, dizendo que ia imprimir minha inscrição e ia pagar pra mim. E nessa época
a gente ir estudar só que não ia mudar o salário em nada, mas eu achava que ia
ser bom pra gente, pro nosso trabalho, mas aí eu fui. E foi um sacrifício, porque
era todo dia, e meus filhos eram pequenos.
Aí, eu lembro que tinham quinhentos inscritos e quatrocentas vagas, quase
um por um, difícil alguém não entrar, né, mesmo assim ficou cem na lista de
espera e eu falei, meninas vocês perderam. Ninguém queria ir, não iria mudar o
salário, não iria mudar nada, gente mais é uma coisa boa, né. É uma experiência
nova e a gente vai trazer coisa pra creche. E ninguém quis, de jeito nenhum.
28 PROESF: Programa Especial para a Formação de Professores em Exercício na Rede de Educação Infantil e Primeiras Séries do Ensino Fundamental da Rede Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de Campinas. Curso oferecido pela Faculdade de Educação, do qual algumas professoras da creche fizeram parte.
142
Aí, eu fui com sacrifício, imagina todo dia, os filhos pequenos, o P. tava com
cinco, quatro anos, eu tinha que pagar alguém pra ficar com eles Aí, primeiro
semestre tudo bem. As meninas tavam me ajudando, eu ia de carona com outra
professora que era da rede, tava dando tudo certo, saía daqui às 13:00 horas. No
segundo semestre mudou o meu horário pra oito horas diárias. Aí... fiquei doente,
entrei em depressão, não vim trabalhar mais, não tomava nem banho mais, não
queria fazer mais nada, nem cuidar da crianças.
Fiquei afastada. Era mês de junho, férias de julho, começou agosto e eu
não queria voltar. Aí, eu passei na psiquiatra e ela me deu uns remédios, eu sei
que ela foi aumentando as doses, foi trocando, porque não tava resolvendo. Eu
lembro que já tava na terceira semana de agosto e eu não tinha ido à aula
nenhum dia. Fiquei nove meses afastada.
Pesquisador: A mudança de horário mexeu com tudo na sua vida, né?
Foi, mexeu. Eu lembro que eu falei pra pedagoga “deixa a gente pagar com
horário de almoço, a gente sai às 14:30 e faz o horário de almoço direto”. Não
podia. “Pelo amor de Deus M. a gente tem que organizar a nossa vida”, Eu não
tinha culpa se o meu contrato tava errado, eu nem sabia que eu assinei um
contrato de oito horas e trabalhava seis. Por causa do bendito do HC, eu não tive
culpa, e tudo que a gente pedia pra chefe ela negava. Mais, aí, quando eu voltei
eu desabafei com ela, o médico da perícia era mais louco do que eu (risos), eu já
tinha engordado vinte quilos tomando os remédios e ele falou pra mim que eu não
tinha Deus, por isso que eu tava daquele jeito. Eu disse, eu tenho Deus, sim, se
eu tivesse ouvido tudo que ele me disse, eu saía dali e me matava. Porque, o
médico ao invés de me ajudar, ele me deixou louquinha. Eu falei, eu não sou isso,
eu tenho Deus, eu não tô doente, eu não tenho mais nada, eu vou voltar a
trabalhar.
E voltei a trabalhar e nem peguei alta da psiquiatra, ela não me deu alta, até
hoje eu não voltei mais no consultório. Falei: vou trabalhar, eu não sou essa louca
que ele tá falando que eu sou, não sou. Mais quando eu voltei a R. tinha ido
trabalhar em Hortolândia, saía as onze horas e pagava com horas pra ir trabalhar
143
em outro lugar. Então ela pôde e a gente não... Aí eu falei tudo pra ela
(pedagoga):
M., eu fiquei doente por causa de você, nada pode nessa creche, tudo o
que a gente vai pedir é não, não, não...e pra algumas pessoas vocês falam sim.
Por que? Ela tentou me explicar mais não resolveu, não, não explicou nada. E aí
fiquei muito magoada, mais enfim, continuei a faculdade, voltei, aí comecei a fazer
projeto, não sabia fazer projeto, não sabia fazer nada, eu lembro que eu voltei, no
segundo semestre de 2006. Aí depois da faculdade eu conseguia fazer os
projetos. Em 2006 quando eu ainda estava estudando, eu lembro que no maternal
I a gente fez o projeto da casinha que foi super legal, aquele ano o trabalho fluiu, e
ao mesmo tempo em que eu estava estudando também tinham vocês novas do
concurso. E aí as meninas novas, vocês novas traziam coisas novas pra gente,
né, acho que foi muito legal, a pedagoga falava uma besteiras pra gente que a
gente tinha que grudar em vocês, vocês sabiam tudo, a gente não sabia nada
(risos) e aí foi bom, a faculdade ajudou bastante.
Pesquisador: Como foi isso quando a gente entrou? Como foi?
A gente perdeu as amigas, foi chato, coitadas né, elas estavam aqui há
quinze anos pela FUNCAMP, algumas passaram no curso e outras não, foi difícil,
mais eu lembro que agente teve uma reunião antes de vocês entrar e a
coordenadora falava umas besteiras pra gente, falava que a gente tinha que
grudar em vocês porque vocês sabiam das coisas e a gente não sabia nada. Eu
lembro que antes de vocês chegarem ela fez uma reunião e falou que vocês iriam
chegar, que ia ter gente nova, algumas estavam fazendo faculdade, outras já
tinham terminado, mas o ar da conversa era sempre no sentido de que a gente era
burra e não sabia nada, era assim que a gente se sentia.
Pesquisador: Vocês se sentiam assim?
Foi. E teve uma vez quando eu tava cursando a faculdade que a diretora
me chamou na sala dela e falou: mas pra quê tanta pedagoga na creche? Não
precisa. Esse curso vai ter o diploma da UNICAMP? É igual? E eu mesmo assim
insisti, porque eu queria estudar, queria crescer, entender as coisas, porque eu
144
gostava do meu trabalho eu queria melhorar para as crianças. Então a gente tinha
o incentivo pra estudar da parte das pedagogas, mas da parte da enfermagem não
tinha incentivo nenhum.
E ela me humilhou muito, desde o magistério. Então, ela falou assim “seu
marido vai te deixar”? Eu peguei e falei pra ela assim: eu quero estudar, eu quero
crescer, eu quero entender o que eu faço, eu quero, é o que eu gosto de fazer, eu
trabalho com as crianças. Durante todo esse tempo, quantos anos eu já tinha aqui,
quem não gostava de trabalhar com crianças saiu, foi embora, não ficou aqui na
creche e era o que eu gostava de fazer. Ela falou muita besteira.
Pesquisador: Tinha o incentivo pra estudar mas ao mesmo tempo não
tinha.
O incentivo vinha das pedagogas porque, da parte da enfermagem a gente
nunca teve incentivo nenhum, nenhum... Era das pedagogas mesmo, mas as
enfermeiras nunca incentivaram não, nunca. E aí, eu até falei pra meninas,
ninguém quis ir das veteranas. Aí , voltando em 2006 a gente teve esse projeto, e
em 2008 as meninas falavam pra que estudar, se a gente não vai ter aumento de
salário. Gente, eu pegava a CAD que diz que quando você tem nível superior,
você tem que ir pro superior, não interessa. E depois, em 2009 quando eu já tinha
terminado a faculdade, teve a greve e a Dra. P. veio e a UNICAMP reconheceu o
nível superior de quem já tinha. Aí as meninas que não tinham feito a pedagogia
ficaram desesperadas e foram fazer também.
Se eu tivesse ouvido o que ela falava (a diretora) eu não teria estudado. Eu
não teria, tinha largado tudo, porque, o jeito que ela falou, jogou um balde de água
fria. Ela me humilhou muito, mas pra mim foi um desfio, porque se a pessoa fala
que você não vai conseguir aí que eu quero fazer mesmo e vou até o fim. Falou
não, agora eu vou. E aí, isso me deu mais vontade de ir mesmo pra desafiar o que
ela falou, porque, foi muito chato. E aí, tô pondo em prática tudo o que eu aprendi.
Pesquisador: E falando ainda da formação o que você acha que te ajudou
no trabalho na educação infantil?
145
A prática mudou. Porque, eu comecei a registrar, eu via que eu falhava, às
vezes a gente fazia umas coisas que não tinha nada a ver, né, e a pedagogia me
ajudou a trazer o trabalho assim, dentro da sala, não estimulando, mais assim, eu
vejo nas crianças, eu trabalho assim, vendo o desenvolvimento delas, eu vejo isso
acontecendo, coisas que eu fazia espontaneamente e nem percebia o que tava
acontecendo, aconteciam algumas coisa mais aí com a pedagogia eu consigo ver
bem claro, né, o que é bom, o que acontece realmente seguindo a teoria, né,
assim, tá na teoria e na prática, acontece sim. A gente consegue ver o
desenvolvimento da criança, perfeito. A R., o que ela trouxe, e o trabalho com a
organização do espaço, o trabalho com os cantos, isso não foi nem na faculdade,
foi no curso, o trabalho com o bebê também, porque na faculdade eu não aprendi
nada sobre o bebê, foi com ela, o trabalho com berçário as pessoas não sabem,
não conhecem, então o curso trouxe muita coisa, e agora aquela coisa de
trabalhar no berçário com planejamento e não com projeto ficou melhor ainda.
Então, assim, era mais o teórico a gente via as fases e o que ela trousse foi
bom, porque, isso acontece nos cantos da sala. O bebê a gente deixar mais ele
sozinho.
Tem que ter a formação. Eu lembro que a gente tinha assim formação
também com a pedagoga, até antes de vocês entrarem, sempre teve a formação.
Ela vinha com algumas coisas novas até mesmo da LDB elas passavam, tinha
reunião uma vez no mês, no sábado vinha todo mundo, passavam algumas coisa,
sim. Aí, tinham os encontros, tinha a jornada mais uns cursos específicos... eu
acho assim as pessoas criticaram a R., tudo bem, mais tem coisa boa também
que acrescentou muito na creche, você viu Carla mudou tudo!
Pesquisador: Você me contou um monte coisas e muitas coisas de
sofrimento que você passou, muita dificuldade, tudo assim que de certa forma tem
haver com a creche, né, mais de tudo isso, você ainda trabalha na creche.
A creche é a minha vida. Eu gosto muito de bebês, de criança, é um lugar
que eu trouxe os meus filhos, e apesar de terem coisas que eu não gostei, é um
lugar muito bom. A creche da UNICAMP, a CAS, eu acho que é diferente, é um
lugar que eu gosto, e se alguém me falar que eu tenho que ir para o CECI eu não
146
vou, não só pelo lugar mas pelas pessoas que trabalham e você acaba tendo um
vínculo com as pessoas, acho que quando eu aposentar eu vou continuar vindo
aqui, e não é só a creche, a UNICAMP, porque eu entrei aqui com 15 anos, e tudo
o que eu vivi foi aqui dentro. E quando você não gosta de criança você não fica
tanto tempo assim, mas eu gosto e por isso eu fiquei. Tem gente que trabalha
mesmo só por causa do dinheiro e não por causa das crianças. E eu não.
E mesmo com tantos problemas e dificuldades eu agarrei, eu queria não só
pra mim mais pras crianças também, como mãe também, né, e ajudou bastante,
nossa, é isso aí.
Pesquisador: E pra finalizar, como você vê essa relação da creche com a
área da saúde, tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.
Eu acho que ajudou muito pras mães, eu falo assim, as pessoas criticam
“ah, abre no final de semana” mais ela foi criada pra isso, porque, as mães não
tinham com quem deixar os filhos. Eu penso mais na faixa etária de berçário, não
falando maternal I e II, porque, depois a criança fica maior, dá pra deixar, mais
quando é bebê você quer ele perto, você não confia às vezes nem no marido pra
deixar. A gente é mãe sabe, a gente tem um jeitinho diferente e elas confiam
bastante no trabalho aqui. Então, ela foi criada já pra isso, as mães lutaram pra ter
essa creche específica pro hospital por causa do horário de turno delas, do final
de semana toda aquela correria e já trabalham num ambiente difícil.
Pesquisador: Você disse que pras mães foi muito bom e pra nó
professoras, pra criança tem alguma relação? Afeta alguma coisa no trabalho,
esse vínculo com o hospital, os plantões, até que você falou que tinha essa
diferença de mãe que é do hospital, enfermeiras.
Sobre a relação com o hospital, facilitou a vida das mães, foi uma luta
delas, mas para as professoras e para as crianças não, isso não é bom. As
crianças têm que ficar com a família, e hoje, mesmo o plantão sendo remunerado
eu acho que ele tem que acabar, o direito à educação é garantido sim, mas de
segunda a sexta-feira. Em janeiro também, porque que tem que ficar aberta a
creche? Ela tem uma especificidade diferente, mas isso pra criança não é bom.
147
Ela chega e não tem a professora que é a referência, as crianças são outras, ela
chora, sofre. Então, eu dou plantão, porque, preciso do dinheiro, os filhos estão
crescendo, faculdade, escola, tem que pagar. E aí, eu venho no plantão sim, mais
eu sinto que a mãe, ela tem com quem deixar. Tem plantão que não traz...e de
uma hora pra outra já não traz mais, porque, muda de escola e não traz mais.
Mesmo sendo remunerado eu acho que ele tem que acabar, a criança tem direita
a educação de segunda a sexta, sábado e domingo, não, é família. Mesmo que
pague alguém pra ficar dentro da sua casa, não dá o auxílio, dá o auxílio pro final
de semana.
Pesquisador: Ana precisamos encerrar. Quero muito te agradecer por toda
a história que você me contou. Foi muito bom! Obrigada!
148
2º Transcrição:
Data: 14/06/2013
Professora entrevistada: Antonia
Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco
sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o
que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.
Então, eu tava no hospital. Porque na verdade assim, era duas coisas que
eu tinha um sonho, era ser professora e ser enfermeira. Primeiro era ser
professora, mas era aquela coisa de criança né, que você tem sempre uma
professora que você gosta e admira. Então queria ser professora. Mas depois,
quando eu tinha uns 15 anos eu decidi que ia ser enfermeira. E eu vim pra
Campinas e aí tive uma oportunidade de fazer um cursinho de 3 meses que era de
atendente de enfermagem, e foi na época que a UNICAMP tava realmente
chamando o pessoal pro hospital começando aqui em Barão Geraldo. Daí vim, e
era como atendente. Aí no caminho eu falei, meu Deus não é isso que eu quero.
Eu trabalhava na pediatria e aí assim, me deixava muito triste as coisas, sabe, eu
ficava deprê mesmo, é, crianças que eram da idade de minha filha, na época eu
tinha a C., que você vê ali morrer, então mexia muito comigo, eu não conseguia
muito separar. Aí eu dizia, ai não quero ficar aqui, o que que eu faço, mas também
precisava trabalhar, era concursada, não queria sair.
Pesquisador: E quantos anos você tinha?
Acho que eu tava com 26 anos. Daí, realmente. Meu Deus o que que eu
vou fazer da minha vida. Eu não posso sair, mas também não quero ficar. Aí eu fui
fazer pedagogia lá em Itu. Comecei, mas fiz um semestre e parei, porque daí foi
quando eu tive a Camila, então quando eu comecei fazer lá, C. era bebê, daí eu
desisti. E assim, eu trabalhava à noite na época, e aí eu queria passar pra manhã,
pra poder estudar à noite, e na época era a R. lá no hospital, que depois veio ser a
diretora daqui da creche né. E eu tinha muito medo dela, ela era muito brava,
muito autoritária né. Eu sei que eu vim um dia conversar com ela e ela disse não
149
tem vaga e pronto. Mas eu preciso estudar. Na verdade eu já tinha começado,
só que como eu trabalhava 12/60, trabalhava uma noite e folgava duas, então eu
ia nesses dois dias e faltava um, e reivindicando essa vaga aí de manhã. Fiquei
assim, uns seis meses fazendo essa maluquice. Dava mais plantão de fim de
semana, pra poder folgar e ir. Tinha a C. bebê então realmente era uma loucura.
Aí, o que que aconteceu. Apareceu a creche aqui, foi na época que construiu a
creche. E eu falei, é isso mesmo. Vou prestar concurso de novo. Eu queria vir
direto, mas não podia. Aí prestei o concurso e já comecei logo, acho que passei
em 12º lugar e já fui chamada em seguida. Eu lembro que comecei fazendo o
treinamento aqui, e dando plantão lá um pouquinho, umas duas semanas. Saía do
plantão e vinha direto pra cá.
Cheguei aqui na creche, e fomos fazer um estágio em vários lugares, né,
berçário e maternal, lá no CECI. No berçário amei! Meu Deus é isso! É isso
mesmo que eu quero pra mim, é aqui mesmo que eu quero ficar. Aí fiquei 15 anos
trabalhando no berçário. Eu me apaixonei pelos bebês. E cheguei na creche e
encontrei a R.! E eu tinha medo dela sabe. Ela era uma pessoa muito autoritária,
só que ela gostava de pessoas que trabalhassem bem, pra ela se fosse assim
tava tudo certo, então eu sempre me dei muito bem com ela. Aí fiquei no berçário,
e era só cuidar, e era muito gostoso. Primeiro a gente começou, e tinha um grupo
muito pequeno. Aí trouxe minha filha pra cá, e ela foi uma das que estreou o
Maternal I. E era só cuidar mesmo, nós passamos alguns anos assim, não tinha
cobrança, não tinha nada.
Pesquisador: E como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam
com as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?
Só cuidava e brincava. Aquela coisa de por as crianças no chão, brincar,
isso a gente fazia, oferecia os brinquedos, preparava o ambiente, brincava com
eles, dava comida, colocava pra dormir, era isso. Aí minha primeira parceira foi a
C., que até já faleceu, depois foi a R., trabalhei com várias pessoas, mas a maioria
já não ta mais aqui, já saiu. Então, e era gostoso porque era aquela vidinha
tranquila, não tinha muita cobrança, não tinha nada, depois, não sei bem quando
150
começou, mas depois começou uma fala assim: agora vocês precisam registrar o
trabalho.
Pesquisador: Fazer o planejamento?
É, mas não era bem ainda planejamento, nem falava esse nome, era pra
escrever o que acontecia, um relatório de desenvolvimento, que é o que a gente
faz agora, mas não era muita coisa, isso foi quando as coordenadoras começaram
a fazer psicopedagogia, porque daí elas começaram a trazer uma outra visão.
Pesquisador: Elas também foram estudar?
Sim, elas também foram, e aí as pessoas novas que chegavam aqui,
estagiários por exemplo, se sentiam meio deslocadas, foi quando começou aquele
projeto acolhimento, acho que começou não foi nem por causa dessas pessoas,
mas por causa dos pais porque, eu não lembro agora o que que a gente foi fazer
que se percebeu assim que os pais não conheciam ninguém da administração, a
única referência dos pais era realmente a tia, os pais não sabiam nem que tinha
pedagoga, que tinha psicólogo, eles não tinham noção do que era a creche, era só
trazer o filho, cuidou dele tá ótimo, era isso, então elas começaram a perceber que
elas não apareciam na história do trabalho, aí então saiu esse projeto
acolhimento, que fazia parte o grupo de gestante. Muitas mães não
conseguiam amamentar, e aqui na creche isso foi mais tranqüilo porque elas
começaram esse trabalho antes, durante a gestação de orientação, porque lá na
outra creche a gente ouvia falar que lá no CECI no começo um dos critérios pra
conseguir uma vaga era amamentar, então acho que muitas mães nem
conseguiam amamentar de tanto medo, de tanta pressão, tanto que aqui teve a M.
R. que fez o trabalho dela de mestrado sobre isso. Então depois disso, aqui na
CAS elas começaram esse grupo de gestante e foi um trabalho bem bonito que
elas fizeram, porque as mães chegavam aqui muito mais tranquilas e aí já não era
mais assim: se não amamentar não tem vaga. Aí teve esse projeto acolhimento aí
151
logo depois começou a ter que registrar o trabalho. Aí foi na época em que a gente
foi fazer o magistério, em 2002.
Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que
as recreacionistas voltaram a estudar?
Então, fui fazer o magistério em 2002 e tinha uma pressão pra gente ir
estudar sim, eu não sei o que poderia acontecer com a gente, mas tinha que ir
estudar, porque ficava aquela coisa no ar, aí foi aquela luta pra gente conseguir
fazer, aí começamos a fazer em Paulínia, e foi muito legal porque eu realmente
não tinha noção nenhuma de nada. Não conhecia nenhum autor, nem de
Vygostky, Freinet, Piaget, nada! Por que pra gente era realmente cuidar da criança
e pronto! Então o magistério foi muito bom mesmo, eu acho que pra todas nós. No
primeiro dia de aula eu cheguei em casa quase 2 horas da manhã, porque não
tinha perua pra gente ir embora. Não tinha perua e eu cheguei em casa quase
duas da manhã, meu marido falou: ah, você não vai mais! Mas depois a gente
conseguiu um perueiro aí deu tudo certo. Foi muito bom!
Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que
mudou?
O curso de magistério me fez olhar para a criança de maneira totalmente
diferente, a gente começa a ver a influencia que temos na vida daquela criança,
porque antes a gente tinha umas coisas assim: “ah, deixa ele chorar, daqui a
pouco ele dorme” , sabe, e às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso em
como a gente era ignorante mesmo, então eu vejo que mudou bastante, o olhar
para a criança mudou, então eu vejo hoje que eu tenho algo mais a fazer. Às
vezes eu fico lembrando dessas coisas e eu penso, nossa como a gente era
ignorante, então o olhar com a criança mudou. Então depois que a gente foi
estudar, a gente passou a ver que sempre tem algo a mais que a gente pode
fazer, então o magistério foi muito bom, pra mim foi melhor que a faculdade. A
faculdade pra mim foi uma furada, na verdade só serviu pra melhorar meu salário,
152
por causa do diploma, tanto que quando eu fui fazer eu pensei: é melhor isso do
que nada.
A diretora (da creche) não incentivava a gente a nada. Ela falava: ‘não
adiante vocês irem estudar porque isso aqui não vai mudar’. A coordenadora
também chegou a falar, ainda mais sendo uma faculdade à distância. Mas eu
achava assim, que pelo menos eu ia ler, ia ter aquele compromisso de estudar. E
foi bom, porque realmente depois de 1 ano que eu tava estudando teve uma
grande mudança aqui que foi com relação ao salário né, e ainda bem que eu tinha
feito. Mas eu aprendi realmente muito pouco lá. Era um grupo que não queria
nada com nada sabe, porque eu acho assim, mesmo sendo à distância, se você
quiser aprender e aproveitar, você consegue, dá pra fazer muita coisa, mas aí a
professora também não queria. Duas vezes eu cheguei a discutir na sala, mas aí,
mesmo no meu grupo de colegas, elas realmente só queriam o diploma, então não
adiantava. A gente se reuniu algumas vezes em casa, e era tão bacana sabe, às
vezes terminava a aula e aí tinha um debate, e eu acho uma delícia essas coisas
porque a gente aprende muito com o outro né. E a gente tinha um grupo bem rico
porque tinha psicólogos, tinha professores com experiências em outras escolas,
mas estavam ali porque também precisavam deste diploma, mas tinha muita
experiência, mas não deu. Eu fiquei muito decepcionada. Tanto que ainda tenho
uma coisa dentro de mim que diz assim: um dia eu ainda volto a estudar. Porque
também um dos meus sonhos era ser psicóloga, então ainda vou fazer.
Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso,
alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na
educação infantil?
Olha, tinha as jornadas né, que sempre apresentavam coisas interessantes,
principalmente a dos últimos anos que trouxeram projetos e trouxeram bastante
idéias pro trabalho. Eu fiz uma fez um curso que foi sobre as creches lá da Itália,
que foi a A. L. G. que trouxe, e ela até chegou a vir aqui visitar e até fez um monte
de críticas, aquelas coisas né, e também teve o curso da R. (diretora da DEdIC),
que eu gostei. Pra mim, sempre que tem algo de novidade eu acho que a gente
153
sempre aprende. Então eu li alguns textos dela, algumas idéias, algumas dicas
que ela deu, foi bem bacana sim. Eu não conheci a R. antes porque quando ela
chegou eu saí, porque fiquei doente e fiquei de licença um tempo, e assim, eu
gostava dela, mas eu acho assim, que há um jogo político por traz de tudo e que a
pessoa que ta ali naquela posição representa um papel né, mas eu gostei do
curso viu. Eu não aproveitei muito porque eu tava doente e teve alguns encontros
que eu não vim, e acho que depois deste tratamento meu eu fiquei um pouco fora
do ar, sabe, então algumas coisas pra mim ficou meio distante, mas aquilo que eu
consegui aproveitar foi bom. Não sei, eu acho que assim, pra algumas pessoas
que tem mais bagagem, sei lá, não gostaram, mas pra mim que não tenho, foi
bom. E a R. na verdade representou um papel muito importante aqui, porque ela
trouxe uma grande mudança, talvez ela fez de forma errada, mas foi muito
importante porque algumas coisas que tinham que mudar. Não sei se ia ter
alguém bonzinho que ia fazer e agradar todo mundo, e eu acredito que pra ela
também não foi nada fácil não, e ela buscou muitas coisas né, algumas deram
certo, outras não.
Pesquisador: E quanto tempo você ficou afastada?
Fiquei nove meses. E foi muito difícil ficar longe das crianças. Tanto que o
médico não queria deixar eu voltar sabe, mas eu precisava trabalhar, precisava
voltar. Pra mim ia me fazer bem, ia fazer eu ficar melhor mais rápido. E ele viu
meus exames e perguntou se eu tinha certeza de que queria voltar a trabalhar. E
eu insisti. Aí ele me liberou. E realmente, mesmo assim, que eu tava com o corpo
muito endurecido ainda, é difícil voltar, e ainda tô em tratamento na verdade, mas
Só de voltar já me sinto melhor. O médico não queria me liberar, mas eu quis
muito voltar. Eu tava careca ainda, e isso foi uma coisa que me pegou bastante, aí
voltei de lenço, e as meninas falavam: joga esse lenço fora, aí que decidi tirar o
lenço, o cabelo tava bem curtinho aí eu passava uma maquiagem, e as meninas
falavam que eu tava parecendo a Elis Regina. E aí eu fui voltando aos poucos e
deu tudo certo, porque trabalhar faz tão bem! Principalmente se for com criança A
criança tem uma energia tão boa. E aí eu fui me recuperando. De vez em quando
154
tenho uns piripaques, esses dias mesmo fiquei mal, e no ano passado, nesta
mesma época fiquei mal também. É assim, você vai fazendo o tratamento e
parece que vai sobrecarregando o organismo, aí chega uma hora que estressa
tudo sabe, mas agora eu já to bem melhor. Mas é muito difícil porque é uma coisa
que não depende de você. É o seu corpo que ta doendo, que tá mal, a cabeça até
que ta melhor, mas o corpo não acompanha sabe, então é difícil, tem que ter
muita fé em Deus e muito apoio. Mas a gente supera tudo. Mas eu to feliz, só que
agora eu acho que eu quero aposentar, sabe Carla, quando der. Eu amo o que eu
faço, mas agora eu acho que eu fiquei muito pra trás das coisas, nessa parte
pedagógica né.
Pesquisador: Por que você acha isso?
Não sei, de repente eu fiquei assim, num impasse, porque eu vejo que eu
consegui deslanchar no que eu penso, mas muitas vezes não consigo expressar,
essa parte de tecnologia também é difícil, não encontro tempo pra fazer essas
coisas, e particularmente não gosto muito. A parte que eu gosto mesmo é de
cuidar, tanto que eu falo que Deus coloca as pessoas certas na minha vida,
porque eu sempre fico com parceiras de trabalho que gostam dessa parte, e que
apesar de toda essa parte pedagógica ser importante, a gente sabe que tem uma
parte que é assim, não cuidar só e trocar, por exemplo, mas de você conversar, de
você ensinar, e que são coisas que você não precisa escrever nem aparecer e
que são muito importantes, e eu gosto mesmo, das crianças, de fazer as coisas
com elas.
Pesquisador: Mas e os seus registros pedagógicos, que você começou a
me contar lá no começo da entrevista, que chegou um momento em que precisava
começar a registrar. Como é hoje?
Então, eu escrevia, mas era difícil. Depois melhorou, mas eu sempre tive
muita dificuldade de escrever, pra escrever uma coisa pequena eu levava muito
tempo, porque eu mesmo fico olhando e pensando que não tá bom, porque eu
quero fazer uma coisa bonita, mas eu sei que não é por aí, porque você vai
155
aprendendo fazendo, não tem outro jeito né, mas ainda tenho dificuldade. Mas
melhorou bastante porque no começo era um desastre. Ás vezes eu anotava as
coisas aqui, levava pra casa e ficava tentando fazer alguma coisa que ficasse
legal, e depois que chegou esse grupo novo de professoras, aí tinha sempre
alguém que queria fazer, aí a gente vai deixando. E eu adorei quando vocês
chegaram!
Eu acho que deu até vida pra creche. A creche mudou a cara, mudou tudo
na verdade, porque você vê pessoas que querem fazer algo diferente que quer
mudar, que quer colocar em prática aquilo que aprendeu. Nossa foi muito bacana.
Essa parte foi o que eu mais gostei porque a creche realmente mudou de cara.
Tanto que eu trabalhei no CECI e a gente vê a diferença em tudo, até na parte
física, no mobiliário, em tudo. Tinha coisa lá que eu via e falava: gente, vocês
ainda tão nesse tempo. Então foi muito bom. Eu falo que tem pessoas que não
querem nada com nada, mas tem pessoas que gostam né.
Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,
tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.
No começo, que eu não entendia nada de Pedagogia, pra mim era tudo
normal, era aquela coisa de cuidar mesmo, tinha a parte da saúde, da
enfermagem. Aí depois do magistério eu comecei a ter outra visão, comecei a ver
que não era só isso que a criança precisava, então aquela coisa de fazer muitas
trocas de fralda no dia, tudo muito limpo, não precisava nada daquilo. O
importante é a gente ver que a criança ta bem, brincando, está feliz. Então antes a
creche era a extensão do hospital né. E eu gostava muito da psicóloga da creche,
porque como ela não veio do hospital, ela tinha um olhar totalmente diferente. E
sabe que das pessoas que chegaram neste grupo de professoras novas, tem três
pessoas que eu destaco: você, a R. e a A. Foram as pessoas que mais ficaram
comigo. Foi uma pena que eu fui pro CECI, eu acho que eu perdi muito, na
verdade eu voltei no tempo, e a gente via o tanto que a creche área de saúde tava
à frente do CECI, e ainda bem que eu voltei. Eu gostava muito de lá,
principalmente do berçário, porque tem muita diferença do espaço do berçário
156
para o maternal. No berçário é um grupo que trabalha bem, que também
conseguiu melhorar nessa questão de fazer projetos, mas não tinha também muita
cobrança né, a Diretora, na verdade não queria nem que fizesse. Eu lembro
quando a professora I. chegou lá com o computador dela e com alguns projetos,
nossa, a enfermeira já começava a cortar quando a gente sentava junto pra ver os
materiais. Aqui também tinha né, algumas coisas tinham que ser do jeito que as
enfermeiras queriam. O problema é que elas não queriam ouvir o outro lado,
porque poxa vida, se você ta vendo que tá chegando coisa nova, porque não
deixar espaço pras pessoas trazerem, mas elas não queriam, porque já era medo
né de perder o poder. Eu entendo que pra elas foi difícil mesmo. Porque aqui o
espaço era delas, a diretora foi escolhida a dedo, ela veio do hospital e essa
creche era dela né. E depois que ela aposentou e veio a outra diretora enfermeira
ficou pior ainda né, porque ela era arrogante, porque a primeira era autoritária,
mas tinha um carinho muito grande entendeu, então eu até acho que ela ouvia um
pouco mais a gente, e a outra trazia você pra perto dela, fazendo você pensar que
ela era boazinha, mas não era nada disso.
Pesquisador: Antonia, infelizmente nosso horário de entrevista está
terminando, vamos ter que parar, mas eu queria muito mesmo te agradecer,
queria dizer que a minha história de mistura com a de vocês um pouco, e não sei
se você vai se lembrar mas a primeira professora que eu conheci quando cheguei
na creche foi você, e eu me lembro que eu nunca tinha pegado um bebê no colo
antes, e eu via você fazendo tudo com as crianças com tanta tranqüilidade e
paciência e eu fiquei te observando em tudo pra poder aprender com você. E eu
poderia escrever esta história de muitas maneiras, poderia entrevistar muitas
outras profissionais que passaram por aqui, mas eu não quis, porque eu admiro
muito a história que vocês construíram aqui e por tudo que eu pude aprender aqui
com vocês.
Obrigada Carla, e eu também gostaria de falar uma coisa pra você. Eu te
admiro muito mesmo, do fundo do meu coração. Eu lembro uma época que você e
a R. formaram uma dupla no Maternal I, e eu achava muito bacana porque você
157
não tinha nojo de nada, você metia a mão nas coisas, fazia cada coisa com as
crianças, e eu pensava assim, nossa uma moça tão bonita, estudada e tudo e
realmente gosta do que faz, faz de tudo pelas crianças!
Muito obrigada Antonia, por tudo!
158
3º Transcrição
Data: 12/06/2013
Professora entrevistada: Eliana
Pesquisador: eu queria saber um pouquinho como que você ficou sabendo
desse processo seletivo, se foi um processo seletivo, se foi por concurso, se teve
prova, o que você fazia antes, como foi essa entrada sua na creche.
Eu trabalhava, era monitora de ônibus, sabe assim, numa escolinha que
tinha no Cambuí, e a gente ficava assim, no ônibus orientando as crianças, e
descia com as crianças, tinha um guarda-sol enorme que a gente descia se tava
chovendo, pra levar as crianças até o adulto que vinha buscar, e, tanto quando
levava pra casa, quando trazia pra escola, e.... a gente ia cantando com eles,
brincando, era monitor de ônibus mesmo, era essa minha profissão.
Pesquisador: quantos anos você tinha?
Ah eu comecei, eu acho que eu tinha uns 16, 17 anos, é, era monitor de
ônibus. E eu lembro que, quando eu comecei eu falava assim: nossa, eu ainda
vou ganhar pra fazer isso! Porque era muito gostoso, a criançada né, é gostoso.
Aí, lá mesmo tinha algumas colegas que falaram depois com o tempo que tava,
que ia ter o concurso, que ia abrir uma creche na Unicamp, que já tinha o CECI,
mas ia ter outra creche, que era pra área hospitalar, e que ia trabalhar meio
período, ainda tinha isso né, naquele tempo. E aí todo mundo resolveu fazer
inscrição, daí eu fui perguntar pra minha sogra, que trabalhava no CAISM, e ela
falou “Ah, vai ter mesmo”. Aí eu lembro que no último dia eu vim fazer a inscrição.
Aí fiz a inscrição, nós fizemos a prova. Na época tinha a prova, depois tinha uma
dinâmica, que eles chamavam e a gente fazia uma dinâmica, eu lembro que já foi
com a R. que era a diretora na época, tinha, ... ah, quase todo do mundo da época
tava: a E., a E. acho que foi a última pessoa que conversou comigo, e eu não me
esqueço que tava eu e a Maria Queiróz, se não me engano, e, depois tinha essa
dinâmica, e depois a gente fazia uma entrevista sozinha, que no meu caso foi com
a E., que era a última coisa, e daí somavam-se essas notas que eles davam, tal, e
159
aí eu não lembro muito bem minha classificação, eu sei que logo depois, porque
nessa época ia chamar muita gente, veio até algumas meninas do CECI e tal, e aí
nós começamos na creche, e eu lembro assim, que no começo não tinha quase
criança, e eu tive que vir, até vim, fiz o aprimoramento, tal, mas eu não consegui já
na época ficar porque a Unicamp tava em greve e eu não consegui fazer os
exames que tinham que ser feitos, bem naquela época acho que ficou 60 dias de
greve, acho que era a mais longa, tal, nós tivemos que esperar, e aí depois nós
começamos, na época assim, não tinha, tava-se fazendo matrícula, logo
começaram as crianças, e eu ficava muito assim, é, ajudando no começo que eu
cheguei, e depois logo eu já peguei uma turminha no maternal II, na época a gente
ficava muito tempo com a mesma turma e com a mesma colega, demorava assim
pra trocar. Só que assim, era tudo muito diferente né, é assim, a gente brincava
porque hoje a gente lembra parecia Buffet mesmo, sabe, aquelas coisas que
sobravam de aniversário a gente trazia, colocava tudo muito no alto, a gente não
tinha uma visão assim, era o que a gente, assim, uma ia passando pra outra, é o
que se tinha. Mas a gente já tinha alguma sensibilidade, alguma noção, porque
quando a gente começou a estudar que a gente fazia porque assim, eu falava
assim “nossa a gente fazia isso e eu não sabia muito bem por que, porque a gente
tinha que mostrar pras crianças, mostrar o que era da natureza, mostrar o mundo,
e a gente com o tempo ia vendo a concretização do aprendizado conforme eles
iam crescendo, ia mostrando as coisas pra eles, e eles iam aprendendo, vendo o
desenvolvimento de cada um, era assim.
Pesquisador: quando você entrou, você tinha acabado de fazer o ensino
médio, e você não fez magistério? Como foi?
Não fiz magistério, porque na verdade pedia o ensino médio e cursando
ainda, e na prova tinha assim, eles pediram alguma coisa de matéria de
magistério, eu lembro que tinha alguma coisa de Piaget que eu fui atrás de um
livro pra estudar, de uma prima minha que tinha feito magistério, porque eu nunca
nem tinha ouvido falar de Piaget naquela época, nada disso porque eu não tinha
estudado nada disso, e....., mas caiu muita coisa da área de saúde, porque na
160
época era muito assistencialista porque eram as enfermeiras.... então caía assim ,
eu lembro nitidamente da minha prova de cair assim: as vacinas que uma criança
é obrigada a tomar no primeiro ano de vida, e eu sabia porque eu já tinha meu
filho, na época.
Pesquisador: você já tinha se casado?
É, eu casei com 18 anos. Então, eu lembro que caiu isso, caiu como
dedetizar areia, caiu umas coisas assim que era típico da área da saúde, mas caiu
alguma coisa de alguns livros que eles pediram pra ler. Eu lembro que caiu sobre
sexualidade infantil, que era um livro que eu não lembro o autor, mas eu lembro
que na dinâmica eu tava muito nervosa, com medo, e eles me fizeram uma
pergunta, e eu lembro que eu não fui muito bem na prova, assim, tirei a nota que
precisava tirar pra passar, mas na dinâmica minha nota melhorou muito porque na
verdade a R. me perguntou uma pergunta sobre a sexualidade infantil, como eu
agiria no caso e era justamente o que eu tinha lido, a parte que eu tinha lido do
livro que eu me interessei muito, tal, e que eu fui muito bem no que ela perguntou
e foi quando minha nota melhorou. Então caía alguma coisa de teoria, mas caía
muita coisa sobre saúde, enfermagem, e foi assim.
Pesquisador: e exigia alguma experiência com criança?
Exigia. A gente tinha que trazer uma carta da instituição onde você
trabalhava, e assim, essa carta podia ser, como a minha escolinha lá não era
registrada, porque antigamente tinha muito isso né, então podia ser da dona, da
proprietária da escola, ou então eu lembro de colegas que trouxeram uma carta
que trabalhava de babá, sabe assim, não precisava ser uma coisa oficial, não
precisava estar registrado na carteira, e na época eu não era mesmo nem
registrada, eu tinha um contrato de trabalho de monitora de ônibus. Então foi onde
eu trouxe essa carta, e era só o que precisava, e muita gente chegou cursando o
ensino médio mesmo. E tinha algumas colegas nossas que fizeram o concurso
antes e que entraram pra trabalhar no CECI e o concurso de lá era de técnico de
enfermagem, pra enfermeira, não era pra professora.
161
Pesquisador: mas pra atuar com as crianças?
É. Porque era bem assistencialista mesmo e porque a creche era direito da
mãe né, não era direito da criança. Então era assim, a mãe tinha o direito e queria
um lugar pra deixar seu filho, tanto é que a gente seguia rigorosamente os
horários da mãe, o horário da mãe almoçar. Se mudou o horário do restaurante,
mudou o nosso também. Se as mães saíam em certo horário por causa do
fretado, a gente saía também. Seguia rigorosamente os horários da mãe.
Pesquisador: e você lembra assim de uma discussão que teve bem no
começo quando abriu a creche que iria funcionar de noite?
Lembro. No meu contrato ta, que se precisasse, a gente ia ter que dar
plantões esporádicos, e se precisasse, eu era uma das pessoas que foi contratada
para trabalhar à noite. Se tivesse a demanda, se as mães se interessassem na
época, só que daí não aconteceu. Nunca abriu à noite, não teve o número
suficiente de crianças, mas a estrutura da creche era pra abrir à noite, já tinha até
as funcionárias certas que iriam trabalhar à noite, não sei se eram todas que
entraram na época, mas o meu contrato é específico isso. Mas na época você não
se atentava pra nada disso, porque o que você queria era começar a trabalhar,
ficar com as crianças. Na época era recreacionista.
Então a gente fazia assim mais era a parte de cuidar, muito cuidar e mais
aquela coisa assim da recreação mesmo, a gente tinha muita coisa assim, toda
data tinha festa da primavera festa não sei do quê, brincadeira não sei do quê,
porque toda data comemorativa tinha que ter aquelas brincadeiras porque era
recreação com a criança a criança brincava muito, então a gente fazia dinâmicas
no parque, porque tinha que ser assim porque era recreação, e a criançada..... ah,
criança é sempre criança né, em toda época. E eu não sei, a gente brincava muito
mais com eles do que o que a gente vê hoje, mesmo no maternal I que é uma
faixa etária que a criança não brinca sozinha, ainda precisa brincar com ela né, e
mesmo no Maternal II que ela já brinca sozinha, parece que a gente brincava
muito. Ah, era muito divertido, tanto é que a gente comenta que não vimos o
162
tempo passar, porque eu acho que quando a coisa foi boa você não vê passar. E
nós passamos nossa vida inteira aqui, porque você passa todos os momentos
bons, as dificuldades, nós passamos tudo aqui. As lutas que tivemos que
correr atrás de muita coisa pra mudar, e ao mesmo tempo era tão bom. E quando
chegavam as colegas novas, traziam experiências, porque nós ficamos muito
tempo só nós aqui, tinham as contratadas da Funcamp mas era só nós, e assim,
ficamos muitos anos só, eu trabalhei praticamente 12 anos com a mesma colega,
tinha assim no módulo, mas a gente não trocava, não tinha a experiência que tem
agora, e... eu lembro bem do primeiro concurso que teve, depois acho que de 16
anos, e que chegaram as colegas novas assim e traziam ideias novas, coisas
novas, eu acredito que elas aprenderam com a gente e nós aprendemos também,
mas era muito bom. Elas achavam muitas coisas estranhas, algumas elas
elogiavam, muita gente veio de trabalhos mais difíceis, creches que tinham muitas
dificuldades.
Pesquisador: Você lembra de alguma coisa que elas viam e achavam
estranho?
O que elas estranhavam muito era a parte de saúde, porque nós tínhamos
as enfermeiras que ficavam aqui o tempo todo. Muitas vezes a gente dava
remédio, por exemplo, sulfato ferroso para os bebês, eram as professoras que
davam meia hora antes do almoço, mesmo tendo um monte de enfermeira na
creche. Termômetro, era a gente que colocava. Inalação, porque falava-se que a
criança ficava mais confortável com a professora, que era recreacionista, então
era a gente que acabava muitas vezes fazendo, e elas achavam isso tudo muito
estranho, na realidade delas não existia isso. E nesse concurso a categoria ficou
um pouco dividida porque o pessoal da equipe técnica e também algumas
professoras queriam que nesse concurso exigisse “pedagogia cursando”. Só que
outra parte não achava justo porque a gente tinha várias colegas que só tinham o
magistério, que eram da Funcamp e iam ser mandadas embora, e não poderiam
prestar o concurso por causa disso. Então foi outra luta que a gente teve,
fizemos mobilizações, paramos em frente à reitoria. E o pessoal achava que a
gente tava retrocedendo, mas na verdade era por causa das colegas, pois muitas
163
delas acabaram passando e estão com a gente até hoje. Então o concurso aceitou
o magistério. E naquela época a gente já tava também fazendo o magistério.
Aí nós terminamos o magistério e ficamos assim um tempo. Depois que nós
começamos a fazer pedagogia que ainda tem uma última turma que ta acabando
agora. Mas na época, tinha pressão de todo lado, porque falavam que a gente
tinha que estudar, mas ao mesmo tempo quando a gente reivindicava alguma
coisa, por exemplo, quando a gente via vocês questionando as coisas e a gente
questionava também e dizia que a gente também tava estudando, tinha gente da
chefia que falava: mas quem ta falando que vocês têm que estudar? Vocês não
sabem se vão mudar na carreira. Tinha umas coisas assim. Mas ué, o estudo
nunca é perdido né, o conhecimento né, então era a resposta que a gente tinha,
porque tinham algumas professoras que queriam estudar pra prestar outros
concursos né, mas tinha um grupo que já tava aqui há muitos anos, e que a gente
não queria sair da UNICAMP, então eu lembro que eu comecei fazendo o curso,
era normal superior, e o pessoal falava que esse curso não iria valer mais, e eu
queria fazer pra poder melhorar meu salário, eu não queria sair da UNICAMP, mas
eu poderia prestar o concurso do PRODECAD, porque lá o pessoal ganhava
melhor, aí eu até perguntei pra Diretora de lá se esse curso valia, e ela me disse
que sim, que era pra eu fazer. Só que eu tava fazendo, era eu, a Flor, mais um
pessoal. Aí o que aconteceu: no meio do curso eles mudaram a grade do curso,
porque realmente não ia mais ter esse curso. Aí aumentaram o curso em 6 meses,
e aí virou Pedagogia. Mas eu cheguei a prestar o concurso do PRODECAD e
passei. Só que antes eu tava fazendo estágio e no estágio eu descobri uma coisa:
eu não queria trabalhar com as crianças grandes, sabe quando você descobre que
gosta dos pequenininhos? Eu sentia tanta falta da creche, daquele barulho de
criança pequena brincando, sabe! Eu não gostava muito dos grandes. Aquela
coisa assim do bebê que fala com você com o olhar, o maternal I que me
encantava mais porque no maternal I tudo acontece, você vê a concretização do
aprendizado em cada coisa, começam a falar, as gracinhas, começam a comer
sozinhos, controle do esfíncter, então, todo aquele processo. Tanto que tinha
gente que reclamava que sentia muita dor no corpo quando ficava lá, e eu nunca
164
senti nada, acho que é porque eu gosto muito. Acho que a criança tem uma
coisa que te ensina que é nunca levar nada muito a sério.
Uma vez eu tava filmando uma criança pra um estágio do magistério. E eu
fui filmar uma professora do concurso novo que chegou trocando uma criança, e
ela me falou assim: “ mas você vai me filmar nessa atividade decadente?”. E eu
pensei meu Deus, coitada dessa criança que ta na mão dessa professora. Porque
tudo o que você faz é uma atividade, você conversar com a criança enquanto ta
trocando... A criança vai passar 1 tempo da vida dela usando fralda, então pra ela
aquele momento é importante. Então aquilo eu achei um desrespeito tão grande
com a criança , porque pensa bem, a mãe pega o filho, que é o bem mais precioso
que ela tem e te entrega, pra você tomar conta, educar, cuidar, e essa professora
falou aquilo. E ela já tinha entrado na creche com pedagogia e acho que já tinha
mestrado, mas não tinha nenhuma sensibilidade de perceber que isso também é
uma atividade. Gente, o que é trocar uma fralda! É um carinho para a criança,
você ta cuidando dela. Então ao mesmo tempo que entraram profissionais que
enriqueceram a creche, muitas que vieram a gente falava, nossa, essa não vai
ficar, não é isso que ela quer, trabalhar com criança pequena. E a maioria foi
embora mesmo, porque não era aquilo. Às vezes viam a gente penteando o
cabelo das crianças e falavam, ué, mas virou salão de beleza aqui! Mas não era
nada disso, a criança pedia pra você prender o cabelo dela, que que tem demais?
É um cuidado né, não dá pra separar. E eu não sei como que consegue separar
as coisas, porque a criança é um todo, você não separa o cuidar e o educar.
E tem outra coisa que eu vejo de diferença entre as professoras mais
antigas e as novas que é assim, o chamar atenção. Porque assim, eu não gosto
que me chamem atenção na frente dos outros então, não são todas, mas eu já vi
muitas vezes as colegas levando a criança pra um canto pra conversar e chamar a
atenção quando precisa, então eu vejo que isso a gente aprende mesmo com a
experiência sabe.
Pesquisador: E porque você acha que pensa assim, nessa sua maneira de
enxergar o trabalho, você acha que vc pensava assim desde quando vc chegou
165
aqui, ou foi por conta da experiência, da formação, o que fez vc ser a professora
que vc é hoje?
Olha, eu tinha uma professora da faculdade que dizia assim: que em uma
turma de pedagogia ela conseguia ver quem tinha sensibilidade e seria uma boa
professora e quem não ia, porque às vezes você tem muita teoria mas também
você não teve a prática. A prática te ajuda sim, mas eu acho que a sensibilidade, o
cuidado ao outro, o respeito à criança, então um pouco eu acho que já vem com a
pessoa. A experiência ajuda, mas às vezes a gente vê por exemplo, uma
estagiária, sem experiência, mas que você vê o carinho, a dedicação que ela tem,
então você vê que ela vai ser um ótima professora. Lógico que também tem gente
que vai trabalhar a vida inteira e não vai ter essa sensibilidade que eu to falando.
Então eu acho que tem que gostar mesmo de trabalhar com os pequenos. Eu não
consigo me ver em outro lugar. O meu medo das mudanças, cada vez que
mudava um reitor, uma direção, o meu medo era me tirar das crianças, eu não
consigo me ver fazendo outra coisa. Ficar com as crianças pra mim é tão fácil,
que mesmo com as mudanças, as novas exigências de trabalho eu sempre achei
que tudo eu podia aprender, porque fazer o que eu gosto eu já faço, então o resto
eu aprendo. Então eu já vi professora com muito conteúdo, mas que se ficar 5
minutos sozinha com um grupo grande de crianças ela fica apavorada. Então, pra
mim, eu não vejo a hora passar quando eu to com as crianças, até hoje. E o
momentos mais difíceis que eu tive na minha vida, eu pensava assim: meu Deus,
como eu queria ta lá na creche com as crianças. E de um tempo pra cá, quando
eu tiro férias, eu sinto falta desse ambiente. Esse ambiente pra mim é o mais
saudável que tem. Muita gente pergunta como a gente consegue ficar aqui nessa
choradeira, mas eu não tenho essa visão, eu gosto do berçário, dos bebês, é o
local que eu sinto menos cansaço, parece que recarrega minhas energias. Lógico
que tem época que a gente fica mais cansada, quando ta chegando perto das
férias, mas não é uma coisa assim.... eu acho que eu nasci pra isso. É um
trabalho que nunca fica monótono, nunca fica rotineiro. E eu não conseguiria ficar
em um lugar pra trabalhar parada.
166
Pesquisador: Bom, vamos voltar a falar sobre a formação profissional, em
que ano você foi fazer o magistério?
Foi mais ou menos 2002, 2003. E logo depois a gente foi fazer pedagogia,
porque daí começou aquela conversa de que ia ter que fazer pedagogia, que o
magistério não ia valer mais. Então, nem todas fizeram logo, mas eu, a Flor, a
Ana.
Pesquisador: E por que vc foi fazer o magistério? Porque em 96 saiu a LDB,
então pra vocês irem estudar, teve alguma discussão nesse sentido? Teve alguma
pressão?
Bom, a equipe técnica não queria que a gente fosse fazer, porque o que
prevalecia era a enfermagem. Até teve uma reunião que a gente questionou o
negócio da inalação, que a gente não queria mais fazer, porque a gente tava
estudando pra ser professora e elas disseram: mas quem falou que vocês tinham
que ir estudar? E a gente queria mostrar que a gente tava estudando, que queria
fazer outras coisas com as crianças. A gente começou a estudar e queríamos
mostrar que o professor não é pra fazer isso, ainda mais com tanta enfermeira
aqui. Na época tinha tanta enfermeira na creche. E aí aconteceu comigo de
questionar a enfermeira e ela me dizer que era uma colaboração que eu tinha que
dar e eu falei que não era, porque uma criança minha teve que fazer 15 sessões
de inalação e eu fiz as 15, e nessa época a gente começou a fazer projeto
pedagógico, e às vezes tinha que parar com a atividade pra ir fazer inalação, e a
gente começou a questionar.
E o estudar mesmo, Carla, foi assim, tinha um boato assim, que quem não
fizesse o magistério ia ter que sair da creche, então pensa o medo que ficou o
povo! Como que a gente ia largar as crianças! Mas era só boato porque teve uma
que nunca quis estudar e tá aqui até hoje. Mas eu fiquei com tanto medo de ficar
longe das crianças que eu fui fazer. E logo que eu terminei já iniciei a Pedagogia.
Mas teve uma que nunca foi fazer e que ta aí até hoje, nunca aconteceu nada com
ela. E a gente ganhava tão pouquinho na época que a gente foi pedir ajuda na
Unicamp pra poder pagar. E hoje é que a gente vê que ganhava muito pouco, mas
167
aquele pouco era tão bom porque a gente era tão feliz no que fazia, então... Então
todo mundo foi estudar, e eu acho que a maioria acho que foi por causa da Lei
mesmo, que a educação infantil ia fazer parte da educação básica. Aí fizemos o
magistério e todo mundo fico feliz que ia ficar na creche. E aprendemos tanta
coisa, e assim, tinha coisa que a gente via e ria porque a gente tava lá na aula e a
professora falava alguma coisa e uma olhava pra outra e ria, porque ela falava de
coisas que a gente fazia mas não sabia o porquê. E ela tava mostrando pra gente,
a teoria! E aí, quando a gente ia fazer, por exemplo, um relatório de avaliação da
criança, a professora ensinava a gente a fazer este relatório dento das teorias, e
muitas vezes a gente já fazia, ou era a pedagoga da creche que fazia, porque lá
no CECI era diferente, porque era a pedagoga que escrevia, mas na CAS a gente
já escrevia nessa época, então era tudo dentro do que a gente falava. E às vezes,
a psicóloga da creche por exemplo, perguntava pra gente o que a gente achava
de alguma coisa sobre a criança. Aí no outro dia, ela tava conversando com a mãe
e falando tudo o que você falou pra ela! Então pegava a fala de sua experiência,
porque era você que conhecia a criança! Então a gente ria muito. E nós não
fizemos o magistério todo mundo no mesmo lugar. Uma turma fez em Paulínia e
outra turma fez em Hortolândia. Mas todas nós víamos que a gente fazia as coisas
com as crianças, não sabia direito porque tinha que ser feito, mas já tinha a
sensibilidade pra fazer.
Pesquisador: E o que você consegue trazer do magistério para a sua
prática? Mudou alguma coisa depois que você fez o magistério ou não?
A prática mudou porque eu comecei a registrar, eu via as coisas que eu era
falha, porque às vezes a gente fazia algumas coisas que não tinha nada a ver, e a
Pedagogia me ajudou a entender o trabalho dentro da sala e a ver o
desenvolvimento das crianças, que hoje eu consigo ver, e antes as coisas
passavam por mim e eu não conseguia perceber, eu consigo estudar aquela teoria
e visualizar na prática com as crianças.
Porque tinha muita atividade que a gente fazia, por exemplo, atividade de
percepção que a gente fazia com os pequenininhos, tinha muita professora do
168
concurso novo que acordava criança pra fazer atividade e muitas vezes eu falava
em reunião que não deveria ser assim, e eu não era compreendida, porque aí a
gente tava vendo só a teoria e jogando a criança fora, porque a concretização do
aprendizado é assim, por exemplo, você mostrar uma fruta pra criança, depois
mostrar no livro, depois a criança pegar, experimentar, enfim, e depois a mãe vir te
contar que passou na feira com o filho e ele reconheceu aquela fruta que você
trabalhou, isso é concretização do aprendizado, é a criança aprendendo com
alegria! Porque o projeto principal da creche tem que ser a criança feliz na creche.
A escola boa é aquela que a criança ta feliz. Ela estando feliz ela aprende. Então
quando eu via as professoras tirando fotos das atividades e as crianças chorando,
eu pensava: isso ta errado e a teoria tem que mostrar pra gente que isso ta
errado. Muitas vezes, em algumas festas que a gente fazia, Carla, a gente
expunha as crianças, e eu aprendi isso com a teoria e prometi pra mim mesma
que nunca mais iria fazer isso. A gente queria mostrar pros pais, porque eles
ficavam muito felizes de ver, e a gente esquecia das crianças. Então era um
sacrifício muito grande aqueles ensaios para aquelas festas! E a partir do
momento que eu vi na teoria que a criança não precisa disso, que na verdade fica
tudo lindo, mas a que custo você fez aquilo! A depois que a gente estudou isso
mudou. Tinham as festas, mas a gente começava a dançar, por exemplo, e
ficava observando as crianças, e a gente começava a imitar os passos deles!
Então era tão mais fácil e tão natural porque vinha deles! E é tão engraçado
porque as crianças do Maternal I querem mostrar tudo o que eles aprenderam,
então a coisa fluía que era uma beleza. Então eu aprendi com a teoria nesse
ponto. Porque no começo.... nossa.... a gente pegava pesado com as crianças pra
ensaiar. As crianças de quatro anos dançavam a quadrilha inteirinha, com os
passos tudo, pensa no custo que foi aquilo. E peça de teatro que eles
apresentavam! A gente expunha eles, e eles não queriam. Eu lembro de uma
menininha que depois que eu fui aprender a teoria, de como a criança tem seu
tempo pra se desenvolver, e às vezes você força isso, então essa menina ensaiou
tudo, mas no dia da festa ela vestidinha de bruxa tinha que entrar, e ela não
entrou e eu fui ver o que tava acontecendo e ela tava de grito porque não queria
169
entrar. E assim, chefia pressionando porque precisava entrar, e eu falei assim, não
quer entrar, então não vai entrar né. Aí mudou o repertório da apresentação e ela
não entrou. Porque não tava sendo nada prazeroso pra criança, era um estresse
pra ela, mas tinha que ser feito. Acho que na minha época também fizeram isso
comigo, porque eu tenho muito trauma de muita coisa e eu acho que é disso.
Então com a teoria eu aprendi isso, que a criança, primeiro ela te ensina, então a
gente tem que observar o que ela traz, e depois, dentro dos interesses dela você
consegue ensinar tudo. Mas se não for do interesse dela, se não for de acordo
com a faixa etária, se você tiver forçando a barra pra mostrar porque é bonito, ta
tudo errado. E isso eu aprendi não só com a teoria, mas com muito do que vocês
trouxeram pra gente sabe, que nós conseguimos mudar também a mentalidade da
equipe técnica né, porque as festas também geravam muito lucro, sabe, então
tinha a dança, mas tinha que acabar logo a dança, pra começar vender logo as
coisas, sabe, e até hoje eu vejo isso por exemplo, na própria escola do meu filho,
então ainda é muito forte isso.
Pesquisador: É, eu penso que talvez, não é que nós ensinamos vocês. Nós
chegamos com um pensamento e vocês já estavam estudando e começando a
pensar diferente, então nós nos juntamos e tivemos mais força.
É verdade, e isso foi muito bom! Hoje quando eu passo e vejo os espaços
todos modificados, aquelas coisas todas preparadas realmente para a criança,
porque antes o espaço era preparado para a mãe, pro profissional, pra ser mais
fácil pra ele, pra criança não estragar, era tudo no alto, tadinhos eles não viam
quase nada, no começo era assim, e parecia um Buffet. Pensa numas festas que
eram um verdadeiro Buffet! Hoje não. É tudo coisa deles, coisa simples, que eles
se identificam. Mas também era a visão de criança que tinha na época né. E
assim, se você pegar nossos materiais antigos, assim, umas pastas que a gente
ainda tem, tinha assim, desenhos sabe, um cachorro por exemplo, não tinha a
imagem do cachorro de verdade, era um desenhinho, e eu desenhava!! E as
atividades, era assim, não tinha um tempo pra fazer a atividade, era assim, ah,
tem que fazer então vamo fazer logo, põe a mão logo aí na tinta, o que era aquilo!
E hoje não, você curte cada momento, você observa a criança colocando o
170
dedinho na tinta, sentido, você vê o olhar dela. É muito diferente. Eu lembro
que antigamente eu também tinha assim, moldes de máscaras, tipo, do coelhinho
da páscoa, eu pintava o rostinho deles, tudo isso eu fazia até pouco tempo, e
depois que as meninas fizeram o curso da R., elas falavam: “O Eliana, não é mais
pra fazer isso!” Porque eu não fiz o curso. Pasta com molde de EVA, eu tinha
também e as meninas também falavam que não era mais pra usar. Mas mesmo
que eu não fiz o curso eu tentava ver aquilo que as meninas traziam pra poder
mudar também. Mas hoje em dia, de vez em quando alguém ainda vem e me
pede alguma coisa dessa pasta! Porque eu sou da época que a gente fazia
chapeuzinho de jornal e as crianças iam embora usando no dia da independência!
Hoje ninguém mais faz isso, mas as crianças adoravam brincar! Então parece que
também ficou uma coisa assim, ninguém sabe muito bem mais o que pode fazer
com as crianças pequenas! Hoje no berçário, por exemplo, eu trabalho muito o
“cesto do tesouro”, que foi uma coisa que veio com o curso da R. que valeu pra
caramba! Você percebe a alegria da criança de mexer nos materiais diferentes do
cesto. Mas eu também vejo que muitas coisas as crianças perderam com esse
negócio que às vezes a gente não sabe mais o que pode ou não fazer.
Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso,
alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na
educação infantil?
Bom, teve o magistério, a pedagogia, o curso da R. que eu não fiz, mas
aprendi muito com as meninas que fizeram, e as jornadas que tinham aqui, tinha
uns cursos que às vezes divulgavam e a gente fazia sorteio pra poder participar,
mas nada muito específico para a formação.
Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,
tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.
Olha eu acho o seguinte, mudou-se muita coisa, mas ainda se tem alguma
coisa da creche área de saúde, lá do início. Pela cobrança das mães, que não
entendem muito que a creche ta mudando, eu acho que é uma coisa lenta, se vê
no caso das férias por exemplo, né, e assim, até hoje, as minhas crianças que
davam plantão na época, as crianças depois de fazerem quatro anos, passavam
171
pro PRODECAD, e ali não davam plantão, mas as mães continuavam sendo da
área de saúde, então aí elas se organizavam porque não tinha pra onde trazer a
criança, e quando a gente falava isso, às vezes pra equipe técnica, elas falavam
que não importava porque a gente era da área de saúde. Quando a gente
reclamava dos atrasos da mãe, e isso até hoje é assim, a gente escuta: “ah mas
essa mãe trabalha no centro cirúrgico”, então, eu acho que se caminhou muito,
melhorou-se muito, hoje as mães vêm dar os remédios quando precisa, mas ainda
temos um laço com a area de saúde muito forte. As próprias mães por saberem
desse laço, exigem mais dessa creche do que do PRODECAD por exemplo, elas
cobram muito. E pelas mães terem conseguido essa conquista de ter a creche, a
gente sabe hoje que a creche é direito da criança e não da mãe, mas elas ainda
vêem como direito delas. Eu acho que devagar vai mudar, mas ainda tem isso.
E com relação à chefia eu acho que já mudou totalmente nossas práticas.
Eu acho que a gente tem uma autonomia hoje, a própria enfermagem incentivava
as mãe as passar algumas informações sobre a criança primeiro pra elas, e isso
prejudicava o trabalho porque nosso trabalho é feito com a confiança das mães na
gente também, mas acho que isso mudou muito. A enfermeira que tem hoje ela
não se intromete em nada em nosso trabalho, ela só contribui e atua na área dela.
Pesquisador: Bom, queria agradecer muito, obrigada por participar do
trabalho.
172
4º Transcrição
Data: 11/06/2013
Professora entrevistada: Flor
Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco
sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o
que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.
Você sabe que eu me lembro. Eu passei em vigésima primeira no concurso,
atrás da V. Nós conversávamos uma com a outra e engraçado que tinham duas
turmas, uma era do DGRH e a outra era do HC.
Pesquisador: Como assim?
Assim, era como se cada órgão tivesse ficado com uma turma, tivesse
separado, como se fosse o registro da gente, não lembro direito, eu só sei que por
exemplo, pra votar, eu tinha que ir votar no hospital, e outro pessoal votava no
DGRH, era diferente. Quem me entrevistou foi a R. (diretora). Antes eu já
trabalhava com criança, em uma escolinha, fiquei lá pouco tempo, mas eu
trabalhava.
Pesquisador: Quantos anos você tinha?
Ai meu Deus! Eu tinha uns vinte e cinco anos mais ou menos. E eu fiquei
muito feliz quando eu vi meu nome na lista dos aprovados. Eu tava tão apreensiva
que eu olhei primeiro na lista dos reprovados. Falei Ah, meu nome não está lá,
agora então vou ver nos aprovados! Então pra mim foi uma surpresa. Eles logo
me chamaram, acho que passou um mês. E quem me incentivou pra fazer esse
concurso foi o meu colega, o E.. Ele olhou no jornal e me disse que era pra
recreacionista. Aí eu falei, acho que eu vou prestar. Daí estudei né, mas acredito
que não tinha assim, o que você estudar, mas mesmo assim eu comecei a
estudar, a ver principalmente que era uma área hospitalar, de zero a tal idade, eu
sabia até as vacinas, hoje eu não sei mais, mas eu sabia direitinho. E... não tinha
muitas pessoas prestando porque na minha época o serviço público não era tão
173
bem remunerado como é hoje em dia entendeu, então eu lembro que tinham umas
duzentas, trezentas pessoas, e passei! Daí fiquei muito feliz quando eles me
chamaram pra fazer exame de sangue e tal, e daí nós iniciamos na creche.
Tudo novo, muita gente diferente, eu sempre fui muito tímida, então tinha
muita gente diferente que eu tinha que conversar. É... eu lembro, deixa eu ver... de
professoras também negras, deixa eu ver se eu não to sendo maldosa, tinha eu e
Maria Queiroz, só! Eu lembro da primeira colocada que passou se não me engano
foi a A., a A. acho que passou em décimo, só sei que foi um pessoal bom aí. Daí
nós fomos conversando, eu lembro que quem nos recepcionou foi a diretora e a
pedagoga, as duas enfermeiras, é, no início eu lembro dessas. Elas conversaram,
nos levaram pra conhecer a creche, cada ambiente. Porque era uma coisa que
nenhuma escolinha tinha, e ainda não tinha criança na creche. Então teve todo
esse momento de preparação, nós conversamos por vários dias, nos
apresentamos, e elas deram um curso pra nós.
Pesquisador: E você se lembra desse curso, como foi?
Ai, não lembro...mas lembro que elas falaram sobre a criança, falaram que
eram mães do hospital, depois teve uns dias que elas trouxeram muitos materiais
e nós enfeitamos a creche. Antes eu já trabalhava com criança, em uma escolinha
como auxiliar, mas era muito diferente. Uma creche nova, cheirava tudo a novo,
um espaço totalmente diferenciado. Eu lembro que até suspirava, eu tava
encantada, porque era uma coisa que nenhuma escolinha tinha. E quando a gente
chegou ainda não tinha criança, então nós enfeitamos a creche. Pintamos,
recortamos, colamos. E ficou tão bonito! Eu lembro que em uma das salas tinha
um enfeite de coração com um zíper, e desse coração saía um monte de
coraçõezinhos . Muito legal! Eu gostei muito e isso ficou bem fixo na minha
memória. E a minha primeira companheira foi a Maria Queiróz. Nós ficamos, eu
não lembro se foi a ultima ou a penúltima sala do Maternal I. Na minha turma
eu não lembro do nome das crianças, mas a companheira eu lembro. E nós
ficamos juntas um tempão. Porque era assim antigamente, nós ficávamos com a
mesma companheira pelo menos dois anos. E quando sua turma fazia aquela
174
transição, por exemplo, do maternal I para o maternal II, você ia junto com a
turma. Praticamente você entrava com a turma e saía com ela. Quando sua turma
saía para outra escola, aí você voltava ou para o maternal I ou para o berçário,
tinha essa escolha. A chefia falava que as pessoas tinham “perfil”. Assim, tinham
pessoas que tinham perfil para trabalhar no berçário, mas na realidade era a
aparência que contava. Eu elas falavam que tinha perfil para o maternal I e o II.
Berçário não. Não era só pra mim que elas falavam não. Mas também eu nunca
me propus a trabalhar no berçário, e tinham pessoas que gostavam.
Pesquisador: Mas por que te veio à memória essa questão da aparência?
É. Porque quando nós entramos eu era particularmente bem simples,
porque eu venho de um lar simples, assim, no trajar mesmo, entendeu? Então, as
meninas do berçário, eram, vamos dizer assim, mais charmosas. Mas era um
lugar que trabalhava-se muito também! Cada sala tinha dez crianças! O pessoal
trabalhava muito no berçário. E antigamente no berçário não tinham aquelas
gradinhas, era aquele espaço, lá, o quadrado, então os bebês passavam ali por
baixo, e era uma loucura, porque o pessoal ficava correndo atrás dos bebês.
Então, ao passar do tempo foi havendo aquelas reformas, elas foram nos ouvindo,
vendo que era melhor mudar o espaço, colocar um portão, e elas mesmas foram
vendo a necessidade do ambiente. Mas no maternal I nós éramos um pouco mais
livres na escolha de atividades, a pedagoga muitas vezes ensinava, muitas vezes
nós trazíamos coisas. Mas era muito assim, cuidar mesmo! Cuidar, higiene.
Depois de um tempo eu lembro que nós pedimos luvas. Não tinha ventiladores
nos banheiros, respiradores, e isso fazia muita falta. Então imagina um ambiente
onde você troca criança o tempo todo, então ficava aquele cheiro né. A
higienização do chão das salas! Nossa, você não via pó. Tinha muita preocupação
com a limpeza.
Pesquisador: Bom, vamos voltar um pouquinho. Você me contou que antes
de entrar na creche você tinha trabalhado em uma escola. Nesse período você já
tinha o magistério?
175
Não ainda não tinha.
Pesquisador: E por que você decidiu então trabalhar com crianças?
Porque eu já tinha um pouco de experiência né. Lá na escolinha eu não era
professora eu era auxiliar de sala e então eu vi que eu gostava de trabalhar com
criança, e antigamente não se exigia a formação. Tanto que no concurso daqui
precisava só ter a experiência e não necessitava nem estar em registro em
carteira. Podia ser uma carta da escola, podia até ser uma carta dizendo que você
era babá, e teve meninas que trouxeram. Então não tinha exigência nessa área. E
de estudo pedia acho que o colégio completo.
Pesquisador: Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com
as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?
Por incrível que pareça nós já fazíamos algumas atividades. Mas era muito
assim cuidar mesmo, muita higienização, era pautado muito no cuidar mesmo e
nós trocávamos muitas ideias entre nós sobre o que fazer na sala de atividade,
fazia muita coisa com giz de cera, eu lembro que nós cantávamos muito,
contávamos muitas histórias de livros, eu sempre tive materiais de feltro que era
algo diferenciado na época, aquele famoso flanelógrafo, algumas das meninas
tinham fantoches, então eu lembro que a creche começou a comprar isso, livros, a
pedagoga muitas vezes trazia as atividades e nós desenvolvíamos, então nós
trocávamos muito entre nós, então ficou aquele grupo ali das amigas. Eu vejo
sempre as crianças daquela época como felizes, nós não éramos tão didáticas,
mas nós éramos amorosas, eu via pelas salas né, na maneira como recebíamos
as crianças. Tinham crianças também muito trabalhosas, que nós muitas vezes
não sabíamos o que fazer. Eu tive uma menininha que era um “show”. Ela gritava,
fazia birra, se jogava no chão, ah não sabíamos o que fazer com ela. E tinham
outros também que eu não lembro mais essa menina me marcou. E hoje eu vejo
ela e está uma moça.
176
Pesquisador: Bom aí passou um tempo e vocês tiveram que fazer o
magistério. E o que estava acontecendo na creche nessa época em que as
recreacionistas voltaram a estudar?
Olha eu não me lembro muito, mas eu acredito que foi porque disseram que
se não tivesse magistério a gente não ia poder ficar na creche. Aí a maioria
começou a fazer. Eu lembro que algumas meninas iam estudar em um lugar longe
e com isso o que aconteceu, essas meninas trabalhavam à tarde, e a tarde tinham
menos crianças e menos adultos, e elas iam ter que sair mais cedo, aí nós que
éramos da manhã tivemos que socorrer a turma da tarde. Então eu trabalhava
um dia de manhã, outro dia à tarde, porque as meninas tinham que sair antes das
seis horas da tarde, aí nós ficávamos pra dar o suporte a elas, eu lembro que eu
ficava no berçário. E fizemos isso por vários dias, uma semana era eu, depois
vinha outra, eu acho que fiquei fazendo isso uns três meses, era cansativo, acho
que eu vinha três vezes por semana, segundas, terças e quartas. Aí depois que
esse grupo acabou, outro grupo foi, aí eu fui fazer o magistério, fomos eu, a Eliana
e a Ana, e nós fizemos lá em Hortolândia. A gente ia alguns dias na semana, mas
a aula era puxada, porque quando você tem um professor é uma coisa, mas
quando você não tem você tem que estudar por si só, tem que se aplicar, tem um
monte de coisa pra fazer em casa. Eu lembro que uma época nós fomos pro
berçário e estávamos todas estudando. Daí a Ana terminou e já foi fazer a
faculdade aqui na UNICAMP, e nós não fomos fazer ainda, fizemos depois. Só
que nessa época estudar ainda era mais fácil, por causa do nosso horário. Nós
trabalhamos acho que por quinze anos, imagina você trabalhar tanto tempo das
sete às 13:19hs. Os plantões pra nós, já estávamos acostumadas, porque o
pessoal que trabalhava no berçário da manhã era acostumado a dar muitos
plantões, uma faixa de três no mês, porque o número da tarde era menor. Aí
depois da mudança do horário passou um tempo, aí agruparam toda a turma de
quarenta horas no maternal I. E essa transição do horário foi horrível, impactante,
porque nem houve uma prévia, foi uma coisa assim, amanhã tem que começar a
cumprir o horário, e pras crianças também foi uma confusão porque tava tudo
mudando, então pra mim foi muito impactante, muitas coisas nós tivemos que
177
deixar de fazer, a Ana ficou doente. E antes da gente chegar neste módulo da
turma de quarenta horas, nós tínhamos que ajudar a turma da tarde, e era um rolo
porque nós tínhamos trabalhado muito de manhã porque as nossas salas eram
lotadas de crianças. Aí as crianças saíam e iam embora, aí nós fazíamos nosso
horário de almoço. Aí você chegava do almoço e tinha que ajudar a turma da tarde
que tinha menos crianças. E pra nós isso era o fim! E nós víamos também que
muitas das meninas da tarde se favoreciam disso e saíam. Largavam o parque pra
nós cuidarmos e iam tomar café de meia hora, quarenta minutos, e nós ficávamos
como.... cuidadoras! Esta é a palavra! Em sala nós tínhamos que entrar na sala,
sendo que o número de crianças era bem menor que o nosso. Isso pra nós era
estressante, porque você já tinha dado conta da sua sala inteira e muitas vezes
não tinha ajuda nenhuma, e à tarde tínhamos que ajudar turmas com seis crianças
às vezes, coisa que a própria professora do grupo dava conta. Às vezes já tinham
as duas professoras e nós entrávamos como terceira. E quando nós ficávamos na
sala dos professores, a chefe se incomodava com a nossa presença ali, não
podíamos ficar paradas. Uma coisa estressante, terrível, que incomodava, como
se nós não trabalhássemos, e nós tínhamos trabalhado o dobro de manhã, porque
as salas eram superlotadas, e até hoje é assim, o número de crianças da tarde é
bem menor do que o da manhã. Elas tinham mais tempo pra fazer muito mais
coisas, e muitas vezes de manhã nós não tínhamos tempo, tínhamos que ficar
com a criança mesmo.
Pesquisador: Você sentia alguma diferença na relação entre chefia e
professoras? Você acha que algumas eram tratadas como cuidadoras e outras
como professoras?
Ah sim! Isso daí ocorreu principalmente quando entrou as meninas do
concurso. Então, eu lembro da fala de uma das chefes que foi assim: “Agora está
entrando gente capacitada!” Tinha gente formada, psicóloga, eu lembro que
entraram várias, e eu lembro que eu sentia assim, era como se nós, em todo o
tempo que passou, não tínhamos feito nada! E você vai falar o que pra uma
pessoa dessa. O tempo dirá! Nada como o tempo. E quando esse pessoal entrou,
178
que diziam praticamente que iam nos ensinar, então o que nós fizemos, nos
afastamos e deixamos elas aparecerem pra ver o que elas iam nos ensinar. E
olha, muita coisa não era boa. Falava-se muito, mas atuava-se pouco.
Pesquisador: E você se lembra de algum exemplo que você viu e que te
marcou?
Então eu lembro de uma fala de uma chefe que ela falou assim: agora está
entrando gente capacitada! E quando ela disse isso nós ficamos paradas assim,
olhando, porque era como se nós em todo esse tempo não tínhamos feito nada, e
você vai falar o que pra uma pessoa dessa. E quando esse pessoal entrou,
praticamente para “nos ensinar”, então o que nós fizemos: nos afastamos e
deixamos elas aparecerem para ver o que elas iam nos ensinar. E a gente via que
se falava-se muito, mais atuava-se pouco. Uma vez estávamos no parque, e tinha
um menininho, e eu ficava só observando que muitas coisas eram de assustar
mesmo, porque falava-se muito bem, escreve-se maravilhosamente bem, então eu
ficava só olhando, porque você imagina eu que ainda ia fazer o magistério falar
alguma coisa pra uma tão gabaritada, eu não tinha o poder da caneta, digamos
assim, mas eu observava muito, e o menino no parquinho e a professora tratava
mal o menino, ela falava “não suporto esse menino”, “esse menino fede”, ela
pegou a fralda e lançou no rostinho do menino, o menino vivia com uma fraldinha
bem encardidinha, mas é criança né. E essa professora era considerada como ‘a
top’! Eu peguei o menino e falei: vem cá querido, fica aqui. “Ai, é melhor mesmo”,
ela falou. Eu vi professoras que perto da mãe da criança, era uma santa, mas
depois.... Nós falávamos, não. Por que? Porque elas eram as top! Elas eram
tratadas com diferença né, porque era um pessoal melhor, mais gabaritado. Claro
que também teve coisas boas. Eu lembro que uma das chefes dizia assim: “A
prática sobrevive sem a teoria, mas a teoria sem a prática não”. Então a gente
tinha a prática e elas tinham a teoria. Então nós juntamos. Muitas delas nos
ensinaram muita coisa boa. Teve meninas muito bacanas, um pessoal mesmo
muito legal! Porque a gente tem que estar aberta pra aprender. Ninguém sabe
tudo. Então, hoje em dia eu vejo assim, que antes eu tinha a prática, depois que
179
eu também passei a estudar eu vi que a teoria também ajuda muito. Ela me
alicerça no que eu vou fazer, porque eu posso dar determinada atividade e eu sei
falar o porquê estou fazendo aquilo, porque se a gente não conhece a gente faz
mas não sabe o porquê
Pesquisador: E dos cursos que você fez, quais você acha que te ajudaram
com o trabalho na educação infantil?
Olha, teve tanto curso bom.
Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática?
O magistério ajudou muito! A faculdade também ajudou. Porque nas aulas
nós conversávamos entre nós. Tinham pessoas de outras áreas que também
contribuíram, porque nessa época o Estado começou a pedir para os professores
de outras áreas a Pedagogia também. Então foi enriquecendo. E as companheiras
que você vai trabalhando também elas vão enriquecendo sua prática, e você vai
lendo e vai aprendendo muita coisa. O magistério foi uma coisa muito gostosa. Eu
acho que o conhecimento amplia, te abre novos horizontes. Você aprende mais,
presta mais atenção, fica com o ouvido mais atento nas crianças. Como se diz na
linguagem de hoje, você fica mais antenado, até mesmo a tecnologia hoje ajuda
muito. Muitas coisas você pode buscar, pesquisar, você lê muita coisa legal. Ah,
lembrei que antigamente as chefes também davam muita coisa, folhinha, textos
pra gente ler. E eu lembro que na creche sempre teve um tipo de formação em
serviço, até antes de vocês entrarem já tinha, a gente lia algumas coisas, até
mesmo da LDB, a gente tinha reunião, às vezes uma vez por mês no sábado
vinha todo mundo. Aí tinham os encontros, tinham as jornadas. Tudo isso
enriqueceu sim. E além disso, eu acho que você trabalhar em um local que você
gosta, com pessoas que você gosta ajuda muito! Nós estamos trabalhando há
muitos anos juntas, então às vezes só no olhar você já sabe. Eu lembro que uma
vez tinha um menininho que tava no parque do maternal II. Tava eu e a Eliana. Aí
aquele menino se escondeu e a mãe chegou. E ele tava ali perto mas foi questão
de segundos e ele sumiu. Uma só olhou pra outra.... e já começamos a procurar o
180
menino. Não precisamos nem falar nada, uma olhou pra outra, aí uma já viu ele.
“Ah, ele ta aqui, vem cá” Aí já achou e levou pra mãe. Foi tão engraçado! E até
hoje é assim. E uma nunca fala pra outra que a outra não sabe! Então o que uma
sabe fazer, a outra não sabe e estamos sempre juntas, em grupo, entendeu. O
que eu não sei a outra faz. Eu sinto que somos unidas, mas é porque nos
conhecemos há muito tempo. E nós não ficamos ofendidas se uma fala pra outra
que alguma coisa não vai dar certo, alguma atividade. A gente sempre ta trocando
ideias, sentamos pra conversar, então nós somos assim. E eu gosto de trabalhar
com as meninas. E é isso.
Pesquisador: A gente vai precisar encerrar porque nosso tempo já esgotou.
Eu só gostaria de te contar um pouco, porque a minha história se mistura com a
de vocês um pouco, e talvez você nem se lembre do que eu vou contar. Em 2008,
eu fui trabalhar de manhã, eu trabalhava à tarde e consegui uma vaga que eu
queria no período da manhã. Quando eu fui, depois, eu fiquei sabendo que a
equipe técnica havia falado pra vocês que eu estava indo ensinar o trabalho, na
época estávamos fazendo as “oficinas”.
Ah, eu lembro dessa fala!
Pesquisador: Mas essa fala nunca foi minha!
Eu imagino, porque infelizmente elas tinham essas posições.
Pesquisador: Eu acredito que muitas vezes elas não queriam entrar em
discussões sobre o trabalho com a gente e acabavam de certa forma jogando isso
pro grupo, então quando eu cheguei de manhã eu sentia todo mundo meio
esquisito comigo, e eu percebia aquilo mas não entendia, e eu fui parar bem lá na
sua sala! Eram você e a Eliana. Mas aí eu lembro que eu comentei o que a gente
tava fazendo à tarde com as crianças e perguntei se vocês queriam fazer e vocês
foram super abertas, e vocês inclusive já faziam também, só não chamavam de
oficinas, já dividiam os grupos das crianças, preparavam as salas, enfim, e aí eu
lembro que eu cheguei um dia com um livro que tinha um monte de frutas
181
desenhadas, e aí de repente, você viu o livro, saiu da sala e voltou com um monte
de frutas de verdade pra complementar a história e as crianças amaram! Então eu
queria dizer que pelo menos pra mim, eu sempre aprendi com vocês, eu nunca
tive um olhar de querer ensinar!
Ai amada! Fiquei até emocionada. Eu fico feliz viu, e por isso é que
importante a gente vivenciar, porque às vezes as pessoas falam, mas nada como
você estar ali na prática, se envolver, ficar junto ali da pessoa. E eu acredito que
você também contribuiu pra nós também, porque Carla, é bom você trabalhar com
outras pessoas, pessoas que sabem, ajuda! Porque onde eu sou fraca, você pode
ser forte, e a gente nunca pode estar fechada para o aprendizado, toda pessoa
tem alguma coisa de bom pra te ensinar. Eu digo sempre pras meninas que não
podemos passar nesse mundo sem fazer algo de bom pra alguém. Às vezes uma
palavra que você fala pode mudar o dia de uma pessoa. Eu sempre penso que
quando meus olhos fecharem nesse mundo eu quero que as pessoas se lembrem
de mim com muito carinho!
Pesquisador: Muito obrigada Flor.
5º Transcrição
Data: 17/06/2013
Professora entrevistada: Maria Queiróz
Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco
sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o
que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.
Eu fiquei sabendo através de uma colega minha que trabalhava aqui, ela
falou do concurso, aí eu me interessei e vim, e nesse tempo eu trabalhava na
dona C. Aí eu vim e fiz o concurso e aguardei a chamada né.
Pesquisador: E o que você fazia lá na dona C.?
182
Eu era empregada lá, empregada doméstica, mas eu passei no concurso
mas não saí de lá, continuei lá.
Pesquisador: E por que você quis vir trabalhar com criança? Você já tinha
trabalhado com criança?
Não, nunca tinha trabalhado com criança, mas como eu tinha já me
formado, eu tentei trabalhar na área minha, e vim pra creche como
recreacionistas. Eu lembro que era pra trabalhar com criança, pra desenvolver
atividades, mas não era bem professora, porque no começo a gente não era
professora, era mais pajem né. A gente vinha pra cuidar, dar banho, dar comida,
dá atividade, embora a gente já sabia fazer mas não tinha aquele foco
pedagógico, era mais brincar por brincar.
Pesquisador: E quantos anos você tinha?
Tinha uns 37 por aqui, porque hoje eu tô com 61. Olha, como o tempo
muda não, naquele tempo eu tinha cabelo.
Eu vim da Bahia. Eu demorei muito pra estudar. Tudo meu foi sempre
atrasado. Eu saí do grupo, demorei quase dez anos sem estudar, depois eu voltei
e era diferente de agora, eu fazia por etapa, aqui também eu fiz por etapa. Eu vim
da Bahia com uns trinta e poucos anos, e deixei minha menina lá com um ano, e
hoje ela tá com trinta. Eu deixei minha menina dez anos lá com minha irmã.
Quando ela completou dez anos aí eu trouxe porque ela já tava grandinha e aí
morava comigo também, lá na dona C.
Pesquisador: E por que você veio pra cá?
Porque lá não tinha expectativa de vida, era só trabalhar, trabalhar, às
vezes casar, ter filhos, então eu não queria isso pra minha vida não, então vim
embora e aí foi um sufoco, minha irmã comprou a passagem e falou: quer ir
Maria? E foi uma coisa de repente, decidi, falei, vou embora, aí deu aquele cinco
minutos, e nem pensei duas vezes. E nessa trajetória eu trabalhei em casa de
família uns três anos, depois eu fiquei na casa da Cidinha.
183
Pesquisador: E aí na casa da Dona C. você começou a estudar? Você fez o
magistério?
É, eu fiz o magistério.
Pesquisador: E por que você foi fazer magistério?
Porque era mais fácil pra mim porque eu morava perto do Carlos Gomes e
lá tinha.
Pesquisador: E você estudou e logo apareceu esse concurso?
Não eu me formei em 1985, mas aí eu fiquei lá trabalhando e depois que
apareceu essa oportunidade. Aí eu fiz o concurso, passei e tô aqui até hoje.
Pesquisador: E você lembra da prova?
Ah, a prova, não é que nem agora não, era coisa assim, do dia-a-dia, eu
lembro que tinha umas questões assim que, se podia oferecer peixe pra criança,
se o peixe era inócuo, e eu pensei gente que palavra? O que é “inócuo”? Quer
dizer assim, que não tem perigo, que a criança pode comer que não tem perigo
sabe. Hoje em dia ninguém mais vai falar isso numa prova né. Também tinha uma
que falava da criança que mexia na sexualidade, nas partes íntimas, perguntava o
eu achava e o que que a gente poderia fazer, então eu respondi assim que ela
tava apresentando alguma coisa que ela não conseguia expressar, então ela ia
procurar alguma coisa pra dar prazer pra ela né, então ela procurava o que mais
agradava ela fazer que era mexer nas partes íntimas dela. Tinha outras coisas,
mas o que eu lembro mais era essas duas coisas da prova.
Depois teve uma entrevista, mas eu não lembro muito com quem foi a
entrevista, não sei se foi com as diretoras do CECI, eu sei que teve uma mesa
redonda, que todo mundo fazia perguntas, eu não sei muito bem, eu sei que eu
me saí bem porque eu tô aqui hoje. O pessoal falava assim pra gente olhar pra
pessoa no olho, ter resposta objetiva sabe, se você não souber não ficar
enrolando.
184
Pesquisador: E exigia alguma experiência com criança?
Exigia sim. Lá na Bahia eu tomei conta de duas crianças, mas não é assim,
trabalhar como babá, é diferente daqui, mas aí minha irmã me mandou uma carta
de lá dizendo que eu tinha cuidado dessas crianças. É porque não precisava ser
professora, porque naquele tempo nem existia professora, tinha gente que não
tinha nem o ensino médio ainda, tinha só o fundamental, não era tão exigente,
tinha que saber ler e escrever mais não exigia grandes conhecimentos e
fundamentação sobre o assunto. Daí eu comecei, acho que foi no mês de junho.
Aí vinha fazer o curso, não é curso, é, treinamento.
Pesquisador: Como foi o treinamento?
Ah, o treinamento, do que eu lembro é que a gente vinha e ficava lá
embaixo, no CECI berçário, depois fiquei nessa parte aqui em cima com as
crianças, tinha também uma casa que tinha do outro lado de lá, não era aqui, era
lá na frente onde era aquele restaurante, tinha uma casinha que eu fiquei ali
também, mas era diferente, era uma coisa assim artesanal sabe, dava banho na
criança, trocava a criança, era diferente de hoje, a gente tinha mais um vínculo
assim, não é que hoje não é afetivo, era mais de cuidado sabe, hoje a gente tem
mais restrição assim, não é restrição assim que você pode dar amor assim, mas
era diferente, você tinha mais contato físico com a criança, hoje em dia você tem o
contato mas é diferente, tem os carrinhos pra levar, antigamente era tudo no colo,
no abraço, você pegava a criança e levava no colo, agora não, você pega a
criança e coloca no carrinho, você não tem mais aquela coisa do contato olho a
olho com a criança, era ruim pra coluna, mas esse contato pra criança eu acho
que era melhor né.
Pesquisador: Bom, mas isso no berçário você fala né?
É, mas até os grandinhos também, porque eu trabalhei uns dez, doze anos
no maternal. No berçário não é que eu não dou conta é que pras crianças do
berçário exige muito assim a hora de comer, eu lembro que numa greve, criança
pequenininha, eu e uma outra professora, eu dei comida pra uma criança que não
185
era pra comer, depois me disseram que essa daí não come mas eu dei comida pra
ela, gente! E depois? Teve que falar pra mãe né, porque a criança tinha quatro
meses e eu dei papinha pra ela, eu sei que ela conseguiu comer né, ela comeu
mas não era pra comer. Ai com essas crianças pequenininhas, na greve trocou
completamente o ritmo das crianças, na hora de dormir a gente dava comida, na
hora de acordar a gente levava pra dormir, eu sei que ficou uma coisa que a gente
não via a hora que essa greve acabasse pra poder voltar tudo ao normal, e eu não
me dou muito com as crianças de berçário, gosto mais dos maiorzinhos, porque é
quando tão aprendendo a linguagem, sabe, que já interage com a gente, com os
bebês a gente também interage, mas com os maiores de um ano assim é diferente
né, aí que começa a aplicar as coisas.
Pesquisador: Mas vamos voltar lá no seu treinamento, você ficou um tempo
lá embaixo no CECI, o que mais teve no treinamento?
Depois veio aqui pra creche, aí a pedagoga dava as instruções, a gente
ficou quase uma semana e não tinha criança, era só treinamento. Aí de orientação
tinha assim, eu lembro que teve uma dinâmica que ela trazia uma boneca pra
gente saber como trocar a criança, mas isso era da enfermagem, e tinha uma
dinâmica também sobre a mãe, como se fosse a mãe que chegava com a criança,
então alguém chegava na mãe e perguntava o que ela comia, sabe aquele
procedimento que a gente tem, saber o que a criança gostava de comer, se tinha
chupeta, se tinha alguma restrição a comida, alguma, ah, muita coisa. A gente
conheceu o espaço, procurou saber as duplas com quem que iria ficar. No começo
eu fiquei com a Flor, depois eu fiquei com outra professora, mas primeiro foi com a
Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu
primeiro grupo.
Eu lembro que na minha primeira turminha a primeira criança foi um menino
que chamava R., porque a gente começava assim com 2, 3 crianças, depois iam
chegando mais e ia aumentando, e o R. era levado, gente, como no começo era
só ele, então era tudo pra ele, só ele então, ele ficava solto, corria naquele espaço
grande só pra ele, ahhh, ele era levadinho, loirinho, bem levadinho.
186
Pesquisador: Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com
as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?
A gente dava o lanche, depois ia pro parque, fazia atividade, atividade não,
brincava de bola, bambolê, brincava. Depois da brincadeira a gente entrava, ia
tomar banho, trocava, depois ia pro almoço, almoçava, dormia, aí a mãe chegava
e ia embora, não tinha aquele planejamento que você fazia todo dia, depois que
começou o planejamento. Aí a coordenadora já tinha o planejamento semanal que
ela fazia, era ela que fazia e a gente desenvolvia aquilo lá. Então às vezes ela
colocava: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, ela que fazia e a
gente colocava e prática alguma atividade que se encaixasse ali dentro, e o
projeto era uma folhinha, não tinha esse projetão que a gente faz hoje, com
objetivos, essas coisas. Era uma folhinha de projeto, por exemplo, do dia das
mães, projeto da semana da alimentação, quer dizer, tinha projeto mas já vinha
pronto, era ela quem dava pra gente fazer, pra executar
Pesquisador: De todas as professoras que eu entrevistei até agora você foi
a única que já tinha feito magistério, então você acha que o magistério contribuiu
pra sua prática, o que mudou?
Ah sim, o modo de pensar né, de ver a criança, porque o magistério de
antigamente tinha muita coisa, a gente fazia estágio, acho que tinha dois anos de
estágio, ia uma vez por semana e ficava a manhã inteira lá na escola, então tinha
muito contato com as crianças, embora fossem crianças grandes , mas era
diferente porque a gente já tinha uma visão de educação, de criança, eu acho que
serviu muito pra mim. A gente dava muito papel pras crianças, mas tudo já feito
pra criança pintar, desenho mimeografado, eu me lembro que eu tinha uma pasta
enorme, a professora do magistério mandava a gente fazer aquelas pastas
coloridas de datas comemorativas, e aquilo lá era uma sensação pra mim.
Pesquisador: E aí você usava na creche?
Usava porque era a prática da época. Não tinha uma que não usava aquela
pasta. Tinha aqueles desenhos do dia do índio, aquilo lá pra gente é uma relíquia.
187
Aí a gente usava junto porque tinha o mimeógrafo que a gente passava pras
professoras, mas também tinha mais gente que trazia. Tinha uma menina que era
a sensação porque ela foi a primeira que passou do concurso e eu acho que ela já
tinha feito magistério, e ela era super antenada sabe, ela tinha tudo, tinha os
materiais, tinha tudo.
Pesquisador: E qual você acha que era a visão de educação da época?
Acho que a visão era bem tradicional né, embora eu não exerci a minha
profissão com crianças maiores, só no estágio, mas a gente não tinha livre acesso
à criança, às vezes a gente ficava só sentada o fundo da sala, a professora da
sala falava que se a gente interferisse as crianças já mudavam, ficavam agitadas.
Então a gente ficava de lado, anotando o que a professora fazia, alguma coisa que
ela pedia pra ajudar a criança na lição.
Eu fiz concurso na prefeitura e passei no concurso pra trabalhar no ensino
fundamental, mas eu não fui, fiquei com medo de enfrentar aquelas crianças
grandes, e eu já trabalhava na creche.
Pesquisador: Mas no magistério você não teve contato com a creche?
Porque eu também fiz magistério e na época eu me lembro que o único estágio de
educação infantil era na pré-escola. Então quando você entrou aqui você achava
que tinha alguma coisa a ver com educação?
Não, aqui era só cuidar, o tipo de atendimento era ó cuidar, tinha aquela
coisa da recreação que a gente brincava com as crianças. Não tinha aquela coisa
de colocar no papel, por exemplo, brincar de bola, não tinha nenhum objetivo pra
atingir como uma atividade dirigida, era só brincar, e todas as atividades eram
assim, não tinha objetivo específico. No fim em toda a brincadeira a criança retém
alguma coisa e aprende, mas não era pensado nisso, era brincar por brincar.
Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que
as recreacionistas voltaram a estudar?
188
Quando começou a mudar a Lei e disseram que todo mundo tinha que ser
professora, mas um pouco antes disso a coordenadora já começou a falar
algumas coisas pra gente. A gente fazia o planejamento e passava pra ela e ela
via acho que quinzenal e ela dava OK. Então ela já fazia isso antes da Lei que
começou a exigir que todo o profissional da Educação tinha que ter pedagogia ela
já tinha um fundamento disso aí. Então antes da lei, a creche já tava virando
educação. E a gente tinha que ir estudar. Só que essa creche aqui é diferente né
porque aqui é educação quando convém, quando não convém é assistencialista.
Pesquisador: Por que essa creche é diferente?
Porque eu acho que aqui não visa bem a criança, mas sim a mãe que vem
trabalhar, eu sei que desde o começo essa creche foi feita assim, e a gente tenta
mudar mas o histórico dela é esse, é pra mãe que precisa trabalhar não é
pensando na criança. E a mãe quando vem sempre pergunta: ele comeu? Fez
cocô? Não pergunta assim: ele fez alguma coisa diferente?
Pesquisador: Mas você acha que isso mudou?
Algumas mães sim, mas ainda continua, porque até hoje a mãe não chega
pra perguntar nada sobre a parte educativa. Aqui as mães pensam que é um lugar
pra criança comer, brincar, ficar e ir embora, elas não valorizam bem o nosso
serviço.
Pesquisador: E como você se sente pensando nisso?
Ah, eu não espero muito delas sabe, eu desenvolvo meu trabalho mas sem
pensar no que a mãe pensa, eu penso na criança. Eu penso que eu tenho tanta
coisa que a mãe não tem, porque a mãe tá lá trabalhando e eu tô aqui com o filho
dela então eu faço o máximo que eu posso pra dar um atendimento, pra educar,
tudo o que eu faço eu dou uma pitadinha do que eu tô estudando em relação ao
respeito com o outro, ver que todo mundo tem seu espaço ali dentro, essas coisas
né, e as mães não vêem essas coisas, elas nem percebem que a gente faz esse
trabalho, você já percebeu isso Carla? Elas não percebem o trabalho tão legal que
189
a gente faz com as crianças, ela chega, deixa a criança, vai embora, sabe, não
procura saber o que o filho aprendeu. Eu vejo também no ônibus, em vez da
mãe perguntar á criança com foi seu dia, a primeira coisa é dar lanche pra criança,
como se aqui ela não tivesse comido nada, e enche a criança de coisa pra ela
ficar quieta e a mãe conseguir dormir no ônibus, às vezes a criança nem quer
comer, quer conversar. E esse negócio de comida aqui sempre foi um problema
porque fica aquela coisa de assistencialismo. Lembra quando tinha o lanche que a
criança levava embora? Eu gostei quando a R. tirou porque é uma coisa que
não é pra fazer aqui, aqui é educação, não é pra valorizar esse tipo de coisa, aqui
a gente tem que valorizar outro tipo de coisa, às vezes a gente ia desperdício,
jogava o lanche fora, nem isso a mãe ensinava a criança. É que nem esse
plantão, que quando fala que vai tirar aí as mães valorizam, porque a maioria das
mães traz porque é comodidade pra elas, não é que precisa tanto, tem mãe que
não precisa, a gente vê que tem mãe que não permite que o pai tome conta do
filho, elas dizem que preferem trazer pra creche do que deixar com o marido, você
acha que isso é coisa que mãe fale pro marido e pro filho dela, que prefere trazer
pra uma pessoa diferente, do que deixar cm o pai curtir o filho dele, tem criança
que vem pra creche de domingo a domingo.
No começo eu não pensava assim, eu pensava que a creche era mesmo
direito da mãe, que a mãe tinha que trabalhar e era direito dela, então se a creche
tá aqui é pra ela usar né, mas depois a gente vai vendo que não é desse jeito, não
é assim, e eu acho que eu comecei a pensar diferente por que a gente vê o
comportamento da criança, eu acho que a criança que fica muito tempo na creche
cresce sem ter um amigo vizinho. Eu acho que não dá mais pra fazer um tipo de
educação que não faz bem pra criança, que não vai desenvolver uma coisa legal
pra ela, acho que a experiência do dia-a-dia me fez pensar assim, a criança
educada assim não cria vínculo com outras coisas, com a família, com os avós,
não tem convívio com a família, porque a criança fica aqui direito. Aí quando a
mãe tá de folga a criança vem porque a creche é direito da criança, a mãe não vê
que a criança tem que ter um momento dela. Eu até me ponho no lugar da mãe,
porque algumas realmente tem só a creche, nem marido tem, mas independente
190
da situação da mãe a gente tem que fazer o melhor pra criança que tá ali, então
minha visão é essa. Mesmo que a gente ache que a mãe não devia trazer, a
criança tá ali e a gente tem que cuidar, fazer o melhor com carinho. Se a gente
parar pra pensar o que é tomar conta de uma criança, gente, você tem que saber
mesmo, porque qualquer coisa de errado que a gente faz com ela, eu vejo na
creche, tem certos adultos que a criança não quer ficar, tem receio, chora,
pergunta se a pessoa veio hoje, é difícil porque as vezes a pessoa faz e nem
sente que tá fazendo aquilo né, não pensa que pode desenvolver algum trauma na
criança, acha que criança pequenininha não pensa naquilo né.
Pesquisador: Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais
algum curso, alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o
trabalho na educação infantil?
Eu fiz um curso com a A. L. G. lá na faculdade de Educação. Ela falava
muito sobre o direito da criança, colocava vídeo pra gente assistir, ela enfatizava
também o direito das mães, ela falava assim que se a mãe não quer amamentar é
direito dela, porque a creche incentivava a amamentação, porque “porque no
começo só tinha vaga a mãe que amamentava, porque o intuito era trazer a mãe
pra amamentar aqui, [...] Tinha aquela coisa de achar que se a mãe não
amamenta, ela não é boa mãe.
Também tinham os fóruns, as jornadas, o curso da R. que eu gostei
também . A R. deu uma visão diferente de educação, embora ela trouxesse uma
visão diferente, de outra cultura lá da Europa, ela queria tirar os plantões, falava
que educação é de segunda a sexta-feira, isso ela não conseguiu, mas conseguiu
restringir o atendimento nas férias, já mudou porque antes fechava só duas vezes
por ano, 25 de dezembro e 01 de janeiro, você acha que uma creche educacional
é pra ter esse atendimento? E isso porque não teve à noite, mas essa creche foi
feita pra ter à noite, não teve porque não teve demanda, mas se tivesse tinha
gente que ia trazer a criança aqui só pra dormir.
Mas o curso dela deu uma visão de criança, das atividades, de trabalhar os
cantos, lá na minha sala tem o cantinho da fantasia, trabalhar com grupos
191
pequenos, porque antes a gente fazia com todo mundo de uma vez e às vezes
não conseguia, e no começo eu achava que tinha que ficar que nem mãe, com
todo mundo, tudo as crianças perto da gente, então no começo eu não gostei de
dividir os grupinhos , mas com o tempo eu vi que dividir o grupo fica mais fácil,
você coordena melhor o trabalho, dá pra dar mais atenção pras crianças, todo
mundo se acomoda, não fica aquela coisa que você não consegue controlar a
situação, é diferente.
E também teve a faculdade que ajudou. No começo eu fiz só porque
precisava né, tanto que eu fui uma das últimas a fazer o curso, mas seu quisesse
continuar a trabalhar com criança tinha que fazer, então eu gostei. Agora eu tô
fazendo a pós em Educação Moral chama “Educação, valores e cidadania na
escola”, e eu tô gostando porque dá uma visão diferente de pessoa, a gente passa
a valorizar o outro, o direito do outro, a diversidade, a inclusão, a capacidade da
criança de realizar as coisas.
Pesquisador: E se você nunca tivesse estudado nada, você acha que seria
uma pessoa diferente hoje?
Ah, eu ia ser diferente sim, não ia ter essa visão que eu tenho agora porque
a gente precisa adquirir conhecimento né Carla, se a gente não conhece, como vai
aplicar alguma coisa, porque a gente até pode ter alguma habilidade inata, mas
quanto mais você sabe mais você se empenha, então se eu tivesse estacionado lá
no magistério a minha visão era pequenininha, tinha ficado com aquela visão de
que criança tem só que brincar, comer, sabe, hoje eu sei que tenho que pensar na
criança e seu desenvolvimento como um todo, não pedacinho por pedacinho né.
Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,
tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.
Eu acho que ela só existe por causa da área da saúde, porque ela foi fundada
pras mães então às vezes eu penso que por mais que a gente tente tirar esse
vínculo, ela vai continuar sendo, vai ser difícil a gente quer uma coisa diferente,
mas o histórico dela não tem como.
192
Eu acho que enfermeira tem que ta na área de enfermagem, como aqui não
é pra criança doente, então ela tem que tá na área dela. Antigamente a gente
tinha que dar remédio pra criança, lembra quando a gente administrava remédio,
fazia inalação, ficava mais ou menos meia hora pra fazer uma inalação, vinha
criança com piolho, e gente catava os piolhos das crianças, conjutivite, sabe
coisas que não era pra criança ficar na creche, mas ficava. E isso aconteceu até
pouco tempo, parou quando começou a chegar as novas do concurso.
Pesquisador: E como foi?
No começo, como a gente vinha de uma educação mais assistencialista,
vocês vieram dar uma coisa nova pra gente sabe,vocês traziam coisas novas e a
gente aprendia, já não era mais só aquela coisa de atividade no papel,
começaram todo mundo fazer os projetos, as oficinas, então pra gente que vinha
de uma coisa bem fechada de só comer, dormir, brincar, foi bom. A gente tinha o
tempo de experiência, mas parecia aquela coisa do “Tempos modernos”, era uma
máquina de trocar criança, a gente fazia tudo rapidinho. Uma vez a pedagoga
falou que a gente era “braçal” sabe e vocês eram de fazer projeto.
Mas se Deus quiser eu vou continuar trabalhando até setenta anos, tenho
mais dez anos ainda pra trabalhar.
Pesquisador: Maria, estamos chegando ao final de nossa entrevista,
gostaria muito de te agradecer por tudo!
Imagina, eu que agradeço, se eu lembrar de mais alguma coisa eu venho te
contar.