CARTOGRAFIA DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS: NARRATIVAS DA ...

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CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO II Isabel Cristina Santiago Blini CARTOGRAFIA DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS: NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA EM UM CAPS AD Santa Maria, RS. 2016

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CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO II

Isabel Cristina Santiago Blini

CARTOGRAFIA DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS: NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA EM UM CAPS AD

Santa Maria, RS.

2016

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ISABEL CRISTINA SANTIAGO BLINI

CARTOGRAFIA DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS: NARRATIVAS

DA EXPERIÊNCIA EM UM CAPS AD

Trabalho de conclusão de curso (TCC-II)

apresentado à Faculdade Integrada de

Santa Maria (FISMA), como requisito parcial

para obtenção do grau de Psicóloga.

Orientador: Prof. Ms. Douglas Casarotto de Oliveira.

Santa Maria, RS

2016

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ISABEL CRISTINA SANTIAGO BLINI

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de

Curso de Psicologia

CARTOGRAFIA DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS: NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA EM UM CAPS AD

Trabalho de conclusão de curso (TCC-II) apresentado a Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA), como requisito parcial para obtenção do grau de Psicóloga.

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________________ Douglas Casarotto de Oliveira, Ms. (FISMA)

(Orientador)

______________________________________________ Guilherme Corrêa, Phd. (UFSM)

______________________________________________ Marcos Adegas de Azambuja, Dr. (UNIFRA)

Aprovado em ____ de ____________ de 2016.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de uma forma contribuíram com meu processo de

formação, a equipe do CPS AD e a equipe da ESF. Bem como os usuários que

cruzaram meu caminho e me ajudaram a compor as minhas práticas quanto futura

psicóloga.

Imensuravelmente, agradeço a minha família por todo o suporte, em especial

a minhas filhas, Victoria e Renata que mais uma vez suportaram a falta de tempo e a

correria que fez parte da graduação. Ao meu esposo Jair pela ausência em muitos

momentos que foram dedicados a leitura e aos estágios.

Agradeço ao meus professores e colegas que foram muitas vezes o ombro

amigo, em muitos momentos que pensei em desistir

Agradeço ao meu orientador Professor doutorando Douglas Casarotto pela

oportunidade de aprendizado única que vou levar para o resto da vida.

Agradeço minha irmã Tassia por ter acreditado que meu sonho de ser

psicóloga era possível.

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RESUMO

Este artigo apresenta uma narrativa de experiências de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas (CAPS - AD) e em uma Estratégia de Saúde da Família (ESF), no município de Santa Maria/RS, o qual se realizou entre os meses de março de 2016 a dezembro de 2016. Com tal narrativa objetivou-se correlacionar minhas experiências nas unidades com os conceitos esquizoanalíticos de Deleuze e Guattari, em especial o conceito de “Corpo sem Órgãos”. Para tal composição o trabalho é inspirado no método cartográfico articulado às contribuições de Walter Benjamin para a criação desse olhar acerca da experiência. Para produção de dados foi utilizado o diário de campo, construído a partir da observação e participação das atividades desenvolvidas no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e na Estratégia de Saúde da Família (ESF). Como ferramentas teóricas que possibilitaram a análise dessa experiência foram utilizadas as noções de análise de implicação e analisador, oriundas do Movimento Institucionalista. Além disso, trago para a discussão os conceitos de território vivo e linhas de fuga, imprescindíveis para o entendimento da proposta de cuidado em saúde desenvolvida nesta articulação. A partir dos materiais analisados, pode-se entender que essas relações e integração entre os serviços de saúde pública possibilitam observar o sujeito considerando a dinamicidade do território em que ele se insere, permitindo, assim, um olhar mais humano.

Palavras-chave: CAPS; ESF; Corpo sem Órgãos.

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ABSTRACT

This paper presents a personal experience narrative essay of the internship period at a Psychosocial Care Center - Alcohol and Other Drugs (CAPS - AD) and at a Family Health Strategy (ESF), in Santa Maria/RS, between March and December 2016. This narrative essay aims to connect my experiences as an intern in these contexts to Schizoanalytic concepts by Deleuze and Guattari, particularly the idea of "Body without organs". For that, the study is based upon the cartographic method, in articulation with Walter Benjamin's contributions, for the creation of this view towards experience. The data was produced by means of a field diary, with notes from the observation and participation of activities in both the Center for Psychosocial Care (CAPS) and the Family Health Strategy (ESF). The concepts of implication analysis and analyser, from the Institutionalist Movement, were used as theoretical tools for the analysis of such experience. I also discuss the concepts of living territory and lines of flight, essential for understanding the health care proposal developed here. From the materials analyzed, we can understand that these relations and integrations of public health services enable the observation of subjects in the dynamics of their territory and, thus, a more human approach.

Keywords: CAPS; ESF; Body without Organs

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAPS - Centro de Atenção Psicossocial

CAPS - AD - Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas

ESF – Estratégias de Saúde da Família

FISMA - Faculdade Integrada de Santa Maria

PTS - Plano Terapêutico Singular

CsO – Corpo sem Órgãos

ASC – Agente de Saúde Comunitária

SUS - Sistema Único de Saúde

TCC - Trabalho de Conclusão de Curso

MTSM - Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

NAPS – Núcleo de Assistência Psicossocial

PSF – Programa Saúde da Família

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SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................................. 09

2. Referencial .................................................................................................11

2.1 Reforma psiquiátrica no Brasil...........................................................11

2.2 Surgimento do CAPS e NAPS...........................................................12

2.3 Estratégias de saúde da família e o apoio matricial..........................14

2.4 O corpo sem órgão por Deleuze e Guattarri......................................17

2.5 A visualização de uma prática clínica de um corpo sem órgão.........21 3. Metodologia.................................................................................................24

3.1 Produção de dados...........................................................................25 3.2 Análise dos dados.............................................................................25 3.3 Primeiro analisador: vivência no CAPS AD.......................................26 3.4 Segundo analisador: as mulheres da Vila ........................................36

4. Considerações finais ................................................................................. 44

Referências ............................................................................................... 45

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1 INTRODUÇÃO

“Se um fenômeno pode ser definido como “é isso, e apenas isso”, significa que ele existe apenas em nossas mentes. Mas se ele tem uma existência real, nunca podemos ter a esperança de defini-lo completamente. Suas fronteiras estão sempre em movimento, com exceções e analogias se abrindo o tempo todo” (JERZY GROTOWSKI1).

Dar o primeiro passo na escrita... Não se trata de uma tarefa fácil. Condensar

em algumas páginas uma experiência de cinco anos de graduação no curso de

Psicologia. Todos os momentos em que me vi confrontada – seja por mim ou pelo

outro – todos os momentos que me vi ao avesso, todos os momentos que me

fizeram engolir em seco, todos os segundos dedicados a leitura e ao humano. A

relevância deste trabalho nasce de existências reais, conceitos em que não terei a

esperança de defini-los, afinal, preciso respeitar seus movimentos, suas dilatações.

Caminho aqui ao lado de Deleuze, Guattari, Rolnik, Antonin Artaud e outros autores

citados ao longo do trajeto. Atento-me a discussões a respeito da reforma

psiquiátrica brasileira e de conceitos como “Corpo sem Órgãos”, “Estratégias de

Saúde da Família”, “Ambiência” e “Apoio Matricial”.

A escrita requer gestação, tempo. E com carinho, trago narrativas de minha

própria memória que o tempo se encarregou de esculpir, como o brilho nos olhos de

cada um que cruzei o olhar nesse ano de estágio conturbado. Conturbado por todos

os processos que passei até descobrir-me um corpo que luta contra sua própria

organização. Conturbado por descobrir que este processo permeia a todos nós, e

que diariamente lutamos contra os animais que nos devoram – e que incrivelmente

são frutos de nós mesmos. Peço que não esperem datas e qualquer rigidez, pois

busco aqui uma cartografia viva, uma narrativa que parte de um corpo em vir-a-ser.

Segundo Rolnik (2007), a cartografia é como um desenho no qual a formação

acontece através dos movimentos de transformação do ambiente, sendo função do

cartógrafo dar língua aos afetos, estando mergulhado e atento à realidade a ser

acompanhada.

Agradeço imensamente a oportunidade de estagiar em territórios vivos como

o CAPS AD e a ESF. A proximidade com o humano e suas relações tornou-se

indispensável para que fosse possível desvendar saberes estudados em sala de

1 Trecho retirado do livro BOGART, Anne. A preparação do diretor. São Paulo: Martins

Fontes, 2011.

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aula. Entretanto, gostaria de pontuar aqui que minha experiência de nada servirá a

quem lê este trabalho – não pretendo servir métodos, nem saberes findados.

Procuro, ao menos, construir uma fagulha de incerteza, um questionamento,

uma dúvida. Será que realmente vivenciamos o que nos escrevem os livros, o que

nos escrevem os métodos, o que nos escreve a teoria?

Trarei aqui também fragmentos de histórias de vida que cruzei, como as

mulheres da Maringá, que me ensinaram a ver o belo onde muitos veem a dor.

Gostaria de abarcar todas as complexidades que compõe o sujeito, que compõe a

subjetividade, mas percebo minha pequenez diante do grandioso processo contínuo

que é o ser humano. É preciso ir além de perspectivas identitárias, é preciso

perceber as potencialidades e devires, é preciso maravilhar-se pelas possibilidades

dos corpos de afetarem-se e serem afetados. Exponho aqui a produção de linhas de

fuga – traçadas pelos próprios sujeitos!

Espero que sejam afetados como eu fui.

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2. REFERENCIAL

2.1 A reforma psiquiátrica no Brasil

O processo da reforma psiquiátrica brasileira possui suas próprias

peculiaridades, inscritas em um contexto internacional de luta contra a violência

manicomial. Segundo Machado (2005), é no ano de 1978 que se consolida

efetivamente a luta pelos direitos dos pacientes psiquiátricos na sociedade brasileira,

marcado pelo surgimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

(MTSM). Movimento plural, composto por trabalhadores integrantes do movimento

sanitário, sindicalistas, associações de familiares e pessoas encarceradas em

instituições psiquiátricas, inspirava-se no Movimento da Psiquiatria Democrática

Italiana e nos ideais de Franco Basaglia, de setores da Antipsiquiatria e da

Psiquiatria Preventiva. Buscava modificar o paradigma em relação ao cuidado das

pessoas em sofrimento psíquico, evidenciando a resistência à institucionalização e a

necessidade de inserir os portadores de transtornos mentais no meio social.

A incorporação do MTSM ao Estado na década de 80 através de sua

participação no gerenciamento e formulação das políticas de saúde mental

ocasionou o surgimento de duas correntes de atuação em seus quadros (GONDIM,

2001). Em uma de suas correntes, priorizava modificar a assistência psiquiátrica a

partir de medidas estatizantes; de outro, o Movimento buscava transformações

estruturais a partir da luta interna nessas instituições.

Em 1986, a 8 ª Conferência Nacional de Saúde, foi o marco para a

consolidação e definição do caráter da reforma psiquiátrica no Brasil, vista como “o

fim da trajetória sanitarista de transformar apenas o sistema de saúde e o início de

uma trajetória de desconstruir, no cotidiano das instituições e da sociedade, as

formas arraigadas de lidar com a loucura” (TENÓRIO, 2002). Na conferência, o

movimento “(...) assumiu definitivamente a bandeira da descentralização, pleiteando

a criação de um sistema único de saúde universal, igualitário, participativo,

descentralizado e integral” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987 apud

PAIM, 1998, p. 9).

No final de 1987, no II Congresso Nacional do MSTM em Bauru, se constrói o

lema “Por uma sociedade sem manicômios”, reafirmando o novo conceito político-

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conceitual acerca da saúde mental. Em síntese, a nova etapa, fortalecida no

Congresso de Bauru, “(...) foi marcada pelo surgimento de novas modalidades de

atenção, que passaram a representar uma alternativa real ao modelo psiquiátrico

tradicional” (Amarante, 1995, p. 82). O período sinaliza as vias de lutas do

Movimento, buscando para além de transformações âmbito técnico-assistencial,

uma dimensão mais global e complexa: “um processo que ocorre, a um só tempo e

articuladamente, nos campos técnico-científico, político-jurídico, teórico-conceitual e

sociocultural” (Amarante, 1995, p. 87).

2.2 Surgimento do CAPS e NAPS

O primeiro CAPS do Brasil foi edificado em 1986, na cidade de São Paulo.

Denominado Professor Luís da Rocha Cerqueira, surgiu a partir da utilização do

espaço da então extinta Divisão de Ambulatório (instância técnica e administrativa

da Coordenadoria de Saúde Mental, responsável pela assistência psiquiátrica extra-

hospitalar) da Secretaria Estadual de Saúde (RIBEIRO, 2004, p. 95). Sua alcunha e

seu modelo de assistência foi pensado, segundo Pitta (1994), a partir dos centros de

atenção psicossocial da capital da Nicarágua, Manágua (Nicarágua), criado em

1986. Na capital, utilizavam-se de líderes comunitários, equipes interdisciplinares,

materiais improvisados e sucatas, e possuíam ações que buscavam, ao mesmo

tempo, à prevenção, tratamento e reabilitação. (RIBEIRO, 2004). Já em São Paulo,

o CAPS funcionava oito horas diárias ao longo da semana, e buscavam acolher

pacientes com graves dificuldades de relacionamento, através de um programa com

diversas atividades (GONDIM, 2001).

Além da criação do Centro, a criação do Núcleo de Atenção Psicossocial

(NAPS) em Santos também foi essencial para corroborar o novo modelo de saúde

mental. A publicação da Portaria do MS nº 224/92, em vigor desde janeiro de 1992,

determinou as diretrizes e normas para a assistência em saúde mental. Ela

reafirmou os princípios do SUS e fundamentou a estrutura dos novos serviços para

assistência, orientados nas experiências do CAPS e do NAPS (L’ABBATE S.; LUZIO

C. A., 2006). Os novos serviços, denominados pela portaria como CAPS/NAPS,

foram definidos como:

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“Unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional” (BRASIL, 2004).

Desse modo, se estrutura o caráter do CAPS como serviço de atendimento

diário, que busca ampliar os cuidados aos portadores de transtornos mentais,

respeitando a especificidade de cada paciente. Conceituado pelo Ministério da

Saúde, os CAPS atualmente são instituições:

“[...] a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-los a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu “território”, o espaço da cidade onde se desenvolve a vida quotidiana de usuários e familiares. Os CAPS constituem a principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica” (BRASIL, 2004).

Enquanto instituição caracterizada pelo atendimento multidisciplinar, os

Centros possuem como modelo de atendimento o trabalho em rede, isto é, eles

apresentam uma comunicação ativa com outros serviços que estruturam a rede de

atendimento em saúde mental como a atenção básica e Estratégias de saúde da

Família (ESF), além da própria família do sujeito. Os CAPS são diferentes quanto a

estrutura física, profissionais e suas atividades terapêuticas; e também à

especificidade da demanda, ou seja, para crianças e adolescentes, usuários de

álcool e outras drogas ou para transtornos psicóticos e neuróticos graves (BRASIL,

2005). Os diferentes tipos de CAPS e algumas de suas atividades terapêuticas são:

Quadro 1: Tipos de CAPS

Fonte: Ministério da Saúde, 2004.

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Quadro 2: Atividades terapêuticas desenvolvidas no CAPS

Fonte: Ministério da Saúde, 2004.

Em específico ao CAPS AD que estagiei – e ao qual se refere este presente

trabalho, seu funcionamento é de 40 horas semanais, 8 horas diárias de segunda a

sexta-feira. Ele oferece atendimentos individuais, em grupo e para grupos de

familiares. São desenvolvidas algumas oficinas como de grafite, futebol e vídeo.

Além disso, o CAPS AD conta com atividades de ambiência, realiza visitas

domiciliares e em sua equipe multiprofissional, trabalha-se com o apoio matricial.

2.3 Estratégias de saúde da família e o apoio matricial

Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2006), um dos principais desafios

da Reforma Psiquiátrica é a demanda de uma rede assistencial ampla e integrada –

que deve ser diversificada e efetiva – ao passo que necessita atender a 3% da

população que carece de cuidados contínuos em saúde mental devido a transtornos

graves e persistentes. Segundo o relatório de saúde mental no SUS, soma-se a

esse número um total de 12 a 15% da população brasileira (em todas as faixas

etárias) que apresentam transtornos mentais leves, que precisam de cuidados

eventuais. Se considerarmos somente o álcool, 9 a 11% das pessoas são

dependentes, numa faixa etária de 12 a 65 anos de idade, de acordo com

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levantamentos e pesquisas desempenhados no Brasil pela UNIFESP (Carlini et al,

2005).

Diante do exposto, foi primordial para que se pensasse em uma estratégia de

reorientação do sistema de serviços de saúde para uma maior abrangência. Assim,

define-se uma Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), e conforme o II

Seminário Internacional de Atenção Primária (2006 apud SAMPAIO, 2006), aponta-

se a Saúde da Família como “uma estratégia de mudança do modelo de atenção,

substituindo uma rede que já existia, criando novas redes e atuando de proativa em

territórios definidos com planejamento de acordo com o diagnóstico e de modo

integrado na comunidade” (p. 21). Sendo assim, a Atenção Básica é definida pela

PNAB como:

A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. É desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de cuidado complexas e variadas que devem auxiliar no manejo das demandas e necessidades de saúde de maior frequência e relevância em seu território, observando critérios de risco, vulnerabilidade, resiliência e o imperativo ético de que toda demanda, necessidade de saúde ou sofrimento devem ser acolhidos, (BRASIL, 2006, p. 19).

Para estruturação da Atenção Básica, o Ministério da Saúde transforma seu

Programa Saúde da Família (PSF) em uma estratégia para reorganizar o SUS:

Assim surge a Estratégia de Saúde da Família (ESF). Segundo Figueiredo (2013, p.

55), procura “reorganizar os serviços e reorientar as práticas profissionais na lógica

[...] da promoção da qualidade de vida da população”. Assim, modifica-se o modelo

assistencial para uma estratégia que visa propostas de promoção, proteção e

recuperação da saúde, e que, conforme o Ministério da Saúde (2009), devem ser

apoiadas por uma equipe multiprofissional:

A proposta do modelo de atenção do SUS através da Estratégia Saúde da Família exige uma mudança no processo de trabalho da equipe de saúde, que deixa de focar apenas na atenção às condições agudas e passa a ter seu foco dirigido às condições crônicas, à promoção e manutenção da saúde. Nessa mudança do processo de trabalho, as atribuições dos membros da equipe não são estanques, assim como não o é o processo saúde-doença da população sob cuidado (p. 61).

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Para Mendonça, Vasconcellos e Viana (2008), a ESF não se propõe a

somente organizar, mas também coloca em foco complexidades que anteriormente

eram ignoradas pelos profissionais da saúde, como: noção de família, sua

organização e composição; o cuidado direcionado para o núcleo familiar em seu

desenvolvimento e o processo de adoecimento, além de sua preocupação com o

contexto socioambiental urbano.

Dentro das unidades da ESF, a equipe ou profissional de referência são

aqueles responsáveis por conduzir os casos individualmente, grupal e/ou

comunitário. Diz respeito a uma nova organização do modelo de referência entre

profissionais e usuários, que tem por objetivo estreitar os laços existentes entre

profissionais e usuários. De acordo com Cunha e Campos (2011),

“O termo “responsabilidade pela coordenação e condução” refere-se à tarefa de encarregar-se da atenção ao longo do tempo, ou seja, de maneira longitudinal, à semelhança do preconizado para equipes de saúde da família na atenção básica. [...] significa o desenvolvimento de uma capacidade de diálogo para compreensão sobre os objetivos de cada recorte disciplinar e proposta terapêutica, buscando analisar as intersecções entre diagnósticos e tratamentos, definir prioridades, evitar iatrogênicas e, a partir de um vínculo terapêutico com o usuário, viabilizar sua participação (e/ou de sua família) nos processos de decisão clínicos” (p. 965).

Tal conceito, conforme Campos (1999) presume o surgimento de um padrão

de atendimento singular e especificado, realizado a partir de um grupo

multiprofissional e interdisciplinar, formado por profissionais das especialidades

consideradas imprescindíveis na gestão de um mesmo problema de saúde.

Portanto, o apoio matricial constitui-se de um alicerce para as equipes e

profissionais responsáveis pela atenção a problemas de saúde. Atua a partir do

conceito de campo e de núcleo, isto é:

Os saberes específicos de cada profissional envolvido, seus domínios técnicos e experienciais, constituem o Núcleo de saber de cada um deles. Os saberes e práticas em comum, articulados em torno de um mesmo objeto de trabalho, constituem o Campo (da saúde, das praticas de saúde, do cuidado, da vida em comum) (OLIVEIRA, G.N, 2011, p. 40).

Campos e Domitti (2007) afirmam que o termo apoio matricial é elaborado a

partir de dois conceitos bases:

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O termo matriz carrega vários sentidos; por um lado, em sua origem latina, significa o lugar onde se geram e se criam coisas; por outro, foi utilizado para indicar um conjunto de números que guardam relação entre si quer os analisemos na vertical, na horizontal ou em linhas transversais. Pois bem, o emprego desse nome – matricial – indica essa possibilidade, a de sugerir que profissionais de referência e especialistas mantenham uma relação horizontal, e não apenas vertical como recomenda a tradição dos sistemas de saúde (CAMPOS e DOMITTI, 2007, p. 155).

O termo “apoio” refere-se ao modo como esse contato será caracterizado, ou

seja, sugere uma metodologia de trabalho entre especialista e equipe de referência,

pautada a partir do diálogo, perdendo o caráter autoritário. Segundo Campos (2006),

diz respeito a uma “metodologia de trabalho complementar àquela prevista em

sistemas hierarquizados, a saber: mecanismos de referência e contra referência,

protocolos e centros de regulação” (p. 399-400).

2.4 O corpo sem órgãos por Deleuze e Guattari

Para iniciar o meu estágio nas unidades anteriormente citadas – CAPS AD e

ESF – pretendi ater-me aos conceitos esquizoanalíticos propostos por Deleuze e

Guattari para guiar-me em minha prática clínica. Iniciarei a discussão partindo

desses corpos que encontrarei. Portanto, inicio propondo que a existência do corpo

dá-se pelo movimento de seus encontros, que transformam e criam a matéria. O

corpo sempre ganha dimensões inimagináveis: criam-se linguagens para se dizer o

indizível, o corpo é a escrita viva, que sempre se transforma, cria e se reescreve. É

com Espinosa (1979) que vemos a revolução do corpo que manifesta a linguagem

dos afetos, e sua força se demonstra por sua incrível capacidade de afetar e de

afetar-se. O homem só conhece a si mesmo quando se depara com as ideias e

afetos de seu corpo, com suas intensidades. Sua produção é constante, o corpo

comporta a vida. Deleuze (1988) define o corpo como uma força, sempre tensionada

com outras forças, seja para desobedecer, comandar ou acatar. Para o autor, é o

desequilíbrio – que o corpo suporta – o responsável pela criação do equilíbrio do

corpo. Porém, o que suporta um corpo?

"Um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder

de afetar e de ser afetado que define um corpo na sua individualidade" (DELEUZE,

2002, p. 128). Nesta perspectiva, o corpo dilata suas potências a partir do caos, das

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combinações e não-combinações, e torna-se corpo/pensamento, em um movimento

infinito que gera sua consistência. Assim, tudo aquilo que podemos falar sobre um

corpo vivo é apenas através de seu viver. Deleuze (1985) nos diz que o corpo não é

o obstáculo para chegarmos ao pensamento, muito pelo contrário, é ali que o

pensamento habita, mergulha para chegar ao impensável – à vida. Os pensamentos

brotam como raízes furtivas dali.

Deleuze e Guattari (1997) discursam sobre uma zona de indistinção, que

existe no nada, onde o mais primitivo do humano reside em um contínuo vivo com

tudo que o circunda. Paisagem onde a vida fica imersa em um recôndito invisível,

maleável e pulsando para todos os lados, esperando para despertar. As potências

escondidas nesse recôndito dissolvem todas as formas, desinventando e inventando

o que é animal e o que é humano, acordando formas indistinguíveis. Ali vive um

Corpo sem Órgãos, intenso e sensível, articulando os elos entre representável e o

irrepresentável, abrindo-se para o mundo, para o Fora, o inteiramente outro. O

conceito de “Corpo sem Órgãos” foi tecido por Antonin Artaud2. Não se trata

necessariamente do corpo, mas sim do que é produzido a partir do encontro entre

corpos, mesmo que essa colisão ocorra no exílio, pois mesmo em solidão somos

intensamente povoados. Quando Artaud declama, em 1947, Para acabar de vez

com o juízo de Deus, visualizamos pela primeira vez a desconstrução desse Corpo

sem Órgãos. Dali, Deleuze e Guattari extraem mil platôs, em busca desse corpo que

explode em desejo.

Ao passo que a Psicologia unia o desejo a falta de objeto satisfazível,

Deleuze e Guattari encadeavam os fluxos e os cortes de fluxos da produção

desejante ao que foi alcunhada de “universal produção primária” (DELEUZE e

GUATTARI, 1972, p.11). Produção na qual o homem e a natureza estão

mergulhados, caracterizada como “produto de produção, tal como qualquer máquina

é máquina de máquina” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 11), ou seja, produzir

está sempre injetado no produto. Mesmo assim, ao longo da narrativa, repetem

viciosamente que o corpo sem órgãos é improdutivo, inconsumível. Como então

podemos pensar na união desses dois conceitos sem perder a substância da

conectividade desejosa? Em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari apontam um lugar entre

o produzir e o produto, lugar complexo que se propaga entre os intervalos da própria

2 LINS, D. Antonin Artaud: O artesão do Corpo sem Órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,

1999

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produção desejante, visto como destituído de cortes e que ainda não é fluxo, como

um “puro fluído em estado de liberdade e sem corte, deslizando sobre o corpo pleno”

(DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 13). As máquinas nos tornam organismo, porém,

na sua própria produção, o corpo sofre por estar assim ordenado, por não encontrar

mais nenhuma outra organização se não aquela. Um tremor em meio ao processo,

quase como se fosse um terceiro tempo.

Dizemos que o corpo sem órgãos é improdutivo, porém é produzido no lugar

próprio, como se fosse a identidade daquilo que produz e daquilo que é produto.

Então, já no Anti-Édipo (1972), o CsO é visto como estrangeiro a certas concepções

que o legado anterior ou contemporâneo teceu a respeito do corpo: “o corpo sem

órgãos não é o testemunho de um nada original, nem o resto de uma totalidade

perdida. Mas sobretudo o que ele não é, de modo algum, é uma projeção: não tem

nada a ver com o corpo de cada um nem com uma imagem do corpo. É o corpo sem

imagem”. Quando Artaud o viu, falam, o corpo sem órgãos encontrava-se fluindo nas

tensões, mas “sem forma e sem figura”. Não se regressa ao CsO como se

voltássemos para casa. Originam-se CsO nos mais diversos encontros, e em função

disso, é no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari que os corpos são vistos como se

opusessem sua “superfície deslizante, opaca e tensa” (DELEUZE e GUATTARI,

1972, p. 14), às máquinas-órgãos. Aos fluxos interligados, recortados e unidos,

opõem-se o seu “fluído amorfo indiferenciado” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p.

14). Às fonéticas, opõem-se os “sopros e gritos” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p.

14), como blocos desarticulados.

Criar para si um CsO é experimentar as entrelinhas em que as linhas de fuga

estabelecem distinções. Por isso, corpos assim são capazes de desequilibrar-se

desde o mais extremo mergulho à mais terna fluidez. São singulares imantações

existindo entre as linhas de fuga. Quando se tornam aprisionadas em uma

determinável conjunção, as linhas descansam em uma condição tensa, não estão

nem subordinadas a relações estruturais e funcionais, nem mesmo meramente se

esvaindo em infinitas direções de forma inesperada, apesar de resgatarem sempre

as potências que provocam os encontros. Por isso, corpos assim são tão voláteis:

eles potencializam conectividades desejosas sem controla-las para que elas

encontrem uma finalidade, seja essa causa final boa ou má. Pois afinal, o desejo

não deseja somente a vida, ele deseja também a morte, já que o corpo pleno da

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morte é seu próprio motor imóvel. “Instinto de morte é o seu nome, e a morte não

funciona sem modelo” (DELEUZE, 1972, p. 13).

Desse modo, a problemática da conexão entre desejo e corpo sem órgãos

deságua na prática de criar para si o CsO, ou seja, de encarregar-se das linhas de

fuga. Pois então, Mil Platôs resgata essa concepção: Como não ceder à última linha

mortal? A premissa necessária para que se torne praticável essa experimentação é

proporcionada pelo plano que tecemos a partir das imantações criadas pelas linhas

de fuga, pois ao refrearmos a dispersão das linhas, atuando com tensas pausas,

essas imantações manifestam sinais que nos indicam em que momento da fluência

nós estamos. É a esse plano que Deleuze e Guattari alcunham de “campo de

imanência do desejo” (2008, p. 15)

Trata-se de um plano singular, porque somente nele é que é possível que o

CsO se manifeste pelo que é. A imanência é dita aqui como um “Fora absoluto”

(ALLIEZ, 2000, p. 59), para que possamos separar o CsO do corpo orgânico. É

como se esse corpo orgânico, repleto de órgãos, fosse empurrado à estremadura de

sua organicidade, assim como se uma linguagem fosse transbordada para além de

si por desvios e derivas causados por pequenos “curtos-circuitos”. Nesses casos, ela

é exposta aos seu próprio limite, onde encontra, segundo Deleuze, seu “Fora,

silêncio ou música” (DELEUZE, 1993, p. 93-94). Num fluxo intenso, no instante em

que arrebentam os sentidos que estavam presos num arco familiar ao corpo da

fenomenologia, os órgãos dilatam-se de tal forma que se transformam, nesse tempo

aiônico, livres da “forma organismo”. Suspende-se a funcional necessidade que os

une à forma orgânica, liberta-se das relações estruturais que mantem seu

movimento em acordo com as necessidades vitais, subverte a “formação de

estratos”.

Para que possamos experienciar o fluxo desse corpo transorgânico,

precisamos proteger o próprio organismo. Contra sua expansão dominadora, é

necessário recompor o controle que busca a “sobrevivência” do organismo em seu

ideal, até mesmo porque a morte igualmente termina com os CsO que buscamos

experimentar. Assim, é necessário resguardar o organismo contra a amplificação

exorbitante de um CsO revivescido para somente a “quebra de todos estratos

orgânicos”, praticamente devotado a uma autodestruição pura, sem outro destino

senão o da morte. Não sei quem poderia pensar que desestruturar o organismo

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21

queira dizer matar-se durante o processo, nos lembra Deleuze e Guattari (1972).

Significa provocar “desterritorializações” para “reterritorializar”, a não ser então que a

morte permita a enunciação de um último CsO que já não pode ser mais corpo

orgânico, por ver-se comprimido a um insuportável pedaço de impossibilidades de

se viver decentemente um resto de vida, um resto de mortes acumuladas. Talvez,

para alguns corpos orgânicos, reste aquilo que René Schérer (2000) nos conta ser a

paradoxal lógica em que a vida se expressa: Ali, onde algo morre, a vida

desabrocha. Para que seja possível se vislumbrar as linhas e todas as dobras que

costuram a mais autêntica e original expressão possível de nós mesmos é preciso

fazer cair os muros que cercam as interioridades.

2.5 A visualização de uma prática clínica de um corpo sem órgãos

Ao iniciar este capítulo, penso em todas as tempestades que passei por

minha graduação até este momento. Trata-se do ponto-chave, onde escrevo sobre a

clínica que tentei construir por onde passei nesses anos. Tive a oportunidade de

conhecer tantos corpos, com potências retidas sob a pele, como Artaud diria,

“reluzindo em seus poros estourados” (apud DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 9).

Nestes corpos, buscava-se uma fuga, como se pudessem existir além daquele corpo

orgânico que os abrigava. Não sofriam: encontravam-se inertes, esperando alcançar

seu motor imóvel, seu corpo pleno da morte. A única atividade de seu corpo era feita

pelas suas mãos, que construíam muros e arames farpados em volta do

intransponível território do eu. Hoje, vejo que nunca foi e nunca será minha função

cavar túneis para alcança-los. Não se trata da minha verdade. Potencializar o devir

transformador de cada corpo, para mim, hoje, encontra-se tão difícil quanto escrever

sobre uma clínica que abarque esses possíveis novos corpos, com seus fluxos

insubordinados a quaisquer relações estruturais ou funcionais.

O homem é enfermo porque é mal construído, diria o poeta Antonin Artaud

(1947). Ora, então não seria o papel dessa clínica contribuir para reconstrução

destes corpos, para que eles possam enfim afetar e serem afetados? O olhar sobre

a prática clínica deveria acrescentar uma nova escuta, que se ampararia na

linguagem do corpo, numa sensibilidade que não reconhece palavras, pois é

corporal, e portanto invisível. Buscar aquilo que é indizível, escutando estes “sopros

e gritos” pré-verbais que antecedem à fonética e nos aponta, justamente, aquilo que

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é corpo: o que move é o devir da vida. Logo, a intervenção clínica necessita, para

ser eficiente, de uma forma evocativa do corpo. Toda prática deveria objetivar uma

via de acesso aos entranhados do corpo.

“De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana? (...). A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social (...) pois na ausência de desejo a energia se auto consome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia (...). Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados” (GUATTARI, 1987).

Não pretendo, aqui, compor um novo modelo clínico, e sim expandir

conceitualmente o fazer clínico. Não supra valorizar a representação, e sim dar

visibilidade à expressão do corpo. É preciso deixar de flutuar no vazio e atrever-se a

explorar as coisas na realidade, em sua universal produção primária, em que toda

natureza e o humano encontram-se emergidos. Deslizaríamos para um lugar a-

significante, pronto para absorver o que está em segundos de acontecer. É a partir

da utilização do personagem conceitual (DELEUZE e GUATTARI, 1997) como um

dispositivo que agiria como um pseudônimo e o ampararia como um revisor da

prática clínica, pressionando o pensamento em outras alternativas de subjetivar e

trabalhar.

O corpo enquanto personagem conceitual transformaria o outro de nós e da

clínica. Aquele que é desconhecido, mas que narraria aos coisas no instante em que

elas acontecem, manusearia o significado daquilo que ocorre, fazendo-o pelo fluxo,

pela diferença, como se fosse invisível a nós mesmos, do outro e da clínica que nos

impele a pensar. Significa esquecer-se de qualquer história do eu para percorrer os

caminhos do impensável que se potencializa nos encontros dos afetos. A produção

de sentidos seria inteiramente vista como um caminho para este corpo

transorgânico, no liminar de sua organicidade, que mostra-se como fluxos e desvios,

que cria sentido.

Para Guattari e Deleuze (1997), nas três grandes formas de pensamento

(filosofia, ciência e arte), é preciso visualizar o caos, e escrever um traçado sobre o

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mesmo. A filosofia expande-se para o infinito, delineando um plano de imanência,

onde nascem acontecimentos. A ciência renega o infinito para arquitetar o estado

das coisas em seus modos. Já a arte visualiza o finito que evoca o infinito, erguendo

edifícios com suas sensações. Entre estes planos, tecemos uma malha, onde todos

os elementos se interligam e constituem o pensamento enquanto heterogênese.

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3 METODOLOGIA

O cartógrafo, em seu objetivo, está comprometido com as tramas de

formações do desejo, portanto, não cabe aqui citar suas referências teóricas, o que

interessa é que teoria é sempre cartografia. Suas materialidades surgem dos mais

diversos lugares, porque é na procura de traçar histórias, devora os elementos que o

transpassa durante o trajeto percorrido (ROLNIK, 2014, p. 65).

Passos, Kastrup & Escóssia enfatizam que “a cartografia como método de

pesquisa intervenção pressupõe uma orientação do trabalho ao pesquisador que

não se faz de modo prescritivo” (2015, p.17). Portanto, não existem fórmulas prontas

ou qualquer propósito anterior, mas ao contrário do que se pensa, não diz respeito a

uma ação que não aponte para um direção, já que a cartografia busca

metamorfosear o sentido habitual de método, sem distrair-se ou perder-se no

desdobramento da pesquisa. Assim, não há como distinguir o inventor do

pesquisador, já que toda pesquisa trata-se de uma invenção de si.

Uno aqui ao método cartográfico a narrativa, proposta por Walter Benjamin.

Creio que se torna indispensável a união entre a prática e a teoria, e a primeira só

pode ser compreendida a partir de experiências. Como cita Benjamin (1994, p. 198)

“a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores”. A narrativa aqui permite-me também evitar possíveis conclusões

precipitadas – e nada tão perigoso quanto sugestões infundadas. Espero que vocês

possam auxiliar-me durante a leitura deste trabalho, espero que imprimam nele suas

próprias conclusões, suas próprias histórias. Minha proposta nunca foi ater-me a

intepretações... como cita Benjamin, “metade da arte narrativa está em evitar

explicações”.

Percebo a narrativa enquanto uma forma própria de comunicação, enquanto

tessitura. Ela se constrói a medida que se constroem as experiências, manualmente.

Benjamin (1994, p. 205) cita que não interessa à narrativa o “puro em si”, como um

relatório ou informação. É preciso que ela mergulhe a escrita na vida do narrador,

que seja impresso em seu corpo a marca daquele que a escreve. A observação não

deve se atentar a somente a superfícies: é papel do narrador mergulhar.

Benjamin (1994, p. 220) por fim, resume o narrador a uma citação de Valey:

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"A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os

objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e claridades formam

sistemas e problemas particulares que não dependem de nenhuma

ciência, que não aludem a nenhuma prática, mas que recebem toda sua

existência e todo o seu valor de certas afinidades singulares entre a alma,

o olho e a mão de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades

em si mesmo, e para as produzir”.

Portanto, estão convidados a mergulhar comigo.

3.1 Produção de dados

Para a produção de dados foi utilizado o diário de campo, elaborado a partir

de observações próprias e das vivências, seja no CAPS AD, seja na ESF. Segundo

Lima, Mioto e Dalprá (2007) os diários de campo são uma forma de registrar as

observações, comentários e reflexões para uso individual, configurando em

materialidade útil nos registros de atividades de pesquisa.

Para a formulação do referencial teórico, selecionei artigos e teses

encontrados através da pesquisa em base de dados do site Scielo

<<http://www.scielo.org/php/index.php>> consultado com os seguintes descritores:

Corpo sem Órgãos; Narrativa e Cartografia. Os critérios de inclusão de artigos e

teses foram: Artigos escritos em português e período aproximado de publicação de

cinco a oito anos. A análise de dados será utilizada a partir da análise de implicação.

3.2 Análise de dados

“Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, ideias, etc. Com o saber científico anulo o saber das mulheres, das crianças e dos loucos – o saber social, cada vez mais reprimido como culpado e inferior. O intelectual (...) com sua linguagem de sábio, com a manipulação ou o consumo ostensivo do discurso instituído e o jogo das interpretações múltiplas, dos “pontos de vista” e “níveis de análise”, esconde-se atrás da cortina das mediações que se interpõem entre a realidade política e ele. O intelectual programa a separação entre teoria e política: é para comer-te melhor, minha filha (...) mas, esquece que é o único que postula tal separação, tal desgarramento.” (RENÉ LOURAU, 1975, pp. 88-89, grifos do autor).

Para análise de dados, expandiremos o método de Análise Institucional para

pensarmos a partir da análise de implicações, um campo que Lourau (1993)

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denominou “campo de coerência da Análise Institucional”. A análise de implicações

surge por volta da década de 70, em uma crítica à neutralidade política.

“Segundo Merleau-Ponty, o sociólogo chega ao conhecimento não só pela observação de um objeto exterior, mas canalizando também sua própria implicação no momento da observação (...). Merleau-Ponty vai mais longe do que aqueles que se detêm na compreensão das instituições por meio de uma análise do vivido. Para ele, estudar o social é saber (...) como pode ser em si e para nós” (LOURAU, 1975, p. 38).

Portanto, segundo Lourau, é possível afirmarmos que a percepção não ocorre

em tempos distantes, e sim simultaneamente: as práticas produzem os objetos, os

sujeitos, os campos de pesquisa e os pesquisadores, sem ser possível determinar o

que originou um ou outro. A análise de implicação traz para discussão nossos

próprios sentimentos, ações e acontecimentos; ela “não é dada a priori por meio de

um esclarecimento ‘objetivo’ saído da manga do mágico, surge na crise, na

contradição, na luta e não na ginástica ‘dialética’ sobre papel branco” (LOURAU,

1979, p. 34).

Ao utilizarmos esta ferramenta, evidenciamos a análise de implicações como

um dispositivo para contestarmos e problematizarmos as práticas profissionais,

reafirmando a natureza política de toda intervenção. Questionamos, assim, os

lugares determinados como fonte de saber/poder, todas as instituições que

ocupamos por vezes de forma ahistórica, e reconhecemos nossa própria implicação

política, assim como todas as outras implicações que nos percorrem.

O analisador terá como objetivo apontar as relações estabelecidas, e da

compreensão sobre o funcionamento dos serviços a partir das impressões de quem

se insere nele. “Poderá explicitar os conflitos e problemas que podem existir, se

utilizando dos diversos recursos que possam auxiliá-lo, capacitando assim um

processo analítico” (BAREMBLITT, 2002).

3.3 Primeiro analisador: vivência no CAPS AD

Ao narrar as experiências que vivi no CAPS AD, pretendo desemaranhar as

linhas desse território. Trata-se de minuciosamente construir um mapa, cartografar,

borrar seus limites e pontilhados ao percorrer terras desconhecidas, é o que

Foucault chama de “trabalho no terreno” (DELEUZE, 1996, p. 155). A intenção aqui

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é que ao escrever este trabalho, o olhar que surja – ou ao menos uma provocação

de novos horizontes – para o campo dos serviços de saúde mental é de sua

associação a um transcurso, uma passagem ou atravessamento que possuem

movimentos e dinâmicas próprios, onde ali encontram-se atuadores que se

confrontam ao passo que se unem. O Ministério da Saúde (2004), ao adotar a

ambiência para definir o espaço físico enquanto também um espaço vivo, coloca em

evidência a política de humanização desses novos territórios. Gostaria aqui de

emprestar-me das palavras de Souza (2007, p. 127) para caracterizar este conceito

de ambiência: “parece haver uma ideia central: a de que a ambiência é um espaço

de expressão da loucura; ou melhor, a ideia de que estar na ambiência é estar

exposto à loucura sem nenhuma mediação evidente dos seus instrumentos

profissionais” (SOUZA, 2007, pág.127).

Portanto, aqui, pretendo me agarrar aquilo que é inteiramente humano,

buscando colocar em protagonismo aqueles aos quais agradeço por terem deixado

suas subjetividades emergirem a medida que interagimos, os ensinamentos e

marcas que deixaram. Nesse ambiente, também estive presente com minhas

limitações, preconceitos, com minha organização. Como Espinosa (1979) escreve, o

homem só conhece a si mesmo quando se depara com as ideias e afetos. Assim,

dou início a essa caminhada. A medida que empresto meus ouvidos e minha

atenção aos usuários que ali transitam, vou me percebendo e me confrontando. O

corpo organizado ao qual Antonin Artaud (1947) declara guerra, assim me vi e ainda

vejo, como sujeito que aos poucos vai se despindo e abrindo lacunas onde as

certezas antes existiam.

Para iniciar, gostaria de frisar que a primeira dificuldade que encontrei foi de

precisar trabalhar em equipe. Venho de uma experiência profissional – em outra

área, claro – em que sempre trabalhei sozinha. Nos primeiros estágios que realizei

na Clínica Escola da Faculdade Integrada de Santa Maria, também atendi

individualmente. Ao deparar-me com uma equipe multiprofissional, percebi

resistências em mim que precisavam ser descontruídas. Questões como

cumprimento de horário – estava acostumada a trabalhar conforme uma demanda

interna, e não cumprir um horário diário – brincadeiras minhas indevidas para o

ambiente profissional – já cheguei a brincar que não faria ata de reunião, brincadeira

não muito bem recebida e com razão, além de algumas vezes ter que atender a

telefonemas durante o cumprimento de horas do estágio, fato que chegou a ser

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comentado pela equipe com o meu orientador. Percebi inicialmente que encarei com

relutância as críticas feitas a mim: não se trata de uma tarefa fácil, principalmente

após quase cinco décadas com um pensamento e forma de agir como norte.

Lembrei-me de Artaud (1947) nos primeiros dias, que afirmava que para

desorganizar o corpo era necessário aniquilar o juízo e substituí-lo por um fluxo de

consciência: pensei, talvez assim seja o início do percurso. Resolvi, ao invés de

gerar mais conflitos, refletir e analisar que havia um espaço entre mim e a equipe, e

que era necessário que eu atravessasse esse vazio para inserir-me – de fato – neste

grupo, ocupando-me das tarefas que me eram designadas, e respeitando o espaço.

O trabalho em equipe nos exige interagir, respeitar as particularidades –

mesmo quando elas se chocam diretamente contra nós – e também compreender

que nada é decidido individualmente, todos os saberes devem ser respeitados.

Nesses momentos de críticas e discussões citados, agarrei-me também naquela

pequena frase a respeito do conceito de Atenção Básica empregado pelo Ministério

da Saúde (2012, p. 19), que dizia “toda demanda, necessidade de saúde ou

sofrimento devem ser acolhidos”. Assim, compreendi como necessário distanciar-se

de mim mesma para abarcamos questões que vão além, para criarmos enquanto

equipe multiprofissional um território onde o aprendizado possa fluir independente da

identidade de cada um. A medida que ia participando das atividades que o CAPS AD

oferecia aos seus usuários, ambiência, acolhimento, senti-me caminhando para um

novo pensar – ainda não sei se um dia chegarei lá, mas o importante são os passos

contínuos.

Percebi que era necessário ampliar o olhar e a escuta, pois as subjetividades

emergem muitas vezes de forma efêmera; é preciso prestar atenção em cada

vírgula, gaguejo, respiração, músculo: todos os detalhes para que nada seja dito em

vão. Senti-me muitas vezes atravessada, como um ponto no meio do trajeto, por

todas as situações vividas no acolhimento, principalmente devido ao curto espaço de

tempo do estágio e pela alta rotatividade de usuários no CAPS – nesse ano, acolhi

pessoas que chegaram para única conversa e não retornaram mais. Pensei em

como, questionei-me a respeito de uma clínica que abarcasse todos os vir-a-ser de

cada indivíduo, e refleti sobre a possibilidade de sua existência em uma instituição

pública, o quão viável seria em um ambiente onde muitos transitam, onde às vezes

aqueles que chegam não retornam: como pensar em uma articulação com a

comunidade? Com as famílias, com toda a sociedade brasileira que ainda exclui e

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criminaliza os usuários de drogas lícitas e ilícitas? Como fazer com que esses

usuários destruam os muros e arames que construíram ao redor de sua produção

desejante, para que possam experimentar os fluxos de seus corpos também? Como

que eu poderia fazer o mesmo comigo?

Percebo agora, ao escrever, que meus questionamentos só aumentaram ao

longo dos dias, e quando me questionaram anteriormente como pensar em uma

prática de clínica de corpo sem órgãos? esperando respostas, percebo que não as

tenho ainda: e se algum dia as tiver, talvez elas sirvam só a mim. Não há fórmulas,

não há certezas inquebráveis. Lembro-me de Marilu Beer, artista plástica argentina

que afirmava com veemência3: “nossa experiência não serve para ninguém, só serve

para a gente”. Não se trata de negar a reflexão, negar a teoria, mas perceber que a

todo momento nossa prática é única e precisa perceber as nuances para que não se

perca e se torne vazia. Como adentrar-me na vida destes usuários para criar linhas

de fuga, e por que não pensar em um corpo sem órgãos? Segundo Artaud (1947),

nossos órgãos estão capturados pela vida, separando o corpo de sua potência e

impedindo-o de experimentar. Nosso corpo sofre por estar assim ordenado,

capturado, o corpo vive na inércia e perde sua intensidade, fazendo com que se

necessite de outros recursos para se manter vivo. Ao passo que escrevo, lembro-me

de um dos usuários do CAPS AD que tive um contato infelizmente breve, mas que

marcou essa minha trajetória de busca incessante. Não se trata de um caso onde

obtive algum êxito em meu projeto, mas sim de um usuário que me fez perceber que

existem inúmeras outras colisões contra o corpo que fogem ao nosso controle.

João – nome fictício – é um usuário de longa data no CAPS AD. Acredito que

tenha vinte e poucos anos, não lembro-me ao certo da sua idade, mas lembro-me de

seus olhos. Em seu prontuário, ao qual tive acesso posteriormente ao nosso

primeiro encontro, consta que João chegou a instituição devido ao consumo

excessivo de álcool. Após seu encontro com o psiquiatra, foi-lhe destinado

medicamentos para o diagnóstico dado – que não citarei aqui por uma questão

obviamente ética. A equipe nomeou um profissional de referência acompanhar seu

Plano Terapêutico Singular (PTS), que foi produzido a partir de uma reunião de

3Retirado do blog de sua filha, Consuelo Beer. Link <<http://www.consueloblog.com/costanza-

e-marilu/>> Acessado em 20 de novembro de 2016.

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equipe. A partir desse acompanhamento, João começou a frequentar com

assiduidade as atividades do CAPS AD, buscando estar presente no maior número

possível de serviços ofertados. Eu o conheci em uma das ambiências que participei

na instituição, enquanto eu e o grupo estávamos sentados em roda, conversando

sobre histórias do folclore e as ditas assombrações, como bruxas e lobisomens. Era

um dia frio e nublado, propício para o assunto, e devido à chuva, a próxima atividade

– o aclamado futebol – havia sido cancelada. Muitos da equipe que estavam

presentes eram mais novos que eu, portanto não conheciam alguns dos causos

antigos. Lembro-me do quão interessante foi, como se eu vislumbrasse minha

infância, quando minha avó contava essas estórias ao lado do fogão a lenha na casa

de chão batido. Sentia-me ali como a figura de minha vó, cercada por meninos e

meninas de olhos curiosos, que riam e brincavam. Por breves momentos, percebi

que esqueciam as angústias que os levava até as atividades, motivando-me a contar

mais e mais estórias.

Percebi que havia suscitado o imaginário de todos, que sentiram-se seguros

para partilhar suas próprias histórias sobrenaturais, relatando seus casos reais, e

posteriormente adentrando-se no universo dos filmes também. Em determinado

momento, iniciou-se uma discussão sobre quais das figuras de terror poderiam ser

reais ou não. Recordo-me que citaram Deus, e entramos em uma discussão

saudável sobre quem acreditava ou não, sem questionamentos profundos. João,

que outrora parecia assustado com os contos de terror, me surpreende ao dizer a

seguinte frase: “Não acredito em Deus, porque se ele existisse, não teria levado as

duas pessoas que eu amava”.

Diante dessa confissão lembro da frase dita por Luiz Fuganti4 ao discorrer

sobre o corpo sem órgãos de Antonin Artaud “O nosso demônio é nosso espirito de

gravidade. Deus seria um dançarino e só dança quem tem pista, quem está em

movimento em devir”. Noto em João essa incapacidade de entender o que

aconteceu. Diante da morte, seu corpo perde a potência. Deus, para ele, era esse

devir. Seu corpo não deseja somente a vida, ele deseja também a morte, já que o

4 Trecho retirado da palestra ministrada por Luiz Fuganti no 4º Festival Contemporâneo de

Dança 2011, em São Paulo, realizado nos dias 1 a 13 de novembro de 2011. Sua palestra está disponivel através do link <<https://www.youtube.com/watch?v=lIwxWe_Tvo4>> Acessado em 15 de setembro de 2016.

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corpo pleno de morte é seu nome, e a morte não funciona sem modelo (DELEUZE,

1972, p. 13).

Pausa nas reflexões: neste momento, alguns meninos se afastaram para

fumar um cigarro e João, por não ser fumante, ficou ali sentado comigo. Talvez,

provocado pelo compartilhamento de lembranças, começou a contar-me sobre sua

vida.

João sempre teve seu pai como melhor amigo. Contou-me que juntos

encilhavam o cavalo para prendê-lo a carroça, de onde saía o sustento da família –

João não comentou em que exatamente seu pai trabalhava. Quando ainda era

adolescente, seu pai foi diagnosticado com câncer, e sua piora foi rápida: Disse-me

que ao ver o pai definhando, chegou a desejar que o mesmo morresse para findar o

sofrimento. Alguns meses mais tarde, quando seu pai faleceu, viu-se desamparado,

e foi com a aproximação de seu irmão mais velho – começou a estabelecer uma

relação afetuosa com ele depois da morte do pai – que encontrou forças para lidar

com a perda. Mencionou que seu irmão praticamente assumiu o papel de pai,

cuidando-o. Entretanto, seu irmão era usuário de drogas, fato que sempre causou

muito sofrimento a ele e sua mãe. Seu irmão sempre o aconselhava a não usar

qualquer substância, pois se dizia um “viciado que não conseguia largar”. João disse

que nunca imaginou que um dia iria ver seu irmão morto, mas quando voltava para

casa, em uma tarde, o encontrou-o enforcado, “pendurado em uma corda”, como me

disse, de olhos marejados. Relatou que ali sua vida se findou junto: para tentar

“esquecer”, ignorou o conselho do irmão – “já não importava mais” – e começou a

beber álcool, até “viver bêbado”. Lembro-me de uma frase de Lourenço Leite,

professor de filosofia da UFBA, no XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF:

“Salvo engano, teve-se que conviver ao longo desses séculos com uma noção de corpo em que o ideal era se neutralizar de toda dor e todo prazer, intoxicando tanto um como outro de faltas e de jejuns” (LEITE, 2004, p. 2).

Ou seja, essa noção de corpo nos perpassa sócio culturalmente, se entranha

por entre as camadas da pele, mistura-se ao sangue, afeta os órgãos.

Determinamos que tudo aquilo que provém do corpo e que consideramos ilógico do

ponto de vista psicológico, não é válido. Calamos por décadas a dor e o prazer, ao

ponto que o desejo, por visão psicanalítica, se constitui na falta, talvez na falta de

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ouvir a própria linguagem do corpo que clama por poder sentir. Não foram poucos os

psicanalistas que correlacionaram a falta com a dependência química, como Pierre

Clark (1919 apud KALINA, 1999), Rado (1933 apud KALINA, 1999), Rosenfeld

(1965), Winnicott (1963), Abadi (1998), Bion (1966)...

A busca por um Corpo sem Órgãos também diz respeito a explorar o desejo

por outro viés – o do movimento.

“Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão” (DELEUZE E GUATTARI, 1972, p. 43).

Por isso, na visão de Deleuze e Guattari, o desejo é revolucionário, porque é

a partir dele que se produz o real. Ele pertence a infraestrutura, pois “constrói

máquinas que, inserindo-se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de

deslocar o tecido social” (DELEUZE, 2006, p. 296). Talvez o que era preciso a João

era o desejo, perceber-se enquanto máquina desejante, composta de fluxos próprios

e potencialidades. Talvez nessa tentativa de neutralizar a dor, transbordou-se em

faltas, fixou-se: Não se permitiu deslizar pela superfície opaca e tensa. Tornou-se

ponto estanque.

Segundo ele, foi sua mãe que o levou até a ESF da Vila, que o encaminhou

ao CAPS. Ao encontrar apoio e acolhimento entre a equipe, buscou “um novo

sentido a vida”, percebendo que precisava melhorar, pois sua mãe “não iria suportar

perder outro filho”. Na instituição, encontrou espaço para conversar: a equipe, além

de auxiliar com a medicação necessária, conseguiu que João recebesse um

benefício do INSS que lhe assegurava uma renda mensal, algo inexistente em sua

família carente. Disse-me que sua mãe sempre o fez acreditar que precisava ter fé

em Deus porque ele era bom, mas mesmo assim, não compreendia porque Deus

estava agindo assim com ele. Limitei-me a apenas ouvir, pois percebi que qualquer

pequena interferência ou comentário poderia fazer com que o fluxo que ele abriu

naquele momento parasse de jorrar. Percebi força e dor em suas palavras, mas

talvez aquele momento para ele tenha sido necessário, como se ele tivesse expelido

algo há muito tempo trancafiado dentro de si. Lembrei-me de Artaud, quando fez sua

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33

transmissão radiofônica do texto-poesia “para acabar com o juízo de Deus” (1947):

“Então o homem recuou e fugiu. E então os animais o devoraram”. Sinto que João

era devorado todos os dias para manter-se vivo, um paradoxo que só pode existir

em nossa sociedade. João jogava-se aos animais numa tentativa de que eles lhe

comessem os órgãos, que eles o livrassem daquela organização corporal que já não

lhe servia mais.

Os dias seguiram-se, e João se aproximava cada vez mais de mim,

conversando. Percebi que aos poucos ali se abriam fluxos outrora fechados, e que

isso o auxiliava a ter força para buscar essa nova organização do corpo. Tomava a

medicação com cuidado, frequentava as atividades do CAPS AD, e mostrava-se

cada dia mais calmo e aberto. Percebi o quão importante foi, a partir dessa relação

construída, o escutar, o ouvir. Ao passo que João era afetado por mim, ele também

me marcava. Entretanto, começou a mostrar-se preocupado com a mãe, que insistia

para ter a filha de volta em casa, pois a mesma sofria violência por parte do marido.

Falou: “Lá em casa ele não vai bater nela, porque eu não vou deixar”. Apesar disso,

narrou as brigas em casa constantes, quase sempre com as outras irmãs – João

vem de uma família grande, conheci seis irmãs, mas ele havia me afirmado que

eram entre mais. João evitava rebater críticas por causa de sua mãe, que afirmara

ser doente e sofrer muito. Percebi que a ansiedade de João aumentava a cada dia,

e ele se mostrava cada vez mais irritado. Disse-me que chegava a ter vontade de

agredir as irmãs, mas nunca o fez, por respeito a sua mãe. Afirmou-me que

precisava tomar seus remédios corretamente, porque eles o ajudavam a se manter

dentro da “normalidade” – achei interessante ele citar esse conflito constante dentro

de si, entre a pessoa que ele desejava ser e a pessoa que ele vinha a ser.

Abro aqui novos parênteses para discutir a subjetividade a partir do viés

esquizoanalítico. Tanto para Deleuze (2001) quanto para Guattari (1999), o sujeito é

prático. Ou seja, sua subjetividade se constitui a partir de sua materialidade, do seu

caráter processual, parcial, imanente e pré-pessoal:

Não existe uma subjetividade do tipo “recipiente” em que se colocariam coisas essencialmente exteriores, as quais seriam “interiorizadas”. As tais “coisas” são elementos que intervêm na própria sintagmática da subjetivação inconsciente. São exemplos de “coisas” desse tipo: um certo jeito de utilizar a linguagem, de se articular ao modo de semiotização coletiva (sobretudo da mídia); uma relação com o universo das tomadas elétricas, nas quais se pode ser eletrocutado; uma relação com o universo de circulação na cidade. Todos esses são elementos constitutivos da subjetividade (GUATTARI; ROLNIK 1999. p.34).

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34

Diante dessa elucidação, questiono-me sobre a destruição das subjetividades

pela tradição moral. Por que João deveria crer que aquele que ele é, e aquele que

ele se tornava cotidianamente, não era alguém digno? Creio que existam n questões

a serem abordadas a respeito da criminalização sócio-política do usuário de drogas

– trata-se de um estigma dolorido de se carregar. Precisamos, portanto, em primeiro

passo, conceber o usuário enquanto humano que carrega em si subjetividades que

vão além de apenas uma característica identitária. Precisamos perceber o usuário

enquanto sujeito. Ou seja, o caminho apontado aqui, principalmente, é de que a

humanização dos serviços deve caminhar juntamente a uma nova concepção social

e política sobre o usuário dos serviços de saúde mental. Não se trata somente de

uma mudança estrutural e de estratégias, mas também de uma nova visão a

respeito das subjetividades, do corpo, do desejo.

No início de outubro deste ano, fui designada ao acolhimento, pois por razões

pessoais, precisei modificar os dias de estágio. Não conseguia mais conversar com

João, pois quando ele chegava, eu já estava na sala de equipe, aguardando a

chegada dos usuários. Só conseguia cumprimenta-lo, e logo tinha que ir para o

atendimento, ao passo que João descia para participar das atividades e da

ambiência. Infelizmente, nos distanciamos. A penúltima vez que vi João foi quando a

equipe solicitou meu auxílio na ambiência para servir almoço para os usuários, e

quando vi João, tentei conversar com ele. Porém o João que eu vi não se

assemelhava àquele que conheci, e tenho certeza que nem àquele que ele desejava

ser: Sua fala estava desconexa, e ele mal conseguia segurar os talheres, pois seus

braços espasmavam constantemente. Seu olhar parecia distante, apático, e não

consegui conversar muito com ele: preocupei-me. Quando terminei de servir,

procurei a equipe para questionar se ele estava bem, entretanto, quando o

procuramos, ele já havia ido embora.

No dia seguinte, tive estágio na ESF – já estagiava lá desde o início do

segundo semestre do ano. Ao chegar na unidade, a enfermeira avisou-me que João

havia tido uma convulsão durante a noite, e que ela estava indo até a casa da

família dele para verificar o estado de sua saúde. Como a unidade sabe que também

estagio no CAPS, questionaram se eu não gostaria de acompanhar para auxiliá-los.

Lembro-me que o dia estava frio e chuvoso, como no dia em que o conheci. Quando

chegamos a casa – de alvenaria, mas com a cor branca já desbotada – a enfermeira

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bateu palmas, para ver se havia alguém em casa. Muitos cachorros apareceram, e

por um momento nos assustamos, mas logo a irmã de João surgiu e abriu o portão,

nos convidando para entrar. Foi como se os relatos de João tomassem vida, e vi ali

a realidade da qual ele tanto me contou; sua mãe estava sentada no sofá, rodeada

por cinco irmãs. Percebi que ela tinha baixa visão devido aos seus olhos

esbranquiçados pela quase-cegueira. Era uma mulher franzina e de cabelos

grisalhos, e lembrava-me muito de João: Os traços fortes e as mãos calejadas

contavam-me seu sofrimento. A TV estava ligada em um volume alto, e na tela

passava um filme de terror – lembrei-me do medo de João, que odiava esse gênero,

mas que naquele momento parecia não se importar com nada a sua volta, sentado

no sofá. Seu sobrinho corria entre os móveis e as pessoas, tropeçando, e tentando

brincar, mas sempre era interrompido aos gritos.

João parecia apático. Quando cheguei, perguntei se ele estava bem, e ele só

respondeu “bem”. Questionei então se ele estava tomando a medicação

corretamente, e João não me respondeu, olhando para o vazio. Sua irmã interrompe

nossa tentativa de conversa, e diz que ele só toma os remédios porque ela tem que

dar na hora certa. Contou-me também que foi ela que escutou o estampido do corpo

dele quando ele caiu, e se ele não estivesse em casa, poderia ter morrido. O

cunhado grita do quarto, separado só por uma cortina de pano: chamava a esposa.

A mãe de João tenta explicar o comportamento do neto, dizendo que ele era muito

“agitado” e por isso corria pela casa, e a irmã a interrompe, dizendo que gostaria de

leva-lo ao psicólogo. A enfermeira solicitou a receita de João para tentar a

medicação pelo Posto, pois a irmã havia dito que estava terminando as cartelas.

Depois de solicitar que elas o levassem no Posto no dia seguinte, nos despedimos.

Disse para João que gostaria de continuar vendo-o no CAPS AD, mas sua mãe fala

que ele não irá sair de casa até que esteja melhor, pois tinha medo de ele ser

atropelado caso tivesse alguma convulsão na rua. Senti que ele talvez não

retornasse, seja por sua mãe ou pelo seu estado de saúde – não me parecia ainda

inteiramente recuperado.

Porém, João continua participando do CAPS AD, pois sua mãe diz que

quando ele não vai, ele “insurta (sic)”. Ele tem melhorado progressivamente, e

recentemente o acompanhei na ESF para que fizesse curativos na perna, onde foi

atacado por um cachorro. Percebo, através desta narrativa, a rede de cuidados que

o CAPS oferece para seus usuários, estendendo-os até a família. Este território –

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vivo – comporta dentro de si outros espaços, como a ESF, que enquanto unidade

também auxilia no acolhimento e cuidado dos usuários. Constato que a

reorganização dos serviços de saúde mental auxiliou para que houvesse maior

contato entre as instituições produtoras de saúde, atentando-se para os sujeitos e

suas histórias. Vejo a humanização dos serviços como um primeiro passo, para os

muitos que ainda precisamos dar nessa nossa história brasileira que ainda é muito

recente. A única certeza que carrego é de que João continuará a fazer parte da

construção da minha prática clínica, seja como reticências, seja como ponto de

interrogação.

3.4 Segundo analisador: as mulheres da Vila

No meu primeiro dia de estágio na ESF fui acompanhada do meu supervisor,

e professor o qual é o psicólogo que realiza o Apoio Matricial junto a unidade. Ao

chegar na ESF, fui apresentada à equipe, que em seu corpo tem enfermeiras,

doutores, auxiliar de enfermagem, agentes comunitários, além de residentes das

áreas da saúde e humanas. Ao adentrar esse território, onde cada profissional

detém saberes específicos, me sinto um pouco insegura. Não sei ao certo como

funciona a unidade, e além disso nunca trabalhei diretamente com uma comunidade.

Sou apresentada pelo supervisor como estagiária do 10º semestre de Psicologia, e

disse que eu estaria ali para contribuir com a equipe. Minha tarefa seria acompanhar

a agente comunitária (ASC) no território, e também a equipe quando necessário em

alguma visita. A ASC, que aqui irei chamar de Beatriz, era conhecida por não gostar

de estagiários. Ao ser apresentada pelo supervisor, fez questão de frisar: “Não gosto

mesmo”. Vendo o quanto fiquei desconfortável, logo explica: “Não é da pessoa, e

sim de certas atitudes. Eu conheço meu povo e não gosto que pessoas que não

sabem da realidade em que vivemos”.

Beatriz esclarece que é necessário que qualquer atividade a ser desenvolvida

na comunidade deve passar pelo aval da equipe, pois no momento que o estágio

terminar, as pessoas e a ESF da Vila irão permanecer; portanto, é preciso ter ciência

de todas as demandas e se é possível proceder com algum projeto. Concordei logo

com o desabafo, mas percebi que ali já havia uma distância, onde talvez fosse difícil

cruzar para que Beatriz tivesse confiança em mim. E minha intuição não estava

errada: nas primeiras semanas que me dirigi ao estágio – que era realizado toda as

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37

quintas-feiras – me senti ignorada pela agente. Ficava perdida, sem saber ao certo

as demandas e o que era necessário construir, pois na equipe todos estavam

ocupados realizando suas tarefas: atendendo as pessoas, acolhendo, fazendo

curativos... Foi somente na segunda semana que uma brecha se abriu. Ao chegar

na unidade, duas meninas – uma enfermeira e outra veterinária – que eram

residentes na unidade me convidaram para a ir à escola próxima ao posto, para de

uma forma lúdica explicar para as crianças da pré-escola o que era o piolho.

Foi a primeira vez que observei a paisagem em torno da unidade: as ruas não

eram asfaltadas, não havia calçadas, o esgoto corria a céu aberto e crianças e

cachorros – muitos! – corriam pelas ruas, brincando. Não se trata de uma paisagem

que me traga angústia, muito pelo contrário. Lembro-me da Vila onde cresci, lá em

São Gabriel, de chão batido e trilhos. Cresci imersa nessa paisagem, e por isso

carrego certo afeto pela Vila, com suas mulheres tão iguais as mulheres de minha

família. Essa tarde, para mim, foi produtiva pois quando fui apresentada como

estagiária de Psicologia na escola, as professoras ficaram empolgadas, queriam que

fossem feitas algumas atividades na escola junto às mães das crianças. Expliquei-

lhe que estava começando na ESF, e que ainda não tinha noção de como poderia

ser útil para ajudá-las. Posteriormente, comentei este fato com meu supervisor, que

lembrou-me que isso deveria partir da equipe da ESF. Logo visualizei em minha

cabeça Beatriz, com suas críticas a projetos curtos de estagiários, e concordei com o

supervisor.

Ao longo dos dias, quando chegava à unidade, tentava me aproximar de

Beatriz, entretanto a mesma parecia sempre muito ocupada, como receber as

pessoas que chegavam ao posto para serem atendidas, outras vezes preenchendo

formulários dentro da sala. Conversei com o supervisor, que confessou-me que Bea

tinha vontade de formar um grupo de mulheres. Diante dessa revelação, pensei que

talvez essa fosse a forma de me aproximar, talvez mostrando meu real interesse em

contribuir. Quando cheguei a ESF para mais uma tarde de estágio, conversei com

ela sobre esse seu desejo de formar um grupo de mulheres. Nesse momento, vejo

que ela titubeia e surge uma abertura, onde ela me conta que faz muito tempo que

gostaria de formar um grupo onde pudesse ensinar artesanato, tricô e crochê, pois

segundo ela, desempenhar essas atividades ajudou-a a “sair do fundo do poço”.

Combinamos então que eu iria arrecadar o material para colocar seu desejo em

prática. Naquele dia, Beatriz me convidou para caminhar pela Vila, para me

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apresentar para as pessoas que eram seus referenciados. Caminhamos por horas,

apesar do tempo estar bastante frio e de ter chovido, fazendo com que tivéssemos

que caminhar pelo meio do barro. Bea brincava, “estagiário acha que é moleza,

precisa é colocar o pé no barro”.

Nessa tarde, fui apresentada a algumas das mulheres. A medida que

caminhávamos, elas gritavam das portas de casa e dos pátios para Beatriz: “E aí,

tem médico no posto?”; “Quando vai ser a pesagem para o Bolsa Família?”. Ela

responde à medida que caminhamos, gritando as respostas de volta. Quando

voltamos para a unidade, Bea fica responsável por conversar durante a semana com

a mulheres sobre o grupo e conseguir algum local para que possamos nos reunir.

Antes de voltar na semana seguinte, providencio logo os materiais necessários para

o grupo, lãs, agulha de tricô, linhas também. Estava ansiosa para conhecer aquelas

mulheres, que de longe já mostravam suas personalidades. Lembro-me de Deleuze

(1988), que cita o corpo como uma força pois comporta vida, e ali, naquelas

mulheres, vi corpos com escritas vivas, que há muito já não encontrava mais. Não

sabia ao certo como iriam lidar com minha presença, talvez por eu ser uma mulher

mais, digamos, madura, fosse mais fácil ser aceita.

Chego a unidade na semana seguinte. Beatriz diz ter conversado com

algumas mulheres, e marcou o nosso primeiro encontro. Conta-me que foi Dona

Joana – como irei chamá-la aqui – que ofereceu a casa, e lá seria o local de

encontro. Mostrei o material que havia conseguido e Bea, pela primeira vez, sorriu-

me, contente. Descemos pela Vila, em direção a casa de Joana, e as mulheres

gritavam das portas se “o grupo vai sair, Beatriz?”. Mostramos o material e avisamos

que sim, estamos indo até a casa da Joana, “lá vamos nos encontrar”. Porém, ao

chegar na casa, Dona Joana estava com as portas e janelas abertas, arejando o

piso molhado. As roupas estendidas na cerca mostravam que ali ela havia feito uma

faxina, e com um sorriso torto, nos pediu desculpas, afirmando que havia entendido

errado o dia do encontro, e que naquele momento estava limpando toda a casa. Foi

perceptível a frustração de Beatriz, e logo Joana tentou remendar, dizendo que

próxima quinta ela estaria com a casa pronta para aguardar-nos. Ao passo que

voltávamos para a ESF, Bea reclamava, triste. Dizia “ela entendeu bem, só não quis

abrir a casa para nos receber”. Percebo ali a importância do grupo para ela, e

recordo-me das minhas leituras a respeito do conceito de Apoio Matricial, mais

especialmente de Minayo (2009), que a conceituava enquanto:

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“Ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores, e das atitudes. [...] O universo da produção humana que não pode ser resumida no mundo das relações, das representações e da intencionalidade(...)” (p. 21).

A produção de saúde que Bea buscava ali não era somente para as mulheres

da Vila, mas também para ela mesma. Para produzirmos fluxos de produção

desejante, é necessário o contato, a colisão. Talvez essa busca por uma

aproximação também esteja de encontro a necessidade de expandir-se em

proporções inimagináveis, dizer em meio ao silêncio e risos o indizível. Quando

falamos em apoio matricial, citamos muito a produção de saúde e a humanização

dos serviços, mas pouco comentamos a respeito da humanização do profissional de

saúde, que também é afetado pelo território – afinal, não existe nada mais belo que

a capacidade de nos afetarmos. Assim que Bea se encontrava, buscando com

unhas e dentes manter em prática aquilo que ela tinha ciência que ao menos a uma

mulher iria auxiliar na Vila. Tento confortá-la, dizendo que “semana que vem, com

certeza vai dar certo”. Ansiosa, me responde que se não der, é preciso logo arrumar

outro lugar.

Na semana seguinte, quando chego a unidade, Beatriz já está aguardando,

ansiosa “vamos descer, começar o primeiro dia do grupo”. Ao nos aproximarmos da

casa de Dona Joana, já avistamos o portão da casa aberto, e ela nos espera com

um sorriso no rosto, dizendo “hoje quero aprender crochê”. Aos pouco as mulheres

vão se aproximando, inicialmente desconfiadas, querendo entender o que realmente

iria acontecer ali. Bea distribui o material, e umas querem agulhas de tricô, outras de

crochê... O primeiro passo a ser dado era aprender a colocar os pontos na agulha, e

resolvo participar, deixando claro que sempre fui péssima em trabalhos manuais,

mas que gostaria de aprender. Começo a tentar colocar a linha na agulha, erro,

persisto quase 10 vezes para conseguir, e enquanto isso umas já tricotavam, outras

já faziam crochê. Queriam logo aprender pontos novos, e eu só conseguia pensar

que demoraria muito para alcançar o nível de habilidade delas, mas não havia

problema. O importante era estar ali, escutando e juntando-me a outras duas

mulheres, que como eu, desmanchavam várias e várias vezes, sempre rindo muito.

Levei chá e algumas bolachas, e as crianças começaram a se aproximar, o brilho

nos olhos mostrando o interesse sobre o que as mães estavam fazendo.

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Vi ali, em meio as rachaduras do chão seco, linhas de fuga brotando.

Observava-as, tocando com as pontas dos dedos: linhas que se perpassavam

tortas, retas, onduladas, lisas. Assim somos: Compostos por linhas! Diria Deleuze

(1995, p. 223). E isso também diz respeito a nós enquanto coletivos. Essas linhas

possuem naturezas distintas – conforme a segmentaridade, dividem-se em rígidas

ou flexíveis, nos possibilitando movimentar-se de um segmento a outro. São essas

as linhas que, entrelaçadas, auxiliam a compor a nossa subjetivação. As linhas de

fuga eram traçadas ali como as linhas do tricô, do crochê. Pontilhadas, enroladas,

desfeitas para novamente serem refeitas, criando novas formas. As linhas de fuga

são produzida através do real. Ao passo que as mulheres da Vila colocavam as

linhas nas agulhas, abriam-se novos horizontes dentro da realidade, abriram-se

linhas em suas linguagens e histórias.

No grupo existia um menina, aparentemente menor de idade, e que carregava

o seu bebê, um menino de oito meses e muito rechonchudo, que resolveu tentar

aprender pois sua mãe gritou do fundo do pátio para ela: “Valéria¹, vem aprender a

tricotar para fazer meias para o pequeno!”. Beatriz, quando vê o menino, já avisa

“ele está muito gordo”. A avó logo a corta “vocês do posto estão sempre

reclamando, ou tá (sic) muito magro, ou muito gordo”. Bea sorri e justifica que é ruim

para o bebê estar com sobrepeso, pois podem surgir problemas de respiração, mas

a avó a ignora, segue tricotando e não fala mais no assunto. A avó parecia uma

mulher forte, às vezes um pouco agressiva, mas aos poucos consigo conversar com

ela. Desmancho os pontos novamente e ela se oferece para me ensinar de uma

maneira diferente de Beatriz. Agradeço por achar esta nova forma de colocar os

pontos na agulha mais fácil, e recomeço a tricotar. A tarde passa rápido, e mais

tarde Bea me confessa ter sido surpreendida pela serenidade de todas,

especialmente de uma delas que já tinha fama de ser muito brava, e que “até já

brigou de facão na Vila”, mas ali no grupo se manteve calma e ria muito,

atrapalhada, desmanchou o tricô cinco vezes depois de ele já estar

consideravelmente grande ter errado um ponto, mas isso não a incomodou. Disse-

me que estava ali para aprender. No final do encontro, Beatriz deixa as agulhas e

linhas com as mulheres para que elas possam seguir tricotando em casa. Uma diz

“já vou colocar uma plaquinha lá em casa: Vendo meias de tricô”, e todas deram

muitas risadas. Ficamos de nos encontrar na semana seguinte, e cada uma traria o

que havia conseguido tecer em casa.

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Na semana seguinte, no nosso segundo encontro, todas trazem os trabalhos

feitos durante a semana. Eu inclusive me dediquei a tricotar nos poucos horários

vagos que tenho, e percebi que realmente é uma tarefa relaxante, que nos permite

desligar do mundo e só perceber o movimento da agulha nas mãos. Beatriz revisa

os tricôs, e muitas mulheres precisam desmanchar e refazer tudo novamente. Penso

que aquele era o momento para a superfície calma de nossos encontros ser

rompida, mas por incrível que pareça, nenhuma delas fica brava, só repetem

“estamos aqui pra aprender”. Observo cada uma e penso em quantas vezes foi

necessário desmanchar-se para recomeçar: muitas são mães solteira, que criam os

filhos sozinhas, mulheres ajudando mulheres, entrelaçando-se como linhas de tricô,

criando redes de afeto na resistência diária. Assim mais uma tarde se finda, e a hora

de ir infelizmente chega. Porém, em meio ao frenesi diário, a próxima semana

parece chegar mais rápido que as outras, e com ela surge a chuva. Vou até a ESF,

mas Bea me informa que não haveria encontro, pois Dona Joana não queria mais

ceder seu pátio devido a uma briga entre vizinhas durante a semana, não me

explanou mais detalhes. Precisávamos de um novo local.

Na semana seguinte, resolvemos ficar na rua mesmo, com o chão batido,

cachorros e um sol forte, nossa sorte é que o dia estava frio e o calorzinho foi até

agradável. As mulheres procuraram e trouxeram umas cadeiras, um pouco antigas,

mas o suficiente para que pudéssemos sentar. Faltou apenas uma cadeira para

Beatriz, que ficou o tempo inteiro em pé para que eu pudesse ficar sentada com o

bebê de dois meses no colo, enquanto sua avó tricotava. Durante essa tarde, as

mulheres pareciam estar ainda mais descontraídas, e me coloquei a escutar como

uma boa ouvinte, sem interromper. O bebê que eu estava segurando era filho de

uma menina de treze anos e de um menino de quatorze, que segundo a avó estava

“envolvido com coisas ilícitas, na verdade toda a família responde processo na

justiça, até alguns estavam presos”. A avó materna que tricotava era uma mulher

pequena, mas não frágil. Mãe de duas meninas, irei chamá-la aqui de Marta, e

disse-me que sempre criou suas filhas com muito amor, “nós nunca tivemos muito,

mas nunca deixei faltar alimento pra (sic) elas”.

Beatriz reforça, comentando que ela sempre levava as meninas no posto para

as vacinas, e que toda a equipe a elogiava, pois “as meninas estava sempre bem

penteadas e cheirosas”. Infelizmente, o tempo passou e suas meninas cresceram:

Uma delas foi encontrada morta, assassinada. Marta conta-me que aos 42 anos

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perdeu a vontade de viver. Seu cabelo caiu, ela emagreceu, e relata que quando

estava na parada do ônibus, as pessoas se afastavam, imaginando que ela poderia

ter alguma doença contagiosa. As mulheres que ali estavam balançavam a cabeça,

concordando com o que Marta contava, dizendo-me “ela parecia ter envelhecido dez

anos”. Marta diz que agora só está bem porque o neto precisa dela, já que a filha

mais nova, mãe do bebê, fugiu de casa com o namorado. O menino está muito bem

cuidado, cheiroso e com as roupinhas limpas, como ela costumava manter as duas

filhas quando crianças. Marta está tentando resgatar a filha mais nova, e o conselho

tutelar a está ajudando. Espinosa (1979) uma vez questionou-se, “o que suporta um

corpo?”, e penso que gostaria hoje de questionar Marta sobre, pois vi ali uma mulher

que recuperou seu equilíbrio somente no caos.

A tarde parecia longa, e mais uma da mulheres resolveu contar-me sua

história. Seu nome fictício é Carla, e contou-me ter 36 anos e sete filhos, “o mais

velho é preguiçoso e ladrão, não quer trabalhar de jeito nenhum, já os outros me

ajudam na catação”. Carla diz que o filho do meio é seu orgulho, mesmo com

dificuldades de aprendizado, pois “o médico falou que ele tem um retardo mental”.

Beatriz complementa dizendo que é um menino muito bonito, “deve ter puxado ao

pai”, que contou-me que mesmo debilitado devido o câncer – do qual veio a falecer –

guardava os traços de ter sido um homem bonito na sua juventude. Carla concorda,

e diz que quando ele resolveu parar de beber, o câncer o matou.

Enquanto conversarmos, vem chegando um menino carregando muitos fios

de alumínio nos ombros, parecia estar pesado, mas ele já tinha os músculos dos

braços definidos pelo trabalho pesado que costumava exercer. Os olhos eram

verdes, brilhantes, e a pele era clara. Ao chegar, diz para Carla “mãe, vou largar lá

no fundo do pátio, ganhei do sr. lá de baixo por ter ajudado ele a carregar um

caminhão, e se a polícia passar pode achar que é roubado. Depois que vender,

dividimos o dinheiro”. Suas calças jeans estavam presas na cintura por uma

amarração feita com sacola plástica, e estava sem camisa apesar do dia frio. Carla

fala que tudo que ele consegue ganhar na rua trabalhando, ele divide com ela, “é um

menino de ouro”. Carla, porém, não se distrai, e volta a me contar do mais velho, diz

saber que ele vai ser morto, mas que não tem como interferir, “foi ele que resolveu

seguir esse caminho, já falei pra ele parar arrumar um emprego, mas nada adianta”.

Pergunta para mim se não é verdade que quando a pessoa não quer mudar, ela não

muda. Nesse momento, limito-me a sorrir, sem expressar alguma opinião. Marta hoje

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tem outro companheiro e também mais um filho com ele, “só que esse saiu

escurinho”, brincou Beatriz.

Nesse momento, Fabiana – também nome fictício – resolve tentar descontrair

o clima de histórias, e diz que vai estar de aniversário, “ficando velha já”. Pergunto-

lhe quantos anos ela irá completar, e ela me responde 44 anos. Rio, e brinco que

então sou a avó do grupo, pois irei completar cinquenta primaveras no próximo ano,

e todas rimos. Mais um encontro termina, e a mim resta assimilar todas as histórias

que surgiram em um ambiente que as permitiu aflorar. Fico pensando nessas

mulheres, que em suas aparências refletem os anos de resistência, mulheres

guerreiras que criam seus filhos e netos praticamente sozinhas, e só assim consigo

entender o porquê se acham tão mais velhas. Os filhos vieram muito cedo,

obrigando muitas a parar de estudar, e o tempo que tem, se dedicaram apenas a

sobreviver. Cito aqui Campos e Domitti (2007), que conceituam que o termo

matricial, matriz, “carrega vários sentidos; por um lado, em sua origem latina,

significa o lugar onde se geram e se criam coisas”. Com eles, reafirmo que foram as

Mulheres da Vila que me ensinaram que, ainda que em meio ao barro e ao esgoto,

diariamente criam-se flores.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessa discussão e narrativa, proponho um fazer clínico que surja a

partir da desconstrução, que crie linhas de fugas para que se jorrem as potências

desse corpo – sempre intenso. Proponho também uma nova postura ético-estética

que parta da perspectiva desse corpo transorgânico, onde nossas estratégias de

produção de saúde sejam repensadas a partir de cada sujeito. É preciso

compreender o que surge no conflito das relações entre os corpos, entre as

afetações e as potências que nelas são criadas. Quer dizer, não pensar naquilo que

deveria ser curado, mas sim atentar-se nos infinitesimais vir-a-ser daquele corpo.

Implicaria em abrir espaços para que caiba o imprevisível, compreender que existem

fatores que fogem a qualquer ciência ou saber prévio.

A eficácia dessa nova perspectiva clínica poderia somente existir a partir de

um plano que se arquiteta na diferença. Sua instauração se deve em um campo de

imanência, encadeando seus fluxos em agenciamentos, produzindo o desejo. Agiria

enquanto parte incorporal de um dispositivo, onde os corpos e seus estados se

dissolvem e se penetram, deslocando os afetos. Espero que a partir da narrativa

seja perceptível que é impossível supervisionar os encontros que ocorrem e o que

eles causam, mas é possível determinar espaços próprios do desejo, em busca de

possibilidades que permitam a expansão. O desejo seria visto fora de qualquer

referência sobre sujeito e objeto, mas se encontraria ali, no campo da colisão entre

os corpos.

Portanto, busco uma prática terapêutica que se institua o conhecimento deste

corpo-criação, que fundamente no desenredar da vida transversalmente planos que

formulam o pensamento, que busque compor novas paisagens, novos territórios

existenciais, permitindo que se exista como se apresenta, e que cada agora se

desenrole em um abrir-expandir constante. Assim, enquanto terapeuta é significativa

a reflexão sobre o ser que se constrói a cada instante, gerando novas formas de

subjetividade.

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