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CARLOS AUGUSTO FERNANDES CONRADO O ESPAÇO INTERTEXTUAL ENTRE ARIEL, DE SYLVIA PLATH, E CARTAS DE ANIVERSÁRIO, DE TED HUGHES Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Letras, Curso de Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof. Dra. Luci Collin CURITIBA 2011

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CARLOS AUGUSTO FERNANDES CONRADO

O ESPAÇO INTERTEXTUAL ENTRE ARIEL, DE SYLVIA PLATH, E CARTAS DE

ANIVERSÁRIO, DE TED HUGHES

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Letras, Curso de Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof. Dra. Luci Collin

CURITIBA

2011

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Dedico este trabalho à minha esposa, que me incentiva na busca constante

da minha verdadeira vocação, e especialmente a minha filha de nove anos,

compreendendo com paciência o pouco tempo disponível para brincar com o papai.

Agradeço à professora Liana Leão, pela identificação do verdadeiro tema que

eu precisava desenvolver e redundou nesta pesquisa. À professora Luci Collin, pelo

estímulo contínuo, objeto do seu entusiasmo. E à professora Renata Telles, que

potencializou minha paixão pela poesia.

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Lady Sylvia

You have done it again I read your blue lines

Eleven times in every ten Not trying to perceive your death Not crying to support your Plath

Just trying to incorporate your poetry

In my senses, in my heart, in my memory Absorbing your feminine soul

In my kinesthetic spiritual session

I refuse to love you as a myth Worshiping your tragedy

You became my intellectual miss Parading in my library

Carlos A F Conrado

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SUMÁRIO

RESUMO....................................................................................................................05

ABSTRACT................................................................................................................06

INTRODUÇÃO...........................................................................................................07

1 ARIEL: CONFISSÃO E TRANSFIGURAÇÃO.......................................................11

1.1 A FUNÇÃO EMOTIVA E CONATIVA EM ARIEL................................................14

2 A ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA E DA LIBERTAÇÃO..........................................20

3 CARTAS DE ANIVERSÁRIO: DIÁLOGOS COM ARIEL......................................28

3.1 CRÍTICA E IRONIA: A PARÓDIA SOB OUTRO OLHAR....................................32

CONCLUSÃO............................................................................................................58

REFERÊNCIAS..........................................................................................................60

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RESUMO

Análise intertextual no cotejamento dos poemas de Sylvia Plath e Ted Hughes, com

ênfase na obras Ariel e Cartas de Aniversário, com a finalidade de apresentar o

diálogo entre as vozes líricas destes poetas, em momentos em que se cruzam

também seus contextos biográficos. A intertextualidade apresenta ramificações do

seu quadro teórico como a alusão, a referência e a paródia. Relativização dos

poemas de outras obras dos poetas, no intuito de identificar o gérmen do diálogo

intertextual por intermédio de influências recíprocas, mesmo dentro de universos

estilísticos e temáticos distintos. Auxílio da multidisciplinaridade ao abordar teorias

linguísticas e psicanalíticas na fundamentação argumentativa.

Palavras-chave: Poesia. Sylvia Plath. Ted Hughes. Intertextualidade. Paródia.

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ABSTRACT

Intertextual analysis in the comparison of Sylvia Plath and Ted Hughes’ poems, with

emphasis upon the works Ariel and Birthday Letters, in order to present the dialogue

between the lyric voices of the poets in moments in which their biographical context

also converge. The intertextuality presents angles of its theoretical frame such as

allusion, reference and parody. Comparison of poems from other works of the poets,

in order to identify the germ of intertextual dialogue through reciprocal influences,

even into different thematic and stylistic universes. Assistance of multidisciplinarity in

the approach of linguistic and psychoanalytical theories in the argumentative

foundation.

Key words: Poetry. Sylvia Plath. Ted Hughes. Intertextuality. Parody.

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INTRODUÇÃO

Um dos aspectos mais desafiadores a serem analisados e discutidos no

espaço interativo de um casal de artistas é a intersecção da sua obra. Seja na

colaboração, rivalidade, influência ou mesmo na busca de uma autonomia, muitas

vezes difícil, dado o convívio diário entre duas pessoas que partilham a mesma

atividade diletante ou profissão artística, o background para o pesquisador é amplo e

instigante.

Na história das artes plásticas, por exemplo, os nomes de Auguste Rodin

(1840-1917), escultor francês de obras notórias como, por exemplo, “O Beijo”, “O

Pensador” e “A Danaide”, e Camille Claudel (1864-1943), sua assistente, aprendiz e

amante, talvez dotada de um potencial tão extraordinário quanto o dele, são férteis

para um estudo comparativo.

Claudel, também escultora, manteve uma ardente relação com o mestre

enquanto trabalhava no seu ateliê, posando como modelo, observando e

assimilando técnicas, mas certamente discutindo a arte do ofício com Rodin. Aliás, a

acusação de que suas obras eram meras imitações das peças do mestre francês foi

um dos motivos que tornaram a vida da artista tão atribulada.

Após o período de uma relação conturbada com Rodin, quando ele a deixou,

Claudel procurou realizar nas suas peças a autonomia subsequente a essa

separação, rompendo definitivamente qualquer tipo de influência. Obras como “A

Valsa”, “A Pequena Castelã” ou o sugestivo nome “A Idade Madura” atestam essa

determinação.

Outro casal de artistas com uma relação ainda mais patente entre as suas

obras é Diego Rivera (1886-1957) e Frida Kahlo (1907-1954), pintores mexicanos de

grande proeminência no cenário artístico da sua época. Em algumas pinturas de

Rivera o tema é a sua mulher, assim como em algumas telas de Kahlo o tema é o

seu marido.

Assim, por intermédio de uma abordagem contextual específica, mas sem

nunca confundi-la com o seu produto artístico, um bom pesquisador tem condições

de analisar as relações estilísticas e temáticas desses grandes nomes das artes

plásticas do século XX. Além disso, verificar até que ponto essa convivência, esse

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compartilhamento de um cotidiano de trabalho e produção artística, tem o poder de

influenciar mutuamente a obra de um casal de artistas.

Na música erudita, o casal mais notório a compartilhar o seu ofício, tanto na

interpretação como na composição das suas obras e de outros compositores, é

Robert Schumann (1810-1856) e Clara Schumann (1819-1896). Ambos foram

pianistas e compositores do romantismo alemão do século XIX, e a convivência

diária de ambos bem pode ter contribuído para uma efetiva reciprocidade, talvez

com motivos da música de um aparecendo na composição do outro.

Nesse sentido, lógico, um crítico musical é mais capacitado para explorar

esse campo tão fértil, mas nada impede que um melômano, com paciência e

dedicação, consiga estabelecer relações nas composições desses grandes músicos

eruditos.

O espaço literário, escopo dessa pesquisa, também apresenta casais

exponenciais, como Jean Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-

1986), dois escritores com estreitas afinidades intelectuais e amplo senso de

colaboração. Ela costumava revisar seus trabalhos e relatar como funcionava o

processo criativo de ambos.

No Brasil, amigos de Sartre e Beauvoir, se releva a produção de anos de

colaboração entre Jorge Amado (1912-2001) e sua mulher, Zélia Gattai (1916-2008).

No cenário contemporâneo, Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti.

Entretanto, nenhum casal na história da literatura da segunda metade do

século XX parece ter exercido maior fascinação, polêmica e elucubrações literárias

sobre a intertextualidade nas suas obras do que a poeta norte-americana Sylvia

Plath (1932-1963) e o poeta inglês Ted Hughes (1930-1998) e, já de início, convém,

pois, acrescentar uma definição do termo intertextualidade: “(...) conjunto das

relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado

mantém com outros textos." (CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2008, p.288).

Uma das escritoras mais incensadas pela crítica e pelo público, e

estereotipada como mito, Plath poderia ser um tema mais aproveitável em

discussões estéticas do que em especulações simplistas sobre a sua vida

imiscuídas na sua obra.

Por outro lado, a refutação do caráter especular entre a sua biografia e a sua

obra parece leviana na medida em que a poeta lapidava as suas experiências,

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sentimentos, frustrações, e mesmo os fatos mais tediosamente corriqueiros do seu

cotidiano, transfigurando-os em versos.

A pedra no meio do caminho é grande e de difícil remoção, dada a

dificuldade de se analisar a sua obra sem cair nos fundamentalismos do partido

confessional ou do partido formalista. O primeiro classifica seus poemas como

desabafos, reflexos da sua vida em versos, enquanto o segundo se detém apenas

na autonomia da sua composição poética sem considerar o seu contexto.

Seu suicídio foi o fim de um processo doloroso, marcado traumaticamente

desde a infância com a perda do pai. As tentativas desesperadas de adaptação a

um meio social relativamente refratário a personalidades femininas desafiadoras,

declinações regulares da sua obra pelo mercado editorial, instabilidade psíquica e

crises depressivas, assim como um casamento turbulento e tenso, fomentaram essa

decisão trágica.

A transfiguração da sua paixão em poesia, no entanto, é o que mais

interessa aos objetivos dessa pesquisa. Não a dicção da voz, mas a do verso, não o

estilo de vida particular, mas o do fazer poético e, finalmente, não a imagem

construída sobre sua personalidade, mas as imagens criadas por ela.

Personagem e interlocutor nos poemas e até mesmo na prosa da poeta,

Hughes é um dos nomes mais importantes no panteão da poesia de língua inglesa

do século XX, compartilhando uma estatura nivelada com nomes do quilate de um

T.S. Eliot (1888-1965) ou W.H. Auden (1907-1973).

Sua formação como antropólogo e arqueólogo facultaram sobremaneira a

temática da sua obra, norteada pela tentativa de reaproximação do homem com a

natureza e o tratamento original do ciclo da vida no reino animal. Seu estilo, tema e

sua dicção, portanto, são radicalmente distintos do que se pode observar na obra da

poeta.

Resulta disso o paradoxo: como obras de características tão distintas

conseguiriam exercer alguma espécie de diálogo intertextual?

O escopo dessa pesquisa fundamenta-se no equacionamento desse

problema, concentrando a sua argumentação analítica no cotejamento de alguns

dos poemas mais impressionantes da obra máxima de Plath, Ariel, com poemas não

menos marcantes de Hughes em Cartas de Aniversário.

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Ariel é a voz transfigurada da poeta no paroxismo da sua dor, provocada

pelos seus traumas parentais, tentativa de suicídio, depressão, e, muito presentes,

as tensões no casamento, redundadas em separação e angústia.

Hughes, ampla e continuamente acusado como culpado da morte da ex-

mulher, muita vezes sendo chamado de assassino pelas feministas de plantão,

carregou, desde o trágico fim da poeta até a sua própria morte, um contido afã de

defesa, somente divulgado na poesia de Cartas de Aniversário.

O livro, como se fosse uma literatura memorialista, é o ponto de vista do

autor sobre a sua vida com a poeta, um álbum de recordações em que fotos são

poemas, e sua voz, também transfigurada, dialoga com a voz poética da ex-mulher,

agora convertida em personagem e interlocutor nos seus versos.

Ariel é impulso, acusação e agonia. Cartas de Aniversário é reflexão, defesa

e ironia. Apesar de diametralmente opostos, são força, paixão e poesia.

No primeiro capítulo dessa pesquisa, a feitura de Ariel, seu contexto de

produção e as peculiaridades das suas publicações são analisados, assim como seu

aspecto estilístico e temático. Logo a seguir, o foco se concentra no interlocutor dos

poemas dessa obra e como sua função é detectável com o respaldo de uma

vertente dos estudos linguísticos.

No segundo capítulo, abrangendo mais a relação dos dois poetas, são

citados e cotejados poemas de outras obras, a fim de se desenvolver uma

relativização da influência estilística ou temática que um possa ter exercido sobre o

outro. O que poderia ser um distanciamento do tema, na verdade é uma digressão

sobre suas raízes.

O terceiro capítulo trata o núcleo temático da pesquisa. Tendo como

fundamentação teórica algumas vertentes da intertextualidade, reservando uma

ênfase especial à paródia sob um viés relativamente distinto, o diálogo entre Cartas

de Aniversário e Ariel é relativizado e potencializado na maturação da análise

pormenorizada dos seus poemas, sendo os últimos problematizados por teorias

psicanalíticas.

A conclusão reserva espaço para uma reflexão sobre os limites entre texto e

contexto, suas armadilhas e o esforço na busca do equilíbrio entre essas duas

instâncias, tão delicadas no desenvolvimento do tema, assim como o papel do leitor

como identificador de sentidos intertextuais na memória da literatura.

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1. ARIEL: CONFISSÃO E TRANSFIGURAÇÃO

A obra máxima de Sylvia Plath, Ariel (1965), entrou definitivamente no

cânone da poesia da segunda metade do século XX pelo acabamento estético e

estilístico da sua fatura. A dicção inequívoca da sua autora atinge o ápice nesses

versos sedimentados na dor irremediável de uma mulher que parece ter vivido boa

parte da sua existência com o mesmo dilema de muitas artistas das décadas de

1950 e 1960: viver conforme os ditames idealizadores daquela sociedade, o

american way of life, sendo boa moça, culta, educada e submissa ao cotidiano do

lar, ou transpor as fronteiras do senso comum e se tornar uma artista de potencial

equivalente ou mesmo superior aos seus pares masculinos.

Essa situação se assemelha ao que a personagem Esther, do único

romance de Plath, A Redoma de Vidro (1963), imagina:

Vi minha vida tomando mil direções, como os galhos da figueira do conto. Na ponta de cada galho havia um figo maduro – um maravilhoso futuro. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos: outro, ser uma poeta famosa; outro, uma professora ilustre e mais outro era ser Éxis, a incrível editora: outro, conhecer a Europa, África e América do Sul e ainda outro era Constantin, Sócrates, Átila e um monte de outros namorados com nomes estranhos e profissões esdrúxulas; e um figo era ser campeã olímpica da equipe de remo e além desses tinha tantos outros figos que eu não conseguia nem ver. Imaginei que estava sentada embaixo da figueira, morrendo de fome por não decidir que figo escolher. Queria todos, mas, escolhendo um, não podia pegar os outros e, enquanto ficava sentada ali, incapaz de resolver, os figos começaram a amadurecer, apodrecer e cair ao meus pés. (PLATH, 1999, p. 86).

Plath partilha a categoria dos poetas ditos “confessionais”, ou seja,

escritores que espelhavam experiências pessoais em seus poemas, explorando

aspectos subjetivos e psicológicos de suas vidas, regularmente dolorosos e

depressivos, revelando-os ao seu leitor como uma espécie de confissão.

O crítico M.L. Rosenthal postulou pela primeira vez o termo “poesia

confessional” em um artigo publicado no periódico The Nation (1959) ao analisar os

poemas da obra Life Studies (1959) do poeta norte-americano Robert Lowell (1917-

1977).

Assim como Plath e Lowell, um dos poetas que a influenciou, outros nomes

da poesia norte-americana como Anne Sexton (1928-1974), John Berryman (1914-

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1972), e Theodore Roethke (1908-1963) também partilham desse

“confessionalismo” poético.

Releva-se na poesia plathiana, entretanto, e com uma força incisiva,

principalmente em Ariel, uma transfiguração das experiências emocionais da poeta

pela presença de metáforas desconcertantes e uma imagística simbólica prolífica,

como se fossem representações literárias das pinturas surrealistas de René Magritte

(1898-1967) ou Salvador Dalí (1904-1989)1.

No poema “Cut”, por exemplo, se a metáfora de alguns dos seus versos

redundasse em uma pintura, certamente lembraria algumas das imagens bizarras de

Magritte ou Dalí, onde a realidade é transfigurada na representação do cotidiano:

What a thrill – My thumb instead of an onion. The top quite gone Except for a sort of a hinge Of skin, A flap like a hat, Dead white. Then that red plush. Little pilgrim, The Indian’s axed your scalp. Your turkey wattle Carpet rolls […] (PLATH, 2007, p. 64, grifo nosso)

Assim, o confessionalismo em Plath, a experiência direta do criador, mesmo

que pareça ser uma transposição fidedigna do real, é transfigurado pela poeta,

conforme atestam suas próprias palavras:

Penso que a minha poesia seja fruto direto da experiência de meus sentidos e da minha emoção, mas devo dizer que não posso ter simpatia por aquele ‘grito do coração’ [...]. Creio que se deva saber controlar, manipular as experiências, até as mais terríveis, como a loucura, a tortura [...]. E se deva saber manipular com uma mente lúcida que lhe dê forma [...] (PLATH, 2005, p. 129).

1 O Surrealismo foi um movimento das artes plásticas e da literatura, que surgiu a princípio em Paris na década de 1920. As principais características do surrealismo combinavam o abstrato, o representativo e o inconsciente.

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Difícil para o leitor comum – desde a repercussão da publicação de Ariel em

1965, seguida da mitificação do nome da poeta pela imprensa e pela crítica, esta

representada por nomes como Robert Lowell, o próprio ex-marido e poeta Ted

Hughes, George Steiner e A. Alvarez, até a potencialização desse mito com o

advento do filme Sylvia (2003), de Christine Jeffs, com Gwyneth Paltrow e Daniel

Craig elencando os papéis principais como Sylvia Plath e Ted Hughes – é dissociar

o corpus poético plathiano da vida trágica da sua autora.

Nesse caso, é tarefa intrincada trabalhar nessa decantação, sobretudo

considerando Ariel como um livro de poemas escritos nos doze últimos meses de

vida da poeta, um lapso de tempo integrando a descoberta do adultério de Hughes,

a separação e o agravamento do seu estado depressivo na solidão partilhada com

dois filhos pequenos no apartamento da Fitzroy Road, em Londres.

A própria artista reforça o tom confessional da sua poesia em um

depoimento objetivo, curiosamente metapoético, em seu diário:

Como explicar a Bob que minha felicidade depende de arrancar um pedaço da minha vida, um fragmento de aflição e beleza, e transformá-lo em palavras datilografadas numa página? Como ele poderia entender que justifico minha vida, minhas emoções ardentes, meu sentimento, ao passá-la para o papel? (PLATH, 2007: 7).

A biógrafa e crítica Eileen Aird, precursora dos estudos críticos da obra

plathiana, em seu livro Sylvia Plath (1973), reforça esse viés ao comentar:

Sylvia Plath’s background and experience are of particular importance to our understanding of the work, much of which relies on some biographical knowledge. The developing strategy and technique of her work was based on the desire to analyse and lay bare the dilemmas and contrasts of her own, often painful, experience. (AIRD, 1973: 2).

A publicação póstuma de Ariel ocorreu em 1965, alçando o nome da poeta

ao panteão mítico do artista imolado e à notoriedade que a redundou mais adiante

em um dos ícones feministas na década de 1960.

A primeira edição desse livro foi organizada por Hughes, e denota uma

modificação considerável no arranjo original deixado por ela pouco antes do seu

suicídio, em fevereiro de 1963.

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Hughes não incluiu na primeira edição poemas que considerava “fracos” ou

pessoalmente agressivos, norteados pelo tom de vingança e fúria decorrente do

adultério e das tensões do casal antes da separação: “Lesbos”, “The Rabbit

Catcher”, “Thalidomide”, “Barren Woman”, “A Secret”, “The Jailor”, “The Detective”,

“The Other”, “Magi”, “Stopped Dead”, “The Courage of Quietness”, “Purdah” e

“Amnesiac”.

A edição original deixada pela autora, graças à iniciativa da poeta Frieda

Hughes, filha do casal, foi lançada ao mesmo tempo pelas editoras Harper Collins e

Faber and Faber, com a inclusão do fac-símile da autora, contendo correções e

páginas manuscritas.

1.1 A FUNÇÃO EMOTIVA E CONATIVA EM ARIEL

Analisando os poemas de Ariel sob a perspectiva linguística de Roman

Jakobson (1896-1982), conceituador das clássicas funções da linguagem do

processo comunicacional na obra Linguística e comunicação (1969), observa-se

uma recorrente tentativa de diálogo entre um emissor (função emotiva) e um

receptor (função conativa) por meio de uma mensagem (função poética).

Samira Chalhub, no seu livro Funções da Linguagem (1997), analisa e

amplia a compreensão dos conceitos dessas funções, e pode auxiliar o

entendimento do processo composicional do universo poético plathiano:

Na comunicação diária, por exemplo, além da referencialidade da linguagem – o que torna a mensagem oral imediatamente compreendida –, há pinceladas de função conativa, ou seja, de diálogo com alguém, ou através de uma ordem, ou através de um narrar, mas, ao mesmo tempo, esse diálogo vem caracterizado por traços emotivos. (CHALHUB, 1997, p. 8).

Esta pesquisa já relevou a característica transfiguradora da realidade

cotidiana do indivíduo. No caso de Plath, como mulher e poeta. Portanto, o exemplo

da comunicação diária dado por Chalhub parece trazer uma pertinência eficaz nessa

associação.

Jakobson conceituou seis funções da linguagem, distintas, no entanto

abertas a intersecções específicas. A função referencial permite o indivíduo se referir

ao mundo exterior e ao seu mundo interior, seja pela denotação ou conotação; a

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função emotiva exterioriza a carga emotiva do emissor direcionada a um receptor; a

função conativa se fundamenta na orientação da mensagem a um destinatário ou

receptor; a função fática determina a reafirmação e manutenção direta do canal

comunicacional; a função metalinguística abrange toda a codificação da linguagem

que fala dos seus próprios códigos e finalmente a função poética faculta a criação de

uma realidade paralela ou imaginada, como no caso das obras literárias.

As três primeiras funções já haviam sido postuladas pelo psicólogo e

psiquiatra alemão Karl Bühler (1879-1963), para quem a linguagem é um

instrumento de exteriorização idiossincrática do indivíduo (função emotiva) que atua

sobre seus pares (função conativa) dentro do seu espaço referencial (função

referencial).

A função conativa marca como sinal identificador da sua natureza o pronome

tu ou você, e aqui surge o problema da identidade do receptor, que tanto pode ser

um interlocutor conhecido somente por seu emissor, quanto pode ser o próprio leitor.

Urge não confundir essa dupla instância do receptor, porque o escopo da

pesquisa se fundamenta exclusivamente no diálogo entre emissor e o seu receptor

em uma esfera poética. Sobre essa distinção, Chalhub comenta que:

Outro exemplo é a consciência da função da leitura – que incorpora o leitor no texto, dando-lhe espaço para, nas descobertas, co-laborar com a emissão que, nesse aspecto está intimamente ligada ao trabalho com o código e com a mensagem – e não com os sentimentos – e vai resultar, modernamente, nas estreitas relações das funções poética e metalinguística. (CHALHUB, 1997, p. 8).

No caso de alguns poemas de Ariel se torna patente que a natureza do

receptor na função conativa não pode ser confundida com a identidade do leitor,

devido não somente ao trecho exposto acima, como ao contexto de produção e ao

universo do próprio poema, sua locação ou situação.

Analisando algumas estrofes do poema “The Other” a distinção é claramente

percebida:

You come in late, wiping your lips. What did I leave untouched on the doorstep– – –

White Nike, Streaming between my walls? […]

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I have your head on my wall. Navel cords, blue-red and lucent, […] Sulphurous adulteries grieve in a dream. Cold glass, how you insert yourself Between myself and myself I scratch like a cat. […]

(PLATH, 2007, p. 94 e 96, grifo nosso)

No primeiro verso, o identificador da função conativa surge com “you”,

marcando o diálogo da persona ou emissor com o seu interlocutor ou receptor.

Percebe-se imediatamente que o leitor não pode ser o receptor, devido à instância

íntima de um casal, observada nas duas primeiras estrofes.

“The doorstep” indica um local, o espaço doméstico do casal, degrau de

entrada, assim como “my walls”. “[...] how you insert yourself/Between myself and

myself” novamente enfatiza a intimidade de um casal, embora de forma

metaforizada, e a imagem do adultério aparece em “[...] adulteries grieve in a

dream.”

Esse poema foi escrito por Plath em 02 de julho de 1962, logo após a

descoberta do adultério de Hughes. Assim, apesar de as figuras de linguagem

transfigurarem a realidade, o seu contexto, não há dúvidas que o receptor, o

elemento da função conativa do poema, remete ao marido da poeta na época do

conturbado e já quase destruído relacionamento.

Percebe-se também a função emotiva do narrador pelo tom de revolta e

indignação envolvendo a atmosfera do tema adultério ao longo de todo o poema.

Outro viés da função emotiva, entretanto, pode ser verificado no poema

“The Rival”, onde a ironia parece controlar impulsos mais afiados e o receptor

aparece como um indivíduo suspeito na perspectiva do emissor:

If the moon smiled, she would resemble you. You leave the same impression Of something beautiful, but annihilating. Both of you are great light borrowers. Her O-mouth grieves at the world; yours is unaffected,

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And your first gift is making stone out of everything. I wake to a mausoleum; you are here, Ticking your fingers on the marble table, looking for cigarettes, Spiteful as a woman, but not so nervous, And dying to say something unanswerable. The moon, too, abuses her subjects, But in the daytime she is ridiculous. Your dissatisfactions, on the other hand, Arrive through the mailslot with loving regularity, White and blank, expansive as carbon monoxide. No day is safe from news of you, Walking about in Africa maybe, but thinking of me.

(PLATH, 2007, p. 151)

Novamente se verifica a familiaridade entre o emissor e o receptor em

passagens como no terceiro verso da segunda estrofe “[...] looking for cigarettes” ou,

mas explicitamente, no segundo verso do dístico que encerra o poema “[...] but

thinking of me”.

A imagística plathiana substitui o cenário doméstico pelo espaço de um

mausoléu, onde, ao invés de o receptor tamborilar numa mesa comum de madeira,

faz isso numa mesa de mármore, no terceiro verso da segunda estrofe.

Os traços de ironia são ilustrados no efeito conotativo que o emissor utiliza

para comparar a lua com o seu receptor em toda a primeira estrofe. O verso “Both

of you are great light borrowers” sugere uma profunda e cáustica ironia. Essa luz

alheia não poderia ser a da própria poeta?

A lua, um dos símbolos mais recorrentes do corpus poético plathiano, em

poemas como “A Mad Girl’s Love Song”, “The Ghost’s Leavetaking”, The Thin

People”, “Maudlin”, “Departure”, “Moonrise”, entre outros, na maioria das vezes

associado a conotações e metaforismos pessimistas, nesse verso, a princípio,

adquire um tom de fascínio venerador: “If the moon smiled, she would resemble

you”, mas logo nos dois versos seguintes a perspectiva semiológica da lua ainda é

para a poeta a de uma imagem da beleza fatal: “You leave the same impression/Of

something beautiful, but annihilating.”

O diálogo entre o emissor e o seu receptor íntimo constantemente destila

tensão, amargura e ironia, como se nota em um dos poemas mais prolíficos na

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imagística plathiana, “Fever 103°”, com um ritmo curiosamente semelhante aos

estertores delirantes de uma febre de 40 graus:

Pure? What does it mean? The tongues of hell Are dull, dull as the triple

Tongues of dull, fat Cerberus Who wheezes at the gate. Incapable Of licking clean

The aguey tendon, the sin, the sin. The tinder cries. The indelible smell

Of a snuffed candle! Love, love, the low smokes roll From me like Isadora's scarves, I'm in a fright

One scarf will catch and anchor in the wheel. Such yellow sullen smokes Make their own element. They will not rise,

But trundle round the globe Choking the aged and the meek, The weak

Hothouse baby in its crib, The ghastly orchid Hanging its hanging garden in the air,

Devilish leopard! Radiation turned it white And killed it in an hour.

Greasing the bodies of adulterers Like Hiroshima ash and eating in. The sin. The sin.

Darling, all night I have been flickering, off, on, off, on. The sheets grow heavy as a lecher's kiss.

Three days. Three nights. Lemon water, chicken Water, water make me retch.

I am too pure for you or anyone. Your body Hurts me as the world hurts God. I am a lantern ---

My head a moon Of Japanese paper, my gold beaten skin Infinitely delicate and infinitely expensive.

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Does not my heat astound you. And my light. All by myself I am a huge camellia Glowing and coming and going, flush on flush.

I think I am going up, I think I may rise --- The beads of hot metal fly, and I, love, I

Am a pure acetylene Virgin Attended by roses,

By kisses, by cherubim, By whatever these pink things mean. Not you, nor him.

Not him, nor him (My selves dissolving, old whore petticoats) --- To Paradise.

(PLATH, 2007, p. 160)

O poema apresenta várias referências do diálogo entre emissor e receptor,

mais uma vez na situação da intimidade de um casal, onde há um cuidado natural

do receptor ao tratar o emissor ardendo em febre e queixando-se de tanta

assistência, como no terceto da décima primeira estrofe “Three days. Three

nights./Lemon water, chicken/Water, water make me retch.” Nesse verso há uma

intersecção funcional entre o plano formal e de conteúdo, pois o emissor reclama de

três dias de febre e a poeta compôs todo o poema em tercetos.

Outros versos denotam a presença constante do receptor cuidando do

emissor enfermo, mas, mesmo assim, recebendo em troca conotações amargas:

“Love, Love, the low smokes roll”; “Darling, all night”; “I am too pure for you or

anyone./Your body/Hurts me as the world hurts God [...]”; “Does not my heat astound

you. And my light.”; “The beads of hot metal fly, and I, love, I”; “Not you, nor him”.

O poema “The Rabbit Catcher”, apesar de não indicar um componente

identificador da função conativa, deixa clara a recorrência do receptor íntimo, na

última estrofe, na presença do pronome “nós”:

[…] And we, too, had a relationship --- Tight wires between us, Pegs too deep to uproot, and a mind like a ring Sliding shut on some quick thing, The constriction killing me also.

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(PLATH, 2007, p. 34)

A tensão dialogística entre o casal releva-se mais uma vez, amparada pela

conotação entre a armadilha para coelhos e o casamento deles, inferido pela

presença do anel, e a pressão matrimonial sofrida pela persona, agonizando, assim

como o coelho, capturado e morto.

Heather Clark, na introdução do seu livro The Grief of Influence: Sylvia Plath

and Ted Hughes (2011), também avaliando a intrincada problemática entre a fusão

do biográfico e o poético na obra de Plath, fornece uma pista de quem poderia ser o

personagem transfigurado como receptor nos poemas acima analisados:

Although many critics now argue for reading of Plath that resist any biographical perspective, Plath’s marriage to Hughes means that her poetry strains under the weight of “the male gaze” in ways that other women’s work does not. To understand her poems more fully, one must examine, rather than condemn or ignore, Hughes’s presence in and influence upon Plath’s writing life. (CLARK, 2011, p. 5, grifo nosso)

Sendo assim, o espaço intertextual entre Plath e Hughes, notadamente entre

as obras Ariel e Birthday Letters, vai se tornando mais próximo e apreensível no

decorrer dessa pesquisa.

2 A ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA E DA LIBERTAÇÃO

Recentes estudos da obra poética de Plath e Hughes, como o livro de Clark

(2011), enfatizam o aspecto colaborativo e participativo entre os dois poetas como

um casal, e por isso mesmo muito próximos um do outro no cotidiano comum assim

como no labor artístico.

Clark comenta que uma considerável parcela da fortuna crítica plathiana,

como Marjorie Perloff, Susan Van Dyne, Jacqueline Rose e Lynda Bundtzen, ignora

uma análise intertextual mais próxima dos dois poetas, assim como alguns críticos

de Hughes, como Keith Sagar, por exemplo, negam a influência de Plath na obra do

poeta.

Segundo a autora, alguns críticos parecem mais preocupados em negar a

influência mútua dos poetas, ou seja, as alusões, referências, imagens ou símbolos

compartilhados nos seus poemas, do que cotejar a obra de ambos, e aconselha uma

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análise nesse sentido: “To understand her poems fully, one must examine, rather

than condemn or ignore, Hughes’s presence in and influence upon Plath’s writing

life.” (CLARK, 2011, p.5)

Os próprios autores comentaram sobre a influência poética nos seus

trabalhos em entrevistas concedidas a um programa de rádio da BBC intitulado “Two

of a Kind: Poets in Partnership”. Plath respondeu ao entrevistador Owen Leeming se

havia mais alguma coisa entre ela ou o marido nas suas obras além de simples

dedicatórias:

Well I think that all the poems that we wrote to each other and about each other were really before our marriage, and then something happened, I don’t know what is was, I hope it was all to the good, but we began to be able to, well, somehow free ourselves for other subjects and I think the dedications, at least as far as mine goes, I feel that I’d never be writing as I am, and as much as I am, without Ted’s understanding and cooperation, really. (Hughes and Plath: 1961)

Mais tarde, em 1965, concedendo um depoimento à revista Manchester

Guardian, Hughes observa a convivência diária com Plath como fator inquestionável

para uma influência mútua, benéfica e produtiva no âmbito intelectual dos poetas:

There was no rivalry between us as poets or in any other way. It sounds trite but you completely influence one another if you live together. You begin to write out of one brain… It was all we were interested in, all we ever did. We were like two feet, each one using everything the other did. It was a working partnership and all-absorbing. We just lived it. There was an unspoken unanimity in every criticism or judgment we made. It all fitted in very well. (HUGHES in “Desk Poet”, Guardian, 1965, grifo nosso)

Percebe-se uma semelhança das impressões dos dois poetas nesse

intercâmbio de influências. Apenas os aspectos positivos foram relevados, não se

duvidando em nenhum momento, portanto, da angústia que ambos pareciam ocultar

a respeito dessa influência mútua, tanto da mídia como possivelmente até mesmo

um do outro.

Todavia, os poetas deixaram indicações de que essa parceria não era tão

positiva como parecia. Clark (2011) cita na introdução do seu livro um depoimento

de Hughes a Drue Heinz no Paris Review, em 1995, no qual aponta uma única

palavra que denota estranhamento e desconforto sobre esse compartilhamento

intelectual com Plath: “[...] our minds soon became two parts of one operation. We

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dreamed a lot of shared or complementary dreams. Our telepathy was intrusive. I

don´t know whether our verse exchanged much, if we influenced one another that

way.” (HUGHES in CLARK, 2011, p. 8, grifo nosso).

A autora destaca o termo “intrusivo” como um aspecto negativo, assim como

a dúvida do poeta sobre se realmente houve uma troca prodigiosa de influências nos

poemas dele e da poeta.

No caso de Plath é possível sacar informações valiosas sobre o seu

relacionamento com Hughes, no foro intelectual e artístico, nas mais de setecentas

páginas dos seus diários, The Journals of Sylvia Plath – 1950−1962. Em alguns

trechos, por exemplo, verifica-se o incômodo que a presença do poeta exercia no

seu trabalho: “[...] Preciso encontrar a felicidade primeiro em meu próprio trabalho, e

me esforçar para isso, para que minha vida não dependa de Ted” (PLATH, 2003, p.

489). Em outro, essa evidência se acentua:

A famosa e fatal rivalidade profissional − felizmente ele está tão na minha frente que jamais precisarei temer ser esmagada por sua superioridade − por impulso, num momento de fraqueza. Talvez a fama o livre do sofrimento. Vou lutar para que não seja assim. Preciso trabalhar e sair do embotamento − escrever e não lhe mostrar nada: romance, conto e poemas. (PLATH, 2003, p. 489, grifo nosso)

Portanto, parece haver mais uma angústia da influência partilhada pelos

poetas do que propriamente um prazer de compartilhamento intelectual e artístico.

Esse tema é estudado por Harold Bloom na sua obra A Angústia da

Influência − Uma Teoria da Poesia (1973). Embora o autor quase não analise a

influência poética no contexto de poetas contemporâneos, alguns aspectos da sua

teoria podem se coadunar à relação entre Plath e Hughes, como a seguinte

observação: “Acontece que um poeta influencia outro, ou mais precisamente, que os

poemas de um poeta influenciam os de outro, por uma generosidade do espírito, até

mesmo uma generosidade partilhada.” (BLOOM, 2002, p. 80).

O que poderia ser entendido como generosidade no caso de Plath e Hughes

seria uma espécie de veneração passional que um exercia sobre o outro, estendida

intelectualmente para a sua obra poética. Nesse sentido, consciente ou

inconscientemente, a influência poética de Hughes sobre Plath, ou o contrário, é

natural na medida de uma admiração mútua.

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Entrando no campo da exemplificação prática dessa influência, algumas

características da poética de ambos os autores serão cotejadas para uma melhor

apreensão da questão.

Um dos temas caros à poesia hugheana, como mais detalhadamente será

comentado no capítulo seguinte, é uma recorrente descrição da natureza ou do

cosmos, o alheamento do homem diante dessas grandiosas presenças, mas

também uma tentativa de recuperá-las como partes integrantes da sua vida. Assim,

poemas como “Wind”, “Pennines in April”, “Crow Hill” ou “Fire-Eater”, por exemplo,

denotam essa temática.

A influência de Hughes, com o poema “Wind”, sobre o poema “Wuthering

Heights”, de Plath, pode ser percebida pela semelhança de dicção e imagística. Para

uma melhor apreensão do parágrafo acima, segue a seleção de algumas estrofes de

ambos os poemas. Primeiramente, “Wind”, de Hughes:

This house has been far out at sea all night, The woods crashing through darkness, the booming hills, Winds stampeding the fields under the window Floundering black astride and blinding wet Till day rose; then under an orange sky The hills had new places, and wind wielded Blade-light, luminous black and emerald, Flexing like the lens of a mad eye. […] The fields quivering, the skyline a grimace, At any second to bang and vanish with a flap; The wind flung a magpie away and a black- Back gull bent like an iron bar slowly. The house Rang like some fine green goblet in the note That any second would shatter it. Now deep In chairs, in front of the great fire, we grip Our hearts and cannot entertain book, thought, Or each other. We watch the fire blazing, And feel the roots of the house move, but sit on, Seeing the window tremble to come in, Hearing the stones cry out under the horizons.

(HUGHES, 1967, p. 34)

Na sequência, Plath, com “Wuthering Heights”: The horizons ring me like faggots, Tilted and disparate, and always unstable. Touched by a match, they might warm me,

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And their fine lines singe The air to orange Before the distances they pin evaporate, Weighting the pale sky with a soldier color. But they only dissolve and dissolve Like a series of promises, as I step forward. There is no life higher than the grasstops Or the hearts of sheep, and the wind Pours by like destiny, bending Everything in one direction. I can feel it trying To funnel my heat away. If I pay the roots of the heather Too close attention, they will invite me To whiten my bones among them. […] The sky leans on me, me, the one upright Among all horizontals. The grass is beating its head distractedly. It is too delicate For a life in such company; Darkness terrifies it. Now, in valleys narrow And black as purses, the house lights Gleam like small change.

(PLATH, 1967, p. 81-82) No entorno temático dos poemas há alguns pontos em comum. Em “Wind”,

a ação fustigante do vento sobre bosques e campos “The woods crashing through

darkness, the booming hills,/Winds stampeding the fields under the window/

Floundering black astride and blinding wet” continua deixando seu impressionante

rastro em “Wuthering Heights” no trecho “[…]and the wind/ Pours by like destiny,

bending/ Everything in one direction.”

Sobre o termo “the horizons” há uma recorrência notável: encerra o poema

“Wind”, mas inicia “Wuthering Heights”, como se fosse um elo de continuidade lírica.

Para a descrição da atmosfera em dado momento, Hughes utiliza a palavra

“orange” para descrever o céu na aurora “[...] then under an orange sky”, enquanto

Plath recorre ao mesmo vocábulo para representar o ar “And their fine lines

singe/The air to orange”.

De modo análogo também, em Hughes a palavra “house” aparece ao longo

dos versos, notadamente na última estrofe, quando iluminada pelas chamas, que

poderia remeter a uma lareira diante da qual um casal repousa ao crepúsculo. Assim

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como em Plath o vocábulo, embora apenas uma vez, também aparece, e associado

à luz, como na última estrofe.

A afirmação da submissão do homem diante das forças da natureza ou a

supremacia desta sobre aquele, comum em Hughes, é partilhada por Plath de forma

figurada em: “There is no life higher than the grasstops/ Or the hearts of sheep, […]”,

assim como a relação hugheana natureza/homem também encontra eco nos

seguintes versos plathianos, quando a ação do vento também atua sobre a persona

“I can feel it trying/To funnel my heat away./If I pay the roots of the heather/Too close

attention, they will invite me/To whiten my bones among them”.

Apesar das semelhanças decorrentes da influência que um poeta exercia

sobre o outro, pode se perceber na poesia hugheana a presença de uma natureza

recorrentemente convidando o homem a uma reintegração e renovação pela vida,

enquanto na poesia plathiana esse processo passa pela morte “To whiten my bones

among them.”

Essa diferença já denota a modulação de uma voz inequivocamente

plathiana, onde a morte é adornada pelo lirismo imagístico da sua consequente

degradação. Como em Baudelaire, por exemplo, em “Une charogne”, poema que

marca a transitoriedade da vida, do corpo e da beleza:

[...] Alors, ô ma beuaté! dites à la vermine Qui vous mangera de baiser, Que j’ai gardé la forme et l’essence divine De mês amours dócomposés!

(BAUDELAIRE, 2006, p. 176)

Keith Sagar, um dos nomes mais representativos da fortuna crítica de

Hughes, em seu livro The Art of Ted Hughes (1975) também observa a influência da

obra do poeta sobre a de Plath, cotejando inclusive dois poemas de ambos:

His was the stronger, surer poetic voice, and the immediate effect was of ventriloquism. Her ‘Spinster’, one of the first poems she wrote after their meeting, is a variation on his ‘Secretary’ and echoes the vocabulary of ‘Fallgrief’s Girl-friends’: But here – a burgeoning Unruly enough to pitch her five quennly wits Into vulgar motley – A treason not to be borne. Let idiots Reel giddy in bedlam spring:

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She withdrew neatly. And another poem of that period, ‘Strumpet Song’, ends with a passage of pure Hughes, the wrenched syntax, the savage consonants, the pounding monosyllables: Walks there not some such one man As can spare breath To patch with brand of love this rank grimace Which out from black tarn, ditch and cup Into my most chaste own eyes Looks up.

(SAGAR, 1975, p. 10-11)

No entanto, Plath também parece ter influenciado Hughes, como observado

por Clark na introdução do seu livro, ao comentar o assunto do capítulo 9: “Chapter

9 deals with Plath’s influence on Crow, which has been almost completely ignored by

both Plath and Hughes critics” (CLARK, 2011, p. 12).

Durante a análise de alguns poemas dessa obra de Hughes, Crow (1970),

tentando detectar alguma dicção, imagística ou organização estrutural de um poema

plathiano absorvidos pelos seus versos, a evidência apareceu na leitura do poema

“Dawn’s Rose”:

Dawn's Rose Is melting an old frost moon. Agony under agony, the quiet of dusk, And a crow talking to stony skylines. Desolate is the crow's puckering cry As an old woman's mouth When the eyelids have finished And the hills continue. A cry Wordless As the newborn baby's grieving On the steely scales. As the dull gunshot and its after-râle Amongst conifers, in rainy twilight. Or the suddenly dropped, heavily dropped Star of blood on the fat leaf.

(HUGHES, apud SAGAR, 1975, p. 103)

Para o leitor de Ariel e outras obras anteriores da poeta, esses versos

parecem evocar uma atmosfera muito peculiar, onde a dicção plathiana ecoa em

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sintagmas como “an old frost moon”, “the newborn baby’s grieving” e “ star of blood”,

assim como a organização estrutural do poema evoca uma tendência,

principalmente em Ariel, da versificação enxuta, de apenas um ou dois vocábulos

“Dawn’s Rose”, “A cry”, “Wordless”, “On the steely scales” e de estrofes curtas, de

apenas um verso ou dísticos, fomentando um ritmo pausado e misterioso, como se

fosse uma narrativa de suspense.

Coincidência ou não, em Ariel, após a separação de Hughes e Plath, a poeta

parece se libertar da influência do ex-marido, de encontrar a própria voz. Todavia,

esse processo de libertação parece carregar mais angústia do que satisfação, pois,

por mais que ela tivesse consciência de que essa obra seria a sua melhor

realização, “os melhores poemas da minha vida; eles vão fazer o meu nome”

(PLATH, 2007, p. 7), já num poema escrito alguns dias após a separação, “The

Jailor”, há uma possível indicação do sofrimento que essa liberdade estava

causando:

[...]

I imagine him Impotent as distant thunder, In whose shadow I have eaten my ghost ration. I wish him dead or away. That, it seems, is the impossibility. That being free. What would the dark Do without fevers to eat? What would the light Do without eyes to knife, what would he Do, do, do without me.

(PLATH, 2007, p. 62)

Na transfiguração da influência de Hughes “In whose shadow I have eaten

my ghost ration” ou no desejo de se libertar dessa influência “I wish him dead or

away” e, finalmente, na angústia dessa libertação em toda a última estrofe, percebe-

se um sentimento paradoxal, embora a dor pareça predominar, encerrando o poema

na repetição que ecoa fundo na solidão em “Do, do, do without me.”

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3 CARTAS DE ANIVERSÁRIO: DIÁLOGOS COM ARIEL

A análise sobre o diálogo entre Plath e Hughes, tanto nos aspectos

intertextuais como na questão das influências intelectuais e artísticas que um exercia

sobre o outro, foi trabalhada até aqui no espaço que envolvia duas fases distintas na

vida dos poetas: durante e depois do casamento.

E após a morte de Plath? Não haveria mais diálogos intertextuais? A poesia

de Hughes se libertaria tanto da presença do receptor plathiano (já analisado no

capítulo anterior) como da influência da poeta?

É oportuno voltar ao livro de Clark (2011), onde na introdução ela cita dois

comentários da professora de literatura norte-americana da Universidade de East

Anglia, Sarah Churchwell: “[...] critical gamesmanship does not allow for the private

possibility that both Plath and Hughes abandoned each other as various times in

their lives and with tragic effect, but that their public (published) writings do not

abandon each other” (CHURCHWELL, apud CLARK, 2011, p. 3, grifo nosso). O

segundo comentário complementa o primeiro: “Plath and Hughes didn’t just use their

relationship in their writing, they used writing to conduct their relationship”

(CHURCHWELL, apud CLARK, 2011, p. 5, grifo nosso).

O segundo comentário de Churchwell poderia abrir um parêntesis à reflexão

da permeabilidade da literatura para o diálogo dos seus autores, ou seja, um

relacionamento íntimo de dois poetas, com todas as suas nuances, transcendendo o

real e sendo transfigurado pela arte.

Estendendo um pouco o primeiro comentário de Churchwell, mesmo após a

morte de Plath, Hughes não a abandonou em sua poesia, manteve um contato

memorialístico, e até mesmo místico, na obra Cartas de Aniversário. As próprias

palavras do poeta ilustram melhor a questão:

Escrito sem planejamento ao longo de 25 anos, este é um livro no qual eu tentei estabelecer um contato direto, privado, íntimo, com minha primeira mulher, não pensando em fazer um poema, mas principalmente pensando em evocar sua presença e senti-la ali, escutando. (HUGHES, 1999, p. 1, grifo nosso)

Cartas de Aniversário é uma compilação de poemas escritos

gradativamente, iniciando-se alguns poucos anos após a morte de Plath e ao longo

de mais vinte e cinco anos, conforme informado pelo autor.

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Há referências intertextuais diretas e alusivas aos poemas mais antigos do

corpus plathiano assim como um forte diálogo com os poemas de Ariel.

O período de composição tem como contraponto o silêncio de Hughes diante

dos ataques recebidos por feministas que o culpavam pelo suicídio de Plath, além

de organizarem manifestações de repúdio durante leituras públicas dos poemas do

autor.

Ele decidiu publicar o livro somente quando recebeu a notícia de que um

câncer o mataria no prazo de 18 meses, em 1998.

Assim, mesmo após a morte de Plath e Hughes, a literatura conseguiu

manter a relação, não dos seus autores, mas a das personas dos seus poemas, ali,

vivas, numa transfiguração da realidade por meio das imagens, símbolos, dicções e

metáforas do universo poético. Isso é mais produtivo do que uma mera especulação

biográfica.

Os trabalhos anteriores do autor, tais como The Hawk in the Rain (1957),

Lupercal (1960), Wodwo (1967) ou Crow (1970), por exemplo, denotam uma

temática recorrente sobre o mundo animal, as forças da natureza e a energia cíclica

do universo.

Hughes, como uma espécie de poeta-xamã, conforme observado no capítulo

anterior, tende a uma linguagem poética fomentadora da reintegração do homem

com a natureza, uma reaproximação diante do alheamento humano causado pela

competição do mundo moderno.

Sobre esse aspecto, Sagar (1975) comenta que:

From the beginning Hughes is searching for a way of reconciling human vision with the energies, powers, presences, of the non-human cosmos. At first his main concern is to identify these energies and describe them, not only in human terms but in their own, that is in Nature’s terms. And the discrepancy between these two descriptions gives the most powerful of his early poems, for example the hawk and jaguar poems, their characteristic tension. Hughes is also concerned to discover whether negotiations are possible between man and Nature, that is between man and his Creator, and, if so, why they have so completely collapsed in our time and what the consequences of this collapse have been and may yet be. (SAGAR, 1975, p. 4)

Diferentemente das suas obras anteriores, Hughes inova, tanto em termos

estruturais como temáticos em Cartas de Aniversário. Estruturais porque o autor

rompe momentaneamente os elos com a tradição subjacente dos seus primeiros

trabalhos, desde influências como Shakespeare e Milton até Yeats e Lawrence,

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praticando um estilo mais despojado, abundante de versos livres e de fatura

genérica mais próxima a uma crônica memorialista do que propriamente à poesia,

além da recorrência de uma dicção mais coloquial. Temáticos porque os temas

fundamentais dessa obra são a respeito de Plath e às circunstâncias de um

conturbado relacionamento.

Apesar disso, ainda é possível encontrar nessa obra marcas inequívocas do

seu universo temático, como, por exemplo, no poema “The Owl”:

I saw my world again through your eyes As I would see it again through your children's eyes. Through your eyes it was foreign. Plain hedge hawthorns were peculiar aliens, A mystery of peculiar lore and doings. Anything wild, on legs, in your eyes Emerged at a point of exclamation As if it had appeared to dinner guests In the middle of the table. Common mallards Were artefacts of some unearthliness, Their wooings were a hypnagogic film Unreeled by the river. Impossible To comprehend the comfort of their feet In the freezing water. You were a camera Recording reflections you could not fathom. I made my world perform its utmost for you. You took it all in with an incredulous joy Like a mother handed her new baby By the midwife. Your frenzy made me giddy. It woke up my dumb, ecstatic boyhood Of fifteen years before. My masterpiece Came that black night on the Grantchester road. I sucked the throaty thin woe of a rabbit Out of my wetted knuckle, by a copse Where a tawny owl was enquiring. Suddenly it swooped up, splaying its pinions Into my face, taking me for a post.

(HUGHES, 1999, p. 78)

Nesse poema se releva um contraponto de temas, ou seja, sua ex-mulher,

tema central de Cartas de Aniversário e os animais, tema recorrente das obras

anteriores do autor.

Há também uma acentuada demarcação das diferenças entre os dois

poetas. Um mundo estrangeiro é refletido nos olhos do receptor “I saw my world

again through your eyes/As I would see it again through your children's eyes/

Through your eyes it was foreign.” O mundo do emissor é incompreendido pelo

receptor “You were a camera/Recording reflections you could not fathom.” Apesar

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disso, há momentos em que o emissor se compraz com as reações do receptor,

levando-o de volta a sua juventude “Your frenzy made me giddy./It woke up my

dumb, ecstatic boyhood/Of fifteen years before.”

Há nos poemas de Cartas de Aniversário um recorrente jogo entre a ironia e

o deslumbramento, a crítica e o louvor, um antagonismo de sentimentos atuando na

maioria das vezes em harmonia, mas também em dissonância, onde justamente

atua o elemento paródico, como será visto mais adiante.

O título da obra, dado o conteúdo poético, causa certo estranhamento a

princípio. Afinal, por que cartas? Como o próprio autor declarou que a sua vontade

era fazer um contato privado e íntimo, não pensando em fazer poemas, não é

complicado entender o motivo de o título conter esse vocábulo.

E o complemento do título? Por que de aniversário? Frieda Hughes, no

prefácio de Ariel, conta que a sua mãe tentou outros títulos para a obra, tais como

“The Rival”, “The Rabbit Catcher”, “Daddy” e “A Birthday Present”, todos sendo

também poemas do livro.

Uma das hipóteses poderia se apoiar justamente no poema “A Birthday

Present”, no qual a persona pede um presente ao seu receptor, mas deseja que não

o receba pelo correio:

[…] There is this one thing I want today, and only you can give it to me. I t stands at my window, big as the sky. It breathes from my sheets, the cold, dead center Where spilt lives congeal and stiffen to history. Let it not come by the mail, finger by finger. […]

(PLATH, 2007, p. 142)

O poeta estaria utilizando uma alusão intertextual referente a esse poema

para compor o título da sua obra? Estaria sendo irônico ao contrariar o pedido do

emissor do poema “let it not come by the mail” para intitular Cartas e ao mesmo

tempo dando um presente in memoriam, completando o título com de Aniversário?

Outra possível explicação para o título do livro seria uma forma híbrida do

título de dois poemas em Ariel, “A Birthday Present” e “Letter in November”, que

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inclusive estão em sequência, redundando assim em Cartas de aniversário, apenas

com o primeiro vocábulo no plural.

Essa problematização na verdade pretende ser o ponto de partida da análise

sobre os aspectos intertextuais entre Ariel e Cartas de Aniversário, principalmente

na abordagem das suas vertentes, a ironia e a paródia.

3.1 CRÍTICA E IRONIA: A PARÓDIA SOB OUTRO OLHAR

Cartas de Aniversário mantém um diálogo intertextual constante com a obra

poética de Plath, seja por meio de alusões, referências e também pela paródia.

Entretanto, esse capítulo pretende relativizar apenas poemas de Cartas de

Aniversário e de Ariel, concentrando o cotejamento intertextual em alguns poemas

selecionados dessas obras.

A acepção mais comum ao termo “paródia” encerra um aspecto burlesco,

satírico ou ridicularizador como produto de uma obra de arte que transforma pela

imitação uma precedente, seja canônica ou não. Os dicionários apresentam

praticamente as mesmas significações: “sf. 1. Imitação cômica de uma composição

literária. 2. Imitação burlesca.” (AURÉLIO, 2008, p. 611). “s.f. (1833 cf. AGC) obra

literária, teatral, musical etc. que imita outra obra, ou os procedimentos de uma

corrente artística, escola etc. com objetivo jocoso ou satírico; arremedo.” (HOUAISS,

2001, p. 2.136-2.137).

O que interessa ao foco dessa pesquisa é a paródia literária, e o exemplo

mais clássico que pode ser citado é Dom Quixote, obra na qual Cervantes satiriza as

novelas de cavalaria, ridicularizando o elegante e impetuoso cavaleiro medieval na

figura patética do seu protagonista.

Na poesia brasileira há registros recorrentes do exercício paródico sobre, por

exemplo, o poema de Gonçalves Dias (1823-1864) “Canção do Exílio”, um dos

poemas mais parodiados na literatura brasileira. Dentre as paródias desse poema, a

do poeta José Paulo Paes (1926-1998), “Canção do exílio facilitada”, é uma das

mais sucintas, e, provavelmente ainda mais por isso, convincentes na sua

comicidade:

lá?

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ah! sabiá... papá... maná... sofá... sinhá... cá? bah!

(PAES, 2008, p. 194)

O poema de Paes norteia a forma, a estrutura do poema, parodiando o estilo

de uma tradição poética marcada por uma estrofação e versificação mais amplas,

como, por exemplo, a primeira geração do Romantismo brasileiro, da qual Dias foi

um dos representantes.

Paes, influenciado pelo reducionismo característico do Concretismo2, parece

sem dúvida parodiar um estilo ultrapassado, segundo o postulado concretista da

abolição do verso tradicional.

Apesar do efeito cômico, satírico ou burlesco da paródia, o seu escopo não

se limita a essas vertentes, também podendo incluir no seu alcance um viés

diametralmente oposto, ou seja, a seriedade da sua abordagem, mais próxima da

homenagem ou reflexão crítica, marcada frequentemente pela ironia, do que da

comicidade.

Essa leitura da paródia ocorre a partir principalmente do século XX e,

portanto, no perímetro das artes modernas.

Linda Hutcheon, na obra A Theory of Parody (1985), analisa exata e

extensamente essa nova leitura, ampliando o entendimento ou apreensão da

paródia, seja nas artes plásticas, música ou literatura, fornecendo exemplos

clássicos como Ulysses, de James Joyce (1882-1941), e logo na introdução avisa

que:

It will be clear by now that what I am calling parody here is not Just that ridiculing imitation mentioned in the standard dictionary definitions. The challenge to this limitation of its original meaning, as suggested (as we shall see) by the etymology and history of the term, is one of the lessons of

2 Movimento vanguardista da poesia brasileira, o Concretismo foi criado pelos poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos (1929-2003) e Augusto de Campos, oficialmente lançado em 1956.

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modern art that must be heeded in any attempt to work out a theory of parody that is adequate to it. Joyce’s Ulysses provides the most blatant example of the difference in both scope and intent of what I shall label as parody in the twentieth century. There are extended parallels with the Homeric model on the level of character and plot, but these are parallels with an ironic difference: Molly/Penelope, waiting in her insular room for her husband, has remained anything but chaste in his absence. Like Eliot’s ironic echoes of Dante and many others in his poetry, this is not just a structural inversion; it also signals a change in what used to be called the “target” of parody. While the Odyssey is clearly the formally backgrounded or parodied text here, it is not one to be mocked or ridiculed; if anything, it is to be seen, as in the mock epic, as an ideal or at least as a norm from which the modern departs. (HUTCHEON, 1985, p. 5)

Como a autora observa, o sentido da ironia na paródia é mais amplo, não

somente concernindo ao plano de expressão, conforme exemplificado no poema de

Paes, mas visando um ideal ou norma característica do pensamento moderno: a

reflexão crítica no plano de conteúdo. Essa reflexão marca mais uma distância

crítica do que uma similaridade ao texto parodiado e sua reformulação.

(HUTCHEON, 1985, p.6)

Alguns poemas de Cartas de Aniversário podem perfeitamente se coadunar

com os conceitos propostos por Hutcheon (1985), pois revisitam a poética plathiana,

e, principalmente no seu diálogo intertextual com Ariel, a ironia e sua distância crítica

apresentam um apelo minimamente instigante, muita vezes tocante mesmo, dado o

contexto da situação dos poetas no decorrer dos vinte e cinco anos de

desenvolvimento de Cartas de Aniversário: Hughes, vivo e memorialista; Plath,

morta, embora viva na perenidade da sua herança artística.

Para um melhor desenvolvimento da análise intertextual entre as duas

obras, se convencionará o uso de uma das conceituações de Gérard Genette na sua

obra Palimpsestes (1982) sobre as categorias intertextuais. O autor desenvolve

cinco categorias, sendo a quarta, a “hipertextualidade” (derivação de um texto a

partir de outro, transformando-o), o objeto de interesse aqui. Genette chama o texto

transformador, ou texto de chegada, como “hipertexto”, e o texto anterior,

transformado, ou texto de partida, como “hipotexto”.

A quarta categoria de Genette, a hipertextualidade, encerra o âmbito da

paródia, da paráfrase, da transformação, e é a espinha dorsal da sua obra.

Embora a citação desse autor seja capital nos estudos da intertextualidade,

é prudente não entrar no mérito das diferenças conceituais estabelecidas no seu

trabalho, desde que ele disseca o termo quase biologicamente, no sentido

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taxionômico das suas categorias. Na concepção genettiana, intertextualidade (co-

presença de um texto em outro) e hipertextualidade (derivação de um texto a partir

de outro) são noções distintas. Entretanto, essa pesquisa pretende enfocar a

hipertextualidade como uma extensão da intertextualidade e não como outra

categoria.

Tiphaine Samoyault, na obra A Intertextualidade (2001), sintetiza várias

vertentes teóricas sobre a intertextualidade, trabalhando com as noções precursoras

desse tema, dissecando suas divisões e subdivisões, apontando convergências e

divergências, tudo na tentativa de terraplanar locais ainda pedregosos para um

assentamento satisfatório do entendimento intertextual.

Não há como não mencionar o conceito inaugural, e a essa altura clássico

nos meios acadêmicos, em que a autora cita o nome de Julia Kristeva − tributária do

dialogismo bakhtiniano, no qual todo texto é absorvido e transformado por outro

texto − como responsável pela introdução oficial do termo intertextualidade em dois

artigos da revista Tel Quel e retomados na obra de 1969, Séméiotikè, Recherches

pour une sémanalyse. No primeiro artigo, de 1966, “A palavra, o diálogo, o

romance” ocorre a primeira citação do termo, sendo que já no segundo, de 1967, “O

texto fechado”, Kristeva amplia a definição como “cruzamento num texto de

enunciados tomados de outros textos” (KRISTEVA apud SAMOYAULT, 2003, p. 15).

Quanto à abordagem da paródia como ramificação da intertextualidade,

Samoyault a define como um elemento de transformação de um texto, não

necessariamente para caricaturá-lo ou diminuí-lo, mas para reutilizá-lo: “A paródia

transforma uma obra precedente, seja para caricaturá-la, seja para reutilizá-la,

transpondo-a” (SAMOYAULT, 2008: 53).

Analisando o étimo “paródia” observa-se sua origem no grego para ‘ao lado

de’ e oidé ‘ode, canto’, ou seja, um poema cantado ao lado de outro, em

contraponto, o que em música significa melodias distintas executadas ao mesmo

tempo, sem perda do seu aspecto harmônico, ou num esforço de expressar pontos

de vista diferentes, sem, portanto, desestabilizar um em detrimento do outro, mas

buscar uma simbiose de elementos díspares.

Samoyault encerra a sua obra com reflexões notáveis sobre os aspectos

memoriais e dinâmicos da literatura, o diálogo dos seus autores, não importa se na

tensão ou na comunhão dos seus pares:

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Em todos os casos, se a noção de intertextualidade parece de tal modo fecunda, é que ela se interpõe sempre entre o texto e o comentário, da mesma maneira que há sempre livros que vêm consciente e inopinadamente ao espírito daquele que escreve ou daquele que lê. Como todas as artes, a literatura se elabora com uma parte artesanal de bricolagem; e se seu material é a linguagem, é mais freqüentemente linguagem já colocada em forma na literatura existente (o que vai contra a idéia da literatura como trabalho sobre a linguagem abstrata, no sentido jakobsoniano dos estruturalistas). A citação, a re-escritura, a transformação e a alteração, qualquer que seja a relação do autor – melancólica, lúdica ou desenvolta – como o já dito, só destacam o trabalho comum e contínuo dos textos, sua memória, seu movimento. (SAMOYAULT, 2008, p. 45)

A simbiose ou harmonia de elementos distintos e o aspecto memorialístico

presentes nos versos de Cartas de Aniversário enfatizam essa continuidade e

movimento dos textos literários, o movimento de Ariel como texto revisitado,

lembrado e parodiado como um meio de diálogo entre o presente e o passado.

Um dos poemas mais ricos na sua variedade imagística e tensão rítmica,

“Fever 103°”, de Plath, é um dos mais acentuadamente parodiados por Hughes no

seu poema “Fever”.

Já no título dos poemas percebe-se o aspecto intertextual, e, nesse caso,

dentro das especificidades tipológicas do estudo de Samoyault, a partir de Genette,

ocorre a operação de integração ou co-presença de um texto em outro: “Elas atuam

nos textos que absorvem mais ou menos o texto anterior em benefício de uma

instalação da biblioteca no texto atual e eventualmente, em seguida, de sua

dissimulação.” (SAMOYAULT, 2008, p. 59)

A autora ramifica o conceito de integração com o processo de “integração-

sugestão”, onde a presença da intertextualidade é sugerida e o conhecimento do

leitor é exigido (o processo intertextual se torna plenamente funcional dentro da

amplitude cultural da sua recepção, ou seja, do conhecimento do leitor. Aqui, do

corpus poético de Hughes e Plath).

Dentro da integração-sugestão há duas segmentações: a primeira é a

“referência simples”, na qual o nome de um autor, personagem ou título remete

literalmente a outros textos; a segunda é a “alusão”, em que certo número de

marcas textuais não literais a distingue da referência simples.

Nesse sentido, o título do poema “Fever” não remete a uma menção direta,

simples, ao título do poema “Fever 103°”, ocorrendo assim uma alusão. O efeito

paródico em “Fever” parece se iniciar desde o título, como será demonstrado

adiante.

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Antes disso, entretanto, torna-se oportuno transcrever ambos os poemas, a

fim de cotejamento, iniciando-se por “Fever 103°”, de Plath:

Pure? What does it mean? The tongues of hell Are dull, dull as the triple

Tongues of dull, fat Cerberus Who wheezes at the gate. Incapable Of licking clean

The aguey tendon, the sin, the sin. The tinder cries. The indelible smell

Of a snuffed candle! Love, love, the low smokes roll From me like Isadora's scarves, I'm in a fright

One scarf will catch and anchor in the wheel. Such yellow sullen smokes Make their own element. They will not rise,

But trundle round the globe Choking the aged and the meek, The weak

Hothouse baby in its crib, The ghastly orchid Hanging its hanging garden in the air,

Devilish leopard! Radiation turned it white And killed it in an hour.

Greasing the bodies of adulterers Like Hiroshima ash and eating in. The sin. The sin.

Darling, all night I have been flickering, off, on, off, on. The sheets grow heavy as a lecher's kiss.

Three days. Three nights. Lemon water, chicken Water, water make me retch.

I am too pure for you or anyone. Your body Hurts me as the world hurts God. I am a lantern ---

My head a moon Of Japanese paper, my gold beaten skin Infinitely delicate and infinitely expensive.

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Does not my heat astound you. And my light. All by myself I am a huge camellia Glowing and coming and going, flush on flush.

I think I am going up, I think I may rise --- The beads of hot metal fly, and I, love, I

Am a pure acetylene Virgin Attended by roses,

By kisses, by cherubim, By whatever these pink things mean. Not you, nor him.

Not him, nor him (My selves dissolving, old whore petticoats) --- To Paradise.

(PLATH, 2007, p. 160)

E “Fever”, de Hughes:

You had a fever. You had a real ailment. You had eaten a baddie. You lay helpless and a little bit crazy With the fever. You cried for America And its medicine cupboard. You tossed On the immovable Spanish galleon of a bed In the shuttered Spanish house That the sunstruck outside glare peered into As into a tomb. 'Help me,' you whispered, 'help me.' You rambled. You dreamed you were clambering Into the well-hatch and, waking, you wanted To clamber into the well-hatch - the all-clear Short cut to the cool of the water, The cool of the dark shaft, the best place To find oblivion from your burning tangle And the foreign bug. You cried for certain You were going to die. *******************I bustled about. I was nursemaid. I fancied myself at that. I liked the crisis of the vital role. I felt things had become real. Suddenly mother, As a familiar voice, woke in me. She arrived with certain knowledge. I made a huge soup. Carrots, tomatoes, peppers and onions, A rainbow stir of steaming elixir. You Had to become a sluice, a conduit Of pure vitamin C. I promised you, This had saved Voltaire from the plague. I had to saturate you and flush you With this simmer of essences. *******************I spooned it Into your helpless, baby-bird gape, gently,

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Masterfully, patiently, hour by hour, I wiped your tear-ruined face, your exhausted face, All loose with woe and abandon. I spooned more and you gulped it like life, Sobbing, 'I'm going to die.' *******************As I paused Between you mouthfuls, I stared at the readings On your dials. Your cry jammed so hard Over into the red of catastrophe Left no space for worse. And I thought How sick is she? Is she exaggerating? And I recoiled, just a little, Just for balance, just for symmetry, Into sceptical patience, a little. 'Come on, now,' I soothed. 'Don't be so scared. It's only a bug, don't let it run away with you.' What I really thought was: 'Stop crying wolf.' Other thoughts, chilly, familiar thoughts, Came across the tightrope: 'Stop crying wolf, Or else I shall not know, I shall not hear When things get really bad.' *******************It seemed easy Watching such thought come up in such good time. Plenty of time to think: 'She is crying As if the most impossible of all Horrible things has happened - Had already happened, was going on Still happening, with the whole world Too late to help.' Then the blank thought Of the anaesthesia that helps creatures Under the polar ice and the callous That eases overwhelmed doctors. A twisting thought Of the overload of dilemma, the white-out, That brings baffled planarian worms to a standstill Where they curl up and die. You were overloaded. I said nothing. I said nothing. The stone man made soup. The burning woman drank it.

(HUGHES, 1999, p. 104, 106, 108)

Antes da análise intertextual dos dois poemas, é importante observar que as

personas de ambos vivem a mesma situação, no mesmo cenário, interagem,

conforme foi visto anteriormente sobre a função emotiva e conativa, como emissor e

receptor em um poema e vice-versa no outro.

Os poemas são a transfiguração de um fato ocorrido em uma das viagens

efetuadas pelo casal de poetas à Espanha, onde Plath passou mal após ingerir

algum alimento, ficando doente e com febre alta.

Logo no início de “Fever 103°”, abrangendo as três primeiras estrofes, a

persona descreve imagens e símbolos dantescos, uma alusão ao seu estado febril,

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de alta temperatura, como o calor do inferno. Entretanto, a persona em “Fever”

intenta, também já no início do poema, desmistificar a atmosfera surrealista evocada

no hipotexto – e que vai norteá-lo praticamente até o final – “You lay helpless and a

little bit crazy”, além de indicar a referência ao seu interlocutor, o receptor, no

primeiro vocábulo do primeiro verso, ou seja, “you”.

O efeito paródico no hipertexto, a carga irônica a partir desse início, será

regular, com remissões inclusive culturais “[...] You cried for America/And its

medicine cupboard. You tossed/On the immovable Spanish galleon of a bed/in the

shuttered Spanish house”. Essa passagem é uma crítica de Hughes ao xenofobismo

que ele observava em Plath, sempre altivando sua terra natal, os Estados Unidos,

em detrimento de alguns países da Europa, como, por exemplo, a Inglaterra, terra

natal de Hughes, ou a Espanha, conforme atestam trechos recheados de escárnio

nos seus diários “[...] fiquei deitada, encolhida, ajoelhada no tapete cáqui da sala de

estar onde havia ventilação, lembrando da Espanha e da mortífera lingüiça vermelha

espanhola;” (PLATH, 2003, p. 348). “[...] Reli contos escritos na Espanha, ontem.

Muito deprimentes. Eles são tão CHATOS (sic). Ninguém os leria. As circunstâncias,

a Viúva Mangada, o Prado, o Touro Negro, o Homem Palito, existiam em minha

mente com intensidade. Mas a narrativa é tão maçante. Quase chorei. [...]” (PLATH,

2003, p. 576).

Ora, quando no hipertexto o emissor menciona “os remédios da América”,

não é muito complicado perceber que, no entendimento do receptor, somente esses

remédios poderiam salvá-lo, todo o resto estrangeiro sendo ineficaz e a casa

espanhola fechada, como um túmulo, sendo uma espécie de exílio sufocante. Essa

passagem denota uma forte ironia, marca dominante na paródia moderna, segundo

Hutcheon “[...] This ironic playing with multiple conventions, this extended repetition

with critical difference, is what I mean by modern parody.” (HUTCHEON, 1985, p. 7).

A primeira indicação da existência de um receptor no hipotexto aparece

somente a partir do segundo verso da quarta estrofe, um “you” transformado em

“love”, e, no primeiro verso da décima estrofe, em “darling”.

E a partir dessa décima estrofe as imagens surrealistas cedem espaço a

raros momentos mais próximos à descrição de uma pessoa que arde em febre “I

have been flickering, off, on, off, on” ou ainda na décima primeira estrofe “Three

days. Three nights./Lemon water, chicken/Water, water make me retch” e finalmente

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na metade do primeiro verso da décima quarta estrofe “Does not my heat astound

you [...]”.

Todas as passagens dos versos citados no parágrafo anterior, na percepção

do emissor do hipertexto, são consideradas demonstração de exagero ou

presepada, e toda a carga emocional do hipotexto parece se pulverizar com o efeito

paródico das duas estrofes a seguir, de “Fever”:

[…] As I paused Between you mouthfuls, I stared at the readings On your dials. Your cry jammed so hard Over into the red of catastrophe Left no space for worse. And I thought How sick is she? Is she exaggerating? And I recoiled, just a little, Just for balance, just for symmetry, Into sceptical patience, a little. 'Come on, now,' I soothed. 'Don't be so scared. It's only a bug, don't let it run away with you.' What I really thought was: 'Stop crying wolf.' Other thoughts, chilly, familiar thoughts, Came across the tightrope: 'Stop crying wolf, Or else I shall not know, I shall not hear When things get really bad.' […]

(HUGHES, 1999, p. 106)

O viés paródico nessas estrofes é um amálgama de desconfiança e falta de

compadecimento, porque minimiza o aparente sofrimento do receptor, e irônica

repreensão, porque demonstra a preocupação do emissor, caso seja uma “cena”, de

não acreditar na eventualidade de uma situação realmente séria.

Voltando aos títulos dos poemas, Hughes parece ter escolhido simplesmente

“Fever”, como uma alusão à “Fever 103°”, e não como uma referência simples,

literal, porque ele considerava realmente que o fato transfigurado foi potencializado

em drama por Plath. Assim, “os quarenta graus de febre” foram considerados por ele

simplesmente como uma simples “febre”, e o efeito paródico aparece então desde o

título do poema.

O hipertexto é finalizado com profunda ironia, uma crítica amarga, marcando

a diferença de perspectivas num mesmo contexto, que é uma característica da

paródia sob outro olhar, outro sentido. Nas palavras de Hutcheon “Parody is, in

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another formulation, repetition with critical distance, which marks difference rather

than similarity.” (HUTCHEON, 1985, p. 6).

Nesse sentido, os versos do hipotexto “Does not my heat astound you. And

my light” são replicados no hipertexto com os versos finais “[...]The stone man made

soup./The burning woman drank it.”, onde a metáfora do homem de pedra,

insensível, frio, contrasta com a mulher em chamas, calorosa, emotiva e iluminada.

Voltando à abordagem de Samoyault sobre a integração-sugestão, dentro da

referência simples, há um poema de Hughes intitulado “The Rabbit Catcher” em

Cartas de Aniversário, que remete literalmente ao título do poema de Plath, também

“The Rabbit Catcher”, poema de Ariel.

Percebe-se logo pelo título desses poemas o viés marcadamente intertextual

− novamente levando-se em conta a questão da recepção do leitor, conhecedor da

obra de ambos os autores − presente nos textos, facultando assim, desde o início,

uma análise de ambos, a fim de capturar os possíveis efeitos paródicos no

hipertexto de Hughes.

O hipotexto de Plath é um poema de dicção recorrente em Ariel: palavras

ásperas, alternadamente envoltas pela aura da morte e versos variavelmente curtos,

redundando em uma espécie de suspense mágico.

“The Rabbit Catcher”, de Plath, é um poema denso, de dicção enigmática,

devido a um ritmo narrativo próximo a de um conto de horror. A natureza como

cenário, e os seus elementos, o vento, o mar e uma flora sombria, assomando ao

longo dos versos, descritos tensamente pela persona com uma respiração

suspensa, contribuem para essa aura de mistério:

It was a place of force-- The wind gagging my mouth with my own blown hair, Tearing off my voice, and the seas Blinding me with its lights, the lives of the dead Unreeling in it, spreading like oil.

I tasted the malignity of the gorse, Its black spikes, The extreme unction of its yellow candle-flowers. They had an efficiency, a great beauty, And were extravagant, like torture.

There was only one place to get to. Simmering, perfumed, The paths narrowed into the hollow.

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And the snares almost effaced themselves-- Zeros, shutting on nothing,

Set close, like birth pangs. The absence of shrieks Made a hole in the hot day, a vacancy. The glassy light was a clear wall, The thickets quiet.

I felt a still busyness, an intent. I felt hands round a tea mug, dull, blunt, Ringing the white china. How they awaited him, those little deaths! They waited like sweethearts. They excited him. And we, too, had a relationship-- Tight wires between us, Pegs too deep to uproot, and a mind like a ring Sliding shut on some quick thing, The constriction killing me also.

(PLATH, 2007, p. 34)

Um dos aspectos mais efetivos no espaço intertextual dentro do qual os

poemas de Hughes e Plath dialogam é a decodificação do hipotexto feito pelo

hipertexto, a abertura contextual operada entre ambos, ou seja, a situação

imagisticamente codificada no poema de Plath sendo decodificada pelo de Hughes,

como será visto logo a seguir.

Mais uma vez se percebe a linha tênue entre o contexto no qual uma obra

de arte é produzida e o seu próprio conteúdo. Os partidários do contextualismo e os

seus opositores invariavelmente podem correr o risco de se equivocarem ou se

enredarem no seu próprio fundamentalismo. A paródia facultaria uma reflexão sobre

certas noções extremistas que defendem uma obra de arte totalmente independente

do seu background. Como afirma Hutcheon (1985), para aclarar essa posição:

There is clearly a new interest in “contextualism” today, and any theory of modern parody should also be promised on the belief that “texts can be understood only when set against the conventional backgrounds from which they emerge; and... the same texts paradoxically contribute to the backgrounds that determine their meanings” (Schleusener 1980, 669). When that background is actually grafted onto the text, as in the form of parody, such contextualism cannot be avoided. (HUTCHEON, 1985, p.24)

O poema homônimo de Hughes decodifica o de Plath pelo efeito paródico

dos seus versos. É um exercício de reflexão, o choque cultural entre os poetas

sendo ironizado pela perplexidade do emissor do hipertexto. Segundo Hutcheon

(1985), a paródia é uma das maiores formas da moderna auto-reflexão, sendo uma

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das suas características a inversão irônica, ou seja, outro ponto de vista com

distância crítica.

Na sequência, “The Rabbit Catcher”, de Hughes:

It was May. How had it started? What Has bared our edges? What quirky twist Of the moon´s blade has set us, so early in the day, Bleeding each other? What had I done? I had Somehow misunderstood. Inaccessible In your dybbuk fury, babies Hurled into the car, you drove. We surely Had been intending a day´s outing, Somewhere on the coast, an exploration – So you started driving. What I remember Is thinking: She’ll do something crazy. And I ripped The door open and jumped in beside you. So we drove West. West. Cornish lanes I remember, a simmering truce As you stared, with iron your face, Into some remote thunderscape Of some unworldly war. I simply Trod accompaniment, carried babies, Waited for you to come back to nature. We tried to find the coast. You Raged against our English private greed Of fencing off all coastal approaches, Hiding the sea from roads, from all inland. You despised England´s grubby edges when you got there. That day belonged to the furies. I searched the map To penetrate the farms and private kingdoms. Finally a gateway. It was a fresh day, Full May. Somewhere I´d bought food. We crossed a field and came to the open Blue push of sea-wind. A gorse cliff, Bramblym, oak-packed combes. We found An eyrie hollow, just under the cliff-top. It seemed perfect to me. Feeding babies, Your Germanic scowl, edges like a helmet, Would not translate itself. I sat baffled. I was a fly outside on the window-pane O my own domestic drama. You refused to lie there Being indolent, you hated it. That flat, draughty plate was not an ocean. You had to be away and you went. And I Trailed after like a dog, along the cliff-top field-edge, Over a wind-matted oak-wood – And I found a snare. Copper-wire gleam, brown cord, human contrivance, Sitting new-set. Without a word You tore it up and threw it into the tress. I was aghast. Faithful To my country gods – I saw The sanctity of a trapline desecrated. You saw blunt fingers, blood in the cuticles,

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Clamped round a blue mug. I saw Country poverty raising a penny, Filling a Sunday stewpot. You saw baby-eyed Strangles innocents, I saw sacred Ancient custom. You saw snare after snare And went ahead, riving them from their roots And flinging them down the wood. I saw you Ripping up precarious, precious saplings Of my heritage, hard-won concessions From the hangings and the transportations To live off the land. You cried: ‘Murderers!’ You were weeping with a rage That cared noting for rabbits. You were locked Into some camber gasping for oxygen Where I could not find you, or rally hear you, Let alone understand you. In those snares You’d caught something. Had you caught something in me, Nocturnal and unknown to me? Or was it Your doomed self, your tortured, crying, Suffocating self? Whichever, Those terrible, hypersensitive Fingers of your verse closed round it and Felt it alive. The poems, like smoking entrails, Came soft into your hands.

(HUGHES, 199, p. 296, 298 e 300)

Logo no primeiro verso do hipertexto há indícios da paródia quando o “It

was” do hipotexto é reprisado com a mesma intenção memorialística. Em toda a

primeira estrofe do hipertexto o emissor contextualiza e tenta explicar as motivações

da ação dramática descrita nos versos do hipotexto. Também no hipertexto há a

recorrência das funções emotiva e conativa na contínua presença dos pronomes “I”

e “you”.

Assim, conforme problematizado anteriormente, o poema de Hughes

decodifica de alguma maneira o de Plath, pois “situa” o leitor, tanto nas ocorrências

pregressas e ausentes do hipotexto assim como na sua contextualização.

Hughes, na voz da sua persona, mais uma vez tenta desmistificar a

situação, parodiando nitidamente alguns versos, como, por exemplo, o verso do

hipotexto plathiano, onde o vento maligno “The wind gagging my mouth with my own

blown hair” é redundado pelo hipertexto apenas em agradável brisa marítima “We

crossed a field and came to the open/Blue push of sea-wind.”

A descrição da flora, transfigurada com as tintas sombrias e quase góticas

da imagística plathiana em toda a segunda estrofe do hipotexto, é parodiada no

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hipertexto pela simples ausência de qualquer metáfora “[...] A gorse cliff,/Brambly,

oak-packed combes.” A inversão irônica comentada por Hutcheon (1985) marca o

ponto de vista do emissor sobre a natureza, que é diametralmente oposto ao do seu

receptor, pois esse a considera ameaçadora no hipotexto, enquanto aquele a define

perfeita, tanto o clima como o local, no hipertexto “An eyre hollow, Just under the

cliff-top./It seemed perfect to me. [...]”.

O hipertexto procura acompanhar a tensão, o ritmo progressivamente denso

do hipotexto até se deparar com o seu centro nervoso, que são as armadilhas para

coelhos encontradas na trilha do vale ou do bosque. Enquanto no hipotexto as

armadilhas são ironicamente depreciadas em “Zeroes, shutting on nothing”, o

hipertexto as enaltece como engenhos humanos “And I found a snare./Copper-wire

gleam, Brown Cord, human contrivance,/Sitting new set.”

Embora o hipotexto em nenhum momento apresente a situação apontada

pelo hipertexto “[...] Whithout a Word/You tore it up and threw it into the tress.”, onde

o receptor destrói as armadilhas com indignação, a alusão aos caçadores de

coelhos apontada na quinta estrofe do poema de Plath é amargamente parodiada no

poema de Hughes, com um fundo de crítica social “You saw blunt fingers, blood in

the cuticles,/Clamped round a blue mug. I saw/Country poverty raising a

penny,/Filling a Sunday stewpot.[…]”

O choque cultural entre os dois poetas, o aparente desrespeito às tradições

de um pelo outro, também não aparece no hipotexto de Plath, mas é descrito

claramente no hipertexto de Hughes. Além disso, é salientado no hipertexto um dos

temas característicos da poética do autor, ou seja, os animais submetidos a um

inexorável ciclo da vida operado entre caçador e caça, embora nesse caso o homem

apareça como predador necessário, e o animal como presa indispensável para a sua

sobrevivência:

[...] I was aghast. Faithful To my country gods – I saw The sanctity of a trapline desecrated. You saw blunt fingers, blood in the cuticles, Clamped round a blue mug. I saw Country poverty raising a penny, Filling a Sunday stewpot. You saw baby-eyed Strangles innocents, I saw sacred Ancient custom. You saw snare after snare And went ahead, riving them from their roots

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And flinging them down the wood. I saw you Ripping up precarious, precious saplings Of my heritage, hard-won concessions From the hangings and the transportations To live off the land. […]

(HUGHES, 199, p. 298)

No desfecho de ambos os poemas o efeito metafórico pode ser relativizado

também por intermédio da paródia, numa tentativa de purgação ou isenção de culpa

de Hughes na voz da persona do seu poema ou ponto de vista daquele contexto.

Considerando uma abordagem contextual mais ampla, o poema de Plath foi

escrito alguns meses antes da sua separação de Hughes (“The Rabbit Catcher” data

de 21 de maio de 1962, e o casal se separou em outubro do mesmo ano). Nessa

época já havia desconfianças dela a respeito da fidelidade do marido, e a tensão do

relacionamento dos dois era crescente. Essa situação é transfigurada por ela na

última estrofe do poema, onde a persona se vê como a própria caça, o marido como

o caçador, e a armadilha como o próprio casamento:

[...]

And we, too, had a relationship-- Tight wires between us, Pegs too deep to uproot, and a mind like a ring Sliding shut on some quick thing, The constriction killing me also.

[…]

(PLATH, 2007, p. 34)

Na última estrofe do poema de Hughes, entretanto, o emissor desconhece o

motivo da indignação do emissor do hipotexto, embora, repetindo, esse

comportamento não seja descrito nos versos de Plath. O emissor do hipertexto

descarta que o receptor esteja realmente preocupado com os coelhos “You were

weeping with a rage/That cared nothing for rabbits.”, mas reconhece que o objeto da

sua ira era outra coisa, que ele apenas conjectura “You’d caught something./ Had

you caught something in me,/Nocturnal and unknown to me? Or was it/ Your doomed

self, your tortured, crying,/ Suffocating self? […]”

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O poema se encerra com uma impressionante metatextualidade, uma

metáfora, uma crítica áspera revestida com uma ironia tipicamente paródica,

conforme os estudos de Hutcheon (1985):

[...] Those terrible, hypersensitive Fingers of your verse closed round it and Felt it alive. The poems, like smoking entrails, Came soft into your hands.

(HUGHES, 1999, p. 300)

Antes da análise dos próximos poemas de Hughes e Plath dentro do seu

espaço intertextual, é necessário citar o nome de Otto Plath, pai da poeta,

especialista mundial em apicultura, morto quando os filhos, Sylvia e Warren, em

tenra idade, contavam respectivamente oito e cinco anos. Esse fato parece ter

causado um forte e permanente impacto no desenvolvimento emocional e

psicológico da poeta.

Um dos depoimentos mais corrosivos dos seus diários pode sugerir essa

marca indelével na sua personalidade:

Quanto a mim, jamais conheci o amor de um pai, o amor de um homem sólido, com laços de sangue, após a idade de oito anos. Minha mãe matou o único homem que me amaria incondicionalmente pela vida afora: apareceu certa manhã com lágrimas generosas nos olhos e contou que ele se fora para sempre. Eu a odeio por isso. Eu a odeio porque ela não o amava. Ele era um ogro. Mas sinto sua falta. Ele era velho, mas ela quis se casar com um velho e quis que ele fosse meu pai. Era culpa dela. Os olhos dela que se danem. Eu odeio os homens porque eles não ficam sempre a meu lado e não me amam como um pai: eu poderia fazer furos neles e mostrar que não havia recheio de pai.[...] (PLATH, 2003, p. 499)

Essa declaração áspera poderia sustentar a opinião partilhada por biógrafos

e críticos sobre essa carência da figura paterna na vida da poeta como sendo capital

nas ocorrências da sua fragilidade psíquica, entre elas a tentativa de suicídio em

1953 e os seus estados depressivos.

Segundo a perspectiva psicanalítica de C. G. Jung (1875-1961), dada a

pertinência da questão dos arquétipos3, a figura paterna exerce uma influência muito

3 A tentativa de conceituar arquétipos é como patinar em gelo fino... C.G. Jung fornece sem dúvida uma explanação mais segura: “O conceito de arquétipo... deriva da observação reiterada de que os mitos e os contos da literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem sempre por toda parte. Encontramos esses

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importante no desenvolvimento psicológico da criança. O psiquiatra Glauco Ulson,

em seu livro O Método Junguiano (1988), esclarece essa questão ao abordar os

arquétipos junguianos. Nesse caso, o arquétipo paterno. Vale à pena reproduzir o

trecho integralmente, dada a sua importância para uma análise e um entendimento

mais claro do poema “Daddy”, de Plath:

Jung escreveu pela primeira vez, em 1909, um trabalho sobre a importância do pai no desenvolvimento da criança, ao qual deu o nome de “O significado do pai no destino do indivíduo”. Nele atribui um valor extraordinário à figura do pai na constituição da personalidade do filho, tentando mostrar como a vivência com ele irá influir futuramente no comportamento desse futuro adulto. O arquétipo do pai, embora não esteja tão presente concretamente como o da mãe no início da vida da criança, influi indiretamente. Aliás, o abstrato, o impalpável e o espírito são justamente algumas de suas características. Como tal, age mesmo sem estar presente. O arquétipo do pai atua sobre o comportamento humano durante todo o seu processo de desenvolvimento, e juntamente com o arquétipo da mãe forma o casal parental, de grande importância em todas as mitologias. No início da vida ele age sobre o desenvolvimento do filho, quer diretamente, através do pai concreto ou da mãe, como animus-pai, quer como consciência coletiva, presente na cultura. Sua ação como falo se exerce sobre toda a constelação familiar, como agente organizador, limitador e disciplinador. Jung chama a atenção para a sizígia, isto é, a imagem mitológica do casal parental, destacando sua importância no processo de individuação. A relação inadequada com esses arquétipos dá origem a muitas neuroses e psicoses, e a necessidade de ultrapassá-las, através da desidentificação com essas figuras, é um imperativo na conquista de um ego maduro e independente. Como pai, significa, simbolicamente, o poder que fertiliza, a ordem, a lei, a instituição, a cultura, o espírito. No seu aspecto positivo, é representado pela imagem do velho sábio, com sua possibilidade de transcendência. No seu aspecto negativo, encarna o Pai Terrível, com um caráter de castrador, que esteriliza e impede o desenvolvimento do filho. (ULSON, 1988, p. 57-58)

Essa relação inadequada com os arquétipos parentais destacada pelo autor

poderia se coadunar em parte com a ruptura desse relacionamento entre pai e filha,

no caso dos Plath. Em parte, porque não houve uma relação inadequada e sim a

ausência a partir dos oitos anos da poeta. Entretanto, levando-se em conta a raiva

que a poeta sentia pelo pai por tê-la abandonado precocemente, não seria

totalmente equivocado supor uma relação inadequada nessa situação. Afinal, ela

mesmo temas nas fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. A essas imagens e correspondências típicas, denomino representações arquetípicas. Quanto mais nítidas, mais são acompanhadas de tonalidades afetivas vívidas... Elas nos impressionam, nos influenciam, nos fascinam. Têm sua origem no arquétipo que, em si mesmo, escapa à representação, forma preexistente e inconsciente que parece fazer parte da estrutura psíquica herdada e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente sempre e por toda parte. [...]” (JUNG, 2006, p. 484-485).

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parecia carregar um amálgama de sentimentos por ele: amor, devoção, raiva,

revolta, indignação e repúdio.

Não se deve confundir essa relação entre a poeta e o seu pai com o

complexo de Electra, denominado por Jung como a contraparte feminina do

complexo de Édipo freudiano, pois nessa situação houve uma perda precoce do pai

da poeta, uma ruptura abrupta de um relacionamento ainda em fase de

desenvolvimento.

A raiva que Plath sentiu pela mãe, revelada no trecho supracitado dos seus

diários, é oriunda da notícia da morte do marido, que ela transmite à filha, assim

como sua ausência de amor por ele, segundo a poeta, e não produto de um desejo

de eliminar a mãe para possuir o pai.

A própria poeta se equivocou na interpretação do termo. Ela declarou em

nota à leitura do poema “Daddy”, na rádio BBC, que a persona era uma garota com

complexo de Electra. Contudo, o problema é que, no poema, o desejo é de eliminar

o pai, e não matar a mãe para suplantar uma rival.

Seguindo essa linha de pensamento sobre o desejo de eliminação da figura

paterna, o que também torna apropriada a abordagem junguiana como uma

possibilidade de associação ao poema “Daddy” é a necessidade da superação da

relação inadequada dos filhos com o arquétipo paterno por meio da tentativa de

rompimento da identificação com a figura do pai, focando a independência do

indivíduo, conforme observado por Ulson no trecho supracitado do seu livro.

A sizígia junguiana também poderia ser um profícuo campo de reflexão a

respeito da mitologia pessoal da poeta, onde o pai ocupa lugar supremo. A sua

figura como um deus especial na vida da poeta é tropo recorrente em alguns

poemas de Hughes em Cartas de Aniversário, como por exemplo “The Bee God”,

“Being Christlike”, “A Picture of Otto” e “The Cast”. Esse último poema é o que será

cotejado com “Daddy” na leitura intertextual em nível paródico.

Primeiro, segue abaixo a transcrição do poema “Daddy”, de Plath, na

íntegra:

You do not do, you do not do Any more, black shoe In which I have lived like a foot For thirty years, poor and white, Barely daring to breathe or Achoo.

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Daddy, I have had to kill you. You died before I had time-- Marble-heavy, a bag full of God, Ghastly statue with one gray toe Big as a Frisco seal And a head in the freakish Atlantic Where it pours bean green over blue In the waters off beautiful Nauset. I used to pray to recover you. Ach, du. In the German tongue, in the Polish town Scraped flat by the roller Of wars, wars, wars. But the name of the town is common. My Polack friend Says there are a dozen or two. So I never could tell where you Put your foot, your root, I never could talk to you. The tongue stuck in my jaw. It stuck in a barb wire snare. Ich, ich, ich, ich, I could hardly speak. I thought every German was you. And the language obscene An engine, an engine Chuffing me off like a Jew. A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen. I began to talk like a Jew. I think I may well be a Jew. The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna Are not very pure or true. With my gipsy ancestress and my weird luck And my Taroc pack and my Taroc pack I may be a bit of a Jew. I have always been scared of you, With your Luftwaffe, your gobbledygoo. And your neat mustache And your Aryan eye, bright blue. Panzer-man, panzer-man, O You-- Not God but a swastika So black no sky could squeak through. Every woman adores a Fascist, The boot in the face, the brute Brute heart of a brute like you. You stand at the blackboard, daddy, In the picture I have of you, A cleft in your chin instead of your foot But no less a devil for that, no not Any less the black man who

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Bit my pretty red heart in two. I was ten when they buried you. At twenty I tried to die And get back, back, back to you. I thought even the bones would do. But they pulled me out of the sack, And they stuck me together with glue. And then I knew what to do. I made a model of you, A man in black with a Meinkampf look And a love of the rack and the screw. And I said I do, I do. So daddy, I'm finally through. The black telephone's off at the root, The voices just can't worm through. If I've killed one man, I've killed two-- The vampire who said he was you And drank my blood for a year, Seven years, if you want to know. Daddy, you can lie back now. There's a stake in your fat black heart And the villagers never liked you. They are dancing and stamping on you. They always knew it was you. Daddy, daddy, you bastard, I'm through.

(PLATH, 2007, p.152, 154 e 156)

Logo na primeira estrofe se percebe uma espécie de grito de liberdade, de

um resoluto “basta” proferido pelo emissor, desejoso de tirar definitivamente o

sapato que impediu seu livre caminhar durante trinta anos (a idade da poeta em

1962, ano de composição desse poema).

Nessa estrofe nota-se claramente a vontade de liberação como produto da

inadequação de um relacionamento paterno e o desejo da aquisição de

amadurecimento individual.

No primeiro verso da estrofe seguinte, esse desejo se potencializa na

tentativa do fratricídio “Daddy, I have had to kill you”. Nos versos seguintes da quinta

e sexta estrofes a inadequação do relacionamento entre pai (receptor) e filha

(emissor) se apresenta como uma carência de comunicação “I never could talk to

you” ou obstáculos à própria expressão da fala “The tongue stuck in my jaw.” e “I

could hardly speak”.

No primeiro verso da nona estrofe, a relação conturbada entre o emissor e o

receptor adquire um tom mais dramático, no sentido de se perceber uma espécie de

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complexo gerado por um trauma “I have always been scared of you”, assim como no

último verso da décima estrofe “Brute heart of a brute like you”, onde assoma uma

imagem depreciada que o emissor faz do seu receptor, além das conotações a

oficiais nazistas, presentes também nessas duas estrofes.

Essas associações depreciativas parecem ir de encontro ao aspecto

negativo do arquétipo paterno, encarnando o “Pai Terrível”, conforme observado por

Ulson (1988).

O poema surpreende e se enigma ainda mais ao se aproximar do seu final,

quando o emissor menciona mais um personagem participativo no seu drama

pessoal, chamado de “homem de preto” e “vampiro” na décima terceira estrofe “A

man in black with a Meinkampf look” e na penúltima estrofe “The vampire who said

he was you”.

Assim, além da superação e emancipação da figura obsedante do pai, o

emissor se livra também dessa outra figura misteriosa, esse homem de preto ou

vampiro, que, segundo ela, se considerava seu próprio pai, eliminando dessa forma

dois em um.

Quem seria esse personagem? Outro receptor (embora dessa vez sua

relação com o emissor de “Daddy” seja indireta) redundado em emissor para

expressar seu ponto de vista? Sim, ele aparecerá como emissor do poema de

Hughes “The Cast”, logo abaixo reproduzido, onde se evidenciará mais uma vez o

efeito paródico proposto por Hutcheon (1985):

Daddy had come back to hear All you had against him. He Could not believe it. Where Did you get those words if not In the tails of his bees? For others The honey. For him, Cupid’s bow Modified in Peenemünde Via Brueghel. Helpless As weightless, voiceless as lifeless, He had to hear it all Driven into him up to the feathers, Has to stand the stake Not through his heart, but upright In the town square, him tied to it Stark naked full of those arrows In the bronze of immortal poesy. So your cry of deliverance Materializes in his Sacrificed silence. Every arrow Nailing him there a star

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In your constellation. The giant Chunk of jagged weapon � His whole distorted statue Like a shard of shrapnel Eased out of your old wound. Rejected By your body. Daddy No longer to be borne. Your words Like phagocytes, ridding you with a roar Of the heavy pain. Healed you vanished From the monumental Immortal form Of your injury: your Daddy’s Body full of your arrows. Though it was Your blood that dried on him.

(HUGHES, 1999, p. 362 e 364)

O nível intertextual observável em “Daddy” e “The Cast” difere dos anteriores

devido a uma relação envolvendo um terceiro personagem, a figura transfigurada de

Otto Plath. Toda a defesa do emissor do poema de Hughes é direcionada ao pai do

emissor em “Daddy”, e não a si próprio, embora indiretamente tenha sido atacado.

Hughes aparentemente ignora essa fusão feita por Plath no hipotexto, mas

em outro poema de Cartas de Aniversário o poeta remete a essa identificação entre

ele e o pai da poeta quando este é o seu receptor. A presença de Otto Plath é tão

visceral na vida e na poesia da sua filha, seja direta ou indiretamente, que o próprio

Hughes dedica um dos poemas do seu livro a ele. Em “A Picture of Otto” se observa

claramente essa alusão à identificação de pai e marido operada em “Daddy” na

estrofe:

[...]

Your ghost inseparable from my shadow As long as your daughter´s words can stir a candle. She could hardly tell us apart in the end. Your portrait, here, could be my son’s portrait.

(HUGHES, 1999, p. 388)

Hughes mantém uma coesão intertextual efetiva nesse poema, pois assim

como foi tratado indiretamente em “Daddy”, também trata a filha do seu receptor

indiretamente, conforme se observa no segundo e terceiro versos.

Voltando ao cotejamento de “Daddy” e “The Cast”, o viés paródico impregna

a dicção do hipertexto consideravelmente. Logo no início do hipertexto esse sentido

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se percebe quando o emissor, dirigindo-se ao emissor do hipotexto, diz “Daddy had

come back to hear/All you had against him. He/Could not believe it. Where/Did you

get those words if not/In the tails of his bees? […]”. A inversão irônica (HUTCHEON,

1995) contida na conotação de “palavras arranjadas nos ferrões das abelhas” é

notável, pois remete aos poemas do “ciclo das abelhas” de Ariel, tais como “The Bee

Meeting”, “The Arrival of the Bee Box”, “Stings” , “Wintering” e “The Swarm” (apesar

desse último ter sido incluído apenas na edição americana de Ariel (1966).

A alusão ao tropo “estátua”, contido no verso do hipotexto “Ghastly statue

with one grey toe”, ocorre tanto no título “The Cast”, quanto no verso “His whole

distorted statue” do hipertexto.

Hughes parece parodiar o hipotexto desde o título, pois uma das traduções

do vocábulo “cast” é gesso, não no sentido medicinal da sua aplicação, mas como

material líquido para modelagem de estátuas. Ora, a estátua de gesso é

infinitamente mais frágil do que a de mármore, que é material da estátua do

hipotexto “Marble-heavy, a bag full of God”.

A estátua do hipertexto é frágil e humana, segundo o ponto de vista do seu

emissor. Não tem a força mítica e endeusada do hipotexto. A crítica e a ironia

trabalham juntas por meio da paródia observada no hipertexto de Hughes, mais uma

vez desmistificando o teor dramático e mítico perceptíveis em alguns poemas de

Ariel.

O emissor do hipertexto prossegue então como “advogado” do receptor do

hipotexto, declarando a fragilidade do seu “cliente” que “[...] Helpless/As weightless,

voiceless as lifeless,”, não poderia se defender sozinho, não da estaca cravada no

peito, conforme o verso do hipotexto “There´s a stake in your fat black heart”, mas

sim da situação parodicamente metaforizada no hipertexto:

[…]

He had to hear it all Driven into him up to the feathers, Had to stand te stake Not trough his heart, but upright/ In the town square, him tied to it Stark naked full of those arrows In the brozen of immortal poesy. […]

(HUGHES, 1999, p. 362)

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Esses versos denotam a crítica de Hughes contra o que ele considerava

uma exposição de dramas familiares por intermédio da poesia plathiana, e, por isso,

tentou preservar a própria reputação, a de outros membros da família, como no caso

do ex-sogro, e até mesmo a de outras pessoas de relacionamento indireto, como

vizinhos, seja na deliberada exclusão de alguns poemas da sua edição de Ariel

(1965) ou na composição dos poemas de Cartas de Aniversário.

A conotação utilizada pelo poeta em “amarrado no poste da praça central”

denota o aspecto da vida particular de uma família sendo exposto ao público.

Essa preocupação é exposta por Frieda Hughes, no prefácio da edição

restaurada de Ariel:

Ao considerar Ariel para publicação, meu pai enfrentou um dilema. Estava bem ciente da ferocidade extrema com a qual alguns dos poemas de minha mãe desmembravam pessoas próximas a ela – o marido, a mãe, o pai, o tio de meu pai, Walter, e até mesmo vizinhos e conhecidos. Ele quis dar ao livro uma perspectiva mais abrangente, a fim de torná-lo aceitável para os leitores, em vez de afastá-los. (HUGHES, apud PLATH, 2003, p. 17).

“Em vez de afastá-los” parece ser uma visão equivocada de Hughes a

respeito da recepção da obra, pois achava que a exposição corrosiva de dramas

familiares nos poemas de Plath seria recusada pelos leitores.

Como pode ser constatado em uma parcela da fortuna crítica da autora, o

efeito foi justamente oposto, pois o mito “Sylvia Plath” foi alimentado à mesa do seu

próprio drama, servido por alguns “garçons” da crítica sensacionalista, que analisava

e ainda analisa sua obra apenas como um reflexo da sua vida, e não como uma

transfiguração poética da mesma.

Esse “prato apetitoso” foi e continua sendo consumido por muitos leitores,

mais interessados em conhecer a tragédia pessoal da poeta do que apreciar os

componentes artísticos que a notabilizaram no cânone dos grandes poetas do

século XX.

Outro viés crítico redundado em paródia por Hughes é a recorrente

imagística deformadora da dicção plathiana, sobretudo em Ariel, onde a poeta

costuma recorrer a imagens surrealistas que lembram, conforme exposto no primeiro

capítulo dessa pesquisa, pinturas de Magritte ou Dalí:

[...] Ghastly statue with one grey toe

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Big as a Frisco seal And a head in the freakish Atlantic Where it pours bean green over blue […] (PLATH, 2007, p.152)

Esses versos, por exemplo, para o bom conhecedor das telas desses dois

artistas, principalmente do primeiro, parecem quadros transfigurados em palavras. O

surrealismo expresso nessa imagística é criticado e parodiado por Hughes no verso

“His whole distorted statue/Like a shard of shrapnle/Eased out of your old wound”,

onde a persona do poeta qualifica como uma simples “distorção” uma transfiguração

extraordinária operada no universo surrealista do hipotexto.

Por fim, o que parecia ser uma libertação, uma pulverização do arquétipo

paterno como influência angustiante na vida do emissor de “Daddy”, torna-se,

segundo o ponto de vista do emissor de “The Cast”, um paradoxo oriundo de uma

espécie de pacto de sangue, que, ao invés de separar, une eternamente:

[...] Healed you vanished From the monumental Immortal form Of your injury: your Daddy’s Body full of your arrows. Though it was Your blood that dried on him. (HUGHES, 1999, p.362 e 364)

O final desse poema enfatiza, por intermédio da paródia, a ironia mais

patética e dolorosamente bela a respeito da relação entre a poeta e o seu pai, que é

um dos elementos mais norteadores da vida da artista, assim como presente de

maneira extraordinariamente transfigurada em “Daddy”, um dos poemas mais

notórios no corpo de Ariel.

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CONCLUSÃO

O escopo dessa pesquisa foi analisar o espaço intertextual nas obras Ariel e

Cartas de Aniversário. Abordagens distintas foram empregadas, tanto de caráter

literário como linguístico, além do suporte adequado de algumas teorias da

psicanálise para um momento específico do desenvolvimento do tema.

A versatilidade dessas abordagens objetivou uma dinâmica no decorrer do

texto, tentando renovar o interesse na sua leitura e o próprio aprofundamento do

estudo dos aspectos intertextuais das obras poéticas analisadas. O tratamento dado

a uma pesquisa estabelece o grau da sua demanda na multidisciplinaridade

utilizada.

A análise efetuada visou dissecar elementos intertextuais na prática do

cotejamento, procurando decantar aquilo que parecia essencial, sempre respeitando

os limites do contexto e conteúdo de uma obra, com o cuidado de não se cometer

abusos na consideração demasiada de uma ou outra instância.

Esse cuidado, por sinal, foi motivado por uma recorrente angústia de cair no

erro do fundamentalismo partidário da autonomia da obra de arte ou da sua

utilização como meio de expressão da realidade.

Nesse sentido, uma das maiores dificuldades foi encontrar o equilíbrio no

estudo analítico de obras como Ariel e Cartas de Aniversário, onde a vida e o

coração de seus autores parecem pulsar dentro dos livros, tornando o discernimento

entre texto e contexto muito mais delicado do que parecia ser a princípio.

A maior reflexão engendrada ao término de um trabalho dessa natureza,

onde apenas algumas poucas vertentes da intertextualidade foram analisadas, é a

importância da leitura e da ampla pesquisa literária. Isso requer uma busca

incessante pelo conhecimento das principais obras do cânone, mesmo as marginais,

porque somente assim é possível compreender o diálogo entre os seus autores por

meio de citações, referências, alusões, paráfrases ou paródias integrantes do

universo intertextual literário.

Entretanto, para evitar possíveis petições de princípio, isso não significa a

impossibilidade de uma obra literária, que dialogue com outra, ser degustada

isoladamente pelas papilas da emoção e do intelecto. Por outro lado, digeri-la,

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somente se torna possível quando o leitor conhece a ambas, não precisa pedir o

cardápio, porque esse pode ser ativado na sua memória.

O conhecimento paulatino do corpus poético de Plath e Hughes, ou seja,

outros poemas das suas obras anteriores, assim como a prosa de ambos, menos

conhecida, mas nem por isso de qualidade inferior, atuou de forma significativa no

aprimoramento do senso analítico ao longo desse trabalho.

Além disso, o estudo atento da fortuna crítica dos poetas, e de uma

fundamentação teórica objetiva e ampla, facultou e catalisou o desenvolvimento da

pesquisa, produto de um labor feito com sangue, suor e páginas.

A pesquisa procurou evitar preferências, mesmo porque o seu autor é um

leitor entusiasta da obra de ambos os poetas. Mais por uma questão emotiva do que

intelectual, entretanto, esse trabalho é concluído ao dedicar uma singela

homenagem à poeta, parodiando um verso de flagrante beleza do seu poema “The

Bee Meeting” em Ariel: “I could not run without having to run forever.”

I could not read you without having to read you forever.

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