Carryl Churchill - Muito Longe[1]

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Muito Longe Peça de Caryl Churchill 1 Personagens Joan, uma garota Harper, sua tia Todd, um jovem A Parada (cena 2.5): Cinco é muito pouco. Vinte é melhor do que dez. Cem? Cena 1 Casa de Harper. Noite. JOAN. Não estou conseguindo dormir. HARPER. Você está estranhando a cama. JOAN. Não. Eu gosto de lugar diferente. HARPER. Está com frio? JOAN. Não. HARPER. Quer tomar alguma coisa? JOAN. Acho que estou com frio. HARPER. Muito fácil. Tem cobertor extra no armário. JOAN. Está tarde? HARPER. Duas horas. JOAN. Você vai dormir? HARPER. Quer tomar alguma coisa quente? JOAN. Não, obrigada. HARPER. Então eu vou dormir. 1 Miscelânea das traduções de Marcos Barbosa e de Aimar Labaki para o original inglês “Far Away”, de Caryl Churchill, organizada para fins exclusivamente didáticos. 1

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Muito LongePeça de Caryl Churchill1

PersonagensJoan, uma garotaHarper, sua tia

Todd, um jovem

A Parada (cena 2.5): Cinco é muito pouco. Vinte é melhor do que dez. Cem?

Cena 1

Casa de Harper. Noite.

JOAN. Não estou conseguindo dormir.

HARPER. Você está estranhando a cama.

JOAN. Não. Eu gosto de lugar diferente.

HARPER. Está com frio?

JOAN. Não.

HARPER. Quer tomar alguma coisa?

JOAN. Acho que estou com frio.

HARPER. Muito fácil. Tem cobertor extra no armário.

JOAN. Está tarde?

HARPER. Duas horas.

JOAN. Você vai dormir?

HARPER. Quer tomar alguma coisa quente?

JOAN. Não, obrigada.

HARPER. Então eu vou dormir.

JOAN. Certo.

HARPER. Um lugar novo é sempre estranho. Quando você já tiver passado uma semana aqui vai se lembrar de hoje a noite e vai ser completamente diferente.

JOAN. Eu já estive em muitos lugares. Já fiquei na casa dos meus amigos. Eu não sinto falta dos meus pais, se é isso que a senhora está pensando.

HARPER. Sente falta do seu cachorro?

1 Miscelânea das traduções de Marcos Barbosa e de Aimar Labaki para o original inglês “Far Away”, de Caryl Churchill, organizada para fins exclusivamente didáticos.

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JOAN. Acho que eu sinto falta da minha gata.

HARPER. Ela dorme na sua cama?

JOAN. Não, porque eu espanto. Mas ela entra se a porta não estiver bem fechada. A gente pensa que fechou mas se não tiver travado, de noite ela empurra e abre.

HARPER. Vem cá um instante. Você está se tremendo. Está com calor?

JOAN. Não. Estou bem.

HARPER. Você se cansou demais. Vá dormir. Eu também vou.

JOAN. Eu fui lá fora.

HARPER. Quando? Agora?

JOAN. Agora.

HARPER. Por isso é que você está com frio. Aqui é quente de dia, mas é frio à noite.

JOAN. Aqui as estrelas brilham mais do que lá em casa.

HARPER. É porque não tem a luz da rua.

JOAN. Não dá para ver muita coisa.

HARPER. Imagino mesmo que não. Como foi que você saiu? Eu não ouvi o barulho da porta.

JOAN. Saí pela janela.

HARPER. Eu acho que eu não gostei nada disso.

JOAN. Não. É seguro. Tem o telhado e uma árvore.

HARPER. Quando as pessoas vão dormir têm que ficar na cama. Você sai pela janela na sua casa?

JOAN. Em casa não dá porque - Não.

HARPER. Eu sou responsável por você.

JOAN. Eu sei. Desculpa.

HARPER. Bom, por hoje já chega de aventura. Agora você vai dormir. Vá lá para cima. Está quase dormindo em pé.

JOAN. Teve um motivo.

HARPER. Para você sair?

JOAN. Eu ouvi um barulho.

HARPER. Uma coruja?

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JOAN. Um grito.

HARPER. Então era uma coruja. Tem todo tipo de pássaro aqui, talvez você veja até um papa-figo dourado. Tem gente que vem aqui só para ver os pássaros. Às vezes a gente faz chá ou café ou vende garrafinha d’água porque não tem bar aqui e as pessoas não pensam que vão ficar com sede. Você vai ver de manhã como o lugar é bonito.

JOAN. Parecia mais uma pessoa gritando.

HARPER. Parece uma pessoa gritando quando a gente escuta uma coruja.

JOAN. Era uma pessoa gritando.

HARPER. Coitada. Imagino o medo que você teve pensando que tinha ouvido alguém gritar. Você devia ter vindo direto falar comigo.

JOAN. Eu queria ver.

HARPER. Estava escuro.

JOAN. É, mas eu vi.

HARPER. Está bem. O que é que você acha que viu no escuro?

JOAN. Vi meu tio.

HARPER. É, você pode ter visto. Ele gosta de tomar ar. Mas ele não estava gritando, eu espero.

JOAN. Não.

HARPER. Tudo bem, então. Você falou com ele? Você devia estar com medo de ele lhe perguntar o que você estava fazendo fora da cama tão tarde.

JOAN. Eu fiquei na árvore.

HARPER. Ele não te viu?

JOAN. Não.

HARPER. Ele vai tomar um susto, não vai? Vai morrer de rir quando souber que você estava na árvore. Vai ficar com raiva, mas não é nada sério, não. Ele vai achar que é uma boa piada, o tipo de coisa que ele fazia quando era garoto. Bom, agora, cama. Eu também já vou.

JOAN. Ele estava empurrando alguém. Estava jogando alguém no galpão.

HARPER. Ele devia estar colocando um saco bem grande no galpão. Ele trabalha tarde da noite.

JOAN. Eu não tenho certeza se era uma mulher, podia ser um rapaz.

HARPER. Bom, eu vou ter que lhe dizer que depois que a gente está casada a tanto tempo quanto eu, tem coisas que a gente tem que aceitar, é normal, não tem nada demais, eram amigos do seu tio que estavam dando uma festinha.

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JOAN. Era uma festa?

HARPER. Uma festinha. Só isso.

JOAN. É, porque não era só uma pessoa.

HARPER. Não. Devia ter alguns amigos do seu tio.

JOAN. Tinha uma carreta.

HARPER. É, acho que devia ter.

JOAN. Quando eu coloquei meu ouvido no lado da carreta eu ouvi gente chorando lá dentro.

HARPER. E como foi que você conseguiu fazer isso de cima da árvore?

JOAN. Eu desci da árvore. Eu fui para a carreta depois que olhei pela janela do galpão.

HARPER. Tem algumas coisas que talvez não sejam da sua conta quando você está de visita na casa de outras pessoas.

JOAN. Eu sei. Eu preferia não ter visto. Desculpa.

HARPER. Ninguém te viu?

JOAN. Estavam fazendo as coisas deles.

HARPER. Eu acho que foi sorte sua que ninguém te viu.

JOAN. Se era uma festa, por que é que tinha tanto sangue?

HARPER. Não tinha sangue nenhum.

JOAN. Tinha sim.

HARPER. Onde?

JOAN. No chão.

HARPER. No escuro? Como é que você ia conseguir ver isso no escuro?

JOAN. Eu escorreguei. (mostra o pé descalço) Eu já limpei quase tudo.

HARPER. Era o sangue do cachorro que foi atropelado hoje à tarde.

JOAN. Não já devia ter secado?

HARPER. Não se o chão estivesse enlameado.

JOAN. Que tipo de cachorro?

HARPER. Um cachorro bem grande. Um vira-lata.

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JOAN. Que horrível. A senhora deve estar muito triste. Fazia tempo que a senhora tinha esse cachorro?

HARPER. Não, ele ainda era novo, ele fugia, nunca era obediente, a carreta estava vindo de ré. JOAN. Qual era o nome dele?

HARPER. Relâmpago.

JOAN. Qual era a cor dele?

HARPER. Preto com um pouco de branco.

JOAN. Por que é que tinha criança no galpão?

HARPER. Que criança?

JOAN. A senhora não sabia que tinha criança lá?

HARPER. Como foi que você conseguiu ver que tinha criança?

JOAN. Tinha uma luz acesa. Foi por isso que eu consegui ver o sangue no galpão. Deu para eu ver o rosto deles. Tinha uns com sangue.

HARPER. Você descobriu um segredo. Você sabe disso, não sabe?

JOAN. Sei.

HARPER. É uma coisa que você não devia saber.

JOAN. Desculpa.

HARPER. É uma coisa que você não deve nunca comentar. Porque se você comentar pode colocar em perigo a vida das pessoas.

JOAN. Por que? A vida de quem? Do meu tio?

HARPER. Do seu tio não, claro que não.

JOAN. A sua?

HARPER. Claro que não é a minha, você está louca? Eu vou te contar o que está acontecendo. Seu tio está ajudando aquelas pessoas. Está ajudando elas a escapar. Está dando abrigo a elas. Tinha umas que ainda estavam na carreta, por isso é que estavam chorando. Seu tio vai colocar elas todas no galpão e aí vai ficar tudo bem.

JOAN. Tinha sangue na cara delas.

HARPER. Isso foi antes. Foi porque elas estavam sendo atacadas pelas pessoas das quais seu tio está salvando.

JOAN. Tinha sangue no chão.

HARPER. Uma delas se acidentou gravemente e seu tio ajudou a fazer os curativos.

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JOAN. Ele está ajudando.

HARPER. Isso mesmo.

JOAN. Não era um cachorro, nem era uma festa.

HARPER. Não. Eu estou lhe confiando a verdade. Você nunca deve falar sobre isso ou vai colocar a vida do seu tio em perigo e a minha e mesmo a sua. Você não pode contar isso nem para seus pais.

JOAN. Por que a senhora quis que eu ficasse se tinha esse segredo?

HARPER. A carreta devia ter vindo ontem. Isso não vai acontecer de novo enquanto você estiver aqui.

JOAN. Mas agora já pode acontecer porque eu sei. Vocês não têm que parar por minha causa. Eu posso ajudar o tio no galpão e tomar conta deles.

HARPER. Não. Ele tem que fazer isso só. Mas obrigada por se oferecer, isso foi muito gentil. Mas depois de tanta aventura você acha que já pode ir para a cama?

JOAN. Por que o tio estava batendo neles?

HARPER. Batendo em quem?

JOAN. Estava batendo num homem com uma vara. Eu acho que a vara era de metal. Ele bateu numa criança.

HARPER. Uma das pessoas da carreta era um traidor. Não era um deles de verdade, estava fingindo, ia trair os outros, eles descobriram e contaram a seu tio. Aí ele atacou seu tio, atacou os outros, seu tio teve que lutar com ele.

JOAN. Por isso é que tinha tanto sangue.

HARPER. É. Ele teve que fazer isso para salvar os outros.

JOAN. Ele bateu numa criança.

HARPER. Devia ser o filho do traidor. Ou às vezes tem crianças más que traem até os pais.

JOAN. O que é que vai acontecer?

HARPER. Eles vão embora de carreta amanhã bem cedo.

JOAN. Para onde?

HARPER. Para onde eles estão escapando. Você não vai querer guardar mais um segredo.

JOAN. Ele só bateu nos traidores.

HARPER. Claro. Imagino porque você não conseguia dormir. Que coisa mais chata de se ver. Mas agora você entende, não é tão mal assim. Você é parte de um grande movimento para fazer as coisas melhores. Pode ficar orgulhosa disso. Você pode olhar para as estrelas e ver que aqui estamos no

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nosso pedacinho do mundo e que estou do lado das pessoas que estão fazendo a coisa certa e sua alma vai crescer céu afora.

JOAN. Eu não posso ajudar?

HARPER. Você pode me ajudar a limpar, de manhã. Você me ajuda?

JOAN. Ajudo

HARPER. Então é melhor você ir dormir.

Cena 2.

Anos mais tarde. Uma oficina de chapéus.

1. Joan e Todd. estão sentados numa mesa de trabalho. Cada um está começando a fazer um chapéu.

TODD. Já tem um monte de azul.

JOAN. Acho que eu vou começar com preto.

TODD. As cores sempre ganham.

JOAN. Eu vou ter cor. Só tô começando com o preto pra fazer contraste com a cor.

TODD. Semana passada eu fiz um que era uma pintura abstrata da rua. Azul pros ônibus, amarelos pros prédios, verdes pra folhas, cinza pro céu. Ninguém sacou, mas eu sabia o que era. É um dos poucos prazeres que se tem por aqui.

JOAN. Você não se diverte?

TODD. Você é nova nisso, né?

JOAN. Esse é meu primeiro chapéu. Meu primeiro chapéu profissional.

TODD. Você fez chapéu na faculdade?

JOAN. Meu chapéu de formatura foi uma girafa de um metro e meia de altura.

TODD. Você não vai ter tempo de fazer uma coisa dessas em uma semana.

JOAN. Eu sei.

TODD. Antes a gente tinha duas semanas antes de uma parada, aí eles diminuíram pra uma e agora já tão falando em cortar um dia.

JOAN. Então a gente teria uma folga a mais?

TODD. A gente teria é um dia a menos de pagamento. A gente não ia conseguir fazer chapéus tão bons.

JOAN. Eles podem fazer isso?

TODD. Você ia brigar, não é?

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JOAN. Eu acabei de começar.

TODD. Você vai descobrir que tem um monte de coisa errada com esse lugar.

JOAN. Eu achava que era um dos melhores empregos que havia.

TODD. E é. Você sabe onde ir almoçar?

JOAN. Acho que tem uma cantina, não tem?

TODD. Tem, mas a gente não vai lá. Eu vou te mostrar onde ir.

2. Dia seguinte. Eles estão trabalhando em chapéus, que agora estão decorados com muito mais brilho, isto é, aqueles nos quais eles estavam trabalhando foram trocados por outros mais perto de estarem prontos.

JOAN. Sua vez.

TODD. Eu dou uma nadada no rio antes do trabalho.

JOAN. Não é perigoso?

TODD. Sua vez.

JOAN. Eu tenho um brevê.

TODD. Eu fico acordado todo dia até as quatro da manhã assistindo os julgamentos e bebendo pernod.

JOAN. Eu estou conseguindo um quarto perto do metrô.

TODD. Eu tenho meu próprio lugar.

JOAN. Tem?

TODD. Quer ver? Já tá ficando com uma cara.

JOAN. Eu não entendo o seu. Mas eu gosto das penas.

TODD. Eu não estou experimentando nada. Já estou aqui há muito tempo.

JOAN. Você vai embora?

TODD. Minha vez. Tem alguma coisa errada na forma como a gente consegue os contratos.

JOAN. Mas nós queremos os contratos.

TODD. E se nós não merecermos? E se o nosso trabalho não for de verdade o melhor?

JOAN. Então o que é que está acontecendo?

TODD. Vou falar por exemplo do cunhado de uma certa pessoa. Onde acha que ele trabalha?

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JOAN. Onde ele trabalha?

TODD. Eu não vou falar disso aqui. Me conte outra coisa.

JOAN. Eu não gosto de passar as noites assistindo julgamentos.

TODD. Eu assisto à noite, depois que eu volto.

JOAN. Volta de onde?

TODD. De onde você gosta?

3. Dia seguinte. Eles estão trabalhando nos chapéus, que estão ficando muito grandes e extravagantes.

TODD. Eu pessoalmente não gosto de chapéus de animais.

JOAN. Eu era uma estudante.

TODD. Os chapéus abstratos estão voltando com tudo.

JOAN. Eu sempre gostei de chapéus abstratos.

TODD. Você não deve ter percebido quando todo mundo odiava eles.

JOAN. Provavelmente, foi antes do meu tempo.

Silêncio. Eles continuam trabalhando.

JOAN. É só que, se você volta pra esse assunto o tempo todo, eu não sei por quê você não faz alguma coisa.

TODD. Esse é o seu terceiro dia.

JOAN. A diretoria é corrupta – você me disse. A gente é muito mal pago – você me disse.

Silêncio. Eles continuam trabalhando.

TODD. Tem verde demais.

JOAN. É pra ter mesmo.

Silêncio. Eles continuam trabalhando.

TODD. Eu percebi quando você ficou olhando pro chapéu daquele menino no mercado. Espero que você tenha contado pra ele que aquilo era uma cópia.

Silêncio. Eles continuam trabalhando.

TODD. Eu sou a única pessoa nesse lugar que tem algum princípio, não venha me dizer que eu tenho que fazer alguma coisa. Eu passo meus dias matutando o que fazer.

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JOAN. Então alguma hora você vai aparecer com alguma coisa.

Silêncio. Eles continuam trabalhando.

4. Dia seguinte. Eles estão trabalhando nos chapéus, que agora estão enormes e ridículos.

TODD. Isso está bonito.

JOAN. Gosta?

TODD. Gosto.

JOAN. Eu gosto do seu também.

TODD. Você não tem que dizer isso. Não é um dos meus melhores.

JOAN. Não… ele tem um – eu não sei, é um chapéu confiante.

TODD. Já tem seis anos que eu faço paradas. Portanto eu sou uma mão de obra antiga e valiosa. Então, quando eu vou e falo com uma determinada pessoa, ela deveria prestar atenção.

JOAN. Você vai falar com ele?

TODD. Eu tenho uma hora marcada depois do trabalho.

JOAN. Você pode perder o emprego.

TODD. Posso.

JOAN. Eu estou impressionada.

TODD. Era essa a idéia.

JOAN. Você vai mencionar o cunhado?

TODD. Primeiro eu vou falar sobre o dinheiro. Então eu vou só falar assim de passagem no cunhado. Eu tenho um amigo que é jornalista.

JOAN. Você vai falar no jornalista?

TODD. Eu posso deixar implícito, sem ter que entregar o jornalista. É melhor se ele não puder fazer uma ligação entre o jornalista e eu.

JOAN. Só que ele vai suspeitar.

TODD. Depende de quanto ele suspeitar. Só tem uma coisa se eu perder esse emprego.

JOAN. O que é?

TODD. Eu vou sentir a sua falta.

JOAN. Já?

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5. Dia seguinte. Uma procissão de prisioneiros esfarrapados, espancados e acorrentados, cada um com um chapéu, a caminho da execução. Os chapéus são ainda maiores e absurdos que os da cena anterior.

6. Uma nova semana. JOAN. e TODD. começam a trabalhar em novos chapéus.

JOAN. Eu ainda não tô acreditando.

TODD. Ninguém nunca ganhou um prêmio na sua primeira semana de trabalho!

JOAN. Agora é só ladeira abaixo.

TODD. Você não pode ganhar toda semana.

JOAN. Foi o que eu quis dizer.

TODD. Não mas você vai construir um belo conjunto de obras enquanto estiver aqui.

JOAN. Às vezes eu acho uma pena que não guardem mais.

TODD. São muitos. O que é que iam fazer com eles?

JOAN. Poderiam reaproveitar.

TODD. Claro. E aí a gente ia ficar sem emprego.

JOAN. É tão triste queimar os chapéus com os corpos.

TODD. Não. Eu acho que esse é o prazer da coisa. Os chapéus são efêmeros. É como uma metáfora de alguma outra coisa.

JOAN. Bom, é a vida.

TODD. Bom , é a vida, é isso aí. Dos quase trezentos chapéus que eu já fiz aqui, eu só tive três premiados que foram pro museu. Mas isso nunca me importou. Você cria beleza e ela desaparece. Eu adoro isso.

JOAN. Você é tão...

TODD. O quê?

JOAN. Você me faz pensar umas coisas diferentes. Que nem ,eu nunca ia pensar em como esse lugar é dirigido e agora eu vejo como isso é importante.

TODD. Eu acho que eu consegui enfatizar pra uma certa pessoa que eu estava falando de um ponto de vista moralmente elevado.

JOAN. Então, me conta outra vez exatamente o que foi que ele disse no final.

TODD. “Essas são coisas sobre as quais é preciso refletir.”

JOAN. Acho que isso é muito encorajador.

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TODD. Pode só querer dizer que ele vai pensar num maneira de se livrar de mim.

JOAN. Esse é um formato fantástico pra se começar.

TODD. É novo pra mim. Eu estou ficando inspirado por você.

JOAN. Ainda tem o jornalista. Se ele pesquisar mais um pouco ele pode expor toda a base financeira corrupta da indústria chapeleira, não só esse lugar. Eu aposto que toda a indústria é meio suspeita.

TODD. Você acha?

JOAN. Eu acho que a gente deveria descobrir.

TODD. Você mudou a minha vida, sabia disso?

JOAN. Se você perder o seu emprego, eu me demito.

TODD. Nós nunca mais iríamos conseguir trabalhar com chapéus.

JOAN. Existem outras paradas.

TODD. Mas eu acho que você é um gênio do chapéu.

JOAN. A não ser que todas as paradas sejam corruptas.

TODD. Adora essas contas. Usa essas contas.

JOAN. Não, você fica com elas.

TODD. Não. Você.

Cena 3

Anos mais tarde. Casa de Harper, dia.

HARPER. ‘Cê tava certo de dar veneno pras vespas.

TODD. É, acho que as vespas tiveram que ir mesmo.

HARPER. Ontem eu tava lá fora, na beira da floresta quando veio uma sombra enorme e era uma nuvem de borboletas, e elas desceram ali na minha frente e as árvores e as moitas ficaram vermelhas por causa delas. Duas delas pousaram no meu braço. Eu entrei em pânico. Uma delas entrou no meu cabelo. Eu dei um jeito de esmagar elas.

TODD. Eu nunca tive problemas com borboletas.

HARPER. Elas podem cobrir toda sua cara. Os romanos costumavam cometer suicídio com uma folha de ouro , só colocavam na garganta e ela cobria a traquéia, eu sempre penso nisso, com as borboletas.

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TODD. Eu estava passando por um pomar, e tinha uns cavalos lá, parados debaixo das árvores, e de repente umas vespas saíram das ameixeiras e atacaram. Os cavalos saíram galopando com suas cabeças feitas de vespas. Eu queria que ela acordasse.

HARPER. A gente não sabe quanto tempo ela andou.

TODD. Ela fez bem em vir ?

HARPER. Você não pode simplesmente sair andando no meio de uma guerra.

TODD. Você pode, se está fugindo.

HARPER. Nós não sabemos se ela está fugindo.

TODD. Ela estava a caminho de algum lugar seguro pra reagrupar.

HARPER. E esse aqui é um lugar seguro?

TODD. Relativamente, é, sim. Todo mundo pensa que é só uma casa.

HARPER. Os gatos se bandearam pro lado dos Franceses.

TODD. Eu nunca gostei de gatos. Eles fedem, arranham, eles só gostam de você por que você dá comida pra eles, eles mordem. Uma vez eu tive um gato que vinha assim de repente e arrancava um pedaço de você com a boca.

HARPER. Sabia que eles estão matando bebês?

TODD. Aonde?

HARPER. Na China. Eles pulam nos berços quando ninguém tá olhando.

TODD. Mas alguns gatos ainda são normais.

HARPER. Eu não acho.

TODD. Eu conheço um gato lá na estrada.

HARPER. Não, você tem que tomar cuidado.

TODD. Mas nós não estamos exatamente contra os Franceses. Não é como se eles fossem os Marroquinos e as formigas.

HARPER. Não é como se eles fossem os Canadenses, os Venezuelanos e os mosquitos.

TODD. Não é como se eles fossem os engenheiros, os cozinheiros, as crianças abaixo de cinco anos de idade, os músicos.

HARPER. Os vendedores de carro.

TODD. Os vendedores de carro portugueses.

HARPER. Nadadores russos.

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TODD. Açougueiros tailandeses.

HARPER. Dentistas da Letônia.

TODD. Não os dentistas letões fizeram um bom trabalho em Cuba. Eles têm uma casa nas cercanias de Havana.

HARPER. Mas a Letônia tem mandado porcos pra Suécia. Os dentistas têm ligações com a odontologia internacional e é aí que está a lealdade deles, com os dentistas em Dar-es-Salaam.

TODD. Não vamos discutir sobre Dar-es-Salaam.

HARPER. Você tentaria justificar o massacre de Dar-es- Salam? Ela veio pra cá por que você está de licença e se alguém descobre, eu é que vou ser responsabilizada.

TODD. É só até amanhã. Eu vou acordá-la. Vou dar mais uns minutos pra ela.

HARPER. Você chegou a ver o programa sobre os crocodilos?

TODD. Sim, mas crocodilos, o jeito como eles cuidam dos bebês crocodilos e baixam eles na água com as bocas.

HARPER. Você não acha que todos ajudam suas próprias crianças?

TODD. Eu só estou dizendo que eu não ia achar ruim se os crocodilos `tivessem do nosso lado. Você sabe, eles são incontroláveis.

HARPER. Crododilos são maus e é sempre certo ser contra crododilos. Sua pele, seus dentes, o cheiro de carne morta que vem da suas bocas. Crocodilos esperam até as zebras estarem atravessando o rio e mordem as mais fracas com suas mandíbulas e as arrastam. Crocodilos invadem cidadezinhas de noite e arrancam crianças de suas camas. Crocodilos comem seus inimigos bem devagar, arrancando com os dentes primeiro os pés, depois até os joelhos, depois os órgãos genitais,, ou se estão com pressa vão pela cidade arrancando cabeças. Um crocodilo carrega uma dúzia de cabeças de volta pro rio, onde elas ficam boiando, como troféus, até apodrecerem.

TODD. Só tô’ dizendo que a gente podia usar isso.

HARPER. E os encantadores passarinhos d’água cobertos de penugem ? O menorzinho deles deixado ali pra trás gritando esperem por mim, esperem por mim, e sempre aquele terrível risco de ser comido. E a mãe deles que daria a vida para salvá-los.

TODD. Você inclui os patos selvagens?

HARPER. Patos selvagens não são bons pássaros d’água. Eles cometem estupros, e eles estão do lado dos elefantes e dos Coreanos. Mas crocodilos estão sempre do lado errado.

TODD. Você acha que eu devo acorda-la ou deixar ela dormir? A gente não vai ter muito tempo junto.

HARPER. Você concorda comigo sobre os crocodilos?

TODD. Qual o problema? Você não sabe de que lado eu estou?

HARPER. Eu não sei o que você pensa.

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TODD. Eu penso o que todos nós pensamos.

HARPER. Pegue o cervo por exemplo.

TODD. Você quer dizer aqueles viadinhos pequenininhos?

HARPER. Você tá sendo irônico?

TODD. Eu estou sendo sarcástico.

HARPER. Por que eles invadem os parques e descem as montanhas como se fossem tempestades e aterrorizam os shopping centers. Se eles fogem por que você atira neles, eles vão pra cima de outra pessoa e a esmagam com suas patinhas reluzentes. Os menorzinhos se metem debaixo dos pés das pessoas e jogam elas escada abaixo, os adultos mais jovens se jogam contra as vitrines.

TODD. Eu sei odiar cervos.

HARPER. … e os mais velhos, você sabe como a galhada deles pode ser pesada e seus dentes afiados quando se jogam contra adolescentes andando na rua.

TODD. Eu sei disso.

Ele levanta a camisa e mostra uma cicatriz.

HARPER. Foi um cervo?

TODD. Na verdade, foi um urso. Eu não gosto que duvidem de mim.

HARPER. Eu sempre confiei em elefantes até que eles foram pra cima dos holandeses. Eu sempre confiei em elefantes.

TODD. Eu atirei em gado e crianças na Etiópia. Eu joguei gás em cima de tropas mistas de espanhóis, programadores de computação e cachorros. Eu despedacei passarinhos com as minhas próprias mãos. Eu gosto de fazer isso só com as mãos, quando minhas mãos ficam cheias de sangue e penas, me dá um barato, eu poderia passar o dia todo fazendo aquilo, é melhor que sexo. Então não venha insinuar que eu não sou de confiança.

HARPER. Eu não estou dizendo que você não é capaz de matar.

TODD. E eu sei que nem tudo é excitante. Já fiz muito trabalho chato. Já trabalhei em abatedouros dando choque em porcos e músicos e no fim do dia as costas doem e tudo que dá pra ver, quando se fecha os olhos, é gente pendurada de cabeça pra baixo, presa pelos pés.

HARPER. Você diria então que os cervos são cruéis.

TODD. A gente já falou sobre isso.

HARPER. Se um cervo entrasse no jardim, você não ia dar comida pra ele?

TODD. Claro que não!

HARPER. Eu não entendo isso já que os cervos estão do nosso lado. Já faz três semanas.

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TODD. Eu não sabia. Foi você quem disse.

HARPER. Sua bondade natural veio à tona. Dá pra ver naqueles suaves olhos castanhos.

TODD. Isso é uma boa notícia.

HARPER. Você odeia os cervos. Você adora os crocodilos.

TODD. Eu perdi o jeito por que eu tô cansado.

HARPER. Você tem que ir embora.

TODD. Eu sou da sua família.

HARPER. Você acha que eu durmo?

Joan entra e vai pros braços de Todd.

HARPER. Você não pode ficar aqui, eles vêm atrás de você. O que é que você vai dizer quando voltar, que fugiu pra passar um dia com seu marido? Todo mundo tem alguém que ama, e que gostaria de ver, ou pelo menos alguém que ele prefere ver do que ficar deitado num buraco, esperando ser comido pelas formigas. Você pretende voltar? Ou então é melhor me dar um tiro já. Alguém te viu sair? ‘Cê veio por que caminho? Te seguiram? Tem águias marinhas por aqui que devem ter te visto chegar. E você tá arriscando tua vida por uma coisa que você nem conhece direito, por que esse aí tá dizendo coisas que não são corretas. Você não se importa? Talvez você mesma não saiba mais distinguir o certo do errado. Que é que eu mesma sei sobre você depois de dois anos? Eu queria estar feliz de te ver, mas como é que eu posso?

JOAN. É claro que os pássaros me viram , todo mundo me viu chegando, mas ninguém sabe por quê. Eu poderia estar numa missão. Todo mundo vai pra cima e pra baixo e ninguém sabe o por quê, e a verdade é que eu matei dois gatos e uma criança com menos de cinco anos então não é tão diferente de uma missão, e eu não vejo por quê eu não posso tirar um dia e depois voltar, depois disso eu vou até o fim. O que eu tinha mais medo não era dos pássaros, era do mau tempo, o mau tempo por aqui tá do lado dos japoneses. Tinha tempestades por todas as montanhas, passei por cidades que eu nunca tinha visto antes . Os ratos tão sangrando pela boca e pelos ouvidos, o que é bom, e a moças nas margens da estrada também . Foi muito cansativo por que todo mundo está sendo recrutado, tinha uma pilha de corpos e se você parasse pra descobrir, um tinha sido morto com café, outro morto com alfinetes, outros mortos por heroína, petróleo, serra elétrica, laquê, alvejante, dedaleiras; o cheiro de fumaça, nos lugares onde a gente queimava a relva que já não ia servir. Os Bolivianos estão trabalhando com a gravidade, mas tá sendo feito em segredo pra não causar alarme. Mas nós já estamos bem adiantados com o ruído e há milhares de pessoas mortas com luz em Madagascar. Quem é que vai recrutar o silêncio e a escuridão? É isso que eu fico me perguntado durante a noite. No terceiro dia eu já não podia andar, mas eu desci pro rio. Havia um campo de soldados chilenos mais acima, mas eles não tinham me visto e catorze vacas malhadas mais pra baixo da correnteza bebendo, então eu sabia que ia ter de atravessar. Mas eu não sabia de que lado o rio estava, ele podia me ajudar a nadar ou podia me afogar. No meio, a correnteza ia muito mais rápido, a água estava marrom, eu não sabia se aquilo queria dizer alguma coisa. Eu fiquei ali na margem muito tempo. Mas eu sabia que era a única maneira de eu chegar aqui, então por fim eu botei um pé no rio. Estava gelado, mas até ali era só isso. Quando você acabou de entrar, você não sabe o que vai acontecer. Seja como for, a água lambe em volta dos seus tornozelos.

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