CARLOS RENATO ARAUJO FREIRE - snh2017.anpuh.org · O pesquisador é Membro do ... Já Aloísio...

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Da casa de Nirez para o espaço público: deslocamentos de objetos e ressemantizações do passado da cidade de Fortaleza (CE) CARLOS RENATO ARAUJO FREIRE “Às quatorze horas e trinta minutos do dia sete de dezembro de mil novecentos e noventa e quatro, no Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, reuniu-se o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural” sob a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ocupada por Glauco Campello, estando presentes ainda 8 Conselheiros e com ausência de outros 10. Nesse momento foram apresentados pela arquiteta Jurema Arnaut a seleção dos 5 possíveis ganhadores do prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade: coleção Miguel Ângelo de Azevedo, Prefeitura de Laranjeiras (Sergipe), Fundação Vitae, Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Cachoeira do Sul - RS, Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana 1 . Alguns dias depois a coleção Miguel Ângelo de Azevedo se consagraria como ganhadora do prêmio devido a indicação da 4 a Coordenação Regional, que abrangia o Estado do Ceará e Rio Grande do Norte. Não se trata aqui apenas de afirmar o prestígio desse colecionador. Essa reunião é tratada aqui antes como um acontecimento, enquanto tal podemos posicioná-lo na esteira da dita ampliação do conceito oficial de patrimônio ao lado de outro evento mais conhecido da história do IPHAN: a mudança de perfil do presidente dessa instituição com a ascensão Aluísio Magalhães. A persona ideal para o mais alto cargo dessa instituição deixa de ser apenas o arquiteto e passar a ser também o profissional do design. Talvez imbuídos por um pretenso espírito democrático do início dos anos de 1990, a edição desse prêmio nesse período também procurava uma ampliação dos possíveis premiados. Não é por acaso que escolhi essa reunião para começar esse texto, trata-se de um evento anual, ou seja, talvez banal e menor para quem está dentro da máquina de estado, Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE). A apresentação dessa pesquisa foi financiada através da bolsa CAPES e o edital para participação em eventos (PROPESQ/UFPE). O pesquisador é Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM - História/UFC/CNPq). 1 IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ata da 7 a reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, 07 de dezembro de 1994.

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Da casa de Nirez para o espaço público: deslocamentos de objetos e ressemantizações do

passado da cidade de Fortaleza (CE)

CARLOS RENATO ARAUJO FREIRE

“Às quatorze horas e trinta minutos do dia sete de dezembro de mil novecentos e

noventa e quatro, no Salão Portinari do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro,

reuniu-se o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural” sob a presidência do Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ocupada por Glauco Campello,

estando presentes ainda 8 Conselheiros e com ausência de outros 10. Nesse momento

foram apresentados pela arquiteta Jurema Arnaut a seleção dos 5 possíveis ganhadores

do prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade: coleção Miguel Ângelo de Azevedo,

Prefeitura de Laranjeiras (Sergipe), Fundação Vitae, Conselho Municipal do Patrimônio

Histórico e Cultural de Cachoeira do Sul - RS, Fundação Cultural da Arquidiocese de

Mariana1. Alguns dias depois a coleção Miguel Ângelo de Azevedo se consagraria como

ganhadora do prêmio devido a indicação da 4a Coordenação Regional, que abrangia o

Estado do Ceará e Rio Grande do Norte.

Não se trata aqui apenas de afirmar o prestígio desse colecionador. Essa reunião é

tratada aqui antes como um acontecimento, enquanto tal podemos posicioná-lo na esteira

da dita ampliação do conceito oficial de patrimônio ao lado de outro evento mais

conhecido da história do IPHAN: a mudança de perfil do presidente dessa instituição com

a ascensão Aluísio Magalhães. A persona ideal para o mais alto cargo dessa instituição

deixa de ser apenas o arquiteto e passar a ser também o profissional do design. Talvez

imbuídos por um pretenso espírito democrático do início dos anos de 1990, a edição desse

prêmio nesse período também procurava uma ampliação dos possíveis premiados.

Não é por acaso que escolhi essa reunião para começar esse texto, trata-se de um

evento anual, ou seja, talvez banal e menor para quem está dentro da máquina de estado,

Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE). A apresentação dessa

pesquisa foi financiada através da bolsa CAPES e o edital para participação em eventos (PROPESQ/UFPE).

O pesquisador é Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM -

História/UFC/CNPq). 1 IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ata da 7a reunião do Conselho Consultivo

do Patrimônio Cultural, 07 de dezembro de 1994.

2

mas maior para quem está fora, pois é o reconhecimento de um trabalho considerado local

e individual por uma instância nacional dotada de um olhar profissional.

Ao iniciar a minha aproximação com a historiografia do patrimônio, o que já

consegui minimamente, e ainda uma fraca aproximação com a história dos museus,

observei uma força considerável de um enfoque um tanto quanto personalista na

construção das narrativas devido talvez à escolha reclusa da documentação oficial da

burocracia do Estado. Nomes como Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade

e o próprio Aloísio tornam-se a referência de um lugar-comum em uma leitura mais rápida

sobre a temática. Em um manual que já se encontra em sua terceira edição, encontramos

o seguinte trecho:

Rodrigo Melo Franco de Andrade valoriza a tradição, a reconstituição do fio

da tradição, a memória da nação. Somos na medida em que nos lembramos.

Fala de “bens patrimoniais”. Já Aloísio Magalhães valoriza o cotidiano,

posição que se origina em Mário de Andrade. Fala de “bens culturais”, que

integram a vida presente de diferentes segmentos e representam instrumentos

de construção do futuro;

Rodrigo Melo Franco fala de missão civilizatória, de educar os cidadãos, do

patrimônio como monumentos, do espaço público fechado. Aloísio Magalhães,

por sua vez, fala de vários patrimônios; de zonas maiores de contato; do

patrimônio como objetos, espaços, atividades transitórias; do espaço público

mais aberto (OLIVEIRA, 2008).

Oliveira (2008) consegue separar bem o sujeito e as retóricas utilizadas nas

políticas, porém, acaba tornando relevante ao leitor um mecanismo básico da memória

compartilhada por esses intelectuais ligados ao campo da política estatal: a discussão de

quem fez primeiro ou melhor. Para evitar essa falsa questão, tornou-se necessário pensar

o lugar do sujeito na escrita da história do patrimônio cultural.

As pessoas podem viver em um mesmo tempo e lugar, mas não necessariamente

habitar o mesmo mundo do mesmo modo, assim como das mesmas relações sociais, nem

mesmo do mesmo ambiente intelectual e da mesma paisagem de cultura material. Quais

serão as concepções de patrimônio nesses outros mundos? Todo um território segue o

mesmo ritmo à uma política cultural de estado?

A intenção desse trabalho seria não só deslocar o foco de quem dá o prêmio para

quem o recebe tentando perceber a posição desse colecionador dentro de uma cadeia

patrimonial na cidade de Fortaleza na década de 1970. O ato de guardar esses objetos não

3

seria marcado apenas por um sentimento de contemplação. Nesse trabalho iremos

problematizar o Nirez como ator patrimonializador através dos seus atos de publicização

e de deslocamento de objetos para o espaço público. Opera-se uma ressemantização dos

mesmos devido a seleção e a priorização de alguns significados em detrimento de outros.

Não é por existirem lá que se tornam por si só como um manancial de história, é

necessário a ação de perscrutá-los (MENEZES, 1998:91). Essas iniciativas expõem a

variedade de valorização das suas coleções visando interligar a história da cidade à

história do seu acervo. O seu gesto também não é isolado, torna-se significativo ao tentar

consolidar a posição de lembrar de Nirez como empreendedor de um passado para

Fortaleza dentro de uma cadeia patrimonial. Pretende-se problematizar aqui o passo a

passo “como se opera a passagem de uma visão individual do pesquisador à representação

produzida sob uma forma estabilizada, reprodutível e durável, própria a construir um

olhar coletivo sobre o patrimônio” (HEINICH, 2010:166).

Trajetória de Nirez

A negociação entre Miguel Ângelo de Azevedo, mais conhecido como Nirez2, e

o secretário de cultura Nilton Almeida, ocorrida em 2003, acrescentou ao projeto de

higienização do Arquivo Nirez a possibilidade de digitalização de uma grande quantidade

de fotografias antigas. Em troca, esses arquivos seriam doados para o Museu da Imagem

e do Som do Ceará. Hoje em torno de 60% desse fundo é formado das fotografias desse

colecionador. Para termos noção dos números, em 2008, o seu acervo de fotografias

possuía cerca de 30 mil unidades. A origem dessas fotografias é tanto do jornal O Povo

quanto de antigos estúdios fotográficos (Foto Sales, Aba Film, etc), reproduções doadas

a partir de visitas feitas a famílias que Nirez considerava de renome ou compradas de

amadores.

Nirez costuma ser referenciado nas matérias sobre a sua pessoa3 não só como

colecionador, mas também como jornalista, memorialista, pesquisador da música popular

brasileira e filho do pintor, poeta e escritor Otacílio de Azevedo com Tereza de Azevedo.

2 Daqui em diante, será chamado apenas por esse nome menor. 3 Uma parte do seu acervo é composta por essas matérias de jornal falando sobre o seu acervo.

4

Trabalhou como desenhista publicitário de l951 a l962, como desenhista técnico de 1962

a 1991 no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Como radialista,

passou por diversas emissoras e mantém no ar, desde l963, o programa Arquivo de Cera.

Como jornalista, começou a colaborar em jornais de Fortaleza em l956, iniciando na

Tribuna do Ceará, depois no jornal Correio do Ceará e, a partir de l975, também prestou

serviços no jornal O Povo, onde reorganizou o Departamento de Pesquisa (Banco de

Dados). Em l99l, foi remanejado do DNOCS para a Universidade Federal do Ceará -

UFC, passando a ser jornalista na Rádio Universitária FM.

Hoje é reconhecido como um dos maiores colecionadores de fotografias sobre a

cidade de Fortaleza e, nacionalmente, um dos mais representativos colecionadores de

discos de cera do país - mais de 22 mil exemplares e um acervo composto por mais de

140 mil itens4. Devido a essa trajetória, ocupou cargos públicos como diretor do Museu

da Imagem e do Som do Ceará e como membro do Conselho Estadual de Preservação do

Patrimônio Cultural (Coepa). O presente trabalho irá refletir sobre essa trajetória que

constituiu Nirez como um ator patrimonializador de notório saber.

A doação feita por Nirez ao Museu da Imagem e do Som não pode ser encarada

apenas na sua benevolência, uma vez que deslocar essas fotografias ao acervo de uma

reserva técnica as ressemantizam, priorizando-se alguns significados em detrimento de

outros. Não é por estarem lá que se tornam por si só como um manancial de história, é

preciso o gesto de perscrutá-los (MENEZES, 1998:91). Esse gesto torna-se significativo

ao tentar se consolidar como empreendedor de um passado para Fortaleza. A ritualização

da doação expõe a patrimonialização da sua coleção de fotografias visando interligar a

história da cidade à história do seu acervo.

A sua coleção de fotografias teria derivado do seu interesse anterior com os discos.

Em suas falas, coloca como ponto de viragem o ano de 1963, quando foi chamado a

apresentar o programa Arquivo de Cera; nessa data, já possuía 1.500 discos 78 rpm. Essas

duas coleções possuem um maior volume, porém existe uma diversidade de objetos de

seu interesse:

4 Atualmente esse seu acervo está em processo de negociação com o Instituto Moreira Sales (IMS).

5

Tenho discos, fotos, revistas, livros, máquinas fotográficas, aparelhos

de rádio, fonógrafos, gramafones, vitrolas, filmadoras, projetores

cinematográficos de várias bitolas, estampas Eucalol, álbuns de

figurinhas, rótulos de medicamentos, cigarros, biscoitos, bombons,

chocolates, tecidos, sabonetes, etc (AZEVEDO, 2012:71).

Para Nirez, o que ligaria objetos tão diferentes seria a sua procedência: ele só

coleciona artigos brasileiros. Além desse nacionalismo, as suas coleções de maior fôlego

viriam “todas de momentos nostálgicos” da sua própria vida (AZEVEDO, 2012:69). Uma

ilusão biográfica5 explicaria a razão de estar ali desses objetos e sua construção de si como

colecionador, já que “desde criança, gostava de colecionar caixas de fósforos, carteiras

de cigarro, rótulos de bebidas, alimentos, perfumaria” (AZEVEDO, 2012:71). As

fotografias, por exemplo, remeteriam à observação, na sua infância, do gosto do seu pai

pela pintura (AZEVEDO, 2012:68). Em seu discurso, o valor de antiguidade dos objetos se

cruzaria com o seu valor pessoal.

Com o aumento da sua primeira coleção, ele opera uma musealização da sua

própria casa. Apesar de começar a atender o público no início dos anos 1960, só

transforma a sua residência no Museu Fonográfico do Ceará em 1969. Ao alargar o seu

interesse a outras coleções e com a formação de uma biblioteca, muda-se o nome para

Museu Cearense da Comunicação em 1975. Um incidente paralisou o atendimento ao

público: a prefeitura de Fortaleza realizou o aterramento de um riacho próximo, o que

ocasionou o alagamento da sua casa na época das chuvas6. O Museu fecha para visitação

em 15 de dezembro de 1981. Só após 2 anos reabre o seu espaço com o nome de Arquivo

Nirez.

5 Uma noção comum de história de vida é construída por uma ideia de encaminhamento. Existiria um

caminho linear traçado que caminhamos e que deve ser caminhado, formando “[...] um percurso orientado,

um deslocamento linear, unidirecional (a ‘mobilidade’), que tem começo (‘uma estreia na vida’), etapas e

um fim, no duplo sentido, de término e finalidade (‘ele fará seu caminho’ significa que terá êxito, fará uma

bela carreira), um fim da história”. Essa narrativa coerente construída de uma fala subjetiva com uma

intenção objetiva forma uma ilusão biográfica valendo-se de expressões como o “desde criança”. Essa

ilusão é um sentido artificial que desconsidera a fragmentação e a incompletude das experiências

(BOURDIEU, 1998, p.183-185). 6 “A Prefeitura Municipal de Fortaleza, a pretexto de construir uma rua, aterrou um riacho, açudando-o

completamente, além de outras obras prejudiciais à região antes feitas, como a canalização de esgotos para

o referido curso d’água. Nos períodos de chuva, o riacho já vinha inundando o local, invadindo as casas,

onde fica o Museu, e agora, açudado e poluído, além de encharcar o terreno, prejudicando poços e fossas,

tornou o local invadido por moscas e muriçocas, tornando a situação insustentável” In: AZEVEDO, Miguel

Ângelo de Azevedo (Nirez). Comunicado do Museu Cearense da Comunicação. 15/12/1981.

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O ato de guardar esses objetos para os outros, segundo ele, não seria marcado por

um sentimento de contemplação. Hoje, com mais 81 anos, Nirez já conta com inúmeras

citações como lugar de pesquisa em trabalhos acadêmicos, mas, antes disso, percorreu

como palestrante os encontros de pesquisadores da música popular brasileira promovidos

pelo Instituto Nacional de Música da Funarte em 1975, 1976 e 1982, e também esteve

presente no encontro de 2001, nessa oportunidade organizado pelo Museu da Imagem e

do Som (MIS - RJ). Tornou públicas suas peças também através de curadorias em

exposições (2008, 2009 e 2015) e reproduções de algumas peças do seu acervo em

formato de cartão-postal em 2008.

Na sua trajetória, soma ainda pelo menos 12 publicações decorrentes das suas

pesquisas. Dos textos relacionados à música, podemos destacar: a biografia de um

compositor cearense atuante nas décadas de 1940 e 1950 com o título O Balanceio de

Lauro Maia (1994) e, em coautoria, em 1982, um catálogo em 3 volumes da Discografia

brasileira em 78 rpm de 1902-1964. Já os livros mais relevantes para esse projeto, por se

relacionarem com sua coleção de fotografias, são Fortaleza de Ontem e de Hoje (1991) e

Cronologia Ilustrada de Fortaleza (2001).

A posição de Nirez de poder falar do passado já se encontrava chancelada em

âmbito local, no período ditatorial, ao ter ganhado, em 1974, a Medalha do Mérito

Legislativo da Câmara Municipal de Fortaleza. Já no ano de 1994, em período

democrático, podemos afirmar ser o ápice do seu reconhecimento, uma vez que foi

condecorado novamente pela Câmara Municipal de Fortaleza, agora com a medalha

Boticário Ferreira e, também, em âmbito regional, ganhou o Troféu Sereia de Ouro

ofertado pela filial regional da Rede Globo de Comunicações. Por fim, foi reconhecido

também nacionalmente com o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade como vimos

acima.

Atravessando décadas e regimes políticos, sua escrita e seu olhar para o passado

se mantêm. Posicionamo-nos aqui através do papel educacional de relativizar

cognitivamente “[...] a operação de desconstrução da patrimonialização, revelando os

processos sociais e históricos que a geraram; dessacralizar o sagrado, não para promover

a destruição dos ídolos, mas para desvelar sua profunda humanidade” (GONÇALVES,

2014:92).

7

Esse deslocamento controlado das coleções de Nirez para o espaço público

ajudaram-no a construir uma posição de poder sobre o passado da cidade. Através não só

da sua fala sacralizada, mas também do seu lugar de rememorizar torna-se ele próprio um

cartão postal da cidade. O seu nome torna-se significado de acesso imediato ao tempo

pretérito para o presente de quem o interpela.

Olhares sobre o patrimônio edificado de Fortaleza

O que é, o que significa, o que representa esta obra seria supérfluo querer

dizer ou ressaltar. O que ela contém como que fala: fala o que é o Brasil na

presença de valores culturais que fundamentam o seu patrimônio histórico e

artístico. E vem do passado – século XVI a XIX – ou nos nossos dias – século

XX – para testemunhar o que realizamos, o que o brasileiro de todos os tempos

realizou, na construção de um acervo de tão grande expressão (TELLES,

1975:9).

Apesar de afirmar uma certa inconsistência da palavra diante da obra, foi assim

que Humberto Grande, diretor executivo da Fundação Nacional de Material Escolar

(FENAME), abriu a apresentação da obra monumental editada em 1975, chamada de

Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil, de autoria do arquiteto Augusto

Carlos da Silva Telles.

Através das fotografias e dos textos sobre os edifícios, procurou-se afirmar uma

totalidade que abarcaria a nação. Ao virar as próximas páginas desse livro,

testemunharíamos a “permanência de uma ideia que é, afinal de contas, uma expressão

de nós próprios: de nossos mestres-de-obras, de nossos arquitetos, de nossos escultores,

de nossos pintores, enfim, de nossos artistas [...]” (TELLES, 1975:9).

Porém, diferente de uma ideia romântica de resgate do passado, pretende-se uma

conciliação com um presente rumo ao desenvolvimento: a “modernização procura

conciliar o que é autêntico em nosso passado como identificação do que somos.

Identificação, portanto, de nossos valores de ontem e inspiração para nossas ideias [...]”

(TELLES, 1975:9).

O passado ganharia sua imponência na dimensão visível da arquitetura. A própria

organização do livro dividia-se de acordo com as nove unidades das regiões da federação.

8

O Ceará estava posicionado junto a outros Estados do Norte7, e das três centenas de

imagens, colocou-se em exposição três edifícios desse estado como os ícones a serem

vislumbrados: a Casa da Câmara de Quixeramobim, a casa natal de José de Alencar em

Messejana e o Theatro José de Alencar. A intenção é positivar essas edificações na lógica

discursiva do estado. Para tanto, afirma-se que o seu posicionamento originário era fora

do “domínio português”, por isso sofreu “falhas nas tentativas de colonização” que

deixaram toda essa região “abandonada à ação dos piratas e às aventuras de franceses e

holandeses” (TELLES, 1975:211).

Após selecionar alguns episódios e personagens da ocupação desse território

durante o século XVII e XVIII, principalmente através das Igrejas de Belém e do conjunto

urbano do Maranhão, elege-se o século XIX como a projeção desse presente graças aos

“dias de grande prosperidade” econômica devido à borracha e à carnaúba. Porém, ao se

inventar essa paisagem para o passado no presente a ser desenvolvido, encontra-se um

ponto de tensão ao se falar da Casa de José de Alencar:

De um modo geral, tanto no Ceará quanto no Piauí, regiões que eram

relativamente pobres e fracamente desenvolvidas, até bem pouco tempo, as

edificações de mais interesse eram as de tipo popular, que utilizavam a

carnaúba como material de construção, com as telhas diretamente apoiadas

em caibros feitos de peças roliças.

A própria casa de onde nasceu o romancista José de Alencar é uma edificação

que pode ser considerada desse tipo [...], serve atualmente como pequeno

museu ligado à Universidade (TELLES, 1975:213)

Era preciso ordenar essa ampliação do capital visual sobre o que era considerado

como o passado da nação, e buscavam-se outros valores que não só os estéticos para

justificar essa essência. A pobre casa encontrava o seu lugar de importância na sua

exposição devido à referência literária que se remetia ao mito de origem do encontro do

branco com o índio, porém, na sucessão dos valores arquitetônicos no decorrer do tempo,

seria valorizada por sua simplicidade, que deveria ser ultrapassada para se chegar ao

século XIX com seus novos programas, “edifícios mais notáveis e de maior vulto”

representados pelos teatros (TELLES, 1975:213).

7 Faziam parte também dessa área V os estados do Acre, Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Rondônia,

Roraima e Amapá.

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Essa preocupação de ordenação de um discurso e de inventar uma nova

visualidade torna-se uma das metas do governo ditatorial militar no decorrer dessa

década. No mesmo ano (1975) dessa publicação, ocorre a consolidação da criação de uma

política cultural com a implementação do Plano Nacional de Cultura, assim como a

reunião do grupo que irá criar o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que é

considerada como a principal instituição responsável por impactar o conceito de

patrimônio com a valorização do popular em âmbito nacional. Para o patrimônio

edificado, seria criado o Programa de Cidades Históricas (PCH), que investiu

significativamente na sua preservação, abordando-o dentro dessa lógica do

desenvolvimento urbano e regional e, para tanto, um dos seus principais objetivos seria a

reativação do estoque patrimonial do Nordeste (CORRÊA, 2012).

Esse mesmo sentimento nacionalista a ser cultivado expresso acima já estava

acordado na carta patrimonial de 1970, chamada de Compromisso de Brasília. Entre as

“medidas necessárias à defesa do patrimônio histórico e artístico nacional”, salienta-se “o

culto ao passado como elemento básico da formação da consciência nacional” (IPHAN,

2004:138). A defesa ufanista através do culto era o uso do passado privilegiado pela

ditadura civil-militar para se obter uma consciência de respeito e civilidade diante do

patrimônio.

Esse investimento em capital simbólico através do olhar possui uma envergadura

também na sua distribuição espacial: o saber ver sobre o patrimônio deveria perpassar os

currículos escolares de todos os níveis, adotando os seguintes critérios:

[...] no nível elementar, noções que estimulem a atenção para os monumentos

representativos da tradição nacional; no nível médio, através da disciplina de

Educação Moral e Cívica; no nível superior (a exemplo do que já existe no

curso de arquitetura, com a disciplina de Arquitetura no Brasil), a introdução,

no currículo das escolas de Arte, da disciplina de História da Arte no Brasil;

e nos cursos não especializados, a de Estudos Brasileiros, parte destes

consagrados aos bens culturais ligados à tradição nacional (IPHAN,

2004:139)

10

Nesse documento, enfatiza-se ainda o papel do DPHAN e do Arquivo Nacional

para criar mão de obra especializada de forma mais imediata, enquanto que as

universidades seriam responsáveis por fomentar a pesquisa e os museus regionais também

ajudariam na “educação cívica e no respeito à tradição” (IPHAN, 2004:139). E, por fim,

caberia às secretarias estaduais a divulgação do “acervo dos bens culturais da respectiva

área, utilizando-se, para esse fim, os vários meios de comunicação de massa, tais como a

imprensa, o rádio, o cinema, a televisão” (IPHAN, 2004:140).

O investimento visual do Atlas dos monumentos históricos de Telles (1975:14)

tinha como papel “atender o ensino de 2o grau e superior”, mas, fora da sala de aula, os

bens culturais ganhavam o espaço público através da sua midiatização. Não se sabe se

por acaso, mas é nesse mesmo ano de 1975 que Nirez irá começar a ampliar o seu público

ao colaborar com o jornal O Povo através da seção “Pesquisa e Comunicação”. No início,

possuía o espaço de uma página inteira, sendo publicada todos os sábados até 1982. Ele

mesmo fazia a sua diagramação e assinava com o seu nome colocando abaixo a referência

ao Museu Cearense da Comunicação. A partir de 1983, a página perde espaço e passa a

se chamar “Memória”, mas mantendo a sua periodicidade até pelo menos 1986. A partir

daí, mudou-se o nome para “Arquivo Nirez”, tendo sua periodicidade afetada. Manteve-

se vinculado ao jornal até 1992, depois passou a atuar apenas como convidado de forma

mais pontual.

Muito da organização da página “Pesquisa e comunicação” relaciona-se aos seus

interesses de colecionador. Em seu primeiro número, traça uma breve história das estórias

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em quadrinhos, relata sua participação no I Encontro de Pesquisa da Música Popular, fala

sobre o Cinema e a propaganda de outrora, discorre sobre uma letra de música e determina

ainda pelo menos três espaços para falar genericamente do passado: um chama-se “Foto

Histórica”, outro é nomeado de “Álbum de Família” e o outro, “Fortaleza ontem e hoje”.

Adiante nos deteremos apenas a esse último.

No espaço “Fortaleza ontem e hoje”, o repertório arquitetônico que faz parte mais

do olhar para o passado de Fortaleza encontra-se ampliado em número devido à própria

função do jornal como erário dos assuntos cotidianos. O sentido do texto não assume um

caráter expressamente ufanista como no Atlas, sua preocupação anterior é destrinchar os

usos daquele espaço no decorrer do tempo e identificar alguns sujeitos que passaram por

ali.

Como exemplo, podemos utilizar a publicação do dia 10 de junho de 1979 exibida

acima que, devido ao sesquicentenário do nascimento de José de Alencar, enfoca a praça

que lhe presta homenagem em duas posições temporais8. Ao colocar uma foto antiga

diante de uma foto nova de sua autoria, Nirez se posiciona entre o “ter-estado-lá” das

coisas do passado e o “ter-estado-aqui” do seu olhar para o presente. Permite a quem olha

o privilégio da comparação e de preenchimento do espaço entre o aqui e o ali.

Após distinguir os nomes anteriores dessa praça, ele destrincha os elementos da

foto de 1912 localizada à esquerda: o coreto ao centro da praça, o cata-vento “que servia

água à avenida (assim eram chamadas as praças à época)”; interessam-lhe ainda “os

combustores a gás hidrogênio carbonado para a iluminação pública” e o jardim bem

cuidado que “completava a beleza da praça Marquez do Herval”. A narrativa sobre a nova

foto começa por um referencial “a estátua de José de Alencar no centro” para depois dizer

o que mudou: “o quiosque foi retirado em 1928 para a reforma da praça e foi levado para

a avenida Epitácio Pessoa, próxima à Ponte Metálica, onde ficou conhecido como

“Pavilhão”.

Essa vantagem de tornar conhecido um ou outro elemento do passado para aqueles

que não o conhecem agencia duas noções indissociáveis: por um lado, o conhecimento,

ou ainda o reconhecimento de dar um sentido àquela visão de outrora; por outro lado,

8 Jornal O Povo 10/06/1979, “Fortaleza ontem e hoje”.

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fabrica a dissimetria entre os pretensos reconhecedores e os espaços a serem

reconhecidos. Já que Nirez está na posição de quem possui o conhecimento, torna-se

procurado por aqueles que não sabem sobre aquele determinado lugar. A diversidade de

locais exibidos exigiria do leitor um conhecimento mostrado ao olhar pelo colecionador.

Qual seria o padrão de reconhecimento dos seus leitores com esse olhar para o

passado da página de Nirez? Obedeceria aos mesmos parâmetros políticos do Atlas

acima? Vê-se apenas aquilo que o guia sobre as fotografias de Fortaleza declara que está

vendo? O certo é que as vontades de passado são tão históricas quanto qualquer outro

sistema de seleção. Nirez se portaria como esse guardião das possíveis respostas dessas

vontades? Nesse sentido, podemos nos indagar: seu gesto se vincularia automaticamente

aos enunciados das instituições oficiais? A paisagem que ele seleciona para um olhar

sobre o passado de Fortaleza teria igualmente, como fica evidente na discussão abordada

por Telles no Atlas, o século XIX como sua âncora? Em que medida promovia ao público

a valorização do passado como instrumento de civismo?

Considerações finais

O gesto de tornar público essas fotografias e relembrar as mudanças na paisagem

de Fortaleza afirmando o seu antes e o seu depois não se trata apenas do marketing de

turismo que possuía uma relação íntima com o “milagre econômico” propagado pelo

enunciado oficial da ditadura militar. Ao mostrar essa cidade que se transforma

problematiza a noção de progresso como valor exclusivamente positivo.

As respostas mais precisas para as perguntas levantadas no decorrer do texto ainda

serão elaboradas no trabalho de escrever uma trama histórica para o espaço que Nirez

construiu. Vimos que seu espaço foi amparado de forma consistente pelas políticas

culturais no mínimo em dois momentos: em meados da década de 1970 e 2003. Esse

primeiro marco é o período da implementação do primeiro plano nacional de cultura

(PNC) que organizou o organograma da pasta da cultura. A Funarte foi criada nesse

momento. O IPHAN a partir da década de 1970 tentou ampliar a sua área de abrangência

espacial através do Plano de Cidades Históricas (PCH), priorizando fortalecer outros

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elementos arquitetônicos como a arquitetura eclética, tão característica de algumas

regiões do Nordeste, como no Ceará.

Mais do que acreditar na condição de possibilidade desse museu através do

argumento do “Aquele que fez sozinho”, esse trabalho pretende esboçar uma história de

um ato de colecionar na segunda metade do século XX. A aproximação do fim dos anos

de 1990 não apenas os tipos arquitetônicos simples passam a serem protegidos

nacionalmente, mas internacionalmente o feio cenário do mundo do trabalho das fábricas

de produtos manufaturados do século XIX tornam-se vetor de uma cultura a ser protegida

pela política patrimonial. Há uma mudança de quais cenários e de quais objetos que

compõe o passado e que são elegíveis na didática pública do que é antigo. O museu-casa

de Nirez só se torna possível devido à uma mudança nos ciclos de consumo do capitalismo

do século XX. É a própria obsolescência programada que se torna curiosa, passível de ser

vista e colocada em exposição em uma casa nomeada enquanto museu.

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