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CAPÍTULOUM

Verão de 2002

A mãe não veio jantar a casa — pela terceira vez naquela semana.Foi o primeiro indício que Ellie Tucker teve de que talvez o

pai estivesse certo. Talvez desta feita a mãe tivesse feito algo tão terrível que a família iria realmente partir-se ao meio. E nada nem ninguém conseguiria voltar a uni-la.

Ellie tinha quinze anos naquele verão quente e húmido em Savannah, e à medida que as horas dessa sexta-feira à tarde iam pas-sando, quando as seis se transformaram em seis e meia, ela juntou-se ao pai na cozinha e ajudou-o a fazer o jantar. Sandes de atum com maionese, de um frasco novo que tiraram do armário. Nenhum dos dois disse uma palavra sequer, a ausência da mãe a pesar no silêncio dos minutos seguintes. O frigorífico não tinha muita coisa, mas o pai encontrou um saco de cenouras baby e meteu-as numa tigela. Quando a comida estava sobre a mesa, ele ocupou o seu lugar à cabeceira e Ellie sentou-se ao lado dele.

O lugar à frente dela, o local onde a mãe costumava sentar-se, ficou flagrantemente vazio.

— Vamos rezar. — O pai pegou-lhe na mão. Esperou vários segun-dos antes de começar. — Senhor, obrigado pela nossa comida e pelas

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nossas bênçãos. — Hesitou. — Tu sabes todas as coisas. Revela a ver-dade, por favor. Em nome de Jesus, ámen.

«A verdade?» Ellie mal conseguia engolir os bocados secos da san-des. A verdade sobre o quê? Sobre a mãe? Sobre a razão pela qual ela não estava em casa, apesar de o consultório médico onde trabalhava ter fechado havia uma hora? Nada foi dito durante a refeição, embora o silêncio gritasse sobre a mesa. Quando terminaram, o pai olhou para ela. Os seus olhos estavam tristes.

— Ellie, importas-te de lavar a louça, por favor? — Ele levantou-se e beijou-a na testa. — Vou para o meu quarto.

Ela fez o que lhe foi pedido. Vinte minutos depois, estava a ter-minar quando ouviu a mãe entrar, de mansinho, em casa. Olhou por cima do ombro, e os seus olhos encontraram-se. Ultimamente, Ellie sentia o peso da responsabilidade, como se fosse ela a mãe com uma filha adolescente. A mãe vestia calças pretas e camisa branca, como se tivesse acabado de sair do trabalho.

— Onde está o teu pai? — Os olhos da mãe estavam vermelhos e inchados, a voz carregada.

— No quarto dele. — Ellie pestanejou, sem saber o que mais dizer.A mãe começou a andar nessa direção; então, parou e virou-se para

Ellie novamente. — Desculpa não ter jantado convosco. — Os seus ombros caíram

um pouco. Soava como uma desconhecida. — Desculpa.Antes de Ellie poder perguntar-lhe onde estivera, a mãe virou-se

e avançou pelo corredor. Ellie olhou para o relógio do micro-ondas. Sete e meia. Nolan estaria mais uma hora no ginásio, mais uma hora no treino de basquetebol. Depois, Ellie iria de bicicleta até casa dele, como fazia na maioria das noites. Especialmente nesse verão, desde que os pais tinham começado a discutir.

Enxugou as mãos, foi para o quarto e fechou a porta. Ouviria um pouco de música, passaria algum tempo a escrever no diário e, em breve, Nolan estaria em casa. Ligou o rádio. Os Backstreet Boys encheram o ar e, de imediato, ela baixou um pouco o som. O pai dissera que lhe tiraria

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o rádio se ela ouvisse música vulgar. Para Ellie, vulgar era uma questão de opinião. E na sua opinião a música dos Backstreet Boys era o mais perto do céu que ela iria conseguir estar num futuro próximo.

Os rapazes cantavam qualquer coisa acerca de serem extraordiná-rios quando o primeiro grito pareceu sacudir a janela do seu quarto. Ellie desligou o rádio e levantou-se. Por muita tensão que tivesse havido entre os pais nos últimos tempos, nenhum deles alguma vez gritara. Não daquela maneira. O seu coração batia com tanta força que ela conseguia ouvi-lo. Correu para a porta do quarto, mas antes de lá chegar mais gritos ecoaram pela casa. Daquela vez, conseguiu perce-ber o que o pai dizia, os nomes horríveis que estava a chamar à mãe.

Movendo-se o mais silenciosamente possível, Ellie avançou pelo corredor, atravessou a sala de estar e aproximou-se da porta do quarto dos pais. Nova explosão de gritos e agora ela estava suficientemente perto para ouvir outra coisa. A mãe chorava.

— Faz as malas e vai-te embora. — O pai nunca soara assim… como se estivesse a disparar balas a cada palavra. Ainda não termi-nara. — Não admito que estejas grávida dele… e vivas debaixo do meu teto. — A sua voz parecia fazer tremer as paredes. — Não vou tolerar isso.

Ellie apoiou-se à parede para não cair. O que se passava? A mãe estava grávida? De outro homem? Sentiu o sangue abandonar-lhe o rosto, e o seu mundo começou a girar. As cores e os sons e a rea-lidade ficaram turvos, e ela perguntou-se se iria desmaiar. «Foge, Ellie… foge depressa». Ordenou a si mesma que saísse dali, mas os seus pés não obedeceram.

Antes de ela conseguir decidir o que fazer, o pai abriu a porta e olhou para ela, a arfar.

— O que estás a fazer?A questão pairou entre eles. Ellie olhou para a mãe, sentada na

cadeira do quarto, com a cabeça entre as mãos. «Levanta-te,» quis Ellie gritar-lhe. «Diz-lhe que é mentira! Defende-te, mãe! Faz alguma coisa.» Mas a mãe não fez nada. Não disse nada.

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Os olhos de Ellie voaram de novo para o pai e ela tentou afastar-se, tentou sair dali o mais depressa possível, mas tropeçou e caiu para trás sobre as mãos. Sentiu dor nos pulsos, mas afastou-se dele. Como um caranguejo a escapar de uma rede.

Foi o tempo necessário para a expressão do pai se suavizar. — Ellie. Sinto muito. — Deu um passo na direção dela. — Não

quis que… Não devias ter ouvido aquilo.Nesse momento, Ellie soube duas coisas. Em primeiro lugar, as pala-

vras horríveis que o pai tinha gritado eram verdadeiras. E em segundo, a sua vida, como ela a conhecia, tinha acabado. Jazia em mil pedaços no tapete do corredor. Levantou-se e virou-se, dizendo:

— Eu… Eu tenho de ir. O pai estava a dizer qualquer coisa acerca de aquilo ser demais

para a compreensão de uma rapariga da idade dela, e que ela preci-sava de voltar para o quarto e rezar. Mas tudo o que Ellie conseguia ouvir era o coração a bater descompassadamente dentro do seu peito. Precisava de ar, precisava de respirar. Conseguiu que os pés final-mente lhe obedecessem e correu para a porta da rua. Um minuto depois, estava na bicicleta, a pedalar o mais depressa que conseguia através da noite de verão.

Ele ainda devia estar no ginásio, mas não fazia mal. Ellie adorava ver Nolan jogar basquetebol, quer o ginásio estivesse cheio de alu-nos do secundário, quer fossem apenas eles os dois e o eco da bola a bater no soalho de madeira brilhante. De cada vez que empurrava o pedal da bicicleta, Ellie tentava afastar a realidade da sua mente. Mas a verdade sufocava-a como um cobertor molhado. A mãe chegara de novo tarde a casa, tal como acontecia desde o início da primavera. E naquele dia… naquele dia devia ter admitido o que o pai de Ellie suspeitara desde o início.

A mãe tinha um caso. E não era só isso, ela estava grávida.A verdade borbulhou no estômago de Ellie, asfixiando-a, até que,

finalmente, ela não teve escolha a não ser atirar com a bicicleta para o arbusto mais próximo e ceder à dor que lhe consumia o estômago.

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Uma onda nojenta após a outra esvaziou as suas entranhas até que apenas a dor permaneceu. A dor que ela já sabia que a acompanharia para sempre.

Exausta, Ellie sentou-se na berma, a cabeça entre as mãos, e dei-xou correr as lágrimas. Até então, o choque mantivera a tristeza a um canto do seu coração. Naquele momento, ela chorou até mal conse-guir respirar. A mãe não amava o pai, o que significava que não amava nenhum deles. Ellie e o pai não lhe bastavam. Não havia outra maneira de ver as coisas. A vergonha juntou-se à mistura de emoções, porque a mãe de Nolan nunca teria feito nada parecido com aquilo.

Ellie levantou o rosto para o céu escuro. Nolan. Limpou o rosto e respirou fundo. Precisava de chegar junto dele antes que se fizesse tarde, precisava de o encontrar antes de ele sair do ginásio. A sua bici-cleta era velha e a corrente estava lassa, mas isso não a impediu de chegar à escola em tempo recorde. O som da bola a bater no chão acalmou-a enquanto se dirigia para a porta das traseiras do ginásio. Encostou a bicicleta à parede, ao lado da dele.

Nolan tinha a porta escancarada para o caso de surgir uma brisa. Ellie entrou e ocupou um lugar na primeira fila da bancada. Ele apa-nhou a bola e olhou para ela, os seus olhos a dançarem, um sorriso nos lábios.

— Chegaste mais cedo.Ela assentiu com a cabeça. Não confiava na sua voz, não quando só

lhe apetecia chorar.A preocupação surgiu no rosto bronzeado de Nolan. — Ellie? Estás bem?Ninguém sabia tirar-lhe a dor como ele, o seu melhor amigo, Nolan

Cook. Mas por muito que ela precisasse do seu conforto e compreensão, não queria que ele soubesse. Não queria dizer-lhe porque estava pertur-bada, porque então, bem, aquilo seria com certeza verdade. Não haveria como negar a verdade assim que a contasse a Nolan.

Ele pousou a bola e caminhou até ela. O suor escorria-lhe da testa, e a camisola de alças e os calções estavam húmidos.

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— Estiveste a chorar. — Ele parou a meio metro dela. — O que aconteceu?

— Os meus pais. — Ela sentiu os olhos inundarem-se, sentiu as suas palavras afogarem-se num oceano de tristeza.

— Mais uma discussão?— Sim. Das grandes.— Ah, Ellie. — A respiração dele estava a voltar ao normal. Limpou

o rosto com o antebraço. — Lamento imenso.— Continua a jogar. — Mesmo aos seus ouvidos, a voz soava tensa

por tudo o que estava a calar. Ellie inclinou a cabeça na direção do cesto. — Tens mais meia hora.

Nolan observou-a durante uns segundos. — Tens a certeza?— Podemos falar mais tarde. Eu só… — Algumas lágrimas

rebeldes deslizaram pelas suas faces. — Precisava de estar aqui. Contigo.

Ele semicerrou de novo os olhos, preocupado. Acabou por assentir, pouco convencido.

— Podemos ir embora quando quiseres.— Quando terminares. Por favor, Nolan. Ele lançou-lhe um último olhar, depois virou-se e correu para a

bola. Assim que a teve nas mãos, driblou para a direita e depois para a esquerda e levou-a até ao cesto. Num movimento tão fluido e gra-cioso como tudo o que Ellie tinha aprendido nos seus três anos de dança, Nolan ergueu-se no ar e encestou. Aterrou com leveza sobre os dois pés e apanhou a bola. Driblou para trás, fintou alguns adver-sários imaginários e repetiu o movimento. Após dez afundanços seguidos, correu para o bebedouro e bebeu durante meio minuto. Em seguida, treinou lançamentos de três pontos.

Nolan jogava basquete com o coração, a mente e a alma. A bola era uma extensão da sua mão e cada movimento, cada passo, era tão natural para ele como respirar. Observando-o, Ellie sentiu os olhos secarem, sentiu-se celebrar o dom dele para jogar basquete, tal como

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celebrava de cada vez que tinha o privilégio de o ver jogar. O sonho de Nolan era tão simples quanto impossível.

Ele queria jogar na NBA. Era para isso que rezava e trabalhava todos os dias. Cada hora de cada dia. Das notas elevadas que se esfor-çava por obter a todas as disciplinas às longas horas que ali passava todas as noites. Não seria por falta de esforço ou de confiança que Nolan não viria a ser um jogador de basquetebol profissional.

Depois de encestar cinco lançamentos de vários locais ao longo do arco da linha de três pontos, correu para o bebedouro mais uma vez e, em seguida, enfiou a bola debaixo do braço e regressou para junto de Ellie. Usou a camisola para limpar o suor do rosto.

— Que humidade horrível!— Pois é. — Ela sorriu um pouco e olhou para a porta das traseiras

aberta. — Não sopra uma brisa.— Pois não. Vá, vamos até minha casa. Eu vou tomar um duche

e depois podemos ir ao parque.Era tudo o que Ellie queria, algumas horas sozinha com Nolan em

Gordonston Park. O sítio onde tinham o seu carvalho favorito e relva macia para se deitarem e contarem as estrelas cadentes em noites de verão como aquela. Ela continuou calada. Saíram em silêncio pelas traseiras e Nolan trancou a porta. O seu pai era o treinador da escola secundária, e dera ao filho uma chave um ano antes. Dava muito tra-balho abrir o ginásio sempre que Nolan queria treinar.

Pedalaram nas bicicletas até Pennsylvania Avenue e cortaram pelo atalho entre Kinzie e Edgewood. A casa de Nolan ficava apenas a um quilómetro da de Ellie, mas podia muito bem ficar num mundo à parte, tão diferentes eram os bairros. O dele tinha pirilampos e rel-vados perfeitos que se estendiam até perder de vista. O de Ellie tinha vedações de arame e cães vadios, e casas térreas do tamanho da gara-gem de Nolan.

O tipo de casa em que Ellie e os pais viviam. Ela sentou-se com a mãe de Nolan na cozinha enquanto ele tomava

banho. Os olhos de Ellie estavam secos naquele momento, portanto

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ela não teve de se explicar. A conversa foi leve, com a mãe de Nolan a falar sobre o novo grupo de estudo da Bíblia a que se juntara e o quanto estava a aprender.

Ellie queria importar-se, queria sentir-se tão ligada a Deus como Nolan e os pais. Mas se Deus a amava, por que motivo estava a sua vida a desmoronar-se? Talvez Ele só amasse algumas pessoas. Boas pessoas, como a família Cook. Uns minutos depois, Nolan desceu com calções lavados e uma t-shirt. Tirou duas bolachas de chocolate de um prato no balcão da cozinha e beijou o rosto da mãe.

Ellie pestanejou e reparou, como acontecia muito ultimamente, que Nolan estava a crescer. Eram amigos desde o segundo ano, e iam juntos para casa desde o primeiro dia de aulas. Mas algures por essa viagem do tempo, ambos tinham feito algo que não tinham previsto.

Tinham crescido. Já não eram crianças.Nolan media um metro e oitenta e dois, tinha a pele bronzeada

das corridas matinais, o cabelo louro curto como em todos os verões. Andara a levantar pesos, e talvez fosse por isso que os ombros e os braços lhe pareciam musculosos sob a t-shirt verde-pálida quando agarrou nas bolachas.

Ellie sentiu o rosto ficar quente e desviou o olhar. Era estranho ver Nolan assim, mais homem do que menino. A mãe virou-se para ela e sorriu, com genuína ternura.

— Aparece quando quiseres, Ellie. A porta está sempre aberta. Sabes isso.

— Sim, minha senhora. Obrigada.Ellie e Nolan não disseram onde iam. Era sempre para o mesmo

sítio. O relvado ao lado do maior carvalho do parque — talvez o maior da cidade. Aquele coberto de musgo espanhol, com enormes raízes retorcidas onde podiam sentar-se. Caminharam lado a lado até ao local.

Ellie e Nolan iam até ali para falar sobre a vida desde o verão antes do sexto ano. Naquela altura, jogavam às escondidas entre as árvo-res, com o enorme carvalho a servir de coito. Durante o ano letivo,

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quando estava calor, faziam ali os trabalhos de casa. E em noites como aquela, faziam o que era mais fácil.

Simplesmente abriam os seus corações e partilhavam o que saía.— Muito bem, conta-me. — Nolan ocupou o lugar mais próximo

do enorme tronco. Reclinou-se, estudando Ellie. — O que aconteceu?Ellie pensava naquele momento desde que entrara no ginásio da

escola. Tinha de lhe dizer, porque lhe contava sempre tudo. Mas talvez não tivesse de lhe contar naquele exato minuto. Sentia a garganta seca, e por isso as suas palavras levaram mais tempo a formar-se.

— A minha mãe… chegou outra vez tarde a casa.Ele esperou, e depois de alguns segundos, pestanejou. — Só isso?— Sim. — Detestava adiar a verdade, mas ainda não podia contar-

lhe. — O meu pai ficou furioso.Ele encostou-se à árvore. — Vai passar.— Certo. — Ela mudou-se para o sítio ao lado dele e encostou

levemente as costas ao tronco da árvore. Os seus ombros tocaram-se, lembrando-lhe tudo o que era bom e real na vida.

— Um dia, quando formos velhos e casados , vamos voltar a este mesmo lugar e lembrar-nos deste verão.

— Como sabes?Ele olhou para ela. — Que nos vamos lembrar?— Não. — Ela sorriu. — Que me vou casar contigo.— Isso é fácil. — Ele olhou para ela e encolheu os ombros. —

Nunca irás encontrar alguém que te ame como eu.Não era a primeira vez que ele dizia aquilo. Mantinha o tom ligeiro,

portanto ela não podia acusá-lo de ser demasiado sério ou de tentar mudar as coisas entre eles. Ela ria-se e abanava a cabeça, como se ele tivesse sugerido algo louco, como os dois fugirem e juntarem-se a um circo.

Daquela vez, ela não se riu. Limitou-se a levantar os olhos para as árvores distantes e para os pirilampos a dançarem entre elas. Ainda bem

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que não lhe tinha contado nada sobre a mãe, sobre como ela se tinha envolvido com outro homem e engravidado. Isso mudaria tudo. Nolan sentiria pena dela e não haveria mais provocações sobre o casamento. Não quando os pais dela tinham dado cabo do deles.

Ellie exalou, odiando a sua nova realidade. Sim, a notícia podia esperar.

Naquele momento queria apenas ficar ali sentada ao lado de Nolan, sob o grande carvalho na orla do parque, numa noite de verão que era só deles e acreditar… acreditar por mais um momento na coisa que Ellie queria mais que o seu fôlego seguinte.

Que poderiam ficar assim para sempre.

CAPÍTULODOIS

C aroline Tucker estava parada na noite escura à porta de sua casa em Louisiana Avenue, com uma velha mala ao seu lado onde

guardara todos os seus pertences, tentando não pensar em tudo o que estava a perder. Ele tê-la-ia matado se ela tivesse ficado. De certeza. Fosse como fosse, a sua vida tinha acabado, mas por causa do bebé ela tinha de partir, tinha de arranjar uma outra maneira.

A parte mais difícil era Ellie.A filha saíra — fora a casa de Nolan, sem dúvida. O que significava

que no dia seguinte, quando o marido não estivesse em casa, Caroline teria de arranjar boleia desde a zona oeste de Savannah para ir até ali. Para poder explicar a situação. Para que Ellie não a odiasse.

A sua amiga Lena Lindsey estacionou o seu novo Honda prateado e saiu. Durante uns segundos, ficou a olhar para Caroline. Apenas a olhar, olhos nos olhos. Lena já sabia a história toda, todos os pormeno-res feios com exceção de um. O facto de Caroline estar grávida.

Finalmente, Lena pôs as mãos nas ancas. — Ele descobriu o que se passava com o Peyton?— Sim. — Caroline olhou por cima do ombro. Todas as luzes da

casa estavam desligadas. Manteve a voz baixa. — E expulsou-me.Lena aproximou-se e abraçou-a. Era tão negra como Caroline era

branca, e apesar de estarem em 2002, para algumas pessoas em

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Savannah a amizade delas infringia regras tácitas. Ela e Lena nunca se importaram com o que os outros pensavam. Eram como irmãs, desde o secundário.

— Anda daí. — Lena abriu a porta do lugar do passageiro do Honda. — Havemos de arranjar uma solução.

Lena e o marido viviam no lado oeste de Savannah numa ótima casa de dois andares com os três filhos. O marido, Stu, era dermato-logista, e Lena a rececionista do consultório. Quando Lena e Caroline se juntavam para beber café ou ir à manicura, fartavam-se de trocar histórias sobre os consultórios onde trabalhavam. Outra forma de as duas amigas se manterem ligadas.

Só quando chegaram à autoestrada é que Lena se voltou para ela. — Estás grávida, não estás?O olhar de Caroline desceu para os seus dedos, e ela começou a

rodar a aliança de casamento.— Que Deus nos ajude. — As palavras saíram com um sus-

piro pesado. — Eu disse-te para ficares longe daquele homem. — Lena não se conteve. — Um cantor de música country famoso? — Abanou a cabeça. — Provavelmente tem uma Caroline Tucker em cada cidade. — O seu tom suavizou-se. — Minha querida, porquê? Porque fizeste isso?

Era uma das perguntas que rodopiavam na cabeça de Caroline. Uma a que ela podia realmente responder.

— Eu amava-o.Lena tirou os olhos da estrada o tempo suficiente para olhar para

Caroline. Era escusado dizer-lhe que era claro que o homem nunca amara Caroline, que nunca se importara com ela. Ou que ela não passara de uma groupie. Uma aventura de uma noite entre tantas que ele teria durante a digressão nacional. Lena não precisou de dizer uma palavra.

Os seus olhos diziam tudo.Ao longo dos últimos meses, Lena perguntara-lhe várias vezes

quanto tempo passava ela em casa. Até se oferecera para encontrar

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um conselheiro matrimonial para ajudar a resolver as coisas entre Caroline e Alan. Mas Caroline evitara todas as tentativas de Lena e negara o caso até poucos dias antes. Naquele momento, seguiam num silêncio pesado de tristeza.

Caroline olhou pela janela para o céu noturno. Quando tinha o problema começado? Como é que a sua vida se descontrolara tanto? Quando procurou entre tudo aquilo que tinha feito de errado, veio-lhe à cabeça aquele momento. O concerto, dois anos antes, em janeiro, no dia em que Peyton Anders chegou à cidade com a sua digressão Whatever You’re Feeling. Todos em Savannah sabiam do concerto. Peyton era famoso. Naquela altura, ele tinha vinte e seis anos, um rosto forte e bonito e a constituição de um jogador de futebol. Durante três anos consecutivos fora considerado o melhor vocalista masculino pela Country Music Conference, e nessa primavera tinha acabado de adicionar Artista do Ano ao seu currículo.

— Estás a pensar nisso? — A voz de Lena interrompeu os seus pensamentos.

Caroline virou-se para a amiga. — A tentar.— É um começo.— Eu e o Alan… as coisas estavam más há muito tempo, Lena.

— A voz de Caroline falhou, a dor e o sofrimento a sufocá-la. — Ele… não me quer.

— Achas que sou uma desconhecida, Carrie Tucker? — Era como Lena lhe chamava: Carrie. — Eu assisti a tudo. — Lançou-lhe um olhar de soslaio, depois olhou para a estrada escura à sua frente. — Lembras-te? — Fez nova pausa, mas não diminuiu de intensidade. — Continua a pensar, Carrie. Recua até ao princípio e descobre o nó. Para poderes ter a oportunidade de deslindar tudo.

— Sim. — Caroline virou-se para a janela. Solucionar o problema não era uma opção, mas não podia dizer-lhe isso. Não a Lena. A amiga acreditava em permanecer casada. Ponto final. Mesmo agora, quando o casamento de Caroline de Alan estava morto há muito tempo.

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Olhou mais uma vez para o céu noturno. Aquele concerto de janeiro tinha esgotado, mas Stu conhecia o promotor do espetáculo. O homem deu-lhe dois bilhetes para a primeira fila. Como o marido não gostava de música country, Lena convidou Caroline.

O convite foi o ponto alto daquele ano para Caroline.Sem aviso, uma imagem surgiu na sua mente. Ela e Alan, a avança-

rem pela nave de uma igreja no campo, apaixonados e absolutamente certos quanto ao «para sempre». Ela era bonita e jovem naquela altura, com vinte anos, cabelo louro comprido e olhos inocentes. Nos primei-ros tempos, cada momento com Alan tinha sido marcado por uma esperança mais profunda do que o oceano.

A recordação desapareceu. Não havia forma de medir a distância entre o passado e o presente. Entre quem ela fora e em quem se tinha tornado. Caroline sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. Entre aquilo que ambos se tinham tornado.

Virou-se para Lena. — O Alan e eu. A confusão em que estamos. — Limpou os olhos.

— A culpa também é minha. Não estou a arranjar desculpas. — Espero que não. — Lena continuou a olhar para a frente. —

És casada com um tipo, e ficas grávida de outro? — Levantou uma sobrancelha. — Não há muito espaço no carro para desculpas. — Ficou em silêncio um bom bocado. Então, apertou suavemente a mão de Caroline. — Desculpa. Não quis dizer aquilo.

— Eu sei.— Neste momento as coisas estão más. — Lena apertou o volante

com mais força. Virou à esquerda para o seu bairro. — Deus ama-te, Carrie. Ele quer que tu e o Alan resolvam a vossa vida.

Caroline assentiu com a cabeça. Não era a primeira vez que Lena dizia aquilo. Lena era cristã. Das autênticas. Não lhe dava sermões, mas não tinha pruridos em chamar a atenção de Caroline para as coi-sas. Já o tinha feito. Era uma prova de como gostava de Caroline.

Chegaram a casa de Lena e, quando saíram do carro, uma onda de culpa fez vacilar a determinação de Caroline.

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— Não me parece que possamos resolver isto. Acabou. Acabou há muitos anos, Lena. — Fez uma pausa e inspirou. — Talvez eu deva ir para um hotel.

Lena olhou para ela. — Já acabaste?Caroline hesitou. — Não sei o que fazer…— Carrie Tucker. — Lena contornou o carro e pousou as mãos

nos ombros de Caroline. — Pega na tua mala. — Acenou com a cabeça uma única vez, depois virou-se e avançou para a porta de casa. Não olhou para trás. — O quarto de hóspedes está pronto.

E acabou-se a discussão. Caroline tirou a mala do porta-bagagens do Honda de Lena e fechou o carro. Cinco minutos mais tarde, estava sentada na beira da cama do quarto de hóspedes dos Lindsey. Era a mulher e a mãe mais horrível do mundo. A pior. O que pensaria Ellie? Iria chegar a casa e descobrir que a mãe partira. Grávida de outro homem que não o seu pai. O pensamento deixou Caroline nauseada.

De repente, lembrou-se de algo.O seu coração bateu mais depressa quando puxou a mala para si

e enfiou a mão lá dentro, revolvendo recibos do Walmart e do Target e papéis de pastilhas elásticas até encontrar o que procurava. Um frasco de Vicodin. Doze comprimidos, pelo menos. Naquele dia, um paciente recuperado pedira-lhe para os deitar fora. Em vez disso, Caroline enfiara-os na mala.

Para o caso de precisar deles para lidar com a sua própria dor.Mas os comprimidos poderiam fazer mais que isso. Muito mais.

Pesavam-lhe na mão. Ela tirou a tampa e aproximou-os do rosto. Cheirou a sua força. O seu gosto amargo. Não seriam precisos doze comprimidos. Podia mastigar uns quantos, e pronto. Não haveria mais marido que não a amava. Não haveria mais filha com vergonha dela. Não haveria mais um bebé prestes a nascer para um mundo feio.

O som de passos fê-la baixar o frasco. Tornou a tapá-lo e a guardá-lo na mala. As suas mãos tremiam e ela não conseguia respirar fundo.

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Que pensamentos eram aqueles? Como podia sequer pensar em se matar?

— Olá. — Lena espreitou para dentro do quarto. — Fica à vontade. O Stu e eu estamos na cozinha. — Os seus olhos pareciam mais mei-gos do que antes. — Quando estiveres pronta para falar, desce.

Afastou-se sem esperar pela resposta de Caroline. Não era uma ques-tão de Caroline querer falar, mas de quando. Enquanto ali estivesse, Lena e Stu fariam tudo ao seu alcance para ajudarem à reconciliação de Caroline e Alan. Era assim que funcionavam. Caroline levantou--se e largou a mala no canto do quarto, o mais longe possível. Ainda amava Alan. O seu Alan. Sempre amaria. Se ao menos conseguissem encontrar o caminho de volta ao passado.

Reza, Caroline. Tens de rezar. Assim que o pensamento lhe ocorreu, ela refutou-o. Rezara a cada passo do caminho com Alan. Onde a levara isso? Recordou vários momentos aleatórios, momentos em que pedira a ajuda de Deus, a Sua sabedoria e entendimento. O Seu conforto. Mas o casamento continuara a piorar.

Fechou os olhos e pôde vê-lo novamente. Alan Tucker, o amor da sua vida. A chegar a casa vindo de Parris Island, a uma hora de distân-cia, a entrar no seu apartamento junto a Forsyth Park com a farda dos fuzileiros, a sorrir-lhe.

— Aconteceu! Sou instrutor! Começo na segunda-feira.A mente de Caroline tentara adivinhar o que isso significava para

ela, para eles. — Vais trabalhar… mais horas?Alan hesitou, a sua expressão toldada devido à confusão. — Sou fuzileiro, Caroline. Se isso significar mais horas, então tra-

balharei mais horas.Pela primeira de mil vezes, ocorreu a Caroline que ela nunca

seria o mais importante na vida de Alan Tucker. O trabalho extra mantinha-o na base de segunda a sexta-feira e em casa só aos fins de semana. De alguma forma, porém, a ausência dele levou-o a duvidar dela. Voltava para casa na sexta-feira e perguntava-lhe onde

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estivera, o que fizera. Se a resposta dela demorava muito, o tom tornava-se impaciente.

— Não é assim tão difícil, Caroline. Onde estiveste?Ele referia-se aos homens com quem ela estivera. Não havia

outros homens, naquela altura, mas Alan lembrava-lhe quase todos os fins de semana que era errado ela usar tops ou calções curtos, ou olhar muito tempo para um homem no supermercado ou na estação de serviço.

— É pecado fazer um homem vacilar, Caroline. — Então sorria--lhe como se aquilo fosse uma conversa perfeitamente normal entre marido e mulher. — Ainda bem que entendes.

Caroline começou a estranhar o homem que vinha para casa todos os fins de semana e a perguntar-se o que fizera ele ao homem que ela amava. Só quando estavam na cama é que vislumbrava esse Alan. A paciência e o toque suave dele faziam-na sentir-se maluca por duvi-dar do marido.

O desfile de recordações continuou. Meses após a promoção de Alan, Caroline regressara a casa vinda da maternidade com Ellie nos braços e Alan avisavr-a de que ela teria de fazer a maior parte do traba-lho sozinha. Lamentava. Queria mais uma promoção em Parris Island.

Queria-a a todo o custo.As saudades de Alan tinham sido aliviadas pela presença da filha.

Enquanto Ellie crescia, as duas iam passear ao parque todas as tardes. Caroline lançava bolas de espuma no ar e Ellie corria atrás delas, o seu riso de criança a encher o ar húmido da Georgia. Estavam juntas todas as horas do dia. Todas as noites Caroline lia uma história a Ellie, primeiro do Dr. Seuss e, em seguida, de Junie B. Jones, até ambas sabe-rem as histórias de cor. Alan comentava que deviam estar a ler mais C. S. Lewis e menos livros frívolos.

Ainda conseguia ouvir a voz de criança de Ellie: — Papá, nós lemos esses! O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa é o

meu preferido. — Depois fitava a mãe com um brilho nos olhos. — Mas a Junie B. Jones faz-nos rir, não é, mamã?

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Cinco anos de momentos felizes com Ellie voltaram à sua memória num ápice, todos eles marcados por sandes de manteiga de amendoim e sestas e pelo cheiro de bolachas de chocolate no forno. Os filmes da Disney, as primeiras letras e os livros que coloriam juntas tornavam cada dia tão maravilhoso como o anterior. Mas depois Ellie foi para o jardim de infância.

De início, Caroline tinha apenas as manhãs solitárias para a lembrar de que Ellie estava a ficar mais velha. Mas, um ano depois, Ellie estava na escola a tempo inteiro. No primeiro dia de aulas, Caroline voltou para casa sozinha, olhou-se ao espelho e, com os olhos marejados, perguntou-se: «O que vais fazer agora?»

Alan não atendia telefonemas no trabalho e, embora lhe telefo-nasse todas as noites, as suas conversas eram muito pouco profundas. Que contas tinham chegado, que contas estavam pagas, como estava Ellie, o que andava a aprender na escola. Só os fins de semana eram marcados por intimidade e alegria entre Caroline e Alan. Faziam cami-nhadas tranquilas ao longo do rio e saboreavam cafés exóticos num café do centro. Ela estava apaixonada por Alan, apesar de só se verem aos fins de semana. Mas isso não tornava as suas semanas menos solitárias.

O único raio de luz, o que lhe dava uma razão para se levantar na segunda-feira de manhã, era o tempo que ainda tinha com Ellie. Caroline começou a desenvolver algumas atividades na escola da filha, ajudando nos dias de trabalhos manuais e visitas de estudo, e à tarde levava Ellie para as aulas de dança e ginástica no YMCA. Foram ficando mais próximas com o passar dos anos. Recordou a voz de Ellie, desta vez mais velha. «És a minha melhor amiga, mãe… tu e o Nolan. Ninguém me conhece como vocês.»

Mas algures entre os 1.º e 2.º ciclos de Ellie, os momentos parti-lhados pelas duas tornaram-se menos frequentes até que, passaram a acontecer apenas de vez em quando. O ponto de viragem surgiu quando Caroline arranjou emprego no consultório do Dr. Kemp, no ano em que ela e Alan perceberam que tinham contraído algumas dívidas. Quer tenha sido pelas horas que Caroline trabalhava fora de casa ou

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pela capacidade de Ellie de sentir a tensão entre os pais, a verdade é que a jovem começou a passar a maior parte do seu tempo livre na casa de Nolan.

E, de um momento para o outro, o desfile de recordações e momen-tos chegou ao fim.

Não admirava que Caroline tivesse ficado radiante com a oportu-nidade de ir ver Peyton Anders com Lena naquele mês de janeiro. A monotonia da sua vida, a falta de interação e risos com Alan ou com Ellie estavam a deixá-la louca. Um concerto dar-lhe-ia a oportunidade de se sentir de novo viva.

Isso — e apenas isso— era tudo o que Caroline Tucker desejara.Ela era uma boa rapariga de uma boa família. Ia à igreja todos

os domingos com Alan e Ellie, mesmo durante as piores semanas. Nunca, em toda a sua vida, podia ter imaginado o que estava prestes a acontecer.

Algo que mudaria a sua vida para sempre.

CAPÍTULOTRÊS

A lan Tucker pensou em meter-se no carro e ir ter com Ellie ao sítio onde ela costumava estar com Nolan Cook. O parque perto

da casa do rapaz. Mas, se fizesse isso, ela saberia que a sua vida estava prestes a mudar. Por isso acabou por não ir. Ellie merecia uma última noite antes do início do resto da sua vida.

A vida num novo local. Sem a mãe.A descoberta daquela noite tinha mudado tudo. Ele não iria criar

Ellie numa cidade onde as pessoas iam estar sempre a falar da sua mãe, do seu terrível caso e do homem com quem ela o tivera. Nessa noite, Alan obtivera finalmente as respostas para as perguntas que havia muito o atormentavam. Ainda lhe custava aceitar a realidade. Peyton Anders.

Alan suspirou, e o som reverberou no seu peito dorido. Caroline traíra-o com um cantor country famoso. Pior ainda, o caso arrastava--se havia dois anos. Deitou-se em cima da colcha e olhou através da escuridão para o teto manchado do quarto. Não sabia o que era pior: o facto de Caroline o ter traído ou de ela ter dado o coração ao homem dois anos antes. Dois anos. Alan exalou e rolou para o lado. Só queria o melhor para a sua família. Durante os anos em que passara as sema-nas na base, nunca tinha ingerido sequer uma gota de álcool. Quando os colegas saíam para beber, Alan ficava no quarto a ler a Bíblia ou a ver reposições de Gilligan’s Island e I Love Lucy.

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Perguntara mais que uma vez a Caroline com quem ela passava o tempo, mas nunca esperara aquilo. Que a única mulher que amara fosse encontrar alguém. Ou que lhe mentisse. E o traísse de forma tão absoluta. Sentiu um aperto no estômago e perguntou-se se algum dia voltaria a sentir-se bem. Era um facto que ele e Caroline não dormiam juntos havia meses, mas antes de a sua intimidade diminuir haviam partilhado bons momentos.

Detestava lembrar-se sequer de um desses momentos. Ela dormia com ele durante a noite e no dia seguinte namoriscava com Peyton a partir do consultório. Nunca devia ter-se apaixonado por uma mulher tão bonita como Caroline. Especialmente com a sua carreira de fuzi-leiro. Alguns dos amigos tinham-no avisado dezasseis anos antes, quando anunciara que ia casar com ela. Até a mãe ficara preocupada. «Ela é muito bonita.» Fizera um ar de dúvida. «Será que ela percebe que vais estar ausente a maior parte do tempo? As mulheres como ela… bem, algumas podem ser bastante egocêntricas.»

Alan contraiu o maxilar. Na altura ficara zangado com a mãe por causa do seu comentário. E agora… não conseguia terminar o pen-samento, não conseguia admitir a verdade sobre a mulher. Mas uma coisa era certa: Caroline ia arrepender-se do que lhe tinha feito. Ia arrepender-se enquanto fosse viva. Ele já tinha um plano. Semanas antes, o seu comandante falara-lhe de uma promoção que iria levá-lo para a base naval de Camp Pendleton em San Diego. Ia continuar o seu trabalho como instrutor, mas com turmas maiores. Se as coi-sas corressem bem, acabaria a trabalhar na prisão militar adjacente, que pertencia à Marinha.

A posição de instrutor em San Diego abrira logo de seguida. Até àquele dia, ele não tinha realmente pensado em concorrer para ela. Ellie estava no primeiro ano do secundário e Caroline trabalhava no escritório do Dr. Kemp. A vida tinha um certo ritmo.

Mas tudo isso mudara.Cinco minutos depois de Caroline se ir embora, ele ligou ao

comandante.

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— Quando posso começar em San Diego?— Na próxima semana. — O homem não hesitou. — Diga-me

quando, e eu trato de tudo. Têm alojamento temporário na base até você encontrar alguma coisa.

Alan fez as contas. Ele e Ellie podiam fazer as malas no dia seguinte e partir domingo de manhã. Se conduzisse bastantes horas por dia, poderiam chegar à Califórnia em três dias.

— Posso apresentar-me ao serviço na quarta-feira. Estaria pronto para trabalhar na segunda.

— Combinado. — O homem parecia admirado. — Eles vão ficar contentes. Pendleton está com falta de instrutores. — Hesitou. — Você é o melhor, Tucker. Fico feliz com a sua promoção, mas detesto perdê-lo.

Se ao menos a sua mulher fosse da mesma opinião.Sim, ela ia arrepender-se. Ele ia mudar-se com Ellie e criá-la sozi-

nho. Ela que tentasse processá-lo ou lutar pela guarda da filha. Não se atreveria, não com os pormenores sórdidos dos seus últimos anos. Não, Caroline não iria dar luta. Se conseguira fazer-lhe aquilo, a ele e a Ellie, então estava-se nas tintas, de qualquer maneira. Ele não iria sub-meter a filha a uma vida de vergonha. Caroline não queria ser mãe, ou não teria sido capaz de fazer aquilo.

Sentia-se amargurado. Ainda tinha de contar a novidade a Ellie. Ela poderia ficar furiosa de início, mas com o tempo acabaria por compreender. Sentiria a falta de Caroline, é claro. Mas quando fosse suficientemente crescida, ele contar-lhe-ia a verdade. Como a mãe fora outrora uma pessoa maravilhosa, meiga e carinhosa, o amor da sua vida. Mas que acabara por preferir arranjar outro homem em vez de ser uma esposa para ele ou uma mãe para Ellie. Essas futuras conversas seriam dolorosas, mas Alan não via nenhuma outra maneira. Ellie teria de entender. A outra pessoa que ela não iria gostar de deixar era Nolan. O seu melhor amigo. Mas também isso ela acabaria por superar.

San Diego teria todo um novo mundo de amigos para ela.Alan sentiu a sua determinação aumentar. O que quer que Ellie pen-

sasse e por muito chateada que pudesse ficar, eles iam deixar Savannah.

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Não havia outra maneira. Ouviu o barulho da bicicleta no caminho de acesso e olhou para o relógio. Ainda não eram onze, a hora de recolher de Ellie. Ouviu a porta da frente abrir e a fechar. Começou a levantar-se. Era melhor dizer-lhe já, para ela ter mais tempo para se preparar.

Mas deteve-se.Ela já teria esquecido a discussão dos pais. Provavelmente pas-

sara uma ótima noite com Nolan, a conversar debaixo das árvores, a ouvir música e a ser uma criança. Ellie tinha direito a uma boa noite de sono, a sonhos agradáveis. A notícia de que a mãe estava grávida de outro homem, que ela e o pai iam mudar-se para San Diego, iria fazê--la crescer num ápice. Alan sentiu pena dela. Contar-lhe-ia apenas no dia seguinte. Não iria perturbar a santidade do momento.

A última noite da sua infância.

A conversa com Lena e Stu foi breve. Eles queriam que Caroline ligasse a um conselheiro matrimonial de manhã. Que solici-

tasse a sua intervenção imediatamente para que, de alguma forma, por algum milagre, o seu casamento pudesse ser salvo. Caroline ouviu e assentiu. Mas a conversa foi inútil. Não havia caminho de volta. Alan Tucker nunca mais voltaria a amá-la.

Retirou-se para o quarto de hóspedes e deixou as recordações virem à superfície. E, de repente, lá estava ela novamente, naquele primeiro concerto de Anders Peyton.

Desde que subiu ao palco naquela noite no Centro Cívico de Savannah, Peyton pareceu cantar apenas para ela. Os seus olhos encontraram-se e, de início, até Lena achou que aquilo não passava de uma diversão inofensiva. Um namorico inocente entre um artista e uma admiradora. O tipo de coisa que um homem como Peyton fazia provavelmente todas as noites.

Caroline calculou que aquilo seria algo de que ela e Lena se iriam rir quando fossem mais velhas. A noite em que o famoso Peyton Anders

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tinha escolhido Caroline Tucker no meio do público e lhe pusera a cabeça à roda.

Mas depois de algumas músicas, os breves olhares tornaram-se uma piscadela de olho ocasional, e à medida que o concerto prosse-guia, Caroline permitiu-se acreditar que ela e Peyton eram os únicos no auditório. Perto do final do espetáculo, ele fez-lhe sinal para ela ir ter à zona lateral do palco. Ao mesmo tempo, dois rapazes da segu-rança apareceram perto dos degraus. Chamaram-na enquanto Peyton fazia uma breve pausa. Ele bebeu metade de uma garrafa de água e, em seguida, sorriu para a plateia.

— Dizem que Savannah tem as mulheres mais bonitas do Sul.Caroline lembrava-se de como se sentira, com o coração na gar-

ganta, enquanto esperava na zona lateral. Peyton continuava a falar. — Passei a noite a observar uma mulher muito bonita. — Encolheu

os ombros, o seu sorriso arrapazado mais do que encantador. Parecia um miúdo apaixonado pela irmã mais velha do melhor amigo. — O que posso dizer? Não sou capaz de cantar a próxima música sem ela

A multidão aplaudiu, num som ensurdecedor. Os dois homens conduziram Caroline para o palco. Ela ainda se via à espera nos bas-tidores, vestida com uma blusa branca, as suas melhores calças de ganga e botas de cowboy, com os joelhos a tremer.

— Vem, querida, vem até aqui.Caroline julgou estar num sonho. Isto não pode estar a acontecer, disse

a si mesma. Ele era famoso e oito anos mais novo. Ela era membro da Associação de Pais, não do Clube de Fãs de Peyton Anders. Mas o que podia fazer? Aproximou-se timidamente, os aplausos e os assobios a bulirem-lhe com os nervos. Quando parou, ele pegou-lhe na mão.

— Como te chamas, querida? — Aproximou o microfone da boca dela.

— Caroline. — Ela pestanejou, cega pelo brilho dos holofotes. — Caroline Tucker.

Peyton riu-se e olhou para a plateia. — Caroline Tucker, senhoras e senhores. É bonita, não é?

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Mais gritos e aplausos. Caroline tentou respirar fundo. Tinha de estar a sonhar. Era a única maneira de explicar aquilo. Nessa altura, as palavras românticas que Alan lhe dedicara já há muito que haviam dado lugar a conversas práticas. Como estava Ellie a sair-se na escola? Porque não estava a roupa lavada? Quando iria ela chamar o canaliza-dor por causa do cano furado no lavatório da casa de banho? Esse tipo de coisa. Alan chegava a casa cansado e distraído. Nalguns dias mal olhava para ela ao entrar pela porta, por isso não era de admirar que ela não se sentisse bonita há muito tempo. Velha e cansada, sozinha e insegura. Cansada e esgotada. Isso sim.

Mas não bonita.Um dos rapazes de Peyton trouxe-lhe um banco alto, e Peyton segurou-

-lhe na mão enquanto ela se sentava. Em seguida, ele começou a canção que dava título ao seu mais recente álbum. A canção que inspirara a digressão: Whatever You’re Feeling. As luzes e a multidão e os aplausos desvaneceram-se enquanto Peyton cantava e Caroline sustinha a respira-ção. Cada linha, cada palavra parecia escrita para ela, para aquela estranha ligação entre eles, uma ligação que tinha acontecido num abrir e fechar de olhos. Ainda agora a letra lhe era tão familiar como o seu próprio nome.

Agora que estamos os dois aqui

Nada há a temer

Podemos ter tudo

Então abre o teu coração

Aqui, neste momento que estamos a roubar

Querida, estou a sentir

O mesmo que tu

O que quer que estejas a sentir.

Quando ele terminou a canção, abraçou-a e, de forma que nin-guém pudesse ver, sussurrou:

— Dá o teu número aos meus rapazes. — Depois sorriu para a plateia. — Caroline Tucker, senhoras e senhores.

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Ela saiu do palco, tonta e excitada e nauseada. Dois pensamen-tos consumiam-na. Primeiro, cometera o que devia ser um pecado imperdoável: sentira-se atraída por outro homem. E segundo, nada iria impedi-la de dar o seu número de telefone de casa a um dos rapa-zes. Peyton Anders tinha esse tipo de efeito inebriante sobre ela.

Antes que Caroline pudesse regressar ao seu lugar, Peyton terminou o espetáculo e juntou-se a ela nos bastidores escuros. E ali, entre ampli-ficadores e cabos elétricos, transpirado e ofegante, ele aproximou-se. Não hesitou.

— Aquilo foi incrível.Pousou a mão no rosto dela e, até no escuro, ela conseguiu ver

o desejo nos seus olhos. Ainda ofegante do concerto e, sem esperar mais, ele beijou-a.

Peyton Anders beijou-a.Não precisou de dizer nada a Lena quando voltou ao lugar. A sua

expressão devia tê-la denunciado. A plateia inteira devia ter percebido. Lena fez uma careta quando os fãs de Peyton gritaram a pedir um encore. Acima do ruído ensurdecedor, ela inclinou-se e gritou:

— Beijaste-o, não foi?Caroline não podia mentir. Também não podia sentir-se mal por

isso. Não quando acabara de ter a noite mais incrível dos últimos anos. Talvez de sempre. Ela e Lena falaram disso a caminho de casa, e Caroline não deu importância ao sucedido. A culpa era de Alan. Ele é que tinha deixado de a amar. Além disso, Peyton Anders não era uma ameaça ao seu casamento.

— Ele não vai telefonar. Foi um momento num concerto. Nada mais. — Sentira-se corar ao justificar o beijo. — Sabes como é, uma pessoa deixa-se levar pelo momento.

— Não precisas de um beijo do Peyton Anders, Carrie. Precisas de aconselhamento matrimonial.

A conversa não terminou até Lena a deixar em casa. Caroline julgou que a coisa ia ficar por ali, mas estava enganada. O primeiro telefonema de Peyton teve lugar às duas da manhã. Caroline estava

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acordada na cama, a reviver cada minuto do concerto. Como era sexta à noite, Alan encontrava-se em casa. Caroline agarrou no telefone e olhou para o marido. Ele continuava a dormir. Saiu a correr do quarto e foi até à cozinha, no outro extremo da casa.

— Estou — sussurrou ela, olhando por cima do ombro. Ainda se conseguia lembrar de como receara que Alan acordasse.

— Querida, sou eu, o Peyton. — As palavras dele saíram em cata-dupa, como se tivesse bebido. — Hoje foi o céu. Quando posso ver-te de novo?

Numa decisão que iria questionar até ao seu último pôr do Sol, Caroline pensou em Alan no quarto, em como outrora o amara e ansiara casar com ele. A seguir recordou que ele a deixava sozinha com muita frequência. Rangeu os dentes durante meio segundo e deu-lhe um número de telefone diferente. O do consultório onde tra-balhava. Disse três coisas a Peyton. Primeira, ele podia apenas ligar-lhe para o trabalho. Segunda, ela era casada, portanto tinham de ter cui-dado. E terceira, estava desejosa de voltar a vê-lo.

A partir desse momento não existiu qualquer dúvida sobre os sentimentos de ambos. A intensidade da paixão, a sua impossibi-lidade, aproximou-os mais de cada vez que conversavam. Caroline tinha dificuldade em acreditar que Peyton Anders lhe telefonava. Ele devia ter dezenas de groupies em cada cidade. Porque haveria de procurá-la? Ela deixou-se levar pela emoção de tudo aquilo, con-vencida de que nada viria dali. Os telefonemas prolongaram-se por um ano, até Peyton voltar a Savannah em janeiro do ano seguinte. Peyton fez com que ela estivesse nos bastidores durante o concerto, e ela não disse nada acerca disso a Lena. Depois do concerto, Caroline e Peyton estiveram aos beijos durante meia hora numa sala privada dos bastidores. Caroline lembrava-se de ter dito a Peyton que preci-sava de se ir embora, que não podia descontrolar-se. Uma coisa era namoriscar com o cantor por telefone, outra coisa beijá-lo nos bas-tidores. Aquilo não passava de uma diversão na sua vida amorosa, de resto inexistente.

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Porém, ela gostava demasiado de Alan para ter um romance extraconjugal.

Quando se despediu de Peyton naquela noite, ele sussurrou: — Um dia destes acabo as digressões e seremos só nós os dois.

Levo-te para Nashville e começamos uma vida juntos. Caroline limitou-se a sorrir. Nunca consideraria tal coisa, mas não

devia qualquer explicação a Peyton. O fascínio que sentia por ele não era mais do que uma fantasia.

No dia seguinte, Lena ligou-lhe para o escritório.— Foste ao concerto dele a noite passada, não foste?— Lena, não é o momento para…— Ouve. Vais dar cabo de tudo o que é importante, Carrie. Pensa

na Ellie… e no Alan. Prometeste a eternidade àquele homem. — Ela esperou. — Estás a ouvir?

— Sim. — Caroline suspirou. — Como foi o teu jantar com o Stu?

— Carrie.— Não quero falar disso. Ele deixou a cidade esta manhã. É apenas

um amigo. — Não podes mentir-me.E assim continuou. Mais tarde, naquela primavera, quando Alan

lhe disse que ainda a amava e que deviam consultar um conselheiro matrimonial, Caroline sentiu um raio de esperança. Mas, seis meses depois, ainda não tinham arranjado tempo nem um conselheiro.

No aniversário de casamento seguinte, Alan levou-a a jantar fora, mas durante toda a noite exibiu um ar derrotado. Caroline tinha a cer-teza de que a sua própria expressão não era muito diferente.

— Sinto… que estou a perder-te. — Estava sentado à frente dela, a fazer um esforço para olhá-la nos olhos. — Que estamos a perder--nos. — Pegou-lhe nas mãos e, por um momento, ambos pareceram lembrar-se do quanto haviam perdido. — Desculpa se tenho sido um péssimo marido, Caroline. Não era minha intenção.

Ela tentou sorrir.

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— Ainda penso que as coisas vão melhorar.— Mereces melhor.Caroline pensou em Peyton. Sim, ela e Alan mereciam melhor.

Naquela noite, o marido prometeu-lhe coisas que fizeram Caroline esquecer toda a gente. Mas chegada a manhã, ele partiu de novo para mais uma semana de trabalho. Um mês depois, as suas promessas estavam esquecidas. Ellie passava mais tempo em casa de Nolan do que na sua própria casa. Às vezes, à noite, Caroline olhava para as fotografias do seu casamento e chorava pelo amor que haviam sentido na altura, o amor que haviam perdido pelo caminho. Ambos tinham culpa, e as respostas pareciam não existir.

Os telefonemas de Peyton continuaram, e quando ele chegou à cidade para o concerto seguinte — havia apenas quatro meses — insis-tiu para que ela fosse ter ao local do concerto mais cedo. Trocaram SMS até ele ir ter com ela à porta dos bastidores. Subiram para o palco e ele abraçou-a durante bastante tempo.

— Amo-te, Caroline. Penso constantemente em ti.As palavras dele assustaram-na. — Amor, Peyton? — Ela recuou, observando o seu rosto. — Isto

não tem nada a ver com amor.— Tem, sim. Amo-te. A sério. — Parecia magoado. — Não há nin-

guém na minha vida como tu, querida. Estás no meu pensamento a toda a hora, todos os dias. — Beijou-a, um beijo perigosamente apaixo-nado que a fez esquecer tudo menos o homem nos seus braços. Peyton olhou para ela, sem fôlego. — Tens de acreditar em mim, querida.

Ao longo dos dez minutos seguintes, as defesas dela caíram. Ela nunca havia imaginado aquil. Mas muito antes de ele subir ao palco, convenceu-a de que estava a dizer a verdade. Ela não era uma diversão ou uma fantasia ou um jogo. Peyton Anders amava-a mesmo.

Em seguida, ele largou a bomba. — Tenho quatro dias de folga. — Ergueu as sobrancelhas, nervoso

e hesitante. Tremia quando a olhou nos olhos, diretamente para a sua alma cansada. — Reservei um quarto.

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— O quê?— Um quarto. — Aproximou-se dela. — Vá lá, Caroline. Não pode-

mos parar isto. — Beijou-a de novo, desta vez durante mais tempo. A combinação do casamento gelado e do beijo apaixonado de

Peyton empurrou Caroline para o precipício. Ela recuou, ofegante e incapaz de raciocinar.

— Depois do concerto… leva-me para lá.E ele assim fez.Arranjaram uma rotina. Ela passava todas as horas do dia com ele

e nunca saíam do quarto, como se apenas ela e Peyton existissem. Ligara para o consultório a dizer que estava doente e voltava para casa bastante tarde. Durante as poucas horas que passava em casa, fazia o almoço para Ellie, e de manhã falava com ela uns minutos, enquanto a vergonha o permitisse. Em seguida, ia para o hotel.

Eram apenas quatro dias. Ela achava que nunca seria descoberta.Porém, naquela sexta-feira, Alan voltou da base mais cedo e inter-

rogou Ellie. Quando soube que Caroline só voltara para casa às dez da noite durante os últimos três dias, instalou-se junto à porta. Os olhos dele foram a primeira coisa que Caroline viu quando entrou à socapa em casa naquela noite.

Alan olhou para a mulher, o maxilar contraído, e chamou-lhe coisas que nunca mais a abandonaram. Nomes a que ela não podia escapar. E todos os dias desde então tinham discutido e lançado acusa- ções um ao outro como granadas de mão. A tensão enchia a casa, e Ellie ficava fora mais do que nunca. Ela tinha crescido, e agora era uma bela lembrança de tudo o que a própria Caroline fora em adoles-cente. Mas a proximidade que partilhavam quando ela era pequena já desaparecera.

Caroline virou o seu coração e as suas esperanças para Peyton. Sabia que as suas ações eram erradas, mas não conseguia impedir-se.

Ele já não era uma diversão, uma razão para se levantar de manhã. Ele era o seu futuro. Os telefonemas continuaram, e ela importava--se cada vez menos que Alan descobrisse. Por essa razão, não ficou

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muito preocupada quando o seu período se atrasou três semanas. Se estivesse grávida, ela e Peyton podiam simplesmente começar a sua vida juntos mais cedo. Só quando telefonou a Peyton para lhe contar é que o seu mundo desmoronou. Ele ficou em silêncio durante meio minuto antes de dizer algo que ela nunca esqueceria.

— Não podes provar que é meu. Ninguém irá acreditar em ti.E, de um momento para o outro, o jogo entre ela e o famoso Peyton

Anders tinha acabado. Caroline fez um teste de gravidez e olhou para o resultado positivo. Invadida pelo medo e pela incerteza, teve dificuldade em respirar, pois o teste significava duas coisas. O início de uma nova vida.

E o fim da sua.