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07-11/12/2008 Yaoundé, Cameroun Conquistando o Espaço Público: A Música Enquanto Vector da Identidade Nacional em Cabo Verde Carmem Liliana Barros Furtado Universidade Pública de Cabo Verde CODESRIA 12th General Assembly Governing the African Public Sphere 12e Assemblée générale Administrer l’espace public africain 12a Assembleia Geral Governar o Espaço Público Africano رشع ةيناثلا ةيمومعلا ةيعمجلا اﻹﻓﺮﻳﻘﻰ اﻟﻌﺎم اﻟﻔﻀﺎء ﺣﻜﻢ

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07-11/12/2008 Yaoundé, Cameroun

CODESRIA

12th General Assembly Governing the African Public Sphere

12e Assemblée générale

Administrer l’espace public africain

12a Assembleia Geral Governar o Espaço Público Africano

ةيعمجلا ةيمومعلا ةيناثلا رشع حكم الفضاء العام اإلفريقى

Conquistando o Espaço Público: A Música Enquanto Vector

da Identidade Nacional em Cabo Verde

Carmem Liliana Barros Furtado Universidade Pública de Cabo Verde

CODESRIA

12th General Assembly Governing the African Public Sphere

12e Assemblée générale

Administrer l’espace public africain

12a Assembleia Geral Governar o Espaço Público Africano

ةيعمجلا ةيمومعلا ةيناثلا رشع حكم الفضاء العام اإلفريقى

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RESUMO: De uma fase de ser desconhecido, ou simplesmente formas exóticas, coisas do

povo, música de preto, a música caboverdiana que se considera ser de origem africana,

consegue ascender à categoria de manifestação cultural, e género musical no panorama

musical nacional, nos finais da década de 70, do século XX. Neste processo de “conquista”,

fica pelo caminho um longo momento na história da música caboverdiana dominado por

géneros musicais considerados de origem europeia, e, por conseguinte, vistos como mais

civilizados. Fazendo uso do conceito de Espaço Público, aborda-se a ideia da configuração

de um espaço público na música caboverdiana, reflectindo-se também sobre o

posicionamento e tratamento dos géneros musicais ditos tradicionais dentro deste espaço.

PALAVRAS-CHAVE: Música Caboverdiana; Espaço Público; Género Musical; Morna;

Funaná

--------------------------------------------------------------------------

ABSTRACT: From a phase of anonymity, or simply exotic forms, folk , black music, the Cape

Verdean music, which is considered to be of African origin, manages to ascend to the

category of cultural manifestation and music genre in the national music scene, in the late

1970s. In this “conquering” process, a long period in the history of Cape Verdean music was

left behind, dominated by music genres of European origin, and, therefore, considered as

more civilized. Using the concept of Public Space, tackles the idea of the configuration of a

public space in the Cape Verdean music and reflecting also about the positioning and

treatment of such traditional music genres within this space.

KEYWORDS: Cape Verdean music; Public space; Musical genre; Morna; Funaná

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Introdução

Cabo Verde: Terra da Morna! É, certamente, hoje, das expressões mais usuais que nós

encontramos para qualificar Cabo Verde em termos culturais, mais particularmente musical.

Esta expressão ganha força com o (re)conhecimento a nível internacional deste género

musical através da voz de Cesária Évora, principalmente durante os anos 90. Mas, muito antes

de Cesária, a Morna já ocupava um lugar de destaque na música caboverdiana. Apesar de não

existirem dados substanciais referentes à sua origem – sobre a qual ressalta a tese do seu

parentesco com outros géneros similares da Europa Ocidental, mais particularmente de

Portugal – este género tem o seu percurso marcado por referências e registos muito antigos de

composições, compositores e intérpretes, períodos estéticos marcados por compositores de

renome e estilos de interpretação, chegando-se mesmo a se fasear a história da música de

Cabo Verde de acordo com as configurações que a Morna foi adquirindo ao longo dos

tempos. São estas as formas de abordagem da música caboverdiana encontradas em alguma

literatura respeitante a esta questão, particularmente o «Aspectos evolutivos da Música

Caboverdiana» de Manuel Tavares, datado de 2005, e «Kab Verd Band» de Carlos

Gonçalves, de 2006.

No entanto, e como se deve supor, Música de Cabo Verde não é constituída somente

pela Morna! Fazem dela parte todo um conjunto de manifestações e géneros musicais que,

por algum motivo, não se conseguiram projectar ou ser (re)conhecidos. É esta uma das

observações no decurso da pesquisa «Música n(d)a Cidade: Espaço, Sociabilidades e

trajectórias de músicos no meio urbano caboverdiano» desenvolvida para a minha

dissertação de Mestrado, desde Janeiro 2008. A pesquisa tem como objectivo, através da

reconstrução das trajectórias de músicos de um bairro da capital de Cabo Verde – Bairro

Craveiro Lopes - mostrar como se constrói o percurso do músico em Cabo Verde,

particularmente na ilha de Santiago, Cidade da Praia.

Ao entrar em contacto com o percurso e a história de vida de alguns músicos dessa

ilha, e também dessa cidade, e fazendo uso da literatura caboverdiana que tem por objecto a

música nacional e a sua respectiva história, pareceu-me óbvio o tardio aparecimento e

reconhecimento dos géneros musicais que se consideram típicos da ilha de Santiago, como

por exemplo o Funaná.

Situado a cerca de 500 quilómetros da Costa Ocidental africana, na direcção do

Senegal, o arquipélago de Cabo Verde foi descoberto em 1460 por navegadores portugueses.

Por terem sido encontradas inóspitas, e obedecendo à conveniência da sua posição geo-

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estratégica no contexto dos interesses de exploração e comércio ao longo da Costa da África,

providenciou-se o povoamento pela ilha maior, a ilha de Santiago.

Numa análise muito simples, podemos dizer que para o povoamento de Cabo Verde,

contribuíram inicialmente elementos de áreas geográficas distintas: o senhor europeu (com

poder de mando), e o escravo africano (sem quaisquer direitos). Tendo presente a situação

socio-económica do senhor e de não serem respeitadas as bases culturais do escravo (que na

visão da época eram considerados inferiores), na relação entre estratos culturais foi imposta

ao africano a cultura europeia.

Estabilizada a sociedade e consequentemente a sua respectiva cultura, estruturou-se a

tradição, os hábitos, e os costumes híbridos, por isso um dos maiores problemas que a cultura

caboverdiana coloca, reside no facto de não se poder distinguir o que é nitidamente africano e

o que é europeu, ou mais particularmente português.

É o que ocorre com a música, a que agora se designa de música tradicional. Como

resultado do processo de miscigenação racial e cultural que ocorreu no arquipélago, a música

caboverdiana surge, assim, tendo como referência estes dois elementos: a Europa e a África.

Neste sentido, géneros musicais com um ritmo mais lento como a Morna, Coladeira (para

muitos considerado como um sub género da Morna), e outros géneros similares, praticados

principalmente nas ilhas ao norte do arquipélago, onde o processo de mestiçagem foi mais

forte, e, em que a componente europeia se revelou mais presente, são vistos como tendo uma

raiz europeia; enquanto que manifestações culturais e géneros como o Batuque, o Funaná, e a

Tabanka, entre outros, praticados principalmente na ilha de Santiago, e cujo ritmo se revela

num compasso mais acelerado, são considerados como marcadamente africanos.

Assim, e apesar de se afirmar a homogeneização da cultura cabo-verdiana é certo que

os elementos africanos desta cultura não tiveram o mesmo tratamento que os elementos da

cultura europeia. Notava-se uma grande preocupação em conduzir o cabo-verdiano a uma

cultura de cunho europeu.

A reflexão que se propõe baseia-se na ideia da configuração de um espaço público

musical em Cabo Verde em prol da defesa de alguns géneros musicais, como a Morna e

também a Coladeira, em detrimento de outros, pelo menos até a 1975, data da Independência

Nacional. Após este período, géneros musicais outrora proscritos da ordem social passam a

ser considerados como integrantes da cultura nacional como é o caso do Funaná, ditando o

que considero ser o nascimento de uma nova esfera pública na música nacional.

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Simplificando a análise, as categorias mais utilizadas serão os géneros musicais: A

Morna, e o Funaná. Não quer isso dizer que estes representam toda a música de Cabo Verde,

contudo o momento da consagração destes géneros ditou marcos na história da música do

arquipélago. É pois, isso que se quer mostrar – a conquista e o nascimento de uma esfera

pública na música caboverdiana.

O que se considera ser Música de Cabo Verde? O que ditou/dita o florescimento de

uma esfera pública na música caboverdiana? E o porquê da primazia da Morna em relação a

outros géneros? São algumas questões que se tem em conta, e sobre as quais se quer reflectir.

Espaço público na música caboverdiana

- Que conceito de espaço público?

O conceito de esfera pública tem a sua base na obra «Mudança estrutural na esfera

pública», de Jurgen Habermas, publicada na década de 70.

Habermas (HABERMAS, 1984) define a esfera pública como um espaço de livre acesso,

onde os cidadãos se encontram para debater e, racionalmente, desenvolver argumentos sobre

questões da vida comum.

Segundo Habermas, a história do Ocidente viu surgir, com a derrocada do poder feudal, um

espaço público burguês possibilitado pelo desenvolvimento do capitalismo mercantil do

século XVI, inaugurando uma organização econômica-sócio-política sem precedentes. O

período feudal havia conhecido uma esfera pública de representação. Nesse espaço público

predomina o controle e a dependência em relação ao soberano. Uma esfera com essa

configuração, centrada na corte, não regida pelos princípios de acessibilidade, discursividade

e racionalidade, teve o seu ocaso com a ascensão da burguesia, que, paulatinamente, foi se

fortificando, acumulando capital e exigindo menos intervenção estatal nos assuntos de

particulares. Esse desenrolar dos factos fez com que essa nova camada reivindicasse uma

organização sócio-política mais razoável. Assim:

(...) “a esfera pública burguesa desenvolveu-se no campo de tensões entre Estado e

sociedade, mas de tal modo que ela mesma se torna parte do setor privado. A separação

radical entre ambas as esferas, na qual se fundamenta a esfera pública burguesa, significa

inicialmente apenas o deslocamento dos momentos de produção social e de poder político

conjugados na tipologia das formas de dominação da Idade Média avançada. Com

expansão das relações económicas de mercado surge a esfera do ‘social’ que impede as

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limitações da dominação feudal e torna necessárias formas de autoridade administrativa”

(Ibid, p. 169).

É difícil encontrar uma esfera pública como a descrita inicialmente por Habermas. Ou

seja: a reunião de um público, formado por pessoas privadas, que constroem uma opinião

pública, com base na racionalidade do melhor argumento, e fora da influência do poder

político e económico, e da acção estratégica.

Porém, isto não significa que a mediatização da sociedade e da política, tenha

eliminado a existência da opinião pública e de outras mediações da sociedade ou que

impossibilite a construção de uma efectiva esfera pública democrática. Assim, é preciso

discutir seu processo de produção e em que circunstâncias as opiniões podem ser mais activas.

Além da existência de outras mediações políticas, sociais e culturais e de espaços de

relativa autonomia da recepção, os grandes meios de comunicação, desde que democratizados

e desmercadorizados, são instrumentos indispensáveis para a democratização da produção de

opiniões públicas.

A esfera pública segundo Hannah Arendt (2000) deve dar prioridade à pluralidade

humana, respeitando as diferentes posições, mas buscando sempre um acordo mútuo. O

mundo comum, isto é, a esfera pública, perde seu sentido de existência ao ser encarada em um

só aspecto, permitindo assim, somente a perspectiva de alguns.

A imprensa e os órgãos da comunicação podem basear-se nessa pluralidade, podendo

estar aberta às variadas opiniões. O consenso adquirido no plural, só pode ocorrer se existir

esse espaço público, que permite a liberdade de opinião e de acção. Por conseguinte o

conceito de espaço público que preconizamos neste trabalho é a defendida por Kant de Lima

(2000)

«O espaço público – em inglês, public – aparece assim, preferencialmente, como um

espaço colectivo negociado pelo público que dele faz parte, que pertence ao local e que se

compromete a conviver com as diferenças “normais” – quer dizer, aquelas que foram

explicitamente discutidas e aceites – num sistema que opõe iguais, mas diferentes, e que

procura, muitas vezes pela sua segregação imposta ou voluntária, prevenir explicitamente

o conflito latente entre indivíduos únicos com interesses divergentes» (LIMA; 2002: 261)

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- A Morna e o espaço público de âmbito regional

Da simbiose entre europeus e africanos de que resulta a cultura caboverdiana, os seus

géneros musicais sempre foram considerados como espelho deste processo. No entanto, os

géneros que se aproximavam dos ritmos africanos foram limitados no seu espaço.

«Verifica-se uma certa tendência em atribuir origem africana (e, como tal,

“gentílica”) a todas as formas de superstição e crenças populares, muitas das quais

perfeitamente localizadas na cultura popular portuguesa» (SEMEDO, TURANO, p.

40).

Houve sempre uma orientação explícita da política oficial que privilegiava a morna,

uma vez que esse género musical se aproximava mais com ritmos do Velho Continente.

Não só não se transmitia géneros musicais mais tipicamente africanos como em

Santiago, por exemplo, proibiu-se a prática de Batuque, Funaná, Tabanka no seu próprio

espaço dado que não se identificavam de modo tão claro com a cultura portuguesa. Sendo

considerado que na ilha de Santiago existe uma maior reminiscência afro-negra, pois (que) a

assimilação da cultura europeia foi menos completa e a miscegenação se processou com

menor intensidade do que no resto do arquipélago, durante o período colonial esta ilha vê-se

“condenada” sob o ponto de vista educativo, as suas manifestações não são valorizadas, vistas

como exóticas, e por vezes proibidas a fazer parte do espaço público.

É, pois em Santiago onde a 1866, no B.O de 7 de Março, o administrador do Concelho

da Cidade da Praia, José Gabriel Cordeiro faz

«saber a todas as pessoas a quem o conhecimento deste pertencer, que sendo os

denominados batuques um divertimento que se opõe à civilização actual do século, por ser

altamente incoveniente e incommodo, offensivo da boa moral, ordem tranquilidade publica,

que tanto a conveniência social reprimir de uma vez sempre aqelles, na maior parte

praticados por escravos, libertos e semelhantes, tanto porque tal divertimento do povo menos

civilizado, não convém que seja presenciado pôr pessoas honestas e de bons costumes, aos

quaes chamaria ao campo de immoralidade e da embriaguez; como porque incommoda os

habitantes pacíficos que se querem entregar durante a noite ao repouso e socego em suas

habitações; o não lhes é fácil conseguir, e que pôr vezes tem dado causa a numerosas

queixas. Por todos estes motivos e fundado no que dispõe o artigo 249, nº 18, do código

administrativo, determino:

1º Que desta data em diante ficam prohibidas os batuques em toda a área desta cidade.

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2º Que as pessoas que forem encontradas em flagrante do disposto, serão presas e entregues

ao poder judicial para serem processadas como desobedientes aos mandados da authoridade

publica nos termos do artigo 188.º do Código Penal”» 1.

Do mesmo modo, a Tabanka é vista como contrária à ordem social estabelecida, e

também é proibida de fazer parte do espaço público. Como nos mostra a Portaria nº 52, de 26

de Abril de 1923, nos artigos 1º e 2º:

«Ficam proibidas as festas populares denominadas Tabancas com as suas costumadas

manifestações gentílicas salvo, porém, o poderem constituir-se em associações de

socorros mútuos ou de beneficências mediante as formulações legais»

«As autoridades administrativas e policiais, os professores e em geral todas as

entidades oficiais que possam exercer influência sobre o espírito do povo empregarão

os seus esforços para que este se abstenha de manifestações colectivas de feitio

desarmónico com os preceitos da civilização»2

Por seu lado, o Funaná não era (bem) aceite pelas autoridades religiosas e pela classe

dominante. Antero da Veiga, num artigo datado de 19823, refere:

«(…) se um tocador estivesse a tocar e visse um padre, escondia-se porque era

considerado pecado»

A ilha de Santiago vê assim as suas manifestações culturais proibidas, e sem a

possibilidade de serem consideradas como parte integrante da cultura caboverdiana. Por outro

lado, ainda que sendo a ilha onde a capital da província se situava, não beneficiava de uma

estrutura do ensino secundário. Os habitantes desta ilha, vêm-se assim claramente

“condenados” do ponto de vista educativo.

«A ilha de Santiago, embora sendo a maior e a de localização da capital – Praia –

tinha uma desproporção imensa entre a maioria esmagadora da população negra e

uma pequena elite de senhores brancos (…) Assim, o maior investimento em ensino do 1 Charles Samson Akibodé, «A Tradição Oral em África: sua génese e sua importância como fonte histórica». In Revista Kultura, Julho de 1998, nº 2, pág. 51. 2,José Maria SEMEDO; Maria R TURANO; Cabo Verde: O ciclo ritual das festividades da Tabanca; Praia; Spleen Edições; p. 130/131 3 Emanuel Antero da VEIGA; «Badju Gaita na Ilha de Santiago: Seu historial, origem e desenvolvimento»; in Voz di Povo 14/08/1982; p. 7

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fim do século passado acabou se transferindo para a ilha de São Nicolau». (ANJOS;

2002: 50)

Deste modo, o Seminário-Liceu de São Nicolau jogou um papel decisivo na instrução

de alguns caboverdianos, já que é anterior ao Liceu de São Vicente, este criado somente em

1912.

Neste sentido, «até a década de sessenta existia um único Liceu em São Vicente,

limitando o ensino aos filhos dos altos funcionários da Administração Colonial, dos

Comerciantes e dos grandes proprietários» (FURTADO; 1997: 72).

É como nos afirma Anjos (2002), é pois nas ilhas de povoamento posterior, como é o

caso de São Vicente, em que a estratificação racial se impôs com menos vigor, que a disputa

pelas instituições de ensino vem a explicitar o surgimento de um grupo social vocacionado

para a mediação.

«A origem social dos intelectuais, que “inventam” a identidade caboverdiana, deve

ser encontrada no ponto de encontro de dois grupos sociais: entre as decadentes

famílias brancas e as ascendentes famílias não brancas. Os mais consagrados poetas

da literatura caboverdiana do primeiro terço do século – José Lopes, Pedro Cardoso,

Januário Leite, e Eugénio Tavares – são oriundos de ilhas de concentração das

tradicionais famílias brancas em processo de decadência» (ANJOS; 2002: 52).

A reivindicação destes intelectuais está na ambição de se tornarem mediadores pelo

facto de serem os que melhor conhecem a realidade caboverdiana, e por isso convencer os

metropolitanos que estão à altura de ocupar os cargos da administração colonial.

«A invenção da identidade mestiça como definidora da população caboverdiana só

pode inserir-se numa estratégia de reconversão das modalidades de dominação»

(ANJOS; 2002: 67).

Há claramente uma disputa por cargos da administração colonial, em que estes

intelectuais, que fizeram a sua trajectória escolar no arquipélago, buscam convencer a

metrópole de que eles são os melhores para ocupar os referidos cargos. Considera-se os

caboverdianos como intelectual e culturalmente superiores aos povos das demais colónias

portuguesas.

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Isso se manifesta na «estratégia de um determinado grupo social, que normalmente se

identifica como branco, descendentes de europeus a, num determinado momento,

identificar-se como local de origem e com perfil fisionómico que os mesmos percebem

como sendo a maioria da população (…). Este grupo social, esta elite define-se então

acima dos africanos, apresentando-se Cabo Verde e a sua cultura como um modelo,

como um sinal da luso-africanidade. Isso se verifica até mesmo nas relações internas,

diferenciando-se do “badiu”, população da ilha de Santiago tida como a mais negra

e, portanto, menos evoluída intelectualmente, e sobretudo nas relações externas, com

os “nativos” das demais colónias». (ANJOS; 2002: 74)

É baseando no pressuposto de superioridade intelectual dos caboverdianos que José

Lopes faz apelo ou aviso à administração portuguesa, reivindicando soluções para o

arquipélago:

«Não queira, pois, o Governo Português, precipitar esse momento, desprezando ou

dirigindo mal as suas colónias a cuja frente estamos nós os caboverdianos pelo nosso

desenvolvimento intelectual e pela pureza de nossos costumes. Introduza sem demora

na Província melhoramentos, que são urgentes» (LOPES; 1899: 6)

Além de José Lopes, Eugénio Tavares é sem dúvida uma das grandes figuras da época.

Natural da ilha Brava, é descendente de europeus, goza da sua consagração como poeta e

músico de prestígio, e defende a então especificidade caboverdiana, consubstanciada na

mestiçagem, e na pureza dos costumes caboverdianos. É também o grande compositor de

Mornas, sendo-lhe atribuída o período mais antigo da música caboverdiana que vai dos anos

20 aos anos 30 do século XX, altura da sua morte.

É precisamente neste período que a morna domina, passando a fazer parte integrante

de festas e bailes, que nunca foram considerados contrários à moral e ordem estabelecida,

antes pelo contrário, revelava o lado civilizado do caboverdiano. Como nos afirma Osório de

Oliveira 4

« (…) dos chamados “bailes nacionais” em que cantam e dançam mornas(…). Como

a morna é uma dança de sala, aqueles bailes apesar de populares, não se realizam

num terreiro, mas sim, dentro de casa. Promovem-nos, geralmente raparigas do povo,

4 «Posfácio Alheio»; in Eugénio Tavares; Mornas: Cantigas Crioulas; Lisboa; 1931

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costureiras e criadas de servir, mas tomam parte neles homens e rapazes de todas as

categorias sociais, tão democrática é a maneira de ser dos caboverdianos»

Considerada como uma melodia vagarosa, sensual e triste, o poeta mais cantado neste

período é Eugénio Tavares. No entanto e mesmo se afirmando a morna como género musical

que traduz o sentido da caboverdianidade, durante toda a primeira metade do século XX, a

morna é somente popularizada entre a classe social dominante. A via “erudita” da morna não

consegue penetrar nas classes mais baixas, principalmente no meio rural santiaguense, onde

apesar das proibições, “imperava” o batuque e o funaná nos terreiros.

Essa via erudita, a tal “intelectualidade caboverdiana” é ainda reafirmada por

intelectuais de uma geração que se segue à esta de Eugénio Tavares. Refiro-me à Geração

Claridade, nome da revista fundada, em São Vicente, na década de 30, por um grupo de

intelectuais que se propõem colocar as questões pertinentes ao desenvolvimento do

arquipélago, e analisar sociológica e antropologicamente a personalidade cultural do

caboverdiano. Como representante do Movimento Claridoso temos Baltazar Lopes da Silva,

Jorge Barbosa, e Manuel Lopes.

Alguns autores, como é o caso do sociólogo caboverdiano José Carlos Anjos,

defendem a tese de que o principal princípio no pensamento deste movimento é a oposição

entre Cabo Verde e a África. De facto esta tese pode ser bem aceite se levarmos em conta

afirmações como de Manuel Lopes, no primeiro número da Revista Claridade:

«É vulgar verem-se desembarcar nestas ilhas africanas (…) estrangeiros, sedentos de

exotismos, com aquela doentia curiosidade de quem pisa terras de África e, por

conseguinte, terras de mistério, e que (…) tornam a embarcar desiludidos e azedos,

porque nada de novo colheram, (…) não assistiram sequer a uma sessão de magia

negra. O problema caboverdiano é menos de ordem tradicional e estático, que

cultural e dinâmico» (LOPES; 1936:5).

Se do ponto de vista geográfico Cabo Verde está inserido na África, do ponto de vista

cultural estaria quase que em oposição com continente. A ideia de Cabo Verde como portador

de uma cultura mestiça serviria de diferenciador em relação ao continente, fazendo-se

comparações com o Brasil, como o faz Baltazar Lopes da Silva:

«Esta ficção e esta poesia revela-nos ambientes, tipos, estilos, formas de

comportamento, defeitos, virtudes, atitudes perante a vida, (…) [que] deve

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corresponder a semelhanças profundas de estrutura social entre Cabo Verde e Brasil»

(SILVA; 1956:6)

A ideia do caboverdiano como um povo mestiço, fazendo-se analogias com o Brasil,

culturalmente próximo da Europa, e geograficamente situado na África, é transmitida também

na música. Durante o período de vigência do Movimento Claridade, até os anos 60, a música

caboverdiana vive o denominado período Beleza (B.Leza), ou beleziano. Depois de Eugénio

Tavares, a grande figura na música caboverdiana é B.Leza, de nome Francisco Xavier da

Cruz. Natural da ilha de São Vicente, a ele ficou a dever-se a introdução do chamado meio-

tom brasileiro na Morna. Amigo de muitos defensores do grupo Claridade, principalmente

Baltazar Lopes, com quem dividiu muitas vezes a autoria das suas composições. B. Leza

publicou alguns livros. Em «Uma partícula da Lira Caboverdiana», de 1933, apresenta 10

das suas mornas, e mais um texto onde ele apresenta as suas ideias sobre a música

caboverdiana. Destaca-se a referência que faz da Morna:

«Há só uma terra que conhece a “Morna” e só um povo conhece-lhe os versos – Cabo

Verde e o homem caboverdiano» (CRUZ; 1933)

Se até a década de 60, temos a concentração de um único Liceu em São Vicente, a

maioria das publicações é feita em São Vicente (como o caso por exemplo do periódico

«Notícias de Cabo Verde»; «Revista de Cabo Verde», e com algum destaque a Revista

Claridade), e, por último, temos também a concentração de compositores e intérpretes da

música caboverdiana (que se dedicavam somente ao género Morna) nesta ilha, nada mais

esperado que se reivindicar um tratamento diferenciado para esta ilha na vertente cultural.

Quem o faz é Baltazar Lopes.

Num artigo da sua autoria «Uma academia de música em São Vicente»5, publicado no

«Cabo Verde», mostrava a premência de uma academia de música em Mindelo (capital de

São Vicente), dizendo:

«É uma dor de alma pensar a gente em quantos violinistas de primeiro plano devemos

ter perdido pelo simples facto de não terem aprendido os rudimentos da técnica do

instrumento, sequer, um Mochinho de Monte, um Futurista, um Lila, um Juvenal, um

Chico carrinho, um Neco (…), que eu vi há muitos anos acompanhando com a sua

5 In «Cabo Verde»; nº 102; Março de 1958

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orquestra de pau-e-corda os emigrantes que iam embarcar para a América (…)»

(SILVA; 1958)

Se para São Vicente já se reivindicava uma escola para ensino e aperfeiçoamento de

música, para a maior ilha de Cabo Verde e sede da capital da província ainda se solicitava um

estudo sobre as manifestações culturais típicas da ilha. Mais uma vez, é Baltazar Lopes que,

numa entrevista conduzida por Michel Laban6.

«A ilha de Santiago e o Fogo estão a pedir, como pão para a boca, um trabalho de

campo aturado, exaustivo e crítico feito por especialistas. Estes não teriam mãos a

medir: temáticas, origens, processo de reelaboração do homem crioulo, prognósticos

quanto ao aproveitamento para uma música “culta”»

Através da imprensa e da comunicação se veicula a ideia de São Vicente como sendo

uma ilha cultural, “culta”, capital musical, enquanto que Santiago, com manifestações

culturais próprias, aparecia sob a sombra de ser um lugar exótico, onde mora a África, e cuja

cultura precisa ser pesquisada e desvendada.

Podemos falar num espaço público na música caboverdiana?

A abordagem sobre esfera pública mostra que esta pode ser percebida na vida quotidiana,

na experiência diária dos indivíduos, a partir de uma linguagem comum e acessível a todos.

Dessa forma, a comunicação produzida pelos meios de comunicação contribui para a

divulgação e mesmo a formação do espaço público, no qual ocorre a reflexão da vida social

de forma aprofundada.

A esfera pública pode ser melhor descrita como uma rede para comunicar

informações e pontos de vista; os fluxos de comunicação são, no processo, filtrados e

sintetizados de tal forma que se aglomeram em feixes de opiniões públicas

tematicamente especificadas. Do mesmo modo que o mundo da vida como um todo, a

esfera pública também é reproduzida por meio da acção comunicativa, para a qual o

domínio da língua natural é suficiente; esta é configurada para a compreensão geral

da prática comunicativa quotidiana (HABERMAS, 1997, p. 92).

6 Ondina Ferreira; Baltasar Lopes da Silva e a Música; Praia; Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro; 2006; p.29

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É, pois, o que aconteceu com os géneros da música caboverdiana. Através da

comunicação, utilizando grandemente a imprensa, a intelectualidade caboverdiana, ainda que

de forma indirecta, favoreceu o género musical morna porque justificava a ideologia de um

povo intelectualmente mais desenvolvido que as outras colónias portuguesas em África. Em

paralelo, as autoridades coloniais querendo impor a sua cultura, tomam uma orientação

explícita que privilegia a morna, uma vez que esse género musical aproxima-se mais da

canção portuguesa, nomeadamente o fado. Enquanto que, em Santiago não só não se

transmitia géneros musicais mais tipicamente africanos como proibiu-se a prática de algumas

manifestações como Batuque, Tabanka e Funaná no seu próprio espaço dado que não se

identificavam de modo tão claro com a cultura portuguesa.

É esse espaço público que se configura (protagonizado por intelectuais que defendiam

uma especificidade caboverdiana), instância de mediação entre o Estado e a sociedade, que se

permite a discussão pública, partindo do princípio do reconhecimento comum da força da

razão, da troca de argumentos entre os indivíduos. A troca de argumentos estaria entre aqueles

para os quais se criou as condições, falo na possibilidade de instrução dificultada ao

santiaguense.

A esfera de debate e troca de opiniões que se denominam de públicos, ou seja

respeitantes aos interesses dos caboverdianos, se circunscreve a um grupo limitado de

pessoas, voltado para uma determinada realidade que não era representativa do arquipélago.

A construção de uma opinião pública, livre de constrangimentos, é o próprio motivo

da existência da esfera pública habermasiana. Reconhece-se, como espírito desta categoria, a

argumentação que se entabula, sob a mediação da imprensa literária, a partir de debates em

locais de convívio público.

Logo, a tarefa que se atribui à esfera pública, é a de criar condições para que se forme, em

instâncias não governamentais, uma opinião crítica sobre esta e sobre a vida, de modo geral,

dando, assim, nascimento à chamada sociedade civil.

Estaríamos, no período descrito da música caboverdiana, na presença de uma esfera

pública na música caboverdiana?

No período descrito, a termos uma esfera pública, ela é restrita a uma elite

caboverdiana que disputa e pede soluções à uma elite governamental. A música surge como

um dos instrumentos sobre a qual se apoia os argumentos da elite “nativa”. Retomamos a

perspectiva de Arendt de que a esfera pública, perde a sua razão de ser ao ser encarada em um

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só aspecto, permitindo somente a perspectiva de alguns. Por conseguinte, não seria este ainda

a configuração de uma esfera pública na música caboverdiana.

- O Funaná e conquista de um espaço público musical de âmbito nacional

Reafirmamos que aqui se preconiza o espaço público, não mais restrita a um espaço de

competição e luta entre os membros de uma elite, mas sim, um espaço onde todos os que

forem afectados pelas normas sociais gerais e políticas podem se pronunciar por meio de um

discurso prático quanto à validade de tais normas.

É justamente o que parece ter-se verificado no período que sucede a Independência

Nacional de Cabo Verde, em 1975. A ideia de público, e do colectivo, e um tratamento de

igualdade para todas e quaisquer manisfestações caboverdianas constitui umas das principais

preocupações dos governantes que assumiram o país no pós independência foi como estipula

o artigo 16º da Constituição:

«é imperativo fundamental do Estado criar e promover as condições

favoráveis à salvaguarda da identidade cultural como suporte da consciência e

dignidade nacional e factor estimulante de desenvolvimento harmonioso da sociedade.

O Estado preserva, defende e valoriza o património cultural do caboverdiano»

É a altura do surgimento dos mais variados festivais de música na cidade da Praia, com

vista a descoberta e divulgação de novas figuras na música nacional. Salientamos aqui

iniciativas culturais realizadas na Praia neste periodo: Mini Festival de Música na Praia, o

lançamento do programa radiofónico na Emissora Nacional - «Música de Cabo Verde –

artistas e Intérpretes», Mini festival Praia 79; Festival Praia 80, entre outros.

Nesta altura parece brotar uma nova fase na música de Cabo Verde cujo corolário

consistiu na liberalização de toda a forma de actividade cultural e a cessação definitiva às

proibições impostas à um número considerável de géneros musicais. Criava-se, assim, um

ambiente propício à investigação e ao desenvolvimento de todos os estilos da cultura musical

caboverdiana. Uma vez que é um período onde todos os géneros musicais têm igual vez e voz,

vamos registar uma invação, sem precedentes no cenário da música de Cabo Verde, em que se

apropria de músicas alheias – nacionais e estrangeiras – adoptando-lhes uma outra verificação

em língua crioula.

Isto fez despoletar uma espécie de revolta daqueles que eram considerados como nomes

sonantes da música caboverdiana nesta altura, que se diziam habituados com a autenticidade

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da música crioula. Manuel de Novas, grande compositor de Mornas e Coladeiras, manifesta o

seu protesto na sua composição «Gôt Pintôd» - «Gato Pintado»:

“Oji tude Gôt Pintôd “Hoje todos os gatos pintados

E um kompozitor na nôs terra são compositores na nossa terra

Ês pruveitá aproveitaram-se

Virason di nôs stória da viragem da nossa história

Jás formá kampanha e montaram campanha

Pâs sasiná nôs múzika para assassinar a nossa música

Num melodia roubode numa melodia roubada

Na jente por li, na gente por lá em gente por aqui, gente por lá

Si múzika ê spedju se a música é espelho

Di kultura di um povu da cultura de um povo

Ká nô fuzilá não fuzilemos

Nôs morna y koladera a nossa morna e coladeira

Ká nô sasiná não assassinemos

Kultura di um povu a cultura de um povo

Ká nô kontrariá não contrariemos

Spiriti di Tavares di B.Leza o espírito de Tavares e de B. Leza

Si morna moré se a morna morrer

Nôs ligria já kabá a nossa alegria já acabou

Noites di violão Noites de violão

Nôs luar, nôs serenata Nosso luar, a nossa serenata

Ta f”ká sepultôde Ficam sepultados

Na noites de stória nas noites de história

Si kretxeu moré Se a amada morrer

Kab Verd també já moré Cabo Verde também já morreu”.

Nesta nova fase na música de Cabo Verde que se inaugura neste período, intérpretes e

grupos musicais esforçam-se no sentido de interpretar temas que manifestassem a relação com

o continente africano e o que se considera ser a caboverdianidade. Pode-se dizer que há assim

uma ruptura com o tipo de música que se fazia anteriormente:

« É apartir dos anos oitenta que se começa a sentir este efeito evolutivo,

quando se dá aos níveis composicional e execucional início a um marcante processo

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de ruptura nos estilos musicais, consubstanciado em corte umbilical com a “antiga

escola de fazer música” até então vigente» (TAVARES; 2005: 32)

Ao mesmo tempo que alguns géneros musicais principalmente praticados na ilha de

Santiago (res)surgem agora como fazendo parte da cultura nacional, se verifica mudança na

própria forma de se fazer a Morna, para além da temática que já não é a mesma.

« Outras transformações irão acompanhar a estrutura da morna, que sofre

uma alteração significativa já agora a desligar-se da chamada “velha escola” por

meio de composições apresentados por Tututa, Paulino Vieira, Catxás, este último sob

a influência do funaná (…)» (Idem; 33)

De um género musical tocado somente no meio rural santiaguense, o Funaná, é dos

primeiros a sair da toca do desconhecimento para se projectar a nível nacional e também

internacional, principalmente nos inícios dos anos 80, tendo como principal representante o

Conjunto Bulimundo, que adaptou a este género instrumentos eléctricos.

Definido como «um género de música e dança caboverdianas, característico da ilha de

Santiago, com canto acompanhamento e solo por um acordeão, ritmo é produzido pelo

esfregar de uma faca numa barra de ferro» (GONÇALVES; 2006: 59)

Durante todo o período que antecede a independência nacional este género sempre fora

associado à vida mundana, desprezado pelas elites da era colonial que o consideravam música

de selvagens. Para esta ideia muito contribuiu a tradição de “Tirar de casa”, ou melhor o rapto

da noiva sem se realizar o casamento, o que dava muitas contentas, chegando, por vezes, a

ocasionar brigas e mortes. Isso também contribuiu para a má fama das festas e convívios do

meio rural animados por aquilo que se denominava “Badju gaita” – o Funaná.

Katxás, de nome Carlos Alberto Martins, o grande mentor do Grupo Musical Bulimundo,

num artigo publicado em 19867 mostra a dificuldade do funaná em se conseguir projectar, e

considera a discriminação deste género como algo que engrandece a sua conquista.

«Em 1980, o Funaná ainda “não era música” e no conjunto Bulimundo a

maior dificuldade era levar os elementos do conjunto a consciencializarem e a tocar

esse género de música. (…) Nós fizemos a guerrilha cultural indispensável ao

lançamento do Funaná. Um cronista português utilizava esta frase bastante

significativa … “pecado de trazer aos salões da capital o ritmo popular do interior da

7 «Funaná a maior Conquista»; publicado no Jornal Tribuna de Dezembro de 1986.

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ilha” (…) Em termos ideológicos [o Funaná] constituía o extremo da repressão

psicológica ao nível da cultura (música). Eis porque a sua libertação tem um

significado especial»

Ao ser lançado nas salas de baile da capital, e em todo o arquipélago, a etapa que se

seguiu foi a conquista de palcos internacionais, o que veio a se verificar nos finais dos anos 80

e durante os anos 90 com os Finason, liderados por dois elementos que faziam parte dos

Bulimundo: Zezé e Zeca Nha Reinalda. Após os Finason, no final da década de 90,

verificamos um regresso às origens como conjunto Ferro Gaita, que utilizando instrumentos

eléctricos, introduzem os elementos chave do Funaná: o ferrinho e o acordeão.

Estaríamos assim face à consagração de um género musical que vem ultrapassar o

panorama da Morna e da Coladeira que vigorou até os finais dos anos 70. É uma nova fase da

música caboverdiana que vigora até hoje, e que, quanto a nós, vem ditar a configuração de um

verdadeiro espaço público na música caboverdiana.

Neste domínio, o espaço público é o espaço onde a liberdade pode aparecer.

«Sem liberdade de expressão, o indivíduo não é verdadeiramente livre e não pode ser um

activo participante ou manter o respeito próprio e sua dignidade, enquanto funcionando com

outros como parte da sociedade» (SILVEIRA, 1999: 129).

A sociedade civil só dispõe da esfera pública para se movimentar, para expor suas ideias.

Empenha-se, então, em sua revitalização constante por meio da crítica, buscando explorar as

possibilidades comunicativas existentes e buscando ampliar suas fronteiras pela incorporação

de novos grupos minoritários, ou marginais, assim como inventar novas formas de comunicar

e transmitir.

Considerações Finais

A primeira grande lição que se tira da reflexão apresentada é a de que,

independentemente de toda e qualquer especulação, a música, além de comportar elementos

(tocar, cantar, dançar, são exemplos), ela permite-nos proceder a uma incursão no universo de

um povo e nele tentar encontrar a idiossincrasia da sua cultura, que é uma das características

da sua identidade.

Nesta óptica, fica claro que as práticas musicais (desde a composição à interpretação) não

podem ser dissociadas do contexto cultural em que elas emergem, e onde são praticadas. Cada

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cultura possui seus próprios estilos, abordagens, e concepções do que é a música, e do seu

papel nesta sociedade.

Como resultado do processo de formação da sociedade e cultura caboverdianas, a música

surge como apresentando ora componentes europeias, ora componentes africanas. A

desvalorização das componentes africanas na música de Cabo Verde é feita pelo repressão do

sistema colonial, e por todo um grupo social que, sob o argumento de que Cabo Verde,

culturalmente, ter mais similaridades com a Europa do que com a África, vinculava a morna

como essência do ser caboverdiano.

Ainda que verifiquemos que há, pelo uso da linguagem, a divulgação da música

caboverdiana, quer seja nos espaços de convívio, quer seja na imprensa, focalizando as

preocupações da comunidade, mas relacionada aos interesses e particularidades de um grupo e

espaço específico, no caso a ilha de São Vicente, a esfera pública específica existente não vai

de encontro com a ideia de esfera e espaço público que ressaltamos neste trabalho. A esfera

pública é vista como

«O lugar “apropriado particularizadamente”, seja pelo Estado, seja por outros

membros da sociedade autorizados, ou não, por ele, e, por isso, sempre,

aparentemente, opaco, caótico e imprevisível ao olhar colectivo, onde tudo pode

acontecer e onde “quero tudo o que tenho direito”, significado não só que reivindico

aquilo que sei merecer, mas que desejo ter, substantivamente, tudo o que os outros

têm e cujo conteúdo e significação, eventualmente, posso até desconhecer» (LIMA;

2002: 263).

Nesta esfera pública, o tópico quase essencial é a ideia de igualdade, associada à

semelhança, e não à diferença. É, isto que quanto a mim, vem ditar a real configuração de um

espaço público na música caboverdiana, no período pós independência até hoje.

Nos seus vários géneros, sejam eles resultados de processos em que a componente

europeia se revelou mais forte, ou, pelo contrário, em que a cultura africana se impôs, seja a

Morna, ou o Funaná, seja a Coladeira, seja o Batuque, etc., no espaço público da música

caboverdiana o que vale é o que os géneros musicais têm de semelhante: serem resultados do

processo de formação da cultura caboverdiana.

Sem estar a cair em essencialismos, a Música de Cabo Verde é tudo aquilo que, no

campo das artes dos sons, seja feito pelo caboverdiano.

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