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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA Monografia Comida, Simbolismo e Identidade: um olhar sobre a constituição da italianidade nas colônias Maciel e São Manoel Pelotas (RS) CARMEN JANAINA BATISTA MACHADO Pelotas, 2011.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

Monografia

Comida, Simbolismo e Identidade: um olhar sobre a constituição da italianidade nas colônias Maciel e São Manoel –

Pelotas (RS)

CARMEN JANAINA BATISTA MACHADO

Pelotas, 2011.

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CARMEN JANAINA BATISTA MACHADO

Comida e Simbolismo e Identidade:

um olhar sobre a constituição da italianidade nas colônias Maciel e São Manoel

Trabalho de conclusão de curso apresentado

ao curso de Geografia do Instituto de Ciências

Humanas da Universidade Federal de Pelotas,

como requisito para obtenção de título de

Licenciada em Geografia.

Orientadora: Profª. Drª. Giancarla Salamoni

Co-orientadora: Profª. Drª Renata Menasche

Pelotas, 2011

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Banca Examinadora:

______________________________________ Prof. Drª Giancarla Salamoni

________________________________________ Prof. Drª Claudia Turra Magni

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DEDICATÓRIA

Dedicado aos meus pais, meu companheiro e as famílias das colônias Maciel e São Manoel.

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EPÍGRAFE

Ademais a vida é curta Curto é o nosso tempo aqui Bom viver se somos juntos

Pra somar sem dividir Dividir seja a comida

Pra gente viver melhor Come bem quem come junto

Com mais gente ao seu redor Ao redor seja a alegria

Das que o coração descuidou Quando viu brotava a poesia

Se atinou já vinha o amor Corre vem ver, tempo de ser

Mais descalço simples pé no chão, sem questão De festar rodar cantar comer com a mão, sem questão

De abraçar a tal humana condição, sem questão De agarrar a laço sério a paixão, sem questão

De acuar rosnar morder o mundo cão, sem questão

Tribo, de Renato Braz

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AGRADECIMENTOS

Assim como as festas e o trabalho no cotidiano das famílias rurais não

acontece sozinho, este estudo é resultado da contribuição de pessoas que, com um

abraço, um livro, uma aula ou uma história foram indispensáveis neste processo.

Agradeço a todos, que de alguma forma, contribuíram para a construção deste

trabalho:

Aos meus pais pela dedicação e carinho. A minha mãe Veni que acordava

05h30min da manhã para fazer fogo no fogão à lenha, preparar meu café e me

acompanhar até o ônibus, no meu primeiro ano escolar. Ao meu pai João que

sempre me motivou a seguir estudando. E aos meus irmãos: Jaqueline e Jackson.

Ao companheiro Samuel pelo incentivo, apoio e carinho nestes anos. Pelas

acaloradas discussões sobre a contribuição da pesquisa na vida dos colonos e

outras tantas reflexões...

À professora Giancarla Salamoni por ter me orientado desde “os meus

primeiros passos” na iniciação científica. Pelas orientações, dedicação, paciência,

carinho e amizade.

À professora Renata Menasche que me apresentou um universo totalmente

novo e encantador da pesquisa a partir da Antropologia. Pelas orientações, as

longas conversas, os cafés, o carinho e amizade.

Ao professor José Vital da Costa pelo incentivo à iniciação científica, no

primeiro semestre, na sua disciplina de Antropologia Ecológica I.

Aos colegas e amigos do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais

pelos momentos de reflexão, descontração e carinho: Veridiana, Tiaraju, Diego,

Lucimara, Losane, Cabana, Carlos Vinícius, Juliana, Sibeli, Carmen “W”, Lânderson,

Maurício, Patrícia e Evander.

A todos os professores e colegas do Curso de Licenciatura em Geografia da

Universidade Federal de Pelotas pelos momentos de aprendizado, pelas

brincadeiras, discussões e carinho. Em especial aos professores Giancarla

Salamoni, Adão José Vital da Costa, Ednei Koester, Sidney Gonçalves Vieira, Paulo

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Roberto Quintana, Êrica Colischonn e Liz Dias e aos colegas Inajara, Tiaraju,

Mateus, Solange, Maria Arzelinda, Ilvonei, Carlos Vinicius, Sibeli, Andreia...

Aos professores e colegas do Curso de Antropologia e Arqueologia da

Universidade Federal de Pelotas, em que cursei algumas disciplinas e que muito

contribuiu na minha formação. Em especial aos professores Renata Menasche,

Claudia Turra e Lúcio Menezes e aos colegas Juliane, Patrícia, Maurício, Roberta,

Eliane, Heloísa, Priscila, Isabel...

Aos colegas e professores do Curso de Geografia e Planeamento da

Universidade do Minho - Portugal pelo acolhimento e carinho, em especial a

professora Virgínia Teles e João Sarmento, a secretária Isabel e aos colegas Jorge

Leão, Rita, Sara Catarina, Ana Carolina, João, Ricardo, Mônica, Tiago... Ao

professor e amigo Artur Cristóvão, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,

pelo aprendizado e carinho. E aos colegas brasileiros Raony, Gabriel, Rafaela, Ivna,

e Carolina.

Aos funcionários e amigos da Casa do estudante, em especial as meninas

do quarto, 308 que nestes anos compartilharam momentos de frustração e alegrias:

Carine, Beatriz, Raquel, Nitéri, Taciane, Miriam, Cristiane, Ana Paula e Caroline.

Aos amigos camaradas de Pelotas, Encruzilhada do sul e Portugal. Não

cabe aqui relatar nomes porque cada um tem um significado especial na minha vida.

As famílias que preparam as festas da Comunidade Católica Sant‟Ana pelo

acolhimento, carinho, amizade...As famílias da Colônia Maciel e São Manoel que me

receberam em suas casas e em suas vidas. Este trabalho se conclui, mas as festas

e visitas seguem, pois construímos para além da pesquisa uma amizade.

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RESUMO

Em um contexto de ressignificação do rural, em que se pode notar a busca (urbana) por um rural idealizado, que remete a paisagens e tranquilidade, mas também a alimentos tradicionais e/ou naturais, festas rurais, sítios de lazer e turismo rural, este estudo pretende analisar como, em duas localidades rurais conformadas, em boa medida, por famílias rurais descendentes de imigrantes de italianos, esse processo de valorização do rural assume características particulares, associadas à constituição de uma italianidade. Para isso, as práticas alimentares dessas famílias rurais são tomadas como ponto de observação. As ocasiões festivas constituíram-se em importantes alvos da atenção, mas o olhar voltou-se também para o cotidiano das famílias, a seus saberes e práticas alimentares, incluindo a organização de seu trabalho em torno da produção para o autoconsumo. Procurou-se, também, apreender como a comida e o vinho, apresentados nas festas como símbolos da cultura italiana, estão presentes no cardápio do dia-a-dia dessas famílias. A construção deste trabalho deu-se a partir de pesquisa etnográfica desenvolvida junto às famílias que trabalham nas festas da Comunidade Católica Sant‟Ana, moradoras das colônias Maciel e São Manoel, pertencentes ao 8º Distrito Rincão da Cruz, município de Pelotas.

Palavras-Chave: Campesinato. Alimentação. Etnicidade. Festas. Cotidiano.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01- Mapa ilustrativo do Estado do Rio Grande do Sul, retratando a divisão norte-sul......................................................................................................................31 Figura 02- Mapa do município de Pelotas (1911) – grande extensão de terras, em que se instalaram os imigrantes, formando colônias.................................................34 Figura 03- Mapa do Rio Grande do Sul com destaque para o município de Pelotas, seguindo, em destaque, o distrito de Rincão da Cruz, no qual se localizam as colônias Maciel e São Manoel....................................................................................38 Figura 04- Igreja da Comunidade Católica Sant‟Ana e salão da comunidade.............45

Figura 05- Saber-fazer: o preparo da bolacha colonial – da receita herdada à mesa do

café colonial da festa..................................................................................................47

Figura 06 - folha de bananeira no chão, ao lado do forno .........................................................49

Figura 07- Cardápio híbrido: cuca, receita mantidas por gerações, preparada com

ingredientes da colônia e o bolo de caixinha, à base de produtos

industrializados...........................................................................................................50

Figura 08- Missa em homenagem à padroeira (os fiéis estão em fila, para receber a

hóstia), seguida do almoço e jogos à tarde................................................................51

Figura 09- O baile da tarde e a discoteca da noite......................................................51

Figura 10- Mulheres “classificando” tempero verde e homens preparando a polenta

no espaço da cozinha.................................................................................................54

Figura 11- Salão decorado para a festa e exposição de fotos e documentos

contando a história dos primeiros imigrantes chegados à Colônia Maciel.................56

Figura 12- Comida apresentada como típica: fortaia, polenta e o cardápio

completo.....................................................................................................................57

Figura 13 - Mapa das propriedades visitadas em 2009.............................................63

Figura 14- Produtos para autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel.............64

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Figura 15- Produtos para autoconsumo: hortaliças, ovos e queijo (secando em um

tabuleiro).....................................................................................................................64

Figura 16 - Animais para o autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel.............65

Figura 17- Desenhos crianças ilustrando a produção na propriedade de sua

família.........................................................................................................................66

Figura 18- Produtos para comercialização nas colônias Maciel e São Manoel........................................................................................................................68

Figura 19- Produtos para comercialização: pêssego (2011), feijão e fumo (2009).........................................................................................................................68

Figura 20- Comida no cotidiano das famílias: mesa posta para o almoço, vinho para acompanhar o almoço e sobremesa – sagu de vinho................................................75

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SUMÁRIO

1 Introdução......................................................................................................................................12

1.2 Metodologia de Pesquisa: o campo............................................................................................18

2 Formação Histórica: um olhar sobre a colonização.......................................................................................26

2.1 Rio Grande do Sul: breve contextualização................................................................................26

2.2 Município de Pelotas: aspectos histórico-espaciais....................................................................32

2.2.1 Colônia Maciel...........................................................................................................................38

2.2.2 Colônia São Manoel..................................................................................................................40

3 Festa de SantʼAna e o Dia do Vinho na Colônia Maciel: a “Festa Antiga” e a “Festa à Antiga”................................................................................................................................................42

3.1 Festa de Sant‟Ana, a festa antiga ...............................................................................................45

3.2 O Dia do Vinho,a festa à antiga...................................................................................................52

4 O Cotidiano das Famílias: um olhar a partir da comida...........................................................60

4.1 A produção pra venda e pro gasto nas Colônias Maciel e São Manoel.....................................60

4.2 Comida e Identidade: histórias, saberes e práticas alimentares ................................................69

4.3 Família: as histórias para além da comida..................................................................................77

5 Considerações Finais .................................................................................................................81

Referências........................................................................................................................................83

Anexo - Livro Tombo da paróquia SantʼAna: registro da chegada dos primeiros imigrantes

italianos à Colônia Maciel (1884 a

1886)...................................................................................................................................................88

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1 INTRODUÇÃO

Eu quero uma casa no campo

Onde eu possa ficar no tamanho da paz

E tenha somente a certeza

Dos limites do corpo e nada mais

Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim [...]

Elis Regina

A valorização do rural não é um movimento recente. Já no século XVII era

apontado como “novas sensibilidades” (THOMAS, 1996) em que a natureza e a

tranquilidade do campo já se constituíam em destino de lazer para os citadinos.

Contudo, percebe-se que recentemente tem se acentuado a busca por um rural

idealizado, remetendo a paisagens e tranquilidade, mas, também, por uma

alimentação tradicional, festas rurais, sítios de lazer e turismo rural.

Neste contexto de acentuada valorização do rural temos as questões

referentes à “vida moderna” que Thomas (1996) identifica na constituição de novas

sensibilidades, no período da urbanização e industrialização na Inglaterra do século

XVII, que abrangem a relação campo e cidade. Em meados do século XVII, “a

cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação”

(THOMAS, 1996, p.259), sinônimo de civilidade, enquanto que o campo

representava o rústico. Contudo, no início do século XVIII torna-se comum sustentar

que o campo era mais belo que a cidade. Na medida em que se expandiam as

cidades e as indústrias, a deterioração do ambiente urbano, a poluição do ar,

superpopulação e doenças fizeram com que a população abastada optasse pelo

campo como refúgio para descansar e curar as doenças não somente físicas, mas

espirituais. Assim, passavam a construir suas cabanas no campo, nas quais

permaneciam uma temporada ou somente nos finais de semana. Para os citadinos

“os moradores do campo eram não apenas mais saudáveis, porém moralmente mais

admiráveis que os habitantes da cidade” (THOMAS, 1996, p. 261).

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Já no século XX e início do século XXI percebe-se uma demanda cada vez

mais intensa por um rural autêntico, sendo assim nele reconhecidas funções para

além da produção de alimentos, como aponta Cristóvão (2002):

Face às experiências de vida na cidade e ao mundo globalizado e tendencialmente homogéneo, as ideias construídas sobre o quotidiano no campo, o contacto com a natureza e as culturas tradicionais, traduzem-se numa revalorização social do rural e do local e induzem uma busca do singular, do específico, do autêntico. O espaço rural ganha, por este meio, um crescente valor simbólico e assume uma legitimidade diferente da legitimidade alimentar do passado [...]. É, na essência, uma legitimidade fundada na representação dos campos como locais de liberdade, beleza, segurança e saúde, de pertença e enraizamento. Ao espaço rural passam a ser reconhecidas funções mais diversificadas do que a simples produção de alimentos. (CRISTÓVÃO, 2002, p.04).

Neste processo de valorização do rural, particular e local frente ao processo

de globalização, associado à industrialização e homogeneização, emergem

discussões em torno dos saberes e práticas associados ao ato alimentar, enquanto

manifestações de patrimônio cultural. Assim tem-se, de um lado, a individualização

do consumo alimentar e, do outro, a ressignificação da cozinha, marcada pela

afirmação do local, que além de ser o espaço onde se preparam as refeições é onde

se acolhem a família e os amigos. Neste contexto “podemos atribuir às

transformações do comer, decorrentes da globalização marcadas por um movimento

de homogeneização da alimentação -, o surgimento de uma ʽnostalgiaʼ referente às

práticas alimentares” (MENASCHE, n. p.).

Com referência ainda às ressignificações do rural, cabe considerar a

demanda urbana pelo tradicional, artesanal e local, que aponta para um movimento

em direção a elementos emblemáticos do rural, como por exemplo, a polenta. Este

prato, preparado a partir do cozimento da farinha de milho em água, com a

substituição de cereais como centeio e trigo pelo milho, constituiu-se como base da

alimentação no norte da Itália e difundiu-se a partir do século XVI na Europa. No

Brasil, com a imigração a partir de 1875, a polenta passou a ser a comida diária dos

imigrantes italianos. Atualmente, este prato compõe o cardápio das famílias rurais,

particularmente de famílias descendentes de italianos, muito embora não mais com

a mesma frequência que teve outrora. À polenta atribuem-se diversos usos e

significados, pois para uma parcela de descentes italianos esta remete aos tempos

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de escassez, enquanto que para outros é emblema das festas, situação em que

muitas vezes a polenta é apreciada pelos citadinos e convertida em símbolo do rural

valorado, como apontado por Menasche (2010) ao analisar as percepções de

agricultores e citadinos, a partir de suas práticas alimentares:

E observamos, também, outro movimento, esse mais recente, que se manifesta particularmente em ocasiões festivas, quando os alimentos que remetem a uma identidade rural são positivamente valorados. Aí – e tal qual no estudo realizado por Champagne (1987) –, a afirmação dessa identidade parece constituir-se a partir do vínculo com um tempo e temporalidade passados, recriados, a partir de uma busca, urbana, por paisagens, costumes, festas, história, turismo, alimentos etc., inclusive polenta. (MENASCHE, 2010, p.214).

Neste contexto em que o rural “transforma-se em objecto de consumo para

os citadinos” (LOURENÇO, 2001, p.10), de certa forma, criam-se reconfigurações

por parte da população rural sobre o seu lugar de viver.

No que se refere às mudanças sobre as percepções do rural, agora

crescentemente positivado, uma interessante referência é o estudo de Champagne

(1977). Este autor, se referindo ao contexto de uma comunidade rural francesa,

aponta um movimento em que, em meados de 1950, camponeses jogaram fora

antigos móveis de família, de madeira, considerados arcaicos, substituindo-os por

móveis de fórmica, símbolo da modernidade. Mas, no final da década de 1970, o

mesmo autor mostra que ocorre um movimento inverso, em que os móveis rústicos,

símbolo do tradicional, são revalorizados. Este processo estaria relacionado à

valorização do rural pelos habitantes da cidade, o que influenciaria em mudança de

valores na aldeia.

Este processo de revalorização do rural é especialmente analisado pelo

autor a partir do estudo das festas na aldeia, onde analisa a “festa antiga” e a “festa

à antiga”. Para Champagne (1977) o processo modernizador, o trabalho mútuo

substituído pela máquina, seriam alguns dos fatores que contribuíram para o fim da

festa comunitária do tipo antiga. Neste processo de desagregação do grupo é

organizada uma festa local pela vontade de reunir as famílias da aldeia. Contudo,

esta festa cria-se como a “festa à antiga”, ancorada sobre base de ordem

econômica. Assim, a festa que antes ocorria na primavera é mudada para o verão,

nas férias do calendário urbano, e torna-se um espetáculo cujo objetivo principal era

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atrair o público externo, constituindo-se, portanto, em uma festa na aldeia e não em

uma festa da aldeia, preparada por e para os camponeses. É neste contexto, a partir

do olhar do urbano sobre o rural, que os camponeses ora valoram o móvel de

fórmica, por representar o moderno, ora valoram o móvel de madeira, por

representar o tradicional. Ou seja, as reconfigurações e ressignificações dos

moradores rurais sofrem influência da valoração do urbano sobre o rural, que

influência também na mudança de valores da população local rural.

É no contexto antes descrito que, neste trabalho, pretende-se analisar como

nas colônias Maciel e São Manoel o processo de valorização do rural assume

características particulares, associadas à constituição de uma italianidade. Tendo

em vista que nos últimos anos se percebe uma acentuada demanda por citadinos

das amenidades do rural, em que famílias de descendentes de imigrantes italianos e

produtoras de vinho estão inseridas em uma rota de turismo rural e, recentemente,

criam a Festa do Dia do Vinho. Para tanto, o olhar desta pesquisa será conduzido às

práticas alimentares das famílias rurais descendentes de imigrantes italianos, mais

especificamente, às famílias que trabalham nas festas da Comunidade Católica

Sat‟Ana, moradoras das respectivas colônias, pertencentes ao 8º Distrito Rincão da

Cruz, do município de Pelotas.

Diante disso, é imprescindível entender a percepção destes camponeses em

relação aos saberes e práticas herdados de seus antepassados e mantidos no

quotidiano dessas famílias. Assim, o principal objetivo deste trabalho consiste em

compreender o processo de valorização do rural, associado à constituição de uma

italianidade nas colônias Maciel e São Manoel, tomando a alimentação como

abordagem privilegiada. Bem como, identificar a comida valorada e os saberes que

conformam as festas da comunidade e o cotidiano destas famílias.

Cabe ainda mencionar que o campesinato é aqui entendido à luz do estudo

de Klaas Woortmann (1990), que propõe entendê-lo como ordem moral e a partir de

uma qualidade, a campesinidade, que pode estar presente, em maior ou menor

grau, em diferentes grupos específicos, em uma articulação ambígua com a

modernidade. Para esse autor (WOORTMANN, 1990, p.23) a campesinidade está

centrada na interdependência entre terra, família e trabalho, pois “nas culturas

camponesas não se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim como

não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família”. É neste sentido que, no

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decorrer deste trabalho, faremos referência ora a camponeses, ora a colonos, ora a

agricultores, ora a descendentes de imigrantes italianos, sendo essas expressões

utilizadas para referirmo-nos a um grupo social que entendemos como camponês.

Este trabalho foi construído a partir de trabalho etnográfico, que consistiu na

observação participante (e registro em diário de campo) de festas da Comunidade

Católica Sant‟Ana e do cotidiano de famílias que trabalham na preparação e

organização das festas da comunidade. Nesse processo foram realizadas

entrevistas em profundidade junto a membros dessas famílias. Ainda

complementarmente, foram utilizados dados resultantes da inserção junto à Escola

de Ensino Fundamental Garibaldi, como membro da equipe que realizou junto às

crianças da 3ª e 7ª séries oficinas para resgate e registro de hábitos alimentares.

Antes de discorrer sobre o campo de estudo, faço um breve relato em torno

das motivações que me conduziram a esta investigação, pois avalio que seja

importante para a compreensão da proposta deste trabalho.

Primeiramente, cabe mencionar que sou filha de camponeses e vivenciei “os

dois mundos”, o campo e a cidade. Na década de 1990 migramos para a cidade,

por meu pai não ter mais condições de sustentar a família com o fruto do trabalho

realizado em apenas quatro hectares de terra, herdada de seus pais. Com a tristeza

de deixar o nosso lugar, acompanhei, por anos, a insatisfação de meu pai por ter

que morar na cidade e, principalmente, o sentimento de perda da terra que fora de

seus avós. Passados alguns anos retornei à zona rural, agora na colônia de Pelotas,

juntamente com meu companheiro, Samuel. Moramos com os seus pais, em uma

comunidade em que predominam descendentes de imigrantes alemães.

Com o propósito de dar continuidade aos estudos, no ano de 2007 optei pelo

curso de Licenciatura em Geografia, planejando vir a dar aula em escola rural. No

início do 2º semestre do curso, participando de uma seleção para bolsista de

iniciação cientifica, passei a integrar o Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais

- LEAA, coordenado pela professora Giancarla Salamoni. Passei, então, a pesquisar

o tema de recursos hídricos, tendo como área de estudo as colônias Maciel e São

Manoel – 8º distrito do município de Pelotas. No decorrer da graduação cursei uma

disciplina de Antropologia Cultural com a professora Renata Menasche, cujas

pesquisas tratam das percepções do rural com um olhar a partir da comida. O tema

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e a antropologia me conquistaram e, firmada a parceria entre as duas áreas

(Geografia e Antropologia), quando a professora Renata passou a integrar o LEAA, -

a partir de 2009/02 - como bolsista de iniciação científica dei continuidade à

pesquisa nas colônias Maciel e São Manoel. Com o olhar voltado para os

descendentes de imigrantes italianos, partindo dos estudos da antropologia da

alimentação, compondo a agenda de pesquisa, primeiramente, do projeto “Saberes

e Sabores da Colônia: patrimônio alimentar e campesinato no Rio Grande do Sul” e,

atualmente, dos projetos “Cultura, patrimônio e segurança alimentar entre famílias

rurais: etnografias de casos significativos” e "Construção participativa de sistemas

agroflorestais sucessionais no território Sul, RS (Encosta da Serra do Sudeste) /

aspectos culturais”, coordenado pelo pesquisador Joel Cardoso - EMBRAPA/Pelotas

-, no qual minha participação é no subprojeto "aspectos culturais", coordenado pela

professora Renata Menasche.

O trabalho esta dividido em cinco capítulos. Após este capítulo introdutório,

que apresenta a proposta de pesquisa, a estrutura do texto e a metodologia

empregada, dá-se inicio ao capítulo 2, referente à contextualização histórica de

ocupação do Estado do Rio Grande do Sul, do município de Pelotas e das colônias

Maciel e São Manoel por imigrantes, buscando entender o processo histórico que

levou os imigrantes italianos a se estabelecerem na região colonial do município de

Pelotas. O capítulo 3 aborda os saberes e práticas alimentares que conformam as

festas e a comunidade rural, buscando analisar por quem e para quem são

produzidas, atentando para a Festa de Sant‟Ana e a Festa do Dia do Vinho. O

capítulo 4 leva o olhar ao cotidiano das famílias, especialmente a seus saberes e

práticas alimentares, aí incluída a organização do trabalho da família em torno da

produção para o autoconsumo. As considerações finais compõem o capítulo 5, no

qual buscamos apresentar uma síntese do que foi apresentado e discutido no

decorrer da pesquisa.

Cabe, ainda, observar que ao longo do trabalho os nomes dos

interlocutores foram substituídos por nomes fictícios, visando preservar suas

identidades. Ainda, para remeter a conceitos trazidos da bibliografia consultada ou

para destacar termos, foram empregadas aspas. Em itálico são grafadas expressões

de interlocutores da pesquisa. Por último, cabe mencionar que no decorrer deste

trabalho não se adotou, no que se refere à adoção da pessoa que narra, um único

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padrão na redação do texto. Em alguns momentos é empregada a primeira pessoa

do singular e, em outros, a primeira pessoa do plural. Tal fato decorre do processo

de construção deste trabalho, resultado de experiências da autora e das professoras

orientadoras, sendo que muitas das reflexões aqui desenvolvidas foram realizadas

em conjunto com as professoras Renata Menasche e Giancarla Salamoni.

1.2 METODOLOGIA DE PESQUISA: O CAMPO

“Há uma enorme diferença entre ler sobre e falar com pessoas „estranhas‟,

vivenciar a alteridade, entre lidar com descobertas feitas por outros e descobrir por si

mesmo”. (WOORTMANN, 1995, p.18)

Ancorada no ensinamento de Ellen Woortmann é que penso o campo, no

sentido de “descobrir por mim mesma”. O primeiro contato com o grupo pesquisado

se deu entre janeiro e fevereiro de 2009, quando fazia parte da equipe do projeto “A

Sustentabilidade dos Recursos Hídricos Hídricos na Colônia Maciel e São Manoel –

Distrito de Rincão da Cruz – Pelotas – RS: turismo rural, educação e gestão

ambiental”, coordenado pela professora Giancarla Salamoni, do Laboratório de

Estudos Agrários e Ambientais da UFPel. Naquela ocasião, o grupo integrante do

projeto visitou 43 propriedades na Colônia São Manoel e outras 48 na Colônia

Maciel. Quando chegávamos à propriedade de uma família e realizávamos as

entrevistas, com base em roteiro semi-estruturado, sentia a necessidade de saber

mais sobre aquelas pessoas. Tentava, pelo sobrenome, compor as relações de

parentesco, ouvia suas histórias, tomava café em algumas das casas, em outras

acompanhava o trabalho na estufa de fumo, no fabrico de vinho ou a capina na

lavoura. Pude notar que nesses momentos de conversa, antes ou depois de realizar

as entrevistas, era quando as pessoas realmente se dispunham a falar. Em outros

momentos, percebi contradições entre o que diziam e o que faziam, não por ato

intencional, mas porque elaboravam as respostas a partir do que acreditavam que

esperávamos ouvir. Lembro de uma mulher que, ao perguntarmos se ela e o esposo

utilizavam botas e calças Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para aplicar

herbicidas ou fungicidas, afirmou que sim e justificou a importância da utilização

desse equipamento. No entanto, passados alguns minutos seu esposo chegou da

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lavoura levando nas costas uma máquina de aplicar esses produtos químicos,

trajando somente bermuda e chinelo. Entendo que o ocorrido se deu pela própria

natureza da situação de entrevista, pois a “verdade é produzida a partir de uma

relação” (CALDEIRA, 1981), uma relação de poder, em que o entrevistador

representa a ciência e uma instituição, enquanto que o entrevistado sente-se na

obrigação de “dizer a verdade”. Para Caldeira (1981), na aplicação de um

questionário, a rigidez das perguntas, a ordem pré-estabelecida e o leque de

alternativas não permitem ao entrevistado praticamente qualquer participação ativa

na relação entre entrevistador e entrevistado. Penso ser o questionário uma

ferramenta importante para o primeiro contato e como levantamento de informações

mais gerais, mas, para tentarmos entender as relações que conformam determinado

grupo ou comunidade, temos de utilizar outros métodos, buscando uma maior

aproximação com a realidade vivida pelo grupo estudado.

É neste contexto, buscando a possibilidade de conhecer, conversar,

conviver, trabalhar e festar com as famílias, que se fez uso do método etnográfico na

realização desta pesquisa. Este método parte da voz e das atitudes do sujeito de

maneira a tornar possível descrever e analisar seus modos de vida e as relações

que permeiam e conformam a comunidade em estudo. Neste sentido, Geertz (1978)

destaca que

O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar... Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 1978, p.20).

Como destacado pelo autor, o papel do etnógrafo, nesta trama de

significados, é interpretar e descrever, buscando construir uma descrição densa.

Cabe destacar que a proposta de estudar na comunidade (e não a

comunidade) refere-se ao que Geertz (1967 apud Comerford, 2005) destaca ser

necessário para seguir o diversificado circuito das relações sociais, complexificando,

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criticando e desnaturalizando a imagem da comunidade unitária, com seus limites

dados a partir de critérios espaciais e administrativos. Como defende o autor,

estudar “na aldeia” (e não “a aldeia”) permite identificar e conhecer as relações e a

forma como interagem os grupos que ali vivem.

Com o intuito, então, de estudar “na aldeia” e tentar apreender as relações

que a conformam, utilizei-me da observação participante, para a qual Schwartz e

Schwartz (1995) propõem a seguinte definição:

[...] definimos observação participante como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está em relação face-a-face com os observados e, ao participar da vida deles no seu cenário natural, colhe dados. Assim o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto. (SCHWARTZ; SCHWARTZ, 1995 apud CICOUREL, 1980, p. 99).

Minha primeira inserção a campo para esta pesquisa deu-se durante a

preparação e realização da Festa de Sant‟Ana, em fevereiro de 2010, e estendeu-se

até novembro de 2011, quando dei por encerradas as incursões a campo que

contemplaram, além da preparação e realização das festas observadas, visitas às

famílias que preparam as festas, pertencentes às duas colônias (Maciel e São

Manoel), bem como as atividades realizadas pela equipe de pesquisa – oficinas para

resgate de hábitos alimentares – junto à Escola de Ensino Fundamental Garibaldi,

na Colônia Maciel.

Ao pensar as “entradas” a campo, busquei ter presentes as questões

levantadas por Cicourel (1980), que pondera que

Parte importante do trabalho de campo tem a ver com os problemas de identificar, obter e sustentar os contatos que o pesquisador de campo precisa fazer. Por exemplo, dada a escolha do papel ou dos diferentes papéis que pode assumir perante os outros ou lhes atribuir, que tipo de intimidade deveria ele cultivar? Que tipo de pessoas procurar? Como fazer os contatos? Como mantê-los? De que maneira estes afetam os dados obtidos? De que maneira contatos específicos conduzem a certos dados? Estas questões são apenas uma fração das questões sobre as quais o pesquisador de campo precisa pensar. (CICOUREL, 1980, p. 112).

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Na primeira inserção em campo, por ocasião da Festa de Sant‟Ana, após

entrar em contato com uma das festeiras, desloquei-me até a Colônia Maciel. Era

uma manhã de sábado. Chegando ao salão da comunidade, procurei pela senhora

com quem havia mantido contato, mas por ela estar tão envolvida com os

preparativos da festa, havia esquecido de falar ao grupo a respeito da minha

proposta de acompanhar a festa. Assim, com um frio na barriga, tive de entrar na

cozinha e apresentar-me, contar a respeito de minha proposta de pesquisa e

consultar o grupo de mulheres, que trabalhava na preparação da festa, sobre a

possibilidade de permanecer junto a elas, auxiliando nas tarefas e conversando

sobre as histórias das festas anteriores, as receitas, o preparo das comidas. A partir

da resposta positiva do grupo, acompanhada de olhares de curiosidade e de

desconfiança, fui tentando interagir com as mulheres. Foi então que me lembrei de

um texto que havia lido, de Tania Salem (1978), em que ela conta o primeiro contato

com seus entrevistados. Reproduzo a seguir um trecho de sua reflexão:

Assim de certo modo, esse primeiro encontro permitia uma inversão de papéis, eu passava a ser a entrevistada e eles, os entrevistadores. Percebi que, através das perguntas que giravam em torno da minha vida particular, os informantes estavam buscando ponto de afinidade entre a minha pessoa e a deles. Ou seja, tentavam situar-me em seu mundo e, ao que parece, através desse procedimento, procuravam amenizar minha posição de “invasora”. (SALEM, 1978, p.54).

Naquela tarde, fui à entrevistada. As perguntas giravam em torno da família

a que eu pertencia, onde morava, o que estudava, onde estudava etc. Senti que o

“ponto de afinidade” entre mim e as mulheres estava no fato de eu morar na colônia.

Apesar de não conhecerem minha família e de eu pertencer a outro distrito, acredito

que esse foi o fator que amenizou minha posição de “invasora” e possibilitou que

fosse estabelecido o diálogo com o grupo.

No decorrer da pesquisa, tanto nas festas como nas casas das famílias e

também na escola, com as crianças e professoras, houve sempre o momento em

que os papeis se invertiam e eu passava a ser entrevistada. Como notado por

Caldeira (1981), a relação de pesquisa acaba por estabelecer uma relação de troca,

pois o entrevistado quer saber a opinião do pesquisador sobre determinado assunto,

sobre sua vida, sua família, seu trabalho. Em uma das famílias que visitei, quando

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perguntava a uma senhora o que ela costumava preparar no almoço e no jantar, ela

respondeu comentando as preferências do esposo e dos filhos, para depois me

perguntar: e vocês, o que comem? O que plantam na horta? E na medida em que eu

comentava sobre o modo de preparar a comida em minha casa e a respeito dos

alimentos que dispunha na horta, ela traçava um paralelo do que tínhamos em

comum em relação a essas atividades, assim como a respeito das preferências

alimentares das duas famílias. Considero esses momentos ricos, pois observei que

à medida que meus interlocutores conheciam mais de meu cotidiano e família, iam

contando sobre suas vidas, buscando na memória práticas alimentares já

esquecidas.

Entre os desafios em utilizar-me da observação participante, além da timidez

em fazer uma foto ou anotar algo no caderninho de bolso, com receio de causar

algum desconforto junto aos interlocutores, tinha de manter sempre em mente o

alerta de Velho (1978): ainda que se possua familiaridade com o cotidiano do grupo,

isso não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo destes. Nas

palavras do autor:

[...] O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p.39).

O fato de ter nascido e passado minha infância no meio rural e de, mais

tarde, ter voltado a morar na colônia, foi o fator facilitador de minha aproximação

com o grupo. No entanto, a dificuldade estava em voltar um olhar de estranhamento

para o ambiente da cozinha, do cotidiano, do trabalho dessas famílias, pois para

mim era tudo familiar: as falas ou o modo de preparar determinada receita remetiam

à colônia, onde moro. À medida que desenvolvia o exercício de questionar, mesmo

quando supunha saber a resposta, iniciava o processo de estranhamento. Assim, “o

processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de

confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e

interpretações existentes a respeito de fatos, situações” (VELHO, 1978, p.45).

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No processo de estranhar o que me era familiar ou “transformar o familiar

em exótico” (Da Matta,1987), estava eu, certo dia, sentada no ônibus que segue

para a colônia quando percebi uma senhora que, enquanto o ônibus estava

estacionado ao lado do Restaurante Buchweitz – ponto de chegada e partida dos

ônibus da colônia de Pelotas, no centro da cidade de Pelotas –,entrava no ônibus

com uma caixa de papelão na mão, oferecendo balas de goma, rapaduras de

amendoim e leite, merenguinhos, salgadinhos e chicletes. Um número significativo

de passageiros costuma comprar algo dessa senhora, seja para comer na viagem,

seja para levar a alguém da família que ficou em casa. O fato é que, desde 2006,

transito regularmente entre a colônia e a cidade e, desde então, essa senhora me

oferece “3 balas de goma [pacotinho] por R$ 1,00”. Mas o que quero comentar é que

apenas neste ano, ao iniciar a pesquisa de campo, é que atentei para a senhora e

as relações que se estabelecem entre ela e os passageiros do ônibus, colonos.

Assim, cabe destacar, como dito por Roberto da Matta (1987, p.157-8), a

importância em “tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social

específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social familiar e

assim descobrir [...] o exótico no que está petrificado dentro de nós pela reificação e

pelos mecanismos de legitimação”.

No decorrer da pesquisa, acompanhei a preparação e realização da festa

religiosa em homenagem à padroeira da comunidade católica de Sant‟Ana, a festa

do Dia do Vinho (4ª e 5ª edições), o Café Colonial Dançante, bem como outras

atividades organizadas no salão da comunidade, como o bingo realizado pela Escola

de Ensino Médio da Colônia Maciel. Nas festas, passei a fazer parte do grupo de

trabalho, assumindo novas tarefas a cada festa, o que me possibilitou, como uma

das mulheres que trabalha na cozinha, transitar tanto pela cozinha como pelo salão,

deixando de atrair tanta atenção como nas primeiras incursões a campo. Trabalhar

nas festas proporcionou-me entender os significados de cada ação realizada

naquele espaço, sentir o corpo doer pelo cansaço físico, ao final da jornada, já na

madrugada do dia seguinte, quando permanecem na cozinha apenas poucos casais,

acertando as contas. Trabalhar nas festas proporcionou-me também sentir-se e ser

reconhecida como parte do sucesso da festa: o olhar e sorriso dessas pessoas

permitiram-me apreender o significado de um mutirão, conformado no trabalho e nas

relações de reciprocidade.

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Partindo da cozinha do salão, segui para a cozinha de algumas das

mulheres que trabalham nas festas comunitárias e residem nas colônias Maciel e

São Manoel, para tentar apreender os significados da comida em seu cotidiano. Na

maioria das casas que visitei, permaneci durante um dia de trabalho da família,

participando da preparação das refeições, sempre elaboradas pelas mulheres

(esposas, mães). Nessas ocasiões, enquanto aguardavam a comida ficar pronta, o

pai e/ou filhos que costumar tomar chimarrão1 antes da refeição, serviam o

chimarrão, conversando sobre os diversos assuntos do dia-a-dia da colônia. As

visitas foram agendadas anteriormente, nas festas ou por telefone, com a

preocupação em saber o melhor dia da semana para que os anfitriões me

recebessem. Em algumas casas, optei por ficar apenas meio dia, por perceber que

havia muito trabalho e notar que, mesmo propondo-me a acompanhá-los em sua

rotina, eles se preparavam para receber-me como visita. Foi assim que tentei

aproximar o olhar do cotidiano das famílias estudadas: em conversas e, em algumas

ocasiões, na ordenha das vacas, na transferência das vacas de um pasto para outro,

na visita ao pomar de pêssegos, no engarrafamento do vinho, lavando a roupa,

alimentando os frangos no aviário ou, ainda e principalmente, na cozinha.

Na Escola de Ensino Fundamental Garibaldi2 o contato se deu através das

atividades das oficinas de resgate de hábitos alimentares, inseridas no projeto de

pesquisa “Cultura, patrimônio e segurança alimentar entre famílias rurais:

etnografias de casos significativos”. Nessa escola estudam crianças vindas de várias

localidades, como as Colônias Maciel e São Manoel, sendo que entre os alunos

estão filhos e netos das famílias que trabalham nas festas da comunidade. As

atividades foram desenvolvidas junto a uma turma da 7ª série e outra da 3ª série. O

trabalho mesclou práticas de cozinha com atividades de desenho, descrição, registro

de receitas de família e conversas sobre hábitos alimentares. A equipe que

desenvolveu essas atividades era composta por alunos e professores dos cursos de 1 O chimarrão (ou mate) é uma bebida característica da cultura do Estado do Rio Grande do Sul, um

hábito legado pelas culturas indígenas. A bebida é consumida diariamente pelas famílias,

principalmente antes do café da manhã, almoço, jantar e quando recebem visitas.

2 Cabe destacar que os dados apresentados referente à Oficina de Resgate de Hábitos Alimentares,

na Escola Garibaldi, não serão aqui aprofundados em função de que as atividades acompanhadas,

até o momento de elaboração deste trabalho, foram preliminares. Sendo aprofundado em um

segundo momento com a inserção da equipe nas famílias das crianças para identificar e

compreender como os hábitos e práticas alimentares fazem parte do modo de vida destas famílias.

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antropologia, geografia, nutrição e gastronomia. O primeiro contato com a direção e

coordenação da escola ocorreu no final de maio de 2011, ao qual seguiu-se, no mês

de junho, uma reunião entre a equipe e a direção da escola. Já em junho participei

da festa junina da escola, primeira aproximação com as crianças, quando procurei

analisar as comidas que compunham o “cardápio” dessa festa. Os encontros da

oficina ocorreram de agosto a novembro de 2011, com periodicidade quinzenal (com

algumas lacunas, decorrentes de feriados e outras atividades da escola).

No intuito de apreender os saberes e práticas alimentares mantidos pelas

famílias, assim como os presentes nos momentos festivos, utilizei-me também do

registro fotográfico, no intuito de tentar “aprender [para] depois apresentar”

(GEERTZ, 1978, p. 20) os resultados das interpretações. Como atenta Oliver Sardan

(1995) apud Guran (1997), a fotografia faz parte do momento de impregnação, em

que vivenciamos o cotidiano da comunidade e começamos a “perceber alguma

coisa” sem, entretanto, saber exatamente do que se trata.

Ao longo do trabalho de pesquisa, recorreu-se, assim, a diversos

instrumentos: diário de campo, registro fotográfico, desenhos e cadernetas com

registros elaborados pelas crianças que participaram das oficinas da Escola, análise

de documentos históricos e pesquisa bibliográfica.

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2. FORMAÇÃO HISTÓRICA: UM OLHAR SOBRE A COLONIZAÇÃO

Para tentar apreender as relações sociais, culturais e econômicas que

atualmente apontam para a constituição de uma italianidade nas colônias Maciel e

São Manoel, torna-se necessário entender o processo histórico que levou os

imigrantes italianos a se estabelecerem na região colonial do município de Pelotas.

Para tanto, parte-se do processo de ocupação do Rio Grande do Sul, seguido do

município de Pelotas, com destaque para as colônias Maciel e São Manoel.

2.1 RIO GRANDE DO SUL: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

O processo de ocupação e apropriação do território do Rio Grande do Sul

teve início no século XVII, por volta de 1626, pelos jesuítas a serviço da Coroa

Espanhola. Cabe destacar que, anteriormente à chegada dos jesuítas, este território

era ocupado por população indígena, que seria catequizada e orientada para o

trabalho agrícola por jesuítas espanhóis.

No início do século XVIII, ocorreu a ocupação portuguesa. Visando garantir a

posse e defesa das terras, localizadas ao sul de sua colônia, a Coroa Portuguesa

instalou acampamentos militares, construiu fortes e organizou a distribuição das

terras - sesmarias (com áreas de até 13 mil hectares) cedidas a pessoas de

prestígio, militares e tropeiros. As sesmarias eram destinadas à criação de gado,

dando origem às grandes estâncias. Neste contexto, Heidrich (2000) enfatiza que

As regiões formadas nesse período constituem territórios de domínio oligárquico, embora estivessem sujeitos à administração centralizada da Coroa. Ocorre que, em grande parte, esse domínio realizou-se com o consentimento dela própria, pois assim estabelecia meios de fixar não apenas populações, mas, principalmente, formas de exploração territorial que lhe retornavam em ganhos econômicos naquele sistema colonial. O mecanismo de concessão de sesmarias era uma das formas de se cumprir essa função. (HEIDRICH, 2000, p.55).

Neste processo de ocupação do território, bandeirantes paulistas se

instalaram e iniciaram o povoamento das áreas de campo, dando origem ao ciclo

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pastoril, em que se efetivou a formação das sesmarias, quando foi criado o primeiro

núcleo de povoamento português. Na segunda metade do século XVIII, teve início a

colonização açoriana nos campos sulinos, a partir da distribuição de cartas de data.

As cartas de data se diferenciavam das sesmarias, pois se restringiam a áreas de

372 hectares, destinadas, principalmente, à produção de alimentos e cultivos

agrícolas (PESAVENTO, 1985). Neste período, destaca-se o surgimento das

charqueadas garantindo a produção de charque3, tendo grande importância no

desenvolvimento das estâncias e do ciclo pastoril. Ainda no século XVIII, depois dos

colonizadores lusitanos praticamente dizimarem a população indígena4, baseada

numa economia de pecuária, o governo imperial vislumbrava outra forma de

ocupação do Rio Grande do Sul, como destacam Magnoli et al. (2001),

[…] o governo imperial queria ocupar as terras do sul do país de uma forma diferente da que vinha sendo usada pelos colonos portugueses até então: colonização centrada na criação de gado em grandes latifúndios e com o uso de mão-de-obra escrava. O interesse era pelo cultivo da terra em lugar da pecuária do trabalho escravo. (MAGNOLI et al., 2001, p. 40)

No século XIX, em 1824, ocorre a chegada da primeira leva de imigrantes

alemães, primeira colonização européia não-portuguesa introduzida no Rio Grande

do Sul. O governo imperial estimulou o assentamento de colonos europeus visando

a “vinda de famílias, capazes de produzir alimentos, além das razões político-

militares tradicionais do reino” (WOORTMANN, 1995, p.104), assim preenchendo os

vazios demográficos e econômicos deste Estado. Como aponta Woortmann (1995):

O processo de ocupação pelos colonos interessava ao capital num duplo sentido: a valorização das terras e a comercialização da produção. Realizando o objetivo da Lei de Terras, datada de 1850, a colonização transforma terras devolutas em mercadoria, cria um campesinato parcelar, ao mesmo tempo em que expropria o posseiro. (WOORTMANN, 1995, p. 98). [grifos da autora]

3 O charque consiste em carne de gado salgada e seca ao sol, produto que deu nome às estâncias –

Charqueadas –, que tinham como atividade econômica a produção e comercialização de charque, couro e sebo.

4 Cabe destacar que no discurso de ocupação e apropriação do Rio Grande do Sul, os índios não são

considerados povoadores do território, sendo associados à natureza, à “qual se opõe a civilização que os imigrantes trazem. Assim: índios→mato→natureza X imigrantes →colonização→civilização” (SANTOS, 2004, p. 39).

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Os primeiros imigrantes foram assentados em glebas de terra situadas nas

proximidades de Porto Alegre, “em cujas proximidades havia abundância de terras

devolutas, era uma cidade a reclamar abastecimento de alimentos, o que foi

assegurado com a criação da Colônia São Leopoldo” (WOORTMANN, 1995, p. 103),

praticando uma agricultura em pequenas propriedades voltada à produção de

alimentos.

Após a criação da Colônia São Leopoldo, outras colônias alemãs foram

fundadas no Rio Grande do Sul, estabelecendo-se em áreas de floresta, pois os

imigrantes acreditavam que estas áreas eram as propícias para agricultura, com

função de produzir alimentos, sendo que:

A atividade de todas as colônias e de todos os seus habitantes, pelo menos no começo, era a cultura de subsistência, sobretudo de milho, do feijão-preto e da batata. Nessa época, firma-se entre os colonos a idéia de que as únicas terras propícias para a agricultura são de florestas. (ROCHE, 1969, p.13).

As colônias tinham como caráter marcante a atividade econômica

desenvolvida a partir da agricultura policultora de base familiar, como destacado por

Salamoni (2001),

O tipo de economia colonial implantada pelos imigrantes alemães teve como característica marcante o estabelecimento da policultura a qual, segundo a tradição alemã, deveria solidificar o caráter independente dos colonos. Ao lado disso, o trabalho familiar serviria para reforçar essa idéia de independência, uma vez que não se utilizava mão-de-obra externa entre os colonos. Todos os membros da família envolviam-se nas tarefas domésticas e na produção agrícola a fim de alcançar a autonomia econômica. (SALAMONI, 2001, p.32).

Com a regulamentação da lei provincial de 1848 ocorreu uma série de

modificações estruturais, como a redução dos lotes cedidos aos colonos5, assim:

5 Estes imigrantes alemães e, mais tarde, os italianos, pomeranos, franceses, etc, serão denominados

de colonos, pois “para o Estado, eram colonos todos aqueles que recebiam um lote de terras em áreas destinadas à colonização” (SEYFERTH, 1992, p.80). Para esta autora (1992, p.80), “colono é a categoria designativa do camponês (...) e sua marca registrada é a posse de uma colônia (...) a pequena propriedade familiar”. Assim, no sul do Brasil, reconhecem-se e são conhecidos como colonos os agricultores descendentes de imigrantes europeus em que a identidade de colonos converte-se em um símbolo de diferenciação étnica.

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A Lei de Terras e o capital imobiliário privado fizeram da terra um “bem limitado”, uma mercadoria, mediado pelo dinheiro dependente do capital comercial. A partir desse período acentua-se a migração de filhos de colonos para novas áreas. [...] Após a república, a área vendida se reduz a 25 hectares por família, forçando as gerações seguintes a se deslocarem para outras regiões do país. (WOORTMANN, 1995, p.100).

Assim, além da redução do lote e o prazo máximo de cinco anos para o

pagamento deste, ocorre o deslocamento dos filhos dos colonos pioneiros, em que

“o „espírito de parentesco‟ faz com que a migração se faça através de grupos de

parentes (irmãos, primos, etc., assim como afins) que irão replicar o modelo em

outro lugar – para, em seguida, recomeçar tudo de novo”. (WOORTMANN, 1995,

p.116).

A partir de 1870, o Brasil encontrava-se no auge do ciclo do café, principal

produto de exportação, recolocando ao governo a necessidade em reativar as

campanhas de imigração6. Neste período, a Itália passava por transformações

sociais, o norte estava se industrializando rapidamente, seguindo a trajetória do

capitalismo industrial que caracterizava a Europa do período. Em 1875, o governo

imperial incentivou a vinda de colonos italianos para o Rio Grande do Sul, com

interesse voltado à produção de alimentos para o abastecimento interno. Essa

colonização compunha-se, também, uma estratégia de “branqueamento” da

população brasileira.

Os imigrantes italianos chegam em condições mais adversas que os

imigrantes alemães. Os imigrantes que chegaram após 1854 tiveram que pagar

pelas terras, dada a Lei Provincial de Terras. Como esclarece Pesavento (1985);

No que diz respeito aos italianos que ingressaram a partir de 1875, chegaram à província em uma situação de desvantagem se comparada com à dos alemães, 50 anos antes. As melhores terras já se achavam ocupadas e coube aos italianos receber lotes ainda menores (25 ha) na encosta da

6 Cabe destacar que a chegada de imigrantes italianos na região sudeste e, particularmente, no

estado de São Paulo, se diferencia da formação das colônias no sul do Brasil. Ocorreu, por parte do governo, um estímulo para que os fazendeiros de São Paulo promovessem a vinda de imigrantes estrangeiros para trabalhar nas lavouras de café. Como destaca Szmrecsányi (1900), além da nova origem dos colonos, em sua maioria originários do norte da Itália, ocorreram alterações na relação imigrante-fazendeiro: “tratava-se da participação dos primeiros (imigrantes) na lavoura cafeeira desde o seu início – isto é, a partir da formação do cafezal - com a permissão de usarem os espaços intercalares para o cultivo de gêneros de subsistência” (SZMRECSÁNYI, 1900, p. 46), dando origem ao chamado colonato paulista, que se manteve inalterado até meados do século XX.

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serra. O lote era vendido a crédito e o prometido subsídio para alimentação que seria concedido por um ano foi cancelado. A única ajuda com que o imigrante italiano contou foi aquela advinda do trabalho remunerado de 15 dias por mês na abertura de estradas. (PESAVENTO, 1985, p. 50).

A instalação das primeiras colônias de imigrantes italianos ocorreu “na zona

da mata, entre a região dos Campos de Cima da Serra, (onde predominava a

pecuária dos descendentes de portugueses), a Depressão Central (onde estavam os

alemães) e a Campanha”. (ANJOS, 2000, p.65). Como ressalta Santos (2004),

As primeiras colônias na encosta superior do nordeste do Rio Grande do Sul foram as de Conde d‟Eu e Dona Isabel, na região onde atualmente estão localizados respectivamente, os municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves. Estas colônias foram criadas pela presidência da província em 1870, antes que se iniciasse o processo de imigração italiana no estado. Para ocupá-las, o governo provincial firmou contrato com duas empresas privadas, que deveriam introduzir quarenta mil colonos em um prazo de dez anos. (SANTOS, 2004, p. 41).

Inicialmente, a ocupação deu-se por um pequeno número de imigrantes7,

somente a partir de 1875 é que se efetivou a formação destas colônias, sob a

administração da União. As primeiras levas de italianos vieram das regiões do

Piemonte e Lombardia e, mais tarde, do Vêneto. Instalaram-se na região fisiográfica

da Encosta Superior e Inferior da Serra, tendo como atividades econômicas o cultivo

da uva e a produção de vinho, como relatado por Fausto (2000), a seguir.

Pequenos cultivadores procedentes em sua maioria do Tirol, do Vêneto e da Lombardia estabeleceram uma série de colônias, das quais a de Caxias foi a mais importante. A atividade econômica dos italianos, além de seguir alguns caminhos semelhantes a dos alemães, especializou-se no cultivo da uva e na produção do vinho. Entre 1882 e 1889, em um total de 41.616 imigrantes que ingressaram no Rio Grande do Sul, 34.418 eram italianos. (FAUSTO, 2000 apud SANTOS, 2004, p.38).

Dentre as colônias criadas, a primeira foi Caxias, em 1875. Posteriormente,

“Alfredo Chaves em 1884, Silveira Martins, Mariana Pimentel, Barão de Triunfo e

7 De acordo com Woortmann (1995), neste período “a quantidade relativamente pequena de

emigrados para o Brasil explica-se, pelo menos em parte, pelo impacto negativo causado pelas notícias de semi-escravização de suíços, alemães e italianos nos cafezais paulistas (...). Além disso, a Europa, apesar da Revolução Liberal de 1848 que provocou a fuga de várias pessoas e de outras que se seguiram até 1870, procurava reter sua população. (WOORTMANN, 1995, p.105).

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Vila Nova em 1887, Antônio Prado em 1888 e Guarani em 1889” (ANJOS, 2000,

p.65).

As motivações que levaram à travessia destes imigrantes estavam

relacionadas tanto à pressão demográfica como a guerras e doenças, mas também

ao padrão de herança – aos não-herdeiros, cabe o mundo, segundo Woortmann

(1995). A colonização ítalo-alemã concentrou-se na metade norte do Estado do Rio

Grande do Sul (Fig. 01), que foi ocupada principalmente por agricultores familiares e

artesãos, seguidos por seus descendentes que, mais tarde, ocupariam o sul do

Estado, caracterizando uma estrutura agrária baseada na agricultura familiar em

pequenos lotes de terra. Assim,

O norte define-se pela economia de base agrícola. É a região que sofreu transformação substancial na estrutura agrária, a qual, de uma oposição marcante entre grandes estabelecimentos em zona de campo e minifúndios em zona de mata, evoluiu para a formação de granjas e o predomínio de pequenos e médios estabelecimentos agrícolas. (HEIDRICH, 2000, p. 105).

Figura 01: Mapa ilustrativo do Estado do Rio Grande do Sul, retratando a divisão norte-sul Fonte: FEE, 2011.

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2.2 MUNICÍPIO DE PELOTAS: ASPECTOS HISTÓRICO-ESPACIAIS

O contexto histórico-espacial do município de Pelotas, até a segunda

metade do século XIX, compreendia uma extensa faixa territorial representada pelo

compartimento geomorfológico denominado Serra dos Tapes em referência ao

grupo indígena que ocupava anteriormente essa área, abrangendo o que atualmente

são os municípios de Pelotas, Morro Redondo, Capão do Leão, Arroio do Padre,

Turuçu e São Lourenço do Sul. Essa delimitação geográfica e histórica passou a ser

utilizada para identificar a zona colonial situada nos municípios mencionados

anteriormente. Neste contexto, Coaracy (1957) descreve as áreas destinadas à

formação das colônias como um relevo escarpado e por desbravar:

Por trás de duas estâncias, subindo os suaves declives da chamada Serra dos Tapes, uma sucessão de coxilhas mansas, desdobrava-se a mata virgem sobre um solo rico de húmus. Pelas fímbrias da mata, aqui e ali, esparsas, algumas poucas taperas, vestígios abandonados de roças frustras. (COARACY, 1957, p. 37)

Sendo, então, na Serra dos Tapes que se instalaram as colônias de

imigrantes europeus não portugueses, compondo um “mosaico cultural” de tradições

étnicas e paisagens naturais de matas e serras. (VERGARA, 2010).

Por volta de 1736, foram concedidas as primeiras sesmarias a ex-tropeiros e

militares que haviam participado da luta pela fixação das fronteiras ao sul do Brasil.

Foram ocupadas zonas do litoral, centro e fronteiras sul e oeste, conhecidas como

“terras de campo”, onde foi desenvolvida a pecuária extensiva. Cada propriedade

desse gênero tinha de 11 a 13 mil hectares de extensão. Neste contexto, o

município de Pelotas teve na criação da primeira charqueada a origem do

povoamento e da atividade econômica do charque. Entretanto, como aponta Grando

(1990), a produção diversificada de caráter familiar introduziu novas formas de

organização socioespacial no município:

O desenvolvimento do campesinato em Pelotas representa o início da diversificação econômica da região. Ali a primeira charqueada fundada no Rio Grande do Sul, em 1780, deu origem ao povoamento. Durante quase um século, a pecuária extensiva permaneceu como ocupação dominante

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daquele povo, até serem introduzidas a policultura e a pecuária de pequeno porte pelos colonos europeus. (GRANDO, 1990, p.44).

Assim, ao lado das charqueadas, o povoamento de Pelotas guarda em sua

história a presença da pequena propriedade, resultado da ocupação por imigrantes

procedentes das ilhas dos Açores, Madeira e Ilhéus que, posteriormente, foi seguida

por imigrantes europeus de origem não-portuguesa. Este tipo de colonização foi

estabelecida com base em uma estrutura fundiária formada por lotes com extensão

que não ultrapassava 50 hectares.

Com a instalação da primeira charqueada, em 1780, outorgada a Tomaz

Luiz Osório, Pelotas cresceu rapidamente, obtendo o título de Freguesia de São

Francisco de Paula (1812), passando a Vila de Pelotas8 (1832) e a cidade de

Pelotas (1835). Em 1853, Pelotas possuía 38 charqueadas e 37 olarias, constituindo

o período em que se dá o apogeu de sua aristocracia, com a comercialização de

charque como principal atividade econômica, que serviu à alimentação das tropas

nas guerras dos Farrapos (1835 – 1845) e do Paraguai (1864 – 1870) e, mais tarde

abasteceu a mão-de-obra escrava alocada na exploração do ouro, em Minas Gerais.

No século XIX configurou-se uma enorme crise nas atividades das

charqueadas, ocorrendo uma nova etapa de diversificação econômica no município

de Pelotas. Tendo como alternativa a mudança de atividade da pecuária para os

cultivos agrícolas, conforme esclarece Grando (1990),

Os empresários do setor procuraram então transferir os recursos produtivos para outras atividades mais lucrativas. Encontraram boa alternativa na formação de lavouras capitalistas de arroz. Foi quando, pioneiramente, pecuaristas transformaram suas terras de pastagens em extensas lavouras, quer como exploradores diretos,quer como arrendadores. (GRANDO, 1990, p.44).

Ainda no século XIX, os charqueadores, estancieiros e comerciantes

voltaram seus interesses às terras de mato do então município de Pelotas (Fig. 02),

tomando posse delas com o “objetivo inicial de extrair a madeira e,

esporadicamente, formar pequenas lavouras, ainda ambas as atividades baseadas

na mão-de-obra escrava” (ANJOS, 2000, p.68). Mais tarde, ali desenvolveriam

8 O nome Pelotas é originário das rústicas embarcações utilizadas pelos nativos na travessia dos rios,

confeccionadas, em formato redondo, com couro bovino e quatro varas.

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atividade mais lucrativa: a formação de colônias de imigrantes europeus não-

portugueses (ANJOS, 2000). O “crescimento populacional do município de Pelotas

ocorreu, sem dúvida, em função da colonização sobre as áreas de serras ao norte,

uma vez que a faixa litorânea, ocupada pelas estâncias e pelos campos de criação,

mantinha-se com uma população escassa” (SALAMONI, 2001, p.38).

Figura 02: Mapa do município de Pelotas (1911) - grande extensão de terras de mato, em que se instalaram os imigrantes, formando as colônias. Fonte: GRANDO, 1990, p. 75.

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No bojo deste processo, a produção familiar foi introduzida em Pelotas,

gerando a formação, lado a lado, de duas sociedades rurais, que se caracterizam

por desenvolver atividades econômicas diferenciadas e que ocupam áreas

topograficamente distintas: a planície, ao sudeste, e a serrana, a noroeste. Assim,

Na primeira, localizaram-se as grandes propriedades dos estancieiros e charqueadores, sustentadas economicamente pelo braço escravo, na segunda, multiplicaram-se as pequenas propriedades, destinadas ao assentamento de imigrantes europeus, que iriam praticar, num primeiro momento, a policultura e a pecuária de subsistência. (ANJOS, 2000, p.67).

No que se refere à ocupação de áreas do município pelos imigrantes

europeus, segundo relata Grando (1990), no Rio Grande do Sul a colonização foi

levada a cabo pela iniciativa privada antes mesmo da Lei Imperial de 1850. A autora

explica o processo:

A iniciativa partiu da administração municipal de Pelotas, interessada em introduzir a agricultura na economia do Município, a qual se encontrava centrada na pecuária e na indústria do charque. Tais atividades se localizam nas campinas, as quais, ocupando a maior parte do Município, se estendiam no sentido do leste para o sul de seu território. Para isso, o Governo Provincial autorizou, em 1848, a criação de uma colônia agrícola – denominada Colônia São Francisco de Paula –, que, todavia, nunca foi criada por ter o Presidente da Província, um ano após julgado-a inoportuna. (GRANDO, 1990, p.68-9).

Assim, a tentativa de criar uma colônia neste período foi fracassada, sendo

que dados do ano de 1867 constam que da tentativa de criação das Colônias Monte

Bonito e Colônia D. Pedro II “restavam poucas famílias irlandesas, ocupadas com a

lavoura e o fabrico de manteiga. O desaparecimento dessas duas colônias foi

atribuído ao fato de os imigrantes serem mais artífices do que agricultores”

(GRANDO, 1990, p.70).

O processo colonizador do município é reativado no início da década de 80

do século XIX, sob iniciativa do Governo Geral, que cria três núcleos: Accioli, Afonso

Pena e Maciel. Neste mesmo período, “a Câmara Municipal de Pelotas realizando

uma antiga aspiração, criou uma colônia, denominada Municipal, comprando 2.497

ha de terras de particulares e repassando-as em lotes de 30 hectares, em média, a

agricultores brasileiros” (GRANDO, 1990, p.71). Teve, assim, início a distribuição

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das terras de mato da Serra dos Tapes. No entanto, essas três colônias

encontravam-se afastadas da cidade de Pelotas e sem vias de comunicação, o que

dificultou e retardou o processo de sua consolidação.

No decorrer dos anos, intensificou-se a ocupação das primeiras áreas

coloniais, configurando o atual cenário da colônia de Pelotas,

Toda a Serra foi dividida em pequenas propriedades, as picadas multiplicavam-se e nelas o movimento crescia. Estabeleceu-se ali uma corrente de imigrantes, que geralmente não chegavam diretamente da Europa. Eram originários das colônias situadas mais ao norte do Rio Grande do Sul, sendo, na sua maioria, alemães. Mas afluíram para lá também espanhóis, austríacos, franceses e italianos, muitas vezes vindos mesmo de outras províncias. (GRANDO, 1990, p.73).

Neste contexto, entende-se que

[...] a colonização da região da Serra dos Tapes se deu através de dois processos distintos: a imigração espontânea que transcorreu ao longo de algumas décadas e a imigração organizada (por particulares ou pelo governo). Nos dois casos temos a participação de agentes que recrutavam imigrantes a serviço das sociedades promotoras da imigração, e também do governo. (PEIXOTO, 2003, p.8).

Com a ocupação da Serra dos Tapes, entre as atividades agrícolas

desenvolvidas destaca-se a fruticultura, sendo praticada por sucessivas gerações,

baseada em “um sistema de culturas sobre queimadas, após a derrubada do mato

virgem, ateavam fogo e em seguida, preparavam a terra só com o uso da enxada”.

(GRANDO, 1989, p.66).

Dentre as espécies produzidas, destacou-se a produção de pêssego. Como

esclarece Salamoni (2001), o cultivo de pêssego teve grande importância na

economia do município.

Convém salientar que o pêssego permaneceu por muito tempo como uma das culturas de maior importância econômica dessa região. Em decorrência da instalação de indústrias conserveiras, por volta da década de 50, os agricultores foram incentivados a modificar seus sistemas de cultivo, passando a produzir, ao lado das culturas tradicionais de subsistência, matérias-primas como o pêssego, aspargo, milho-doce, morango e ervilha. (SALAMONI, 2001, p. 33).

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A região em que predominou a imigração italiana caracterizou-se pelo cultivo

da uva e produção do vinho, porém “as mudas trazidas pelos imigrantes italianos

não sobreviveram, por este motivo passaram a produzir o vinho com uma uva

americana do tipo Isabel, trazida da Califórnia”. (PANIS, 2009, p. 80).

As principais estradas de acesso à área colonial eram as estradas de Santo

Amor (Retiro) e Monte Bonito, sendo que a primeira comunicava a colônia com o

município de Canguçu, atravessando a Serra dos Tapes, fazendo ligação, também,

com o município de São Lourenço do Sul. A estrada do Monte Bonito dividia-se,

depois do Arroio Pelotas, em duas ramificações, “uma atravessava a Colônia Santo

Antonio, chegando a Colônia Municipal, outro atravessava as colônias Santa Helena

e Maciel, encontrando a estrada que segue para Canguçu” (ANJOS, 2000, p.75).

Por essas estradas era escoada a produção das colônias, como registrado, em

1898, por Carl Ullrich9,

A pequena distância da cidade implica no fato de que, salvo poucas exceções, cada colono leve, com meios de transporte próprios, seus produtos diretamente para o mercado. Lá ele vende diretamente ao exportador, com freqüência aos próprios consumidores, fugindo assim completamente da exploração inescrupulosa dos intermediários. As carroças são de 4 rodas, fortemente construídas e produzidas aqui nas próprias colônias. (ULLRICH, 1999, p.143).

Cabe destacar que esse autor menciona a proximidade das colônias

referindo-se às que se localizavam a poucos quilômetros da cidade de Pelotas. No

entanto, instalaram-se colônias bem mais distantes da cidade. Com relação à

configuração da vida familiar nas colônias, organizou-se, como relatado por Ullrich

(1999):

Os filhos trabalham até o casamento como agregados na casa do pai, igualmente as filhas. O chefe da família se encarrega de todos os negócios. Dinheiro, as crianças recebem só raramente e pouco. Tudo o que entra vai para a caixa da família. Tão logo um filho deseja casar, será comprado um pedaço de terra, se for um dos rapazes, e será organizada a economia para

9 Carl Otto Ullrich era um imigrante alemão e fixou residência na colônia Santo Antônio, onde exerceu

as funções de professor primário, agrimensor e pastor evangélico. Este texto foi publicado em Berlim no ano de 1898, com a finalidade de informar e estimular a vinda de imigrantes para o Brasil. O autor descreve a região da serra de Tapes (RS), enfocando principalmente a colônia Santo Antônio – Pelotas, sobre as condições de vida dos agricultores, a produção e as possibilidades de transporte e comércio, reforçando os lotes disponíveis à venda, suas localizações e preços e, ainda, sobre as terras não loteadas.

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o respectivo. Se for uma moça, será juntado uma soma como dote. (ULLRICH, 1999, p.145).

Atualmente, o município de Pelotas limita-se ao norte com o município de

São Lourenço do Sul, Canguçu, Turuçu, ao sul com o município de Rio Grande, a

leste com a Lagoa dos Patos, a oeste com o município de Capão do Leão, sendo

que no interior município de Pelotas originou-se o município de Arroio do Padre (Fig.

03). O município está, atualmente, dividido em nove distritos, de acordo com a Lei

N° 5.490, de 24 de julho de 2008.

Figura 03: Mapa do Rio Grande do Sul com destaque para o município de Pelotas, seguindo, em destaque, o distrito de Rincão da Cruz, no qual se localizam as colônias Maciel e São Manoel. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

2.2.1 COLÔNIA MACIEL

A colônia Maciel foi criada pelo governo provincial entre 1881 e 1882, mas o

processo de ocupação teve seu início em 1883 e 1884, sendo a única colônia

imperial na região (ver localização na figura 03). Por estes núcleos localizarem-se

afastados da cidade de Pelotas, com dificuldade de comunicação, neste primeiro

momento não ocorreu uma significativa ocupação por parte dos imigrantes na

colônia Maciel, sendo que “em 1888, haviam desembarcado em Pelotas 72

imigrantes, chamados por parentes já estabelecidos em núcleos coloniais, e que

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estes foram instalados em lotes de terras no núcleo Maciel, pois este era o único de

que se podia dispor” (PEIXOTO, 2003, p.10).

A fundação desta colônia está relatada nas primeiras páginas do Livro

Tombo da paróquia SantʼAna10, que registra o histórico de formação da Colônia

Maciel, incluindo a lista dos primeiros imigrantes italianos ali chegados (anexo1).

No ano de 1883 (ou 1884 - início da colonização) mais ou menos, mandaram ele dividir esta data de matos em lotes coloniais, e um ano depois introduzia alguns colonos (imigrantes) italianos da região do Vêneto, em sua maioria da Província de Treviso. No centro destas colônias, o governo mandou construir um Barracão, onde os emigrantes moraram por algum tempo, até colocá-los nos lotes coloniais. Aos primeiros que aqui chegaram deu um lote urbano, perto de onde construíram o dito Barracão. Mais tarde servia de capela. Na mesma ocasião o governo designou 4 lotes urbanos para o Cemitério da Colônia e um lote para a Igreja, que era o lote em que se achava o Barracão. Esta Colônia fica quase toda no quinto distrito de Pelotas, pela nova divisão dos municípios, de Pelotas e Canguçu. Foi nos anos de 1884 a 1886 que vieram os primeiros colonos, para a Maciel. Aqui escrevemos os nomes das famílias que começaram a povoar estas colônias e derrubar os matos. No primeiro ano, tiveram auxílio do governo tanto dos víveres, como das ferramentas para os trabalhos. (Livro Tombo Paróquia SantʼAna).

A Colônia Maciel foi fundada pelo governo imperial, em 1885, e em 1900

possuía 65 lotes com 55 famílias e 343 pessoas (ANJOS, 2000). Passou a ser sede

de paróquia em 1920, “dirigida por D. Giacobbe Lorenzet. Em 1925, habitavam na

Colônia Maciel 125 famílias. Em 1928 foi inaugurada a Escola Municipal Garibaldi”.

(PEIXOTO, 2003, p.14).

Carl Ullrich descreve a Colônia Maciel já em 1884, destacando a produção

de alimentos e a fabricação de vinho,

À esquerda de Santa Helena situa-se paralelamente, Maciel, uma colônia do governo de 50 lotes de 360.000 m2, habitada por 56 famílias italianas num mesmo número de casas. Há 5 casas comerciais, dois moinhos, uma escola da comunidade, uma escola do governo e uma igreja católica. A produção é de milho, feijão, tremoço, vinho, cevada, trigo, etc. Quanto à qualidade do vinho, é muito inferior à do vinho de Santo Antônio, porque a maioria dos produtores não se esforça muito na sua preparação e também

10

O livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, consta registros dos acontecimentos da comunidade, desde a chegada dos primeiros imigrantes italianos. Registrados pelos padres que estiveram a frente desta paróquia em diferentes períodos. Agradeço a secretária da paróquia, dona Maria, e ao padre Luis pela atenção e acesso ao livro.

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não tem os recursos e adegas necessários. A qualidade do solo é 1 e 2. Há muito pouco solo arável, sendo bastante acidentado, com muitas rochas e alguns lotes sem nenhuma terra arável. As estradas no interior da colônia são muito ruins. (ULLRICH, 1999, p.142). [Grifo do autor].

De acordo com Anjos (2000), os dados do recenseamento urbano de 1899

comprovam que, a partir de 1875, os italianos representavam o maior grupo de

estrangeiros não-portugueses em Pelotas. Em 1899, a população urbana de Pelotas

era de 26.312 habitantes, sendo que 654 imigrantes eram de origem italiana, 482

uruguaios, 457 espanhóis, 291 alemães.

2.2.2 COLÔNIA SÃO MANOEL

A Colônia São Manoel foi fundada em 1893, por Pedro Antonio Toledo,

sendo esta de caráter particular, com uma área inicial de 400 hectares,

compreendendo, em 1898, 104 lotes com 79 famílias alemãs e duas famílias

italianas e brasileiras, com uma população de 349 habitantes. Os principais cultivos

então realizados eram milho, feijão, batata inglesa:

À direita de Santa Helena situa-se a importante colônia São Manoel (Fazenda Três Barras), fundada em 1893 por Pedro Toledo. Foram medidos 104 lotes coloniais, dos quais 88 vendidos. Existem 50 ainda a serem medidos. São ótimos matos, muita madeira para construção, excelente terra para o cultivo. [...] A população consiste de 349 habitantes em 79 casas, todos alemães, com exceção de duas famílias brasileiras e italianas. Existe uma escola da comunidade alemã; em construção uma serraria (um alemão em sociedade com Pedro Toledo). Qualidade do solo 1; quase todo solo arável, levemente acidentado, pouco rochoso. Produtos: milho, feijão, batata-inglesa, tábuas, casca de árvore para curtume, etc. (ULLRICH, 1999, p.141). [Grifo do autor]

Das colônias instaladas no município de Pelotas, apenas algumas foram

colonizadas por novos imigrantes: Santo Amor, Maciel e Colônia Municipal. Ao

contrário, a maioria foi ocupada por colonos vindos de São Lourenço do Sul, Santa

Clara, Santa Silvana e, mais tarde, de Blumenau, em Santa Catarina (ULLRICH,

1999).

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Neste contexto, no processo de imigração para o Brasil, conformam-se o

histórico de formação e consolidação das colônias Maciel e São Manoel, ambas

situadas no Distrito de Rincão da Cruz11 – 8º distrito do município de Pelotas. E que,

mais tarde, povoaram outras colônias com descendentes de imigrantes italianos,

alemães, franceses, pomeranos, portugueses e descendentes de escravos e

indígenas12, configurando-se, assim, os aspectos histórico-espaciais (econômicos,

sociais e culturais) da região colonial de Pelotas.

11 O distrito de Rincão da Cruz - 8° distrito do município de Pelotas - é formado pelas seguintes

colônias: São Manoel, Maciel, Santa Helena, Rincão da Caneleira, Rincão da Cruz, Santa Eulália, Santa Maria (parte) e Santa Áurea (parte), Arroio Bonito (parte), Colônia Municipal (parte) e Colônia Dias (parte). Cabe salientar que esse distrito é marcado pela produção familiar, tendo atualmente como principais produtos o pêssego e o fumo. Foi colonizado, principalmente, por italianos (destacando-se as colônias Maciel, Rincão da Caneleira, Santa Eulália, Santa Maria) e também por alemães e pomeranos (São Manoel, Santa Helena, Colônia Municipal, Rincão da Cruz). 12 Vale mencionar que na Colônia Maciel atualmente vive uma família de indígenas Mybiá-Guarani.

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3 FESTA DE SANTʼANA E DIA DO VINHO NA COLÔNIA MACIEL: A “FESTA

ANTIGA” E A “FESTA À ANTIGA”

Ao pensar a festa, nos remetemos a inúmeros significados. Para Chiamulera

(2010, p.33), “a falta de definições precisas, a ambiguidade concernente ao termo e

sua difícil apreensão, por seu caráter efêmero, são características já apontadas em

estudos que têm as Festas como centro de seus questionamentos”. Neste sentido,

tentamos delinear o conceito de festa à luz dos estudos de Garinello (2001) e

Tedesco e Rosseto (2007). Para Tedesco e Rosseto (2007) a festa sempre

ritualizada constitui-se em

[...] um momento de situações profanas e sagradas, relacionais e grupais; em última instância, comunitárias; é o passado, ou algo do passado cotidiano e tradicional que busca manter e atualizar significações, expressar relações simbólicas, formatos societais, hierarquias, posições sociais, performance de grupos étnicos nacionais que buscam fortalecer um sentimento próprio de si mesmos, porém em correlação.(TEDESCO; ROSSETO, 2007, p.19).

A festa também define identidades, conformadas na relação entre o

tradicional e o moderno, ou seja, constitui-se como espaço de “produção de

memória e, portanto, de identidade no tempo e no espaço sociais” (GARINELLO,

2001, p. 972). Assim, tem-se a festa como produto do cotidiano. Nas palavras do

autor:

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá sempre num tempo e espaço definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluências das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. (GARINELLO, 2001, p.972).

Ainda, temos que “o sentido da festa e, portanto, da identidade que propõe e

produz, depende sempre dos participantes, eventuais ou desejados, cuja presença e

envolvimento determinam o sucesso e o significado último de qualquer festa”.

(GARINELLO, 2001, p. 974). Atentando para os significados e símbolos da festa e

tendo em vista estudos que as analisam em diferentes contextos (Santos, 2004;

Ramos, 2007; Wedig, 2009; Wedig, Ramos e Menasche, 2010; Chiamulera, 2010),

toma-se a observação de festas em comunidades rurais para tentar apreender as

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diversas relações que conformam o rural contemporâneo. Neste sentido, voltamos

nosso olhar para dois momentos festivos na Comunidade Católica Sant‟Ana: a Festa

de Sant‟Ana e a Festa do Dia do Vinho13. Cabe destacar que foram observados

outros momentos festivos nesta comunidade, mas não serão aqui especificamente

analisados por entender que essas observações serão contempladas nas

discussões das festas acima citadas.

Com o intuito de analisar as festas, por inúmeras vezes estive presente no

salão da comunidade para ajudar as mulheres que trabalham no preparo e

realização das mesmas. Foi no ambiente de reciprocidade, de trabalho e alegria,

que acompanhei o preparo das comidas e observei as relações de parentesco,

vizinhança e amizade que ali se renovam. Desde minha primeira inserção em

campo, em fevereiro de 2010, entendi que a confiança do grupo seria conquistada

através do trabalho desempenhado nas festas. Assim, a cada festa, o

reconhecimento de meu trabalho fazia com que assumisse “novo posto”. Na

preparação de minha primeira festa na localidade, a Festa de Sant‟Ana, as tarefas

consistiram em auxiliar: descascar batatas e cebolas, descascar frutas para a salada

de frutas, untar as formas para assar cucas e pães. Nas festas que se seguiriam – 4º

e 5º Dia do Vinho e Café Colonial Dançante –, eu seria escalada tanto para a

preparação como realização dos eventos, passando a portar avental e touca e a

circular pelo salão como uma das mulheres da cozinha, com as funções de repor a

comida no buffet, auxiliar o público e retirar a louça suja das mesas.

O trabalho nas festas proporcionou um olhar de dentro para fora, ou seja,

partindo do grupo para as relações que conformam a comunidade. Neste ambiente

pude circular pelos diversos grupos de homens e mulheres, conversar, ouvir, sentir

os cheiros das comidas, comer, trocar receitas, abraçar. Enfim, todos esses

momentos possibilitaram a posterior aproximação com o cotidiano das famílias.

Pensando na comida como perspectiva de análise e entendendo que esta

possui significados simbólicos e que a cultura não é estanque, pois passa por

13 Esta festa ocorre sempre à noite, com um jantar. Mas como a proposta esta vinculada ao Dia

Estadual do Vinho, comemorado anualmente no primeiro domingo do mês de junho, esta festa se intitula “Dia do Vinho”.

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contínuas atualizações e ressignificações, é que a festa de Sant‟Ana e a festa do Dia

do Vinho, ambas realizadas na Colônia Maciel, são constituídas como espaço

privilegiado de estudo para tentar apreender as motivações da constituição de

italianidade nas colônias Maciel e São Manoel.

Inspiramo-nos na perspectiva metodológica proposta por Bourdieu (2006) 14,

ao estudar o baile, no contexto de uma comunidade rural francesa nos anos 1960.

Ali o evento é tomado como ponto de observação, tendo em vista que:

[...] os bailes que periodicamente se realizam no bourg ou nos vilarejos vizinhos se tornaram a única ocasião socialmente aprovada de encontro entre os sexos. Em conseqüência, esses bailes oferecem uma ocasião privilegiada para se compreender a raiz das tensões e dos conflitos. (BOURDIEU, 2006, p.84).

Para esse autor, o baile do interior é tomado como palco de um verdadeiro

choque de civilizações, pois “nele é todo o mundo da cidade, com seus modelos

culturais, sua música, suas danças, suas técnicas corporais, que irrompe na vida

camponesa” (BOURDIEU, 2006, p. 85).

Assim, na localidade em estudo, coloca-se a atenção nos saberes e práticas

alimentares que conformam as festas e a comunidade rural, buscando analisar por

quem e para quem são produzidas. O olhar é, assim, conduzido para a Festa de

Sant‟Ana e para a festa do Dia do Vinho, à luz também do estudo realizado por

Champagne (1977) em uma aldeia francesa, em período posterior à modernização

da agricultura. A Festa de Sant‟Ana é aqui interpretada como uma “festa antiga”, por

constituir-se como uma festa “da comunidade”, em que laços de sociabilidade e

reciprocidade agem na conformação da mesma, marcada pela autonomia da

comunidade em sua organização: é uma festa pensada e realizada pela comunidade

e para a comunidade. Já a festa do Dia do Vinho é interpretada como uma “festa à

antiga”, por dirigir-se a um público externo, ancorando-se em motivações de ordem

econômica: é uma oportunidade de fazer negócios e divulgar a produção local de

vinhos.

14

Baseado em um estudo da cidade em que passou a infância (no Béarn, no Sudoeste da França), realizado nos anos 1960, publicada primeiramente sob o título Célibat et condition paysanne [Celibato e condição camponesa] em 1962.

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Nos contextos das festas observadas, a cozinha é assimtomada como

campo de estudo, uma vez que, como já disse Lévi-Strauss (1968, p.169, apud

WEDIG, 2009), a cozinha conforma-se em elemento cultural, dado que “tal como

não existe sociedade sem linguagem, tão pouco existe nenhuma que, duma maneira

ou doutra, não cozinhe pelo menos alguns dos seus alimentos”. Assim, partiu-se da

cozinha da comunidade e das relações do transformar o alimento em comida para

analisar as festas.

3.1 FESTA DE SANT’ANA, A FESTA ANTIGA

Esta festa acontece anualmente, no mês de fevereiro, em homenagem à

padroeira – Sant‟Ana15 – da comunidade católica da Colônia Maciel (Fig. 04), sendo

organizada pelas famílias das colônias Maciel, São Manoel, Santa Áurea, Municipal,

dentre outras localidades. A festa ocorre sempre em um domingo, iniciando com a

missa festiva, seguida de almoço, à tarde café colonial, baile e jogos e à noite baile

com discoteca (música eletrônica e outros ritmos).

Figura 04 - Igreja da Comunidade Católica Sant‟Ana e salão da comunidade. Fonte: autora, 2010.

15

Em trabalho anterior – Machado e Menasche (2010) –, essa festa foi já descrita e analisada.

Retoma-se aqui aquela reflexão, de modo a colocá-la em diálogo com a outra festa em estudo.

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A Festa de Sant‟Ana tem sua experiência relacionada ao trabalho em

mutirão, cuja frequência, no decorrer dos últimos anos, principalmente após a

modernização da agricultura, vem se reduzindo. Neste sentido, vale lembrar o

estudo de Cândido (1987), dedicado a caipiras do interior paulista de meados do

século XX, no qual destaca o trabalho em mutirão e a religião como elementos de

conformação do bairro rural, sendo o bairro compreendido como “o agrupamento

mais ou menos denso da vizinhança, cujos limites se definem pela participação dos

moradores nos festejos religiosos locais” (CÂNDIDO, 1987, P. 71). Para esse autor

compartilhar o trabalho e a religião é o que delimita o bairro, cujos contornos

territoriais são traçados, em boa medida, pela participação dos moradores em

trabalhos de ajuda mútua, como parte de uma relação de reciprocidade que se

realiza, antes de tudo, com Deus (WEDIG, 2009): o auxílio prestado seria

primeiramente a este, não ao vizinho. Cândido (1987), ao destacar o depoimento de

um velho caipira, evidencia que para ele o mutirão não é percebido como uma

obrigação para com as pessoas e sim para com Deus, pelo amor de quem serve ao

próximo, sendo por isso que ninguém recusa um auxílio pedido. Assim é que, no

caso aqui estudado, conforma-se o mutirão de uma das festas observadas, uma

forma de sociabilidade pautada na reciprocidade: com os vizinhos, mas, sobretudo,

com Deus, por intermédio da padroeira da comunidade, Sant‟Ana.

A preparação da festa tem início dias antes, quando as mulheres se reúnem

durante a semana para limpar o salão e iniciar a preparação das bolachinhas e

cucas que serão servidas no café colonial da tarde e vendidas separadamente (Fig.

05). Enquanto um grupo limpa o salão, outro prepara as bolachas e o grupo

responsável pelas cucas prepara as primeiras fornadas.

No dia que antecede à festa trabalham em torno de 25 mulheres, divididas

em equipes para melhor desenvolver as tarefas. Também os homens desenvolvem

as tarefas em equipes, na parte externa da cozinha. No salão, um grupo passa a

ferro as cortinas e as coloca nas janelas. Enquanto isso, na cozinha outro grupo

segue preparando as cucas e pães e outro prepara as tortas doces, bolos recheados

e pudins – que serão vendidos inteiros ou em fatias, no dia da festa. Por sua vez,

outro grupo descasca batatas, cebolas e frutas para a salada de frutas. Na parte

externa, os homens organizam os espetos e fazem espetinhos de bambu para o

churrasquinho da tarde. Uma senhora, que trabalha há mais de trinta anos na

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comunidade, é a responsável por preparar o almoço, café da tarde e janta para o

grupo. Segundo ela, a comida tem que ser reforçada, porque é muito trabalho.

No cotidiano desses homens e mulheres, ocorre uma divisão sexual do

trabalho, correspondente a uma hierarquia familiar, associada a relações sociais de

Figura 05: Saber-fazer: o preparo da bolacha colonial – da receita herdada à mesa do café colonial da festa.

Fonte: autora, 2010.

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gênero. A divisão sexual do trabalho no campesinato foi analisada em muitos

estudos, como o de Heredia et al. (1984), que mostram que,

Se o lugar do homem é o roçado, o lugar da mulher, mãe de família, é a casa. [...] A casa não se restringe ao espaço físico ocupado pela construção; ela inclui também o terreiro (pátio) que a rodeia, local onde vive a criação (aves de quintal), cabras e porcos. (HEREDIA et al., 1984, p.30-1).

Essas classificações com relação ao espaço e ao trabalho mantêm-se na

organização da festa, sendo as mulheres responsáveis pela parte interna do salão,

limpeza, arrumação das mesas, colocação das cortinas e preparação da comida,

enquanto que os homens são responsáveis pela parte externa ao salão, por

organizar a churrasqueira, preparar espetos e fazer a lenha para assar o churrasco.

Mas não é apenas em relação ao espaço e ao trabalho que operam as

classificações entre os camponeses estudados. Em conversa, ao explicar como

prepara o pão de milho acrescido de batata doce, uma interlocutora explicou que faz

o pão com farinha de milho branca, a mais fraquinha, porque a amarela é muito

forte. Partindo do estudo de K. Woortmann e E. Woortmann (1997), realizado junto a

sitiantes sergipanos, em que analisam suas classificações com relação à comida

forte e fraca, podemos sugerir que, na Colônia Maciel, utilizar a farinha fraquinha no

pão de milho pode estar associado ao fato desse pão ser servido com a comida de

domingo, dia de descanso, em que as atividades não demandam força física, não

sendo necessária a ingestão de comida forte. Ainda, é no dia consagrado ao

descanso, o domingo, que ocorre a presença, na localidade, de moradores da

cidade, em sua maior parte parentes e amigos dos que residem na colônia. Muito

possivelmente essa presença de gente da cidade está entre os elementos

explicativos da utilização da farinha mais fraquinha na elaboração do pão de milho

consumido em dia de festa. Para os colonos, a comida da cidade é usualmente

considerada como mais fraca.

Em conversa com algumas mulheres da localidade – senhoras situadas na

faixa etária entre 65 e 80 anos –, elas revelaram que a preparação das cucas, pães

e bolachas para esta festa antes era manual, sendo a massa preparada à mão e

assada nos fornos de tijolo, na rua. Elas relembram que eram três fornos e que

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chegavam a amassar mais de cem quilos de farinha à mão, para fazer as cucas para

a festa. Comentaram, ainda, as dificuldades que havia na preparação da festa, pois

não dispunham de um espaço adequado, era tudo feito em um galpão sem estrutura

e tudo precisava ser emprestado por vizinhos: louça, panelas, talheres. A maioria

dos alimentos era arrecadada na comunidade, mediante doações. Segundo relatos,

antigamente vinham mais pessoas para esta festa e as mulheres preparavam as

carnes de galinha e porco nos fornos da rua e também assavam bolinhos de carne,

preparavam diversas saladas, arroz, massa e sopa de galinha. Com o tempo, foram

construindo o salão, reformaram a casa paroquial e, com o dinheiro arrecadado nas

festas, compraram louça, eletrodomésticos e adquiriram uma máquina para preparar

as massas e um forno industrial para assar pães, bolachas e cucas.

Aliada à aquisição de equipamentos e eletrodomésticos, percebe-se a

continuidade dos saberes antigos: no controle da temperatura do forno industrial, as

mulheres utilizam folhas de

bananeira, assim como utilizavam

nos fornos de tijolos, tanto para medir

a temperatura como para baixá-la

(Fig. 06).

Figura 06: folha de bananeira no chão, ao lado do forno,

Fonte: autora, 2010.

Analisando, ainda, os saberes e sabores que conformam a festa de Sant‟Ana,

cabe apontar a inserção de alimentos industrializados nas receitas preparadas pelas

mulheres. Ao observar a elaboração dos bolos doces, indaguei a mulher que os

preparava a respeito da utilização de misturas pré-preparadas, os bolos de caixinha.

Ela respondeu que considera que esses são mais práticos e são gostosos. Na mesa

em que estavam expostos os ingredientes para elaboração dos bolos e pudins,

podia-se notar a predominância de produtos industrializados, tais como: chocolate

em pó, granulado de chocolate para decoração, margarina, leite condensado,

açúcar, óleo, canela em pó, fermento para bolos, ovos comprados na cidade (ovos

brancos). No entanto, enquanto preparava o pão, uma das mulheres comentou que

utiliza a banha de porco na massa, porque considera que o óleo resseca o pão.

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Percebe-se aí o que Ramos (2007) denominou de um “cardápio hibrido”, ou seja, um

cardápio “montado” a partir do que se produz e do que se compra, composto a partir

de alimentos produzidos na propriedade e os industrializados (Fig. 07). Assim, os

saberes e sabores se conformam entre modos de preparo e produtos modernos e

tradicionais.

Essa festa religiosa conforma a sociabilidade da comunidade analisada, pois

a festa tradicional da padroeira alimenta a alma, o corpo e as relações sociais.

Assim, na realização da festa em homenagem à padroeira, os festeiros são

mediadores do compromisso da comunidade para com Sant‟Ana. Os dois casais

escolhidos pela comunidade como festeiros são responsáveis – juntamente com a

diretoria da comunidade da Igreja católica – pela divulgação e organização da festa,

bem como pela recepção e atendimento do público no dia da festa.

No final da manhã de domingo, após a missa, com as almas nutridas, depois

da recepção do “corpo de cristo” – a hóstia – e de agradecerem e pedirem proteção

à padroeira, todos seguem em direção ao salão, para alimentar os corpos e as

relações. As famílias compram, na churrasqueira, os espetos de carne (porco,

galinha e gado), enquanto que na copa – das mulheres – compram porções de

salada de batata, pães e cucas. Posteriormente, seguem para as mesas,

distribuídas pelas sombras, enquanto outros rumam para suas casas, com familiares

e amigos, retornando pela tarde para o baile e jogos e/ou para matear com parentes,

amigos e vizinhos. A tarde segue com o café colonial, com todos os quitutes

preparados pelas “mulheres da cozinha”, jogos e dança (Fig. 08).

Figura 07: Cardápio híbrido: cuca, receita mantidas por gerações, preparada com ingredientes da colônia e o bolo de caixinha, à base de produtos industrializados.

Fonte: autora, 2010.

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No café, nota-se uma grande presença de casais mais velhos, sendo aí

raros os jovens. O público da tarde é formado por famílias, com a presença de avós

e crianças. No baile da tarde, animado por uma banda, as famílias dançam músicas

gaúchas, de bandinha, as que costumam escutar no dia a dia. Quando a noite cai, a

banda para de tocar e a discoteca, formada por rapazes da localidade, assume o

baile constituído, na maioria das vezes, por jovens (Fig. 09).

Figura 09: O baile da tarde e a discoteca da noite. Fonte: autora, 2010.

Como já mencionado, entendemos que a cultura de um grupo social passa

por contínuas atualizações e ressignificações, sendo este um processo dinâmico.

Assim, na festa de SantʼAna, entendida como uma festa da e para a comunidade,

pode-se perceber que o “antigo” segue presente no saber-fazer, o que é

evidenciado, por exemplo, na manutenção da folha de bananeira para verificar a

temperatura do forno, nas receitas herdadas e no trabalho em mutirão. No entanto,

Figura 08: Missa em homenagem à padroeira (os fiéis estão em fila, para receber a hóstia), seguida do almoço e jogos à tarde.

Fonte: autora, 2010.

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temos a incorporação do que podem ser considerados elementos de modernidade: a

aquisição de forno industrial em substituição ao de tijolos ou a utilização de

ingredientes industrializados na preparação das receitas. Contudo, não observamos

uma perda da cultura, mas sim uma mudança.

Também há uma disjunção, em que os jovens rompem com a festa antiga,

preferindo a comida (cachorro quente e coca-cola) e música (discoteca) urbanas. Na

festa de SantʼAna, os jovens frequentam a discoteca somente à noite, para dançar

ao som das músicas urbanas, do mesmo modo que Bourdieu (2006, p.85) apontou

em seu estudo: “as danças de antigamente, que traziam a marca do campo em

seus nomes (la crabe, lou branlou, lou mounchicou etc.), em seus ritmos, em sua

música, nas letras das músicas, foram substituídas por danças importadas da

cidade”. Para o autor, a partir de categorias urbanas o camponês introjeta uma

imagem desvalorizada que outros constroem dele e passa a perceber seu corpo

como pesado, lento, rude, mal vestido, característico das atividades associadas ao

trabalho do campo. Entendendo seu próprio corpo como “encamponesado”.

Portanto, compreende-se a relação destes jovens com a festa antiga, em que o café

colonial e as músicas tidas como “de colonos” são substituídas pela comida, dança e

modo de vestir urbanos, associados à modernidade.

Até aqui, podemos perceber como se conforma uma festa preparada pela e

para a comunidade, mas como se constitui uma festa preparada pelos colonos para

os citadinos?

3.2 O DIA DO VINHO: FESTA À ANTIGA

O Dia do Vinho ocorre no mês de agosto, na Colônia Maciel, tendo a

primeira ocorrido em 2006. As reflexões aqui trazidas são decorrentes da

observação das edições realizadas nos anos de 2010 e 2011. Esta festa (um jantar)

se realiza no salão da comunidade católica Sant'Ana e as famílias que a preparam

são as mesmas que organizam a festa da padroeira.

A festa do Dia do Vinho foi concebido pelos produtores de vinho da Colônia

Maciel e colônias vizinhas com o apoio de entidades como Embrapa, Emater,

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Universidade Federal de Pelotas, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Prefeitura

Municipal de Pelotas. Segundo um interlocutor, membro de entidade de assistência

técnica, as discussões em torno da uva, nesta localidade, ocorrem há cerca de 20

anos: o cultivo da uva constituiu-se como alternativa frente à crise nos cultivos de

cebola, batata e pêssego. Nessa época muitos colonos compravam uva da Serra

Gaúcha para fabricar vinho, tanto para consumo próprio como para comercialização.

A festa do Dia do Vinho constituiu-se como forma de colocar em evidência a

produção de vinho e demais produtos locais, buscando conformar novos mercados

e, ao mesmo tempo, resgatar a cultura italiana, tanto no modo de fazer o vinho como

na comida típica.

Para pensarmos sobre a comida da festa, cabe refletir sobre o que seria

“típico”. Neste sentido, Maciel (2001) aponta a constituição da comida enquanto

típica como associada a um pertencimento,

A constituição de uma cozinha típica vai assim mais longe que uma lista de pratos que remetem ao “pitoresco”, mas implica no sentido destas práticas associadas ao pertencimento. Nem sempre o prato considerado “típico”, aquele que é selecionado e escolhido para ser o emblema alimentar da região é aquele de uso mais cotidiano. Ele pode, sim, representar o modo pelo qual as pessoas querem ser vistas e reconhecidas. (MACIEL, 2001, p.152).

Portanto, podemos pensar que o cardápio servido como típico da cultura

italiana na janta do vinho não representa necessariamente a comida servida no

cotidiano das famílias que preparam a festa, mas está relacionado a seu

pertencimento à comunidade. Desse modo, é criado/recriado um cardápio baseado

em uma “lista de pratos” da culinária italiana.

No início da tarde de sábado, quando as famílias preparavam a festa, teve

início a observação do processo. Após o reencontro com as mulheres da cozinha,

recebi um avental16 para ajudar na festa, tendo sido designada para, além de ajudar

16 Considero esse um momento importante no acompanhamento do grupo, pois aí eles admitiram

uma pessoa de fora no mutirão, no exterior dos “bastidores” da cozinha, circulando no salão. Pergunto-me em que medida o avental simbolizou uma maior aproximação em relação ao grupo ou se, sendo uma festa pensada e criada com a participação de pessoas de fora da comunidade, como entidades apoiadoras, eu seria mais uma dessas pessoas de fora. Ambas são possibilidades não necessariamente excludentes, a respeito das quais apenas novas experiências a campo junto ao grupo poderão lançar luzes.

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no período de preparação da festa, servir à noite as entradas e atuar como

assistente no abastecimento do buffet. Durante a tarde, enquanto ajudava as

mulheres na cozinha, pude observar que os homens limpavam o salão, passando

pano molhado nas mesas e cadeiras, enquanto que outros confeccionavam arranjos

de flores para decorar as mesas e colocavam as cortinas no salão. Pude ainda

perceber que a presença masculina se dava também na cozinha: os homens

preparavam a polenta, orientados por uma das cozinheiras mais experientes que,

segundo explicaram as mulheres, sabe as medidas. Já na 5ª edição da festa, as

orientações no preparo foram dadas por um homem, que aprendera as medidas e o

ponto da polenta com um vizinho que, segundo a equipe, é o responsável pelo

preparo da polenta desde a primeira festa (como não pode comparecer em 2010,

uma das mulheres mais experientes assumiu, naquela ocasião, a orientação no

preparo da polenta). A divisão de trabalho aqui observada entre homens e mulheres

é muito distinta daquela que se dá na Festa de Sant'Ana, como anteriormente

descrita. Lá, tal qual ocorre no cotidiano dessas famílias, a parte interna (salão e

cozinha) é delimitada como espaço feminino, enquanto que a parte externa

(churrasqueira e copa) constitui-se um espaço masculino.

Se pode sugerir que, no Dia do Vinho, o envolvimento dos homens na

organização do salão e no preparo da polenta é relacionado ao fato de que esta

festa é um evento de negócio, que abre portas para a comercialização do vinho e

Figura 10: Mulheres “classificando” tempero verde e homens preparando a polenta no espaço da cozinha.

Fonte: autora, 2011.

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demais produtos: neste dia, segundo eles, tudo tem que estar impecável, sendo

acompanhado de perto (Fig. 10). Mas também a razão dos homens adentrarem o

espaço originalmente estabelecido como feminino pode estar no número reduzido de

mulheres que trabalham nesta festa, o que, por sua vez, deve estar associado ao

fato do Dia do Vinho ser uma festa criada por produtores de vinho da comunidade,

com o apoio de entidades, mas não pelo conjunto da comunidade.

Para pensar os motivos que levam os homens a ocupar o espaço

usualmente estabelecido como feminino, trazemos um estudo realizado junto a

agricultores familiares do Paraná, que observou o cotidiano de vida e trabalho de

famílias produtoras de leite. Comentando aquela pesquisa, Menasche (2004) indica

que foi então possível observar que quando ocorreu a introdução de tecnologia na

produção leiteira e a intensificação da produção destinada ao mercado, essa

produção deixou de estar sob o domínio das mulheres, passando ao controle

masculino. Nas palavras da autora,

[...] podemos sugerir que, para o caso paranaense, a introdução de tecnologia na produção leiteira estaria alterando não a hierarquia entre homens e mulheres, mas o lugar da atividade leiteira na hierarquia da atividade doméstica: a produção de leite, agora tecnificada, atingiria o estatuto de trabalho – atributo masculino. A assunção desse novo estatuto pela produção de leite seria, assim, explicativa da exclusão das mulheres da atividade à medida que se tecnifica. (MENASCHE, 2004, p. 33).

Do mesmo modo, podemos pensar que na medida em que a festa do Dia do

Vinho tem seu estatuto associado ao mundo dos negócios, é de responsabilidade

dos homens. É assim que os homens ocupam o espaço da cozinha: nesta festa, a

preparação da polenta é entendida como trabalho, e trabalho pesado.

No salão a decoração é na cor lilás, com cachos de uva confeccionados com

balões, mesas decoradas com arranjos de flores naturais como flor de pessegueiro.

Já o espaço externo é coberto com lona, abrigando as mesas e cadeiras. No

ambiente do salão, ao fundo, está a copa, onde ficam os produtores de vinho,

servindo ao público. Na parte da frente do salão, há uma estrutura em que fica a

banda, que toca música gaúcha – não tocaram sequer uma música italiana. A

abertura da festa segue com os discursos do presidente da comunidade e de

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representantes de entidades apoiadoras, seguidos da benção do pároco e de um

pastor (vindo de outra comunidade) e da apresentação do coral de crianças,

cantando músicas religiosas. Na edição de 2011, também o prefeito municipal

prestigiou a festa, discursando sobre sua importância para divulgar as

potencialidades da localidade e das colônias como um todo.

Outro ponto a ser destacado na edição de 2011 da festa consiste na

intensificação do apelo à cultura italiana. No balcão em que os produtores serviam

vinho e suco, estavam expostas fotografias dos primeiros imigrantes chegados à

Colônia Maciel, assim como das famílias e da casa de pedra construída por Jiusto

Casarin, hoje pertencente a uma família que se dedica à produção de uva e vinho e

ao turismo (Fig. 11). Havia também um quadro exibindo o passaporte de um

imigrante vindo da região italiana de Treviso e um banner em que era narrada a

saga dos imigrantes italianos no Estado do Rio Grande do Sul e sua chegada às

colônias da Serra Gaúcha. Ao analisar o banner, elaborado pela filha de um dos

produtores de vinho que organizam a festa, podia-se perceber que no texto não

constava a história dos imigrantes da Colônia Maciel: as imagens e legendas

referiam-se à localidade, enquanto que a imagem de uma pipa de vinho exibida era

de uma vinícola de Bento Gonçalves. Assim na tentativa talvez de buscar legitimar a

italianidade local, é feita referência à Serra Gaúcha.

O jantar servido na festa do Dia do Vinho tem como cardápio a comida

“típica” italiana, acompanhada de vinho e suco de uva. Como entrada, os petiscos,

Figura 11: Salão decorado para a festa e exposição de fotos e documentos contando a história dos primeiros imigrantes chegados à Colônia Maciel.

Fonte: autora, 2011.

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como comenta um dos produtores: queijo, salame, conserva de pepino e pão. O

serviço é realizado por moças, filhas das mulheres da cozinha, que caminham pelo

salão com bandejas, oferecendo ao público os petiscos. Mais tarde, é servido o

jantar, composto por saladas (alface, rúcula, radicci, agrião) e pelos pratos: polenta,

massa com molho de tomate e carne de galinha desfiada, fortaia (preparada a base

de ovos e leite, com linguiça, toucinho e tempero verde), carne assada de porco e de

galinha (Fig. 12). A comida é disponibilizada em dois buffets, um no salão e em outro

na parte externa. As pessoas, em fila, servem-se à vontade das saladas e pratos e

depois das sobremesas (compota de pêssegos, sagu de vinho e creme à base de

leite e ovos). Depois de servidas as sobremesas, algumas mesas são afastadas e a

banda anima o baile. Algumas pessoas dançam, enquanto as demais permanecem

sentadas, conversando e saboreando o vinho.

Como anteriormente comentado, nas duas edições da festa observadas a

maior parte das mulheres que haviam trabalhado na festa da padroeira não

participaram na realização desta festa. Do mesmo modo, também apenas uma

parcela da comunidade estava presente: o público desta festa é predominantemente

urbano. Retomando o estudo de Champagne (1997), mencionado no início do

capítulo, esse autor mostra que nas festas em que a tradição é folclorizada e cujo

sentido é ancorado em motivações econômicas, é justamente o público externo

aquele que se faz presente, diferentemente do que ocorre nas festas “da

comunidade” – como as festas de santos padroeiros –, em que é grande o esforço

Figura 12: Comida apresentada como típica: fortaia, polenta e o cardápio completo.

Fonte: autora, 2011.

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de moradores e familiares – inclusive dos mais idosos – para comparecer. A festa do

Dia do Vinho tem como público alvo os citadinos e os ingressos são limitados,

visando acomodar e atender bem ao público. São disponibilizados 500 ingressos,

vendidos pelos produtores e membros das entidades apoiadoras para o público

urbano. Cada responsável por certo número de ingressos tem os seus “clientes”, em

Pelotas e municípios vizinhos como Morro Redondo, Canguçu (a título de exemplo,

observamos que funcionários da Emater de municípios vizinhos compram ingressos

dos colegas de Pelotas, que estão na organização da festa). A festa não é divulgada

na rádio local, a Rádio Comunitária da Colônia Maciel, e tampouco são colocados

cartazes para divulgação nos ônibus, como é praxe ocorrer em relação às demais

festas realizadas na comunidade. Assim, podemos concluir que o público pensado

para esta festa não é da colônia.

Quanto ao público urbano, podemos sugerir que vão em busca do rural de

suas infâncias ou contado por seus pais e avôs, mas depurado das dificuldades da

vida no campo, um rural idealizado. Por isso o sucesso da festa à antiga.

Ainda na reflexão a respeito da festa do Dia do Vinho, do mesmo modo que

faz Santos (2004), ao analisar a festa da uva e a construção da identidade entre

descendentes de imigrantes italianos de Caxias do Sul/RS, podemos lembrar do que

Hobsbawn (1997) entende como tradição inventada,

[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas, tais práticas; de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWN, 1997, p.9).

Neste sentido, entendem-se as tradições como apropriações do passado

para refletir no presente a ideia de comunhão e marcar pertencimentos (SANTOS,

2004), ou como produtos que encarnam o lugar de origem

Identidade e/ou patrimônio são novos “recursos” da modernidade e de usos polivalentes. Já não se trata de seu lugar de origem, mas de produtos que o encarnam. Espera-se desses produtos que evoquem um território, uma paisagem, alguns costumes, uma referência de identidade. (CONTRERAS H., 2005, p.142).

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Como indícios de uma ressignificação do rural, pode-se entender que este

processo esteja relacionado às transformações referentes à modernização da

agricultura, que assim como transforma os cardápios das famílias e da festa de

Sant'Ana em um cardápio híbrido, possibilita emergir “novas tradições”, como as que

se constituem na festa do Dia do Vinho.

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60

4 O COTIDIANO DAS FAMÍLIAS: UM OLHAR A PARTIR DA COMIDA

Seu Carlos, 71 anos, diz tomar vinho desde menino, mas lembra que

antigamente não se fazia isso todos os dias porque a bebida não era produzida em

grande quantidade. Sendo assim, costumavam tomar vinho nos finais de semana, às

vezes à noite e quando chegavam visitas e/ou clientes para comprá-lo. Em seu

depoimento, Cíntia, nora de seu Carlos, que não possui ascendência italiana,

enfatiza a importância de manter a tradição. Ela lamenta que o esposo tenha perdido

muito da tradição, pois não fala nem compreende italiano; come polenta – preparada

pela mãe –, mas não a aprecia; não trouxe da casa dos pais o costume de tomar

vinho diariamente. Na interpretação de Cíntia, tomar vinho todos os dias é prática

associada à manutenção da tradição.

Podemos afirmar que os embates em torno do processo de constituição da

italianidade, em curso na localidade, têm por emblema o vinho, destacado na Janta

do Vinho. Como podemos notar no trecho anterior, esses embates estão presentes

também no cotidiano das famílias.

É para observar como isso se dá que, neste capítulo, o olhar se volta para

as práticas alimentares cotidianas das famílias que trabalham nas festas da

comunidade: para tentar perceber como a comida e o vinho, apresentados nas

festas como símbolos da cultura italiana, fazem, no dia-a-dia, parte do cardápio

dessas famílias.

Para tanto, antes de entrar nas casas de algumas famílias residentes nas

colônias Maciel e São Manoel, vale buscar entender como se dá a produção nessas

colônias, tanto para comercialização quanto pro gasto. Dessa maneira teremos

presente o contexto em que se realiza sua alimentação.

4.1 A PRODUÇÃO PRA VENDA E PRO GASTO NAS COLÔNIAS MACIEL E SÃO

MANOEL

Nas colônias Maciel e São Manoel, os colonos, na sua maioria,

comercializam pêssego, fumo e tomate. No processo de integração com o mercado

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61

os cultivos comerciais assumem papel de destaque na organização interna da

produção, representando a principal fonte de renda. Já por volta de 1960, em

registros no Livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, o pêssego consta como o cultivo

comercial mais expressivo na Colônia Maciel e colônias vizinhas.

Chácaras de pessegueiros quase todos os agricultores as possuem, quem não tem procura formar [...]. Há diversas fábricas de compota na paróquia. O ministério da agricultura está fazendo experiências para produzir o pêssego de mercado e mesa e pêssego grego por meio de enxertos. Está dando bom resultado, em novembro já se pode comer pêssego. (Livro Tombo Paróquia Sant‟Ana, p.59).

Ainda referente à produção para comercialização é relatada a inserção dos

agricultores ao complexo fumageiro nas colônias de Pelotas. E o padre da época se

diz preocupado com a substituição da produção de alimentos pelo fumo:

Como as indústrias de batata e cebola são perecíveis e cujo preço flutua muito conforme mercados interno e externo, os agricultores receberam de braços abertos e dando risada a uma e promissora indústria de fumo em folhas [...] Segundo pesquisas da mesma firma os solos desta paróquia se prestam muito bem para o cultivo de fumo. A firma se responsabiliza pelo trabalho de estufas, sementes e fungicidas e paga por fumo de 1ª qualidade 10 mil cruzeiro a razão de uma arroba. [...] Só este ano 65 agricultores aderiram a indústria do fumo. Se assim continuar não vai restar terra para outras culturas mais úteis, principalmente para abastecer a cidade de Pelotas e Rio Grande. (Livro Tombo Paróquia Sant‟Ana, p.61).

Podemos perceber que a produção para o autoconsumo17 se mantém,

mesmo que possivelmente em uma escala menor, mas a adesão aos “cultivos

comerciais” não elimina esta produção, tal como na análise de Grisa e Schneider

(2008, p.488):

Embora a condição de complementariedade dentro da unidade de produção, o autoconsumo continua sendo uma estratégia recorrida pela grande maioria das explorações familiares e cumpre papéis importantes na agricultura familiar. Dentre as várias motivações para a sua existência, provavelmente a mais assídua situa-se no aspecto econômico por tratar-se de uma forma de “economização” [...] ao produzir seus próprios alimentos, a unidade familiar deixa de gastar o equivalente em recursos monetários com a compra de alimentos nos supermercados.

17

A produção para o autoconsumo nessas colônias foi discutida em Machado, Salamoni e Costa (2010) e trazida aqui para salientar o que as famílias rurais estudadas comem e como valoram esses alimentos em seu dia a dia.

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A produção para o autoconsumo, além do aspecto econômico, garante uma

alimentação variada sem a utilização de agroquímicos, denominado pelo agricultor

como um alimento “limpo”, a base da alimentação da família. Aqui cabe lembrar que

o sentido de família ultrapassa os limites da propriedade familiar, uma vez que há

sistematicamente o fornecimento de alimentos a membros da família que residem na

cidade. Ademais, o ato de compartilhar o alimento assemelha-se a “tecer fios”, pois

“embora a ida definitiva para a cidade pareça um destino provável, a ʽretribuiçãoʼ

implícita é como um seguro contra o risco de que tais ʽfiosʼ se rompam” (MARQUES

et al., 2007, p.160). Outro aspecto importante é que esta produção “alimenta” e

constrói relações sociais, representadas na doação e troca de alimentos, que

possuem valor simbólico, constituindo-se como elemento criador e mantenedor de

vínculos e compromissos entre as famílias (MARQUES, et al.,2007). Assim, a

produção para o autoconsumo possui um valor de uso que conforma e estabelece

relações sociais, consolidando a vida comunitária. Nesse sentido, Wanderley (1989)

sugere em seus estudos que a persistência da produção familiar camponesa reside,

exatamente, na luta dos produtores para concretizar seus ideais de reprodução social,

quando afirma que:

Combinando trabalho, meios de vida e meios de produção, o produtor familiar constrói o seu patrimônio, condição de reprodução social da família, hoje e amanhã. Patrimônio, cujo elemento central é a propriedade da terra, mas que incorpora também as benfeitorias, os meios e os instrumentos de trabalho. É assim que capital e patrimônio familiar se confundem numa estratégia em que a forma de produzir hoje, baseada no próprio trabalho familiar, reflete as possibilidades, dadas e assumidas, a respeito das gerações seguintes. (WANDERLEY, 1989, p. 78).

Em pesquisa realizada no ano de 2009, no âmbito do projeto “A

Sustentabilidade dos Recursos Hídricos na Colônia Maciel – Distrito de Rincão da

Cruz – Pelotas - RS: ecoturismo, educação e gestão ambiental”, foram visitadas 43

propriedades rurais na Colônia Maciel e 48 na Colônia São Manoel (Fig.13).

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63

Figura 13: Mapa das propriedades visitadas em 2009. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

No que se refere à produção agrícola para autoconsumo na Colônia Maciel,

destacou-se a produção de hortaliças e frutas (entre 30 produtores), seguida pelo

cultivo de milho (26 produtores), feijão (25 produtores) e pêssego (24 produtores).

Na Colônia São Manoel novamente a produção de hortaliças e frutas ocupou o lugar

de maior destaque na produção para o autoconsumo (36 produtores), seguida pela

produção de feijão (32) e milho (31) (Fig. 14). O milho, produzido por grande parte

das famílias desde a chegada dos primeiros imigrantes italianos, tem sido matéria

prima para a polenta, base da alimentação das primeiras famílias e responsável pela

criação de suínos, que fornece carne, toucinho, banha e salame.

Entende-se que essas famílias são de fato autofornecedoras de uma série

de produtos, tais como batata, batata doce, abóbora, hortaliças em geral, feijão,

milho, tomate, pimentão, morango, laranja, pêssego, leite, mel e ovos (Fig. 15). É

possível identificar a diversidade de alimentos que compõem esta produção

proveniente da criação animal, da horta, do pomar e da lavoura.

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64

Produtos para Autoconsumo

-

10,00

20,00

30,00

40,00

50,00

60,00

70,00

80,00

Pêsse

go

Feijã

o

Milh

o

Bat

ata-

doce

Bat

ata-

ingle

sa

Laran

ja

Tomat

e

Mora

ngo

Hort

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as

Leite

Ovo

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el Uva

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o

Am

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Ber

gamota

Ban

ana

Chuc

hu

Mel

ancia

Maç

ã

Abób

oraPer

a

Am

ora

Maciel (%)

São Manoel (%)

A criação animal nas colônias analisadas apresenta como característica sua

destinação ao autoconsumo, uma vez que, em 2009, 37 agricultores da Colônia

Maciel e 43 da São Manoel não comercializavam seus animais (Fig. 16). Por outro

lado, as aves têm lugar de destaque no que se refere ao autoconsumo, seguido do

rebanho bovino e os suínos para a alimentação doméstica. Com relação à criação

de aves, percebe-se um conflito com as famílias integradas que possuem aviários,

pois pelas normas sanitárias não é permitida a criação de galinhas coloniais na

propriedade. Pode-se reparar que a integração aos Complexos Agroindustriais –

Figura 14: Produtos para autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel

Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

Figura 15: Produtos para autoconsumo: hortaliças, ovos e queijo (secando em um tabuleiro).

Fonte: autora, 2011.

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CAI‟s18 – acaba por limitar esta produção para o autoconsumo, porém alguns destes

agricultores desenvolvem estratégias para a manutenção desta produção como a

criação de galinhas caipiras afastada do aviário e/ou em parceria com os vizinhos,

em que a família fornece o milho para o vizinho alimentar a criação. E, ainda,

quando optam por não criar a galinha colonial, procuram criar frangos de aviário em

um galinheiro, alimentando-os não com ração, mas com milho e sobras da horta.

Criação para Autoconsumo

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

70,0

80,0

90,0

Bovinos Suínos Aves Peixes Nenhum

Maciel(%)

S. Manoel (%)

A criação de animais domésticos se constitui, também, em uma importante

fonte de alimentação para a família, tanto pelo consumo direto (carne e banha)

quanto pelo indireto (ovos, leite, manteiga). Do mesmo modo, os animais se

constituem em reserva econômica, na medida em que, em momentos de dificuldade,

podem ser vendidos, gerando uma renda extra para a família. Ademais, o consumo

dessa carne reforça o “comer saudável”, pois o agricultor sabe a procedência da

carne e como o animal se desenvolveu até o abate.

A diversidade na produção de alimentos para o autoconsumo encontra-se na

direta dependência dos recursos disponíveis na unidade familiar, seja na forma de

matérias-primas ou de instrumentos necessários à sua transformação. Além disso, é

18 A integração aos Complexos Agroindustriais – CAI‟s consiste, basicamente, na integração do

agricultor com outros ramos da indústria, onde se encontram, de um lado, as indústrias que fornecem insumos, máquinas e equipamentos (setor a montante) e, de outro, as indústrias de classificação, beneficiamento e/ou industrialização da matéria-prima agrícola, bem como a sua distribuição (setor a jusante).

Figura 16: Animais para o autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel

Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

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importante ressaltar que o processo social que move tal produção traz técnicas,

costumes e valores simbólicos que são concretizados no produto final. Isso dá a

dimensão da importância da manutenção dos saberes e práticas agrícolas,

associados à identidade particular e diferenciada, que se distingue do processo

homogeneizante dado pela industrialização da produção e pela padronização da

produção e do consumo.

No que se refere à produção, podemos observar a diversidade presente a

partir do olhar das crianças. No decorrer das oficinas realizadas na Escola Garibaldi,

em que filhos e netos das famílias analisadas estudam, foi solicitado que as crianças

da turma da 3ª série (13 alunos) desenhassem o lugar em que vivem, retratando o

que é produzido para a alimentação da família. Na maior parte dos desenhos, além

da casa, galpões e maquinários, podia-se notar a lavoura e a horta da família (Fig.

17). A lavoura aparece representada com pomares de pêssego, fumo, parreiras,

enquanto que na horta observa-se toda uma diversidade de alimentos como parte de

seu lugar de viver.

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Figura 17: Desenhos crianças ilustrando a produção na propriedade de sua família. Fonte: pesquisa 2011.

Os desenhos ilustram os dados aqui apresentados, dentre eles o lugar do

pêssego como principal produto para comercialização, tanto na Colônia Maciel

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quanto na São Manoel, sendo que, segundo a pesquisa realizada em 2009,

respectivamente 22 e 32 produtores destinavam esse produto à venda. O tomate

era, então, comercializado por 9 agricultores da Colônia Maciel e 13 da São Manoel,

seguido pelo feijão, comercializado por 10 agricultores da Colônia Maciel e por 5 da

São Manoel. Por último, destaca-se a produção comercial do fumo, então praticada

por 8 agricultores da Colônia Maciel e 5 da São Manoel (Fig. 18 e 19).

Figura 18: Produtos para comercialização nas colônias Maciel e São Manoel. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

Figura 19: Produtos para comercialização: pêssego (2011), feijão e fumo (2009). Fonte: Autora (2011) e Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

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Também a comercialização de gêneros alimentícios – queijo, vinho, suco de

uva, mel, ovos – está presente, tanto no atacado quanto no varejo. Como já

analisado por Brumer,

A diversificação das atividades representa, assim, uma forma de economizar recursos e, dessa maneira diminuir os riscos, pela limitação das despesas necessárias e pela não contratação de dívidas. Ao mesmo tempo, possibilita a intensificação do trabalho familiar e a manutenção, na residência familiar de um número maior de membros da família. (BRUMER, 1994, p.101).

Diante desse contexto, dada a significância da produção para o

autoconsumo entre as famílias rurais estudadas, entende-se que a manutenção das

práticas agrícolas e do saber-fazer, herdados dos antepassados, adquire

importância fundamental em sua reprodução socioespacial. E é nesse sentido que a

policultura, assim como o pioneirismo dos antepassados, a propriedade privada da

terra e o trabalho familiar são, como ensina Seyferth (1992), elementos

fundamentais na constituição da identidade colona.

Na sequência, partimos para a observação do cotidiano das famílias rurais

estudadas, tendo a comida como fio condutor das conversas. Afinal, “a comida

envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos”. (MACIEL, 2001,

p.151).

4.2 COMIDA E IDENTIDADE: HISTÓRIAS, SABERES E PRÁTICAS

ALIMENTARES

Partimos da produção das famílias para adentrarmos em suas casas, ou

melhor, em suas cozinhas, onde passamos a maior parte do tempo. Seguimos na

família de seu Carlos, residente na Colônia Maciel e composta por descendentes de

imigrantes italianos. Carlos e Laura possuem quatro filhos, dos quais dois,

Guilherme e Cláudia, moram com os pais – o rapaz trabalha na propriedade rural e a

moça é professora. Seguindo pelo pátio da casa paterna, chegamos à casa de outro

filho, Marcos, casado com Cíntia. E, dali a poucos quilômetros de distância, vive

Roberto, casado com Vanessa. Os filhos homens seguem trabalhando na

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propriedade rural com o pai, dedicando-se à produção de uva e pêssego, à

fabricação e comercialização de vinho, ao turismo rural e às demais atividades

socioprodutivas da família.

Pensando no significado do vinho no cotidiano desta família, temos que seu

Carlos afirma que costuma tomar vinho diariamente, no almoço e na janta. Brinca

dizendo que quando recebe “visitas” toma vinho também, isto é, acompanha os

turistas na degustação de vinho. Já dona Laura conta que quando morava com seus

pais não gostava de vinho, não tomava em nenhum momento. Lembra que seu pai

(italiano) também não tomava vinho. Diz, também, que foi aprender a tomar vinho

com o esposo, pois ele oferecia e ela para não descontentá-lo aceitava: “mas pra

mim parecia ta tomando um copo de banha, de tão ruim que eu achava” (Laura),

mas depois foi acostumando e hoje toma vinho no almoço e na janta. Atualmente a

família chega a vender em torno de 400 litros de vinho por semana. Este ano

produziram mais de 10 mil litros e a tendência é aumentar a produção em função da

legislação, pois pagar impostos e se adequar à normatização aumenta o custo.

Na família de seu Paulo e dona Marisa (ele descendente de imigrantes

italianos e ela de alemães), moradores da Colônia Maciel, o vinho também tem

acompanhado as gerações. O casal tem 3 filhos, todos casados e com seus próprios

filhos. Sua filha mais nova, Ana, mora com o esposo e a filha na casa dos pais. Os

outros dois filhos construíram suas casas em áreas próximas à dos pais. Ana cuida

da casa, do pomar de pêssego e do parreiral junto com o esposo e o pai. A filha

Crisitina trabalha em um posto de saúde e seu filho Marcelo trabalha em uma

empresa de ônibus. Nesta família o vinho acompanha as refeições do almoço e da

janta. Dona Marisa diz que sempre produziram vinho pro gasto, mas, também,

vendem para os amigos e clientes antigos. Contudo, como eles não são legalizados,

somente vendem o vinho em sua propriedade.

Em uma manhã, quando eu estava na casa desta família, chegou um carro e

seu Paulo foi atender. Era um de seus clientes, mas como este percebeu ter pessoa

estranha na casa, perguntou pelo produto sem falar no vinho. Percebe-se, assim, a

relação de confiança que se estabelece entre ambos, uma vez que não é um selo

que certifica a qualidade do vinho, mas a relação de confiança que o leva até a casa

de seu Paulo para comprar o produto. Eles contam que, no verão, a Emater realiza

uma excursão para a Serra Gaúcha. Dona Marisa lembra que no ano anterior

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haviam visitado produtores de vinho em Caxias do Sul e na festa da Uva, e que

achou o vinho muito fraco. Revela ainda que parecia que haviam batizado o vinho,

isto é, diluído em água. Ela apreciou a espumante que serviram em uma

propriedade e diz ter pedido ao técnico que acompanha o seu parreiral para que os

ensinasse a preparar essa bebida, porque vinho sua família já sabe fazer.

Na família de Gerônimo, a esposa Inês se intitula brasileira por não possuir

ascendência italiana ou alemã, enquanto que o esposo é descendente de alemães.

Há quase 30 anos residem na Colônia Maciel e dedicam-se à produção de

pêssegos, criação de frangos (aviário) e produção de leite. A filha mais nova, Rita,

que mora perto da propriedade do casal, é técnica agrícola e seu esposo trabalha na

cidade de Pelotas. A outra filha é casada e reside na cidade de Pelotas com o

esposo e dois filhos, mas também possuem uma casa próxima à de seu Gerônimo,

para os finais de semana. Seu filho reside em Canguçu e trabalha de pedreiro.

A família de seu Gerônimo produz o vinho para consumo. Mas este ano ele

plantou aproximadamente 400 pés de parreira e ainda almeja completar os 1.000

pés. A intenção é substituir o pêssego pela uva, para não utilizar mais veneno. Seu

Gerônimo diz ter investido na produção de vinho porque várias pessoas provaram,

gostaram e o incentivaram a produzir para venda. O casal, como mencionado

anteriormente, tem o hábito de tomar vinho no almoço e na janta, mas dona Inês

revela ter exagerado no consumo e diz que está atualmente meio enjoada e por isso

parou de tomar por um tempo. A supracitada decisão de substituir o pomar de

pêssego pela produção de uva e vinho pode ser resultante de uma demanda dos

amigos e vizinhos que apreciam seu vinho. Contudo, por que somente agora seu

Gerônimo vislumbra a comercialização do vinho como alternativa de renda e/ou

substituição do pêssego? Não estaria a festa do Dia do Vinho sendo o fator

motivador, onde o vinho, antes produzido e valorado pelo colono, é demandado por

citadinos e turistas?

Na propriedade de seu Jorge e dona Catarina, na Colônia São Manoel, o

pêssego e o tomate são os produtos para comercialização. Ademais dessa renda,

vivem da venda do queijo produzido por dona Catarina e da aposentadoria de seu

Jorge. O casal tem duas filhas que optaram por continuar na agricultura, casaram e

foram morar com os pais de seus esposos porque ambos são filhos únicos e, então,

tem de cuidar dos pais. Uma tem um menino de 4 anos e a outra uma menina de 9 e

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ambas moram em colônias vizinhas e visitam os pais frequentemente. Seu Jorge,

descendente de alemães, e dona Catarina, descendente de italianos, sempre

produziram vinho para o autoconsumo e este ano prepararam 100 litros. Costumam

tomar em certas ocasiões e quando chega visita. Seu Jorge conta que a filha mais

velha, Joana, quando morava em casa, era sua companheira de vinho, pois abriam

um garrafão e tomavam todas as noites, fazendo com que não durasse sequer uma

semana. Dona Catarina diz gostar mais de suco de uva, o qual prepara, guarda em

garrafas e dá um banho maria para conservar por mais tempo.

No cotidiano destas famílias, pode-se perceber que, embora já não com

tanta frequência, a polenta, assim como o vinho, é um prato presente em suas

mesas, tanto entre descendentes de imigrantes italianos quanto entre descendentes

de imigrantes alemães – o que pode ser atribuído às relações de vizinhança e

casamentos interétnicos.

Na propriedade de Ivânia e Henrique, na Colônia São Manoel, a produção

de pêssego foi herdada do pai de Henrique. Atualmente possuem 15 mil pés de

pessegueiro e necessitaram contratar, somente este ano, 18 pessoas para trabalhar

na colheita. O casal tem duas filhas, que quando adolescentes foram morar na

cidade de Pelotas para continuar os estudos e por lá casaram e ficaram residindo.

Quando comenta sobre o que comiam na infância, Ivânia diz que comia

muita polenta, até hoje ela prepara e coloca em uma tábua, taier de la polenta, para

cortar ainda morna, com uma linha, como sua mãe fazia. Quando pequena não

gostava de comer polenta no café da manhã, gostava de comer pão, mas a mãe não

deixava para economizar, pois a farinha era escassa, então comiam pão só no café

da tarde, na lavoura. No Rio Grande do Sul os imigrantes italianos consumiam o pão

de farinha de trigo em menor proporção que a polenta “por ser considerada uma

comida fraca demais para alimentar o trabalhador agrícola e, especialmente, para

economizar o mais caro e vendável produto da colônia, que era o trigo”. (DE BONI e

COSTA, 1984, p. 165). Nas colônias Maciel e São Manoel esta realidade não difere,

pois as famílias que plantavam trigo priorizavam a venda e as que compravam a

farinha economizavam o pão por não ter como comprar farinha com frequência.

Pela manhã, então, comiam polenta aquecida na chapa do fogão (polenta

brustolada) com toucinho, ovos e linguiça, o café não era acompanhado de leite. O

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leite era para fazer manteiga e queijo e depois vender para comprar mantimentos

que não produziam na propriedade, como café, açúcar e sal. No almoço comiam

feijão e arroz e Ivânia conta que o arroz era comprado na venda e que para

economizar colocavam somente uma xícara de arroz no feijão (produzido na

propriedade) e cozinhavam tudo junto. No café da tarde era o café, pão e alguma

schimier (doce de fruta) melancia, abóbora ou uva e na janta era polenta cortada em

fatias com alguma mistura, como queijo, linguiça, toucinho, ovos e o que sobrava da

polenta comiam no café da manhã. À noite Ivânia se lembra de ficarem na cozinha,

a mãe preparando a polenta e eles todos rezando o terço em italiano. Como não

tinham rádio, nem televisão, nesse momento de preparo da polenta estavam todos

reunidos na cozinha, conversando sobre a lida do dia e rezando o terço. O pai

ensinou os filhos a rezar o terço em italiano, mas com o tempo Ivânia e os irmãos

esqueceram a reza nesse idioma. Atualmente somente a mãe de Ivânia fala em

italiano, já ela e seus irmãos só compreendem algumas coisas, mas não falam.

Com o passar dos anos, novas práticas alimentares foram se incorporando

ao cotidiano destas famílias, pela convivência e a troca com os brasileiros

(gaúchos), o que permitiu que hábitos e costumes fossem introduzidos e

ressignificados ao longo dos anos. O chimarrão, hoje muito presente, é o momento

em que as famílias se reúnem para conversar e assistir televisão, ou seja, não é

mais o preparo da polenta e o rezar o terço que reúne a família. Este momento foi

substituído, em parte, pela televisão. O churrasco, atualmente considerado nas

festas da comunidade o prato principal, é comida valorada pelas famílias.

Quando criança, Ivânia diz que o que mais gostava era de chocolate, lembra

de sua madrinha, que morava em Canguçu, vir visitá-la e presenteá-la com uma

barra de chocolate, Ivânia recorda que a visita da madrinha era um momento muito

esperado. A gemada também era muito apreciada por Ivânia e seus irmãos, mas

como o açúcar era escasso e os ovos eram economizados para serem vendidos,

sua mãe não deixava que preparassem gemada. Por isso, quando os pais estavam

na lavoura as crianças roubavam um pouquinho de açúcar e ovos e corriam para o

mato, onde preparavam a gemada, escondidos. Ela diz que sempre deixavam um

rabo para trás, era o canto da boca sujo, um garfo ou até mesmo a roupa e, por isso,

a mãe sempre descobria. Ivânia também conta que quando a mãe preparava uma

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carne assada no forno ou uma massa com molho, era uma festa, porque carne era

muito escassa, só quando matavam um porco, uma galinha ou animal de caça.

Na família de seu Carlos e dona Laura, comem polenta pelo menos uma vez

por semana. Dona Laura prepara a polenta com farinha de milho amarela, gostam

de comer a polenta preparada na hora, com água e sal ou com um molho, mas

raramente a preparam frita. No dia a dia, dona Laura diz preparar mais comumente

batata sequinha, carne, arroz e feijão e uma salada de radicci, tomate, alface, rúcula

e polenta. Os filhos comem, mas não gostam muito de polenta. Contudo, o arroz e

feijão são servidos praticamente toda a semana, com exceção dos sábados e

domingos, quando não comem feijão. No domingo, ela sempre prepara salada de

batata, uma carne assada no forno ou há churrasco, preparado por seu Carlos ou

um dos filhos.

No almoço com seu Gerônimo e dona Inês, ela comentou que o marido tinha

comido pouco, então ele contou ter comido muita polenta frita pela manhã e por isso

não estava com fome, já que não tinha trabalhado no pesado. Eles contam que

comem polenta toda a semana e apreciam polenta frita no café da amanhã, no

almoço ou na janta. Perguntei se compravam a farinha no mercado, pré-pronta e

eles disseram que compram a farinha no moinho, de milho branco. Explicaram que

as compradas [no mercado] nem tem gosto de polenta e que se é para comer

aquela polenta comprada no mercado nem comem.

Também na casa de dona Catarina e seu Jorge a polenta é um prato

presente. Ela diz que o dia que tem polenta não precisa outro acompanhamento no

almoço ou na janta, pois comem polenta com ovo frito ou toucinho frito. Seu Jorge

diz que ovo e toucinho acompanham bem uma polenta. Para dona Catarina, a

polenta com leite acrescida de açúcar é uma delícia, mas para seu Jorge ela tem de

ser salgada.

Outro ponto sempre comentado pelas famílias refere-se à produção, isto é, o

que produziram e o que continuam produzindo atualmente (Fig.20). Seu Jorge e

dona Catarina contam que para o seu consumo plantam de tudo um pouco: feijão,

milho, batata, batata doce, hortaliças, frutas (uva, laranja, bergamota, limão, lima,

goiaba, caqui, banana, morango, figo, etc.). Eles lembram que quando as filhas eram

pequenas, eles chegaram a plantar arroz (do seco) e trigo e levavam o trigo no

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Moinho do Bachini19 para moer e transformar em farinha para o pão. Então na venda

compravam açúcar, café e uma coisinha que outra. Tinham praticamente tudo na

propriedade, matavam porcos e galinhas. A sexta-feira era o dia do açougue, então

compravam um pedaço de carne de gado e cozinhavam toda carne porque não

tinham geladeira. E quando recebiam visitas ou era uma festinha, colocavam a

cerveja, vinho e refrigerante na cacimba (fonte), para gelar. Hoje compram mais

coisas na cidade. Dona Catarina diz sempre ter leite condensado, creme de leite e

maionese pronta. De vez em quando, carneia um boizinho, um porco, repartem com

as filhas e colocam o restante no freezer.

Ainda sobre a produção, seu Geraldo, morador da Colônia Maciel, em

entrevista realizada em 2009 pela equipe do Laboratório de Estudos Agrários e

Ambientais, destacava:

Hoje é o pêssego, mas quando os meus antepassados chegaram aqui, o que mais se destacava era o milho, batata, alfafa, feijão e bem depois começou a cebola, mas essa eu já me lembro quando começou, eu era guri, e naquele tempo os pais eram muito seguros e os rapazes e moças que queriam ir para as festas com aqueles relógios de pulso, ai então eles pegavam sábado e domingo e pediam para o pais para plantar um fardo de cebola separado só para eles, pra depois vender e comprar seus relógios, os famosos “cebolões”. (Geraldo, janeiro de 2009). [grifos meus].

19

O moinho é um engenho em que se mói (origem da denominação moinho) milho, trigo e outros

cereais, tendo como força motora a água. O nome “Moinho do Bachini” deve-se ao sobrenome de seu

fundador. A família Bachini também deu origem ao nome da “localidade do Bachini”, na Colônia Santo

Antonio – 7º Distrito – Quilombo – Pelotas.

Figura 20: Comida no cotidiano das famílias: mesa posta para o almoço, vinho para acompanhar o almoço e sobremesa – sagu de vinho

Fonte: Autora, 2011.

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Na fala de seu Geraldo também se pode perceber que os anseios de

consumo dos jovens diferem daqueles dos pais. Enquanto os pais estão voltados

para a produção e venda para manter a propriedade, seja na aquisição de algum

maquinário, a compra de um animal e a alimentação diária da família, os jovens

vislumbram comprar acessórios para compor a roupa de festa.

Algumas famílias mais antigas possuem um olhar de perda em relação à

colônia. É o caso de seu Valter e de dona Cecília, residentes na Colônia São

Manoel, pais de Henrique. O casal já não planta, em função da idade (ele 89 anos e

ela 86). Para seu Valter, a colônia está quebrada, pois hoje ninguém mais produz o

que come. Acredita que sai mais barato comprar no mercado, porque as sementes e

os adubos custam caro e tem o trabalho de lavrar a terra, plantar e capinar e ainda

corre o risco de ter uma seca (estiagem) ou chuvarada e não dar nada, então o

pessoal compra praticamente tudo. Perguntei o que eles plantavam logo que

casaram e tiveram seus filhos e dona Cecília relata que plantavam milho pro gasto,

para alimentar os bichos (galinhas e porcos) e para a polenta. Comiam polenta todos

os dias, mas ultimamente não a comem com frequência, já que ela está com

problemas de saúde e não tem como fazer. Por isso, comem somente quando Ivânia

(nora) a prepara. Além do milho, plantavam batata para o gasto e para vender,

feijão, trigo e cebola. Vale lembrar que tinham chácara20 de pêssego.

Seu Valter lembra que na época da safra do pêssego tinha que ter mais de

uma junta de bois para puxar a carreta com os balaios de pêssego, porque os bois

se estrupiavam, feriam os cascos e, então, tinha-se que trocar a junta de boi,

deixando a outra em descanso. Quanto à comida preparada no dia a dia, eles dizem

que sempre comeram feijão, arroz, batata, carne (quando tinha) e polenta. Não eram

muito de salada, mas sempre faziam schimier no tacho – de melancia, pêssego,

abóbora –, para melar o pão. Seu Valter também revela que, na época em que não

tinham dinheiro para comprar café, torravam batata doce no forno, batiam no pilão e

depois coavam num saquinho de pano com água quente. Quando perguntei a dona

Cecília com quem aprendeu a fazer polenta, ela respondeu que com o esposo. Ele

diz que “a polenta é coisa de italiano e a batata de alemão” e que eles gostam

20

Os termos pomar e chácara de pêssego são denominações locais, usadas como sinônimos.

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mesmo é de batata. Ele lembra que alguns vizinhos cozinhavam em uma panela

pendurada na corrente. Colocavam feijão e arroz juntos ou faziam sopa no fogo de

chão. A cozinha era, na maioria das casas, separada dos quartos porque as famílias

tinham medo que o fogo atingisse a área utilizada como dormitório.

Para estas famílias, o planejamento de suas vidas está em torno da

produção para a comercialização, já que demanda a maior parte do tempo. Em

conversas escutei de uma mulher, que pretende ter mais um filho, que tinha

pensado em engravidar no início deste ano, mas o marido achou melhor depois da

safra do pêssego, porque de outro modo estaria com a barriga já grande e não

conseguiria ajudá-lo. Conversando sobre a saúde do esposo, Ivânia disse que ele

precisa fazer uma cirurgia, mas somente depois que terminar a safra do pêssego. A

Festa de Sant‟Ana, realizada em fevereiro, é sempre planejada após o final da safra

de pêssego, pois os colonos já receberam o pagamento da safra e terão

disponibilidade de tempo para ajudar na preparação da festa.

4.3 FAMÍLIA: AS HISTÓRIAS PARA ALÉM DA COMIDA

Nas falas de algumas famílias, quando recordam da época de infância, é

presente a história da trajetória de seus antepassados da Itália para o Brasil. A

trajetória destes imigrantes remete à família a suas memórias, como aponta Zanini

(2004),

Para construir a identidade de italiano no presente, os descendentes a visualizam como uma trajetória no sentido de que, se hoje são ítalo-brasileiros, isso se deve a uma origem que está assentada no passado. Origem essa que é traçada pela construção dessas memórias. A travessia se tornou o marco inicial das construções e há, sobre ela, um infinito número de construções individuais e coletivas. É desse momento em diante, que as trajetórias familiares adquirem sentido. (ZANINI, 2004, p.58-59).

Em suas lembranças, Ivânia conta a saga de seu bisavô para o Brasil. O

barco lotado, com pessoas morrendo e tendo-se que atirar os corpos no mar. Além

disso, quando o vento mudava, o barco ficava navegando sem rumo. Levaram muito

tempo para chegar ao Brasil. Seu bisavô chegou no porto de Santos e, com a

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esposa e os filhos, vieram para a Colônia Maciel. Quando chegaram, não tinham

nada, construíram um barracão e começaram a derrubar o mato. Era só mato para

todos os lados. Depois foram construindo suas casas com madeira, tudo feito com

machado, e começaram a plantar. Ivânia recorda o avô dizer que o povo passou

muita fome até ter o milho para fazer polenta. A trajetória destes imigrantes para o

Brasil e as dificuldades enfrentadas nestas terras, relatadas por autores como De

Boni e Costa (1984), Zanini (2004; 2006) e Lorenzoni (2011) é o processo de

constituição da concepção do italiano desbravador e vencedor. As histórias são

contadas pelas famílias, em cujas narrativas o antepassado representa o herói

civilizador que venceu a natureza e refez sua vida, assim, “o pioneiro representa o

domínio da passagem de despossuído no país de origem para civilizador e

proprietário em terras estrangeiras.” (ZANINI, 2004, p.56).

A fala de seu Geraldo sobre a travessia de seu avô e de seus companheiros

também ressalta as dificuldades nos primeiros tempos na Colônia Maciel. Quando

perguntado em qual localidade os descendentes de imigrantes italianos estão

concentrados, ele revela:

Mais na Maciel, pois quando chegaram já ficaram na Maciel mesmo, ali na casa do lado eles fizeram o barracão, eles viveram três meses ali, todos juntos quando saíram da Itália eles pensavam que viriam para São Paulo, Rio de Janeiro ali naquela zona que tinha café, e quando chegaram no porto de Santos, mandaram eles para Rio Grande, também ficaram contentes porque viram campo e dali de Rio Grande mandaram eles para cá, chegando aqui só viram mato, ai montaram o barracão, me parece que vieram em doze famílias mas não tenho bem certeza disto. Quando chegaram, ficaram parados três meses porque o governo não tinha acertado uns problemas de terras, aí quando começaram foi só derrubando mato para conseguirem plantar alguma coisa. Meu avô tinha 12 anos quando veio de lá, ele me contava que foi brabo, quando eles chegaram, eles tinham que cortar as árvores, depois queimavam para poder plantar. (Geraldo, janeiro de 2009).

Assim, entende-se que “o passado comum, relatado como experiência

pioneira, repleta de dificuldades e lutas, é um dos elementos fundamentais na

elaboração da identidade do colono” (SEYFERTH, 1992, p.80). Hoje é presente para

estes colonos as lembranças do país de origem de seus antepassados, alguns

buscam encontrar parentes na Itália ou nutrem o sonho de visitar esse país, mesmo

sabendo da indiferença dos que lá estão, como relata seu Geraldo:

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Eu não sei bem, mas tem uma prima da minha esposa que andou se informando e me parece que aqui na Maciel os que vieram da Itália, quando vão visitar os italianos de lá [Itália], eles não querem nem saber, não dão bola e fazem que nem são parentes, por causa da “dota”, a herança, que ficou perdida lá, quem veio pra cá não herdou dos pais que ficaram por lá, eles têm medo que a gente vai querer requisitar alguma parte e por isso não dão bola. Eu gostaria de ir lá, não pela herança e sim para uma visita para a gente conversar como estamos aqui no Brasil, mas eles são ariscos que não tem jeito. (Geraldo, janeiro de 2009).

Na memória dos casais mais antigos da colônia, é presente a repressão da

Segunda Guerra Mundial, em que o Brasil, compondo o grupo dos aliados, lutou

contra o Eixo – formado pela Itália, Alemanha e Japão. Em relatos, estes contam

que a colônia vivia com muito medo, as famílias destruíram ou esconderam os

documentos, livros, bíblia, fotos, enfim tudo que pudesse revelar pertencimento à

Itália ou Alemanha. Neste período foi estabelecida por lei a obrigatoriedade de falar

somente na língua portuguesa, como símbolo de pertencimento a pátria. Na escola

os professores tinham de cumprir a lei e alfabetizar as crianças em português e em

casa os pais, sob repressão, proibiram os filhos de falarem em alemão ou italiano e

não conversavam mais na língua do país de origem. Dona Cecília lembra que os

vizinhos esconderam os animais (cavalos, bois, vacas) no mato, com medo de que

os homens da guerra levassem. Este período é denominado por Zanini (2004) como

“varredura cultural”,

Denominei esse processo de varredura cultural, o qual fez com que muitas famílias, que ainda tinham em suas memórias informações acerca do processo migratório e das histórias dos antepassados, preferissem o silêncio e a omissão dessas informações às gerações sucessivas. A história do grupo passou a estar associada às humilhações sofridas durante o período repressivo. Além disso, ser colono representava ser “grosso” e atrasado, e mesmo aqueles descendentes que haviam migrado para o mundo urbano e ascendido socialmente carregavam consigo essas representações. (ZANINI, 2004, p.55).

Este fato histórico é, em parte, responsável pela perda do dialeto italiano

falado entre as famílias das colônias, já que são poucas as pessoas que falam ou

compreendem o italiano. Na época, os imigrantes tentavam se afirmar como

brasileiros pela língua e adotando costumes e hábitos considerados como

pertencentes à identidade brasileira. Nas conversas, a maioria dos colonos mais

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velhos, entre 60 e 80 anos, dizem compreender e, uma minoria, falar em italiano.

Deve-se levar em consideração que nos casamentos entre italianos e alemães, na

maioria das vezes, optavam por falar em brasileiro.

Contudo, se o enfraquecimento da presença do dialeto pode ser considerada

como uma perda entre algumas famílias, em seu cotidiano estão presentes as

práticas agrícolas, na produção de uva e fabrico de vinho, e no preparo da comida,

herdado o saber fazer expresso no consumo da polenta, na manutenção da horta e

dos animais domésticos.

Refletindo sobre o processo específico de constituição de uma identidade

étnica italiana e tomando em conta que, nas localidades estudadas, ela se dá em

contexto de colonização compartilhada com imigrantes europeus de outras

nacionalidades, podemos pensar que a italianidade ali construída reflete no que

Seyferth (1994) denominou de cultura camponesa compartilhada. Para essa autora

(1992), no caso que ela estuda, são identificados como elementos em comum que

acionam uma identidade colona o pioneirismo dos antepassados, a propriedade

privada da terra, o trabalho familiar e a policultura. No contexto deste estudo,

podemos sugerir que a italianidade torna-se um dos elementos de constituição de

uma identidade colona compartilhada, em que o vinho e a polenta, símbolos da

cultura italiana, tornam-se presentes no cotidiano também de famílias rurais de

origem alemã e brasileira nas colônias Maciel e São Manoel.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo se propôs entender, a partir das práticas alimentares das

famílias rurais estudadas, como o processo de valorização do rural assume

características particulares associadas à constituição de uma italianidade nas

colônias Maciel e São Manoel, no município de Pelotas/RS.

Assim, as ocasiões festivas constituíram-se em importante ponto de

observação. Na festa de Sant‟Ana, comemoração religiosa realizada por e para os

membros da comunidade, “bolos de caixinha” são preparados medindo-se a

temperatura do forno com folhas de bananeira. Aí a tradição – reafirmando

identidades – faz-se presente, ainda que atualizada a partir de técnicas e

ingredientes modernos. Já na festa do Dia do Vinho, tem-se a comida preparada

com os produtos da colônia para um público urbano, ávido por consumir o vinho, a

comida e, mais do que tudo, por travar contato com o rural de seu ideário.

Dos momentos festivos, o olhar voltou-se para o cotidiano das famílias

rurais, para seus saberes e práticas alimentares, incluindo aí a organização do

trabalho em torno da produção para o autoconsumo. Com relação às mudanças

advindas com a modernização da agricultura, entende-se que, assim como a lavoura

passou por um processo de transformação, com aquisição de máquinas,

equipamentos e produtos químicos, a cozinha doméstica e a cozinha da comunidade

também sofreram alterações, o que é demonstrado pela aquisição de fornos

elétricos, máquina de preparar pão, liquidificadores, batedeiras, entre outros

eletrodomésticos que hoje compõem essas cozinhas. Do mesmo modo, a adoção,

em maior intensidade, de produtos industrializados está presente entre os

ingredientes utilizados em casa, bem como, na preparação da festa, conformando o

chamado “cardápio hibrido”.

Se antes a compra na venda resumia-se, praticamente, a comprar café,

açúcar e sal, hoje se compram outras coisinhas, como narra uma senhora, referindo-

se a produtos comprados no mercado. Por outro lado, mantém-se, mas em menor

escala do que antes, a produção para o autoconsumo, base da alimentação diária

das famílias. Os alimentos produzidos alimentam a família, mas também as relações

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sociais, por meio da circulação de alimentos entre vizinhos e naqueles destinados a

amigos e familiares moradores da cidade.

A comida e o vinho apresentados nas festas como símbolos da cultura

italiana estão também presentes na alimentação diária das famílias. Além da

produção da horta, o vinho e a polenta são alimentos culturalmente valorizados. O

vinho é comumente produzido para o consumo da família, sendo que algumas o

produzem em maior escala, para comercialização. Mas o vinho e a polenta,

símbolos da culinária italiana, estão à mesa das famílias de descendentes de

imigrantes italianos e também de alemães e brasileiros, evidenciando que, naquela

localidade, a italianidade pode ser interpretada como elemento que constitui uma

identidade colona compartilhada (Seyferth,1994).

No contexto das festas e no cotidiano das famílias rurais estudadas, é

possível notar que diferentes percepções do rural se fazem presentes. Cabe aqui

lembrar o estudo de Woortmann (2007), que ao analisar as práticas alimentares de

teuto-brasileiros do sul do Brasil, observa, em paralelo às transformações ocorridas

no sistema produtivo, as modificações sofridas pelas comidas consumidas pelo

grupo. Com a menor intensidade do trabalho na roça, decorrente especialmente da

introdução de maquinário, a comida forte, associada ao trabalho forte, cede lugar a

comidas mais leves, condizentes com as novas atividades, também tidas como mais

leves. Ao mesmo tempo, com a redução da mão-de-obra disponível nas unidades

familiares, a produção de vários gêneros alimentícios para o autoconsumo também

sofre uma retração, o que faz com que esses agricultores consumam mais produtos

industrializados. Na contraface dessas mudanças, o turismo conduziu a uma

ressignificação dos hábitos alimentares das comidas tradicionais, ocorrendo uma

revalorização da comida “étnica” Woortmann (2007).

No caso em estudo, entendemos que a valorização positivada do rural, da

comida, das festas e da cultura italiana conduziu à criação da festa do Dia do Vinho

e a novas ressignificações que parecem fornecer elementos para a constituição de

uma identidade italiana associada a uma identidade mais ampla, compartilhada.

Poderíamos, assim, pensar que a constituição dessa italianidade não se dá

relacionada estritamente à origem, mas estaria relacionada a um contexto de

idealização do rural, constituindo-se em elemento estratégico de valorização do

lugar de viver dessas famílias e dos produtos de origem local.

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SALAMONI, Giancarla. A Imigração Alemã no Rio Grande do Sul – o caso da comunidade pomerana de Pelotas. História em Revista, Pelotas: Núcleo de Documentação Histórica, Ed. Universitária / Ufpel, 2001, p.25-42. SALEM, Tania. Entrevistando Famílias: notas sobre o trabalho de campo. In: NUNES, Edson de Oliveira. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 47-64. SANTOS, Miriam de Oliveira. Bendito é o fruto: festa da uva e identidade entre os descendentes de imigrantes italianos de Caxias do Sul/RS. 2004. 237 f. Tese (Doutoramento em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004. SEYFERTH, Giralda. As contradições da liberdade: análise de representações sobre a identidade camponesa. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 18, p. 78-95, 1992. ______. A identidade teuto-brasileira numa perspectiva histórica. In: MAUCH, Cláudia; VASCONCELLOS, Naira (Org.). Os alemães no sul do Brasil. Canoas: ULBRA, 1994. TEDESCO, João Carlos; ROSSETO, Valter. Festas e saberes: artesanatos, genealogias e memória imaterial na região colonial do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, 2007. THOMAS, Keith. O dilema humano. In: O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia de Letras, 1996. p. 258-288. ULLRICH, Carl Otto. As Colônias Alemãs no Sul do Rio Grande do Sul. História em Revista. Pelotas, n. 5, 1999, p.137-161. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira (org.). A Aventura Sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 36-46. ZANINI, Maria Catarina Chitolina. A família como patrimônio: a construção de memórias entre descendentes de italianos. Campos, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 53-67, 2004. ______. Italianidade no Brasil Meridional: A construção da identidade étnica na região de Santa Maria-RS. Santa Maria: Ed. UFSM, 2006. WANDERLEY, Maria N. B. Em busca da modernidade social: uma homenagem a Alexander V. Chayanov. Campinas: Ed.UNICAMP, 1989. WEDIG, Josiane C. Agricultoras e agricultores à mesa: um estudo sobre campesinato e gênero a partir da antropologia da alimentação. 2009. 165 f.

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Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. WEDIG, Josiane C.; MENASCHE, Renata. Entre o campo e a cidade: o lugar do consumo na mobilidade material e simbólica de jovens rurais. In: PINTO, Michele de Lavra; PACHECO, Anie K. Juventude, Consumo & Educação. Porto Alegre: Espm, 2009. WEDIG, Josiane Carine; RAMOS, Mariana Oliveira; MENASCHE, Renata. Imaginários e significados das festas camponesas: olhares urbanos e rurais. In: IV Encontro da Rede de Estudos Rurais, Curitiba, 2010. WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Padrões Tradicionais e Modernização: Comida e Trabalho entre Camponeses Teuto-brasileiros. In: MENASCHE, Renata (Org.). A agricultura familiar à mesa: saberes e práticas da alimentação no Vale do Taquari. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. ________________. Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo: Hucitec, 1995. WOORTMAN, Ellen; WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Ed. Unb, 1997. WOORTMANN, Klass. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem moral. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 87, p.11-73, 1990.

Fontes pesquisadas: Livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, da Colônia Maciel.

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ANEXO A - Livro Tombo da paróquia SantʼAna: registro da chegada dos primeiros

imigrantes italianos à Colônia Maciel (1884 a 1886).

Capa e primeira página do Livro Tombo da Igreja Santa Anna, na Colônia Maciel. Fonte: Paróquia Sant‟Ana, 2011.

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Segunda e terceira página do Livro Tombo da Igreja Santa Anna, na Colônia Maciel. Fonte: Paróquia Sant‟Ana, 2011.

Nomes das primeiras famílias que vieram à Colônia Maciel - 1884 e 1886

Nome Função Outros dados

Noé Talamini Moleiro construiu o primeiro moinho

Jorge Bonat Agricultor

Pedro Bonat Agricultor

Antonio Marini Comerciante

Domingos Franconi Agricultor

Antonio Scaramuzza Agricultor

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Luiz Genini apelido Marespro – Solteiro

Francisco Balbinotti Agricultor

Matheus Campores do Tyrol – Solteiro

Leopoldo Aldrighi Agricultor

Joaquim Aldrighi Comerciante

Luiz Aldrighi Agricultor

José Aldrighi Agricultor

Domingos Gasparoni Agricultor

Francisco Biché Agricultor Francês

José Arbés Agricultor Francês

Eugenio Tassi Agricultor

Manoel Bortolo Agricultor Solteiro

Nomes das famílias que vieram à Colônia Maciel – 1887 em diante

Cesar Schiavon Agricultor Zanete, por apelido

Silverio Domingos

Schiavon

Agricultor Zanete, por apellido

Norberto (Celeste)

Schiavon

Agricultor Zanete, por apelido

João Doro Agricultor

Angelo Artuso Agricultor

Angelo Cesson Agricultor

Angelo Tavanetti Agricultor

Angelo Camellato Agricultor Solteiro

Antonio Meggiatto Agricultor

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Josué Bonnano Agricultor

Luiz Zaffalon Agricultor

Abraham Stocco Agricultor

Sebastião Formentin Agricultor

Antonio Giaconnin Agricultor

José Giaconnin Agricultor

Eugenio Cavalin Agricultor

Antonio Pegoraro Agricultor pai de Pedro, Angelo e Giacomo

Luiz Zanatti Agricultor

Estevam Zanatti Agricultor

Eugenio Zoia (Zoggia) Agricultor

Antonio Zanetti Agricultor

Antonio Zanetti sobrinho Agricultor

Bartolo Balbinotti Agricultor

Justo Casarin Agricultor

Antonio Portantiolo Agricultor

Vicente Meggiato Agricultor

Innocenti Voltan Agricultor

Eugenio Morello Agricultor

José Bassi Agricultor

José Zanotti por apelido Biélla

Natal Marcolin por apelido Scatola