Carta do Além

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Revelação particular de uma alma condenada ao inferno para uma ex-amiga.

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  • CARTA DO ALEM Com notas do

    Padre Bernhardin Krempel, C.P., Doutor em Teologia

  • Este opsculo a transcrio fiel de outro opsculo intitula-do CARTA DO ALM, outrora impresso por Artes Grficas Armando Baslio (Rua Jlia Lopes de Almeida, 16 Rio de Janeiro) e distribudo pela Livraria Clssica Brasileira (Rua Io de Maro, 147, 2o andar Rio de Janeiro), e que traz no verso de sua primeira capa estes assentamentos: "Imprima-tur do original alemo: Brief aus dem Jenseits: Treves, 9/11/1953. N. 4/53. Aprovao eclesistica deste opsculo: Taubat Est. de So Paulo 2/11/1955".

    Capa: Juzo Final, de Fra Anglico (Museu de So Marcos, Florena).

    Impresso em 1995 por: Artpress Indstria Grfica e Editora Ltda. Rua Javas, 681 01130-010 So Paulo SP Fone: (011) 220-4522 Fax: (011) 220-5631

    guisa de Prefcio

    Com os homens Deus se comunica por muitos modos. Alm de ser a prpria Sagrada Escritura a Car-ta Magna de Deus aos homens, escrita e transmitida por homens autorizados, narra ela muitas comunica-es divinas feitas por vises, inclusive sonhos. Deus continua a prevenir, ainda, por sonhos. que sonhos no so sempre meros sonhos sem base.

    A Carta do Alm transcrita abaixo conta a hist-ria da condenao eterna de uma jovem. primeira vista, parece uma histria bastante romanceada. Bem consideradas, porm, as circunstncias, chega-se concluso de que ela no deixa de ter o seu fundo his-trico, como base do seu sentido moral e do seu alcan-ce transcendental.

    A carta em apreo foi encontrada tal qual entre os papis de uma freira falecida, amiga da jovem conde-nada. Relata a freira os acontecimentos da existncia da companheira como fatos histricos sabidos e verifi-cados, e sua sorte eterna comunicada em sonho. A Cria diocesana de Treves (Alemanha) autorizou sua publicao como sumamente instrutiva.

    A Carta do Alm apareceu primeiro em livro de revelaes e profecias, juntamente com outras nar-raes. Foi o Revmo. Padre Bernhardin Krempel, C. P., Doutor em Teologia, quem a publicou em separado e quem lhe emprestou mais autoridade, provando-lhe, nas notas de p-de-pgina, a absoluta concordncia

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  • guisa de Prefcio

    com a doutrina da Igreja Catlica sobre o assunto. No Apndice seguem alguns esclarecimentos com-

    plementares sobre o Inferno. O primeiro ponto assina-la dois trabalhos literrios que por caminhos diferen-tes chegam mesma concluso: que o Inferno deve existir e que de fato existe. Nos seguintes pontos ex-pe-se sumariamente quais so os que trilham o cami-nho do Inferno e quais os meios que temos mo para nos salvar do maior perigo da vida, de cair no Inferno. Assim termina o opsculo menos alarmante e mais conciliatrio.

    O tradutor.

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    Informaes preliminares

    Entre os papis deixados por uma jovem que mor-reu num convento como freira, foi encontrado o se-guinte depoimento:

    "Tinha eu uma amiga. Quer dizer, ramos mutua-mente achegadas como companheiras e vizinhas de trabalho no mesmo escritrio M.

    Quando mais tarde ni se casou, nunca mais a vi Desde que nos conhecramos, reinava entre ns, no fundo, mais amabilidade que amizade.

    Por isso eu sentia dela pouca falta, quando, aps seu casamento, ela foi morar no bairro elegante das vi-las, bem longe do meu casebre.

    Quando no outono de 1937 passei minhas frias no lago Garda, minha me escreveu-me, em meados de se-tembro: Imagine, ni N. morreu. Num desastre de au-tomvel perdeu a vida. Ontem foi enterrada no cemit-rio do Mato".

    Essa notcia espantou-me. Sabia eu que ni nunca fora propriamente religiosa. Estava ela preparada, quando Deus a chamou de repente?

    Na outra manh assisti na capela da casa do pen-sionato das Irms, onde eu morava, santa Missa em sua inteno. Rezava fervorosamente por seu descanso eterno e nessa mesma inteno ofereci tambm a santa Comunho.

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  • Carta do Alm

    Mas o dia todo eu sentia certo mal estar, que foi au-mentando mais ainda pela tarde.

    Dormia inquieta Acordei de repente, ouvindo como que sacudida a porta do quarto. Liguei a luz. O relgio, no criado-mudo, marcava meia noite e dez minutos. Nada, porm, eu podia ver. Nenhum barulho havia na casa Apenas as ondas do lago Gorda batiam, quebran-do-se monotonamente, no muro do jardim do pensiona-to. De vento, nada eu ouvia

    Tinha eu, todavia, a impresso de que ao acordar eu tivesse percebido, alm das batidas na porta, um rudo como que de vento, parecido ao do meu chefe de escritrio, quando mal humorado me atirava uma carta amolante sobre a escrivaninha

    Refleti um momento, se devia levantar-me. Ah! tudo no passa de cisma, disse-me resoluta

    No seno produto de minha fantasia sobressaltada pela noticia da morte.

    Virei-me, rezei alguns Pai-nossos pelas almas, e adormeci de novo.

    * * *

    Sonhei ento que me levantava de manh s 6 ho-ras, indo capela da casa Quando abri a porta do quarto, dei com o p num mao de folhas de carta Le-vant-las, reconhecer a escrita de ni e dar um grito, foi coisa de um segundo.

    Tremendo, segurei as folhas nas mos. Confesso que fiquei to apavorada, que nem podia proferir o Pai-nosso. Fiquei presa de uma quase sufocao. Nada me-lhor que fugir dali e ir-me para o ar livre. Arranjei mal-mente os cabelos, pus a carta na bolsa e sa pressa de casa

    Fora, subi o caminho que seguia tortuoso para cima por entre oliveiras, loureiros e quintas de vilas, e para alm da mundialmente clebre estrada Gardesana.

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    Informaes Preliminares

    A manh despontava radiante. Nos outros dias eu parava a cada cem passos, encantada pela magnfica vista que me ofereciam o lago e a magnificamente bela ilha Gorda O suavssimo azul da gua refrescava-me; e como uma criana olha admirada para o av, assim eu olhava sempre admirada de novo o cinzento monte Baldo que se ergue na margem oposta do lago, crescendo de64m acima do nvel do mar at 2.200 m de altura

    Hoje eu no tinha olhos para tudo isso. Depois de caminhado um quarto de hora, deixei-me cair maquinal-mente sobre um banco encostado em dois ciprestes, onde, no dia anterior, eu tinha lido prazerosamente A donzela Teresa. Pela primeira vez eu via nos ciprestes smbolos da morte, coisa que neles nunca reparava no Sul, onde to freqentemente se encontram.

    Peguei a carta Faltava-lhe a assinatura. Sem a m-nima dvida era a escrita de nl Nem mesmo faltavam nela o grande "S" em voluta, nem o "T" francs, a que se havia acostumado no escritrio para irritar o Sr. G.

    O estilo no era o dela Pelo menos no falava como de costume. Sabia ela to amavelmente conversar e rir com seus olhos azuis e seu gracioso nariz!

    Somente quando discutamos assuntos religiosos que ela se tornava mordaz e caa no rude tom da carta (Eu prpria entrei agora na excitada cadncia da mes-ma).

    * * *

    Eis a a CARTA DO ALM de ni V., palavra por palavra, tal qual a li no sonho:

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  • Carta do Alm

    Clara! No rezes por mim. Sou condenada. Se te comunico isso e se a respeito de algumas circunstn-cias da minha condenao te dou pormenorizadas in-formaes, no creias que eu o faa por amizade. Aqui no amamos a ningum mais. Fao-o, como "parcela daquele Poder que sempre quer o Mal e sempre produz o Bem".

    Em verdade, eu queria tambm ver-te aqui, onde eu para sempre vim parar.1

    No estranhes esta minha inteno. Aqui pensa-mos todos da mesma forma. A nossa vontade est pe-trificada no mal no que vs chamais "mal". Mesmo quando fazemos algo de "bem", como eu agora, descer-rando-te os olhos sobre o Inferno, no o fazemos com boa inteno.2

    Lembra-te ainda: Faz quatro anos que nos conhecemos, em M. Ti-

    nhas 23 anos e j trabalhavas no escritrio havia meio ano, quando l entrei.

    Tiravas-me bastantes vezes de embaraos, davas-

    1) So Toms de Aquino. Summa Theologica (S. Th.) Supple-mentum (Suppl.), q. 98, a. 4: "Os rprobos querem que todos os bons sejam condenados".

    2) S. Th. Suppl., q. 98, a. 1: "Neles o autodeterminado querer sempre de todo perverso".

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  • Carta do Alm

    me a mim, principiante, freqentes bons avisos. Mas que que se chama "bom"!

    Eu louvava, ento, tua "caridade". Ridculo... Tuas ajudas provinham de pura ostentao, como, alis, eu j suspeitava.

    Ns aqui no reconhecemos bem algum em nin-gum!

    Conheceste minha mocidade. Cumpre preencher, aqui, certas lacunas.

    * * *

    Conforme o plano de meus pais, eu no devia nunca haver existido. Aconteceu-lhes um descuido, a desgraa da minha concepo.

    Minhas duas irms j tinham 15 e 14 anos, quan-do eu vim luz.

    Oxal nunca eu tivesse nascido! Oxal pudesse eu agora aniquilar-me, fugir a esses tormentos! No h volpia comparvel de acabar minha existncia, como se reduz a cinzas um vestido, sem mesmo deixar vestgios.3 Mas preciso que eu exista; preciso que eu seja tal como eu me tenho feito: com a falha total da finalidade da minha existncia.

    Quando meus pais, ainda solteiros, mudaram-se da roa para a cidade, perderam o contato com a Igreja.

    Assim era melhor. Mantinham relaes com pessoas desligadas da

    religio. Conheceram-se num baile e viram-se "obriga-dos" a casar meio ano depois.

    No ato do casamento pegaram neles s algumas

    3) S. Th. Suppl., q. 98, a. 3, r. ib. ad 3: "Enquanto a inexistn-cia liberta de uma vida de terrveis castigos, seria ela para os conde-nados um bem maior do que sua miservel existncia .... Assim dese-

    jam a no existncia".

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    Carta do Alm

    gotas de gua benta, suficientes apenas para atrair mame Missa domingueira rarssimas vezes por ano.

    Nunca ela me ensinava a rezar direito. Esgotava-se nos cuidados de cada dia, ainda que a nossa situa-o no fosse ruim.

    Semelhantes palavras como rezar, missa, gua benta, igreja, s escrevo com ntima repugnncia, com incomparvel nojo. Detesto profundamente os freqen-tadores de igreja, assim como todos os homens e coi-sas em geral.

    Tudo se nos torna tormento. Cada conhecimento recebido ao falecer, cada lembrana da vida e do que sabemos, se transforma numa flama incandescente.4

    E todas essas lembranas nos mostram aquele medonho lado que fora uma graa que desprezamos. Como isso atormenta! No comemos, no dormimos, nem andamos com as pernas. Espiritualmente acor-rentados, ns rprobos, fitamos estarrecidos a nossa vida falhada, uivando e rangendo os dentes, atormen-tados e cheios de dio.

    Ouves tu? Bebemos aqui dio como gua. Odia-mo-nos mutuamente.5

    Mais do que tudo, odimos a Deus. Procuro tor-nar-te isso compreensvel.

    Os bem-aventurados no Cu devem am-Lo. Por-que O vem desveladamente em sua arrebatadora be-leza. Isso torna-os indescritivelmente felizes. Sabemos isso e esse conhecimento que nos torna furiosos.6

    4) S. Th. Suppl., q. 98, a. 7, r.: "Nada h nos rprobos que no lhes seja matria e causa de tristeza .... Assim dirigindo sua ateno sobre coisas conhecidas".

    5) S. Th. Suppl., q. 98, a. 4, r.: "Nos rprobos domina um dio total'.

    6) S. Th. Suppl., q. 98, a. 9, r.: "Antes do dia do juzo universal sabem os rprobos que os bem-aventurados se encontram numa inefvel gloriei'.

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  • Carta do Alm

    Os homens, na Terra, que conhecem Deus pela criao e revelao, podem am-Lo; no so forados a faz-lo.

    O crente furiosa eu te digo aqui que contem-pla, meditando, Cristo estendido na cruz, O amar.

    Mas a alma de quem Deus se acerca, fulminante, como vingador e justiceiro, como Quem foi repelido, essa O odeia, como ns O odimos.7 Odeia-O com toda a fora de sua m vontade. Odeia-O eternamente. Em virtude da deliberada resoluo de ficar afastada de Deus, com que terminou a vida terrena. E essa perver-sa vontade, no podemos revog-la mais nem jamais quereremos revog-la.

    Compreendes tu agora por que o Inferno h de ser eterno? Porque a nossa obstinao nunca derrete, nunca termina.

    Forada acrescento que Deus propriamente ain-da misericordioso para conosco. Disse "forada". A ra-zo esta: ainda que voluntariamente escrevo esta carta, no me possvel mentir, como eu bem queria. Assento no papel muitas informaes contrariamente minha vontade. Tambm a corrente de injrias que queria despejar, tenho de reenguli-la.

    Deus era misericordioso para conosco pelo que no deixou a nossa vontade produzir e efetivar na Ter-ra todo o mal que desejvamos fazer. Se Ele nos tives-se deixado a esmo, teramos aumentado muito a nossa culpa e castigo. Deixou-nos morrer prematuramente como a mim ou introduziu circunstncias atenuan-tes.

    Agora Ele Se nos t oma misericordioso porque no nos obriga a nos aproximar dEle, porm a ficarmos

    7) S. Th. Suppl., q. 98, a. 8, ad 1, ib. a. 5, r.: "Os rprobos s enxergam em Deus o castigador e impedidor (do mal, que desejam ainda fazer). Mas como s O enxergam no castigo, efeito da sua justi-a, odeiam-nO".

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    Carta do Alm

    neste lugar distante do Inferno, diminuindo-nos o tor-mento.8

    Cada passo mais perto de Deus dar-me-ia maior sofrimento do que a ti u m passo mais perto de uma fo-gueira.

    Ficaste espantada um dia quando te contei, em passeio, o que meu pai me dissera alguns dias antes da minha primeira comunho:

    "Cuida, Anita, que ganhes bonito vestido; o mais no passa de burla!'.

    Quase me teria mesmo envergonhado do teu es-panto. Agora rio-me disso. O mais bem feito, em toda essa burla, era permitir-se a comunho apenas aos doze anos. Eu j estava, ento, assaz possuda do pra-zer do mundo, que postergava facilmente tudo quanto era religio, e no levei a comunho a srio.

    O novo costume de deixar as crianas receberem a comunho aos sete anos pe-nos furiosos. Envidamos todos os meios para burlar isso, fazendo crer que para comungar cumpre haver compreenso. preciso que as crianas j tenham cometido antes alguns pecados mortais. O "branco" Deus ser menos prejudicial, en-to, do que recebido quando a f, a esperana e o amor, frutos do batismo escarro sobre tudo isso! ainda esto vivos no corao da criana.

    Lembras-te que j sustentei esse mesmo ponto de vista n a Terra?

    * * *

    Torno a meu pai. Ele brigava muito com minha me. Raras vezes te frisei isso: tinha vergonha. Ah! que

    8) S. Th. I, q. 21, a. 4, ad 1.: "Na condenao dos rprobos apa-rece a misericrdia de Deus no que os castiga menos do que mere-cem". Em outro lugar nota o santo Doutor da Igreja, que isso o caso sobretudo com os que neste Mundo eram misericordiosos para com os outros (S. Th. Suppl., q. 99, a. 5, ad 1).

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  • Carta do Alm

    vergonha? Coisa ridcula! A ns tudo nos indife-rente.

    Meus pais no dormiam mais no mesmo quarto. Eu dormia com minha me, papai no quarto ao nosso lado, aonde podia voltar a qualquer hora da noite. Ele bebia muito e gastou a nossa fortuna. Minhas irms estavam empregadas e precisavam do seu prprio di-nheiro, como diziam. Mame comeou a trabalhar. No ltimo ano de sua amargurada vida, papai batia em mame muitas vezes, quando no lhe queria dar di-nheiro. Para mim ele era sempre bonzinho. Um dia, contei-te isso e ficaste escandalizada sobre o meu ca-pricho e de que no te escandalizaste em mim? u m dia, pois, devolveu duas vezes sapatos novos, por-que a forma dos saltos no me era bastante moderna.9

    Na noite em que u m a apoplexia vitimou meu pai mortalmente, aconteceu algo que nunca te confiei, por temer desagradvel interpretao de tua parte. Hoje, porm, deves sab-lo. Esse fato memorvel, porque foi pela primeira vez que o meu atual esprito carrasco se acercou de mim.

    Eu dormia no quarto de minha me. Suas respira-es regulares denotavam seu profundo sono.

    De repente ouvi chamar meu nome. Uma voz desconhecida murmurou: "Que acontecer, se teu pai morrer?'

    Eu no amava mais meu pai, desde que ele come-ara a maltratar minha me. J no amava propria-mente ningum; s me prendia a alguns que eram bons para mim. Amor sem intuito natural existe quase s nas almas que vivem em estado de graa. Nele eu no vivia.

    Respondi assim ao misterioso interlocutor: "Com certeza ele no morre".

    9) Os assinalados traos sobre o pai de ni e as ocorrncias subseqentes so fatos.

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    Carta do Alm

    Aps breve intervalo, ouvi a mesma bem com-preendida pergunta, sem me incomodar de saber de onde provinha.

    "Qual o qu! ele no est morrendo", escapou-me casmurra.

    Pela terceira vez fui interrogada: "Que acontecer se teu pai morrer?'

    De relance me surgiu no esprito como meu pai freqentes vezes voltava para casa meio bbado, ra-lhando e brigando com mame e quanto ele nos en-vergonhava perante os vizinhos e conhecidos!

    Gritei, ento, embirrada: "Pois no, quanto merece! Que morra' Depois, tudo ficou quedo. Na manh seguinte, quando mame foi arrumar o

    quarto de papai, encontrou a porta fechada. Ao meio dia abriram-na fora. Papai encontrava-se meio ves-tido em cima da cama morto, um cadver. Ao pro-curar cerveja na adega, deve se ter resfriado. Desde muito, estava adoentado.

    {Ser que Deus fez depender da vontade de uma criana, a quem o homem demonstrava bondade, o con-ceder-lhe mais tempo e ocasio para se converter?)

    * * *

    Marta K. e tu me fizestes ingressar n a associao das moas. Nunca te escondi que achava as instrues das duas diretoras, das senhoras X., assaz vigaristas. Achava os jogos bastante divertidos. Conforme sabes, cheguei, em breve, a sustentar neles papel preponde-rante. Isso era o que me lisonjeava. Tambm as excur-ses me agradavam. Deixei-me at levar algumas vezes a confessar-me e comungar. Propriamente no tinha nada para confessar. Pensamentos e sentimentos co-migo no entravam em conta. Para coisas piores eu no estava madura ainda.

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  • Carta do Alm

    Admoestaste-me u m dia: "ni, se no rezares mais, perder-te-s". Eu rezava realmente muito pouco; e tambm s contrariada, de m vontade.

    Tinhas tu, sem dvida, razo. Todos os que no Inferno ardem, no rezaram, ou no rezaram bastante. A orao o primeiro passo para Deus. Sempre decisi-vo. Mormente a orao para Aquela que Me de Cris-to, cujo nome no nos lcito pronunciar. A devoo a Ela arranca ao demnio inmeras almas, que os peca-dos lhe teriam infalivelmente atirado s mos.

    Furiosa continuo, por ser forada: rezar o mais fcil que se pode fazer n a Terra. Jus tamente a esse fa-cilismo Deus ligou a salvao.

    A quem reza com assiduidade, Deus d, paulatina-mente, tanta luz e fortalece-o tanto que o mais afogado bode de pecador se pode definitivamente levantar pela o-rao, ainda que esteja submerso na lama at ao pescoo.

    Nos ltimos anos da vida eu deveras no rezava mais e assim me privava das graas, sem as quais nin-gum se pode salvar.

    Aqui no recebemos mais graa alguma. Mesmo que a recebssemos, com escrnio a rejeitaramos. Todas as vacilaes da existncia terrestre acabaram no alm.

    * * *

    Na vida terrena pode o homem passar do estado de pecado para o estado de graa. Da graa pode cair no pecado. Freqentes vezes ca por fraqueza; rara-mente por maldade. Com a morte, terminou essa in-constncia do sim e do no, caindo e levantando-se. Pela morte, cada um entra no estado final, fixo e inal-tervel.

    medida que avana a idade, tornam-se menores os saltos. verdade que, at morte, a gente se pode converter a Deus ou virar-Lhe as costas. No morrer se decide o homem, entretanto, com as ltimas t remuras

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    Carta ao Alm

    da vontade, maquinalmente, tal como se acostumara na vida. '

    Bom ou mau hbito tomou-se uma segunda natu-reza. Esta o arrasta no derradeiro momento. Assim tambm arrastou a mim. Anos inteiros eu vivera afas-tada de Deus. Conseqentemente, decidi-me no ltimo chamamento da graa, contra Deus. No que o haver pecado muitas vezes me fosse uma fatalidade, mas porque eu no me queria mais levantar.

    Repetidas vezes me admoestaste a assistir pre-gao e a ler livros devotos. Eu escusava-me regular-mente com a falta de tempo. Havia eu de aumentar ainda mais a minha incerteza ntima?

    Cumpre-me, alis, firmar: Quando cheguei a esse ponto crtico, pouco antes

    da minha sada da associao das moas, ter-me-ia sido muito difcil enveredar por outro caminho. Sentia-me insegura e infeliz. Diante da minha converso, le-vantou-se um paredo. Deves t-lo despercebido. Tu o tinhas imaginado to fcil, quando uma vez me disseste: "Faz, pois, uma boa confisso, ni, e tudo ficara bem".

    Eu suspeitava que assim fosse. Mas o mundo, o demnio e a carne j me seguravam nas suas garras.

    Na atuao do demnio eu no acreditava nunca. Agora atesto que, a pessoas como eu ento era, o de-mnio influencia poderosamente.10

    10) A influncia dos maus espritos encerra-se nos apelidos "demnio" ou "diabo". Como comprovao da sua existncia bastam dois textos da Sagrada Escritura: "Irmos, sede sbrios e vigiai! Vosso inimigo, o demnio, anda por a como um leo rugindo e procurando a quem puder devorar" (I Petr., 5, 8). O rugir no se refere a que sata-ns faa muito alarme com suas tentaes, porm avidez com que ele nos procura perder. S. Paulo escreve aos Efsios (8, 12): "Pon-de a armadura de Deus, para que possais resistir s astcias do de-mnio. Nossa luta no contra carne e sangue (homens), porm contra os poderes dos tenebrosos dominadores deste Mundo e contra os maus espritos dos ares".

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  • Carta do Alm

    S muitas oraes alheias e as minhas prprias, juntamente com sacrifcios e sofrimentos, teriam con-seguido arrancar-me dele.

    E isso deveras s paulatinamente. Poucos posses-sos h corporalmente, porm tanto mais e inmeros interiormente possessos. O demnio no pode tirar o livre arbtrio queles que se entregam sua influncia. Contudo, como castigo de sua apostasia quase total de Deus, Este permite que o "Mau" neles se aninhe.

    Odeio tambm o demnio. Todavia gosto dele, por-que ele procura perder-vos: ele e seus auxiliares, os anjos cados com ele desde os princpios do tempo. H mirades. Vagueiam pela Terra inmeros como enxa-mes de moscas, sem que sejam suspeitados.

    A ns, homens rprobos, no nos incumbe de vos tentar; isso cabe aos espritos cados.11

    Aumentam, sim, ainda mais os seus tormentos toda vez que arrastam uma alma humana ao Inferno. Mas de que no capaz o dio!12

    Ainda que eu andasse por veredas tortuosas, Deus me procurava. Eu preparava o caminho graa, por servios de caridade natural, que por inclinao de mi-nha ndole, no raras vezes prestava.

    s vezes atraa-me Deus para uma igreja. L eu sentia certa nostalgia. Quando cuidava da minha me doente, apesar do meu trabalho no escritrio durante o dia, e sacrificava-me realmente um tanto, atuavam sobre mim poderosamente essas atraes de Deus.

    Uma vez foi na capela do hospital, aonde me le-vaste no tempo livre de meio dia fiquei to impres-

    11) S. Th. Suppl., q. 98, a. 6, ad 2: "No tarefa dos homens condenados perderem e tentarem outros, porm dos demnios".

    12) S. Th. Suppl., q. 98, a. 4, ad 3: "O crescente nmero dos rprobos aumenta ainda os sofrimentos de todos. Mas so de tal modo cheios de dio e inveja, que antes querem sofrer mais com muitos, do que menos sozinhos".

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    Carta do Alm

    sionada, que me encontrei a um passo apenas da mi-nha converso. Eu chorava.

    Em seguida, porm, vinha o prazer do mundo der-ramar-se, como u m a torrente, por sobre a graa. Os espinhos afogaram o trigo. Com a explicao de que religio sentimentalismo, conforme sempre se dizia no escritrio, lancei tambm essa graa, como outras, debaixo da mesa.

    Repreendeste-me u m dia que, em vez de genufle-xo, fiz numa igreja uma ligeira inclinao da cabea. Tomaste isso como preguia e no parecias suspeitar de que, j ento, no acreditava mais n a presena de Cristo no Sacramento. Agora creio nela, porm s na-turalmente, como se acredita em tempestade, cujos si-nais e efeitos se percebem.

    Nesse nterim, havia-me arranjado, eu prpria, u-ma religio. Agradou-me a opinio generalizada no es-critrio, de que, aps a morte, a alma voltaria para este Mundo em outro ser e passaria por outros e mais outros seres, n u m a sucesso sem fim.

    Com isso liqidei o angustiante problema do alm e imaginava t-lo tornado inofensivo.

    Por que no me lembraste a parbola do gozador rico e do pobre Lzaro, em que o narrador, Cristo, ime-diatamente aps a morte, mandou um para o Inferno, o outro para o Paraso? Mas o que terias conseguido? Nada mais do que com tuas demais palavras beatas.

    Aos poucos eu prpria arranjei um deus: bem pri-vilegiado para se chamar deus; de mim bastante longe para no me obrigar a relaes com ele; assaz confuso, para se transformar, vontade e sem mudar de reli-gio, num deus pantestico ou at tornar-me orgulhosa desta.

    Esse "deus" no tinha um cu para me galardoar nem inferno para amedrontar-me. Deixei-o em paz. Nisso consistia a minha adorao a ele.

    No que se ama, acredita-se facilmente. No curso

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  • Carta do Alm

    dos anos tinha-me eu assaz persuadido da minha reli-gio. Vivia-se bem com ela, sem que ela me incomo-dasse.

    S u m a coisa me teria quebrado a nuca: u m a dor profunda, prolongada. Mas este sofrimento no veio. Compreende agora: "A quem Deus ama, Ele castiga"?

    * * *

    Era n u m dia de vero, em julho, quando a asso-ciao das moas organizava uma excurso para A. Gostava eu, sim, das excurses. Mas no das beata-rias anexas!

    Outra imagem, diferente da de Nossa Senhora das Graas de A. estava, desde pouco, no altar do meu co-rao. O gr-fino Max N., do armazm ao lado. Pouco antes conversramos divertidamente algumas vezes. Convidara-me, nessa ocasio, para fazermos u m a ex-curso naquele mesmo domingo. A outra com que cos-tumava andar, estava no hospital.

    Reparara, sim, que eu tinha deitado u m olhar so-bre ele. Mas eu no pensava ainda em casar-me com ele. Era rico, porm amvel demais para com muitas e quaisquer mocinhas; at ento eu queria u m homem que me pertencesse exclusivamente, como nica mu-lher. Certa distncia sempre me era prpria.

    {Isso verdade. Com toda a sua indiferena religio-sa, ni tinha algo de nobre em seu ser. Espanto-me de que tambm pessoas "honestas" possam cair no Infer-no, se so assaz desonestas para fugirem do encontro com Deus).

    Nessa excurso, Max cumulou-me de todas as amabilidades. Conversaes de beatas que no tive-mos, como vocs.

    No outro dia, no escritrio, repreendeste-me por-que no vos acompanhei at A. Contei-te os meus di-vertimentos domingueiros.

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    Carta do Alm

    Tua primeira pergunta foi: "Estiveste na Missa?' Louca! Como podia assistir Missa, desde que combi-namos a sada para 6 horas! Lembras-te, ainda, que juntei, excitada: "O bom Deus no to mesquinho como os vossos padrecosF? Agora, cumpre-me confes-sar-te que, apesar de sua infinita bondade, Deus toma tudo mais a srio do que os padres.

    Aps esse primeiro passeio com Max, assisti mais uma s vez vossa reunio. Na solenidade de Natal. Certas coisas me atraam. Mas interiormente, j estava apartada de vs.

    Cinemas, bailes, excurses, seguiam-se. Brigva-mos s vezes, Max e eu, mas eu sabia prend-lo sem-pre a mim.

    Mui desagradvel me foi a rival que, de volta do hospital, se comportava como furiosa. Propriamente a meu favor. Minha calma distinta causou grande im-presso a Max e obrigou-lhe, afinal, a deciso de me preferir.

    Eu sabia denegri-la, rebaix-la. Falando com cal-ma: por fora, realidades objetivas; por dentro, atirando peonha. Semelhantes sentimentos e insinuaes con-duzem rapidamente ao Inferno. So diablicos, no ver-dadeiro sentido da palavra.

    Por que te conto isso? Para constar como fiquei definitivamente livre de Deus.

    Para esse afastamento no foi preciso que eu che-gasse com Max muitas vezes s ltimas familiaridades. Compreendi que me rebaixaria aos seus olhos, se me deixasse esvaziar antes do tempo. Por isso me retinha, vedava.

    Realmente estava eu sempre pronta para tudo que achava til. Cumpria-me conquistar Max. Para isso nada achava caro de mais. M a m o - n o s aos poucos, pois que ambos possuamos valiosas qualidades que podamos apreciar mutuamente. Fui talentosa e tor-nei-me hbil e conversadora. Cheguei, assim, a pren-

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  • Carta ao Alm

    der Max nas mos, segura de que o possua sozinha, pelo menos nos ltimos meses antes do casamento.

    Nisso consistia minha apostasia de Deus, em fazer de uma criatura o meu deus. Em coisa alguma pode isso realizar-se to plenamente como entre pessoas de diferente sexo, se o amor se afoga na matria. Isso tor-na-se seu encanto, seu aguilho e seu veneno. A "ado-rao" que eu me prestava em Max, tornou-se-me u m a religio vivida.

    * * *

    Era no tempo quando, no escritrio, to virulenta-mente eu caa em cima das corridas igreja, dos padre-cos, do murmurejar de rosrio e das demais bugigangas.

    Empenhaste-te, mais ou menos inteligentemente, em proteger tudo isso; aparentemente sem suspeitares de que para mim, em ltima anlise, no se tratava dessas coisas, mas propriamente de ponto de apoio contra minha conscincia que eu estava procurando dele eu precisava ainda para justificar racionalmen-te a minha apostasia.

    No fundo eu vivia revoltada contra Deus. Tu no percebias isso. Sempre me consideravas ainda catli-ca. Como tal, queria eu tambm ser chamada; at mesmo pagava a contribuio para a igreja. Certa "res-salva" no me podia fazer mal, pensava eu.

    Por mais certas que s vezes fossem tuas respos-tas, de mim ressaltavam, porque tu no devias ter ra-zo. Em face dessas nossas relaes entrecortadas, a dor da nossa separao era pequena, quando meu ca-samento nos distanciou.

    Antes do meu casamento, confessei-me e comun-guei mais essa vez. Era uma formalidade. Meu homem pensava como eu. De resto, por que no haveramos de satisfaz-la? Cumprimo-la como qualquer outra forma-lidade.

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    Carta do Alm

    Vs o chamais "indigno". Aps aquela "indigna" comunho eu t inha mais sossego de conscincia. Era essa a ltima. Nossa vida matrimonial decorria, em ge-ral, em boa harmonia. Em quase todos os pontos t-nhamos a mesma opinio. Tambm nisso: no nos queramos impor o encargo de filhos. No fundo, meu marido desejava ter um naturalmente no mais. Eu soube arrancar-lhe, finalmente, essa idia. Eu gostava mais de vestidos e moblias finas, de tertlias de ch, de passeios de automvel e de semelhantes divertimentos.

    Era um ano de prazeres terrenos entre o casamen-to e minha repentina morte.

    Cada domingo passevamos de automvel ou visi-tvamos parentes de meu esposo de minha me eu me envergonhava ento. Esses nadavam bem, como ns, na superfcie da existncia.

    Interiormente, porm, nunca me sentia deveras fe-liz. Algo roa-me sempre na alma. Eu desejava que pela morte, a qual sem dvida havia de demorar muito tempo ainda, tudo acabasse.

    Mas como em criana eu ouvira uma vez falar, em sermo, que Deus recompensa j neste Mundo o bem que algum pratica. Se no pode recompens-lo no outro mundo, f-lo na Terra.

    Sem o esperar, recebi uma herana (da tia Lote). Meu marido teve a sorte de ver o seu salrio considera-velmente aumentado. Assim pude instalar mimosa-mente a nossa casa nova.

    * * *

    Minha religio estava nas ltimas, como um vis-lumbre do ocaso no firmamento longnquo. Os bares e cafs da cidade e os restaurantes por onde passva-mos nas viagens, no nos aproximaram de Deus.

    Todos os que l freqentavam, viviam como ns: de fora para dentro, no de dentro para fora.

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  • Carta do Alm

    Visitando u m a clebre catedral, nas viagens de f-rias, procurvamos deleitar-nos com o valor artstico das obras primas. O sopro religioso que irradiavam, mormente as da Idade Mdia, eu sabia neutraliz-lo, escandalizando-me em qualquer circunstncia da visi-ta. Assim, a um irmo leigo que nos conduzia, eu criti-cava o estar u m tanto sujo e desajeitado; criticava o comrcio de piedosos monges que fabricavam e ven-diam licor; criticava as eternas badaladas de sinos chamando para igrejas, onde se t rata apenas de di-nheiro.

    Assim eu conseguia afastar de mim a graa, cada vez que me batia porta.

    Mormente deixava meu mau humor derramar-se livremente sobre tudo que tratava de antigas represen-taes do Inferno em livros, cemitrios e outros luga-res, onde se viam demnios fritarem as almas em fogo vermelho ou amarelo, e seus scios, de cauda compri-da, trazerem-lhe mais e mais vtimas.

    Clara, o Inferno pode ser mal desenhado, porm nunca ser exagerado.

    Sobretudo escarnecia eu sempre do fogo do Infer-no. Lembras-te como numa conversa sobre isso eu te meti um fsforo aceso debaixo do nariz burlando: " assim que cheirar?

    Tu apagaste to logo a chama. Aqui ningum a ex-tingue. Digo-te mais: o fogo de que fala a Bblia, no significa tormento de conscincia. Fogo significa fogo. Cumpre entend-lo em sentido real, quando Aquele declarou: "Afastai-vos de Mim, vs, malditos, ide para o fogo eterno". Literalmente!

    Como pode o esprito ser tocado pelo fogo mate-rial? perguntas.

    Como ento pode, na Terra, tua alma sofrer, se-gurando teu dedo na chama?

    Tua alma tambm no se queima, mas que dor tem de aturar o homem todo!

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    Carta do Alm

    Semelhantemente estamos ns aqui presos ao fogo em nosso ser e em nossas faculdades. Nossa alma fica privada do seu vo natural; no podemos pensar nem querer o que queremos.13

    No procures esclarecer o mistrio contrrio s leis da natureza material: o fogo do Inferno queima sem consumir.

    * * *

    O nosso maior tormento consiste em que sabemos exatamente que nunca veremos Deus.

    Quanto pode torturar o que n a Terra nos era indi-ferente! Enquanto a faca est em cima da mesa, dei-xa-te fria. Vs-lhe o fio, porm no o sentes. Mas entra a faca na carne e gritars de dor.

    Agora sentimos a perda de Deus; antes s a vi-14

    mos. Todas as almas no sofrem igualmente. Quanto

    mais frvolo, maldoso e decidido algum foi no pecar, tanto mais lhe pesa a perda de Deus, e tanto mais tor-turado se sente pela criatura abusada.

    Os catlicos condenados sofrem mais do que os de outra crena, porque receberam e desaproveitaram, em geral, mais luzes e mais graas.

    Quem sabia mais, sofre mais do que aquele que menos conhecimentos tinha.

    Quem pecou por maldade sofre mais do que aque-le que caiu por fraqueza.

    13) S. Th. Suppl., q. 70, a. 3, r.: "O fogo do Inferno atormenta o esprito pelo que o impede de executar o que quer; no pode atuar onde quer e quanto quer".

    14) "A separao de Deus um tormento to grande como Deus" (frase atribuda a Santo Agostinho. Cf. Houdry, Bibliotheca conciona-torum, Veneza, 1786, vol. 2, sob Infernus, 4, p. 427).

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  • Carta do Alm

    Mas nenhum sofre mais do que mereceu. Oxal isso no fosse verdade, para que eu tivesse motivo para odiar!

    Tu me disseste um dia: ningum cai no Inferno sem que o saiba. Foi isso revelado a u m a santa. Ria eu disso, no entanto me entrincheirava atrs desta refle-xo: nesse caso me ficaria suficiente tempo para me converter assim eu pensava no ntimo.

    O enunciado calha. Antes do meu fim repentino, decerto no conhecia o Inferno tal qual . Nenhum ente humano o conhece. Mas eu estava exatamente intei-rada disso: Se tu morreres, entrars na eternidade como revoltada contra Deus. Suportars as conseqncias.

    Conforme declarei j, no voltei atrs, mas perse-verei na mesma direo, arrastada pelo costume, com que os homens agem tanto mais calculada e regular-mente, quanto mais velhos ficam.

    * * *

    Minha morte ocorreu do modo seguinte: H u m a semana falo de acordo com vossa con-

    tagem, porque, calculada pelas dores, eu poderia j es-tar ardendo no Inferno havia dez anos faz pois uma semana que meu marido e eu fizemos, num domingo, uma excurso, que foi a ltima para mim.

    Radiante despontara o dia. Eu sentia-me bem, como raras vezes. Perpassou-me, porm, u m sinistro pressentimento.

    Inesperadamente, na viagem de volta, meu marido que vinha guiando o carro e eu ficamos ofuscados pela luz de um automvel que vinha em sentido contrrio e com grande velocidade. Meu marido perdeu a direo.

    Jesus! estremeci. No como orao, mas como gri-to. Senti u m a dor esmagadora por compresso uma bagatela em comparao com o tormento atual. Perdi ento os sentidos.

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    Carta do Alm

    Estranho! Naquela manh mesma, nascera-me inexplicavelmente a idia: poderias, enfim, mais uma vez ir Missa. Soava-me como splica. Claro e decidi-do, meu "nor cortou o fio da idia. Com isso devo acabar definitivamente. Tomo sobre mim todas as con-seqncias. Agora as suporto.

    * * *

    O que aconteceu aps a minha morte, tu co-nheces. A sorte de meu marido, de minha me, do meu cadver e enterro, tudo te conhecido at nos pormenores, como sei por uma intuio natural que todos ns temos. Do mais que acontece no Mundo, s temos um conhecimento confuso. Mas o que nos toca-va de perto conhecemos. Assim conheo tambm teu paradeiro.15

    * * *

    Acordei das trevas no momento da minha morte. Vi-iiie de repente envolvida de luz ofuscante. Era no mesmo lugar onde estava o meu cadver. Aconteceu como em teatro, quando de repente apagam as luzes, a cortina ruidosamente removida e aparece a cena tra-gicamente iluminada: a cena de minha vida.

    Como n u m espelho, assim eu vi minha alma. Vi as graas pisadas aos ps, desde a juventude at o ltimo "no?' dado a Deus.

    Apossou-se de mim uma impresso como que de

    15) S. Th. Suppl., q. 98, a. 3: "As almas dos falecidos no tm seguro conhecimento de pormenores, porm apenas um enuviado co-nhecimento geral da natureza material'.

    S. Th. Suppl., q. 98, a. 4: "Por esses conceitos (injusos) podem as almas s conhecer os pormenores pelos quais so habilitados, seja por ndole, por estudos anteriores ou por divina disposio".

    27

  • Carta do Alm

    assassino levado ao tribunal frente da sua vtima i-nanimada. Arrepender-me? Nunca!16 Envergo-nhar-me? Jamais!

    Entretanto nem me era possvel permanecer n a vista de Deus, negado e reprovado por mim. Restava-me uma s coisa: a fuga.

    Assim como Caim fugiu do cadver de Abel, assim minha alma se atirou longe desse aspecto horrvel.

    Esse era o Juzo particular. O invisvel Juiz falou: "Afasta-teF Logo caiu minha

    alma, como u m a sombra sulfrica, no lugar do tor-mento eterno!17

    ltimas informaes de Clara "Assim finalizou a carta de ni sobre o Inferno. As

    ltimas palavras eram quase ilegveis, to tortas esta-vam as letras. Quando eu acabara de ler a ltima pala-vra, a carta toda virou cinza.

    Que que l ouo? Por entre os duros acentos das linhas que eu imaginava ter lido ressoou doce som de sino. Acordei de vez. Achei-me ainda deitada no meu quarto. A luz matinal da aurora penetrava nele. Da igre-ja paroquial vinham as badaladas das Ave-Marias.

    Pois tudo era apenas um sonho? Nunca eu sentira na Saudao Anglica tanto con-

    solo como aps esse sonho. Pausadamente fui rezando as trs Ave-Marias. Tornou-se-me ento claro, clarssi-mo: a Ela cumpre segurar-te, bendita Me do Senhor, venerar a Maria filialmente, se no quiseres ter a mes-ma sorte que te contou ainda que em sonho uma alma que jamais ver Deus.

    16) S. Th. Suppl., q. 98, a. 2, r.: "Os maus no se arrependem pro-priamente dos pecados, por lhes serem afeitos maliciosamente. Arre-pendem-se, porm, enquanto so castigados pelas penas dos pecados".

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    Carta do Alm

    Espantada e tremendo ainda pela viso noturna, levantei-me, vesti-me depressa e fugi para a capela da casa.

    O corao palpitava-me violenta e descompassada-mente. Os hspedes, ajoelhados mais perto de mim, o-Ihavam-me preocupados. Talvez pensassem que, por haver eu corrido escada abaixo, estivesse to excitada e vermelha.

    Uma bondosa dama de Budapeste, grande sofredo-ra, franzina como uma criana, mope, todavia fervoro-sa no servio de Deus e de longo alcance espiritual, dis-se-me tarde no jardim: "Senhorita, Nosso Senhor no quer ser servido no expresso".

    Mas ela percebia ento que outra coisa me havia excitado e ainda me preocupava Ajuntou bondosamen-te: 'Nada te deve angustiar conheces o aviso de Santa Teresa nada te deve alarmar. Tudo passa. Quem possui Deus, nada lhe falta. S Deus basta".

    Quando sussurrava isso mesmo, sem qualquer tom de mestra, parecia-me ler na minha alma.

    17) " certo que o Inferno um local determinado. Mas onde esse local fica situado, ningum o sabe".

    A eternidade das penas do Inferno um dogma: seguramente o mais terrvel de todos. Tem suas razes na Sagrada Escritura, cf. Mt. 25, 41 e 46; II Thess. 1, 9; Jud . 13; Apoc. 14, 11 e 20, 10; todos eles so textos irrefutveis, em que "eterno" no se deixa trocar e inter-pretar por "longo".

    Se no fora conveniente ilustrar esse dogma num caso particu-lar, nem o prprio Nosso Senhor teria podido faz-lo na parbola do rico folgazo e do pobre Lzaro. L fez o mesmo que aqui vem feito: desenhou o Inferno e como se pode cair nele. No o fez por prazer sensacional, porm levado pela mesma inteno que ocasionou esta publicao.

    A finalidade deste folheto encontra sua expresso no seguinte conselho: "Desamos ao inferno ainda vivos, para que moribundos nele no caiamos". Este conselho dirigido a cada um no seno a parfrase do Salmo 54: "Descendant in infernum viventes, videlicet, ne descendant morientes", a qual se encontra numa obra (erradamente) atribuda a So Bernardo (Patr. Lat. Migne, vol. 184, Col. 314 b).

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  • Carta do Alm

    'Deus s basta". Sim, Ele h de me bastar, neste e no outro mundo. Quero ali possu-Lo um dia, por mais sacrifcios que aqui eu tenha ainda de fazer para ven-cer. No quero cair no Inferno".

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    Apndice Esclarecimentos complementares

    1) Confirmaes do terrvel dogma do Inferno a) Existe o inferno? Provas pedidas ao Bom Sen-

    so. Pe. Lacroix Editora S. C. J., Taubat Eis o primeiro opsculo original que apareceu entre ns so-bre o palpitante problema do Inferno (I a edio em 1929 e 2 a em 1937), com 231 pgs., de formato mdio (15 x 11 cm). Trata do assunto profunda e sumaria-mente em doze captulos, dando em confirmao ao dogma do Inferno quatro provas filosficas, tiradas do bom senso, e respondendo satisfatoriamente a doze perguntas ou objees.

    Como cada dogma da Igreja tem suas razes filo-sficas, tiradas do bom senso humano, e como correm mundo, de boca a boca, os mesmos sofismas contra a existncia do Inferno, cuidou o autor em salientar, so-bretudo, as razes opostas do bom senso comum e examinar, em seguida, o valor das provas aduzidas. Por fim, expe, no cap. IX, a universalidade da crena no Inferno e, no cap. X, a respectiva doutrina do Cris-tianismo.

    Em abono da crena geral no Inferno entre os J u -deus, cita o autor os seguintes tpicos da Bblia: Moi-

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  • Carta do Alm

    ss (Deut. 32, 22), J (c. 10), Judite (16. 21), Isaas (33, 14 e 34, 24), Jeremias (23, 40), Daniel (12, 2) e So Joo Batista (Mat. 3, 12), e conclui: "Eis a tes-temunhos de grande valor, alguns dos quais de vene-rando, antigidade. Muitos sculos, pois, antes da hist-ria grega e latina, j existia a crena no Inferno, sendo que os Livros sagrados falam nele muitssimas vezes como numa verdade reconhecida por todos, ao menos por todos os crentes".

    Estendia-se a crena no Inferno (Trtaro) e no Purgatrio a todos os povos pagos do mundo antigo. Quanto mais progrediram na cultura, tanto mais do-cumentos deixaram dessas crenas, desde os Assrios, Caldeus e Egpcios at os Gregos e Romanos. Muitos poetas e escritores falaram dessa crena geral entre eles, seno da prpria universalidade dessa crena en-tre todos os povos do mundo. O autor cita os seguin-tes: Homero, Orfeu, Hesodo, Lino, Horcio, Ovdio, Virglio, Sneca e t c ; Scrates, Plato, Aristteles, Cce-ro, Lucrcio, Celso. Eis, como exemplo, u m trecho im-pressionante de Lucrcio [De natura rerum, lib. I, III): "J no se tem mais sossego, impossvel dormir tran-qilo: por qu? porque se tem que recear, depois desta vida, penas eternas, pelo medo das quais nenhum mor-tal pode ser feliz....". O mpio Voltaire confessa [Ad-dit. 1'Hist Gnr.): "A opinio da existncia tanto de um Purgatrio quanto de um Inferno da mais remota antigidade". Surgindo subterfgios em contrrio cumpre no esquecer as palavras de Joubert [Penses etEssais et Maximes, t. I, p. 318): "Desde que um racio-cnio ataca o instinto e a prtica universal, pode ser dif-cil refut-lo, mas certissimamente enganador e falso" (p. 194).

    No Novo Testamento salienta-se a crena na exis-tncia do Inferno como uma das verdades fundamen-tais da religio de Cristo. Nosso Senhor no assinalou essa verdade s duas ou trs vezes e superficialmente,

    32

    Apndice

    porm quinze vezes, e isso do modo mais explcito e impressionante, como em Marcos (9, 42), Lucas (16, 19), e Mateus (25, 41). Tambm os Apstolos se referi-ram repetidas vezes ao castigo do fogo eterno, como So J u d a s (c. 7), So Paulo (II Tess. 1, 9) e So Joo (Apoc. 14, 11; 20, 10). No sentido bvio de todos esses textos existe, insofismavelmente, o fogo eterno do In-ferno.

    b) Cristo e os demnios Dr. P. Armando Polz (171 pgs. de formato francs), Editora S. C. J., Tau-bat O assunto demnios correlativo ao do Infer-no. Se existem espritos condenados por Deus ao casti-go eterno do Inferno, e se esses procuram arrastar consigo, na perdio eterna, o maior nmero possvel de homens, claro que deve existir, para todos os r-probos, como que uma imensa cadeia infernal, tal como a aponta a f crist, um braseiro de tormentos eternos horrveis.

    Na introduo, o autor d uma orientao geral acerca do assunto, expondo a crena paga, judaica e crist sobre os demnios.

    Quem deve perfeitamente conhecer os demnios no seno o prprio Deus e Nosso Senhor J e sus Cristo. De inmeros textos da Sagrada Escritura tira e concretiza o autor a palavra de Cristo sobre os dem-nios. Na I a parte assinala nove caractersticas dos de-mnios; na 2 a parte prova o triunfo de Cristo sobre eles todos. Da absoluta superioridade de Cristo sobre o demnio tira o autor a ltima concluso da incontest-vel divindade de Cristo.

    Se, pois, existem os demnios, tais quais o prprio Cristo os pintou, como inimigos de Deus e dos ho-mens, deve existir o Inferno, ao qual todos eles esto condenados para sempre, juntamente com os homens seduzidos por eles e revoltados contra Deus.

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  • Carta do Alm

    2. No caminho do Inferno esto os mpios e os pecadores impenitentes

    Os mpios vm a ser chamados tambm os sem-Deus. Nada querem saber de Deus, nem de Cristo e de sua Religio. Chegam mesmo a odi-los e persegui-los. Formam o imenso exrcito de sa tans neste Mundo. A ele pertencem, como chefes invisveis, a maonaria e as similares sociedades secretas. A ele pertencem todos os niilistas, anarquistas, bolchevistas e comunistas mili-tantes do Mundo. A ele pertencem todos os sem-Deus, que O negam terica ou praticamente e vivem sem Ele. Inmeros esto nessa condio. A conseqncia fatal: como nada querem saber de Deus durante a vida e per-seguem a religio o mais que podem, sua sorte eterna no pode ser seno a dos sem-Deus, a serem relegados ao Infer-no e atormentados pelos demnios por toda a eternidade.

    No caminho do Inferno esto igualmente todos os pecadores impenitentes. So Paulo preveniu (I Cor. 6): "No vos enganeis: nem os mpios, nem os idolatras, nem os ladres, nem os avarentos, nem os brios pos-suiro o reino do Cu". Alm dos pecados de ao, h os de omisso, deixando-se de cumprir graves obrigaes de estado ou de profisso, do estado matrimonial, sa-cerdotal ou religioso, da profisso exercida ou do cargo assumido. Ningum pode dispensar-se do seu cumpri-mento. Da resulta na vida de cada um, a possibilidade de cometer numerosos pecados mortais, por pensa-mentos, palavras e obras, pecados de orgulho, de injus-tia e de luxria.

    Se o pecado grave em si merece o castigo do Infer-no, s atira ao mesmo, caso no seja retratado, ar-rependido e reparado, como acontece n a impenitncia final do homem que morre em seu pecado ou impeni-tente. Errar e pecar humano, mas obstinar-se no erro e perseverar no pecado, diablico. Se no momento de

    34

    Apndice

    pecar o homem se deixa facilmente fascinar pelo delei-te pecaminoso, logo depois de cometido o pecado, os o-lhos se lhe abrem e volta-lhe o bom senso; ele sente-se ento naturalmente envergonhado e levado ao arre-pendimento. Se pelo contrrio ele se obstinar no peca-do, tanto mais culpado ele se torna. A obstinao no mal u m pecado contra o Esprito Santo. O adiamento da converso leva muitssimas vezes ao sumo castigo da impenitncia final e conseguin tem ente ao Inferno.

    N. B. Como deduo lgica do que vem exposto cumpre finalmente notar que, alm dos declarados ini-migos de Deus, cairo fatalmente no Inferno todos os que desse nada querem ouvir, ler e saber, e que com ele no se importam e vivem como se ele no existisse.

    3. Alternativa fatal

    Deus colocou o homem num mundo de maravilhas que o encantam, com a ordem de dominar as criaturas, de us-las sem abusar delas, de dar a Ele o que Lhe deve, de ador-Lo, glorific-Lo sobre tudo, e de amar o prximo como a si prprio. Deu-lhe suficiente intelign-cia, para discernir o bem do mal, e suficiente fora para evitar o mal e praticar o bem. Pela orao oferece-lhe quantas graas ele precisar, para cumprir o seu destino.

    Enquanto o homem vive na Terra, acha-se atirado entre dois extremos, entre a definitiva posse de Deus no Cu e a sua definitiva perda no Inferno. Cumpre-lhe escolher entre o Sumo Bem e o Sumo Mal. Por sua vida revela-se pr ou contra Deus, amigo de Deus ou revoltado contra Ele. Se o homem preferir os bens pe-recveis deste Mundo s recompensas espirituais do outro, perder todos eles, os deste e os do outro Mun-do. No fim da vida ficar relegado ao extremo oposto a Deus, entregue aos demnios e abandonado aos mais horrveis tormentos do Inferno.

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  • Carta do Alm

    Cada dia da sua vida encontra-se o homem de no-vo nesta terrvel alternativa, quanto a sua sorte defini-tiva eterna. A essa alternativa ningum pode fugir. Para todos a fatalidade final. Ao morrer, cada um re-ceber a recompensa do que tiver preferido em sua vida terrestre cada dia mais seguramente: ficar com Deus no Cu eternamente, ou ficar relegado ao Infer-no, para o lugar da reprovao eterna e de tormentos sem fim. Ningum escapar a esse dilema, a essa alternativa fatal. Ningum fugir das mos de Deus. Diante de Deus, no h fuga possvel, seno para Ele.

    4. Temor e amor de Deus Antes de tudo insistiu Nosso Senhor para com

    seus ouvintes na indispensvel necessidade do santo temor a Deus. Basta lembrar o texto de So Mateus (10, 28): "No temais aos que podem, trucidar o corpo, mas no podem matar a alma. Muito antes temei Aque-le que pode atirar corpo e alma ao Inferno". O papel que n a vida espiritual cabe ao temor a Deus bsico: " a ltima barreira contra a qual vem esbarrar a vio-lncia da tentao. Se ela ficar firme, o homem se salva do naufrgio do pecado. Se ela no resistir, toma-se ele vtima da prpria perversidade" (p. 62 da obra citada). Em realidade: "O temor de Deus o incio da sabedo-ria" (Prov. 1, 7).

    O temor e o amor a Deus no se excluem, mas su-perpem-se e completam-se mutuamente. Entre am-bos h mais o motivo de interesse. Temor, interesse e amor, lcitos ou ilcitos, so os trs nicos motivos que pem e mantm o Mundo inteiro em movimento. Se o amor a Deus no suficiente para levar o homem a cumprir a lei de Deus, restam os dois primeiros moti-vos, o do prprio interesse e o do temor a Deus. Esse o ltimo recurso de Deus para obrigar o homem a an-

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    Apndice

    dar direito e cumprir os seus deveres. Deus aceita o servio e o arrependimento humanos inspirados pelo temor reverenciai ou filial, como tambm os inspirados pelo medo ao castigo, pelo que o pecador se afasta realmente do pecado, porque ofende e irrita a Deus. Fora da confisso, s vale a contrio perfeita de amor a Deus para se obter perdo. Resulta da o imenso be-neficio e a imensa vantagem que a Confisso oferece aos Catlicos.

    Foi por amor ao homem que Deus criou o Mundo com todas as suas belezas. Foi por amor que Deus destinou o homem a viver um dia juntamente com Ele no Cu, em companhia de todos os Anjos e Santos. No entanto, o homem devia querer e merecer essa felicida-de, e tornar-se digno da companhia divina por uma adequada vida e fidelidade a Deus. Esta a razo do estado transitrio do homem e da provao a que ele est submetido neste Mundo at a sua morte. O pr-prio Inferno, Deus o criou por amor aos homens, para obrigar-nos e quase forar-nos a am-Lo devidamente. Mas quem se recusar a se render ao amor de Deus e obstinar-se por maldade em servir aos dolos da Terra, perder fatalmente o Cu com a eterna felicidade, e cair no Inferno de tormentos eternos. Enquanto, po-rm, o homem continuar a viver neste Mundo, Deus procura, sem cessar, atra-lo para Si e convert-lo, ofe-recendo-lhe graa e perdo. De braos abertos aco-lher a qualquer momento o filho prdigo contrito, com suma bondade e misericrdia.

    5. Ilimitada confiana na infinita bondade e misericrdia de Deus

    (Revelaes tiradas de Convite a uma Vida de Amor, de Sror Josefa Menndez, 2 a ed., 1948, das pgs. 94 a 133).

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  • Carta do Alm

    Ensinar-te-ei os meus segredos de amor, e tu se-rs exemplo vivo da minha Misericrdia, porque, se te-nho tanto amor e predileo por ti que no s mais que misria e nada, que no farei Eu por muitas outras al-mas mais generosas do que tu?

    Farei conhecer que a minha obra repousa sobre o nada e a misria, e que esse o primeiro anel da ca-deia de amor que desde toda a eternidade preparo s almas.

    Farei conhecer at que ponto o meu Corao as ama e lhes perdoa. Vejo o ntimo das almas O ato de humildade que fazem reconhecendo sua fraqueza. .... Pouco se Me d a fraqueza delas Supro o que lhes falta.

    Farei conhecer como que o meu Corao se serve dessa fraqueza para dar a vida a muitas almas que a perderam. Farei conhecer que a medida do meu Amor e da minha Misericrdia para com as almas cadas no tem limites

    Se tu s um abismo de misria, Eu sou um abis-mo de Bondade e Misericrdia. O meu Corao teu refgio. Vem procurar nele tudo aquilo de que preci-sas, ainda mesmo que se trate de coisa que Eu te pea.

    No julgues que deixarei de amar-te por causa das tuas misrias, no: meu Corao ama-te e no te abandonar jamais. Bem sabes que propriedade do fogo abrasar e destruir: assim prprio do meu Cora-o perdoar, purificar e amar.

    No te disse muitas vezes que o meu nico desejo que as almas Me dem as suas misrias? Se no ou-sas aproximar-te de Mim, aproximar-Me-ei Eu de ti.

    Quanto mais fraquezas encontrares em ti, tanto mais Amor encontrars em Mim. Pouco Me importam as tuas misrias, o que Eu quero ser o Dono de tua misria.

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    Apndice

    A tua pequenez d lugar minha grandeza A tua misria e mesmo os teus pecados do lugar mi-nha Misericrdia A tua confiana atrai o meu Amor e a minha Bondade.

    No vos peo seno aquilo que tendes. Dai-Me o vosso corao vazio e Eu o encherei; dai-Mo despido de tudo e Eu o revestirei; dai-Me as vossas misrias e Eu as consumirei. O que no vedes, Eu vo-lo mostrarei!... Pelo que no tendes, responderei Eu.

    H muitas almas que crem em Mim, mas poucas que acreditam no meu Amor; e, entre as que acreditam no meu Amor, so pouqussimas as que contam com a minha Misericrdia

    Se peo amor em correspondncia ao que Me con-some, no o nico retorno que desejo das almas: de-sejo que creiam n a minha Misericrdia, esperem tudo da minha Bondade, e no duvidem nunca do meu per-do.

    Sou Deus, mas Deus de Amor! Sou Pai, mas Pai que ama com ternura e no com severidade. O meu Corao infinitamente santo, mas tambm infinita-mente sbio e, como conhece a misria e a fragilidade humanas , inclina-se para os pobres pecadores com Misericrdia infinita.

    Amo as almas depois que cometeram o seu primei-ro pecado se vm pedir-Me humildemente perdo Amo-as ainda, quando choram o seu segundo pecado e, se isso se repete, no digo u m bilho de vezes, po-rm milhes de bilhes de vezes, amo-as e perdo-lhes sempre e lavo no meu Sangue o ltimo, como o primei-ro pecado!

    No Me canso das almas e o meu Corao espera sempre que venham refugiar-se nEle, por mais miser-veis que sejam! No tem um pai mais cuidado com o fi-lho que doente, do que com os que tm boa sade? Para com esse filho, no so maiores as suas delicade-zas e a sua solicitude? Assim tambm o meu Corao

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  • Carta do Alm

    derrama sobre os pecadores, com mais liberalidade do que sobre os justos, a sua compaixo e a sua ternura.

    Quantas almas encontraro a vida nas minhas palavras! Quantas cobraro nimo ao ver o fruto dos seus esforos: um pequeno ato de generosidade, de pa-cincia, de pobreza, pode vir a ser um tesouro e ga-nhar para o meu Corao um grande nmero de al-mas Eu no atendo ao: atendo inteno. O menor ato, feito por amor, pode adquirir tanto mrito e dar-Me tanta consolao! O meu Corao d valor divi-no s menores aes. O que quero amar. No procu-ro seno amor No peo seno amor.

    O fogo eterno do Inferno ser a merecida paga pelo Amor de Deus desprezado, calcado aos ps.

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