Mais de dois anos voaram por mim. Eu ainda não cheguei na “saudade gostosa ... · 2020. 6....

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Mais de dois anos voaram por mim. Eu ainda não cheguei na “saudade gostosa” prometida, mas eu consegui atravessar a fase do desespero. Talvez seja negação, eu não mergulho fundo nos pensamentos sobre essa falta, porque quando eu faço isso, sei que vou bater no fundo e romper em mil cacos. Já faz muito tempo que eu pensava em escrever isso em forma de livro. Primeiro, no começo depois da perda,eu me comunicava com meu pai através de textos no Facebook. Nós morávamos longe, nos falávamos por lá todo dia, era onde eu ainda me sentia “próxima”, e por isso me dava uma sensação ilusória de que ele iria ler. Foi através desses textos que alguns amigos me deram essa ideia e eu pensei em como seria legal dividir essa história – a história dele. Dividir ele com o mundo é o maior ato de generosidade que eu poderia ter na vida, porque eu estou dividindo o que tenho de mais precioso. Não tinha, eu TENHO. A pessoa mais divertida que qualquer um poderia ter o prazer de conhecer, e que ficou conosco por um tempo breve, foi embora cedo demais,deixando uma saudade que nenhum livro em qualquer idioma seria capaz de traduzir. Com o tempo, eu fui perdendo a ilusão de que o meu pai me leria no Facebook. Os textos foram cessando. Eu tive que me acostumar ao silêncio. Nem sempre consigo, de vez em quando eu falho. Masmesmo que eu não sinta mais nessas palavras um canal de comunicação, eu espero que ele possa ler.A seguir, é tudo sobre ele. Histórias dele, em crônicas. Cartas para ele, de vários períodos após o maldito 14 de Janeiro de 2018. Não são todas. Não estão em ordem, nem por data. Estão espalhadas, bagunçadas, igual ele deixou esse mundo quando se foi. E poemas. Não sei fazer poemas, mas fiz mesmo assim. Sei que ele gostaria deles. Pai é pai! Mas mesmo que todos os leitores desse livro cheguem à conclusão de que poemas não são para mim, ou que as minhas palavras não fazem sentido, sabe do que eu tenho certeza que vocês gostariam? Vocêsgostariam do meu pai. E é a minha visão sobre ele que eu apresento agora. Com vocês, Marcos César Bueno, o meu início, meio e fim. Pra sempre.

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O Adeus – o pior dia da minha vida

14 de Janeiro de 2018.Se a sensação de escrever sobre ele é muitas vezes a de sangrar sobre papel, por que não começar pela ferida que mais dói? Era domingo. Os pais não deveriam morrer aos domingos. O dia do almoço em família, do descanso no lar. Quando o telefone tocou, o Rafa tentou amenizar a informação, mas eu sabia. Meu pai tinha tido uma parada cardíaca e sido reanimado, mas estava em estado grave. Ele passou mal ali, num lugar que conhecíamos de olhos fechados, e nunca imaginamos ver pela última vez.Desespero. O nascimento daquela sensação que me perseguiria para o resto da vida. Eu ainda não estava pronta para me familiarizar a ela. Corri ao Google e li sobre tudo o que pode acontecer após umapessoa ser reanimada. Não encontrei nada conclusivo, ou vai ver não consegui focar em nada. Vejo o Rafa mexer brevemente no celular. Pergunto o que foi. Ele diz que não foi nada. Não acredito, então pego o celular, e vejo uma mensagem do meu vô, que diz: acho que ele vai morrer. Duas paradas cardíacas.Foi como se o meu mundo inteiro parasse também. O meu pai tinha 46 anos. Ele não deveria morrer. Eu saí correndo, saí do apartamento, fui andar sem rumo pela rua, porque não queria estar lá quando a notícia chegasse. No fundo, eu sabia que ia chegar. Não tenho vergonha de dizer que saí decidida a pular na frente de um ônibus, de um carro, qualquer coisa que me impedisse de conhecer um mundo onde meu pai já não existisse. O Rafa me encontrou na rua, veio correndo na minha direção, e gritou: reanimaram! É tão estranho. Escrevendo isso hoje, tanto tempo depois, eu ainda sinto a ponta de esperança e de alívio, como se fosse possível que aquela história terminasse de outra forma. Voltei pro apartamento, era a casa dos pais do Rafa, tínhamos ido almoçar lá, e esperei. Se eu disser que me lembro o que fiz nesse meio tempo, é mentira. Não sei quanto tempo se passou desde que voltamos até por volta das 17:00, quando eu senti um aperto que nunca vou conseguir explicar, um vazio, um final. Eu sabia. Talvez as pessoas não acreditem nisso, e eu nem ligo. Eu senti meu pai morrer. Olhei pro Rafa, apontei meu peito e disse pra ele: ele parou de novo. Liga lá que ele parou de novo! E aí veio a mais estapafúrdia das minhas ideias, eu decidi correr pra igreja e torcer pelo milagre maior. Que não fosse verdade. E quando digo estapafúrdia, é porque eu acabei indo parar dentro de uma IgrejaUniversal e quem me conhece sabe muito bem o quanto isso não é a minha cara. Eu entrei, e o pastor falava em morte. Não sei se morte propriamente dita ou uma dessas metáforas, na verdade eu não consegui prestar atenção. Sentei e pedi pro Rafa ir ligar pro Peter, melhor amigo do meu pai, que mora em Porto Alegre. Achei que quanto mais pessoas torcessem por ele, mais chance nós teríamos. Fechei os olhos e não sei por quantos minutos fiquei ali sentada, até chegar o segundo que encerraria a vida que eu conhecia. Senti alguém tocar meu braço. Era o Rafael, mas ele não sentou do meu lado, ele me chamou pra levantar. Eu lembro de ter dito a palavra “morreu” antes de começar a gritar outras palavrasdas quais não me lembro mais. Vi os pais dele em seguida e tive a certeza. Ninguém precisou me dizer. Até hoje não recebi a notícia da morte do meu pai dos lábios de ninguém. O meu primeiro baque com essas palavras veio minutos mais tarde, quando dei entrada na emergência do hospital, e escutei ele dizendo pra quem me atendia: ela acabou de receber a notícia que o pai dela faleceu.

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No dia que você foi embora

No dia em que você nasceuO mundo todo virou poesiaEu soube que até a lua se riaSó de te ver chegarNo dia que você partiuO azul ficou vazioO sol ficou gelado de tanto chorar

Nunca houve cor que eu gostasse menos Do que o céu daquele dia

Um oceano inteiro separava nossos corposVida e morteQuando foi que nos resumimos a esses dois extremose nos tornamos só isso?Antes de cruzar o oceano, eu cheguei a pensarSó esse avião não vai dar contade levar toda essa tristeza pelo arO rosto de uma vida inteira já não tinha vidaA pele gelada, e todo o resto ainda quente, recenteDoendo, queimandoNo dia que você foi embora

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As primeiras vezes

É curioso como mesmo em torpor, a gente percebe as primeiras vezes, depois que perdemos alguém. A primeira vez que eu comi. A primeira foto que eu tirei. A primeira vez que assisti Chaves. As vezes olhominhas fotos de mais de dois anos atrás e vejo o rosto de alguém que ainda tinha pai. Que não tinha passado por nenhuma dessas primeiras vezes.

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O nascimento dele

Essa é uma das minhas histórias preferidas sobre o meu pai, mas quem me contava não era ele, era a minha mãe – que por coincidência, é mãe dele também. Ih, longa história. Não somos uma família incestuosa, não, não se assustem, é só um desses rolos familiares onde a mãe que cria não é sempre a mesma que gera. Mas ela gerou ele! E era uma gravidez de risco, com poucas chances de sucesso. Foi recomendada umacirurgia uterina para que pudesse prosseguir, mas havia o risco alto de que ela perdesse o bebê durante o procedimento.Minha mãe era de família espírita, e em família, realizou um tratamento espiritual, onde o seu guia garantiu que ela não precisava se submeter à cirurgia arriscada: o bebê nasceria de tempo e saudável. Ainda assim, preocupada, ela agendou o procedimento e foi internada. No dia, antes de começar, as coisas começaram a dar errado. A anestesia não pegou. A linha desapareceu da sala de cirurgia, e ninguém entendeu nada. Minha mãe teve um rompante de desespero e desistiu de última hora, proibindo o médico de iniciar. Exigiu que ligassem para o marido e não deixou que ninguém tocasse nela. Foi embora do hospital sendo vista como maluca. Por destino ou não, meu pai nasceu saudável e de nove meses. No dia que eles tiveram alta, ela encontrou o mesmo médico que faria a cirurgia, meses atrás. Minha mãe sempre conta sobre o choque nos olhos dele, sem acreditar que o bebê era de fato o filho dela, quando disse que “Nossa Senhora segurou essa criança de um lado e Jesus Cristo de outro”. Independente da fé de cada um, acreditem em milagre, espiritualidade ou mera coincidência, meu pai fez uma grande chegada nesse mundo. Na verdade, isso é a cara dele! Nascer vitorioso de uma gravidezdifícil e desacreditada pelos médicos. Isso é o que ele sempre foi, desde o primeiro dia de vida: alguém que superava as expectativas. Ele tinha essa luz gigante e sempre conseguia tudo o que queria. É claro que conseguiu nascer saudável. Ele tinha 46 anos de história pela frente. Eu sou fruto dessa história. Por causa daquele nascimento milagroso eu estou aqui agora.

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O meu nascimento – versão dele

Segundo meu pai, ele estava andando com uma turma de amigos pelas ruas de Jundiaí, quando ouviu um choro de bebê vindo de uma plantação de repolho. Pulou o muro e lá estava eu. Ele me chamou de repolho até o fim.

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Grandiosidade

uma vez li um poemaque dizia que só se sente grandiosoquem nunca olhou pro céumas e se eu gosto mais de vocêdo que do céu inteiromesmo que você seja pequenininho?

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O meu nascimento – versão real

O meu pai tinha 21 anos quando eu nasci. Ele se casou muito jovem, por causa da minha espera, e como já era de se esperar, o casamento não deu lá muito certo. Por isso, na noite do meu nascimento, ele estava em uma festa. Naquela época não tinha whatsapp e nem celular, então foi um tal de “vai lá avisar que fomos pro hospital”. Quando ele chegou na maternidade, de madrugada, ainda deu tempo de esperar pra me receber. Todo mundo achou que eu ia ser menino. Meu pai já tinha até nome pra mim: Lucas.E essa foi a primeira vez que eu peguei ele de surpresa: 25 de novembro, nos anos 90. Não vou dizer o ano, não, que logo eu pretendo começar a mentir a minha idade. Ele não estava esperando por uma menina, mas me recebeu com nome de princesa e um segundo nome que se orgulhava de dizer que foi pioneiro em Jundiaí. Ele que registrou o meu Tuanny no cartório, e assim nasceu Stephanie Tuanny, uma criança que já começou a vida lascada pra aprender a escrever seupróprio nome no futuro.Eu acho que por não termos a diferença de idade mais comum entre pais e filhos, eu tinha essa certeza de que nós envelheceríamos juntos. Que bom seria ter meu pai por perto mesmo depois de velhinha, lá pros meus 70 anos. Eu perguntaria se ele ainda se lembra do dia que me resgatou da plantação de repolho.

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A perda

sua ausência é a síndrome do membro fantasmasua perda me dividiu em antes e depoissua saudade é o costume dolorido que eu não queria termas tenhotodo dia, como se fosse rotinao vazio que parece uma máquina de moer coraçãoàs vezes eu até me distraionem percebo ele moídomas dói

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Os avisos que não ouvimos – e nem queremos

Pra ser sincera, não sei muito no que eu acredito. Principalmente depois que o meu pai morreu. Eu tive uma fase de ceticismo pesado, outra de ir em reuniões de psicografia, e agora eu passeio entre ambas. Acho que meu meio termo é não duvidar nem acreditar piamente. Apesar disso, tem essas coisas que acontecem e a gente pensa que não tem como ter sido só coincidência. Pra esse texto fazer sentido, tenho que dizer que em 2017 escrevi um livro, chamado Antes de Dizer Adeus, em parceria com uma amiga. A história se passa na Escócia e fala sobre perda. Se você não leu Antes de Dizer Adeus e tem a intenção de ler um dia, preciso te avisar que a partir daqui, você receberámuitos spoilers. Esses foram todos os avisos que o meu livro deu pra mim, sem eu saber.

- No livro, a personagem narradora perde Oliver, sua alma gêmea. Eu não queria que o Oliver tivesse uma morte clichê, queria fugir do tradicional, então fui pesquisar uma doença que fosse pouco falada em livros. Escolhi Cardiomiopatia Congênita. Meu pai morreu de Cardiomiopatia Congênita. Passei meses estudando sobre essa doença, sem saber que ele a tinha e que seria o que tiraria ele de nós.

- Oliver morre em um domingo, no início de 2018, na rua, retornando para casa. Meu pai morreu em um domingo, no início de 2018, retornando para casa.

- O último presente de aniversário do meu pai pra mim foi um joia escocesa local, com uma pedra roxa linda, confeccionada nas Highlands: lugar onde o personagem Oliver vivia. No papelzinho onde o colarera envolto, estava escrito a palavra: Miracle.

- Após a perda do Oliver, a personagem que narra a história, Tamires, cogita a possibilidade de estar grávida e acha que esse seria o grande propósito da superação, mas é decepcionada com um teste de gravidez negativo. Minha tia pensou estar grávida nos primeiros dias após o falecimento do meu pai, e achou que esse seria um alento para toda a família, mas foi também desapontada com um teste negativo. A crueldade da vida está presente na realidade e na ficção.

Eu desisti de publicar esse livro, mas minha prima me convenceu a seguir adiante, e eu lancei ele na Bienal do Livro de 2018, no Dia dos Pais. Além das similaridades entre a história e a vida, outros avisos chegaram sem que eu me desse conta. Na última vez que nos vimos, meu pai e eu, depois de passarmos o Natal juntos, ele me mandou uma mensagem da rodoviária dizendo que estava sentindo “um negócio esquisito, aperto no peito” e que achava que não tínhamos feito tanta coisa, nem tínhamosvisto um filme de terror. Isso nos leva a outro ponto. Ver filmes era uma coisa nossa, era o que sempre fazíamos quando nos encontrávamos, nosso costume desde que eu era criança. E o último filme que eu assisti com ele foi “A Cabana”. Uma história que fala justamente sobre a separação de pai e filha pela morte, na ordem inversa à nossa. Naquele Natal, sugeri que minha mãe fizesse nhoque para a ceia, a comida preferida dele. Nós nunca tínhamos comido nhoque no Natal antes. Nessa noite, o último presente que ele me deu foi um livro espírita.

Na semana que antecedeu o 14 de janeiro, tive pesadelos contínuos. Em um deles, meu pai estava em uma ambulância, e eu em um avião branco e vermelho, que caía, do lado da ambulância. Eu voei pro velório dele de Avianca, em um avião branco e vermelho.

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Não sei se sou cética o suficiente para ignorar isso tudo. Haja coincidência! Mas não entendo o propósito dos avisos… eu nunca, nunca poderia ter me preparado para o que aconteceu. Qual é o ponto? Por que eu poderia ter uma dica do que não pude impedir?

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Pulsando

hoje faz 2 semanas que eu descobrique você continua sendo considerada vivamesmo que tenha perdido o seu coração

- escrito duas semanas após

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Carta

Parece bobeira, mas significa tanto.Pai, em uma das suas idas ao Rio, você foi no mercado com o Rafa, viu uma máquina de moedas que dava essas bolinhas que pulam, parou e pegou uma. O Rafa achou que era pro Giovanni, e você disse que era pra mim. Ele achou engraçado. Mas pra gente foi normal, você sempre queria me dar coisa de criança. Sempre telefonava antes de me visitar, perguntando se eu queria algum salgadinho ou docinho pra me trazer.Acho que um pro outro, a gente nunca deixou de ter uns 8 anos de idade. Nunca deixamos de ser a dupla que jogava Mario no chão da sala depois que eu chegava da escola, empinava pipa no fim de semana. Lembra que uma vez você comprou um spray preto de pneu e a gente pichou toda a lavanderia? Minha mãe ficou louca da vida com você. Aliás, a gente enlouqueceu ela várias vezes. Pelanossa cara ela já sabia quando estávamos aprontando. Uma vez a gente foi no mercado e fizemos uma compra enorme só de porcaria com um dinheiro que você recebeu. E quando você me levou pra dirigir clandestinamente então, e eu cheguei na casa da Mércia dirigindo o Pálio e quase matei ela do coração, com você do lado, rindo pra caramba? Isso que ela não via as vezes que você me deixava pegar a moto.Ainda me pergunto como que eu vou levar uma vida em que não faço arte junto com você. Essas coisasficaram até sem graça. As pessoas sempre me dizem que com o tempo vai ficar uma saudade gostosa. Tomara, mas eu acho que nunca vai ser gostoso sentir falta de você.Pai, você ia ficar tão metido se soubesse o quanto todo mundo tá morrendo de saudade. Ninguém te esqueceu. As vezes seus amigos me chamam e me dizem que gostam de falar comigo pra se sentir pertode você, e aí é a minha vez de ficar metida por isso. Eu gosto tanto de ser pedaço seu. Gosto de ter seu queixo, sua testa, suas sobrancelhas, algumas ds suas expressões. Também gosto de ter herdado até a sua curiosidade absurda, a ansiedade, o gênio e o pavio curto. Eu nunca quis mudar nada em você. Comqualquer defeito que você pudesse ter, nunca te imaginei diferente. Nem com toda a criatividade do mundo eu poderia ter inventado um pai melhor.Sinto falta de te escolher doces. Das suas mensagens me avisando que tá passando algum filme em algum canal. Não sei quanto tempo falta pra mim aqui, mas quando eu abrir os olhos do outro lado, a primeira coias que eu quero ver é o seu rosto. Você vai estar de moto, sorrindo como sempre, e eu vou subir na garupa praquela nossa última volta que ficou faltando.Saudade sua. Saudade sempre.

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Pesado

ninguém conhece de verdadeo significado da palavra “peso”até que descobre sem querero peso do nunca mais

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A primeira viagem depois de te perder

Como eu disse, foram várias primeiras vezes. A primeira viagem também chegou, e como você bem sabia, viajar é o que eu mais gosto de fazer. Troco qualquer outra coisa material pra ir ver o mundo.Mas pra falar a verdade, pai, eu tenho essa impressão que toda viagem depois que você foi embora é a primeira. Veja bem, a primeira vez depois de tudo em que eu viajei, foi pra pertinho, quase quatro meses depois. Era uma viagem que já estava comprada desde o Natal, ou seja, desde antes de te perder. Aniversário do Rafa em Balneário Camboriú, pra passarmos o dia dele no Beto Carrero. Claro que a primeira facada tinha que ser profunda: logo um parque de diversões. Uma coisa tão nossa. Foi estranho, mas eu achei que seria pior. Eu consegui me distrair, consegui ter dias bons, acho que foram os primeiros dias bons do meu ano, naquele finzinho de abril. Depois teve uma viagem pra mais longe, no final do ano, e ainda foi estranho, mas suportável. Encontrei nossa prima Paulinha e a família e comprei uma plaquinha escrito César pra você em Paris. Seria muito estranho entrar em uma lojinha de presentes e não levar nada pra você.Mas eu acho que o baque mesmo, a primeira vez pra valer, foi quando eu voltei a Edimburgo, no fim do ano passado. Edimburgo é o meu lugar favorito no mundo. É na Escócia que se passa o meu primeiro livro, e eu já havia visitado lá duas outras vezes. Nas duas, eu te mandava fotos e mensagens otempo todo. Te mostrava até os detalhes do apartamento, a lareira, aquela coisa brega que a gente faz quando viaja pra lugar diferente. Foi lá que eu comprei meu último presente de aniversário seu, com o dinheiro que você me deu. Um colar lindo, que você viu e deu risada, dizendo que no Paraguai e na 25 de março devia ter igualzinho e eu nem precisava ter gastado dinheiro. Mas depois disse que achou lindo. Se não tem piada, não é você.Quando eu pisei na Escócia pela terceira vez, levei um susto. Sem brincadeira, não é pra parecer profundo ou impactante, mas o mundo ficou menos bonito sem você, pai. Ou meus olhos que ficaram mais sem vida, um olhar cinza. Eu via as mesmas ruas que eu ainda gosto tanto, os mesmos lugares queainda são lindos, mas eles eram de repente menos lindos. O horizonte que eu achava tão bonito, e aindaacho, sem encanto. Eu acho que os países e as cidades do mundo todo perderam a graça agora que eu olho pro céu e sei que você não tá mais no mesmo mundo que eu.Essa foi a minha primeira vez sobre viagens, quase dois anos depois, porque foi nela que eu senti a pancada da mudança. Como era voltar em um lugar onde eu só tinha estado com você vivo.

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Quando você foi pai de novo

pensei que teria ciúmesmesmo depois de adultaao saber que você seria pai mais uma vezfoi estranho imaginarsempre tínhamos sido você e eue esse personagem de sua filhaachei que só eu ia fazer na vida

mas quando o dia chegouachei tão bonito te ver pai de alguémte ver assim, renascido em criançaque nem senti ciúmes só fiquei felizporque você também estava

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Seu primeiro aniversário sem você

Encomendei bolo, doces e salgadinhos, mas falta o principal à mesa. Falta o aniversariante. Pai, sempre teve aquela música que me ligou a você, de uma forma meio sobrenatural. Ela tocou a primeira vez quando estávamos juntos numa situação difícil. Foi um rapaz no centro de São Paulo tocando ela numa flauta. Eu nunca mais esqueci.Depois disso, coincidência ou não, ela sempre acabava tocando perto de mim quando você estava com algum problema ou triste. E quando acontecia, eu sabia que ia dar tudo certo, porque naquele dia deu.Desde que você foi pra esse tal outro plano, eu fico esperando essa música tocar. Como um sinal de quevai dar tudo certo de novo, sabe? Porque por enquanto, tá tudo errado. A vida é errada longe de você. Parece sobrevida.Parabéns, pai, onde você tiver. Que te arranquem um monte de sorrisos hoje, no seu dia. Como eu não posso mais te desejar muitos anos de vida, eu desejo pra mim mesma conseguir sobreviver a eles com esse peso gigante que é a sua falta. De um modo que eu consiga te deixar orgulhoso.Eu não vou mentir, preferia você aqui. Quero você aqui pra ver Rei Leão comigo, pra cantar suas músicas, mandar áudios, me fazer passar vergonha. Quero você me mandando foto de toda besteira queia comer pra me fazer vontade e depois dizer: quando você vier pra São Paulo, o pai te leva.E agora, pai? Eu já tô aqui. Quando é que você vai me levar pra passear com você? Quando a gente vai no cinema ver o filme de terror novo que saiu e eu rir dos sustos que você leva, pra depois você querer me fazer comer tudo que vê pela frente, me mostrando os sapatos mais ridículos da vitrine e dizendo às gargalhadas que são a minha cara?É inacreditável viver um 24 de fevereiro sem você. Não vou me conformar nunca, não vou aceitar nunca, mas tô vivendo com isso.Não esquece nunca que mesmo que eu viva 90 anos, você sempre vai ter sido o meu primeiro amor. E que se existe mesmo tudo isso que dizem, eu escolhi você um dia, e que se não existe nada, eu te escolheria do mesmo jeito. Continuo te escolhendo todos os dias, não mudaria nada em você, não te queria diferente, só te queria de volta.Do meu jeito, eu tentei ser de presente pra você a melhor amiga que você pudesse ter.Feliz 47 anos, pai. Esse mundo não te merecia.

Do seu repolho azedo.

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Amarelo

a cor que você mais gostava faz parte do que chamam cores quentesé a que mais lembra vidaque faz parte do fogoque lembra ourotudo que reluzcomo a luz do sol por isso essa é a sua cornão existe mundo que brilha sem vocênão existe sol que brilha azulsó amarelo

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As nossas memórias de infância

Quando eu digo as nossas, e não as minhas, é porque você viveu e brincou a minha infância junto comigo. E eu tenho certeza que a minha mãe vai concordar que você era mais terrível do que eu. Quantas memórias daquele tempo a gente tem baseadas nas porcariadas que você comia e me ensinou acomer. Todo final de semana a nossa rotina era ir no cinema e no McDonald’s do Shopping Interlar. Sabe que eu consigo lembrar nitidamente da sua voz naquele microfoninho antigo prateado que ficava no vidro do balcão do cinema, onde você pedia “uma inteira e uma meia”?Com você eu assisti Xuxa e os Duendes, A Era do Gelo, Monstros SA, tanta coisa… Cada porcaria que eu já te fiz ver, né? Mas os nossos favoritos mesmo a gente via em casa. Acho que já assistimos a sequência de Rocky mais de cem vezes, sem brincadeira, fora os nossos filmes de terror, que você me ensinou a gostar, Falcão – o campeão dos campeões. Todos esses me lembram você. Ir alugar um filme e sair de lá com 5, depois comprar balinhas coloridas pra comer durante eles… Minha infância é toda colorida por boas recordações suas. Lembra da gente brincando com os índios que eram seus, de quando você era criança? Saindo de domingo pra empinar pipa, brincando de carrinho, você me colocando quase em cima do guarda roupa pra eu ganhar do meu vô no esconde esconde. Eu não podia ter me divertido mais, e olha que e nunca fui de sair de casa ou ter muitos amigos, mas eu tinha os melhores do mundo em casa, e você era e é um deles. Ah, pai… que bela merda foi acontecer. As pessoas dizem que faz mal pra você se eu me revoltar, então eu até tento ficar calma, mas você conhece a gente, né? As vezes dá vontade de quebrar tudo, gritar, perguntar o porquê. Mas aí eu tento lembrar da sua risada. De você rindo dos meus surtos e dizendo “essa menina é louca”, e me faz rir também. Aproveita aí, curte os seus avozinhos de quem você sentia tanto a falta. Manda lembranças minhas se der, um beijo pra vó Líbera, pra bisa pequenininha e pro vô Caros, que eu não conheci, mas se era seu parceiro, é meu também. E me espera. Sou muito privilegiada por ter nascido sua filha. Vou chegar aí contando pra todo mundo que você é meu pai.

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Te ver outra vez

eu viveria mais quinhentasdessa vida loucapra te encontrar de novo

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Soterrar

enterraram meu coraçãoquando te cobriram de terra

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Por quê?

Não tenho outras palavras.Só isso.Por quê?

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Sobre ele

Eu estava tentando reunir em um texto tudo sobre o meu pai. Todas as coisas que faziam dele quem ele era. Meu pai gostava de moto. Tinha uma linda, preta, a cara dele. Era corintiano. Xingava bastante assistindo aos jogos. Isso nos leva a outra informação, ele não tinha paciência. O pavio curto eu tive bem a quem puxar. Mas se existia um coração mole, esse era o dele. Se brigava com alguém, logo em seguida ficava com dó. Ajudava sempre todo mundo que podia, tomava os problemas das pessoas comodele, e vivia perdoando o que faziam com ele. Isso eu não herdei. Nada do que façam pra ele eu perdoo.Não dá.Meu pai era caseiro. Não era aquela pessoa que vivia rodeada de amigos, mas todos os amigos dele gostam dele de uma maneira rara, que não se vê todos os dias. Eles sentem falta e lembram sempre, até hoje.Ele adorava comer porcaria. Lanche de rua, McDonald’s, pão de batata, sonho de padaria. Churrasco, então! Picanha assada melhor que a dele tá pra existir.Meu pai era fã de Rocky e gostava de filmes de terror, mas tinha medo deles. Aliás, um fato incomum sobre mim: Rocky e O Cemitério Maldito eram os meus dois filmes favoritos da infância. Isso deve soar bem inapropriado, mas era coisa nossa.Sempre que eu vinha pra São Paulo, de visita, a gente via se tinha algum filme de terror passando no cinema, e íamos assistir, eu, ele e o Rafa. A parte mais divertida era ficar olhando pra ele, na cadeira do meu lado, tomando os sustos e rindo logo em seguida. Uma vez ele me deu o troco. Foi pagar o estacionamento, me deixou sozinha no carro, tudo deserto, a noite, o shopping já vazio. Voltou abaixado e me deu um susto que não sei como não bati a cabeça no teto. Dou risada de lembrar dele rindo disso. Isso me lembra de outra coisa que eu não disse: a risada do meu pai era a mais bonita do mundo. Ele era muito engraçado. Não tinha filtro nenhum. Era maloqueiro e fresco na mesma proporção. Tinha um pé igualzinho o meu. Era um vendedor e tanto. Antes de ir embora desse mundo, ia muito bem na profissão, por ele mesmo. Eu gostava de brincar com ele, dizendo que tinha virado filha de empresário. Logo que ele começou a ir bem no trabalho, queria me comprar o mundo. Ia pro Rio me ver e queria me levar pro shopping, insistia. Eu tinha pena dele gastar o dinheiro dele comigo, não queria, mas ele parava em toda vitrine e dizia “E esse aqui, filha? Leva, o pai te dá!” Eu dizia que ele me lembrava do Rocky, quando ficou famoso depois da primeira luta, querendo comprar tudo que via pra família e pros amigos, na maior felicidade.Ele tinha medo de barata. Acordava minha mãe de madrugada pra matar. Logo isso eu fui herdar.Adorava cachorro. Tinha um violão, mas não sabia tocar.Quando eu era pequena, me dizia que já tinha sido do Exército, da Polícia, lutado na Guerra e sei lá mais quantas histórias. Eu sempre acreditava. Uma vez contei na escola.

Jogávamos Super Mario 3 todos os dias quando eu era criança. Sempre era difícil passar a “tela da baleia”.

Seu sabor preferido de pizza variava entre quatro queijos, frango com catupiry e atum com catupiry – mas só se o atum fosse sólido.

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Ele tinha umas admiradoras online, de vários lugares do Brasil. Algumas chegaram a ir pra São Paulo conhecer ele. Era amigo da maioria das ex namoradas/esposa. Uma delas, a Alessandra, me disse que quem não gostasse do meu pai, boa gente não podia ser.

Eu concordo.Foi casado uma vez. Teve dois filhos, com uma diferença de 21 anos entre eles. Era o melhor amigo dos dois. Também foi o melhor filho que os pais poderiam ter, tanto é que sem ele, a casa até hoje é vazia. A gente brinca que ele é o filho preferido. Como não seria? Ele era o preferido de todo mundo.Eu acho que todas essas palavras poderiam caber num frase: meu pai foi um cara notável. Não dava prapassar despercebido por ele. Não dava pra ficar neutro. Quem gostava dele, só sabia gostar muito.Do meu pai não se esquece, não. Não inventaram a receita. E se alguém inventar, nem me passem, porque coisa que eu gosto de fazer é lembrar dele. Nem ligo se dói. Não consigo ver os vídeos, quase nunca faço isso, mas lembro dele todos os dias, o tempo todo. Por tudo que não deu pra ser, mas principalmente por tudo o que ele foi. E meu pai não ficou me devendo nada nessa vida.

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Quando 2018 acabou

Essa é a única festa que eu faço questão de comemorar, desde Janeiro. Por mais que sejam só números e títulos, não vejo a hora de poder dizer: 2018 acabou!Esse ano me jogou, logo nos primeiros dias, no fundo de um poço profundo. Me fez ver que eu não conhecia a tristeza. Apagou a luz dos meus olhos favoritos que eu nunca mais vi. Me condenou a conviver, todos os dias, com uma saudade que não dá pra solucionar. Fez eu dar uma surtada e nem me reconhecer mais. Não sabia mais o que era eu e o que era a perda falando. Que ano louco, sinistro, sem explicação.2018 me fez flertar com a loucura, e essa parte nem foi tão ruim. Gostei de ter coragem depois de tanto tempo. Perdi medos bobos, inseguranças ridículas, deixei de perder tanto tempo com o que não preciso.Por isso digo que o ano tentou me bajular depois de me bater tão feio. Provou que eu sou muito mais forte do que imaginava, que eu consigo sim, e que se 14 de janeiro não me derrubou, nada derruba. Nessa parte, a gente se despede, 2018 e eu, com algum respeito. Mas mágoa. MUITA mágoa. Quando eu olhar pra trás, não vou lembrar como o ano do livro lançado, nem como o ano de tal viagem, ou da tão planejada volta a São Paulo. Vou lembrar como o ano em que eu perdi o chão e tive que me virar como deu. O ano que arrancou o meu início e a minha continuação. Só eu sei. Então, mesmo que seja só um número, que 2019 seja bem vindo e não me apronte tão cedo.VAI EMBORA, 2018, EU NÃO GOSTO DE VOCÊ!!!

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Dois anos e eu ainda não me recuperei das sequelas desse acidente da vida.

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O que ele não vai ser

Muitas vezes eu penso, como já escrevi, em tudo o que meu pai foi. Mas os piores dias são aqueles em que eu penso no que ele não vai ser.Meu pai nunca vai ser meu acompanhante de viagens pra vida. Nós viajamos juntos algumas vezes, e foi tão legal, que eu queria levar ele muitas outras vezes. Não deu tempo. Ele nunca vai brincar comigo na neve. Nem conhecer o mar de Curaçao, que ele amou ver pelas minhas fotos.Meu pai não foi me ver lançar meu primeiro livro na Bienal. Ele estava ali, em sangue, presença, nas flores amarelas que representavam ele, na dedicatória. Mas não estava ali tirando fotos, postando todas elas – até as horríveis – e escolhendo onde ele ia achar uma coxinha pra comer depois disso.Meu pai não vai ser vovô pros filhos que eu nem sei se algum dia vou querer ter.O que é que a gente faz, com todo esse espaço que fica, pro que não vai ser?

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Quando se passou um ano desde que nos vimos pela última vez

Fez um ano que eu não te vejo.Um ano se passou desde o último beijo. O último "até a próxima". A próxima não veio...A vida ficou devendo.Difícil perdoar esse tal destino. Ele parece, na maioria das vezes, mais injusto do que bom. Mas aí me lembro de você.Que sorte que eu tive. De todas as pessoas que vivem e viveram nesse mundo enorme, eu nasci de você.Não dá pra reclamar tanto assim. Mas eu reclamo. Te perder tão cedo foi golpe baixo. Não aceito.Não aceito ainda que aquela tenha sido a última vez. Que não vai haver outra. Sem mais "acorda", "filha, vê isso pro pai", "quando você vier o pai te leva". Eu tô aqui. Cadê você?Nunca pensei que fosse ficar um ano inteirinho sem te ver. É surreal ainda. Cada vez que eu penso naqueles dias, fico imaginando mil finais diferentes. Nós combinamos de nos ver de novo em janeiro, mas jamais imaginei que só eu te veria, como eu te vi. E eu ainda não acredito muito, ainda tô com raiva, ainda acho um absurdo. Mas foi uma longa caminhada até aqui, e eu tô melhor agora, fazendo várias coisas que achei que não fosse mais fazer. Eu rio, eu viajo, faço planos… mas mais do que tudo isso, penso em você todos os dias. Lembro de você, de todas as memórias que você me deixou para quea sua falta não me matasse. Sempre quando faço alguma coisa, tento pensar que você também está fazendo, através de mim. Pelo menos o seu DNA tá ali.Que vida estranha... que ano horrível.2018... Ele até tentou depois, mas nisso me dei o direito de ser rancorosa. Pra sempre vai ser o ano que levou o que eu tinha de melhor.

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Meu primeiro aniversário sem ele

Chegou o dia que eu desconsiderei completamente a partir do 14 de janeiro. Não é só o meu aniversário que eu desisti de comemorar esse ano, foram todas as festas, e não é que eu esteja fazendo um sacrifício. Eu só não quero. Esse ano pra mim é e sempre vai ser um borrão, um apagão, eu não quero muito que venha dele, não. Eu to “pulando” essa data e esperando por ela do ano que vem, um ano novo, passado a limpo. E também por esse motivo não planejei nada. Não vai ter festa, não vai ter bolo, eu pedi pra não me darem presentes. Nem parabéns eu pretendia, porque ia faltar o seu, pela primeira vez, pai, na minha vida inteirinha, ia faltar o seu. Eu pretendia desativar o Facebook pra não ficar esperando depois da meia noite você me mandar o recado de sempre, depois me mandar vários textos de aniversário que você procurava pra mim, e o vídeo com aquela música do Rick Renner, que você dizia que era pra mim, mesmo eu não tendo mais quinze anos. Eu não to no clima de comemorar absolutamente nada sem você aqui, e não tem a menor graça que você não tenha como me mandar a sua mensagem hoje. Só que aí talvez, quem sabe, você tenha mesmo me falado hoje, daquele jeito que chegou a mim, que EXIGE que eu fique feliz. Eu ando muito cética desde 14 de janeiro, mas eu ainda sou fã do benefício da dúvida, e na dúvida, eu sempre dava um jeito de fazer o que você queria, mas felicidade é uma coisa que eu não consigo te prometer, especialmente hoje. Mas talvez você fique feliz se eu tentar agir um pouco mais normal. Eu pretendia passar o dia inteirinho fingindo que não é o meu aniversário, e eu quase consegui, porque passei a semana inteira sem lembrar que esse dia tava chegando até tocarem no assunto. Mas esquecer que é meu aniversário não é só esquecer da festa... é esquecer que 27 anos atrás, eu estava te conhecendo. E isso não dá.27 anos atrás, nós estávamos juntos primeira vez, e eu tenho certeza que eu já sabia, nesse exato momento, que ia ser você o meu melhor amigo. Meu companheiro de aventuras. O que ia assistir filme comigo, jogar Mario, levar pra passear, me ensinar a dirigir e a pilotar, e me fazer rir MUITO, sempre. Até hoje você ainda me faz rir. Eu queria ter tido muito mais tempo pra fazer isso também. Em absolutamente tudo de bom que acontece hoje, tem essa parte triste. Pra tudo falta um pedaço. Até as oportunidades boas e as portas abertas, o crescimento, tudo isso me faz pensar: por que logo agora? Porque não deu tempo de eu progredir com você aqui? Eu ia conseguir te dar tanta coisa no futuro. Não que você precisasse... você tava indo cada vez melhor na sua “multinacional” hahahaha. E você que sempre queria me dar tudo. Você não precisava, mas era o que eu mais gostava de fazer, e eu tinha tantos planos pra você. Eu queria tanto ter te levado pra ver o mundo, queria te ver vestido de inverno, tirando as mil fotos que você tirava de cada detalhezinho pra postar no seu Facebook doido. Eu queria ter feito tanta coisa pra você, com você, queria ter te dado tanta coisa, e não deu tempo. É como se não fizesse mais muito sentido conseguir as coisas agora.Eu queria ser exatamente como você. Queria ter puxado cada parte sua, mas acho que era tudo muito único, porque jamais conheci ninguém parecido. Eu gosto dos traços seus que ficaram em mim. Morro de saudade da nossa loucura compartilhada. Dos nossos planos. Das nossas criancices em comum. Mas nada disso que sobrou em mim chega nem perto de tampar esse buraco enorme que a sua falta causou.Não vou ter feliz aniversário hoje, isso é óbvio. Mas na minha cabeça, agora, não são 27 anos que eu nasci. São 27 anos que eu vi você pela primeira vez. É disso que se trata esse dia. Então... feliz 27 anos da gente, pai.

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Um ano sem meu pai no mundo

Um ano daquele maldito dia.Eu não escrevo mais tanto pro meu pai. Isso é porque depois desses doze meses insanos, com o tempo, eu perdi a sensação de que a qualquer momento ele ia entrar no Facebook e falar comigo, como fazia todos os dias. Isso não parece mais tão natural pra mim, porque o mesmo tempo que cura também destrói, e ele destruiu a minha impressão de que fosse ver ou conversar com ele a qualquer momento. Sobrou a realidade. Eu não gosto dela. Ainda não encontrei outro meio de me sentir próxima. Mesmo sem falar com você como antes, eu nunca vou te esquecer, nem por um dia.Foi um ano de altos e baixos. Começou comigo fazendo a mesma pergunta várias vezes: como eu vou sobreviver agora? Não sei como foi, mas eu sobrevivi, uma parte minha pelo menos.Não dá pra acreditar que faz tanto tempo que eu não vejo meu pai. Não dá pra acreditar que essa merda aconteceu de verdade e o relógio correndo só deixa mais real. Pra sempre maldito 14 de janeiro. Infinitos dias de vazio.Quando eu vejo as fotos, lembro das palhaçadas ou conto histórias, parece que ele nunca foi embora. Lembro de como era saber que ele tava lá, a uma ligação ou mensagem de distância. E é exatamente nesses momentos que eu me lembro do que eu mais sinto falta : 1 ano e 1 dia atrás.

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Ele pelos meus olhos

Eu sempre falo do quanto meu pai foi uma pessoa engraçada, divertida e maluca... mas acho que muitaspessoas não fazem a menor ideia do paizão da porra que ele foi.Ele descobriu que eu estava a caminho super jovem. Quis casar, e como já era de se esperar, não deu muito certo. A separação veio quando eu tinha 5 meses. Meu pai fez questão de ficar com a minha guarda integral. Sim, ele teve ajuda dos pais dele (meu vô e nossa mãe), mas isso não anula o fato de que ele sempre foi presente na minha criação. Pagou escola pra mim quase a vida inteira, sem nunca terrecebido pensão. Tive convênio médico enquanto ele mesmo não tinha. Sempre trabalhou, nunca faltounada pra mim, e não digo só em questões materiais. Os fins de semana dele eram sempre meus, todo sábado a gente ia no cinema e no McDonald´s, nas minhas férias passávamos o dia brincando na piscina do clube do Corinthians, todo dia quando eu voltava da escola a gente sentava no chão da sala pra jogar Super Nintendo, e de noite deitávamos no sofá pra ver filme. Os nossos filmes são uma das lembranças mais fortes que eu tenho de nós. Sempre no fim de semana estávamos lá na locadora, e quantas vezes alugamos filmes repetidos... perdi a conta de quantas vezes assistimos Rocky, Rambo, Falcão, O Cemitério Maldito, além dos nossos filmes de terror e LOST.Eu não tenho nenhuma lembrança do meu pai sendo inacessível pra mim em nada. Ele sempre tava comigo. E ele foi sim um meninão, mas nem por isso eu deixava de me sentir segura, eu sempre soube que ele faria o impossível por mim, pra me defender de qualquer coisa. E como eu amei ter um pai travesso! Fizemos muita arte juntos. Ele estava nos meus aniversários, formatura, casamento, e mesmo quando passamos a morar em cidades diferentes, estava a uma mensagem de distância, e nos falávamostodos os dias. Com qualquer defeito que ele pudesse ter, eu digo sem sombra de dúvidas que não trocaria ser filha dele por NADA nesse mundo e que nenhum deles fez ele ser um pai ruim. Nunca. Tudo o que eu possa ter de bom veio dele, seja do sangue ou do que ele me ensinou. O que eu posso dizer sobre viver sem o meu pai é que é como viver mutilada 24 horas por dia. Sentir a falta dele é saber o tempo todo que tem alguma coisa doendo, alguma coisa faltando, mas que é preciso seguir mesmo assim. Não existe band aid pra saudade. Não existe distração ou qualquer coisa que me faça esquecer que tá faltando alguém insubstituível. Eu sei que ainda vou viver muitas alegrias, e eu tô bem,mas sei também que eu nunca mais vou ser feliz, não por completo, porque a felicidade completa não existe num mundo onde ele não está. E tudo bem. Eu aceito pagar esse preço em troca das minhas lembranças e do privilégio de ter tido o melhor pai ninja que eu consigo imaginar

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Perguntas

eu tantas vezes me perguntopor que teve que ser assim?se no céuou em qualquer lugar bom que possa existirsempre ia ter guardado o seu lugarcom seu nome brilhandode boas vindasporque você tinha mesmo tudo a ver com céuentão por que agora?por que tão cedo?por que ocupar o seu lugar antes da hora?esse papo de hora certa não me ganhanão convenceporque ainda parece tão certoque você estivesse aqui

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Lembrança

Eu tenho muitas lembranças guardadas com meu pai na infância. É difícil escolher uma delas. Se eu fosse escrever individualmente sobre todas, nunca ia conseguir finalizar.Lembro de uma vez, quando ele recebeu um dinheiro depois de finalizar com um cliente, e decidiu, porsi só, que a gente ia gastar tudo no supermercado e na distribuidora de doces. Assim, do nada. Deu na telha, ele me chamou, sem minha mãe saber, e fomos. No Carrefour compramos bacon fatiado pra fazerhambúrguer, requeijão de vários sabores diferentes, catupiry e mais algumas coisas. Na distribuidora dedoces, eu nem seria capaz de lembrar. Saímos cheios de sacolas de caixas fechadas de chocolate, paçoca, salgadinho. Eu devia ter uns 14 anos. A gente ria sem parar, no carro, sem acreditar muito no que estávamos fazendo, e eu lembro dele dizer: quero só ver quando a velha souber. Quando chegamos em casa, a cara da minha mãe vendo nossa compra saudável foi impagável. Ela bateu o olho em nós e já perguntou qual era a arte. Meu pai sempre foi assim, sempre teve esses estalos do nada. Uma vez, quando eu era criança, ainda bem pequena, perguntei pra ele se a gente era pobre. Ele disse que não, nem pobre, nem rico. Aí, como um exemplo, eu perguntei: se eu pedisse uma boneca agora, então, você poderia me dar uma? Era mesmo um exemplo. Eu não era de ficar pedindo as coisas, ainda mais assim, em casa, no meio da noite. Mas ele disse que sim, e resolveu que íamos dar uma volta, pegou o carro, me levou até o shopping e comprou uma boneca, que eu tenho até hoje.Na minha infância, quase toda virada de ano a gente passava na praia, no litoral de São Paulo, região daPraia Grande. Ele sempre me levava no mar, me colocava nas costas e ia correndo e quebrando as ondas comigo. Morria de rir de mim quando eu caía. De repente, a gente olhava pra areia, e estava a minha mãe lá, fazendo sinal pra gente voltar e dizendo: tá muito fundo! Uma vez, quando eu tinha uns cinco ou seis anos, eu estava brincando de esconde-esconde com o meu vô no quartinho de casa. A gente brincava todo dia depois que ele chegava do trabalho. Meu pai viu queele estava “batendo cara” e decidiu me ajudar a me esconder. Me colocou no alto de uma pilha de coisas, quase na altura do guarda roupa. A cara do meu vô ao não me encontrar e depois me ver lá em cima também foi impagável.Outra lembrança que eu tenho é de um dia que eu queria brincar de vendedora e fiz uma banca de jornal em casa, com os meus gibis. Eu pretendia vender na garagem também, mas meu pai comprou todos pra ele. E me deu de volta depois, é claro.Outra vez, saímos de moto pra ele me dar meu presente de aniversário. Eu estava fazendo 16 e quis comprar livros. Meu pai sempre achava meio absurdo eu querer usar todo o dinheiro que eu ganhava em livro em vez de comprar outras coisas. Ele não era o maior dos leitores, veja a ironia de hoje existir um livro sobre ele. Nós fomos até a Sé, visitando Sebo por Sebo, e eu gastei cem reais em livros. Isso significa que voltamos carregados de sacola e com livros na mochila, porque se cem reais em 2007 era bem mais do que hoje em dia, imagina encontrando livros a R$3 cada! No meu de 17, logo que ele perguntou o que eu queria, nem se surpreendeu mais. Fomos no Shopping comprar o lançamento do livro do Barão Vermelho e comer no MC. A parte do MC ele gostou.Como já falei aqui também, foi meu pai que me ensinou a dirigir, quando eu tinha 16 anos. E se você julga ele por isso, tenha a certeza de que ele nem se importaria. Deixamos minha mãe na casa de uma tia nossa, e ele me levou para um lugar sem saída, deserto, e me ensinou. Lembro dele falando “põe ponto morto!” “acelera.” “agora freia!”. Assim foi também com a moto, mas quando ele foi me ensinar a primeira vez, eu tive uma crise de riso de nervoso e não conseguia frear porque não parava de rir, então ele teve que se inclinar, quase de pé na garupa, pra apertar o freio por mim. A rua inteira riu de nós.Essas não eram as nossas únicas clandestinidades. Também levamos uns cães pra casa sem

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consentimento exato da minha mãe. Teve o Lollo, um que encontramos no McDonald’s, abandonado e com o olhar mais doce do mundo. Não tivemos escolha, colocamos no carro e levamos. Uma semana depois, conseguimos um lar pra ele. E teve a Meg, que veio antes do Lollo. Meu pai queria muito uma cachorrinha, depois de um tempo que tínhamos perdido a Pitucha, mas minha mãe não era a maior apreciadora da ideia. Então ele achou a Meg, sendo doada por uma amiga dele, que não se adaptou bemcom ela. Eu já morava no Rio, e ia pra São Paulo pra passar o dia das mães. Ele me chamou e me disse que se eu desse a Meg de presente de dia das mães, a minha mãe não recusaria. Então bolamos o plano.Cheguei em São Paulo, fomos buscar ela na casa da amiga dele, amarramos um laço de fita no pescoço da pobre coitada e: SURPRESA!!!Sinto falta das nossas travessuras. De guardar os segredos dele. De falar “não conta que eu te contei” e ficar fofocando e fazendo planos mirabolantes que nunca executamos. Escolhi algumas lembranças que eu realmente gosto pra deixar registradas aqui, mas são tantas ao longo da vida, que eu não sou capaz de entrar nem em uma padaria sem lembrar de uma história que tenha vivido com ele. Não sei se um dia vou estar marcada na vida de alguém assim, como ele está na minha. Gosto que ele esteja. Minhas lembranças são algo que eu posso oferecer a ele, até meu último dia de vida.

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“Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra siÉ sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti”

Trem bala – Ana Vilela

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Memórias e histórias dele

Se tem algo engraçado sobre nós, são as memórias de família. E as histórias de infância do meu pai são as melhores, até a adolescência. É uma pena que eu não possa reproduzir com sonografia e demonstração, como eu ouço. Ele e minha tia nasceram em São Paulo, com cinco anos e meio de diferença. Minha mãe conta que ele protegia e cuidava dela sempre, e foi ele que ensinou ela a falar (meio errado, mas ele tentou).Na adolescência, quando eles já moravam em Jundiaí, no interior de São Paulo, essa proteção ainda estava ali, mas… digamos que ficou meio diferente, as vezes. Em uma das brigas deles, minha mãe gosta de contar que minha tia tirou da parede um enfeite, no caso uma espada de samurai, e saiu correndo e perseguindo ele pela casa. Ele se trancou no quarto, então ela furou a porta. Bem saudável, acontece em toda família. Também tem a história de furar o pneu da moto, de gritar na janela que o irmão era “bicha” pra vizinhança ouvir, e ameaçar ligar pras namoradinhas pra contar as artes. A implicância era recíproca. Foi recíproca até depois de adultos, meu pai adorava pregar uma peça nela. Lembro uma vez que compramos um rato de brinquedo na 25 de março e soltamos na sala, onde ela estava, enquanto ele filmava. Ele não conseguia parar de rir dos pulos dela correndo do roedor fajuto. Eles brigavam as vezes, como irmãos, mas também riam muito juntos. Ele ainda protegia ela, e ela levava doces e comidas que ele gostava, mesmo quando ele já tinha passado dos 40. E por falar em Jundiaí, meu pai era popularzinho na cidade na década de 80. Moto amarela, andando em um bando de amigos nos quais ele sempre falava, trocando de namorada, arrumando umas confusões. Muita gente lembra dele lá. Algumas vezes ele me levou pra visitar os amigos que deixou, e sempre dizia o quanto amava o lugar e como era gostoso morar ali. Eu queria ter conhecido meu pai adolescente. Eu acho que não era tão diferente, eu sempre dizia pra ele que ele nunca ia ser velho. Infelizmente isso acabou se tornando meio profético, no sentido literal mesmo, mas eu acho que meu pai não envelheceria nem se tivesse vivido até os 90. Nós teríamos sido bons amigos, eu e o Baco adolescente. Assim como fomos, desde que ele tinha 21.

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Yellow

a música Yellow me faz lembrar vocêquando dizque as estrelas, todas amarelasbrilham só pra você

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Meu pai e o teste de gravidez

O meu anúncio de chegada no mundo também não foi dos mais comuns. Meu pai e a namorada eram super jovens quando eu resolvi aparecer. Quando veio a desconfiança, ela aos 17, ele aos 20, ele passoude manhã na casa dela de moto pra… pegar o xixi. Eu nem lembro mais quem começou a me contar essa história, só lembro de todo mundo rindo sobre em um churrasco no Rio, com todos os participantes reunidos: o ex casal e o fruto que vos fala, que foi descoberto de uma forma meio esquisita.Meu pai levou o “material” pra oficina onde trabalhava, fez o teste de gravidez, e ligou pra dizer: é, você tá grávida.Por falar nisso, ano passado, 2019, mexendo nas coisas dele, eu achei o exame “Positivo” de sangue, que confirmou que eu já existia. E ele guardou pro resto da vida.

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Pai,Lembra daquela música, que você cantava toda errada? Era a sua música. A música do “tcharuai”. Sabia que o nome dela, traduzido, é Total Eclipse do Coração?É como se parece o meu, depois de você ir embora.

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Sete dias depois

Oi, pai. Hoje foi a sua missa. Não deu pra ir, mas sei que você não se importou. Eu tô tão confortável nessa nova forma que encontrei de me sentir próxima de vc... sempre nós e esse Facebook!

Eu sei que logo as pessoas podem e vão me julgar, porque elas gostam de fazer isso, mas se essa é a forma que encontrei de me sentir conectada a você, ninguém tem o direito de questionar. É com palavras escritas que eu melhor me expresso, e é aqui que eu ainda tenho esperança de receber aquela curtida e aquele comentário, seguido de um monte de memes sem noção.

Você não deu as caras de novo, mas me mandou um sinal. Tudo bem, você gosta de testar a nossa paciência muitas vezes, a gente já acostumou. Foi bom, viu? E não importa a crença de cada um, o que aconteceu hoje, assim como toda a nossa vida, é "coisa nossa". A gente se entende, né? Nós dois somosmeio malucos, e todo mundo que te tinha no Facebook saberia disso.

Aliás, sobre tuas postagens... quem diria que eu ia sentir falta logo disso? Eu brincava com você, comentava nas suas bandalheiras que você me mata de vergonha, mas que nada, pai, eu tinha mesmo era orgulho. Eu queria ser mais assim, como você. Você nunca se importou com o que iam pensar do que você tava dizendo ou compartilhando, queria só se divertir e pronto. Até nisso você é intenso. Eu queria ter puxado isso teu, queria me importar menos, e acho que ultimamente tô bem assim, sabe? Masnão é de um jeito muito bom.

Sei lá, perdi de repente todos os meus medos, meus receios, nem me reconheço mais. Podem jogar vinte baratas voadoras em cima de mim, que eu vou ter o maior prazer de matar todas elas com umas cacetadas bem violentas pra descontar essa raiva que ainda tô sentindo.

Eu não preciso mesmo ter medo de nada sendo filha de quem eu sou, né? Acho que a proteção imensa que você tinha passou um pouco pra mim, e se não passou, você sempre deu conta do recado. Você é a única pessoa no mundo que eu sei que é doida o bastante pra eu poder contar pra qualquer cagada que eu fizesse na vida, mesmo se fosse arrastar um cadáver (e você ia adorar esse exemplo que eu sei).

Curiosamente você veio me visitar 4x esse ano, além de todas as vezes que eu fui pra São Paulo. Nos vimos mais. Passamos datas comemorativas juntos. Dia dos Pais, Natal. No meu aniversário eu viajei, mas você veio aqui uma semana antes pra me ver. Na última vez, você me escreveu uma mensagem da rodoviária e disse que tava sentindo uma "angústia", um negócio estranho. Eu brinquei que era porque você tinha comido demais. Ah, pai, se eu soubesse... eu teria parado aquele ônibus, nunca teria te deixado ir.

Aliás, pai, duas das vezes que você veio, você foi vir logo com duas das tuas ex. Uma vez com a ex esposa e uma com a ex namorada, e vieram na maior amizade do mundo. Você tem disso, né? É impossível um amor por você acabar, ele no máximo se transforma.

Eu tô aqui tentando continuar. Sei que você deve estar meio puto da vida aí comigo, porque sei que eu fraquejo pra valer, mas não herdei toda a sua força e coragem, não. Não consigo matar um leão por dia com um sorriso no rosto e várias piadas na ponta da língua como você sempre fez.

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Mas eu tenho uma memória incrível, e nela ficaram registrados todos os nossos momentos, todas as nossas histórias, tudo o que a gente fez. Eu lembro de coisas com você de quando eu mal sabia formular uma frase, até das últimas coisas, como você repetindo todo alegre: "César decoração, sua melhor opção"

Quando eu vi o que tinha acontecido com você, eu me senti pequena, um lixo, um nada. Um ser qualquer que pode deixar de existir em um segundo, e pior, um ser que não conseguiu fazer nada pra impedir, pra te defender.

Eu queria ter tido um milhão de braços, um milhão de pernas, teletransporte, superforça, tudo que fossepreciso pra sempre te defender e salvar de tudo, mas disso não era possível. Logo o seu coração que sempre me amou tanto foi me trair.

Por outro lado, diante dessas nossas memórias, eu não me sinto mais pequena. Eu vejo como a gente é grande, infinito, eterno. E que mesmo todo o sofrimento de agora, e pode crer que ele não é molezinha não, vale a pena se foi o preço por ter tido você por 26 anos. Um pai tão incrível, amigo, engraçado, divertido e tão, tão, tão generoso e bondoso que foi embora mas deixou comigo vários pedaços seus.

Eles estão nos meus traços, lembranças, na minha personalidade, no meu jeito, onde eu ainda te reconheço. Foi o melhor presente pra que a sua ausência não me matasse.

Ainda parece que vou te ver passar de moto, ouvir tua buzina, receber foto dos teus pães de batata. Quem sabe...

Ah, pai, eu nem tenho vontade de realizar tanta coisa que você não vai ver. Não tenho vontade de publicar os livros, que eram até tão pouco tempo atrás o meu maior plano pra esse ano horroroso, porque você não vai ler. Você foi a primeira pessoa que curtiu a página deles e não vai ler. Como assim?

Também não tenho vontade de ter filhos, porque como posso ter um neto seu, se você não vai ser o vovô? Se não vai levar ele na Falcon pra comprar besteira, contar história, fazer cabaninha e empinar pipa. Não consigo comer nada que você gosta, assistir os teus filmes, nada que você não pode mais.

Não dá pra imaginar nada disso, porque ainda não dá pra imaginar um mundo onde você não tá. Você sempre gostou de ser o Sol, com tudo girando ao seu redor, e agora que o sol se escondeu, sobrou um monte de planeta perdido, desalinhado, girando capenga, sem saber pra onde ir.

O Rafa disse que eu preciso ficar "perto do telefone" pra quando ele tocar. Eu tô. Me liga a qualquer hora.

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Alma

minha pessoameu par na contramãoainda que eu conhecesse todos os idiomase dominasse qualquer gramáticaeu não seria capaz de traduzir em palavras quanto orgulho eu tenho de você e de ser um pedaço teu

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As namoradas

Uma das lembranças mais fortes que eu tenho sobre a minha infância é de ter um ciúme doentio das namoradas do meu pai. Todas as que ele arrumava. E ele arrumava várias paqueras, ele era um pai jovem, então quando eu era criança eu tinha que aturar piadinhas das mães de coleguinhas, e depois de adolescente, pior, gracinhas das minhas próprias amigas. Ali, por volta dos meus 7 a 9 anos, mais ou menos, acho que deve ter sido a pior fase. Eu era quase um boneco Chucky, querendo assassinar com uma faquinha qualquer pessoa do sexo feminino que roubasse a atenção dele de mim. Sério, que saco que eu devia ser.Eu demorei pra me acostumar e pra gostar pra valer de alguma namorada dele. Até que veio a Alessandra. A Alessandra foi a namorada dele que eu mais gostei, porque ela não era só namorada. Ela foi amiga, melhor amiga dele até o fim da vida. Mesmo depois que o relacionamento entre eles acabou,eles mantiveram a ligação. Conversavam, dividiam os problemas, fazíamos churrascos em família nos quais ela vinha, ela viajou com minha família pra me visitar no Rio. E no fim, no último dia que vimos meu pai, já sem vida, ela estava lá, com ele. E eu sei que ele teria gostado disso. De um dos relacionamentos, meu pai teve outro filho, o Giovanni. Ele também adorava a Alessandra. A“broca”, como ele chamava, nunca falou mal dele ou fez qualquer picuinha dessas de fim de relacionamento. Ela gostava dele como pessoa. O amor só se transformou. Qualquer resquício daquela criancinha ciumenta não teria chance de existir com ela. Pena que eles não tiveram mais tempo. Que fosse pra serem amigos e se divertirem por anos, ou pra conversarem e quem sabe retomarem uma história do passado. Mesmo assim, eu sempre achei que meu pai combinava com a ideia do solteirão convicto, que namora aqui e ali, vez ou outra. Ele era cativante, sempre acabava conhecendo alguém novo. No velório dele, eu soube de uma cena engraçada, com três ex namoradas próximas a ele, ao mesmo tempo. Ele teria adorado saber disso, que tava passando uma imagem de don juan, mesmo ali no fim.

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Gemidão do Whatsapp

Eu tenho a impressão de que esse clássico caiu em desuso depois que o me pai se foi. Será que era ele quem fazia aquela porcaria rodar? Perdi as contas de quantas vergonhas eu já passei.

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Janeiro de 2018

É, pai... não tenho como não usar suas palavras de sempre nessa hora: é foda!Não quero pensar que tô escrevendo pro nada ou pra ninguém... como eu sempre gostei de escrever, é mais fácil dessa maneira, e além de tudo, era por aqui que a gente se falava. O Facebook é você pra mim. Eu sei que você odeia ler textão, mas se não gostar, vem puxar meu pé de noite! Vem, vai...

Eu tô tentando te deixar em paz... mas vc sabe que por hora ainda tá difícil. Quem diria que por ironia do destino você iria embora por causa do seu grande coração, literalmente. Você sabe que eu teria te dado o meu se eu pudesse. Você é muito melhor do que eu, e acho que por isso teve o privilégio de abandonar antes de mim esse mundo horrível que a gente vive. Ir embora e te deixar pra trás ali foi a pior coisa que eu já fiz na minha vida.Eu não vou dizer coisas bonitas pra esse momento parecer fazer mais sentido, eu tô com ódio de tudo, ódio do mundo, sem entender nada, como se porcaria nenhuma fizesse sentido. É como se eu tivesse perdido meu eixo. Você não é só meu pai, é também um pouco meu irmão, meu amigo, meu menino. E como eu sempre gostei de te paparicar, comprar danoninho, chocolate, tudo que você gosta pra quando ia te receber. Também gostava de te proteger e tomar as suas dores. Eu perdoaria fácil qualquer pessoa que me desse uma porrada no meio da cara, mas não tão facilmente quem te atingisse da menor forma. Mas você perdoava todo mundo, não guardava raiva por muito tempo de ninguém, logo ficava até com dó. Por isso que dá raiva. Como a gente vê uma pessoa dessas ir embora e ainda enxerga sentido? Não dá...pelo menos hoje não, só por hoje eu não consigo. Talvez amanhã, ou depois. Aguenta um pouquinho. Lembra do que eu te disse... não tem problema se a hora chegou, se não deu, porque eu sei que você queria ter vivido os 200 anos que me prometeu.

Sabe, pai, eu matei uma barata pela primeira vez, pra você. E eu não tive nem um pouco de medo dela. Acho que depois do que tá acontecendo, nada mais me assusta nessa vida, não.Eu vou continuar te pedindo pra me dar cada vez mais um sinal, até eu achar que ele é convincente o bastante pra eu conseguir respirar de novo e acreditar que você tá bem. A sua alegria sempre foi muito mais alegre em mim do que a minha própria alegria, sempre torci mais por você do que por mim mesma, e agora ficou esse vazio...

Eu ainda não acredito, ainda acho que vou acordar, então tô precisando que você ache uma brechinha aíe pare de tocar harpa por um segundo e venha soprar no meu ouvido: "tá louca, filha? Claro que o pai tá bem! aqui é comando!"Até lá, vai continuar sendo assim... um dia de cada vez, um minuto de cada vez, um segundo de cada vez... e como demora!

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Semanas

são agora seis semanas

sem chão

mas em pé

longe do meu coração

mas viva

e um dia de cada vez

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Uma das coisas que eu mais odiava

Foram tantas as coisas que eu passei a odiar, que tive que aprender a conviver depois de 14 de janeiro de 2018. Mas acho que a pior delas era uma única palavra. A palavra “ERA”.Logo no primeiro dia, eu passei a escutar por todos os lados. No hospital, de pessoas queridas. Depois escutei de novo no cemitério.

Como doía a palavra era. Parecia que tão inesperadamente tinha virado uma chave, todos diziam era, você era, e eu não conseguia acompanhar. Hoje eu entendo o porquê.Não fazia sentido falar assim. As vezes me percebo falando, a gente se adapta, se acostuma. Mas você não está no passado, pai. Você não era.

Você é!

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Você ainda sabe

Você ainda me “sabe”. Ainda me conhece. Eu sei que você sabe o tamanho da falta, o barulho do silêncio, o profundo do vazio.Você sabe que eu não hesitaria por um segundo em trocar de lugar com você. Eu trocaria todos os anos que ainda me restam pra que você pudesse ver o Giovanni crescendo, pudesse realizar todos os seus sonhos.Eu sei que você sabe. Eu sou pedaço de você.Nós ainda somos nós.

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Saudade

gosto amargodespedidasem curasua partida

você, que me fazia todas as vontadesquando posso te ver de novo?

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A estúpida morte

Li esse texto em 2018, que fala sobre a morte de uma perspectiva interessante. Quero compartilhar comqualquer um que possa se interessar a ler.

“Quando observamos, da praia, um veleiro a afastar-se da costa, navegando mar adentro, impelido pela brisa matinal, estamos diante de um espetáculo de beleza rara.

O barco, impulsionado pela força dos ventos, vai ganhando o mar azul e nos parece cada vez menor.

Não demora muito e só podemos contemplar um pequeno ponto branco na linha remota e indecisa, onde o mar e o céu se encontram.

Quem observa o veleiro sumir na linha do horizonte, certamente exclamará: "já se foi".

Terá sumido? Evaporado?

Não, certamente. Apenas o perdemos de vista.

O barco continua do mesmo tamanho e com a mesma capacidade que tinha quando estava próximo de nós.

Continua tão capaz quanto antes de levar ao porto de destino as cargas recebidas.

O veleiro não evaporou, apenas não o podemos mais ver. Mas ele continua o mesmo.

E talvez, no exato instante em que alguém diz: já se foi", haverá outras vozes, mais além, a afirmar: "lá vem o veleiro".

Assim é a morte.

Quando o veleiro parte, levando a preciosa carga de um amor que nos foi caro, e o vemos sumir na linha que separa o visível do invisível dizemos: "já se foi".

Terá sumido? Evaporado?

Não, certamente. Apenas o perdemos de vista.

O ser que amamos continua o mesmo. Sua capacidade mental não se perdeu. Suas conquistas seguem intactas, da mesma forma que quando estava ao nosso lado.

Conserva o mesmo afeto que nutria por nós. Nada se perde, a não ser o corpo físico de que não mais necessita no outro lado.

E é assim que, no mesmo instante em que dizemos: já se foi", no mais além, outro alguém dirá feliz: "jáestá chegando".

Chegou ao destino levando consigo as aquisições feitas durante a viagem terrena.

A vida jamais se interrompe nem oferece mudanças espetaculares, pois a natureza não dá saltos.

Cada um leva sua carga de vícios e virtudes, de afetos e desafetos, até que se resolva por desfazer-se doque julgar desnecessário.

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A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas.

Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada.

Um dia partimos do mundo espiritual na direção do mundo físico; noutro partimos daqui para o espiritual, num constante ir e vir, como viajores da imortalidade que somos todos nós.

Pense nisso!

Victor Hugo, poeta e romancista francês que viveu no Século XIX, falou da vida e da morte dizendo:

"A cada vez que morremos ganhamos mais vida. As almas passam de uma esfera para a outra sem perda da personalidade, tornando-se cada vez mais brilhante.

Eu sou uma alma. Sei bem que vou entregar à sepultura aquilo que não sou".

"Quando eu descer à sepultura, poderei dizer, como tantos: meu dia de trabalho acabou. Mas não posso dizer: minha vida acabou."

Meu dia de trabalho se iniciará de novo na manhã seguinte.

O túmulo não é um beco sem saída, é uma passagem. Fecha-se ao crepúsculo e a aurora vem abri-lo NOVAMENTE.”

Até breve, meu veleiro. Não esquece do que eu deixei com você, no nosso último encontro. Só você sabe.

FIM!

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AGRADECIMENTOS

A Ele

Você ainda sabe.Você ainda me “sabe”. Ainda me conhece. Eu sei que você sabe o tamanho da falta, o barulho do silêncio, o profundo do vazio.Você sabe que eu não hesitaria por um segundo em trocar de lugar com você. Eu trocaria todos os anos que ainda me restam pra que você pudesse ver o Giovanni crescendo, pudesse realizar todos os seus sonhos.Eu sei que você sabe. Eu sou pedaço de você.Nós ainda somos nós.Todas essas palavras só existem por sua causa. Então, o primeiro agradecimento, é a você, pai.

A Eles

Da última vez que eu escrevi um livro, eu agradeci a todo mundo que fez parte disso, pra mim. Dessa vez, eu vou agradecer por ele. A quem importou e esteve com ele.

Minha mãe e meu vô, pais dele, os melhores durante todos os 46 anos que ele viveu. Ele não poderia ter tido melhor origem do que os “velhos”.

Minha tia, que tinha vários tratamentos “carinhosos”por ele impublicáveis aqui e que sempre esteve com ele, até o fim.

Os amigos próximos e queridos, Alessandra, o pessoal da “época da loja”.

À nossa família gaúcha, que foi ele que conseguiu pra gente. Peter e Solange, amigos que sempre foram mesmo de fé, até o final, pra todas as horas, mesmo com todos os quilômetros de distância. Como ele adorava estar com vocês. Foi através dessa amizade que meu pai me deu de presente a Nicole. Por coincidência, era ela quem estava comigo, chegando na cidade onde eu morava, no fatídico dia 14.

Os amigos de farra, da internet, que faziam ele rir, porque nós nos divertíamos com ele rindo.

À Renata, que foi uma amiga por boa parte da jornada e sei que gostava muito dele. Os amigos de bandalheira online, que matavam a gente de vergonha, menção honrosa pro Peter e pro Auri.

Os amigos de infância e da adolescência, em Jundiaí. Os familiares, tios que paparicaram, os primos que farreavam no whatsapp, Manito e Rodrigo.

Todo mundo que esteve próximo e já estendeu uma mão ou causou nele um sorriso. Incluindo a turma do outro lado, que deve ter recebido ele com festa por lá: Vô Carlos, Vó Libera, Bisa pequenininha, TioJovacir, Adilson, Carlito, Rogério, a galera toda, porque ô família pra ter gente no andar de cima.

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E, a todo mundo que me leu, que dividiu comigo um pouco dele e que quis que eu escrevesse. Um agradecimento especial pra Aninha, que me empurrou a pontapés pra eu desengavetar logo de uma vez essa ideia! Obrigada, mana, logo vem os outros.

E pra ele, mais uma vez, meu pai, fica o maior agradecimento de todos. Pela inspiração. Por fazer essa história existir. Por ter presenteado esse mundo com a sua existência.