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    Para a Histria do Socialismo

    Documentos

    www.hist-socialismo.net

    Traduo do alemo por PG, reviso e edio por CN, 28.11.2012

    _____________________________

    Carta a um amigo e camarada

    sobre a situao no movimento comunista1

    Kurt Gossweiler

    25 de Abril de 1969

    Grnau, 25.4.69Caro Erwin!

    () A questo mais importante que colocas, diz respeito existncia de duas verdades,uma oficial para as massas e uma no oficial sussurrada aos iniciados. Tuprprio dizes que uma questo empolada; eu considero apenas que est mal colocada.O problema levantado a questo correctamente formulada no de modo algumnovo: Deve-se dizer a verdade sempre e em todo o lado, dizer toda a verdade e todasas verdades? E a resposta s pode ser uma: No. Isso no seria a verdadeira verdade.Para ns, no se trata de um supermercado da verdade, mas sim da verdade de que

    necessitamos para a luta, para melhor reconhecer o seu objectivo, para poder avaliarcorrectamente a nossa fora e a do inimigo, para aumentar o apoio prpria causa e odio contra o inimigo e sua causa perversa. A poltica de informao portantoobrigatoriamente tambm uma poltica de no informao.

    Mas ainda mais importante a outra perspectiva, nomeadamente, a de que cadainformao tambm uma informao para o adversrio. E ento surge uma situao deconflito: h informaes de que precisamos (ou precismos), mas que no podem chegarao adversrio. Quero dar um exemplo. Num artigo sobre a luta de Lnine contra ostrotskistas a propsito da paz de Brest, a historiadora sovitica Markova escreveu:Surgiu no partido uma situao difcil. ()S havia uma sada, uma ltima esperana

    conduzir abertamente a luta pela paz, dirigir-se s massas. As massas compreend-lo-iam e apoi-lo-iam. Mas Lnine no queria e no podia expor perante os alemes asituao interna no partido. Expor nesse momento a falta de unidade nas fileiras dopartido significava dar um trunfo aos imperialistas alemes contra o Estado sovitico.Assim, Lnine foi obrigado a esperar. Confiou que a vida revelaria a posio errada dosinimigos da paz. (Cincia Sovitica, 12/1959, p. 1302)

    O exemplo significativo sob dois aspectos: primeiro, mostra e a reside o seusignificado principal que podem existir situaes em que as verdades necessrias nopodem ser ditas s massas porque no devem chegar ao conhecimento dos inimigos. E foiLnine o mesmo Lnine que tu citaste, para quem a fora do Estado depende de as

    1 Publicado pela primeira vez em Contra o Revisionismo, Kurt Gossweiler, Verlag zurFrderung der wissenschaftlichen Weltanschauung, Munique, 2 ed., 2004, pp. 129-137.

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    massas poderem saber tudo e ajuizar sobre tudo que silenciou a verdade s massas.E o exemplo elucidativo porque representa uma forma indirecta de informar. Estouprofundamente convencido de que Markova, ao descrever as circunstncias de 1919,queria dar indicaes sobre a situao do partido em 1959, a todos aqueles que reflectiamsobre a vida interna do PCUS e estavam preocupados com a falta de informao.

    Afirmei que este um problema normal e velho, inseparvel da luta de classes. Masdesde meados dos anos 50 este problema apareceu numa forma nova, anormal,pervertida: Khruchov introduziu a desinformao e o engano conscientes no estilo detrabalho do PCUS, e com isso colocou todos os outros partidos perante o dilema de oseguirem ou o rejeitarem. Eis as mais importantes destas desinformaes: em primeirolugar, a reabilitao de Tito, um renegado, o chefe do revisionismo, e a sua transformaonum exemplar discpulo leninista e lutador desde a primeira hora contra o culto dapersonalidade no leninista. Em segundo lugar, a difamao de Stline como umcriminoso e tirano, um homem que havia estado frente do PCUS desde a morte deLnine; em terceiro lugar, a introduo de um novo princpio antileninista no

    relacionamento entre partidos comunistas, a chamada no ingerncia, como alegadoprincpio leninista; em quarto lugar, a declarao da coexistncia pacfica como linhageral da poltica externa dos estados socialistas, e de outras.

    O que aconteceu colocou todos os partidos comunistas perante uma situao que noestava prevista em nenhum manual de marxismo-leninismo, em nenhum clssico, e quecada um teve de resolver (ou no). No quero enumerar as consequncias, mas apenasdizer que aqui se encontram as razes da situao inconcebvel que se verifica no camposocialista e no movimento comunista internacional.

    Vejamos um nico aspecto. O princpio da chamada no ingerncia que umarecusa do internacionalismo proletrio e da auto-assuno dos partidos comunistas comomembros de um movimento mundial homogneo teve como consequncia que apoltica de cada partido comunista foi declarada do seu foro privado, sobre a qual, namelhor das hipteses, apenas tinha de dar satisfaes sua classe operria, e no mais aoproletariado e ao movimento mundiais. Por sorte, Khruchov no foi suficientemente fortepara obrigar ao cumprimento deste princpio, caso contrrio a Hungria seria hojemembro da NATO e a Checoslovquia j no seria um Estado socialista. No entanto, esteprincpio permite que algum que tenha conseguido alcanar a direco do partido possaafastar-se do leninismo quanto entender sem que nenhuma crtica estrangeira o atinja.Prova: a posio dos partidos comunistas (o nosso includo) em relao a Dubcek,2

    2 Dubek, Alexander (1921-1992), filho de pai operrio emigrado na URSS, foi no pas dossovietes que recebeu a sua educao entre 1925 e 1938. De regresso Eslovquia adere ao PartidoComunista em 1939. Mantm estreitas relaes com a resistncia durante a ocupao nazi eparticipa na insurreio nacional eslovaca no Outono de 1944. Torna-se funcionrio do partidoem 1949, assumindo vrios cargos de direco. Em 1955 regressa URSS para frequentar durantetrs anos a Escola Superior do PCUS. Quando regressa, em 1958, eleito primeiro secretrio dopartido no distrito de Bratislava, tornando-se primeiro secretrio do partido eslovaco em 1963.Em 1968 torna-se primeiro secretrio do CC do PC da Checoslovquia e inicia um conjunto dereformas para a restaurao do capitalismo no pas, que so travadas graas interveno dastropas do Tratado de Varsvia, em 20 de Agosto desse ano. Apesar de derrotado, Dubcek mantido como primeiro secretrio do partido e presidente da Assembleia Federal da

    Checoslovquia at Abril de 1969, sendo ento substitudo por Gustav Husak. Em 1970 finalmente expulso do partido e perde o mandato de deputado. Embaixador na Turquia (1969-70), trabalha como quadro dirigente no sector florestal at 1981, ano em que se reforma. Em 1989

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    depois da sua (inconcebvel!) confirmao [na liderana do partido (N. Ed.)], aps aentrada das Foras Armadas irms. Naturalmente que este princpio tambm no aplicado consequentemente. Mas desde que o desvio se limite poltica interna e no sejaseguido de ataques a outros partidos, ns tambm nos abstemos de criticar. Querosublinhar que no fomos ns, no foi o nosso partido que criou este famoso princpio.

    Tito inventou-o e Khruchov introduziu-o com carcter obrigatrio no [nosso] campo. Aconsequncia, no que diz respeito verdade e informao, que s podemoscaracterizar um comunista estrangeiro como antileninista enquanto no ocupar nenhumcargo no partido. Mas se estiver na direco ou for secretrio-geral, ento, pela fora doseu cargo, um bom comunista, protegido pelo tabu da ingerncia, desde que nose imiscua nos assuntos dos outros. Nestas condies no podes esperar que a nossadireco te informe amplamente sobre a situao nos outros partidos; no pode faz-lo,mesmo que (e estou convencido disso) o quisesse muito. S a abolio colectiva, numanova conferncia, deste monstruoso princpio antileninista poder remediar algumacoisa. Mas a prxima no ir faz-lo de certeza h muitos que querem manter esteprincpio. Enquanto assim for, porm, os nossos camaradas dirigentes no podemcriticar abertamente a poltica dos outros partidos fora de reunies bilaterais oumultilaterais. E s imperfeitamente podem substituir a informao que no dispem comnormas, orientaes, cuja compreenso e aplicao tm de deixar ao nosso critrio.Quando a Direco sublinha que o nosso caminho da agricultura colectiva corresponde sleis gerais e exigncias da construo do socialismo, est a fazer uma crtica, afirmandoimplicitamente de que aqueles que procedem de outra maneira no seguem uma polticaleninista.

    Naturalmente que este gnero de informao muito complicado e insatisfatrio.Tambm absolutamente anormal. Mas no somos ns, quer dizer, a direco do nossopartido, os responsveis pelas condies que tornaram esta anomalia numa regra. A

    direco to vtima como qualquer outro membro do nosso partido, uma vez quequalquer perturbao na comunicao entre a direco e as massas prejudica todo opartido, de baixo a cima. Pelo meu lado, acho que dificilmente outra Direco ter feitomais para permitir que os membros penetrem da aparncia para a essncia, seja atravsde informaes internas, seja atravs da publicao do Boletim do Movimento OperrioInternacional(infelizmente foi suspenso sem um substituto altura).

    Portanto, a primeira coisa a fazer para no se dirigir crticas injustas na direcoerrada , a meu ver, tomar conscincia de que foram criadas e fixadas condies, desdeh mais de uma dcada, que no tm nada a ver com os princpios do leninismo nasrelaes entre os partidos comunistas. Para se constatar isso no so necessrias

    informaes especiais, mas basta a simples aferio dos novos princpios luz dosexperimentados princpios de Marx e de Lnine, que tivemos oportunidade de aprenderprofundamente. Continuo a diz-lo com profundo agradecimento: Foi a escola stalinianaque me permitiu, nos tempos da mais cerrada cortina de fumo ideolgica, no perder aperspectiva clara, distinguir a verdade da mentira, e que hoje me poupa, pela segundavez, de mudar de orientao. Primeiro de stalinista em devorador de Stline (oukhruchoviano) e agora e no futuro de novo antikhruchoviano. Isto no um auto-elogio,nem uma acusao contra ningum, mas sim uma forma de sublinhar o enorme valorterico da formao que recebemos nesses supostos tempos medonhos do culto dapersonalidade.

    participa activamente na contra-revoluo e consegue de novo o lugar de presidente daAssembleia Federal que ocupa at morte em 1992. (N. Ed.)

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    Iniciei a minha observao crtica em 1955, quando Khruchov declarou subitamenteque todas as acusaes contra Tito eram invenes de Bria. Como? Ento era umainveno que os EUA vendiam armas Jugoslvia com base num acordo? Era umainveno que a Jugoslvia pertencia ao pacto imperialista dos Balcs? Era uma invenoque Tito derramava desde h anos torrentes de calnias imundas sobre a URSS? Que os

    imperialistas tinham por ele muita estima, o acarinhavam e alimentavam com caldinhose leite: De um comunista assim gostamos, at podamos ser todos titistas! Teriamsido invenes? No, eram factos, factos que eu prprio tinha vivido, e ningum,ningum, nem mesmo o sucessor de Lnine e de Stline, podia levar-me a aceitar atransformao de factos em invenes, simplesmente porque assim o decidia. Masnaturalmente surgiu logo a questo: Porque o faz? Isto admissvel? A tctica pode ir tolonge ao ponto de transformar um inimigo e cmplice dos imperialistas num amigo ecamarada? Passou algum tempo at poder dar resposta a estas questes, e foi aindanecessrio outras experincias, principalmente os trgicos acontecimentos na Hungriaque, tenho disto a certeza, nunca teriam sido possveis sem aquele certificado deinocncia a Tito.

    No me quero alargar nas concluses a que cheguei, basta o seguinte. Para mim aquesto da falta de informao no foi decisiva, mas sim a convico de que os factos somais importantes do que qualquer afirmao, independentemente de quem a profira. Aautoridade mxima so os factos, e s aqueles que os respeitam so dignos de confiana.So suspeitos aqueles que manipulam os factos ou que procuram at invert-los, bemcomo aqueles que hoje apresentam uma verdade, amanh outra e depois de amanh denovo a primeira. E quando nos apercebemos de que algo no muito seguro, procuramosinformao. Naturalmente, preciso todo o material possvel para se poder formar umaimagem fidedigna.

    Mas o que deve fazer quem no consegue obter essa informao? Como se podersaber quem e quem no um verdadeiro marxista-leninista? H tantos que o afirmamser e se acusam mutuamente de desvios ao marxismo-leninismo

    Naturalmente, existem critrios objectivos. Mas tem de se dar ateno a vrios, um sno suficiente. Pensemos, por exemplo, nos estados socialistas europeus. No nenhum segredo que o entendimento do marxismo-leninismo na poltica interna eexterna muito diferente. Quer dizer, hoje em dia apresentam-se coisas diferentes sob acapa do marxismo-leninismo. Qual o anel verdadeiro? A parbola de Lessing,3naturalmente, no nos pode ajudar a encontrar a verdade...

    Cheguei seguinte concluso: da mesma forma que, para mim, indiscutvel que aUnio Sovitica o centro e a fora dirigente do campo socialista, tambm, hoje em dia,

    3 O escritor alemo Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) incluiu a Histria dos Trs Anisno seu poema dramtico Nathan der Weise (Nat, o sbio), escrito em 1779. O conto, quecirculava desde a Idade Mdia entre os judeus de Espanha e aparece no Decameron, de Boccaccio(1313-1375), fala de homem muito rico, que possua um anel que tinha o condo de tornar feliz equerido por Deus e pelos homens aquele que o usasse. O precioso anel transitou ao longo demuitas geraes, sempre herdado pelo filho predilecto. Porm, houve um pai que no conseguiuescolher entre trs filhos igualmente queridos e optou por mandar fazer duas cpias do original,entregando assim um exemplar a cada filho. Naturalmente, quando os trs se encontraram frentea frente, cada um com o seu anel, aperceberam-se do logro e desencadearam uma guerra entre si.

    Passados anos, a questo veio a ser dirimida por um juiz que exortou os herdeiros a procuraremser amados pelos seus semelhantes, e quem tivesse mais xito nessa tarefa seria reconhecidocomo o detentor do anel verdadeiro. (N. Ed.)

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    ideia de uma conferncia conjunta europeia e daqui conclui-se que existempossibilidades reais para a sua realizao. Alm disso, diz-se que uma tal confernciacorresponderia aos interesses de todos os estados europeus (sublinhe-se estados, nopovos!). Cria-se uma imagem colossal dos belos projectos que podem ser iniciados emharmonioso trabalho conjunto de todos os estados europeus, como se tudo dependesse

    de um pouco de boa vontade de todos os lados. E depois afirma-se: precisamente estacausa comum que pode e deve tornar-se o fundamento da segurana europeia.Resumindo, no se trata de um apelo aos povos, a nica fora que est

    verdadeiramente interessada na paz e que por isso capaz de a conquistar, mas sim aosgovernos imperialistas, cujo objectivo inaltervel, como todos sabemos, a reconquistado poder perdido na Europa de Leste. Enquanto a Europa estiver dividida numa parteimperialista e noutra parte socialista, um sistema de segurana europeu de todos osestados europeus uma iluso, uma quimera reformista, que no preciso demonstrar anenhum marxista. Concebvel seria, no mximo, uma coligao de estados socialistas eimperialistas contra um potencial ou actual agressor comum. Mas tal no se avista nos

    tempos mais prximos. Portanto, quando o apelo sugere a ideia de que, a curto prazo,ser possvel realizar uma conferncia de segurana europeia e criar um sistema desegurana europeu, ento tem de ser claro para cada marxista que isto tem to pouco aver com a realidade como a ideia de que basta negociar o tempo suficiente para sealcanar um desarmamento geral. um sonho insensato considerar possvel odesarmamento na fase final do conflito entre imperialismo e socialismo. (Mas foiKhruchov que fez passar por leninismo este insensato sonho do mundo sem armas,ainda durante a existncia do imperialismo.)

    Estas constataes no querem naturalmente significar que a luta por um sistemaeuropeu de segurana e pelo desarmamento tambm um sonho insensato. Muito pelocontrrio.

    Como ento se pode explicar um apelo como o de Budapeste e a sua incessantepropaganda? H diferentes respostas.

    A primeira: Os signatrios deste Apelo resvalaram todos para o pntano dorevisionismo. (Esta a resposta chinesa-albanesa, que um disparate que no necessitade mais nenhuma prova.)

    A segunda: O Apelo serve para introduzir novos conceitos nas massas; aproveitailuses existentes para atravs delas conduzir as massas a novas experincias de luta.

    Contudo resta a questo: tinha de o fazer desta forma, propagando ele prprio iluses?Penso que no. No entanto, se isso foi feito, surge uma terceira resposta, umacombinao da primeira com a segunda: o sentido do Apelo de Budapeste consiste em

    primeiro lugar em apontar um objectivo de luta para os povos dos pases capitalistas.Porm, os representantes de algumas delegaes (pelo menos a da Repblica daChecoslovquia) pressionam para que, em nome da unidade, se utilize formulaesteoricamente insustentveis mas aceites por outros. O Apelo seria, assim, uma frmulade compromisso. Esta parece-me ser a resposta correcta. Vejo assim o Apelo enquantodocumento que orienta as massas a lutar contra os que combatem a criao de umsistema europeu de segurana. Mas estou insatisfeito com este documento porque, emvez de mobilizar, pode suscitar esperanas ilusrias de que os governos, no decurso dasnegociaes, seriam capazes de encontrar caminhos para a segurana europeia. Pelocontrrio, preciso denunciar s massas os inimigos da segurana com nome e nmero

    de porta, e cham-las luta. O Apelo no o faz, por isso no um documento muito bom.Respira demasiado o esprito de Khruchov!...