Cartas a Lucílio

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Cartas a Lucílio Séneca Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida os últimos retoquesnunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem saber qual rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta viver. Qual o modo de escapar a tal ansiedade? Há um apenas: que a nossa vida não se projete para o futuro, mas se concentre em si mesma. Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver pagado tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo! Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade? Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que dia é uma vida completa. Quem formou assim o seu caráter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que mais não faz do que desgraçar tudo.

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Page 1: Cartas a Lucílio

Cartas a Lucílio Séneca

Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio

“O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a

prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida “os últimos retoques” nunca

se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor

e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma.

Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem saber qual rumo a seguir nela; o

espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta

viver. Qual o modo de escapar a tal ansiedade?

Há um apenas: que a nossa vida não se projete para o futuro, mas se concentre em si

mesma.

Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio.

Quando eu tiver pagado tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em

perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então

poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me

sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo!

Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana

se nós estivermos firmes perante a instabilidade?

Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que dia é uma vida completa.

Quem formou assim o seu caráter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode

gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte

lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que

mais não faz do que desgraçar tudo.”

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Controlar a ansiedade

“Quando receamos algum mal, o próprio fato de o recearmos atormenta-nos enquanto o

aguardamos: teme-se vir a sofrer alguma coisa e sofre-se com o medo que se sente!

Tal como nas doenças físicas há certos sintomas que pressagiam a moléstia – incapacidade

de movimento, lassidão completa mesmo quando se não faz nenhum esforço, sonolência,

calafrios por todo o corpo -, também um espírito débil se sente abalado, mesmo antes de

qualquer mal se abater sobre ele: como que adivinha o mal futuro, e deixa-se vencer antes

do tempo.

Há coisa mais insensata do que nos angustiarmos com o futuro em vez de deixarmos chegar

a hora da aflição, e atrairmos sobre nós todo um cúmulo de tormentos?

Quando não é possível livramo-nos por completo da angústia, pelo menos adiemo-la tanto

quanto pudermos. Queres ver como é verdade que ninguém deve atormentar-se com o

futuro?

Imagina um homem a quem tenha sido dito que depois dos cinquenta anos será submetido

a graves suplícios: ele permanece imperturbável enquanto não passa a metade desse

espaço de tempo, altura em que começa a aproximar-se da angústia prometida para a

segunda metade da sua vida.

Por um processo semelhante sucede também que certos espíritos doentes sempre em

busca de motivos para sofrer se deixam tomar de tristeza por fatos já remotos e

esquecidos.

A verdade é que nem o passado nem o futuro estão presentes, pelo que não podemos

sentir qualquer deles. Ora, a dor somente pode resultar de algo que se sente.”

Page 3: Cartas a Lucílio

Contra a ansiedade

“Sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua expectativa diz a ti mesmo que os

deuses tomaram uma decisão superior!

Com semelhante disposição de espírito, nada terás a temer. Esta disposição de espírito

consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experimentarmos em

nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para

sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de possuí-los.

Será a ruína de o espírito andar ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça,

sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até o

último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expectativa do que há de vir,

deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de fato, ao mesmo nível a dor por algo

perdido e o receio de perdê-lo. Isto não quer dizer que esteja te incitando à apatia! Pelo

contrário, procura evitar as situações perigosas; procura prever tudo quanto seja previsível;

procura conjecturar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes que te suceda, para assim o

evitares. Para tanto, ser-te-á da maior utilidade à autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a

tudo enfrentar. Quem tem ânimo para suportar a fortuna é capaz de precaver-se contra

ela; mas nada de angústias quando tudo estiver tranquilo!

O cumulo da desgraça e da estupidez está no medo antecipado: que loucura é esta, ser

infeliz antecipadamente?

Em suma, para numa palavra te resumir o que eu penso e te descrever como são estes

homens que, à força de se preocuparem, só conseguem fazer mal a si próprios: tanta falta

de moderação eles mostram em plena desgraça como antes dela!

Quem sofre antes do tempo sofre mais do que o devido; uma mesma incapacidade leva-o a

não prever a presença da dor onde não a espera; uma mesma imoderação fá-lo imaginar

permanente a sua felicidade, imaginar que os bens que o acaso lhe deu não só hão de

perdurar como também multiplicar-se; esquecido do trampolim que é a vida humana

convence-se de que no seu caso, por exceção, o acaso deixará de se fazer sentir.”