Carta do Líbano

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Artigo Niquita e os direitos da mulher Na infância, passava as férias na casa de meus avós em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. A residência deles ficava na avenida principal que, tempos atrás, não tinha muito movimento. Da sacada de meu quarto, eu observava carroças, bicicletas, homens a cavalo e alguns carros. Nada muito interessante, a não ser Niquita. Quando ela passava, eu ganhava o dia. Niquita era uma preta velha, mise- rável, louca e carismática. Moradora de rua, arrebanhava cachorros vira-latas que sempre a acompanhavam. Vez por outra, "desfilava" em andrajos bem no meio da avenida principal, seguida dos cães, muito parecidos com ela: esqueléti- cos, sarnentos, esfomeados, desengana- dos da vida. Não sei se Niquita era velha ou se era moça com aparência desgastada, por causa dos maus tratos, do sofrimento, do abandono, da pobreza Tampouco sei se era mesmo louca. Diziam isso porque "falavasozinha" Disparava impropérios, aos gritos, em seu itinerário para lugar nenhum, rodeada da matilha barulhenta. Impressionante em Niquita é que ela não apenas passava, mas passava aos berros, vociferando contra tudo e contra todos. Não me lembro com exatidão do que ela dizia, mesmo porque não conseguia ou- vir direito da janela de meu quarto, mas, com certeza, ela tinha razão. Niquita era enfática, decidida, fascinante. Eu costumava buscar entre parentes e amigos informações sobre essa estra- nha mulher. Ninguém sabia nada sobre ela, eu só ouvia especulações, suposi- ções. Mas será que nenhuma boa alma se incomodava com a situação de Ni- quita? De onde ela veio? Por que parecia sempre tão sozinha? O que lhe fizeram para que fosse jogada naquela situação e ficasse indignada, enlouquecida? Ora, diziam-me, ela simplesmente é louca. Niquita discursava ininterruptamen- te, sem que ninguém a levasse a sério. POR LUIZA ElUF Certas manhãs, passava:pela rua gritan- do todos os palavrões existentes em lín- gua portuguesa, repetidamente e irada. Depois, entrava na agência do Banco do Brasil para pedir aos funcionários a es- mola do almoço. Tanta amargura deveria ter uma ra- zão. Ou várias. Quis encontrar Niquita, conversar com ela, mas não consegui. Crianças são muito vigiadas e sem auto- nomia. Até que Niquita morreu. Foi um choque. Quem contou não tinha deta- lhes sobre o fato. Onde enterraram Ni- quita? E os cachorros, alguém iria cuidar deles? Do que ela morreu? Sofreu, estava sozinha? Jamais consegui dados sobre essa mulher. Talvez algumas pessoas se pre- ocupassem com ela ou mesmo tenham cuidado, um pouco, dela, mas não pude confirmar nada. Depois de anos, soube que ela foi velada no cemitério local e que os cães estavam todos lá, ao redor do caixão. Assim é a história de muitas mulhe- res. Sofrimentos, injustiças, reclamações jamais ouvidas. Sem amparo, sem ajuda, sem respeito, sem amor, sem dinheiro. Pena que não tenham todas saído para a rua, seguidas de seus filhos, seus cachor- ros, suas amigas, gritando impropérios contra a desigualdade social, racial, sen- timental, sexual. Depois de muito pensar, percebi que Niquita não era louca. Estava coberta de razão. Não sei, em detalhes, o que acon- teceu em sua vida, mas, só de olhar para ela, ficava evidente que não foi nada de bom. O que fazer quando a dor é grande e a incompreensão é maior ainda? Embora as mulheres tenham conse- guido avançar bastante na conquista de seus direitos, muitas permanecem sub- metidas ao medo. São espancadas den- tro da própria casa, estupradas por pais, padrastos, irmãos e tios, assassinadas por maridos, ex-maridos, ex-namora- dos, desrespeitadas no local de trabalho, humilhadas dentro e fora da família. E tudo acontece em silêncio, quase sem re- clamação. Faltam direitos básicos, como o controle do próprio corpo, equipa- mentos sociais de amparo à maternida- de, salários dignos e equiparados aos dos homens, além de participação propor- cional nas instâncias de poder. Hoje, revendo o passado, é possível entender porque Niquita impressionava todo mundo: expunha seu infortúnio publicamente, nos moldes de um bloco carnavalesco, e ainda reclamava sem pa- rar, em altos brados, exatamente como se deve fazer. LUIZANAGIB ELUFé Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania. É autora de vários livros, dentre os quais "A paixão no banco dos réus" e "Matar ou mor- rer - o caso Euclides da Cunha", ambos da ed. Saraiva. Atualmente, é candidata a deputada federal pelo PV. Ca rt a do Líb a no I 41 l

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Artigo que fala sobre os direitos da mulher

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Artigo

Niquita e os direitos da mulher

Na infância, passava as férias na casa demeus avós em São João da Boa Vista, nointerior de São Paulo. A residência delesficava na avenida principal que, temposatrás, não tinha muito movimento. Dasacada de meu quarto, eu observavacarroças, bicicletas, homens a cavalo ealguns carros. Nada muito interessante,a não ser Niquita. Quando ela passava,eu ganhava o dia.

Niquita era uma preta velha, mise-rável, louca e carismática. Moradora derua, arrebanhava cachorros vira-latasque sempre a acompanhavam. Vez poroutra, "desfilava" em andrajos bem nomeio da avenida principal, seguida doscães,muito parecidos com ela: esqueléti-cos, sarnentos, esfomeados, desengana-dos da vida.

Não sei se Niquita era velha ou seera moça com aparência desgastada, porcausa dos maus tratos, do sofrimento, doabandono, da pobreza Tampouco sei seera mesmo louca. Diziam isso porque"falava sozinha" Disparava impropérios,aos gritos, em seu itinerário para lugarnenhum, rodeada da matilha barulhenta.Impressionante em Niquita é que ela nãoapenas passava, mas passava aos berros,vociferando contra tudo e contra todos.Não me lembro com exatidão do que eladizia, mesmo porque não conseguia ou-vir direito da janela de meu quarto, mas,com certeza, ela tinha razão. Niquita eraenfática, decidida, fascinante.

Eu costumava buscar entre parentese amigos informações sobre essa estra-nha mulher. Ninguém sabia nada sobreela, eu só ouvia especulações, suposi-ções. Mas será que nenhuma boa almase incomodava com a situação de Ni-quita? De onde ela veio? Por que pareciasempre tão sozinha? O que lhe fizerampara que fosse jogada naquela situaçãoe ficasse indignada, enlouquecida? Ora,diziam-me, ela simplesmente é louca.

Niquita discursava ininterruptamen-te, sem que ninguém a levasse a sério.

POR LUIZA ElUF

Certas manhãs, passava:pela rua gritan-do todos os palavrões existentes em lín-gua portuguesa, repetidamente e irada.Depois, entrava na agência do Banco doBrasil para pedir aos funcionários a es-mola do almoço.

Tanta amargura deveria ter uma ra-zão. Ou várias. Quis encontrar Niquita,conversar com ela, mas não consegui.Crianças são muito vigiadas e sem auto-nomia. Até que Niquita morreu. Foi umchoque. Quem contou não tinha deta-lhes sobre o fato. Onde enterraram Ni-quita? E os cachorros, alguém iria cuidardeles?Do que elamorreu? Sofreu, estavasozinha?

Jamais consegui dados sobre essamulher. Talvez algumas pessoas se pre-ocupassem com ela ou mesmo tenhamcuidado, um pouco, dela, mas não pudeconfirmar nada. Depois de anos, soubeque ela foi velada no cemitério local eque os cães estavam todos lá, ao redordo caixão.

Assim é a história de muitas mulhe-res. Sofrimentos, injustiças, reclamaçõesjamais ouvidas. Sem amparo, sem ajuda,sem respeito, sem amor, sem dinheiro.Pena que não tenham todas saído para arua, seguidas de seus filhos, seus cachor-ros, suas amigas, gritando impropérioscontra a desigualdade social, racial, sen-timental, sexual.

Depois de muito pensar, percebi queNiquita não era louca. Estava coberta derazão. Não sei, em detalhes, o que acon-teceu em sua vida, mas, só de olhar paraela, ficava evidente que não foi nada debom.

O que fazer quando a dor é grande ea incompreensão é maior ainda?

Embora as mulheres tenham conse-guido avançar bastante na conquista deseus direitos, muitas permanecem sub-metidas ao medo. São espancadas den-tro da própria casa, estupradas por pais,padrastos, irmãos e tios, assassinadaspor maridos, ex-maridos, ex-namora-

dos, desrespeitadas no local de trabalho,humilhadas dentro e fora da família. Etudo acontece em silêncio, quase sem re-clamação. Faltam direitos básicos, comoo controle do próprio corpo, equipa-mentos sociais de amparo à maternida-de, salários dignos e equiparados aos doshomens, além de participação propor-cional nas instâncias de poder.

Hoje, revendo o passado, é possívelentender porque Niquita impressionavatodo mundo: expunha seu infortúniopublicamente, nos moldes de um blococarnavalesco, e ainda reclamava sem pa-rar, em altos brados, exatamente comose deve fazer.

LUIZANAGIB ELUFé Procuradora de Justiça doMinistério Público do Estado de São Paulo. FoiSecretária Nacional dos Direitos da Cidadania.É autora de vários livros, dentre os quais "Apaixão no banco dos réus" e "Matar ou mor-rer - o caso Euclides da Cunha", ambos da ed.Saraiva. Atualmente, é candidata a deputadafederal pelo PV.

Ca rt a do Líb a no I 41

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