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Da casa de Nirez para o espaço público: deslocamentos de objetos e ressemantizações do
passado da cidade de Fortaleza (CE)
CARLOS RENATO ARAUJO FREIRE
“Às quatorze horas e trinta minutos do dia sete de dezembro de mil novecentos e
noventa e quatro, no Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro,
reuniu-se o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural” sob a presidência do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ocupada por Glauco Campello,
estando presentes ainda 8 Conselheiros e com ausência de outros 10. Nesse momento
foram apresentados pela arquiteta Jurema Arnaut a seleção dos 5 possíveis ganhadores
do prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade: coleção Miguel Ângelo de Azevedo,
Prefeitura de Laranjeiras (Sergipe), Fundação Vitae, Conselho Municipal do Patrimônio
Histórico e Cultural de Cachoeira do Sul - RS, Fundação Cultural da Arquidiocese de
Mariana1. Alguns dias depois a coleção Miguel Ângelo de Azevedo se consagraria como
ganhadora do prêmio devido a indicação da 4a Coordenação Regional, que abrangia o
Estado do Ceará e Rio Grande do Norte.
Não se trata aqui apenas de afirmar o prestígio desse colecionador. Essa reunião é
tratada aqui antes como um acontecimento, enquanto tal podemos posicioná-lo na esteira
da dita ampliação do conceito oficial de patrimônio ao lado de outro evento mais
conhecido da história do IPHAN: a mudança de perfil do presidente dessa instituição com
a ascensão Aluísio Magalhães. A persona ideal para o mais alto cargo dessa instituição
deixa de ser apenas o arquiteto e passar a ser também o profissional do design. Talvez
imbuídos por um pretenso espírito democrático do início dos anos de 1990, a edição desse
prêmio nesse período também procurava uma ampliação dos possíveis premiados.
Não é por acaso que escolhi essa reunião para começar esse texto, trata-se de um
evento anual, ou seja, talvez banal e menor para quem está dentro da máquina de estado,
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE). A apresentação dessa
pesquisa foi financiada através da bolsa CAPES e o edital para participação em eventos (PROPESQ/UFPE).
O pesquisador é Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM -
História/UFC/CNPq). 1 IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ata da 7a reunião do Conselho Consultivo
do Patrimônio Cultural, 07 de dezembro de 1994.
2
mas maior para quem está fora, pois é o reconhecimento de um trabalho considerado local
e individual por uma instância nacional dotada de um olhar profissional.
Ao iniciar a minha aproximação com a historiografia do patrimônio, o que já
consegui minimamente, e ainda uma fraca aproximação com a história dos museus,
observei uma força considerável de um enfoque um tanto quanto personalista na
construção das narrativas devido talvez à escolha reclusa da documentação oficial da
burocracia do Estado. Nomes como Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade
e o próprio Aloísio tornam-se a referência de um lugar-comum em uma leitura mais rápida
sobre a temática. Em um manual que já se encontra em sua terceira edição, encontramos
o seguinte trecho:
Rodrigo Melo Franco de Andrade valoriza a tradição, a reconstituição do fio
da tradição, a memória da nação. Somos na medida em que nos lembramos.
Fala de “bens patrimoniais”. Já Aloísio Magalhães valoriza o cotidiano,
posição que se origina em Mário de Andrade. Fala de “bens culturais”, que
integram a vida presente de diferentes segmentos e representam instrumentos
de construção do futuro;
Rodrigo Melo Franco fala de missão civilizatória, de educar os cidadãos, do
patrimônio como monumentos, do espaço público fechado. Aloísio Magalhães,
por sua vez, fala de vários patrimônios; de zonas maiores de contato; do
patrimônio como objetos, espaços, atividades transitórias; do espaço público
mais aberto (OLIVEIRA, 2008).
Oliveira (2008) consegue separar bem o sujeito e as retóricas utilizadas nas
políticas, porém, acaba tornando relevante ao leitor um mecanismo básico da memória
compartilhada por esses intelectuais ligados ao campo da política estatal: a discussão de
quem fez primeiro ou melhor. Para evitar essa falsa questão, tornou-se necessário pensar
o lugar do sujeito na escrita da história do patrimônio cultural.
As pessoas podem viver em um mesmo tempo e lugar, mas não necessariamente
habitar o mesmo mundo do mesmo modo, assim como das mesmas relações sociais, nem
mesmo do mesmo ambiente intelectual e da mesma paisagem de cultura material. Quais
serão as concepções de patrimônio nesses outros mundos? Todo um território segue o
mesmo ritmo à uma política cultural de estado?
A intenção desse trabalho seria não só deslocar o foco de quem dá o prêmio para
quem o recebe tentando perceber a posição desse colecionador dentro de uma cadeia
patrimonial na cidade de Fortaleza na década de 1970. O ato de guardar esses objetos não
3
seria marcado apenas por um sentimento de contemplação. Nesse trabalho iremos
problematizar o Nirez como ator patrimonializador através dos seus atos de publicização
e de deslocamento de objetos para o espaço público. Opera-se uma ressemantização dos
mesmos devido a seleção e a priorização de alguns significados em detrimento de outros.
Não é por existirem lá que se tornam por si só como um manancial de história, é
necessário a ação de perscrutá-los (MENEZES, 1998:91). Essas iniciativas expõem a
variedade de valorização das suas coleções visando interligar a história da cidade à
história do seu acervo. O seu gesto também não é isolado, torna-se significativo ao tentar
consolidar a posição de lembrar de Nirez como empreendedor de um passado para
Fortaleza dentro de uma cadeia patrimonial. Pretende-se problematizar aqui o passo a
passo “como se opera a passagem de uma visão individual do pesquisador à representação
produzida sob uma forma estabilizada, reprodutível e durável, própria a construir um
olhar coletivo sobre o patrimônio” (HEINICH, 2010:166).
Trajetória de Nirez
A negociação entre Miguel Ângelo de Azevedo, mais conhecido como Nirez2, e
o secretário de cultura Nilton Almeida, ocorrida em 2003, acrescentou ao projeto de
higienização do Arquivo Nirez a possibilidade de digitalização de uma grande quantidade
de fotografias antigas. Em troca, esses arquivos seriam doados para o Museu da Imagem
e do Som do Ceará. Hoje em torno de 60% desse fundo é formado das fotografias desse
colecionador. Para termos noção dos números, em 2008, o seu acervo de fotografias
possuía cerca de 30 mil unidades. A origem dessas fotografias é tanto do jornal O Povo
quanto de antigos estúdios fotográficos (Foto Sales, Aba Film, etc), reproduções doadas
a partir de visitas feitas a famílias que Nirez considerava de renome ou compradas de
amadores.
Nirez costuma ser referenciado nas matérias sobre a sua pessoa3 não só como
colecionador, mas também como jornalista, memorialista, pesquisador da música popular
brasileira e filho do pintor, poeta e escritor Otacílio de Azevedo com Tereza de Azevedo.
2 Daqui em diante, será chamado apenas por esse nome menor. 3 Uma parte do seu acervo é composta por essas matérias de jornal falando sobre o seu acervo.
4
Trabalhou como desenhista publicitário de l951 a l962, como desenhista técnico de 1962
a 1991 no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Como radialista,
passou por diversas emissoras e mantém no ar, desde l963, o programa Arquivo de Cera.
Como jornalista, começou a colaborar em jornais de Fortaleza em l956, iniciando na
Tribuna do Ceará, depois no jornal Correio do Ceará e, a partir de l975, também prestou
serviços no jornal O Povo, onde reorganizou o Departamento de Pesquisa (Banco de
Dados). Em l99l, foi remanejado do DNOCS para a Universidade Federal do Ceará -
UFC, passando a ser jornalista na Rádio Universitária FM.
Hoje é reconhecido como um dos maiores colecionadores de fotografias sobre a
cidade de Fortaleza e, nacionalmente, um dos mais representativos colecionadores de
discos de cera do país - mais de 22 mil exemplares e um acervo composto por mais de
140 mil itens4. Devido a essa trajetória, ocupou cargos públicos como diretor do Museu
da Imagem e do Som do Ceará e como membro do Conselho Estadual de Preservação do
Patrimônio Cultural (Coepa). O presente trabalho irá refletir sobre essa trajetória que
constituiu Nirez como um ator patrimonializador de notório saber.
A doação feita por Nirez ao Museu da Imagem e do Som não pode ser encarada
apenas na sua benevolência, uma vez que deslocar essas fotografias ao acervo de uma
reserva técnica as ressemantizam, priorizando-se alguns significados em detrimento de
outros. Não é por estarem lá que se tornam por si só como um manancial de história, é
preciso o gesto de perscrutá-los (MENEZES, 1998:91). Esse gesto torna-se significativo
ao tentar se consolidar como empreendedor de um passado para Fortaleza. A ritualização
da doação expõe a patrimonialização da sua coleção de fotografias visando interligar a
história da cidade à história do seu acervo.
A sua coleção de fotografias teria derivado do seu interesse anterior com os discos.
Em suas falas, coloca como ponto de viragem o ano de 1963, quando foi chamado a
apresentar o programa Arquivo de Cera; nessa data, já possuía 1.500 discos 78 rpm. Essas
duas coleções possuem um maior volume, porém existe uma diversidade de objetos de
seu interesse:
4 Atualmente esse seu acervo está em processo de negociação com o Instituto Moreira Sales (IMS).
5
Tenho discos, fotos, revistas, livros, máquinas fotográficas, aparelhos
de rádio, fonógrafos, gramafones, vitrolas, filmadoras, projetores
cinematográficos de várias bitolas, estampas Eucalol, álbuns de
figurinhas, rótulos de medicamentos, cigarros, biscoitos, bombons,
chocolates, tecidos, sabonetes, etc (AZEVEDO, 2012:71).
Para Nirez, o que ligaria objetos tão diferentes seria a sua procedência: ele só
coleciona artigos brasileiros. Além desse nacionalismo, as suas coleções de maior fôlego
viriam “todas de momentos nostálgicos” da sua própria vida (AZEVEDO, 2012:69). Uma
ilusão biográfica5 explicaria a razão de estar ali desses objetos e sua construção de si como
colecionador, já que “desde criança, gostava de colecionar caixas de fósforos, carteiras
de cigarro, rótulos de bebidas, alimentos, perfumaria” (AZEVEDO, 2012:71). As
fotografias, por exemplo, remeteriam à observação, na sua infância, do gosto do seu pai
pela pintura (AZEVEDO, 2012:68). Em seu discurso, o valor de antiguidade dos objetos se
cruzaria com o seu valor pessoal.
Com o aumento da sua primeira coleção, ele opera uma musealização da sua
própria casa. Apesar de começar a atender o público no início dos anos 1960, só
transforma a sua residência no Museu Fonográfico do Ceará em 1969. Ao alargar o seu
interesse a outras coleções e com a formação de uma biblioteca, muda-se o nome para
Museu Cearense da Comunicação em 1975. Um incidente paralisou o atendimento ao
público: a prefeitura de Fortaleza realizou o aterramento de um riacho próximo, o que
ocasionou o alagamento da sua casa na época das chuvas6. O Museu fecha para visitação
em 15 de dezembro de 1981. Só após 2 anos reabre o seu espaço com o nome de Arquivo
Nirez.
5 Uma noção comum de história de vida é construída por uma ideia de encaminhamento. Existiria um
caminho linear traçado que caminhamos e que deve ser caminhado, formando “[...] um percurso orientado,
um deslocamento linear, unidirecional (a ‘mobilidade’), que tem começo (‘uma estreia na vida’), etapas e
um fim, no duplo sentido, de término e finalidade (‘ele fará seu caminho’ significa que terá êxito, fará uma
bela carreira), um fim da história”. Essa narrativa coerente construída de uma fala subjetiva com uma
intenção objetiva forma uma ilusão biográfica valendo-se de expressões como o “desde criança”. Essa
ilusão é um sentido artificial que desconsidera a fragmentação e a incompletude das experiências
(BOURDIEU, 1998, p.183-185). 6 “A Prefeitura Municipal de Fortaleza, a pretexto de construir uma rua, aterrou um riacho, açudando-o
completamente, além de outras obras prejudiciais à região antes feitas, como a canalização de esgotos para
o referido curso d’água. Nos períodos de chuva, o riacho já vinha inundando o local, invadindo as casas,
onde fica o Museu, e agora, açudado e poluído, além de encharcar o terreno, prejudicando poços e fossas,
tornou o local invadido por moscas e muriçocas, tornando a situação insustentável” In: AZEVEDO, Miguel
Ângelo de Azevedo (Nirez). Comunicado do Museu Cearense da Comunicação. 15/12/1981.
6
O ato de guardar esses objetos para os outros, segundo ele, não seria marcado por
um sentimento de contemplação. Hoje, com mais 81 anos, Nirez já conta com inúmeras
citações como lugar de pesquisa em trabalhos acadêmicos, mas, antes disso, percorreu
como palestrante os encontros de pesquisadores da música popular brasileira promovidos
pelo Instituto Nacional de Música da Funarte em 1975, 1976 e 1982, e também esteve
presente no encontro de 2001, nessa oportunidade organizado pelo Museu da Imagem e
do Som (MIS - RJ). Tornou públicas suas peças também através de curadorias em
exposições (2008, 2009 e 2015) e reproduções de algumas peças do seu acervo em
formato de cartão-postal em 2008.
Na sua trajetória, soma ainda pelo menos 12 publicações decorrentes das suas
pesquisas. Dos textos relacionados à música, podemos destacar: a biografia de um
compositor cearense atuante nas décadas de 1940 e 1950 com o título O Balanceio de
Lauro Maia (1994) e, em coautoria, em 1982, um catálogo em 3 volumes da Discografia
brasileira em 78 rpm de 1902-1964. Já os livros mais relevantes para esse projeto, por se
relacionarem com sua coleção de fotografias, são Fortaleza de Ontem e de Hoje (1991) e
Cronologia Ilustrada de Fortaleza (2001).
A posição de Nirez de poder falar do passado já se encontrava chancelada em
âmbito local, no período ditatorial, ao ter ganhado, em 1974, a Medalha do Mérito
Legislativo da Câmara Municipal de Fortaleza. Já no ano de 1994, em período
democrático, podemos afirmar ser o ápice do seu reconhecimento, uma vez que foi
condecorado novamente pela Câmara Municipal de Fortaleza, agora com a medalha
Boticário Ferreira e, também, em âmbito regional, ganhou o Troféu Sereia de Ouro
ofertado pela filial regional da Rede Globo de Comunicações. Por fim, foi reconhecido
também nacionalmente com o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade como vimos
acima.
Atravessando décadas e regimes políticos, sua escrita e seu olhar para o passado
se mantêm. Posicionamo-nos aqui através do papel educacional de relativizar
cognitivamente “[...] a operação de desconstrução da patrimonialização, revelando os
processos sociais e históricos que a geraram; dessacralizar o sagrado, não para promover
a destruição dos ídolos, mas para desvelar sua profunda humanidade” (GONÇALVES,
2014:92).
7
Esse deslocamento controlado das coleções de Nirez para o espaço público
ajudaram-no a construir uma posição de poder sobre o passado da cidade. Através não só
da sua fala sacralizada, mas também do seu lugar de rememorizar torna-se ele próprio um
cartão postal da cidade. O seu nome torna-se significado de acesso imediato ao tempo
pretérito para o presente de quem o interpela.
Olhares sobre o patrimônio edificado de Fortaleza
O que é, o que significa, o que representa esta obra seria supérfluo querer
dizer ou ressaltar. O que ela contém como que fala: fala o que é o Brasil na
presença de valores culturais que fundamentam o seu patrimônio histórico e
artístico. E vem do passado – século XVI a XIX – ou nos nossos dias – século
XX – para testemunhar o que realizamos, o que o brasileiro de todos os tempos
realizou, na construção de um acervo de tão grande expressão (TELLES,
1975:9).
Apesar de afirmar uma certa inconsistência da palavra diante da obra, foi assim
que Humberto Grande, diretor executivo da Fundação Nacional de Material Escolar
(FENAME), abriu a apresentação da obra monumental editada em 1975, chamada de
Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil, de autoria do arquiteto Augusto
Carlos da Silva Telles.
Através das fotografias e dos textos sobre os edifícios, procurou-se afirmar uma
totalidade que abarcaria a nação. Ao virar as próximas páginas desse livro,
testemunharíamos a “permanência de uma ideia que é, afinal de contas, uma expressão
de nós próprios: de nossos mestres-de-obras, de nossos arquitetos, de nossos escultores,
de nossos pintores, enfim, de nossos artistas [...]” (TELLES, 1975:9).
Porém, diferente de uma ideia romântica de resgate do passado, pretende-se uma
conciliação com um presente rumo ao desenvolvimento: a “modernização procura
conciliar o que é autêntico em nosso passado como identificação do que somos.
Identificação, portanto, de nossos valores de ontem e inspiração para nossas ideias [...]”
(TELLES, 1975:9).
O passado ganharia sua imponência na dimensão visível da arquitetura. A própria
organização do livro dividia-se de acordo com as nove unidades das regiões da federação.
8
O Ceará estava posicionado junto a outros Estados do Norte7, e das três centenas de
imagens, colocou-se em exposição três edifícios desse estado como os ícones a serem
vislumbrados: a Casa da Câmara de Quixeramobim, a casa natal de José de Alencar em
Messejana e o Theatro José de Alencar. A intenção é positivar essas edificações na lógica
discursiva do estado. Para tanto, afirma-se que o seu posicionamento originário era fora
do “domínio português”, por isso sofreu “falhas nas tentativas de colonização” que
deixaram toda essa região “abandonada à ação dos piratas e às aventuras de franceses e
holandeses” (TELLES, 1975:211).
Após selecionar alguns episódios e personagens da ocupação desse território
durante o século XVII e XVIII, principalmente através das Igrejas de Belém e do conjunto
urbano do Maranhão, elege-se o século XIX como a projeção desse presente graças aos
“dias de grande prosperidade” econômica devido à borracha e à carnaúba. Porém, ao se
inventar essa paisagem para o passado no presente a ser desenvolvido, encontra-se um
ponto de tensão ao se falar da Casa de José de Alencar:
De um modo geral, tanto no Ceará quanto no Piauí, regiões que eram
relativamente pobres e fracamente desenvolvidas, até bem pouco tempo, as
edificações de mais interesse eram as de tipo popular, que utilizavam a
carnaúba como material de construção, com as telhas diretamente apoiadas
em caibros feitos de peças roliças.
A própria casa de onde nasceu o romancista José de Alencar é uma edificação
que pode ser considerada desse tipo [...], serve atualmente como pequeno
museu ligado à Universidade (TELLES, 1975:213)
Era preciso ordenar essa ampliação do capital visual sobre o que era considerado
como o passado da nação, e buscavam-se outros valores que não só os estéticos para
justificar essa essência. A pobre casa encontrava o seu lugar de importância na sua
exposição devido à referência literária que se remetia ao mito de origem do encontro do
branco com o índio, porém, na sucessão dos valores arquitetônicos no decorrer do tempo,
seria valorizada por sua simplicidade, que deveria ser ultrapassada para se chegar ao
século XIX com seus novos programas, “edifícios mais notáveis e de maior vulto”
representados pelos teatros (TELLES, 1975:213).
7 Faziam parte também dessa área V os estados do Acre, Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Rondônia,
Roraima e Amapá.
9
Essa preocupação de ordenação de um discurso e de inventar uma nova
visualidade torna-se uma das metas do governo ditatorial militar no decorrer dessa
década. No mesmo ano (1975) dessa publicação, ocorre a consolidação da criação de uma
política cultural com a implementação do Plano Nacional de Cultura, assim como a
reunião do grupo que irá criar o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que é
considerada como a principal instituição responsável por impactar o conceito de
patrimônio com a valorização do popular em âmbito nacional. Para o patrimônio
edificado, seria criado o Programa de Cidades Históricas (PCH), que investiu
significativamente na sua preservação, abordando-o dentro dessa lógica do
desenvolvimento urbano e regional e, para tanto, um dos seus principais objetivos seria a
reativação do estoque patrimonial do Nordeste (CORRÊA, 2012).
Esse mesmo sentimento nacionalista a ser cultivado expresso acima já estava
acordado na carta patrimonial de 1970, chamada de Compromisso de Brasília. Entre as
“medidas necessárias à defesa do patrimônio histórico e artístico nacional”, salienta-se “o
culto ao passado como elemento básico da formação da consciência nacional” (IPHAN,
2004:138). A defesa ufanista através do culto era o uso do passado privilegiado pela
ditadura civil-militar para se obter uma consciência de respeito e civilidade diante do
patrimônio.
Esse investimento em capital simbólico através do olhar possui uma envergadura
também na sua distribuição espacial: o saber ver sobre o patrimônio deveria perpassar os
currículos escolares de todos os níveis, adotando os seguintes critérios:
[...] no nível elementar, noções que estimulem a atenção para os monumentos
representativos da tradição nacional; no nível médio, através da disciplina de
Educação Moral e Cívica; no nível superior (a exemplo do que já existe no
curso de arquitetura, com a disciplina de Arquitetura no Brasil), a introdução,
no currículo das escolas de Arte, da disciplina de História da Arte no Brasil;
e nos cursos não especializados, a de Estudos Brasileiros, parte destes
consagrados aos bens culturais ligados à tradição nacional (IPHAN,
2004:139)
10
Nesse documento, enfatiza-se ainda o papel do DPHAN e do Arquivo Nacional
para criar mão de obra especializada de forma mais imediata, enquanto que as
universidades seriam responsáveis por fomentar a pesquisa e os museus regionais também
ajudariam na “educação cívica e no respeito à tradição” (IPHAN, 2004:139). E, por fim,
caberia às secretarias estaduais a divulgação do “acervo dos bens culturais da respectiva
área, utilizando-se, para esse fim, os vários meios de comunicação de massa, tais como a
imprensa, o rádio, o cinema, a televisão” (IPHAN, 2004:140).
O investimento visual do Atlas dos monumentos históricos de Telles (1975:14)
tinha como papel “atender o ensino de 2o grau e superior”, mas, fora da sala de aula, os
bens culturais ganhavam o espaço público através da sua midiatização. Não se sabe se
por acaso, mas é nesse mesmo ano de 1975 que Nirez irá começar a ampliar o seu público
ao colaborar com o jornal O Povo através da seção “Pesquisa e Comunicação”. No início,
possuía o espaço de uma página inteira, sendo publicada todos os sábados até 1982. Ele
mesmo fazia a sua diagramação e assinava com o seu nome colocando abaixo a referência
ao Museu Cearense da Comunicação. A partir de 1983, a página perde espaço e passa a
se chamar “Memória”, mas mantendo a sua periodicidade até pelo menos 1986. A partir
daí, mudou-se o nome para “Arquivo Nirez”, tendo sua periodicidade afetada. Manteve-
se vinculado ao jornal até 1992, depois passou a atuar apenas como convidado de forma
mais pontual.
Muito da organização da página “Pesquisa e comunicação” relaciona-se aos seus
interesses de colecionador. Em seu primeiro número, traça uma breve história das estórias
11
em quadrinhos, relata sua participação no I Encontro de Pesquisa da Música Popular, fala
sobre o Cinema e a propaganda de outrora, discorre sobre uma letra de música e determina
ainda pelo menos três espaços para falar genericamente do passado: um chama-se “Foto
Histórica”, outro é nomeado de “Álbum de Família” e o outro, “Fortaleza ontem e hoje”.
Adiante nos deteremos apenas a esse último.
No espaço “Fortaleza ontem e hoje”, o repertório arquitetônico que faz parte mais
do olhar para o passado de Fortaleza encontra-se ampliado em número devido à própria
função do jornal como erário dos assuntos cotidianos. O sentido do texto não assume um
caráter expressamente ufanista como no Atlas, sua preocupação anterior é destrinchar os
usos daquele espaço no decorrer do tempo e identificar alguns sujeitos que passaram por
ali.
Como exemplo, podemos utilizar a publicação do dia 10 de junho de 1979 exibida
acima que, devido ao sesquicentenário do nascimento de José de Alencar, enfoca a praça
que lhe presta homenagem em duas posições temporais8. Ao colocar uma foto antiga
diante de uma foto nova de sua autoria, Nirez se posiciona entre o “ter-estado-lá” das
coisas do passado e o “ter-estado-aqui” do seu olhar para o presente. Permite a quem olha
o privilégio da comparação e de preenchimento do espaço entre o aqui e o ali.
Após distinguir os nomes anteriores dessa praça, ele destrincha os elementos da
foto de 1912 localizada à esquerda: o coreto ao centro da praça, o cata-vento “que servia
água à avenida (assim eram chamadas as praças à época)”; interessam-lhe ainda “os
combustores a gás hidrogênio carbonado para a iluminação pública” e o jardim bem
cuidado que “completava a beleza da praça Marquez do Herval”. A narrativa sobre a nova
foto começa por um referencial “a estátua de José de Alencar no centro” para depois dizer
o que mudou: “o quiosque foi retirado em 1928 para a reforma da praça e foi levado para
a avenida Epitácio Pessoa, próxima à Ponte Metálica, onde ficou conhecido como
“Pavilhão”.
Essa vantagem de tornar conhecido um ou outro elemento do passado para aqueles
que não o conhecem agencia duas noções indissociáveis: por um lado, o conhecimento,
ou ainda o reconhecimento de dar um sentido àquela visão de outrora; por outro lado,
8 Jornal O Povo 10/06/1979, “Fortaleza ontem e hoje”.
12
fabrica a dissimetria entre os pretensos reconhecedores e os espaços a serem
reconhecidos. Já que Nirez está na posição de quem possui o conhecimento, torna-se
procurado por aqueles que não sabem sobre aquele determinado lugar. A diversidade de
locais exibidos exigiria do leitor um conhecimento mostrado ao olhar pelo colecionador.
Qual seria o padrão de reconhecimento dos seus leitores com esse olhar para o
passado da página de Nirez? Obedeceria aos mesmos parâmetros políticos do Atlas
acima? Vê-se apenas aquilo que o guia sobre as fotografias de Fortaleza declara que está
vendo? O certo é que as vontades de passado são tão históricas quanto qualquer outro
sistema de seleção. Nirez se portaria como esse guardião das possíveis respostas dessas
vontades? Nesse sentido, podemos nos indagar: seu gesto se vincularia automaticamente
aos enunciados das instituições oficiais? A paisagem que ele seleciona para um olhar
sobre o passado de Fortaleza teria igualmente, como fica evidente na discussão abordada
por Telles no Atlas, o século XIX como sua âncora? Em que medida promovia ao público
a valorização do passado como instrumento de civismo?
Considerações finais
O gesto de tornar público essas fotografias e relembrar as mudanças na paisagem
de Fortaleza afirmando o seu antes e o seu depois não se trata apenas do marketing de
turismo que possuía uma relação íntima com o “milagre econômico” propagado pelo
enunciado oficial da ditadura militar. Ao mostrar essa cidade que se transforma
problematiza a noção de progresso como valor exclusivamente positivo.
As respostas mais precisas para as perguntas levantadas no decorrer do texto ainda
serão elaboradas no trabalho de escrever uma trama histórica para o espaço que Nirez
construiu. Vimos que seu espaço foi amparado de forma consistente pelas políticas
culturais no mínimo em dois momentos: em meados da década de 1970 e 2003. Esse
primeiro marco é o período da implementação do primeiro plano nacional de cultura
(PNC) que organizou o organograma da pasta da cultura. A Funarte foi criada nesse
momento. O IPHAN a partir da década de 1970 tentou ampliar a sua área de abrangência
espacial através do Plano de Cidades Históricas (PCH), priorizando fortalecer outros
13
elementos arquitetônicos como a arquitetura eclética, tão característica de algumas
regiões do Nordeste, como no Ceará.
Mais do que acreditar na condição de possibilidade desse museu através do
argumento do “Aquele que fez sozinho”, esse trabalho pretende esboçar uma história de
um ato de colecionar na segunda metade do século XX. A aproximação do fim dos anos
de 1990 não apenas os tipos arquitetônicos simples passam a serem protegidos
nacionalmente, mas internacionalmente o feio cenário do mundo do trabalho das fábricas
de produtos manufaturados do século XIX tornam-se vetor de uma cultura a ser protegida
pela política patrimonial. Há uma mudança de quais cenários e de quais objetos que
compõe o passado e que são elegíveis na didática pública do que é antigo. O museu-casa
de Nirez só se torna possível devido à uma mudança nos ciclos de consumo do capitalismo
do século XX. É a própria obsolescência programada que se torna curiosa, passível de ser
vista e colocada em exposição em uma casa nomeada enquanto museu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janaína. Usos e abusos da história oral. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação
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14
IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ata da 7a reunião do
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, 07 de dezembro de 1994.
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