CARTOGRAFIAS DE UM CURRÍCULO...
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CÁTIA ALVISI
CARTOGRAFIAS DE UM CURRÍCULO
ENCARCERADO
CAMPINAS
2015
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RESUMO
Busca-se nessa pesquisa compreender a configuração do currículo dentro de UMA escola num
modelo de unidade prisional denominado: Centro de Ressocialização. A partir de uma incursão
etnográfica foi possível viver o cotidiano prisional pesquisado por oito meses e participar de
outras situações para além da rotina da escola. Essa experiência somada às dezoito entrevistas
realizadas com os alunos em situação de privação de liberdade evidenciou que a questão do
direito humano à educação não se consolida dentro das prisões, mesmo com avanços
significativos no campo normativo. É possível afirmar também que a sobreposição de duas
instituições em funcionamento (prisão/escola) dentro do mesmo espaço colide quando o assunto é
a oferta educativa. Reproduz-se um modelo de ensino que não agrega como fator de acesso aos
bens culturais recriados constantemente pela humanidade e assim se reforça a ideia de escola
apenas como certificação ou para fins de remição de pena. Enfim, problematiza-se a configuração
curricular da escola pesquisada a partir de discursos entendidos como construções que se
naturalizam e produzem efeitos de Verdade nas práticas curriculares encarceradas.
Palavras-chave: Educação Prisional, currículo, Educação de Jovens e Adultos.
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ABSTRACT
The aim of this research is to understand the configuration of the curriculum in a school in a
prison unit model called: Resocialization Center. From an ethnographic incursion it was possible
to live the daily prison routine researched for eight months and participate in other situations
beyond the school routine. This experience in addition to the eighteen interviews with students in
a situation of deprivation of liberty showed that the issue of human right to education is not
consolidated within the prisons, despite significant advances in the normative field.It is also
possible to say that the overlap of two institutions in operation (prison / school) within the same
space collides when it comes to educational provision. It reproduces a teaching model that does
not add as a factor of access to cultural goods constantly recreated by mankind and thus
reinforces the idea of school just as certification or for the purpose of redemption penalty.
Finally, discusses setting up the curriculum of the school searched from speeches understood as
constructions that are naturalized and produce effects of truth in incarcerated curricular practices.
Keywords: Prison Education, curriculum, Youth and Adult Education.
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ITINERÁRIOS............................................................................................................................1
VISITA NA CASA....................................................................................................................11
Navegar é preciso...............................................................................................................17
O ato de escrever no balanço do barco..............................................................................22
Na proa do barco...............................................................................................................32
O içar da vela.....................................................................................................................44
Quando o espaço educativo se insere na lógica disciplinar?.................................44
Segurança e Educação: uma parceria que dá certo?...............................................45
Tudo junto e misturado..........................................................................................46
Contagem...............................................................................................................47
A tripulação da navegação.....................................................................................47
DEPOIS DOS NAVIOS NEGREIROS... OUTRAS CORRENTEZAS...............................59
Polícia para quem precisa..................................................................................................62
A rota da navegação: O Centro de Ressocialização de Bragança Paulista........................70
O CALEIDOSCÓPIO CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PRISIONAL: ENTRE GIROS
E NOVOS DESENHOS............................................................................................................83
Não existe transição e sim ruptura.....................................................................................95
O espaço educativo prisional...........................................................................................103
E afinal, o que acontece aqui?..........................................................................................112
Um giro no caleidoscópio: produção de documentos normativos como dispositivos de
poder................................................................................................................................117
FACES DO CALEIDOSCÓPIO: MOVIMENTOS, CORES, IMAGENS...................... 121
Olho de águia, boca de siri e orelha de elefante..............................................................123
SUMÁRIO
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Vovó, o Juquinha está chorando?/E por quê?/Porque eu mostrei como se fazia para comer o
pedaço de torta dele.”...............................................................................................................126
Outros livros, outras leituras....................................................................................................130
Resumindo a escola a duas matérias: português e matemática... sempre foi assim, né?”
..................................................................................................................................................133
O trabalho dignifica o homem?................................................................................................138
Porque de grão de em grão a galinha enche o papo, não é verdade?.......................................145
FAÇO PAISAGENS COM O QUE SINTO..................................................................................153
LANÇAR A ÂNCORA ..................................................................................................................177
INTERLOCUTORES PARA A ESCRITA DO TEXTO............................................................181
ANEXOS .........................................................................................................................................187
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AGRADECIMENTOS
Dirce, pela presença atenta e valiosa em todos os momentos do trabalho. Pela aposta no projeto,
pela liberdade concedida para navegar... Às professoras Áurea M. Guimarães e Maria do Carmo
Martins pela atenção concedida na primeira leitura do trabalho na banca de qualificação e as
proveitosas ideias para continuar. A todos os queridos amigos do grupo VIOLAR (Laboratório de
Estudos sobre Violência, Juventude e Imaginário) pelos encontros que ajudaram a pensar a
pesquisa. Karina, Claudio e Fernando parceiros para além mar...almoços e boas risadas durante as
disciplinas cursadas. Eunice, encontro mágico nesse processo, super obrigada por tudo! Erika,
minha parceira de Massa Crítica e da máscara contra o desinfetante. Gi, minha grande parceira
para todas as guerras deste mundo: é coisa demais pra te agradecer. Às minhas queridas amigas
que compõem o grupo da salvação de fim de tese para que o trabalho se pusesse na formatação
adequada: Cássia, Ju Pirola, Sá Forato e Baisi...aquele abraço.
Mazzolinha que mesmo de longe vibrando pelas minhas conquistas. À Célia Russi Lang, por
interceder com todas as forças para que meu afastamento da Prefeitura Municipal de Bragança
Paulista fosse autorizado. A CAPES que possibilitou a bolsa de outubro de 2011 a fevereiro de
2015 para a dedicação total à pesquisa. Quero agradecer também ao Biu que por um ano inteiro
me hospedou em seu apartamento para que pudesse cursar as disciplinas. A todos os funcionários
do Centro de Ressocialização com os quais convivi e aprendi muito. Em especial, à Diretora
Solange. Agradeço ainda a Leão e Robinson que com muita paciência e atenção me apresentaram
os corredores e o “proceder” do cotidiano prisional. Aos de casa: minha mãe, fortaleza de 3ª
idade em constante apoio em todos os sentidos. Ao Otávio, coautor da pesquisa que me
acompanhou durante o campo umbilicalmente ligado a mim e que depois me deu força para
terminar a empreitada. Ao Daniel, pela paciência de escutar o mesmo assunto e ler meus esboços
durante esses quatro anos. Meu companheiro de existir!
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTAÇÃO DESCRIÇÃO
Ilustração 1 Seu Francisco
Ilustração 2 Rubrica do aluno Edmilson
Ilustração 3 Lejla Bulja – Sarajevo
Ilustração 4 Takaaki Fujimoto – Japão
Ilustração 5 Joram Rozorov - Israel
Ilustração 6 Lex Drawinski - Alemanha
Ilustração 7 Centro de Ressocialização “Enfermeiro Ângelo Fernando Baratella”
Ilustração 8 Trabalho I - oferecido no Centro de Ressocialização “Enfermeiro Ângelo
Fernando Baratella”
Ilustração 9 Trabalho II - oferecido no Centro de Ressocialização “Enfermeiro Ângelo
Fernando Baratella”
Ilustração 10 Sala de Aula do Centro de Ressocialização “Enfermeiro Ângelo Fernando
Baratella”
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LISTA DE TABELAS
TABELAS DESCRIÇÃO
Tabela 1 Registro das aulas (Ensino Fundamental)
Tabela 2 Registro das aulas (Ensino Médio)
Tabela 3 Frases, músicas, versos e produções dos colaboradores
Tabela 4 Diversão do trabalho oferecido dentro dos estabelecimentos penais do
Estado de São Paulo
Tabela 5 Organização das unidades prisionais do Estado de São Paulo
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LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICOS DESCRIÇÃO
Gráfico1 Perfil de idade dos colaboradores
Gráfico 2 Perfil de escolaridade dos colaboradores
Gráfico 3 Expectativas que a escola deve atender
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APAC - Associação de Proteção e Assistência Carcerária
CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CR - Centro de Ressocialização “Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel”
EAD - Educação a Distância
EJA - Educação de Jovens e Adultos
ENCEJA - Exame Nacional para Certificação de Competências para Jovens e Adultos
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
FUNPEN - Fundo Penitenciário Nacional
INFOPEN - Sistema Integrado de Informações Penitenciárias
LEP - Lei de Execução Penal
MP - Monitor preso
OFA - Ocupação Função Atividade
PEP - Programa de Educação nas Prisões
SAP - Secretaria de Administração Penitenciária
SEE - Secretaria Estadual de Educação
SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SSP - Secretaria de Segurança Pública
TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
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ITINERÁRIOS
i.ti.ne.rá.rio adj (lat itinerariu)1 1 Relativo a caminhos. 2 Diz-se das medidas indicadoras
da distância de um lugar a outro. sm 1 Indicação ou projeto de caminho a seguir. 2 O respectivo
percurso. 3 Viagem. 4 Roteiro. 5 Descrição de viagem. 6 Programa. 7 Livro com informações
necessárias ou úteis para viajantes e turistas; guia.
O itinerário do tema desta pesquisa foi construído a partir de minha prática docente em
escolas públicas. Assim sendo, a opção para descrever esse caminho será revisitar cenas e
pessoas que marcaram minha trajetória profissional contribuindo para que pudesse problematizar
questões vividas pela Educação de Jovens e Adultos e que puderam ser sistematizadas através
desse trabalho de pesquisa.
Como professora da rede municipal do fundamental I (há 16 anos) da cidade de Bragança
Paulista, trabalhava meio período e, ansiosamente, esperava todo início de fevereiro para
completar carga com possibilidades de salas das quais os professores se encontravam afastados
por múltiplos motivos (doenças, ocupação de outros cargos, tais como coordenadores, diretores,
supervisores...). Assim, ainda verificamos a vida dos professores: em sua maioria, ocupam-se
com diferentes escolas, diferentes realidades, pulando da manhã para a tarde e fechando o dia
com a escola noturna, muitas vezes como única opção para melhorar o orçamento financeiro da
casa. Este era meu caso.
Dia de atribuição: escola tal, horário x. Ao chegar, uma grande movimentação de
professores para verificar as possibilidades, distâncias de suas casas para possíveis escolas e a
pontuação geral na listagem para que pudessem completar a carga de trabalho.
Dentro de uma sala de aula, carteiras enfileiradas, cartazes e a lousa ocupada neste dia
com outro tipo de inscrição. Estava dividida em três partes: na primeira, as salas a serem
atribuídas da Educação Infantil, no meio, as do Ensino Fundamental, e por último (como quase
sempre se configura em todos os sentidos!), as salas da Educação de Jovens e Adultos.
Entrávamos de três em três. Chegada a minha vez da escolha estavam na bancada a
Secretária de Educação e algumas supervisoras. Eu era conhecida por todas, visto que havia
1 Dicionário de Português on line Michaelis. www.michaelis.com.br (acesso em 16/01/2015)
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desempenhado junto a uma equipe de professoras, a função de Coordenadora Pedagógica da rede
municipal de Bragança Paulista (2002-2004).
Observei a lousa e as duas primeiras partes já tinham quase que se esgotado. Como na
época trabalhava pela manhã, só poderia acumular cargo a tarde ou à noite. Foi quando uma ex-
diretora, que exercia a função de supervisora na época, me disse:
“Tem uma sala aí de EJA que tem que ser pra você. Ninguém vai topar ir
pra lá, mas tenho certeza que você topa.”
Tratava-se de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação e uma Construtora
Civil. A sala era majoritariamente masculina, pois os alunos eram operários da construção civil
de um condomínio de prédios que se iniciava chamado “Colinas da Mantiqueira”. Pedi maiores
informações sobre a parceria e assim entendi que a Secretaria da Educação ficaria incumbida de
colocar o professor e a Construtora forneceria a “sala de aula”, a qual conheci depois e tratava-se
do refeitório dos alunos trabalhadores.
A distância do Condomínio para minha casa era algo motivador: nada que meu fusca 79
não realizasse em menos de 20 minutos. Nada de estrada de terra, experiência totalmente nova...
o que sempre me motivou.
Assinei a atribuição e recebi os votos de boa sorte. Comece amanhã a noite, às 19:00 h.
Boa noite.
“Colinas da Mantiqueira”
Saí de casa mais cedo. Afinal, precisava desbravar meu novo cotidiano noturno. Com meu
fusca 79, parei na recepção do condomínio para a identificação e me apresentei como a
professora. O porteiro intrigado perguntou: “Ah, é a senhora que vai dar aulas pros
“home” da construção? Mas vai ser aonde? No refeitório?”
Diante de tantas perguntas ainda sem respostas, dirigi-me para o fundo do condomínio
conforme indicação do porteiro.
O cheiro de mato, uma luzinha acesa e o galpão com a porta aberta. Parei o fusca 79 e
com o barulho começaram a aparecer meus novos alunos que dormiam em alojamentos
improvisados ao lado do galpão. Muito respeitosamente me receberam e me contaram que
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haviam pintado a lousa há algumas horas atrás e que, portanto não poderíamos utilizá-la naquela
noite.
O galpão era composto por mesas de refeitório com os bancos grudados, a novíssima
lousa e as telhas de amianto cinza que faltavam levantar voo em pleno mês de fevereiro. (Fiquei
pensando em como seria no inverno...)
Naquela primeira noite de contato com os “home” da construção mil coisas se passaram
na minha cabeça: O que seleciono para ensinar? Que conhecimento é válido para eles? Qual é a
história de cada um? Qual é o sentido da escola para eles? O que significa a docência na
Educação de Jovens e Adultos?
Quando vi, já estava na garagem de casa guardando meu fusca 79 para me preparar para
as crianças na manhã do dia seguinte.
A questão da formação dos professores da EJA ainda é considerada um “lote vago”
(SOARES, 2008, p.95), já que em sua maioria, os professores que assumem tais salas não tem
formação específica para a modalidade, o que de certa forma, torna-se um grande entrave para a
qualidade de ensino, já que os professores reproduzem práticas da Educação Infantil ou do
Ensino Fundamental generalizando a categoria “alunos”, o que esvazia as potencialidades de
trabalho pedagógico com os alunos trabalhadores.
Quanto à parte pedagógica, tínhamos uma sede da EJA, com uma diretora e uma
supervisora. Semanalmente, o grupo de professores da EJA se reunia para o horário de trabalho
pedagógico, também conhecido como horário de trabalho perdido. Sentia-me uma estranha no
ninho: enquanto minhas colegas resolviam questões de vale transporte, merenda e solicitações
diversas, nada se encaixava na minha realidade. Muito menos as discussões: os professores
reclamavam da dificuldade em “transmitir os conteúdos Verdadeiros”, pois argumentavam que os
alunos não acompanhavam o livro (do Ensino Fundamental) e que faltavam muito...
Ao lado dessas lamentações, a cada dia aprendia mais com os alunos. Assuntos como o
garimpo no Norte, a diversidade da flora e fauna do Nordeste esquentavam nossas noites no
galpão iluminado.
Mal podia imaginar que as questões iniciais do meu primeiro dia de aula na EJA “Colinas
da Mantiqueira” me perseguiriam no projeto de pesquisa do mestrado que objetivou compreender
como se configuram os desenhos curriculares da Educação de Jovens e Adultos nos segmentos I e
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II através dos discursos que atravessam as falas de um grupo de professores que atuavam na
modalidade. Os meses se passaram e...
Seu Francisco e Luis
Sim. O inverno chegou e com ele muito vento gelado e uma garoa que transpassava as
telhas de amianto. A saída foi pedir à diretora que me arrumasse chocolate e leite em pó para
tomarmos um chocolate quente durante a aula. A cozinha era colada ao galpão e era nela que
eram feitas as refeições para eles durante o dia. O único problema é que para entrarmos na
cozinha, Luis (um dos alunos) tinha que espantar os ratos e só depois eu entrava pra colaborar
com o chocolate quente, dando uma mexida na panela e não desgrudando os olhos do chão...
Instigada pelas leituras do mestrado, meu foco no currículo, numa perspectiva pós-
estruturalista, possibilitava teorizar minha prática numa sala multisseriada com alunos em
processo de alfabetização ao lado de outros que já produziam textos.
A experiência (LARROSA, 2002) numa sala multisseriada me colocava possibilidades
incríveis: discutíamos assuntos da atualidade, levantávamos problemáticas sobre saúde e
encarávamos pesquisas com uma tranquilidade que foi possível romper com a linearidade dos
ditos Conteúdos-Verdade dos livros e materiais pensados para as gavetas-série.
Seu Francisco, homem dos grandes desenhos da fauna brasileira sempre deixava desenhos
na lousa com uma precisão de detalhes incríveis. Luis, o homem dos versos sempre nos alegrava
com uns “par de rima” conforme anunciava.
Resolvemos então organizar um Sarau de Poesias e chamar convidados. A noite foi um
sucesso: o engenheiro da obra com sua família, supervisora, diretora, minha mãe, amigos
próximos e alunos de uma escola municipal que também atendia EJA que ficava perto da nossa.
Essa foi a saída para cumprir com a cobrança dos alunos da necessidade de conhecer umas
moças, já que nossa sala era majoritariamente masculina.
Ao final do Sarau, tínhamos uma proposta: pintar as paredes do galpão e a frente. Tintas
espalhadas, pincéis e os convidados pintando nossas paredes de cal. A frente do galpão
reservamos para Seu Francisco que feliz da vida explicava aos convidados sobre sua técnica de
desenho e pintura e sua escolha por retratar bichos.
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Todos recitaram. A escolha dos poemas foi aleatória. Apresentei alguns autores e poesias
e eles se identificaram com uma delas. Após a récita individual, os alunos encerraram o Sarau
“Colinas da Mantiqueira”, com uma poesia recitada coletivamente, de Adélia Prado:
Ensinamento
Minha mãe achava estudo
A coisa mais fina do mundo
Não é.
A coisa mais fina do mundo
É o sentimento.
Aquele dia de noite,
O pai fazendo serão,
Ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado.”
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo. (1991)
Peguei meu fusca 79 e divaguei por um bom tempo depois do Sarau pelas ruas tranquilas
de Bragança.
Momentos de paz, momentos de felicidade.
Marcos, Laudicéia, Seu Idalino, Dani e muitos outros Severinos...
Figura 1 - Seu Francisco
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A docência na modalidade EJA possibilitou-me aproximar de temáticas que a cada ano
iam formando redes e conexões em minha vida de forma que eu não conseguiria sair dessa
vereda, mas sim desbravar novos atalhos e descobrir outros lugares para olhar e compreender
outros problemas.
Após a experiência com a sala multisseriada masculina desenvolvi juntamente aos
professores da EJA de Bragança Paulista a função de coordenadora pedagógica de salas
espalhadas pela cidade e campo. Porém, após dois anos com a aprovação por concurso público na
rede estadual de ensino (2006), abandonei o trabalho de Coordenação Pedagógica do grupo de
professores municipais para atuar como professora estadual de Língua Portuguesa. Na
atribuição... primeiro impasse: a Legislação Estadual restringia ao professor efetivo realizar a
escolha de sua carga completa na modalidade EJA, podendo apenas completá-la com algumas
aulas. Isso também foi um dos focos de análise no mestrado, pois sendo restrito ao professor
efetivo, as aulas deveriam ficar aos OFAS (Ocupação Função Atividade), também conhecidos
como eventuais. Obviamente que existem excelentes profissionais que não são concursados, mas
o que se evidenciava era o descaso para com a EJA. Os anos se passaram e hoje a Legislação
modificou-se possibilitando ao efetivo a escolha completa de sua carga na modalidade e nas
escolas da rua, porém para a Educação Prisional essa é uma questão de retrocesso, já que as aulas
são oferecidas apenas aos OFAS.
A possibilidade de conhecer a engenhoca de funcionamento da rede estadual, o entra e sai
de professores a cada quarenta e cinco minutos (o tempo da noite de cada aula), os alunos abrindo
e fechando suas gavetas-caderno e o peso das gavetas- disciplinas me fizeram debruçar ainda
mais na concepção tradicional do currículo na escola, o conhecimento como “coisa” a ser
transmitida (SILVA, 2006).
A Escola Estadual na qual tenho meu cargo tem grande proximidade geográfica bastante
próxima com a Fundação Casa2 do município, tornando-se assim um lugar fácil para encaminhar
egressos ou mesmo os jovens com liberdade assistida. Soma-se a isso, a falta de planejamento em
que cresce o bairro tendo a droga como fonte de sustento e meio fácil de diversão.
2 Fundação Centro de Atendimento SocioEducativo ao Adolescente (CASA), instituição vinculada à Secretaria de
Estado de Justiça e da Defesa da Cidadania presta assistência aos jovens de 12 a 21 anos incompletos em todo o
Estado de São Paulo. Tem a missão primordial de aplicar medidas socioeducativas. (www.fundacaocasa.sp.gov.br).
Acesso em 30/03/2015.
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Foi possível conhecer de perto e participar das sinas das mães com filhos usuários de
drogas, as quais saíam da escola noturna e perambulavam pelo bairro à procura de seus meninos.
Foi possível aproximar-me do cárcere, mesmo estando longe dele, com os relatos dos egressos da
Fundação Casa e também de alunos egressos do Sistema Penitenciário Paulista.
Com a Legislação modificada para a atribuição de aulas, passei a escolher minha carga
completa noturna na Educação de Jovens e Adultos na rede estadual e passei durante o dia a
coordenar o Núcleo de Apoio ao Professor e ao Aluno que é o espaço de formação dos
professores municipais de Bragança Paulista.
Procuro dizer que meu olhar de cruzamento de fronteiras da esfera municipal (na qual
ainda atuo) para a estadual ampliou meu campo de visão. Diante das particularidades de uma
esfera para outra, me interessou no mestrado compreender as falas que atravessam os discursos e
que perpassam os muros do município para o Estado, fabricando sujeitos através de seus
discursos. Interessou-me compreender o que faz com que discursos se tornem Verdadeiros e
outros não, principalmente quando o assunto é currículo. É possível ainda, a partir deste tema
problematizar de maneira não dicotômica (política/prática) processos que envolvem a seleção dos
conhecimentos, e de que forma a representação de aluno e Ciência definem essas escolhas.
A cada semestre letivo, novos alunos chegavam para compor as turmas e a temática dos
jovens ex institucionalizados sempre rondava minha sala. Muitos vinham discretamente verificar
se a chamada havia sido feita corretamente, já que deveriam encaminhar para o juiz o relatório
dos estudos porque ainda havia pendências com a Justiça.
O tempo foi organizando minhas ideias que apontavam para a vontade de compreender a
escola dentro da prisão e mais especificamente as marcas de seu currículo. Sensibilizada por
essas questões, no ano de 2010 apresentei o projeto de pesquisa na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas para o Grupo VIOLAR (Laboratório de Estudos sobre
Violência, Juventude e Imaginário) e iniciei a pesquisa aqui apresentada no início de 2011.
O objetivo central da pesquisa é o de compreender como se configura o currículo de
uma escola dentro de uma instituição prisional. E sendo assim: busco compreender as
práticas cotidianas do ambiente escolar prisional e seu impacto no currículo, identificar
possíveis sentidos dados ao conhecimento pelos sujeitos em situação de privação de
liberdade e também analisar as demandas desses sujeitos no que se refere ao que deve ou
não ser ensinado na escola.
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Para que pudesse então compreender a configuração curricular no contexto prisional
precisei num primeiro momento mapear o campo. Isto significou um mergulho sobre os trabalhos
de pesquisa produzidos até então através do banco de teses e dissertações da CAPES3 e também a
literatura da área. Sobre as pesquisas produzidas, o banco de teses e dissertações localiza as
pesquisas do ano de 2010 até o momento. Em minha busca, utilizei a palavra prisão e obtive
cento e oitenta e três registros, sendo que a maioria dos trabalhos está dentro da área do Direito e
apenas oito na área de Educação. Essa lacuna nas pesquisas na área educacional pode ser
explicada pela dificuldade de acesso às unidades prisionais para a realização do trabalho de
campo e mais ainda a extrema burocracia para se conseguir a entrada do gravador para realização
de entrevistas. Após longa espera para acesso ao campo como detalharei logo no início do
trabalho e tendo conseguido a autorização para a gravação das entrevistas debrucei-me então ao
estudo da etnografia como possibilidade de descrever o cotidiano prisional.
Nesta pesquisa priorizei o trabalho de campo como o fio narrativo de toda a escrita. Optei
por não transformar a experiência riquíssima do campo em apenas um capítulo metodológico
com a intenção de contextualizar a pesquisa. Deste modo sua estrutura carrega ao longo dos
capítulos as análises decorrentes da “vida no campo”. Sobre a não separação da descrição dos
fatos e sua interpretação Silva (2006, p. 123) argumenta que a própria descrição já é em si mesma
uma interpretação circunstanciada pelas condições de observação. Outra razão em priorizar uma
estrutura narrativa não linear de texto foi a possibilidade que os dezoito colaboradores desta
pesquisa trouxeram em seus relatos, os quais me permitiram eleger os capítulos e suas temáticas
apoiada na literatura da área.
Utilizei a metáfora da pesquisa como uma navegação. E nessa navegação, a questão
problema que deu origem à “viagem” tem a pretensão de ser respondida por cada parada
(capítulo) deste texto que segue organizado desta forma: Visita na Casa!! procura evidenciar os
caminhos para a pré-inserção no campo e também a construção do percurso metodológico: as
opções realizadas, os recuos e as formas de inserção no cotidiano prisional. Depois dos navios
negreiros, outras correntezas... pretende situar o leitor na perspectiva da engenhoca
penitenciária e também a organização do sistema prisional estadual paulista, já que a pesquisa se
realizou dentro de um modelo proposto de unidade prisional chamado: Centro de
Ressocialização. O caleidoscópio curricular da educação prisional: entre giros e novos
3 www.capes.gov.br (Acesso em 15/05/2013)
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desenhos problematiza os discursos que atravessam documentos normativos e seus efeitos nas
práticas da Educação Prisional. Faces do caleidoscópio: movimentos, cores e imagens realiza
miradas pelos sentidos dados ao conhecimento dentro da escola na prisão, bem como aponta as
demandas dos presos para o processo educativo encarcerado. Faço paisagens com o que sinto!
congrega diferentes formas de expressão reunidas ao longo desses anos de estudo do tema para
somar às temáticas trazidas pelos capítulos. Lançar a âncora busca reconstruir o universo da
pesquisa evidenciando como a questão que originou este texto pode ser momentaneamente
respondida.
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VISITA NA CASA
As pesquisas na área da Educação vêm desde a década de 80 procurando encontrar suas
formas próprias de conhecer as demandas e problemáticas atuais da escola brasileira e desta
forma escolhendo caminhos metodológicos que procurem compreender o universo instigante de
um cotidiano escolar. Mostram também que não se dá mais importância em tecer debates
divisórios entre aspectos vistos como dicotômicos: ou se faz uma pesquisa qualitativa ou se faz
uma pesquisa quantitativa. Procuro nesta pesquisa entender a palavra “método” como uma ação
que se dá a cada movimento ao longo do desenvolvimento deste projeto. Assim sendo, o método
enquanto experiência foi o (s) caminho (s), o (s) atalho(s) e o(s) esconderijo(s) que me propiciou
vivenciar o cotidiano de uma unidade prisional.
Como professora de rede pública me encantei pelo cotidiano das escolas que como bem
salienta Pais (2003) é o lugar de inovação, já que sua peculiaridade encontra-se justamente no
fato de ali interagirem seres humanos nas suas mais diversas subjetividades e expressões. Assim,
essa afinidade com a escola e com seu cotidiano entre mil aspas me levaram à escola do cárcere.
Pensar o funcionamento de uma escola dentro do cárcere requer a elaboração de fios que se
entrelaçam formando uma rede complexa de significados e ritos e faz com que o cotidiano
assuma formas muito particulares. É neste contexto que a escola se insere e é neste contexto que
eu me inseri. E sendo assim, mais instigante ainda se tornou esse cotidiano escolar e encarcerado.
Mal imaginava quando elaborei o projeto de doutorado que fazer pesquisa dentro de uma
instituição total no sentido goffminiano para o qual suas marcas centrais podem ser consideradas
como: uma ruptura com a sociedade por um período determinado de tempo, uma rotina fechada e
altamente administrada com um grupo de seres na mesma condição, iria me conduzir por
caminhos burocráticos sem fins. Para conseguir adentrar no campo a ser investigado, iniciei uma
longa trajetória burocrática: precisei tramitar a apreciação do projeto por dois Comitês de Ética
em Pesquisa, (Plataforma Brasil e Comitê de Ética e Pesquisa da Secretaria de Administração
Penitenciária) somados aos meses de espera por autorizações e pareceres, pedidos inúmeros para
refazer esta ou aquela parte do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) ou mesmo
justificar partes do projeto de pesquisa. Após esse tempo longo de ansiedade e expectativa, assim
que recebi o parecer de APROVADO de ambos os comitês decidi que narraria esse processo de
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pré-inserção ao campo pesquisado como forma de evidenciar as dificuldades que se colocam para
pesquisadores da área, a entrada aos “feudos” das unidades prisionais e a necessidade de entender
esse processo de pré-inserção como forma de dizer muito sobre o funcionamento e a lógica
dessas instituições. Umberto Eco (2007) diria que no desenvolvimento de uma tese nada é
movimento perdido, até as esperas sinalizam olhares para o pesquisador. Quando a tempestade
burocrática dos papéis passou procurei entender o quão importante se faz ao pesquisador se
atentar para essa “pré-inserção” ao campo como uma forma de análise. Além de perceber como
tudo isso nos traz indicadores para saber em que terreno chegamos como seremos vistos aos
olhos da comunidade pesquisada e a necessidade de aproximação a “conta gotas” para o
estabelecimento dos vínculos e afinidades.
Bragança Paulista, 13 de janeiro de 2012.
Como iniciar um diário de campo? De que forma elaborar impressões,
informações e sensações? Assim, resolvo por situar os bastidores desta semana
(9 a 13/01/2012), intitulada por mim como “Amanhã vai ser outro dia”4. Digo
isso porque na segunda- feira fui até a Delegacia da cidade para que o
investigador (conhecido de uma amiga) ligasse para a diretora do Centro de
Ressocialização, meu futuro campo... para agendar uma conversa comigo.
Percebi que na conversa ao telefone em minha frente entre os dois, a Diretora já
se adiantou que precisaria enviar o projeto para o Comitê de Ética da Secretaria
de Administração Penitenciária (SAP) para que eles autorizassem a
pesquisa,mas agendou a conversa para o dia seguinte (terça-feira), às
14h30min. Desse modo, me dirigi ao Centro de Ressocialização e ao interfonar,
aparece um Agente de Segurança perguntando, de longe, o que eu queria.
Quando disse que tinha horário com a diretora, ele logo adiantou que ela não
estava e que tinha ido a uma reunião em Campinas. Terminou, de longe,
dizendo que amanhã (quarta-feira) eu a encontraria.
4 Música de Chico Buarque “Apesar de você”, lançada em 1978.
13
Virando as costas, frustrada, pois estava com muita expectativa, esperei
pelo dia seguinte. Logo pela manhã telefonei para ela que me disse não
conseguir me atender naquele dia. Estava com muito serviço, mas que amanhã
(quinta-feira) poderia. Novamente, ainda cedo ligo para ela e, rapidamente, me
diz que não poderia falar comigo naquele momento, que estava em reunião e
que ligasse depois do almoço. As horas pareciam não passar e quando o relógio
apontou 14:00h, telefonei... Novamente a negativa: “Hoje não consigo te
atender... Pode ser amanhã às 10:00 h?” Nisso, a semana já chegava ao fim e
afinal de contas, era sexta-feira 13... Sim... sexta-feira 13. Confesso que a
noite que antecedeu a sexta-feira 13 foi uma noite bem mal dormida: creio que
a expectativa se mistura mais uma vez com a negativa da entrada a campo. Nas
duas vezes presenciais que estive por lá essa semana estacionei o carro na rua
atrás do Centro de Ressocialização, em frente à casa da mãe de um amigo da
faculdade. A rua do CR5 possui alertas indicando se tratar de “Área de
Segurança” e sendo assim entram apenas os carros oficiais e os caminhões de
entrega. (ao longo da pesquisa de campo, meu carro também pôde ficar lá!).
Quando caminhava pela calçada de acesso, notei o barulho daquelas máquinas
“VAP”6 de limpeza e a água que escorria pela calçada. Toquei o interfone e logo
apareceu um Agente de Segurança que apertou o botão de controle do portão
liberando a passagem para a área externa. Entrei e subi umas escadas que dão
acesso à portaria e fui cordialmente recebida por Marcelo que vestia o uniforme
da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Eu disse que tinha horário
com a diretora e deste modo, do telefone da portaria informou-a sobre minha
presença. Logo que desligou me disse: “Ela pediu para eu ficar conversando
com você enquanto ela não pode te atender”. Pediu minha identidade que
permaneceu na portaria durante o tempo em que estive lá dentro. Logo,
Marcelo me pergunta: “Vai trabalhar com a gente?” Expliquei rapidamente o
que pretendia fazer e passei a receber dele uma série de informações
interessantes, enquanto me servia o café. Marcelo trabalha no CR desde 2003, 5 A partir deste momento utilizarei ao longo do trabalho a abreviação CR para Centro de Ressocialização.
6 São máquinas de alta pressão utilizadas para lavar espaços diversos.
14
quando implodiram o Carandiru, local em que trabalhava. Segundo ele: “saí
junto com a poeira”. Disse também que ali no CR todos eram obrigados a
trabalhar e estudar. Comentou que em dois mil e nove o CR já chegou a ter
quatrocentos presos e hoje, pega o formulário da parede: 13/01/2012 está com
duzentos e vinte e um. O papo segue enquanto tomamos o café adocicado.
Conta também que atualmente existem apenas duas oficinas
profissionalizantes e corre pegar as embalagens plásticas descartáveis para
festa (garfos e colheres). Os presos tem que contar e embalar. E a segunda
atividade é da empresa TYCO7, locada também em Bragança Paulista e o
serviço oferecido é o de passar óleo numas peças. Conclui: “esse tipo de
trabalho só atrofia mais o cérebro”.
Ainda na portaria, tomando o café na caneca de plástico com Marcelo, ele
diz que a FUNAP- Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel abre
cadastro para monitores da Educação. Explica que podem ser alunos que estão
cursando a Universidade, mas que ninguém para. Disse também que o
monitor-preso é quem mais ajuda os alunos. “Um ajuda o outro!” Nas suas
conversas pelos corredores com os presos, o agente diz escutar reclamações dos
alunos de que “ou o monitor-preso só lê ou só escreve.” Puxa um livro que
estava por perto, que é usado pelos alunos e finaliza: “Não tem um programa,
algo que estimule a usar a biblioteca, por exemplo”.
Em meio a essa enxurrada de informações sobre a escola e o trabalho
oferecido pelas empresas ali dentro, alguns presos passavam com papéis na
mão ou descarregavam o caminhão dos tais garfinhos que seriam embalados.
O tempo ia passando e nada da Diretora me chamar... será que esqueceu
que eu estava ali à sua espera? Marcelo puxa uma cadeira e sento. Na portaria,
o detector de metais (Raio-X), sulfites impressas em computador com avisos
para manter a porta fechada e com a contagem em número dos talheres da
cozinha. Um mural repleto de ofícios, autorizações de entrada (quando será que
7 Tyco é uma empresa com sede nos E.U.A e seus negócios abrangem diversos setores dentre os quais: óleo e gás,
mineração, siderurgia, infraestrutura entre outros. (www.tyco.com.br) Acesso em 20/12/1014.
15
a minha estaria lá pregada também!!!) e cópias para ciência dos funcionários de
atenção redobrada com certos objetos em dia de visita.
O telefone da portaria toca. É a diretora avisando que posso me dirigir à
sua sala. Cruzei a área externa em direção ao outro prédio, possivelmente o
local em que funciona a parte administrativa do CR. Na sala da frente, Solange
me aguardava. A conversa foi rápida. Apresentei-me e falei do projeto. Mais
uma vez ela frisou sobre o Comitê de Ética da Secretaria de Administração
Penitenciária e de que precisaria esperar pelo resultado para iniciar a pesquisa.
Pediu que eu a mantivesse informada sobre os trâmites, já que nunca havia
vivido uma situação de pesquisa ali dentro. Despedi-me com o compromisso de
avisá-la sobre os próximos passos com o Comitê. Na saída de sua sala passo
pelo lugar em que os garfinhos e colheres eram descarregados pelos presos.
Pelo caminho cumprimento um e outro e a resposta sempre padronizada: “Bom
dia senhora!”.
Aceno de longe para Marcelo. Ele abre o portão da saída. Mal consigo
imaginar que consegui estabelecer meus primeiros vínculos com o lugar em que
passaria semanalmente por oito meses.
De janeiro a agosto de 2012...
Os meses que antecederam minha inserção à instituição penal pesquisada foram marcados
pelas demandas solicitadas aos dois Comitês de Ética em Pesquisa citados anteriormente.
Dividia-me entre as exigências do Comitê de Ética em Pesquisa da Plataforma Brasil, o qual se
vincula ao Ministério da Saúde. Para se ter ideia, em um dos itens solicitados pela Plataforma
Brasil tínhamos que colocar como instituição proponente a Faculdade de Ciências Médicas da
UNICAMP e não havia opção para a Faculdade de Educação, local em que a pesquisa está
associada. No preenchimento dos formulários online muitas vezes itens que mostravam um
desencaixe entre o que era solicitado e os objetivos desta pesquisa na área de Ciências Humanas.
Ao mesmo tempo, o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Administração Penitenciária
(SAP) que não estava vinculado na época ao da Plataforma Brasil e sendo assim exigia outras
solicitações e demandas. Neste comitê as reuniões eram mensais e, portanto as devolutivas eram
16
realizadas por email entre uma reunião e outra. A entrada dos documentos foi realizada em
fevereiro de 2012, mas como a reunião mensal já havia sido realizada foi dada a entrada do
projeto no Comitê somente em abril. Depois da entrada, aguardava o trâmite mensal das
devolutivas, ora solicitando alguma modificação no projeto, ora solicitando um novo reenvio dos
documentos, já que o timbre da folha do documento havia sido mudado e, portanto, eu teria
também que mudar e reenviar novamente. A cada parecer aumentava a sensação de que seria
impossível o acesso ao campo e a realização da pesquisa. Os meses se passavam e havia a
preocupação com o tempo de realização do trabalho... Solicitações como as que seguem abaixo
foram retiradas dos emails nos meses em que o projeto tramitava no comitê da SAP:
- Você NÃO usou o modelo de TCLE disponível no site. Caso queira manter seu modelo -
e esta é uma opção sua, garanta que todos os itens - exigidos estejam presentes em seu TCLE. A
indicação é que siga o modelo do CEPSAP.
- Detalhamento nos procedimentos do tempo médio das entrevistas a serem realizadas
com os participantes e uma estimativa do número total delas ao longo do tempo da pesquisa.
- Informar como procederá para realizar a atividade de observação e se existirem
aspectos específicos a serem observados, quais seriam eles. (mantive os negritos do email
recebido)
Quando consegui a aprovação do parecer da SAP (19 de julho de 2012) outra questão se
colocava: não poderia me inserir no campo antes que o juiz da Vara de Execuções Penais de
Bragança Paulista assinasse sua autorização para minha entrada. Deveria aguardar essa assinatura
para o inicio do trabalho de campo. Como não recebia a devolutiva e o mês de agosto já se
iniciava, liguei para o Comitê da SAP para saber o que estava acontecendo. Uma das funcionárias
que cuidava dos trâmites burocráticos do comitê havia me informado que a folha para a
autorização do juiz já se encontrava na Vara de Execuções Criminais. Ligo para a Vara de
Execuções Criminais e converso com a Secretária do juiz que me diz que não havia recebido
folha nenhuma para autorização de pesquisa.
O que fazer? Afinal, onde estava a folha de autorização? Decido ligar novamente para o
Comitê da SAP e informar o ocorrido. Diante do fato, a funcionária se dispôs a ligar diretamente
para a Vara de Execuções Penais para resolver a situação. Recebi seu retorno por telefone
dizendo que a folha havia sido perdida no meio do mundo dos papéis e que poderia ligar para lá
17
direto para saber quando o juiz iria assinar sendo que a responsabilidade pelo envio da
autorização para a Diretora do CR seria da Vara de Execuções Penais. Sendo assim, meu último
procedimento era ligar para a Diretora do CR para saber se havia recebido a folha de autorização
do juiz e combinar minha entrada no campo.
Entre a autorização da SAP, a folha perdida e o recebimento da autorização pela diretora
mais um mês se passou. Deste modo, meu primeiro dia de pesquisa de campo foi 24/08/2012.
Finalizou-se a tempestade burocrática e iniciou-se outra tempestade... bem mais interessante e
curiosa... a de encarar a tempestade num mar aberto e desconhecido...
Navegar é preciso8
Lançar-se em mar aberto... essa foi a sensação de pisar pela primeira vez dentro de uma
instituição penal. Afinal, o que sabemos nós sobre o que acontece atrás das muralhas?
Somos informados pela mídia sobre essa outra sociedade quando são disparados “choques
imagéticos” (TURCKE, 2010) que produzem um imaginário coletivo de que o modo de vida
intramuros deve ser cada vez mais objeto de repressão por parte da polícia porque se trata de uma
população não civilizada para a qual a palavra “direitos” não está associada.
E agora, lá estava eu... com meu caderno de campo, na sala da diretora geral do CR para
participar da formatura da primeira turma do curso de salgadeiro9. A diretora esperava as
responsáveis pelo convênio do SENAI para que a formatura tivesse início. Telefonaram da
portaria da sua sala avisando que as responsáveis já se encontravam por lá. Dirigimos-nos até a
entrada e neste dia por estar com a diretora não passamos pelo raio-X10
, o que ia se tornar minha
rotina obrigatória e me fazer aprender com que roupa ir para não apitar.
Após o raio-x, o primeiro portão de ferro é aberto pelo agente da portaria. Ficamos entre
dois portões e assim quando o primeiro foi fechado, o segundo foi aberto por um preso
responsável pela “tranca”. Essa função é chamada de “galeria”11
. Logo, o terceiro portão se abre
8 PESSOA, Fernando. Navegar é preciso. L&PM Editores, 2000.
9 O convênio para a realização do curso fora realizado entre CR e SENAI (Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial) para um grupo pequeno de reeducandos. (esse é o nome utilizado dentro do
Centro de Ressocialização). 10
Aparelho que faz a detecção de metais. 11
Galerias são presos escolhidos geralmente pelo Diretor de Segurança e Disciplina e realizam diversas atividades
para além da “tranca”. A função representa algumas vantagens, tais como: a circulação irrestrita pela Unidade inteira,
18
e descemos umas escadas para sair no refeitório... sem janelas... Continuamos a caminhada e
passamos por mais um portão que também é aberto por mais uma “galeria”. Subimos mais um
lance de escadas e chegamos a um corredor com três salas, duas em que funcionam salas de aula
e dentro de uma delas a biblioteca também e a outra vazia à espera da Sala de Leitura.
Ao chegarmos à sala maior em que funciona a biblioteca, as cadeiras estavam arrumadas
em fileiras com uma mesa à frente. A diretora pede a um dos presos para chamar o restante para
dar início à formatura porque está cheia de coisa pra fazer. Enquanto os presos não chegam,
outros funcionários aparecem e a diretora me apresenta para o Diretor de Segurança e Disciplina
e o Diretor Administrativo: “Olha gente, ela vem fazer pesquisa aqui com a gente,
mas tá tudo certo, viu! Ela já falou até com Deus pra conseguir a autorização”.
Eles me cumprimentam e sento na última fileira das cadeiras. Minutos depois a fila
indiana com os formandos do curso... calça bege, camiseta branca e mãos pra trás... a cada
entrada na sala: “Licença, senhora!”, mãos pra trás e cabeça baixa. Foram sentando nas
últimas fileiras e deixando a primeira livre. Foi quando o diretor de Segurança e Disciplina disse:
“Essas cadeiras são pra vocês sentarem. Venham pra frente”.
Feita a nova disposição, a diretora faz a abertura e fala sobre o curso enfatizando o
privilégio que tiveram ao realizarem o curso e o quanto o SENAI tinha restrição em realizar o
convênio. Ao que indicava sua fala a restrição era por ser a primeira vez que o SENAI na cidade
de Bragança Paulista iria colocar o curso em funcionamento dentro de uma unidade prisional e
com isso teria que levar a professora do curso de salgadeiro para lá. A diretora aponta para a
professora que estava ali presente e relembra: “Lembra o primeiro dia que você entrou
aqui pra dar aulas pra eles... tremia igual vara verde”. A professora sem graça
concorda e diz que depois que entrou ali e conheceu o ambiente mudou a visão que tinha sobre
eles. Terminada a abertura da diretora, quem toma a palavra é o diretor de Segurança e
Disciplina: “Errar é humano, mas a oportunidade chega. Eu quero que cada um
de vocês se levante e venha até aqui à frente e diga o que este curso
representou para vocês”.
Os formandos se mexem nas cadeiras... tímidos... nervosos... e assim cada um dos oito
se levanta e dá uma palavra... geralmente olhando para o chão. As palavras giraram em torno do
acesso ao “corpo dirigente” sem necessidade de ofícios e automaticamente uma posição assimétrica perante os outros
presos. Redigi essa nota com base em “conversa de corredor” com um deles.
19
aumento da autoestima, de que nem tudo está perdido e agradecimentos à equipe do CR. Antes da
entrega dos certificados notei que a máquina fotográfica estava parada em cima da mesa e
perguntei à diretora se ela gostaria que cuidasse dessa parte. Ela adorou a ideia e me entregou a
máquina. Feita a entrega dos certificados (registradas por mim) ...chegam os salgados em
bandejas e são colocados na mesa da frente. Entre eles começaram as brincadeiras, do tipo:
“Quem fez o bolinho de queijo?” “e a esfiha”?
A diretora experimenta um salgado de cada, se despede dizendo que tinha muitos afazeres
e os outros dois diretores também. A professora do curso e a responsável pelo convênio também
se vão.
Fico ali meio sem rumo, no mar ainda desconhecido... comendo os salgados que por sinal
estavam deliciosos. Alguns agentes aparecem pra saborear os salgados e sempre permanecia um
ali como que o responsável pelo grupo de presos reunidos. O agente chama alguns presos pelo
nome e pede que comecem a organizar e limpar o espaço que fora utilizado para a entrega dos
certificados. Rapidamente, o espaço já retoma a sua forma de sempre: uma sala de aula com
carteiras enfileiradas, a mesa do monitor-preso à frente da lousa e uma cadeira. Logo que
finalizam a arrumação, a boia (almoço) que começa a ser servida a partir das 11:00 h da manhã
dentro do CR, com o grito lá debaixo por um dos galerias: “Olha a boiaaaaaaaaaaa!” e
sendo assim, o agente desce com a fila indiana.
Depois que todos saíram me preparo para descer também pensando que não saberia sair
dali sozinha...quando, aparece Lúcia, a Assistente Social. Sorridente, chega perguntando se ainda
sobraram salgados. Me apresento a ela e iniciamos um bate-papo. Enquanto isso faço a segunda
rodada de salgados. Sentamos ao lado da mesa e ela me conta que é funcionária da Prefeitura
Municipal de Bragança Paulista, da Secretaria de Saúde, desde 1995. Trabalhou na Secretaria de
Desenvolvimento Social até 2009 quando foi “emprestada” para o CR. Pergunto a ela sobre seu
trabalho e logo me responde com inúmeras perguntas: “Serviço Social é política pública,
mas me colocaram aqui e aí? Qual o papel da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP)? Cadê o serviço social da SAP? Onde está a equipe técnica
da SAP? Eu aqui fico como menina de recados porque meu papel tem sido fazer
o contato com a família do preso quando ele chega, mas muitos não querem.
Faço uma triagem que se você visse as cinco folhas que eram... resumi em
uma folha só... são perguntas pra saber de onde veio, família e outros dados.
20
Aqui eles tem que fazer ofício pra falar comigo quando querem e eu quando
sinto necessidade chamo também.”
Olhou para o relógio. Eram 11:50 h. “Vamos embora?” Lúcia me guia por entre os
corredores e chegamos à saída.
Quando piso na rua e o portão de saída se fecha, entro no carro e fico minutos em silêncio,
sem pensar em nada. Quando dei por mim, o estômago me trouxe à realidade: Como diriam os
galerias: “Olha a boiaaaaaaaaaaaa!”.
A navegação...
A elaboração dos mapas, que conduziram o caminho da navegação pelo mar aberto da
pesquisa, tinha desde o início a ideia de que a etnografia enquanto um modo de produzir
conhecimento me daria sustentação para ancorar em terra firme. Nesse sentido, me lancei a mar
aberto com a seguinte pergunta: “Como se configura o currículo de uma escola dentro de uma
instituição penal?” E parti com essa indagação na mala, disposta a acompanhar o percurso da
viagem, estabelecendo conexões pelos lugares em que a navegação me conduzia. Sendo assim,
busco compreender as práticas cotidianas do ambiente escolar prisional e seu impacto no
currículo, identificar possíveis sentidos dados ao conhecimento pelos sujeitos em situação de
privação de liberdade e também analisar as demandas desses sujeitos no que se refere ao
que deve ou não ser ensinado na escola. Assim, durante a navegação, a construção dos mapas
da realidade pesquisada foram me mostrando o sentido de seus contornos e linhas. A realidade
prisional me afastava cada vez mais de se mostrar apenas como rotina e me alertava que tudo
“não passa de um concentrado de significação, de saber e de poder.” (PASSOS et al, 2009, p. 10)
A entrada em campo num primeiro momento me fez imergir em uma realidade muito
pouco conhecida e muito peculiar por se tratar de uma instituição em que a disciplina no sentido
foucaultiano (dos saberes e corpos) opera num curto circuito que mantém a instituição penal em
funcionamento. Poderíamos entender que a disciplina é naturalizada e exercida não em polos
dicotômicos (corpo dirigente/ condenados), mas numa relação muito mais complexa e rizomática.
Logo, eu também fazia parte desse rizoma, dessa rede em que as pistas que ia encontrando pelo
caminho produziam sentidos para a produção dos dados da pesquisa.
21
No início do processo de vivência do campo deixei-me levar pelo balanço do barco
usando ferramentas para cuidar de meu olhar. Assim, fui tomando com documentos que estavam
sempre sobre a mesa da escola. Prontuários criminais, tabelas de registro da frequência dos
presos à escola e da biblioteca. Precisei deixar de olhar para o campo com o olhar de professora e
aprimorar o olhar da pesquisadora. Digo isso, pois a presença semanal em campo inicialmente
produzia em mim um turbilhão de experiências pessoais e me abriam para um leque de
observações que pareciam a princípio desconexas. Esse primeiro impacto e esse “gesto de deixar
vir” (letting go) (KASTRUP, 2009, p. 21) foi essencial para que pudesse no momento das
entrevistas proceder à seleção dos colaboradores. E ainda, embrenhar-me no emaranhado de
significados, gestos, olhares, palavras e silêncios para que o problema da pesquisa se tornasse
mais concreto.
Para que pudesse compreender o funcionamento da escola no cárcere e mais precisamente
a configuração de um currículo neste ambiente propus-me a participar12
das aulas por oito meses.
Assim, logo após a formatura do curso de salgadeiro, voltei na semana seguinte para rastrear o
funcionamento da escola, horários e antes de participar das aulas, realizar contato e estabelecer
vínculo com os monitores-presos (professores). Relatarei mais da especificidade da escola no
cárcere numa próxima parada do barco. Por enquanto, meu foco é mostrar como o mapa da
pesquisa se constituiu, seus contornos, pontos e paradas já que acredito que mostrar o modo como
a pesquisa se constituiu e emergiu colabora para o entendimento de como a análise vai
aparecendo gradualmente ao longo do texto.
31/08/201213
Tentativa do 2º dia de campo
Ao chegar pela manhã, estranhei o silêncio na parte de fora do prédio.
Não havia presos trabalhando como tinha presenciado nos dias de “pré-
inserção” ao campo. Uma funcionária abriu o portão, porém me comunicou que
12
Uso a palavra “participar” por entender que a minha presença constante nas aulas não foi a de mera
observadora e fui requisitada em muitas situações a intervir manifestando minha opinião sobre o assunto,
tirando dúvidas e mesmo assumindo algum direcionamento de atividades realizadas. 13
Selecionei algumas datas do diário de campo para compor o texto. Estas datas não seguem a sequência
da minha presença. Foram escolhidas com o propósito definido para a montagem do sentido discursivo
deste capítulo.
22
“hoje era dia de Blitz”. (possui o objetivo de revistar as celas buscando objetos e
materiais considerados ilegais) Isto significa que ninguém pode entrar e sair do
prédio até o horário em que a operação é terminada. Pedi então para conversar
com a diretora e permaneci sentada na parte de fora a aguardando. Ela me
recebeu, sem graça, pedindo desculpas por não ter me avisado. Explicou que
resolveram fazer isso pela manhã de hoje por conta de uns “probleminhas” que
tiveram. Disse-me que este era um procedimento mensal ou quando há a
necessidade.
Hoje o campo foi “interceptado” por questões próprias da lógica de
funcionamento da instituição. Logo, as aulas também foram suspensas.
Escrevo no diário de campo dentro do carro e termino assim: E o calendário
escolar proposto? Como fazê-lo funcionar num espaço educativo tão peculiar?
O ato de escrever no balanço do barco
A escrita do diário de campo durante a pesquisa se deu de forma bastante produtiva. Mas
cabe ressaltar que desenvolver uma técnica de escrita que procurasse não perder foi uma
construção gradativa. De acordo com Weber (2009) é através do diário de campo que se exerce
plenamente a “disciplina” etnográfica. Para o autor, o diário de campo é a oportunidade do
pesquisador estabelecer as conexões entre as práticas vividas pelo grupo pesquisado. Além do
mais circunscrever a escrita do diário de campo num ambiente penal requer elucidar a relação de
poder que esta possui na vida dos presos, que é desempenhada por toda a aparelhagem judicial.
Nesse sentido, tive que ter bastante cautela quando introduzi essa ferramenta no meu cotidiano
para conquistar a confiança dos colaboradores e de certo modo uma familiaridade com minha
presença atrelada ao diário.
Foram poucas as vezes em que deixei para registrar as experiências vividas depois de
deixar o Centro de Ressocialização. Quando sentia que não era o momento de escrever procurava
uma brecha para o registro. Na parte externa do CR em que funciona a parte burocrática há um
sofá e nos intervalos entre a aula da tarde (17:30 às 19:00 h) no 2º semestre de 2012, quando não
saía para a rua para depois retornar, sentava por lá e redigia o que achava interessante. O sofá me
23
rendeu muitos insights e nas pausas me ajudava a construir o caminho metodológico mais
adequado para lidar com as mais diferentes situações. A entrada em campo ainda não estava livre
como imaginei. Após o dia da Blitz volto para o 3º dia de campo:
Ao chegar e interfonar me reapresentei do portão e solicitei a Direção. Ela
não se encontrava e então os dois funcionários da portaria iniciaram uma
discussão entre eles e eu continuava do lado de fora. A funcionária dizia: “Ela
não pode entrar”. O outro retrucava: “Deixe-a entrar”. Ela continuava: “Mas não
tem lugar pra ela ficar aqui.” Resolvi intervir dizendo que o diretor
administrativo sabia da pesquisa (pois havia sido apresentada a ele no curso de
salgadeiro).
Percebi que o funcionário saiu à procura do diretor administrativo.
Enquanto isso, debaixo de um sol (e que sol!) permaneci em frente ao muro de
entrada. Passados uns dez minutos, o diretor administrativo abre o portão e
pede para eu entrar. Na recepção estava ainda a funcionária que não queria
minha entrada. Me apresentei a ela dizendo da minha frequência semanal por
conta da pesquisa. Entreguei o RG e fui levada para a antessala da diretora que
não havia chegado. Foi nesse dia em que descobri o sofá preto... companheiro
de escrita, angústia, insights e divagações... Infelizmente mais um dia em que
não consigo entrar para a área interna do CR. Fico imaginando que a pesquisa
acontece num ambiente com duzentos e quarenta pessoas presas e a própria
estrutura (são apenas dois anexos) parece ser mais dinâmica, pois mesmo
tendo que esperar, foi possível localizar o diretor administrativo para me
permitir a entrada. A diretora chega e ao me encontrar pede que eu a aguarde,
pois tem que mandar um relatório até às 9:00h da manhã. Estou esperando!
(mais uma vez!)
Após ser chamada pela diretora solicito a ela a possibilidade de fazer uma
autorização permanente para que possa iniciar minha participação nas aulas
semanalmente, e para que quando ela não esteja por lá, todos os funcionários
saibam quem sou e o que faço no espaço. Ela me pediu uns dias pra fazer
porque estava muito atarefada pelo fato de que “tenho poucos funcionários
24
para realizar todas as questões daqui”. Fiquei de ligar antes pra assegurar que
a autorização estivesse lá no mural junto com todos os outros infinitos
informativos, plantões, contagens e etc...
Numa perspectiva etnográfica a produção dos dados através do diário de campo ganha
muita importância, pois ao descrevermos o que vimos, ouvimos e observamos colocamos na
escrita muitas das vozes presentes no campo. Essas outras vozes fazem com que o diário de
campo seja entendido como um texto polifônico no sentido atribuído por Bezerra (2005, p. 194)
para o qual “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de
vozes que participam do processo dialógico”. Sendo assim, a produção dos diários de campo
durante os oito meses da pesquisa procuraram trazer essas vozes como partes fundamentais no
processo de descoberta do território.
Conforme apontei acima, a escrita como forma de uso e abuso do poder pela aparelhagem
judicial se faz presente nas mínimas ações de um estabelecimento penal. E obviamente o fato de
ter uma pesquisadora dentro do ambiente trouxe, de início, para os funcionários e presos uma
desconfiança sobre minhas intenções e ações elucidadas num trecho do diário de campo que
transcrevo abaixo:
O quarto dia de pesquisa de campo foi diferente, pois havia ligado
anteriormente para confirmar a minha autorização de entrada no mural da
unidade. Cheguei mais animada e confiante de que a entrada hoje seria
possível e estaria resolvida quanto aos impasses de acesso. Desta forma, ao
chegar e interfonar entrei para a portaria. O agente de plantão pegou meu
documento e apontou a autorização da minha entrada fixada no mural. E
pergunta: “Mas essa sua pesquisa é sobre o tratamento com presos?” Expliquei
que se tratava de uma pesquisa na escola. Que meu objetivo não era entender o
modelo do Centro de Ressocialização, mas sim compreender o funcionamento
da escola e seu currículo. A resposta que obtive foi: “Eu não sou uma pessoa
boa pra você conversar. Não acredito em ressocialização de preso”.
Pela primeira vez faria o procedimento padrão para entrar na unidade:
passar pelo raio-X. Logo quando passei, o equipamento apitou. O agente já me
olhou com um ar de reprovação... Pediu para eu voltar e passar novamente e
me perguntou se não tinha nada no bolso da calça ou mesmo se a calça não
25
tinha botão de ferro. E não tinha nada! Até os brincos eu já havia tirado
pensando nisso. Voltei e apitou novamente... Foi quando o agente me diz: “É
melhor pra nós dois você tirar a sandália. Porque se aparece um celular lá
dentro, já viu, né? Não tem mais pesquisa, não!!!”
Segui as recomendações. Tirei as sandálias e passei descalça pelo
equipamento. Desta vez não apitou. Provavelmente a sandália tivesse no solado
algo de ferro que fazia com que o raio-x apitasse.
Depois que passei no raio-x, os percursos e procedimentos vividos
quando entrei junto com a diretora geral para a formatura do curso de
salgadeiro, se repetiu. Porém com algumas diferenças: a primeira delas que
permanece até hoje é que quando o agente abre o primeiro portão e entro num
primeiro espaço, permaneço fechada e o segundo portão só é aberto por um
galeria quando o outro é fechado pelo agente. Esse é um procedimento padrão
de entrada na unidade. A segunda diferença é que quando qualquer pessoa que
não seja funcionário da unidade chega para entrar no anexo, inicia o telefone
sem fio. O galeria que abre o segundo portão grita alto para o anexo inteiro
ouvir: “VISITA NA CASA!!!” e após o grito abre o portão para eu entrar. Passo
pelo terceiro portão aberto também por outro galeria e desço as escadas rumo
ao refeitório. Quando passo pelo refeitório, o próximo portão de
responsabilidade de outro galeria quando me avista continua o telefone sem fio:
“VISITA NA CASA!!!”. Deste último portão tenho acesso às escadas em que
funcionam as duas salas de aula deste anexo.
O objetivo do telefone sem fio é para o anexo todo escutar de que há visita
na casa e evitar que presos circulem sem camisa pelos corredores e se lembrem
de que quando a visita vai passar é preciso colocar as mãos pra trás, abaixar a
cabeça e esperar a visita passar. Caso a visita pare para conversar com alguém
no corredor, o preso deve ter o mesmo procedimento para passar pela visita e
acrescentar: Licença, senhor (a).
E assim, de repente lá estava eu, sozinha, na sala de aula em que
funciona também a biblioteca. Esta sala, por ser maior comporta no seu fundo,
26
separada pelas prateleiras dos livros da biblioteca, um pequeno espaço com um
computador (obviamente sem internet), um pequeno mural e uma mesa com
duas cadeiras. Ali ficam os monitores-presos (professores) no intervalo entre as
aulas e é também o espaço em que o “Setor da Educação” (como é chamado
pelos presos) da unidade funciona. Neste computador são atualizadas
diariamente as tabelas com a população prisional (que muda praticamente todo
dia) por conta da entrada e saída constantes, o número de presos estudando e
a remição por estudo14 que é mandada para o Juiz da Vara de Execução
Criminal. Tudo isso vim a saber com o tempo... porque como dizia antes de
descrever o espaço do “Setor da Educação”, estava sozinha e teria que me
apresentar para os monitores-presos, os quais foram parceiros fundamentais
para a minha livre inserção no campo. Muito mais importante do que a
autorização fixada na entrada da portaria, foram eles que me ajudaram a ser
aceita entre os outros presos. Dessa forma, quando cheguei encontrei os dois
monitores-presos (Robinson e Leão) sentados em frente ao computador
realizando a demanda de documentos citados acima. Logo que apareci os dois
se levantaram como o “proceder” manda e o “Bom dia senhora” de praxe.
Cumprimentei-os e eles permaneciam em pé com as mãos para trás... e eu
incomodada pedi que ficassem à vontade e se sentassem.
Iniciei a conversa perguntando a eles se já estavam sabendo da pesquisa
e da minha presença ali. Disseram que o diretor de disciplina havia
comunicado de uma pesquisa de uma moça, mas sem detalhes. Brevemente
expliquei qual era o meu foco, mas dei mais importância nesse primeiro contato
em posicionar-me como uma professora de Educação de Jovens e Adultos,
interessada em conhecer o currículo de uma escola situada dentro de um
estabelecimento prisional. Contei da minha pesquisa de mestrado com
operários de uma construção civil e descrevi para eles o que pretendia fazer ali
por oito meses. Os dois me olhavam atentos e extremamente solícitos. Desde
esse nosso primeiro contato firmamos uma parceria incrível e uma relação de
14
Elucidarei a questão da remição da pena por estudo em outro momento do texto.
27
confiança. Tanto que combinei com eles que antes de participar das aulas
gostaria de conversar individualmente com eles para que me contassem como
“viraram professores”, suas dificuldades na docência e sobre o que achassem
interessante me falar. Além do mais, aprendi rapidamente que minha aceitação
no ambiente pesquisado dependia muito mais das relações sociais que ia
estabelecendo do que qualquer explicação que pudesse me desdobrar a dar.
Nesse sentido, foi fundamental esse elo estabelecido com esses dois
monitores-presos desde o primeiro dia. Foram eles que me ensinaram como
“proceder”, a perceber ritos, sinais e desvendaram para mim códigos específicos
daquela comunidade.
Quando o grito do galeria chegou: Olha a boiaaaaaaaaaaa!!!
Interrompemos a conversa e descemos conversando. Perguntei qual era o
melhor horário no período da tarde para que pudesse voltar para conversarmos.
Eles me acompanharam até o penúltimo portão, porém antes de chegar até lá
passei pelo refeitório fechado, a boia sendo servida e uma fila imensa de calças
bege e camisetas branca. Passo acompanhada pelos monitores-presos e atraio
olhares baixos e tímidos para observar quem é a estranha no ninho. O cheiro
do refeitório impregna minha roupa desde esse dia até o último em que estive
no CR. O cheiro da comida misturado ao da população reunida em ambiente
fechado aparece no meu nariz mesmo quando passo pelo refeitório e não é hora
da boia. A prisão provoca experiências olfativas, visuais e auditivas bem
específicas... cheiro de gente reunida, cigarro, liquidificador, radio ligado, calça
bege, camiseta branca, cabeça rapada, mãos para trás, com licença senhora,
ferro que bate, cadeado fechando, vozes reunidas no pátio, o esporte com
garrafas PET cheias de água em forma de barra de academia de ginástica,
barulho de dominó, os gritos dos galerias, do telefone sem fio e também o
barulho incessante durante o dia da contagem dos garfinhos para serem
embalados pelos presos. Na saída, pego meu documento na portaria e aviso ao
agente que voltarei à tarde.
28
Quando entro no carro para ir para a minha boia me coloco a pensar sobre o processo da
investigação num ambiente tão marcado por rituais, rotinas e tempos tão demarcados. De modo
que a etnografia defendida por Geertz (1978, p. 15) colabora para o entendimento de “processo”
ao colocar que: “praticar etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever
textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário de campo, e assim por diante”.
A escolha pela etnografia me permitiu acompanhar a processualidade de ações tão
peculiares e próprias da comunidade pesquisada. E o mais interessante e instigador é que essas
experiências vividas iam configurando o método, revelando em que deveria apostar e o que
deveria deixar de lado para compor o estudo.
Sendo assim, a questão da escrita do diário de campo é uma ferramenta central para a
prática da etnografia, já que possibilita registrar as “teias de significado” com os quais os grupos
se “prendem” à sua cultura. (ibid, p. 15) Desta forma, o registro escrito objetivou traçar o
caminho da navegação dos lugares por onde nunca havia passado, mas que já existiam e eram
habitados.
Uma preocupação, conforme apontei acima, era com a maneira com que os monitores-
presos, os quais foram os primeiros a fazer parte da rede de contatos ali dentro, iam “aceitar” o
diário de campo por conta do peso que a escrita tem neste espaço. Afinal, o diário de campo
estaria sempre comigo e sendo assim, toda informação escrita poderia ser vista por eles como
uma forma de incriminá-los frente aos diretores da unidade. Esse “peso da escrita” como forma
de abuso de poder é muito comum dentro dos estabelecimentos penais, já que tudo o que aparece
escrito no prontuário do preso pode ser usado contra ele pelo juiz no momento de sua condenação
final. Foucault (2010) já sinaliza esse “poder da escrita” como fundamento para o funcionamento
das técnicas disciplinares. Preocupada com essa questão, procedi da seguinte maneira. Marquei
com eles, individualmente, uma primeira conversa para que me contassem como “viraram
professores” ali dentro e sobre outras coisas que julgassem conveniente me falar. Logo de início
coloquei que ia escrever rapidamente no diário de campo, tomando notas do que eles me falassem
e no final gostaria de ler as notas para que me ajudassem a revisar o que havia escrito. Foi desta
forma que iniciei a primeira conversa com Leão. E ele resolveu me contar um pouco da sua
trajetória de estudos e profissional para depois entrar na questão da prisão e da seleção para se
tornar um monitor-preso. Procedi da maneira como combinamos e ao final de minha leitura
revisamos alguns termos e palavras que foram sugeridas por ele. Esses fragmentos soltos de uma
29
conversa, inicialmente poderiam provocar um sentimento de desconexão e uma atitude entendida
como um “estar às cegas no campo”. Porém, pouco a pouco as notas redigidas e revisadas após
diversas conversas “mais formais”15
com os outros monitores-presos ganharam os primeiros
pontos de referência num mapa que começava a ser desenrolado.
Para as conversas “mais formais” individuais que aconteceram nos momentos
disponibilizados pelos monitores-presos, o mesmo procedimento aconteceu: ia tomando notas de
suas falas e ao final lado-a-lado líamos as notas e revisávamos juntos, trocávamos palavras,
expressões e em alguns momentos eram acrescidas informações adicionais.
O foco neste momento era estabelecer um vínculo com eles antes que passasse a participar
de suas aulas com o diário de campo em mãos, e não a busca de informações. Estava preocupada
em “dar língua para afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 1989, p. 15) Considerei muito
produtiva essa primeira aproximação individual com os colaboradores e a possibilidade de tentar
desmistificar o poder que a escrita tem naquele contexto, mas não tinha a pretensão de achar
possível quebrar as relações assimétricas da minha posição de pesquisadora e minha neutralidade
no campo. Permaneci um mês conversando individualmente com os monitores-presos,
semanalmente. Todas as conversas se deram em forma de tomada de notas que eram revisadas
por eles.
Em uma das últimas conversas com o monitor-preso Robinson ele me pergunta se na
semana que vem eu não gostaria de acompanhar sua aula. Uma sala multisseriada de
alfabetização até o 5º ano, que até o momento estava reunida, iria ser desmembrada e ele
assumiria a turma de 4º e 5º ano. Era o convite que esperava.
21/09/2012
Logo pela manhã chego à portaria junto com o café. O preso que é
responsável por essa função traz a garrafa e sou convidada a “estrear” uma
caneca de plástico nova. O funcionário do Setor da Produção (local em que
funcionam as oficinas de trabalho) me acompanhou no café e logo passei pelo
15
Me refiro a conversas “mais formais” porque foram planejadas anteriormente com os monitores-presos, com
horários e temática já informada. Porque as notas se seguiram ao longo do campo nos diferentes momentos em que
estava ao lado deles e que me informavam coisas interessantes.
30
raio-x que apitou hoje novamente. O funcionário era o mesmo da outra vez em
que tive que tirar as sandálias. Ele me fez voltar e passar novamente. Desta vez
perguntou: “O seu sutiã tem ferro?” Respondi que sim e ele me mandou entrar.
Depois desse dia providenciei algumas combinações próprias para minha
entrada no raio-x. Nada de sutiã com ferro. Troquei pelo top de ginástica. Não
fui mais com a sandália que deveria ter algo de ferro no solado. Os brincos eu
os tirava antes de passar pelo raio-x, deixava-os na mesa e depois pegava de
volta. Passei pelos portões abertos pelos galerias e, automaticamente, o
telefone sem fio: Visita na casa!!! E subi para o Setor da Educação. Robinson
estava se preparando para voltar para a sala, pois cheguei no momento do
intervalo para cigarro e banheiro de quinze minutos. Ainda do lado de fora da
sala pegou o livro didático16 que estava utilizando com os alunos. Perguntei
sobre a atividade que estava sendo realizada. Ele abre a página 11 e 12 do livro
e me aponta uma atividade sobre ordem alfabética. A atividade pedia que
organizassem uma lista com nomes e sobrenomes. Quando o último aluno
entrou, ele me convidou para entrar também. Entrei na sala com sete alunos de
idades variadas e me apresentei a eles. Expliquei o que faria ali e que gostaria
de participar de algumas atividades em sala com eles. Após minha explicação,
um dos alunos chamado Francisco disse: “Seja bem vinda!”. Puxei uma cadeira
e ganhei um livro também. Esse era um procedimento que mantive em todas as
aulas de que participei: sempre estava com o livro utilizado em todas as outras
séries em que estive presente também. Era uma forma de não ficar somente
escrevendo no diário de campo. Estava ali junto para acompanhar a atividade e
os momentos que resultavam daquele determinado tempo e espaço em que as
práticas aconteciam. Desta forma, o livro tornou-me um álibi perfeito para que
pudesse registrar as falas e situações quando em muitas das vezes parecia que
estava passando para o “meu caderno” a atividade realizada.
16
VÓVIO, Claudia L. (coord). Coleção Viver e Aprender. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: MEC,
1998.
31
A cada nome organizado na lista alfabética proposta pela atividade do
livro, o monitor-preso (MP)17 pedia que os alunos recitassem o alfabeto.
Terminada a lista com os nomes passaram para outra atividade: o uso do
dicionário. Os dicionários foram entregues aos alunos e o (MP) explicou a
função de um dicionário e disse que era impossível alguém saber todas as
palavras e referindo-se a mim comenta: “Nem a doutora que está estudando pra
ser doutora sabe todas as palavras”.
Os alunos com os dicionários em mãos foram instruídos a procurar pela
palavra concurso. O MP pediu que encontrassem a letra “C” e ajudou
individualmente a achar a palavra. Era nítido que se tratava da primeira
experiência para a maioria ali presente o manuseio do dicionário. Um dos
alunos ainda em sua busca começa a ler em voz alta: “cloro, clorofila...
concurso. gente!!! Tá na página 185! 185!” E mostra ao aluno ao seu lado.
“Ih! (decepcionado) o seu é outro dicionário. É diferente!”
O MP senta em sua mesa e pede para que os alunos leiam o significado
em voz alta. E finaliza: “A gente pega o que é mais fácil. Porque o conhecimento
serve para impor respeito, mesmo a gente estando preso”.
Robinson!!! (grita o galeria!) Ele sai. Este MP é muito requisitado para a
realização de serviços burocráticos por ter um grande conhecimento de
informática. Os alunos permanecem com os dicionários quando o outro MP
entra na sala e diz: “Subiu!”
Os alunos respondem: “Subiu, subiu!”, deixam os dicionários sobre a
mesa do MP e saem da sala.
A palavra “subiu” neste contexto significa que a aula acabou, mas em
termos do funcionamento do CR o “subiu” significa que as atividades se
encerram às 22:00h. A partir desse horário não é permitido que ninguém de
fora da casa, esteja dentro da unidade. Quando estava na fase de realização
17
Utilizarei as siglas MP para monitor preso a fim de evitar a repetição da palavra que será usada
constantemente no texto.
32
das entrevistas tinha que ter esse cuidado com o horário. Quando davam quase
dez horas da noite eu já deveria estar na portaria porque “Subiu”!
Na proa do barco...
A construção dos modos de olhar para as experiências vividas em campo me trouxe outro
desafio: como estar inserida nas aulas, sentada junto aos alunos, com o diário de campo sem ser
confundida com funcionária da Segurança Pública ou agente Penitenciária? Assim, em todas as
aulas de que participei, na minha primeira entrada após a apresentação pude contar com o apoio
dos monitores-presos com a seguinte fala: “Olha gente, ela não é agente e nem funcionária da
SAP! Ela é professora e está aqui pra ajudar”.
Essa relação de confiança e de vínculos que estabeleci foi construída processualmente ao
longo dos oito meses que vivi o Centro de Ressocialização para além do espaço educativo.
Porém, a construção de um modo de olhar para a escola para compor o mapa do currículo desse
ambiente constituía-se numa tarefa complicada, pois afinal já me alertava Leão (MP): “Somos
todos vigiados e observados constantemente” ou nas palavras do galeria Cláudio: “Aqui um olha
todos e todos olham um.”
Sendo assim, chegava mais uma para observar constantemente? Como iria resolver essa
questão?
Como descrevi acima, o fato de ter sempre o livro didático como “álibi” sendo apoio
durante as aulas permitiu que, de certa maneira, estivesse mais livre para observar. Muitas foram
às vezes em que não havia livros disponíveis para todos, e então seguia junto com outro aluno. Ia
dessa forma me inserindo e sendo inserida por eles. Nesse sentido, como disse anteriormente,
utilizo o termo “participar” para minha presença nas aulas. Assim, o livro didático servia de mais
uma ferramenta metodológica para me aproximar dos alunos, já que o dividir o mesmo material
possibilitava tecer conversas e realizar a atividade em conjunto. E é nesse sentido que, da mesma
forma que observamos e intervimos no território pesquisado, os habitantes desse território
também intervém e observam esse estranho que chega. Foi assim que durante uma das aulas de
Ensino Médio sobre “Sociologia”, às 15:30h da tarde, com vinte e quatro alunos presentes,
recebo um toque no braço e um caderno me é entregue com a seguinte escrita:
33
“Tivemos visita de uma professora por 2º dia seguido, pois ela escreve
muitoooooo e analiza cada tema, opina às vezes, acho que analiza nosso
comportamento entre outras coisas. Isso está sendo ótimo pois os reenducando
estão de parabéns estão se comportando muito”.
Ao terminar de ler, olho para ele e devolvo o caderno rindo. Ele ri também. Mal entrego o
caderno, puxo de novo e peço licença pra copiar o trecho no meu caderno. Ele termina rindo e
completa: “Eu sabia!”
Penso que a partir desse dia me coloquei mais relaxada com essa preocupação que tinha
em criar modos de observação que não causassem desconforto e embaraço nas pessoas com as
quais convivia. Impossível essa tarefa como me apontou o aluno Andrei acima com sua nota
escrita em seu caderno. Sobre isso, Geertz (2001) nos propõe que ao passo que precisamos da
familiaridade com o grupo pesquisado, é importante que aprendamos a viver “com” os
interlocutores e não “como” eles. E que é através desse diálogo propiciado através de diferentes
episódios (como o acima) que o “campo” se transforma em texto etnográfico.
Conforme sinalizei acima, a construção de modos de olhar para as experiências vividas
dentro do estabelecimento penal me reafirmou ao longo da trajetória percorrida que eu estava
habitando um território já habitado. E que, portanto meu aprendizado para um “fazer
metodológico” não poderia se circunscrever antecipadamente a procedimentos ou técnicas, mas
serem construídos ao longo da pesquisa.
E foi durante o processo da pesquisa, a cada dia em que pisava no Centro de
Ressocialização que a construção da metodologia desta pesquisa aconteceu. Tinha a principio a
ingenuidade de que ficaria restrita ao espaço educativo para entender a configuração do currículo,
entretanto, a paisagem que observava da “proa do barco” me mostrava uma imensidão de modos
de olhar que não poderiam ser desconsiderados. Afinal, precisava habitar aquele território de
diferentes modos para que pudesse entender a escola dentro do todo.
Aos poucos minha entrada e a passagem com mais frequência pelo anexo II (em que
ficam as salas de aula) possibilitou-me conversas com funcionários que por ali circulavam. Essas
conversas de corredor junto a eles me ajudaram a compor a paisagem que ia sendo povoada por
encontros e experiências nesse território. Território entendido aqui como “lugar de passagem”.
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 132)
34
O agente Marcelo
01/10/2012
Marcelo foi o funcionário que me recebeu no primeiro dia em que
consegui entrar para me apresentar para a diretora geral e falar do projeto da
pesquisa. Numa de minhas passagens pelos corredores que me levavam a sala
de aula encontrei com ele que logo me reconheceu. Parou-me e disse que estava
de licença prêmio até então e por isso não havíamos nos encontrado ainda.
Enquanto fumava me contava de sua larga experiência no Carandiru
evidenciando os problemas do sistema penitenciário e a questão da formação
dos funcionários: “Um funcionário que sai da academia e já cai no sistema,
chama o preso só de ladrão. Porque na sua formação aprendeu que se é ladrão
é pra ir pra cima mesmo”. Em sua opinião ressalta a importância da formação
dos funcionários como um todo. “Não pode ser só da Educação. Mas será que
dá?”
Não tivemos tempo de debater sobre a questão. Um outro funcionário o
chama pelo rádio e ele pede licença. Diz que conversaremos mais em outra
oportunidade.
Ainda no corredor, antes mesmo de chegar à sala de aula do MP
Robinson (4º e 5º ano/manhã) fui laçada pela Assistente Social, que conheci no
dia do curso de salgadeiro. Convida-me para entrar em sua sala e tomar um
café fresco... o cheiro estava exalando, mas junto ao cheiro de café fresco, um
cheiro de peixe que se espalhava por tudo também. Logo cedo. Provável que o
almoço seria peixe.
Enquanto tomávamos café, me mostra os prontuários e a necessidade de
estabelecer um contato maior com a direção geral para solicitar documentos,
tais como RG e CPF. Lamenta mais uma vez o trabalho truncado do Serviço
Social baseado apenas em estabelecer contato com as famílias e atender os
presos através de ofício. Termino o café e peço licença, afinal... a aula estava
por recomeçar do intervalo.
35
A circulação pelos corredores e o encontro com os habitantes do território
ouvindo seus anseios, experiências e inquietações mostravam que era preciso
abrir-me e engajar-me nessas escutas que se traduziam numa receptividade ao
campo e a tudo o que nele acontece. Habitar o território aberto ao desconhecido
(se embrenhando por todas as partes) pode soar como uma falta de rigor
metodológico, mas para mim interessava-me neste momento da navegação
entender o lugar que a escola ocupava para os diferentes membros da
tripulação.
Depois dos encontros pelos corredores subi para a sala de aula e os
alunos ainda estavam no intervalo. Dirigi-me para a biblioteca e encontrei os
dois monitores-presos. Tomei mais um café com eles num copo de requeijão.
Robinson (MP) estava organizando a atualização da remição de pena dos alunos
no computador. A remição é realizada e computada de acordo com a chamada
diária realizada por eles na aula. Fomos para a sala e o MP me mostra o
caderno de planejamento da turma contendo: a data diária, tema, atividade,
conteúdo, objetivo, material e avaliação. Enquanto isso, os alunos estavam
organizando sequências numéricas do livro18. A sala já estava novamente
configurada: um aluno saiu de liberdade, outro parou de estudar porque foi
chamado para trabalhar na cozinha do CR. Tirando essa rotatividade intensa
de pensar que a sala de aula não se configura da mesma maneira quanto ao
número de alunos na mesma semana, acontecem situações parecidas com a
“escola da rua” (como os presos dizem). Uma dessas situações é a do
professor19 (monitor-preso) que tem muita dificuldade em aceitar os diferentes
ritmos dos alunos. Enquanto uns realizam a atividade, outros já terminaram e
pedem para continuar os exercícios do livro. Um aluno novo que começou nesta
18
VÓVIO, Claudia L. (coord). Coleção Viver e Aprender. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: MEC,
1998 ( p. 23 e 24) 19
Neste caso, função exercida pelo monitor-preso que após passar por um processo de seleção da FUNAP
(Fundação Profº Doutor Manoel Pedro Pimentel) é designado para a função. Em sua maioria são pessoas
que tem a conclusão do Ensino Médio. Detalharemos mais sobre essa função no decorrer do trabalho.
36
sala aproveita que já terminou e está sem nada para fazer e comenta: “Eu não
gostava de estudar antes, agora to gostando”.
O MP diz que não devem continuar os exercícios do livro. Pede para
esperarem para todos seguirem juntos. Outra questão encontrada também de
similaridade com a “escola da rua” é o fato do professor (MP) falar das
dificuldades dos alunos na frente deles.
Em meio aos comentários a aula segue. Os números são colocados na
lousa e os alunos são chamados para falar os números em voz alta. O aluno
mais velho da sala, Marcolino, encontra dificuldade em colocar os números na
ordem crescente e como na sala de aula da “rua”, os outros alunos impacientes
falam a resposta e dão risada em volume baixo, emitem cochichos quando ele
acerta do tipo: Ufa!!!. O MP quando vê que ele consegue acertar diz: “1000
graus Marcolino!! (essa é uma gíria neste contexto que significou “parabéns”.)
Subiu! O monitor-preso comunica. A aula termina sem a conclusão da
atividade.
O grito do galeria vem em seguida: A boiaaaaaa!!!
Passo pelo refeitório e a fila está aumentando...os presos vão chegando
aos poucos e formando a fila. O refeitório fechado e o cheiro de peixe toma
conta de tudo. Ao passar já reconheço alguns alunos que me cumprimentam,
outros ainda não conhecidos olham discretamente ainda não reconhecendo
minha presença. Na saída (12:05h) converso e me apresento para o agente
Márcio. Ele está no CR há dois anos e pediu transferência de Franco da Rocha.
Lembra que lá tinha espaço para acontecer aula, mas estudava quem queria.
Perguntei se isso tinha a ver com a direção da prisão e ele afirma que sim, que
é uma questão de posicionamento do diretor e completa: “Se o diretor diz que
vai estudar, vai estudar e pronto. E complementa: É... mas lá eram mil e
novecentos presos e aqui... hoje... olha só a grade... estamos com 236. É uma
grande diferença né!”
Saí do CR e mesmo não tendo comido o peixe sentia em mim o cheiro
impregnado.
37
Considero que a rede de contatos que ia estabelecendo pelas passagens
aos corredores, na entrada e saída dos diferentes horários produziam a
sensação de que estava mais ambientada e que as pessoas também se
acostumavam com minha presença.
02/10/2012
A entrada ao CR e a passagem pelo raio-x já estão resolvidas. Depois que
montei um uniforme para não apitar e a minha presença semanal já fazia com
que logo que interfonasse, o agente de plantão me abrisse o portão. Costumava
entrar somente com a caneta, o caderno de campo e um bloco de postite. Neste
dia ao entrar, os agentes presentes na portaria procuravam na internet, o
endereço do presídio de Caraguá. Maura, uma das agentes comenta que tem
alma cigana e que cansa de todos os lugares e que pretendia pedir
transferência para lá. Enquanto isso, outro agente na função de motorista
olhava a escala de escolta no mural e lamenta: “Vixi! São Paulo hoje! Olha só o
horário! 17:45h! No fórum da Barra Funda. Passo pelos corredores e encontro
com Luís, agente penitenciário que cuida do Setor da Produção (local de
trabalho dos presos).
Chego à sala de aula junto com um jovem preso que pede ao MP-
Robinson o livro intitulado: “Só por hoje”. Ele entrega o livro ao rapaz que senta
em uma cadeira e lê rapidamente. Logo devolve o livro e sai. Robinson me
explica que este é um livro muito utilizado por usuários de drogas e
frequentadores de programas como os Narcóticos Anônimos. E segue me
contando que ele preside a reunião todos os sábados das 15:00h às 17:00h.
Chamou-me a atenção a cena do jovem procurar o livro nos seus minutos
de café. Este jovem está alojado no Anexo 1 e o Setor da Educação fica no
Anexo 2. Isto significa que tem que passar por uma série de “galerias”, os quais
tentam impedir ou atrapalhar questionando o porquê quer ir para o outro
anexo. O jovem manifesta sua preocupação para o MP Robinson quando
entrega o livro de que os galerias não o deixem mais frequentar a biblioteca no
38
horário do café. Robinson promete avisar o galeria sobre esse “proceder” para
permitir e autorizar sua vinda nesse horário. Quando o jovem sai volta-se para
mim e exclama: “Os galerias incorporam os pit-bulls”.
O intervalo chega ao fim e hoje vou participar da aula do outro monitor-
preso: Leão.
É uma sala de alfabetização com quatorze alunos (no dia de hoje!). A sala
é a mesma onde estamos. Desse modo os alunos vão chegando e retomando
seus lugares. Apresento-me a eles e sento numa carteira vazia. Ganho um
livro20 e Leão pede que abra na página 65.
Leão começa fixando um calendário na lousa e explicando o porquê serve
o calendário. Coloca os dias da semana na lousa e alguns alunos acompanham
em voz alta. Pede depois que os alunos digam os meses do ano. Um aluno diz:
“Vixi!” E tenta seguir o coro dos colegas. O mesmo aluno comenta: “Eu sei que
tem um que tem 28 dias.”.
O MP solicita que um aluno leia em voz alta um texto sobre o
“Calendário” (p.66 do livro). A sala de alfabetização se compõe por adultos de
meia idade e senhores de cabelo branco. Ao meu lado, um senhor com o livro
fechado, esfrega os olhos sobre o caderno e encontra-se num mundo a parte.
Escreve sobre as linhas, para, esfrega os olhos e apaga com a borracha.
Averiguarei depois sobre sua dificuldade. Consegui enxergar o que ele escreve
repetidas vezes: C L A U D I O N O R. Percebo outro aluno escrevendo e
desenhando na capa do caderno a marca americana: “HOLLISTER”. Sinto que o
movimento do aluno desenhando é discreto para que o MP não veja. Termina o
desenho e fecha o caderno. Seus pés impacientemente não param de se mexer
no chão. Leão pede para os alunos socializarem as datas de nascimento. Os
alunos falam, porém quando chega a vez de um dos alunos (provável que o
mais novo da sala) dizer a sua data, silencia e após um tempo: “1983. Não sei
mais não”. O MP segue explicando: “Olha gente, a data não pode ser esquecida
porque é muito comum gente ser presa por conta de ter o mesmo nome e aí o
20
Coleção Viver e Aprender (EJA 1) módulos 1 e 2
39
que o juiz precisa é provar através dos dados”. O MP pede a atenção para a
pergunta do livro: Você sabe qual a relação que existe entre a data de seu
nascimento e seu aniversário? Explique.
Silêncio na sala. Um deles fala: “É a festa de aniversário!”.
Leão somente escuta a resposta do aluno sem emitir expressão. Vira-se
para o aluno que não soube responder sobre a data de seu nascimento e diz
que depois verá em seu prontuário e passará para ele.
A aula é interrompida por um galeria que chega pedindo uma assinatura
de um aluno. Isso é bem comum acontecer durante a aula. Por conta do
andamento do processo judicial, visita de advogado e etc... solicita-se sempre
que saiam durante a aula ou mesmo ela é interrompida para colher a
assinatura de algum documento.
Enquanto os alunos se arriscam no caderno a pedido do MP para
escreverem os meses do ano, o MP puxa uma cadeira e senta a meu lado.
Começa a me contar a situação do Seu Claudionor (descrita acima). Ele não
possui nenhum comprometimento e está escrevendo seu nome repetidas vezes
como tarefa solicitada por Leão. “Chegou aqui esta semana e tem que treinar a
mão”. Comento da possível dificuldade visual do aluno por esfregar os olhos
constantemente. O MP diz que essa é uma questão difícil, pois são vários os
casos de dificuldade visual, já foram feitos diversos pedidos para a direção, mas
sem retorno. Leão pede para seu Claudionor parar um pouco e o aluno diz que
está preocupado com a diabetes que está alta.
O MP vai à lousa e os alunos são escolhidos para escrever os meses do
ano. A cada escrita Leão diz: “Tá certo lá, rapaziada?” e chama: “Antonio Alves”.
O aluno responde: “Logo eu, meu Deus!!!”
A última atividade pedia que no próprio livro, os alunos escrevessem os
meses formados por 28, 30 e 31 dias.
O MP percebe o horário e pede: “Vamos recolher os livros rapaziada e no
último minutinho fazer uma brincadeira de forca.”
40
Leão monta a forca na lousa. Os alunos vão soletrando as letras e se
divertem. A palavra montada foi CALENDÁRIO.
Subiu!
Ao sair os alunos, em sua maioria, me cumprimentam com um aperto de
mão. Uns dizem: “Até amanhã, senhora!”, “Fica com Deus” ou mesmo
“Obrigada!”.
A pesquisa de campo me envolvia cada vez mais. E concordando com
Alvarez e Passos (2009, p. 148) minha sensação era a de que “Conhecer, agir e
habitar um território não são mais experiências distantes umas das outras”.
03/10/2012
“Faz a corrente, maloqueiro”
15:00h Hoje senti a entrada alvoroçada. Na mesa da portaria, o diretor de
Segurança e Disciplina estava ao telefone e um pouco irritado conversava
paralelamente com o agente responsável pelo Setor de Produção. Parecia
resolver questões administrativas de transferências de presos. Enquanto estava
ao telefone, o agente José Luís, o qual por coincidência estava sempre quando
algo apitava comigo no raio-x, me diz que o agente que trabalha no período da
noite me viu na internet. Buscou meu currículo e imagens de um encontro de
coordenadores que organizei na Secretaria de Educação de Bragança Paulista.
Comentou que como o agente da noite não me conhecia e tinha visto minha
autorização quis saber quem eu era. Descreveu a foto na qual eu aparecia de
cabelo comprido e blusa azul. Brinquei com ele que não tinha nenhuma rede
social, mas pelo visto isto não tinha adiantado. Perguntou-me sobre o que era a
pesquisa e já se adiantou com a resposta: “É sobre o tratamento com os presos,
não é?” (já havia escutado essa pergunta de outro agente). Fui contando pra ele
sobre o projeto da pesquisa e juntos fomos caminhando para o portão de acesso
à área dos anexos. Continuou curioso: “Mas a pesquisa é em todos os
41
presídios?” Expliquei para ele a dificuldade em conseguir a autorização da
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) para a realização em uma
unidade e a impossibilidade de ter a autorização para mais de uma. Ele finaliza:
“Não é bom ter gente de fora aqui não! Eles não gostam! Mas precisa ir pra
Penitenciária. Algumas poucas tem escola e lá tem fortes emoções.” Disse a ele
que gostaria de escutá-lo e ele completa: “Eu não! Qualquer coisa que eu fale
pode virar contra mim” e rindo me fechou entre os portões para que o próximo
pudesse ser aberto. Segui para o Setor da Educação e encontro os dois
monitores-presos reunidos. Um deles comenta comigo que não está bem que
“aqui dentro tem que administrar muitas coisas: coisas do trabalho e coisas da
cadeia”. E termina: “Hoje não to bom!” Logo seus alunos começam a chegar e a
turma é de Ensino Médio (eu ainda não havia participado dessa aula) e o MP é
chamado pelo diretor de Segurança e Disciplina. Antes de sair, ele comenta
com seus alunos: “Boa tarde! Apesar de ter gente querendo tirar as “boas” da
gente.”
Hoje iria acompanhar a outra turma de Leão, que é Ensino Fundamental
(8º e 9º ano) e a sala fica no outro Anexo, em que ficam alojados os presos em
regime fechado. Enquanto caminhávamos de um anexo a outro, Leão também
divide sua sensação de que ali dentro é difícil manter tudo em ordem. “Afinal,
somos todos vigiados. E o que impera é a disciplina”.
A aula começa às 16:00h. Este anexo é o mais antigo da unidade. Uma
escada em espiral nos leva à sala de aula em formato ovalado. As paredes são
descascadas, não existe janela e em uma das paredes uma imagem de Cristo
segurando um livro com óculos. O que não poderia deixar de ter também é o
alfabeto colado em cima da lousa feito com letras de EVA. Sem a janela, mas
com um ventilador e a mesa do professor à frente. As carteiras são de braço. O
calor é infernal!!! Existe uma fresta que dá para a parte das oficinas de
trabalho.
Os alunos vão chegando e me estranhando quando se deparam comigo
sentada em uma das carteiras. Alguns vão cumprimentando com uma
42
levantada de sobrancelha e vão ocupando seus lugares. Leão separa os livros21
em sua mesa que serão utilizados organizando-os em pilhas. Um dos alunos se
levanta, pega uma pilha de livros e ao deixar na primeira carteira de uma das
fileiras diz: “Faz a corrente maloqueiro!” (significando que era para o primeiro
aluno passar o livro para o restante da fileira.) E assim, na corrente, os livros
foram entregues. Eu também recebo um e aguardo o comando do MP. “Vamos
lá rapaziada, p. 184 do livro é a continuidade”. O tema da aula é sobre a
relação entre índios e portugueses. Hoje a sala está com trinta alunos e as
idades são bem variadas. Jovens que acabaram de completar a maioridade
junto aos mais velhos. Ao abrir o livro e localizarem a atividade, um dos alunos
questiona a pergunta que o livro propõe dizendo que o próprio livro acentua o
preconceito na relação entre o índio e o português. A discussão segue entre o
professor e o aluno. O professor tenta dizer que hoje existem leis que
asseguram mais as condições trabalhistas. O aluno termina: “A guerra
continua”. E o MP mostra-se impaciente com a postura do aluno e solicita:
“Vamos voltar para o livro”.
A sala cheia, o calor infernal e a conversa paralela dos mais jovens. O MP
pede silêncio e repreende: “Olha rapaziada, um funcionário me chamou
pedindo para saber do desenvolvimento de vocês aqui na sala.” Consegue o
silêncio com esta ameaça.
O MP lê a pergunta novamente em voz alta e lê a resposta do livro do
professor. Neste livro do professor as respostas são dadas a cada atividade que
o livro propõe. Durante a aula, diversos alunos são chamados pelos galerias por
diferentes razões já vivenciadas em outras aulas. Os alunos quando são
chamados, se levantam e pedem licença ao MP para sair. E a aula continua.
Interessante notar que abaixo do questionário apareciam duas atividades
(p.185, exercício 1 e 2) e foram puladas na seleção do MP. Uma delas pedia que
os alunos realizassem pesquisa em jornais e revistas e a outra sugeria a
21
Coleção Tempo de Aprender. vol 3. Multidisciplinar EJA- 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Ed.
IBEP e Base Editorial. 2ª ed.2012.
43
formação de grupos de trabalho. Fiquei com a hipótese de que essas atividades
seriam interditadas, pois fugiria da lógica disciplinar e por talvez “inflamarem o
ambiente”.
As perguntas seguem e um aluno lê sua resposta para o MP. Como o MP
não lhe dá uma devolutiva, o aluno se vira para os lados e pergunta aos
colegas: “Será que o meu tá certo?” Ninguém responde e vejo-o apagar sua
resposta.
Outro aluno em tom alto de voz: “Deixa eu ir no boi (banheiro) Leão.
Tomei muita água”
O MP: “Não! Falta só meia hora para acabar.” Aproveita e pede para esse
mesmo aluno ler uma legenda de uma imagem do livro (p.186)
O aluno se recusa a ler e o MP insiste. O aluno continua firme na recusa:
“Não vou ler não! To rachando aqui pra ir no banheiro. To tranquilo, não vou
ler”
Leão finaliza: “Não vai ler não? Então depois a gente conversa”.
Sinto que o MP fica muito irritado, mas tem que seguir a aula. Segue
lendo a legenda da imagem que traz a palavra “clero”. Um aluno pergunta: “O
que é clero?”, mas não obteve a resposta do significado da palavra, entretanto,
o MP encerra o assunto: “Gente, não vamos discutir questão religiosa”.
O calor misturado ao cheiro de queimadas invade a sala. O cheiro de
humanidade também. No meio dessa miscelânea de odores, um dos alunos
observa o mapa do livro e fala: “Vamos dar um pião?” (dar um giro por outra
região).
17:30h. A aula para porque é hora do jantar (da boia), mas retornamos às
19:00h. Saio da sala acompanhada por Leão e espero na saída alguém que
venha me abrir o último portão. Espero...espero... quando aparece o agente.
Entendo o porquê da demora. Neste horário retornam os presos que estão no
regime semiaberto e, portanto trabalham durante o dia na rua. Existe um
procedimento para o retorno deles da rua: passam pelo raio-x, entregam a
carteirinha de identificação e o aparelho que monitora a tornozeleira, a qual
44
permite serem vigiados no percurso que fazem do CR para o trabalho da rua.
Quando chego à rua, um por do sol incrível, com cores radiantes que
contrastavam com as cores opacas que ficaram para trás. E na saída: “Já era?”
(o agente me pergunta) Respondo que já era!
O içar da vela...
Quando o espaço educativo se insere na lógica disciplinar?
Cena 1
Com a participação frequente nas aulas foi possível vivenciar situações em que a lógica
disciplinar de uma instituição penal atravessava as ações do espaço educativo reafirmando e
estendendo a condição de serem punidos. A primeira situação que presenciei foi a da última aula
descrita do Ensino Fundamental em que houve a recusa do aluno para a leitura solicitada do MP.
No dia seguinte quando voltei para o CR, Leão (MP) me conta o que havia acontecido de
“rebarba” da situação do aluno que se recusou a ler. Disse que no intervalo do jantar, procurou
um funcionário e passou o acontecido. No mesmo dia, o funcionário chamou o aluno e “falou um
monte”, “pegou pesado” porque segundo o MP o menino faltou em duas coisas: “o desrespeito
comigo, que sou autoridade quando estou ali na frente” e também porque
desrespeitou a visita, no caso, a senhora que estava lá.” Continua dizendo que um
descuido desse não é permitido pelos funcionários porque ali “eles tem que passar pra
gente a imagem de que estão ressocializados”. “Porque aqui dona Cátia é o
seguinte: quando os presos chegam e olha... esse menino não é novo aqui e
sabe das regras da casa, não é permitido falar “boi” e sim banheiro e também
não pode me afrontar. Aí o funcionário fez ele pedir desculpas para mim no
mesmo dia e se você estivesse aqui iria dizer pra pedir pra você também. Fez
ocorrência no livro do plantão da noite e pediu que eu não cobrasse dele as
desculpas que obrigou ele a pedir para a sala toda no dia seguinte. Disse que
ele deveria fazer por si só. Mas acontece que ontem ele não pediu e o
funcionário já me perguntou...sabe o que ele ganhou como castigo? Irá limpar
as carteiras e o chão por quatorze dias”.
45
Cena 2
Em meio à aula do Ensino Fundamental que se tratava da realização de operações
envolvendo divisão os alunos eram chamados à lousa para resolverem as operações:
a) 8452/ 4
b) 9042/2
c) 36963/3
d) 7925/5
e) 4380/25
f) 8640/30
g) 21192/12
Um dos alunos resistiu ao chamado...disse que não sabia. Os outros alunos tentavam
estimular para que fosse (talvez já pensando no possível desdobramento). A pressão
continuava por parte do MP que falava em tom mais alto e os alunos dizendo: “vai, vai”.
O aluno se recusou.
O MP avança: “Olha! Você sabe qual é o procedimento... funcionário não
quer entender se você não sabe ou não... não vai vir mesmo?”
O aluno sentado na primeira carteira balança a cabeça negativamente.
Sendo assim, o MP chama o funcionário que sobe e pede para o aluno acompanhá-lo.
Depois me conta que durante a boia, o aluno “escutou” do funcionário na frente dos outros
porque se recusou a aprender e isso precisa ser repreendido na frente dos outros.
Segurança e Educação: uma parceria que dá certo?
Cena 3
Numa das conversas individuais, o MP me explica como resolvem a demanda por vagas22
e a falta de espaço físico para atender a todos: “Neste caso quem decide quem fica
estudando é a parte disciplinar. O diretor da parte de Segurança e Disciplina
22
Me refiro ainda ao 2º semestre do ano de 2012 em que a responsabilidade pela oferta educativa prisional
era da FUNAP, pois a partir do 1º semestre de 2013 quando a Secretaria Estadual de Educação assume
essa responsabilidade, os problemas com a demanda e a falta de espaço continuam. Entretanto, o corte dos
alunos foi realizado por conta da exigência de documentos (que muitos não tem) e a SEE só realiza a
matrícula daqueles que possuem os documentos necessários.
46
resolveu que quem tinha alguma falta, advertência e tenha ficado no castigo iria
ficar sem estudar até arrumar mais sala”.
Tudo junto e misturado
Cena 4
O espaço educativo em funcionamento dentro de uma instituição penal é algo que sofre
alterações a todo momento, bem como altera também a lógica de funcionamento da instituição
altamente administrada em seus espaços e tempos. Dessa forma em um dos dias de campo tento
subir para o Setor da Educação e a escada que já é estreita normalmente, está mais estreita ainda
para passar. Uma fila imensa na escada dá reviravoltas quase chegando ao refeitório. Tento ir
passando por eles e descubro o motivo: DIA DE VACINA. Quando passo por uma sala de aula
vejo que está vazia e a outra bem cheia. As duas salas que funcionavam pela manhã
(alfabetização e 4º e 5º anos) estão reunidas assistindo ao filme: VOO 93. Na sala ao lado,
profissionais da área da Saúde fazem a aplicação da vacina. Ao passar, um agente me pergunta se
não quero tomar também. Dentro da sala, o filme passando e os alunos chamados vão saindo aos
poucos para serem vacinados. São vacinados e voltam, outros saem e o filme continua passando.
Fico sentada junto aos monitores-presos que estão no computador realizando a parte burocrática
diária: atualização da grade com a população prisional, a remição por estudo e trabalho e etc...
Enquanto isso, o MP que está há mais tempo no CR comenta que nunca tomou tanta vacina no
tempo que está lá, que sua carteirinha ficou cheia em um ano.
O horário da aula chega ao fim, mas o filme não termina. Fica pela metade. Os alunos
saem para a boia.
Tudo junto e misturado. Dia da vacina, Blitz, a aula interrompida para atendimento
jurídico, assinatura de papéis e outras questões são resolvidas em meio à rotina diária de uma
vida intramuros.
47
Contagem
Cena 5
Pela manhã as aulas da turma da alfabetização e 4º e 5º ano iniciavam às 7:00 da manhã.
Parada das 9:00 às 9:15h. Retorno das 9:15 às 10:50 h e as aulas do Ensino Fundamental de 8º e
9º ano da sala sem janela com Jesus Cristo de óculos pintado na parede aconteciam em termos de
horário da seguinte maneira: início: 16:00h até as 17:30h. Parada para a boia. Retorno das 19:00
às 21:00h. Duas turmas de Ensino Médio funcionavam em horário corrido: a da tarde com início
às 15:30 às 17:30 h e a da noite das 19: 00 às 21:00h. Este era o horário até o final do 2º semestre
de 2012. A questão é que existe o procedimento da “contagem dos presos” que ocorre
normalmente duas vezes ao dia na troca dos plantões (quando dá início o plantão da noite e
quando entram os funcionários do plantão do dia). Logo, o horário de início dessas turmas (com
exceção a da tarde do Ensino Médio) nunca acontecia como deveria ser. Muitas vezes tive que
aguardar na portaria o término da contagem para o início das aulas. Um dos MP ilustrou-me o
porquê da demora em um dia que a aula da noite teve início quase 19:50h “Pra você ter uma
ideia, dona Cátia, hoje o problema na contagem foi por mudança de pedra
(cama) que não foi trocada na pasta de controle.”
A tripulação da navegação
A escrita até então dos procedimentos envolvidos na pesquisa procuram se ancorar nas
contribuições da antropologia pós-moderna (GEERTZ, 1978) que tem investido em formas
alternativas de produção do texto etnográfico e para a não separação da relação sujeito/objeto.
Dessa forma, a escrita do texto busca trazer muitas das vozes da tripulação envolvida na
produção dos dados da pesquisa. Vale ressaltar que a produção dos dados é aqui entendida de
forma que não se faça a separação das etapas da pesquisa: coleta, análise e discussão dos dados
como se fossem passos lineares a serem percorridos ou capítulos separados. Concordando com
Alvarez; Passos (2009, p. 135) que elucidam que o processo de aprendizado numa pesquisa
qualitativa:
48
Não será aqui pensado como uma série de etapas de um desenvolvimento, mas
como um trabalho de cultivo e refinamento. Aprendizado no duplo sentido de
processo e de transformação qualitativa nesse processo. Movimento em
transformação. Tal aprendizado não pode ser enquadrado numa técnica e em um
conjunto de procedimentos a seguir, mas deve ser construído no próprio
processo de pesquisa.
Com a participação nas aulas foi possível estabelecer mais de perto contato com os
alunos, os quais me perguntavam sempre sobre a pesquisa. Quando chegavam novos alunos a
pergunta era: “Ah! Você é a pesquisadora?” ou mesmo: “Nossa! Mas aqui na
cadeia?” “Quanto tempo dura a pesquisa?” e assim já ia pré selecionando os possíveis
colaboradores23
para as entrevistas. Se a princípio me coloquei insegura quanto à utilização do
diário de campo agora teria mais um desafio: o uso do gravador dentro da instituição penal. A sua
entrada já havia sido autorizada pelo Comitê de Ética da SAP, porém faltava agora a nova
autorização no mural da portaria do CR com as descrições do gravador.
Semanas antes de iniciar as entrevistas solicitei para a diretora geral a autorização e
também a comuniquei que como os alunos durante o dia estão estudando ou trabalhando,
precisaria entrar na unidade à noite após o procedimento diário da contagem dos presos.
Após uma semana a autorização estava pronta e colocada junto aos outros infinitos papéis
do mural. Não só os alunos, mas os funcionários também se interessavam pelo processo da
pesquisa. Quando disse a eles que iria iniciar as entrevistas gravadas, muitas foram as indicações
de presos que eles achavam que deveria entrevistar. Porém, as indicações vindas dos funcionários
eram de presos que segundo eles “tinham vivido parte da vida na cadeia” ou os que “tem
boas histórias no crime”. Já os monitores-presos apostavam em nomes que tivessem
estudado em outras unidades prisionais (algo raro) ou os jovens que tivessem vivido por um
tempo na Fundação CASA. Sendo assim, meus maiores aliados foram os monitores-presos, os
que leram meu projeto inicial para a seleção do doutorado e eram parceiros na discussão das
ideias e novos direcionamentos. Sempre procurei dividir com eles minhas dúvidas no
encaminhamento da pesquisa. Como estava me organizando para o início das entrevistas no
período das festas de fim de ano por conta da finalização do semestre letivo, Leão (MP) era meu
relógio: “Olha dona Cátia, veja quem a senhora já tem ideia de entrevistar
23
Utilizo o termo colaboradores sugerido pela História Oral. “Colaboradores são seres que ao narrar
modulam expressões e subjetividades e a transparência disso é relevante aos exames decorrentes do texto
estabelecido em análise com os demais.” ( MEIHY; HOLANDA, 2008)
49
porque agora tem a saidinha de final de ano e sabe como é, pode ser que tenha
gente que vá e não volte, ou mesmo que chegando o juiz já libere. Tem muita
gente esperando a liberdade”.
Antes de estabelecer contato com os primeiros alunos a serem entrevistados voltei para os
registros das aulas de que participei, os quais se encontram abaixo e também retomei o registro
dos grupos de que estive presente juntamente com a psicóloga e assistente social. Nas duas vezes
em que o grupo aconteceu, este tinha como objetivo reunir os presos que iriam ter o benefício da
saída temporária24
pela primeira vez. E isto significava encontrar “o mundão” após anos de
reclusão. Mais uma vez é oportuno salientar como a ferramenta do diário de campo é
fundamental numa pesquisa etnográfica. Quando no momento de retomar os registros para poder
avançar nas entrevistas, encontrei nas folhas do diário, descrições inúmeras e pormenorizadas de
situações vivenciadas ao longo das aulas acompanhadas que colaboravam para pensar as
perguntas das entrevistas.
Monitor- preso: Leão
Alfabetização: 7:30 às 9:00h / 9:15 às 10:50h
Ensino Fundamental 16:00 às 17:30 / 19:00 às 20:50h
Data: Nível Assunto da aula
02/10 Alfabetização Contando o tempo
03/10 E.F 7ª e 8ª Índios e Portugueses
05/10 Alfabetização Idades- Tempo para tudo
09/10 E.F 7ª e 8ª Herdeiros de nossa terra
16/10 E.F 7ª e 8ª Correção de simulado para Cesu
25/10 E.F 7ª e 8ª Calcule as multiplicações
06/11 E.F 7ª e 8ª Divisão
07/11 Alfabetização Ditado e pontuação
23/11 Alfabetização + 3ª e 4ª série Contas (adição)
28/11 E.F 7ª e 8ª Ciências (O fogo)
24
As saídas temporárias, ou saidões, como conhecidos popularmente, estão fundamentados na Lei de
Execução Penal (Lei n° 7.210/84). Geralmente, ocorrem em datas comemorativas específicas, como Natal,
Páscoa e Dia das Mães, para confraternização e visita aos familiares. Somente os detentos que cumprem
pena no regime semiaberto e que tiveram autorização de trabalho externo, ou que já saíram nos outros
anos, podem sair para as festas de fim de ano.(www.justica.gov.br) Acesso em 28/07/2014
50
29/11 E.F 7ª e 8ª Ciências (O fogo)
10/11 Alfabetização + 3ª e 4ª série Filme: Lutero
06/12 E.F 7ª e 8ª Arte- Cultura Antropofágica
07/12 Alfabetização + 3ª e 4ª Matemática (multiplicação)
Tabela 1 - Registro das aulas (EF)
Monitor-preso: Robinson
3ª e 4ª série: 7:30 ás 9:00h/ 9:15 às 10:50h
Ensino Médio (tarde) 15:30 às 17:30h
Ensino Médio (noite) 19:00 às 21:00h
Data: Nível Assunto da Aula
21/9 3ª e 4ª série Ordem Alfabética
01/10 3ª e 4ª série Sequencia Numérica
09/10 3ª e 4ª série Oxítona/paroxítona e proparoxítona
07/11 3ª e 4ª série A alimentação do brasileiro
07/11 E. Médio tarde DVD- Cultura, cidadania, desigualdade
08/11 E.Médio tarde DVD- Cultura, cidadania, desigualdade
20/11 3ª e 4ª série O que acontece com os alimentos que comemos?
20/11 E. Médio tarde Química- DVD +exercícios no caderno
20/11 E. Médio noite Química- DVD +exercícios no caderno
21/11 E. Médio tarde Química DVD sobre Petróleo + exercícios no
caderno
21/11 E. Médio noite Química DVD sobre Petróleo
22/11 3ª e 4ª série Os povos africanos
22/11 E. Médio tarde Correção de exercícios no caderno
23/11 E. Médio tarde Filme: Lutero
29/11 3ª e 4ª série Contas de adição e subtração
29/11 E. Médio noite Química (Fenômenos)
07/12 E. Médio noite Filme: Voo 93
Tabela 2 - Registro das atividades (EM)
Conforme sinalizei acima, esperei com que as aulas do semestre terminassem para que
pudesse iniciar as entrevistas. Quem seria o primeiro colaborador? Como realizar uma entrevista
num ambiente em que os colaboradores possuem uma representação sobre o que significa
responder a perguntas? Como criar um clima que não se parecesse com mais um interrogatório
policial? Iriam apenas responder com “Sim, senhora! ou “Não, senhora”? Essas eram questões
que me preocupavam muito no momento em que pensava as entrevistas. Mesmo após meses de
campo contínuos, tinha o receio de que nas entrevistas reproduzissem o padrão a que estão
51
submetidos dentro da instância penal e de que tudo o que dissessem para mim poderia incriminá-
los como diria o agente penitenciário em ocasião já relatada. A essa altura da pesquisa de campo
já tinha também afastado de mim a ideia de que criaria uma relação assimétrica durante as
entrevistas. Tive a clareza que apesar da riqueza dos momentos nos diálogos tecidos estabelecia-
se uma relação assimétrica, afinal, era eu quem estava com um gravador na mão.
Estava ansiosa e com muita expectativa com relação a esse trilhar da pesquisa. O gravador
desde o primeiro dia já levantou brincadeiras dos agentes: “Ih! Não fala nada não que ela
está gravando!” “Cuidado!” “É aqui o que a gente falar pode virar contra nós!”
A minha primeira entrevista aconteceu no dia 27/12/2012. Cheguei à noite ao CR após o
procedimento da contagem dos presos. Expliquei ao agente do plantão noturno que iria precisar
da chave da biblioteca para a gravação. Pude contar com essa gentileza em todas as dezoito
entrevistas realizadas com os alunos, mais as três que envolveram os monitores-presos.
Nesse sentido, mais uma vez o tempo de espera para a realização das entrevistas
possibilitou que também criasse nos agentes a confiança em me liberar uma sala para que pudesse
contar com uma qualidade do áudio. Digo isto, porque todas as noites, sem exceção, o CR recebe
voluntários das mais diversas igrejas. Assim, as atividades são realizadas no refeitório e o som
advindo dos cantos, orações e cultos invade todo o anexo em que realizava as entrevistas. Sendo
assim, o fato de poder estar numa sala com a porta de vidro encostada fez com que o momento
das transcrições não perdesse a contribuição dos colaboradores.
Por mais que pudesse pensar que os colaboradores da pesquisa estão circunscritos a uma
mesma geografia (a instituição penal), cada um iria trazer sua singularidade para o momento da
entrevista. A elaboração de um roteiro para as entrevistas (em anexo) partiu do interesse de
compreender o funcionamento do currículo dentro da escola no cárcere. Mas colocando em jogo
o peso do gravador, do ambiente prisional e a própria lógica de pergunta e resposta tão bem
conhecida pelos que vivem este ambiente, procurei no início de todas elas demarcar meu objetivo
com as perguntas realizadas e o porquê da gravação. Líamos juntos o TCLE (Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido) e eu levava o original para xerocar, trazendo para eles a
cópia. Este era um momento em que, na maioria das entrevistas, já havia descontração pelo fato
do documento pedir que primeiro assinassem por extenso e em seguida realizassem uma rubrica.
Pronto! Aqui era o momento da criação, pois muitos deles jamais haviam realizado uma rubrica
do próprio nome. Aliás, muitos enfatizavam o tempo em que não assinavam o próprio nome. O
52
terceiro colaborador pediu meu caderno de campo para treinar uma rubrica antes de passar para o
papel, envolvido que esteve na ação da criação.
Segue abaixo o movimento realizado por Edmilson antes da entrevista:
A primeira entrevista foi realizada com Lenival, aluno da turma de alfabetização. Ele era
galeria do anexo do “Setor da Educação” e desenvolvemos uma ótima convivência, já que
praticamente por oito meses era ela quem me abria o portão. Durante as aulas, ele me mostrava
seu caderno, levava doces para mim toda vez em que estava na cadeia e dividia o que estava
lendo de material de leitura de sua igreja. Quando disse a ele que gostaria de conversar a respeito
de escolas em que tinha passado no ambiente prisional, se mostrou tímido, mas topou. O MP, no
dia seguinte em que fiz o contato com Lenival, comentou que ele foi procurá-lo preocupado
contando que eu gostaria de conversar com ele e disparou a falar com o MP por meia hora,
ansioso para que chegasse o dia da conversa e que ele conseguisse falar na hora sem ficar
nervoso. O MP tentou tranquilizá-lo dizendo que era um momento em que ele poderia falar o que
quisesse e que eu estava interessada em saber de “coisas de escola”.
Figura 2 - Rubrica do aluno Edmilson
53
Chega o dia da entrevista. Estava já na sala quando chega Lenival com seus doces para me
entregar, cabelo lavado, o uniforme da cadeia, mas a camisa branca extremamente “alva”.
Senta à minha frente um tanto nervoso e procuro distraí-lo perguntando da boia do dia e
ele me pergunta se era verdade que eu não comia carne. Conversamos um pouco sobre isso
quando introduzi o assunto: “Olha Lenival, essa é a primeira conversa que tenho de
muitas outras que farei com os outros alunos. Mas escolhi você nesta primeira
para me ajudar a ver se o que estou perguntando está bom, se acha que devo
mudar algo para as próximas conversas”. Depois dessa fala senti nele um alívio e um
certo conforto por mostrar minha confiança e a importância que ele teria pra mim neste momento.
Mostrei a ele meu gravador e ele se encantou com o tamanho. A entrevista foi ótima!
Conversamos por cinquenta e seis minutos e dezesseis segundos (56:16) e ao final de toda
entrevista perguntava aos colaboradores uma música de que gostavam, frase ou poema, algo que
os identificasse quando fosse transcrever a entrevista. Esse procedimento também foi bem
produtivo. Alguns cantavam e embalavam no ritmo da música, outros mais tímidos me pediam o
diário de campo e queriam escrever eles próprios e outros ainda ficavam um tempo em silêncio
como se tivessem perdido o gosto por essas coisas. Esse procedimento adotado inspirou-se no
documentário de Eduardo Coutinho chamado “Canções” (2011). Nele, o cineasta parte da
seguinte pergunta aos seus protagonistas: “Qual a música que marcou a sua vida?” E sendo
assim, quando perguntei ao Lenival sobre isso ele me respondeu: “Olha, música do mundão
eu não gosto. Só gosto do louvor. Anota aí uma música que chama: “Meu
advogado está no céu.”
Quando a entrevista terminou perguntei a ele o que tinha achado das perguntas, se ele
considerava importante que colocasse mais coisa ou tirasse algo pensando na escola da cadeia.
Foi quando em sua simplicidade me disse que não me preocupasse em fazer as mesmas perguntas
sempre, pois cada um teria uma história pra contar e que então eu poderia ir mudando de um
entrevistado para outro. Essa dica que Lenival me deu na primeira entrevista, também foi
reafirmada por uma das pesquisadoras da equipe de Eduardo Coutinho, que participou da
produção do documentário Edifício Master (2002) e trouxe em sua análise a difícil tarefa de
perguntar nas entrevistas:
54
Conversar, orientar uma conversa, “desprogramar”, atrapalhar o menos possível,
mas intervir de alguma forma, estas são questões que não se resolvem de uma
vez por todas. Não há como fazer um “manual” das perguntas corretas. A cada
vez que acontece uma entrevista, surgem resoluções diferentes, com seus
erros e acertos. (LINS, 2004, p. 146)
A cada entrevista realizada sentia que seu desenrolar trazia a singularidade dos sujeitos ali
presentes nas suas formas de produzir o discurso que entendiam como suas verdades. Deste
modo, busquei olhar para as entrevistas não com uma lupa em mãos procurando identificar
minuciosamente o que era verdade e o que era mentira. A questão foi olhar para como cada
colaborador construiu a sua narrativa a partir do que lhe era significativo elucidar no momento
em que estivemos juntos. Por exemplo, em todas elas a experiência do cotidiano prisional
apareceu livremente, sem minha intervenção. Uma necessidade ávida por falar e trazer essa
experiência que variava em anos de prisão. Estrategicamente a questão dos crimes praticados
foram trazidos por poucos deles no momento da gravação das entrevistas. Interessante notar que
em várias situações, os colaboradores ao final, me perguntavam se ainda estava gravando.
Quando dizia que não, traziam as infrações cometidas. Sou 121 (homicídio simples), sou 157
(latrocínio) e etc... No início procurava trazê-los para as experiências escolares, mas fui
percebendo o inverso. Na verdade,
Quando as pessoas contam suas vidas, quando se narram a partir de experiências
pessoais, aumentam consideravelmente as chances de se obter uma fala viva, e
as opiniões que podem surgir emergem misturadas a essas experiências,
portanto, mais vigorosas. (LINS, 2004, p. 148)
Procurei antes, durante e depois da gravação tomar notas de expressões, comentários que
me permitiram reconstruir o contexto em que cada uma das entrevistas aconteceu e também por
ajudar a perceber certas regularidades enunciativas nos discursos. Nesse sentido, procuro olhar
para as palavras e expressões como modos de dizer e fazer o currículo da instituição penal
pesquisada. Quanto ao procedimento produtivo ao final das entrevistas realizadas que comentei,
segue abaixo na tabela, o nome dos colaboradores e suas indicações de frases, músicas, versos e
produções que os identificam:
55
Antonio Pereira (64 anos) Eta mulher chorona! (Teodoro e Sampaio)
Claudio (20 anos) Gatinha assanhada, ce tá querendo o que? Gustavo Lima
Celso (45 anos)
Gratidão e alegria são duas dádivas preciosas que
proporcionam o brilho de nossa existência.
O ingrato e o insatisfeito são apenas perturbadores do
mundo. ( Essa fui eu.)
Edmilson (38 anos)
Não sei se vou acertar... ce assistiu os 2 filhos de
Francisco... “o dia em que eu sai de casa, minha mãe me
disse, meu filho, vem cá”. Pode mais uma?
“É o amor... que mexe com minha cabeça e me deixa
assim...”
Ernesto (20 anos) Tem uma frase que diz: Unidos venceremos, divididos
cairemos. (Bob Marley)
Jhonatas (19 anos)
Música que eu gosto... eu sou um cara muito
melancólico... eu gosto de música romântica: gosto da
Whitney Wiston, tem aquela Mariah Carey...
Brasileira que eu curto é Legião Urbana: Um dia desses o
tal João de Santo Cristo... (Faroeste Caboclo) eu gosto
porque fala um pouco da minha infância... gosto também
do Charlie Brown Junior.
Lenival (46 anos)
Olha, música do mundão eu não curto... eu curto assim de
louvor... tem uma assim que é aquela que fala assim “meu
advogado está no céu”.
Maicon (21 anos) Deus livra de todo o mal... cedo e a tarde... porque aqui
você tem que viver o dia.
Manoel (26 anos)
Frase de Albert Einstein: é mais fácil desfazer um átomo
do que desfazer um preconceito... ele fez essa frase em
memória do filho dele.
Marcolino (72 anos)
Poesia: Quando eu tava no hospital eu fiz essa:
O meu quarto
Não é meu
É de todo mundo
E não é de ninguém
Minha casa
Não tem porta
Nem janela
Mas tenho medo
De acostumar nela
(é a cadeia! Tudo trancado, não tem porta, nem janela)
Porque ficar preso não é bom não!
Moises (33 anos)
(risadas) Música que eu gosto: “Silêncio da noite”...
Às vezes no silêncio da noite... acho que é Peninha... sei
lá...
Rafael Darwin (30 anos)
Música: Dias de luta, dias de glória (Charlie Brown)
“Pode me tirar tudo o que tenho, só não podem me tirar as
coisas boas que eu fiz pra quem eu amo”
56
Observação: Me procurou no dia seguinte com uma frase
que fez enquanto ficou no castigo:
Todos os dias mordo as correntes dos grilhões que me
prendem e mesmo que elas não se partam continuarei a
afiar meus dentes.
Tiago (22 anos)
Música: Tem várias...tem uma que é aquela evangélica:
“Como Zaqueu, eu quero subir, o mais alto que eu
puder”...
Tiago (24 anos)
Frase: Nossa! Que branco! É... Isso daí foi uma frase em
que eu ouvi dentro da FEBEM... era grito de guerra...
pode ser pra apologia ou pro bem ...Eu to usando ela pro
bem... porque o mal não compensa.
Desistir jamais, lutar sempre, vencer às vezes e desistir
jamais.
Wellington (22 anos)
Música: Charlie Brown Junior
“Eu não sou senhor do tempo, mas sei que vai chover
Eu só sei que me sinto muito bem quando estou com você
Eu gosto das músicas deles porque ele cita a realidade de
hoje, do sistema que tá errado... ele fala a verdade... coisa
que muita gente não quer ver e tá ali.
Willian (21anos)
Música: Tenho andando tão sozinho ultimamente que nem
vejo em minha frente nada que me dê prazer... essa
música tocou no velório da minha avó... ela gostava dessa
música...
Robinson Passei a vida inteira tentando provar para as pessoas que
eu não preciso provar nada pra ninguém.
Leão (47 anos) O único passo entre o sonho e a realidade é a atitude.
Marcos Vinicius (20 anos)
Poema: Faxina da alma- O recomeçar
Não importa em que ponto da vida você parou
Ou em que ponto cansou
Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo.
Paulo Pra ser sincero não espero de você, mais do que educação.
Engenheiros do Hawai.
Silvio (31 anos)
“Estou aqui porque finalmente não posso mais me
refugiar de mim mesmo, até que sofra o partilhar dos meus
segredos não me libertarei deles. Temeroso de ser
conhecido não poderei me conhecer e nem ao outro estarei
só. Onde senão em meu companheiro poderei encontrar
este espelho. Neste solo poderei criar raízes e crescer não
mais isolado como a morte, mas como alguém parte de um
todo compartilhando seus propósitos.”
Tabela 3 - Frases, Músicas, versos e produções dos colaboradores
Conforme salientei em outro momento, a escolha dos colaboradores aconteceu através das
minhas participações nos mais diversos momentos da instituição penal, mas, sobretudo por
57
indicação dos dois monitores-presos atendendo, aos critérios lançados por mim: que tivessem tido
experiência em outra instituição total (no sentido goffminiano) ou que já tivessem tido
experiência escolar em outro estabelecimento prisional. Não houve negativa por parte de nenhum
possível colaborador para o convite da entrevista.
Após realizar as entrevistas, busquei traçar um perfil de idade dos entrevistados (alunos),
pois esse não foi um critério utilizado para selecioná-los, mas que de certa forma propiciou um
universo heterogêneo tratando-se de faixa etária:
Gráfico 1 - Perfil de idade dos colaboradores
Busquei traçar até o momento os movimentos da navegação da pesquisa, a forma de
produção de dados e os processos envolvidos na construção do conhecimento apoiados na
experiência de minha inserção num campo tão peculiar como o de uma instituição penal. Assim a
própria organização do texto partiu do que os elementos do campo evidenciaram e também da
riqueza das entrevistas. Deste modo priorizo nesta pesquisa o trabalho de campo ao longo dos
capítulos. A experiência do “campo” deve ser entendida como o fio narrativo que na escolha das
temáticas tratadas em cada capítulo procura elucidar a pergunta da pesquisa: Como se configura
o currículo de uma escola dentro de uma instituição penal?
58
Foi possível assim, construir o roteiro da navegação...suas paradas...mirantes...avanços e
recuos. Para a próxima parada do barco escolhi por situar a temática prisional no contexto do
Estado de São Paulo e suas formas de governar populações consideradas excedentes.
59
DEPOIS DOS NAVIOS NEGREIROS... OUTRAS CORRENTEZAS25
Antes mesmo da escolha do local de “aportar” o barco (o Centro de Ressocialização de
Bragança Paulista) foi necessário realizar um estudo do roteiro da navegação numa escala maior.
Com esse olhar panorâmico foi possível averiguar o contexto prisional brasileiro e o paulista,
bem como a dinâmica que rege esse universo.
Podemos afirmar que em nosso país, a contradição criada entre a elaboração da nova
Constituição Federal de 1988, que buscou trazer uma concepção de democracia participativa, não
se coaduna com as mudanças que se seguiram na década de 90, as quais demarcam uma postura
caracterizada pela eficiência e redução de gastos na administração pública. Essas mudanças tem
impactos no funcionamento do sistema prisional com a produção de políticas focadas no
gerenciamento do crime. Além disso, a mídia possui papel fundamental para que se sustente a
necessidade da adoção de medidas implacáveis, as quais como disse anteriormente não
condizentes com as ideias democráticas expressas no texto constitucional. As medidas marcadas
pela lógica gerencial de grupos identificados como de “difícil controle” (FEELEY; SIMON,
2012, p.25) refletem as taxas de encarceramento no Brasil, que só perdem para os Estados
Unidos, China e Rússia, o que se verifica no último relatório disponibilizado pelo Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias26
(INFOPEN), de dezembro de 2012 onde se revela que
a população prisional do Brasil é de 548.003. Ao realizarmos um recorte para o grau de instrução
apontado pelos dados temos 231,429 pessoas presas que possuem o Ensino Fundamental
incompleto. E mais: o indicador trazido com relação a faixa etária é alarmante: o perfil do preso
brasileiro é composto por jovens entre 18 e 24 anos representando 143, 47 da população prisional
e 25 a 29 anos representando 122,767. Assim, ao colocarmos a população prisional de 18 a 29
anos temos 266.237 jovens encarcerados. O Brasil tem se mostrado resistente aos modelos
alternativos de cumprimento de pena e sendo assim o tempo médio de pena em regime fechado
fica entre mais de 4 até 8 anos. (85,784).
25
Cazuza. Um trem para as estrelas. Álbum: O tempo não para. Lançada em 1989. Universal Music
Brasil. 26
www.mj.gov.br (acesso em 06/05/2013)
60
De acordo com o relatório da UNESCO27
de 2009 sobre a Educação em prisões na
América Latina, observou-se que 95% da população prisional da América Latina não precisaria
de regime fechado e neste caso, 30% da população prisional poderia estar cumprindo penas
alternativas. Sendo que no Brasil, a aplicação de penas alternativas permanece em torno de 10%
dos casos comparados aos 70% utilizados na Europa.
Vale ressaltar que a partir da criação do INFOPEN os dados nacionais gerados puderam
ser sistematizados a partir do seu lançamento em 2004, em Brasília. Sendo assim, um manual de
orientação fora criado para os gestores da Administração Penitenciária em outubro de 2005 e de
acordo com o material: “todo mês, até o dia 05 (cinco), o Estado deve preencher os valores de
indicadores referentes ao mês anterior, de cada estabelecimento e da Secretaria”28
. (p. 34)
Segundo Julião (2009) e Adorno (1991) há que se olhar com ressalvas para os dados
disponíveis uma vez que “cada Estado utiliza-se de mecanismos muitas vezes antiquados,
irracionais e ultrapassados” (JULIÃO, 2009, p. 80). Por esta razão esses dados precisam ser
considerados com cautela por estudos científicos. Entende da mesma forma Adorno (1991, p. 9)
que coloca questões ainda mais alarmantes. Para este autor, a questão não perpassa apenas por
“ausência de recursos humanos qualificados ou da falta de métodos racionais de trabalho” [...].
Destaca que essas confusões parecem dispor de certa intencionalidade. E quando a tarefa chega
aos gestores da administração penitenciária nota-se a alta demanda burocrática do trabalho
prisional e a falta de funcionários conforme o relato da gestora do Centro de Ressocialização: “eu
preciso mandar o relatório deste mês que era dia 05 e hoje já é 23...” Nota-se assim que olhar
para a realidade do sistema prisional somente através dos números como fonte de “verdade” para
a elaboração de políticas públicas é demasiado contrassenso.
As opções pelo modelo de sistema prisional brasileiro nos levam a entender que o Estado
penal se fortalece através do encarceramento de diferenciação. Isto significa que este tipo de
encarceramento destina-se a excluir da circulação os miseráveis e, portanto é preciso contê-los,
abarrotá-los e tirá-los de nossa visão porque são sujos, pobres e não produtivos. Para autores
como Feeley; Simon (2012, p. 467)
um segmento da sociedade que é visto como permanentemente excluído da
mobilidade social e integração econômica [...] e não formam um exército de
27
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 28
www.mj.gov.br (Acesso em 06/05/2013)
61
reserva para o mercado” deve ser colocado como foco de uma vigilância
permanente sendo um tipo de função de gerenciamento do lixo.
.
No Brasil, com a desfederalização do Direito Penal, a implantação de políticas públicas de
execução penal fica a cargo de cada Estado, que tem autonomia para legislar. Com essa medida,
objetivou-se que cada Estado da federação atuasse sobre sua heterogeneidade prisional. A
desfederalização proposta pela Lei de Execução Penal (LEP- nº 7.210/84), considerada uma das
mais avançadas do mundo por juristas da área, tem como função propor as condições em que o
encarcerado cumprirá sua pena. Para esboçar a estrutura federal29
temos o primeiro dos órgãos
quando nos referimos à Execução Penal, que é o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária (CNPCP) instalado em junho de 1980 que busca implementar políticas criminais e
penitenciárias e executar planos nacionais com metas e prioridades. O CNPCP está subordinado
ao Ministério da Justiça. A saber, a Lei de Execução Penal (LEP) foi elaborada em 1984 e sua
nova redação encontra-se sob o número de Lei 12.245/2010. Dez anos depois da primeira versão
da LEP cria-se o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) pela Lei Complementar nº 79, de 7 de
janeiro de 1994 que dentre outras funções é o responsável por proporcionar recursos e meios para
a modernização do Sistema Penitenciário Brasileiro. Sendo assim, o Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN) deve gerir os recursos do FUNPEN e também apoiar o CNPCP relativas às
questões administrativas e financeiras. Entretanto, essa estrutura não encontra ecos e articulações
dentro dos Estados brasileiros por contarmos com a desfederalização do Direito Penal. Nesse
sentido, a autonomia que os estados possuem nas formas de realizar sua própria Execução Penal
nem sempre leva em conta os passos dados do governo federal para o sistema prisional e no caso
desta pesquisa, evidenciamos esta lacuna entre o governo federal e o governo estadual de São
Paulo quando o assunto tratado é a Educação, como poderemos verificar ao longo da escrita do
texto.
29
www.mj.gov.br (acesso em 06/05/2013)
62
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Dizem que ela existe pra ajudar
Dizem que ela existe pra proteger
Eu sei que ela pode te parar
Eu sei que ela pode te prender30
...
O site oficial do Estado de São Paulo31
declara ser este o Estado “motor econômico” e
“mais rico” dentre as unidades federativas. Enumera ainda outras qualidades tais como:
responsável por 31% do PIB do país e detentor da melhor infraestrutura e mão de obra
qualificada. Entretanto, o que não é motivo de orgulho e não aparece em nenhum link do site são
os dados de sua realidade carcerária. A população prisional de São Paulo estampada pelo
INFOPEN (dezembro de 2012) é de 195.695 presos, o que representa 40% da população
carcerária do país. Mais uma vez a informação soa como eco da realidade brasileira e também em
São Paulo, já que o relatório evidencia uma população jovem encarcerada entre 18 e 24 anos
(49.404). A predominância no modo de cumprimento da pena conforme sinalizamos na realidade
nacional é o regime fechado, e São Paulo é responsável por 59.591 dos encarcerados. Mas situar
o “motor econômico” do Brasil requer estampar também que 71.634 possuem o Ensino
Fundamental incompleto. Quando fazemos o zoom para o item dos presos envolvidos em
atividades educacionais, temos dos 195.695 presos do Estado de São Paulo, 11.326 estudando, ou
seja, apenas 8%.
A questão da trajetória escolar interrompida e o grau de escolaridade evidenciado nesta
pesquisa acerca dos colaboradores se afina com as estatísticas nacionais e estaduais. Vejamos
abaixo a trajetória escolar dos entrevistados anterior ao momento em que chegaram à prisão. Vale
ressaltar que a série por eles relatada não constituiu uma trajetória linear, sem evasão e
repetência, com exceção de dois alunos presos que tiveram sua trajetória linear até a série por eles
30
Titãs, 1986. 31
www.saopaulo.sp.gov.br (Acesso em 15/05/2012)
63
frequentada. Trata-se de um aluno que seguiu até o primeiro ano do Ensino Médio e o outro até o
Segundo Ano.
O gráfico mostra que o Ensino Fundamental incompleto é o que configura a realidade
pesquisada e que a marca da evasão e da repetência foi algo constante nas suas histórias de vida.
Outra questão central é que mesmo os mais jovens tendo acesso à escola em idade esperada pela
legislação, percebe-se ao longo da trajetória escolar, que a repetência e a evasão constituem a
trajetória de exclusão configurando a idade-defasagem como mais uma marca da população
entrevistada nesta pesquisa.
Gráfico 2 - Perfil de escolaridade dos colaboradores
O que foi possível perceber nas entrevistas é que a questão da repetência e evasão escolar
possuem explicações das mais diversas, conforme seguem os relatos abaixo: “Olha pra falar a
verdade, minha vida de escola não foi muito boa não...porque tipo assim..só na
creche eu repeti umas par de vez...pra falar a verdade...até perdi as
contas...repetia...repetia e nada. Aí depois da quarta série...larguei mão...não
quis mais” . (Edmilson, 38 a).
Já, para Manoel (26 a) a questão do trabalho se sobrepôs à escola: “Eu reprovava por
faltas, por causa do serviço, mas era um excelente aluno.”
64
A rotatividade por diferentes cidades foi trazida por Tiago, (24 a): “Eu repetia porque
minha mãe ficava mudando muito de cidade e eu perdia tempo, porque eu
chegava nas escolas e eles não matriculavam... Depois também eu trabalhava
com serviço pesado durante o dia e aí depois à noite pra ir pra escola...eu
desanimava.”
Olhar para as falas trazidas por esses alunos presos e a relação truncada que vivenciaram
ao longo do processo de escolarização pode explicar porque o Ensino Fundamental incompleto
compõe o perfil do preso brasileiro evidenciando que já tiveram seus direitos negados antes
mesmo da chegada à prisão.
Com a estamparia de “baixa escolaridade”, os presos são considerados pelas políticas
penais como uma população “marginal, sem alfabetização, sem habilidades especiais e sem
esperança; um segmento patológico da sociedade que se perpetua a si mesmo e que não é
integrável ao todo, nem mesmo como uma bolsa de reserva laboral”. (WILSON apud FELLEY;
SIMON, 2012, p. 40)
As ideias dos autores citados acima se assemelham à maneira como Bauman (2007)
também aborda o problema, ou seja, como parte das estratégias da administração da pobreza
através da segregação e penalização como formas de se esconder os problemas maiores de
desigualdade social. Enfatiza que a quantidade de seres humanos tornada excessiva pelo triunfo
do capitalismo global produz um “lixo humano” que precisa ser destinado aos aterros. A retração
de serviços sociais e o endurecimento das penas promovem consequências na maneira de focar o
problema da segurança pública: é preciso expandir os aterros para receber o “lixo humano”,
porém seu tratamento inviabiliza sua “reciclagem social”. Portanto, para o autor:
Os criminosos [...] não são mais vistos como temporariamente expulsos da vida
social normal e destinados a serem “reeducados, reabilitados e reenviados” à
comunidade na primeira oportunidade- mas como permanentemente
marginalizados, inadequados para a “reciclagem social” e designados a serem
mantidos permanentemente fora, longe da comunidade de cidadãos cumpridores
da lei. (id, p.76)
O discurso da punição encontra solo fértil e aceitação da sociedade que clama por mais
segurança. Sendo assim, a prisão da maneira como foi pensada no século XVIII ainda se
apresenta como a melhor maneira de afastar as categorias sociais indesejáveis dos cidadãos de
bem(ns!). A Secretaria de Segurança Pública, do “motor econômico” do país, estampa em seu site
65
seu plano de expansão das unidades prisionais em pleno andamento e encontramos também a
seguinte afirmação: São Paulo conta hoje com a polícia que mais prende no Brasil, fruto da
política séria adotada pelo governador Geraldo Alckmin.
Entretanto o que é necessário evidenciar é que não basta acreditar somente que investir na
construção de novas unidades para conter os imorais resolverá o problema de gerir a pobreza e a
miséria tão acentuadas em nosso país. Ainda por informações disponibilizadas no site32
destaca-
se São Paulo também por ser o estado que possui o maior número de estabelecimentos prisionais
(149). Godoi33
(2014) aponta como a estratégia de expandir as unidades prisionais para cidades
do interior do Estado é uma forma de usar a população carcerária e suas famílias como projeção
de renda para as cidades em que os presídios são construídos. E conclui: “regiões distantes dos
grandes centros comerciais que careciam de atividades encontraram no encarceramento um nicho
econômico pra se sustentar, se desenvolver e aumentar suas arrecadações.” É interessante notar
como os enunciados (FOUCAULT, 2006) dispostos em redes discursivas operam de maneira
interligada aos choques imagéticos (TURCKE, 2010) disparados para a população. Logo, veem-
se ao vivo cenas horripilantes de terror, medo e violência na mídia televisiva produzindo a
necessidade de nos sentirmos seguros das classes perigosas como já enunciado acima. É preciso
conter os pobres, sujos, não produtivos e não consumidores do mercado. Deste modo, a estratégia
de lucrar com o medo, evidenciada por BAUMAN (2007, p.23) “está lá, saturando diariamente a
existência humana enquanto a desregulamentação penetra profundamente nos seus alicerces e os
bastiões da defesa civil da sociedade desabam.”
Nota-se que a escolha política do estado de São Paulo é o investimento no controle e
repressão assemelhando-se ao modelo americano de punição. Wacquant (2008) conceitua esse
modelo de “penalidade neoliberal” que nada mais é do que o enfraquecimento de investimentos
por parte do Estado em políticas sociais. O autor também observa em sua análise sobre países da
América Latina, a réplica de modelo de punição do “made in USA” que tem sido importada ao
atacado e ressalta que a opção pelo fortalecimento do Estado Penal está atrelada ao modo como:
Esse novo governo [...] assenta-se por um lado, no disciplinamento do mercado
de trabalho desqualificado e desregulado, e por outro, em um aparato intrusivo e
32
www.ssp.gov.br 33
GODOI, Rafael. A estratégia de interiorização dos presídios. São Paulo, 04/10/2012. www.brasildefato.com.br
(acesso em 15/12/2012)
66
onipresente. Em países onde a ideologia neoliberal de submissão ao “livre
mercado” se implantou, observamos um espetacular crescimento do número de
pessoas colocadas atrás das grades, enquanto o Estado depende cada vez mais da
polícia e das instituições penais para conter a ordem produzida pelo desemprego
em massa, a imposição do trabalho precário e o encolhimento da proteção social.
(WACQUANT, 2008, p.96)
Não é aqui intenção da pesquisa problematizar a questão do trabalho oferecido nas
unidades prisionais e sua relação com a Execução Penal. Julião (2009) cuidou dessa relação com
propriedade e analisou também os impactos dos programas laborativos na reinserção social do
encarcerado. Porém o que podemos afirmar é que ainda existe uma estreita relação entre as
atividades laborativas oferecidas em penitenciárias em meados do século XIX com relação às
desenvolvidas em pleno século XXI. Numa das aulas em que participei um rapaz jovem, com
seus 19 anos, recém-chegado ao CR analisa essa questão do serviço oferecido ali dentro
reafirmando a ideia de Marcelo/ agente: “Esse tipo de trabalho só atrofia mais o
cérebro” e fala com o monitor- preso: “Por que não colocam mais empresas aqui? Só
contar garfinhos?” O monitor- preso argumenta: “Mas tem muita família aqui que é
sustentada pelos garfinhos”. Apesar da distância temporal (século XIX- XXI) o uso do
trabalho dentro de instituições totais como a prisão desde sempre dá a ilusão aos presos de que
estão recebendo a oportunidade de trabalho e algum dinheiro, mas por outro lado é um local
privilegiado para empresários e o campo privado se beneficiarem de uma mão-de-obra barata e
desqualificada. Essa lógica ainda serve de vitrine de marketing conforme o exemplo disparado no
site da Secretaria da Administração Penitenciária com a seguinte manchete34
: “Futebol para o
bem- Bolas produzidas pelos reeducandos da Penitenciária Nilton Silva, de Franco da Rocha
serão utilizadas pela ONG “Spirit of Football”, numa jornada pelo mundo.” O projeto, realizado
desde 2004 naquela unidade prisional, oferece trabalho remunerado em média a 220 presos, que
fabricam bolas e redes para a prática de futebol de campo, futsal, voleibol, handebol e basquete,
além de agasalhos, camisetas e bermudas que serão destinados a projetos sociais.
Na tabela reproduzida abaixo do relatório do INFOPEN35
é possível observar como se dá
a divisão do trabalho oferecido dentro dos estabelecimentos penais do Estado de São Paulo. E
34
Acesso em 06/06/2012 www.sap.sp.gov.br 35
Acesso em 09/05/2013
67
obviamente, as parcerias que envolvem a iniciativa privada estão em primeiro lugar e em seguida
o item apoio ao estabelecimento penal. Vejamos:
Parceria com iniciativa privada 18.401
Parceria com órgãos do Estado 1.918
Parceria com paraestatais (Sistema “S” e ONG) 115
Apoio ao estabelecimento penal 15.074
Atividade desenvolvida- artesanato 2.786
Atividade desenvolvida- rural 286
Atividade desenvolvida- industrial 2.827
Tabela 4 - Diversão do trabalho oferecido dentro dos estabeleciemntos do Estado de SP
É interessante notar como a questão do trabalho acontece dentro de uma prisão. Conforme
já relatado acima, as práticas tidas como “trabalho” não se diferem das atividades oferecidas
como a costura de bolas, produção de carteiras escolares, embalar garfinhos e etc... Este é um
modo bastante eficiente de gerir a economia, já que as empresas privadas se beneficiam com a
mão-de-obra barata ao oferecerem os serviços aos presos pagando 3/4 do salário mínimo, além da
redução de pena por trabalho que se dá pelo seguinte cálculo: a cada três dias trabalhados, se
reduz um dia de pena. Este cálculo é previsto pela Lei de Execução Penal desde 1.984. Além
desse trabalho desqualificado oferecido aos presos dentro das prisões através da iniciativa
privada, que desconsidera as leis trabalhistas, outro modo de manter a prisão em funcionamento e
reduzir os gastos com funcionários é a busca por “apoio ao estabelecimento penal” que aparece
em segundo lugar na tabela acima. Durante as entrevistas, alguns relatos dos colaboradores
trouxeram experiências de como vivenciaram a possibilidade de reduzir pena por trabalho através
de diferentes funções. No primeiro capítulo descrevi a função dos “galerias” exercidas por presos
do Centro de Ressocialização. Eles ilustram essa contagem de apoio para manter a casa em pé.
68
Antes de vir para o CR, Lenival divide sua experiência vivida no Centro de Detenção Provisória
(CDP) de Sorocaba:
“Tinha remição do setor do raio onde você estava preso ali, tinha 16
barracos... o 1 é a entrada do raio aqui quando ce vem preso ce vem pra gaiola
e os caras (presos) vem do seu lado trocar ideia do que você fazia o que ce fez,
os caras do setor... os Jet, o Cabeça, quando o diretor vinha ele conversava
com o Jet, o piloto do raio porque o polícia só mandava da gaiola pra trás pra
dentro era o piloto, o polícia só entrava no dia da blitz entrava arregaçando..se
o jet falava se não vai entrar não entrava, e o Jet falava pra eles vocês mandam
da gaiola pra trás, aqui dentro é nois.Quem escolhe o Jet é o diretor, chega e
fala assim ce vai ficar pra piloto da cadeia dali você vai escolher mais 8
pessoas, faxina e paga boia entendeu e você escolhe 8 pessoas, 4 pra faxina e 4
pra pagar boia... A remição lá você ganhava, que nem eu ganhava remição
porque eu tava no setor, eu fiquei 1 ano e 7 meses, eu fazia faxina, depois eu
pegava e ia pra barraca servir comida pra eles, lavava roupa pra eles no X,
perto do boi... (explica na mesa), aí tinha o chuveiro e a torneira, eu colocava a
roupa de molho e lavava... lavava a roupa dos jet e dos faxina... mas aí eu
ganhava cigarro que é outra moeda... e rolava outras coisas... entendeu... O
CDP é grande só o raio cabe 370 pessoas, o do comando cabe 500 pessoas ala
tal e tal... cada raio
Silvio, outro colaborador finaliza: “Porque é difícil... tudo é difícil... não tem
funcionário pra todo mundo, a maioria dos serviços quem faz é o preso”.
Nesse sentido nota-se o uso da remição de pena por trabalho de um duplo sentido: os
presos mantém em funcionamento a instituição penal realizando diferentes funções e com isso
reduzem seu tempo de pena ao serem “beneficiados” pela remição de pena por trabalho. As
estatísticas de desemprego não consideram a população encarcerada, pois neste caso o “motor
econômico” teria que lidar com um aumento considerável desse índice. Premê já diria: São Paulo
é grana, São Paulo engana.36
36
Música: São Paulo, São Paulo. Álbum: Premeditando o breque, 1982.
69
Importante situar a questão do trabalho dentro das unidades prisionais já que ela se
relaciona com a experiência educacional desses sujeitos e que será problematizada neste trabalho.
Antonio, um colaborador da pesquisa que “trabalhava” como monitor da biblioteca do Centro de
Ressocialização nos adianta: “A cadeia investe mais no trabalho. Quem opta por
escola é quem tem visita, quem não tem vai pro trabalho.” Ainda sobre esse assunto,
Lenival complementa: “Eu cheguei lá na Penita37 e queria estudar, mas pra estudar
se você fosse estudar você não ia não trabalhar e se fosse trabalhar não ia
estudar você tinha que escolher ou trabalho ou escola, aí como lá é, era um
buracão, longe, não tinha visita, não tinha nada, fui trabalhar... ou uma coisa
ou outra, você escolhe... se você for trabalhar não vai estudar.”
De modo que a gestão da pobreza intramuros é operada pela docilização dos corpos e suas
máquinas-corpo produzem o necessário para a não-vida de seu cotidiano. Do lado de fora, a
mídia televisiva ostenta seu fascismo, apoiando a expansão vertical dos números que a cada
minuto não param de crescer: mais máquinas-corpo sendo despejadas nos aterros, bem como a
expansão horizontal dos planos de intensificação de construção de novas unidades prisionais de
despejo dos corpos pobres, vindo de um mercado informal e desqualificado. É da trama dessas
relações que sobrevive o sistema penal. Garland (2012, p. 58) complementaria destacando que:
a atenção está sendo deslocada para o tratamento dos efeitos do crime-custos,
vítimas e cidadãos amedrontados- mais do que para suas causas. Sobretudo, há
um explícito reconhecimento da necessidade de se repensar o problema do crime
e as estratégias para gerenciá-lo.
De fato, não quero aqui desconsiderar o fato da potência do Estado de São Paulo, mas
apontar que apesar de toda a (s) sua(s) “riqueza” (s), contraditoriamente realiza escolhas no
gerenciamento de sua (s) “pobreza (s)”. Mas enquanto isso... a Avenida Paulista continua a
brilhar com seus prédios e o andar desenfreado dos executivos que correm do mundo infame
encarcerado.
37
Abreviação de Penitenciária
70
A rota da navegação: O Centro de Ressocialização de Bragança Paulista
A escolha pelo local em que a pesquisa aconteceu se justifica por ser o Centro de
Ressocialização de Bragança Paulista, a primeira experiência do Estado de São Paulo a implantar
este modelo de unidade prisional baseado no projeto estadual “Cidadania no Cárcere” a partir dos
anos 2000. São Paulo possui em sua organização tipos diferenciados de unidades prisionais38
sendo divididas de acordo com a tabela abaixo:
Penitenciária
Capacidade: 768 presos
• Regime fechado;
• Oferece mais condições de recuperação;
• Possui oficinas e salas de aula;
• Parlatório;
• Cozinha e ambulatório médico;
• Local adequado para banho de sol;
• Abriga presos condenados.
Centro de Detenção Provisória (CDP)
Capacidade: 768 presos
• Oferece segurança à população e dignidade
ao preso;
• Atendimento médico e odontológico;
• Parlatório e sala de audiência;
• Celas reforçadas com chapas de aço;
• Detector de metais, sistema de alarme e TV;
• Construído para abrigar a população dos DPs
e cadeias;
• Presos provisórios (regime fechado);
• Estabelecimentos para presos que aguardam
julgamento.
38
www.sap.gov.br (acesso em 10/05/2013)
71
Centro de Progressão Penitenciária
Capacidade: 1.048 presos
• Regime semiaberto;
• Mais facilidade de ressocialização;
• Oficinas de trabalho;
• Salas de aula.
Centro de Readaptação Penitenciária
Capacidade: 160 presos
• Celas individuais (segurança máxima);
• Segurança: sistema interno de TV e
detectores de metais;
• Equipamento de alarme e bloqueador de
celular;
• RDD - Regime Disciplinar Diferenciado;
• Cozinha e ambulatório médico.
Centro de Ressocialização
Capacidade: 210 presos
• Unidade mista (regimes fechado, semiaberto
e provisório);
• Administrado em parceria com ONG;
• Participação efetiva da comunidade;
• Serviços assistenciais, saúde, odontológico,
psicológico, jurídico, social, educativo,
religioso,laborterápico.etc.
• Manutenção do reeducando: custo reduzido;
• Baixo índice de reincidência.
Ala de Progressão Penitenciária
Capacidade: 108 presos
•Regime semiaberto;
• Unidades construídas junto a
estabelecimentos de regime fechado.
Tabela 5 - Organização das unidades prisionais do Estado de SP
72
É preciso salientar que esta tabela está no site oficial da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP) e, portanto números e características esboçadas não podem deixar de ser
lidos dentro do contexto de produção deste discurso oficial. Com isto quero dizer que se trata de
divulgar e projetar a imagem ideal das unidades prisionais quando ainda estão no papel, ou ainda
durante a discussão do projeto arquitetônico e não quando a unidade passa a ser habitada.
Durante as entrevistas os colaboradores que viveram experiências em outro modelo prisional
também contribuíram para desenhar outra tabela, que não a divulgada no site oficial do SAP.
Com as entrevistas foi possível notar a contradição existente entre esse site oficial e as condições
de sobrevivência dentro dos modelos de unidades prisionais. Uma primeira contradição se refere
à capacidade que a unidade prisional comporta. Em segundo lugar, aparece a falta de condições
para a realização de atividades, sejam elas laborativas ou educacionais. Por fim, evidencia-se
também a falta de funcionários para atuar no tão sonhado processo de ressocialização dentro das
prisões. William coloca: “Por exemplo, no CDP sem chance, sem escola, sem
serviço, sem nada...”, “O CDP é grande, só o raio cabe 370 pessoas, o do
comando cabe 500 pessoas ala tal e tal... cada raio..” Aqui é preciso ilustrar que o
Centro de Detenção Provisória (CDP) é composto por oito raios. Então é possível multiplicar a
quantidade que o colaborador traz e imaginar a capacidade oferecida (ideal) e a da vida como ela
é. Silvio aponta: “O que é ressocializar? Se é socialização e eu tenho que voltar,
então poxa? Eu preciso de uma equipe multidisciplinar, preciso de alguns
fatores pra eu poder voltar pra sociedade”. Para situar o modelo de unidade prisional
(CR) é preciso entender o modelo de co-gestão instalado. Nesse modelo buscava-se uma co-
gestão entre ONG e Segurança Pública. Sendo assim, através do Decreto nº 45.403/2000 a cadeia
pública de Bragança Paulista é transformada no Centro de Ressocialização. Pelo relato de Celso,
a estrutura da cadeia pública antes de se tornar um CR era bem confusa: “Eu era menor e fui
pego aqui...(Bragança) e na época era o Doutor Nagashi e Pedro Oscar... eu fui
preso pela primeira vez aos onze anos e ele me deixou preso aqui (se refere a
antiga cadeia pública) uma semana, numa cela especial e depois ele me
transferiu pra lá (FEBEM/SP). A gente tinha uma cela especial por ser menor e
já de maior de idade, responsável pelos meus atos acabei sendo preso ali na
Nove de Julho (avenida da cidade) e vim preso aqui... vim pra Cadeia Pública
de Bragança antes de ser Centro de Ressocialização (CR) era cadeia pública...aí
73
fiquei aqui 9, 10 anos e depois me mandaram pra São Paulo eu sai daqui, fui
de bonde já tinha virado CR ... foi em 2000, eles vieram ai... doutora Gizelda,
doutor Marcos Libanês ...eles vieram pra cá e eu lembro que ela falou assim na
época: dona Gizelda falou assim: “ a gente veio lá de Presidente Prudente e veio
trazer o nosso melhor de lá, vamos pegar o que vocês tem de melhor aqui,
espremer dois limões, fazer uma limonada e beber junto...ela fez isso... pegou o
bom de lá com o melhor daqui... pegou os que não queriam ficar aqui que não
aceitaram as normas... e mandou de bonde... mesmo assim não tinha escola
não... não existia o anexo II, só existia as celas 1,2,3,4 e 5, o 8 era cela das
mulheres, o 9 de menores e o 10 do cabo que fazia ronda em volta da cadeia... o
alojamento dos polícia... eles dormiam aqui também... a escola veio um pouco
antes de construírem o anexo II, foi em...bom... eu fui de bonde em 1993
daqui... quando mataram uns três ali e até 1993 não tinha, a escola aqui
começou mais ou menos em 1997... que começou as “aula” aqui...” Celso faz
referência ao Doutor Nagashi Furukawa que nos anos 2000 foi o responsável pela implementação
da proposta de co-gestão dos Centros de Ressocialização e era Secretário da Segurança Pública
de São Paulo. Observa-se também que Celso faz referência a mortes ocorridas quando o prédio
ainda era denominado de “cadeia pública”. Foi após esse acontecimento que membros da
sociedade bragantina foram à Tribuna Livre na Câmara Municipal e relataram as dificuldades que
a cadeia pública passava. O juíz de Execução Penal da cidade na época era o Doutor Nagashi
Furukawa, o qual organizou uma reunião no dia 16 de maio de 1994, no Fórum de Bragança
Paulista, propondo a reativação da APAC- Associação de Proteção e Assistência Carcerária que
já havia funcionado por três anos na cadeia pública,tendo sido extinta. Porém, a primeira
experiência desenvolvida pela ONG APAC aconteceu no ano de mil novecentos e setenta e dois
(1972), na cidade de São José dos Campos, quando um grupo de voluntários cristãos liderados
pelo advogado Mario Ottoboni resolveu intervir nas condições vividas por internos da cadeia
instalada na cidade. Assim, a atuação da ONG voltava-se ao trabalho de orientação religiosa e
assistência material. Este grupo era responsável pela evangelização dos presos e também visava
garantir os direitos básicos previstos pela Lei de Execução Penal. Dois anos após iniciar suas
atividades ganha legitimidade jurídica e passa a administrar a cadeia de São José dos Campos em
parceria com a Secretaria de Administração Penitenciária. Essa primeira tentativa na cidade de
74
São José dos Campos é que inspirou o governo do Estado a difundir a ideia de co-gestão39
e o
novo modelo de penitenciária. O método APAC40
é adotado em outros países como Equador,
Argentina, Peru, Estados Unidos, África do Sul, Nova Zelândia e Escócia.
De volta à cidade de Bragança Paulista... após a reunião do juíz e a reativação da APAC
iniciaram-se os trabalhos da ONG no Centro de Ressocialização que sobreviveu de doações e
contribuições dos associados entre 1994 e 1996. No ano 2000, inauguração do novo modelo de
unidade prisional e de co-gestão, o convênio com a APAC foi renovado não mais pela Secretaria
de Segurança Pública, mas sim pela Secretaria de Administração Penitenciária administrada pelo
então Doutor Nagashi Furukawa.
Não podemos deixar de inserir este investimento no novo modelo de administração
penitenciária fora da onda neoliberal, que se intensifica a partir dos anos 90. Com isso, fica claro
a retração do Estado e a abertura para novas formas, mais viáveis economicamente, de “gerenciar
uma população permanentemente perigosa, enquanto se mantém o funcionamento do sistema
penal com um custo mínimo”. (FELLEY; SIMON, 2012, p. 35.) Foram implantados vinte e dois
Centros de Ressocialização no Estado de São Paulo a partir da experiência inicial de Bragança
Paulista, sendo esse modelo de gestão prisional que envolvia ONG e Estado na época retratado
pela mídia local como o “grande milagre econômico”. Abaixo a transcrição do jornal Diário de
Bragança Paulista, de 24 de fevereiro de 1996 (apud COSTA 2006, p.72) quando a ONG havia
sido reativada, mas o convênio ainda não tinha sido institucionalizado:
Convênio com a Secretaria de Segurança Pública, uma associação de moradores
de Bragança Paulista propõe-se a gerir durante um ano a cadeia do município,
recebendo do governo do Estado a quantia que seria paga à empresa privada que
fornece apenas refeições aos presos.Segundo os munícipes, a alimentação
absorveria somente a metade da verba, e o restante seria aplicado a programas de
recuperação de detentos e ampliação das instalações do presídio. Este convênio é
inédito em todo o país, transformando Bragança num modelo que deve ser
seguido por outros municípios.
39
Decreto nº 47.849 de 29/05/2003 institui o modelo de co-gestão. 40
A metodologia APAC é composta por 12 elementos: participação da comunidade, ajuda mútua entre
recuperandos, trabalho, religião, assistência jurídica, assistência à saúde, valorização humana, família,
formação de voluntários, implantação de centros de reintegração social, observação minuciosa do
comportamento do recuperando, para fins de progressão do regime penal e a Jornada de Libertação com
Cristo, considerada o ponto alto da metodologia e que consiste em palestras, meditações e testemunho dos
recuperandos. (www.cnj.jus.br)
75
A redução dos custos com os presos foi a bandeira hasteada na inovação de administrar
uma unidade prisional. Todavia, além da redução do custo do preso, houve redução também de
toda a sua estrutura organizacional como descreve Graciano (2005, p. 179):
Houve a redução de 18 mil funcionários da Secretaria de Administração
Penitenciária de São Paulo entre 1999 e 2006, durante a gestão de Nagashi
Furukawa, pela busca de redução de gastos. E ainda o aumento da proporção
entre o número de presos e o número de funcionários foi louvada pela SAP, por
ter significado, entre 1999 e 2002, redução de 23% no custo mensal de
manutenção dos internos, passando de R$ 1.000, 00 em 1999, para R$ 767, 00
em 2003.
Com a redução dos funcionários, principalmente neste caso, o de Centros de
Ressocialização, as funções são exercidas pelos próprios presos. Manoel lembra que esse modelo
pauta-se na possibilidade de oferecer remição. “Se tirasse a remição muitos não iam
ficar aqui no CR, ficariam por consideração à família, por amor à família,
muitos estão aqui porque o CR tem muita remição... tem remição de
representante de cela, de trabalhar na cozinha, nas outras cadeias tem isso,
mas não tem remição pra galeria e nem de representante de cela... se for
analisar de um outro ponto de vista... um galeria faz o trabalho de
funcionário... não é discriminação de pegar na chave... mas é um trabalho de
polícia... ele que tem que fazer...é um polícia que tem que trabalhar com isso e
não um preso...mas é uma forma de economizar verba... eu não tenho esse
conhecimento amplo dessa parte... eles podem economizar aqui, mas e lá na
frente?” Silvio também concorda com essa lógica quando comenta: “ Aqui não, tudo
depende do preso, se não tiver preso aqui, o CR não funciona. (risos)... é algo
muito produtivo, mas a montagem disso aqui... é a privatização...(risos) aqui
você tem uma mão de obra muito barata e uma produção muito grande..A ideia
do CR é muito interessante, mas acredito que no decorrer do tempo houve
algumas mudanças na sociedade até que...a questão do estilo do preso que vem
pra cá... tudo isso muda o andamento aqui dentro... então assim... se não tiver
pessoas preparadas aqui dentro pra lidar com tudo isso vai continuar a mesma
coisa... o sistema funciona... sim, funciona, mas não sai disso.”
76
O convênio entre SAP e a ONG APAC chega ao fim em janeiro de 2006 por problemas de
desvio de dinheiro. Atualmente, o CR é administrado totalmente pelo Estado e tudo é resolvido
através das lentas licitações.
Martineli (2005) em sua tese de doutorado analisa as mudanças do fim da APAC e a volta
da centralidade administrativa para o Estado. Dentre as questões destacadas pontua que para
voluntários e presos a preocupação com a ressocialização havia sido descartada em função de
normas mais acirradas em nome da segurança. Deste modo, o momento em que o ideário dos
Centros de Ressocialização foram criados emergiu de discussões na Secretaria de Administração
Penitenciária que procurou criar modelos diferentes de unidades prisionais para diferentes tipos
de prisioneiros (tipos de crimes, tempo da pena a ser cumprida...). O fato da ressocialização ser
deixada de lado como apontaram os entrevistados de Martineli encontra ecos no argumento dos
autores como Feeley e Simon (2012, p. 21) que utilizam o conceito de “nova penalogia” para
explicar certas mudanças estratégicas no discurso jurídico. Assim, a nova penalogia:
está menos preocupada com a responsabilidade, culpabilidade, sensibilidade
moral, diagnóstico ou intervenção e tratamento do ofensor individual. Preocupa-
se com técnicas para identificar, classificar ou gerenciar agrupamentos
distinguidos por sua periculosidade. A tarefa é gerencial, não transformativa.
Essas mudanças discursivas estratégicas no discurso jurídico, fazem palavras tão próprias
do universo prisional, tais como: ressocialização, reintegração, reincidência e reabilitação do
indivíduo, assumirem uma nova reconceitualização. Vejamos: se onde se coloca ênfase são nos
processos de gerenciamento de custos e não de transformação, instaura-se um novo foco. Sendo
assim, a palavra reincidência passa a conotar sucesso efetivo do sistema, já que os presos voltam
a para cadeia. Isto significa que os sistemas de punição estão cada vez mais eficientes. Os outros
(R)s anulam a condição de indivíduos, pois com o que se opera são grupos e categorias ordenadas
de infratores e seus possíveis riscos.
Encontramos semelhança na proliferação desses discursos sobre a organização da unidade
penal pesquisada. Quanto à volta da centralidade para a esfera estatal, o CR permaneceu com a
mesma estrutura em quantidade de funcionários e, portanto vale a pena reiterar a fala de Manoel
acima de que tudo é realizado pelos próprios presos: desde a limpeza, cozinha e parte
administrativa da unidade prisional. Como o objetivo era a redução em todos os aspectos, outra
situação encontrada é com relação a espaços físicos, a qual pode ser ilustrada através da Equipe
Técnica que atualmente é composta por uma Assistente Social que pertence à Secretaria de Saúde
77
da cidade e uma Psicóloga não formada. Elas dividem a mesma sala e sendo assim para que
consigam trabalhar precisam se revezar quanto ao horário de trabalho. Evidencia-se assim uma
fragmentação do trabalho que deixa de ser conjunto por falta de condições de espaço físico.
Não é objetivo da pesquisa fazer um detalhamento do modelo prisional nomeado “Centro
de Ressocialização”. Contudo, fez-se necessário situar a unidade prisional dentre o emaranhado
das cento e quarenta e nove unidades prisionais espalhadas por todo o Estado de São Paulo.
Sem dúvida, o fato de ser um modelo menor em quantidade de presos recolhidos
possibilita uma dinâmica da vida prisional mais ágil e esse eco ressoa na questão do
funcionamento do “espaço educativo” dentro do CR, o que detalharei no próximo capítulo.
Entretanto, estamos falando de uma prisão e logo as palavras disciplina e controle estão em sua
existência. Não podemos esquecer-nos disso. Portanto, é preciso alertar para o que Costa (2006,
p. 84) coloca:
O controle é quase total das atividades, dos indivíduos e das situações
cotidianas, por causa do baixo número de presos [...] reproduzindo assim, as
mesmas rotinas das prisões tradicionais. [...] Não foi criado regimento interno
específico para os Centros de Ressocialização, sendo utilizado o regimento
interno padrão do sistema penitenciário do Estado de São Paulo4142
. Apresenta-
se com isso, uma contradição crucial: busca-se ideologicamente mediante
processos técnicos operativos construir um “novo modelo de gestão prisional”,
contudo, usam-se os mesmos métodos de regras disciplinadoras das prisões
tradicionais, haja vista que no momento de punir o indivíduo, por qualquer ato
infracional dentro do CR, utiliza-se o instrumento disciplinador do regimento
interno padrão dos estabelecimentos penais do Estado de São Paulo.
A questão disciplinar dentro do CR apareceu em vários momentos durante as entrevistas
com os colaboradores, o que pode ser percebido pela fala de Celso: “Aqui, a coisa da mão
pra trás... isso não é uma forma de educar uma pessoa... é uma coisa chata,
colocar a mão pra trás pra tudo, mas a gente respeita, é disciplina, é ordem...
então a gente respeita...aqui a gente tem que andar com a mão pra trás... pra
tudo... se passa pelo funcionário... dá licença senhor! Vai e pega uma
água...volta, dá licença senhor... daqui a pouco: Dá licença senhor! Pra que
41
Disponível no Diário Oficial- Poder Executivo- Seção I Quarta-feira (30/06/2010). Administração
Penitenciária (Resolução SAP- 144).
78
tanto assim...tantas e tantas vezes...não é tanta necessidade assim... a gente
não é bicho pra ficar andando com a mão pra trás...agora vai passar uma
senhora aqui... abaixa a cabeça... pra que abaixar a cabeça se eu não vou olhar
com má intenção...não to com má intenção na minha mente... se tiver um
funcionário do lado, vão ficar olhando se eu estou reparando... e vai me
chamar...” Ou mesmo através das palavras de Silvio: “Se você falar pro funcionário: “o
rapaz me xingou, aqui dentro gera outra consequência... vai pro castigo, pode
gerar uma falta disciplinar e até... pode acontecer muita coisa... então o CR ele
foi preparado pra disciplinar, em questão de disciplina aqui não tem o que
reclamar (risos)” Leão observa a semelhança do modelo CR e compara “a um quartel ou
colégio interno. Tem horário pra tudo, ordem e disciplina.”
Considerando os aspectos que diferenciam o modelo Centro de Ressocialização de outros
modelos prisionais, apontados na tabela da página 68 e 69, podemos afirmar que as contradições
entre uma ideologia sugerida pelo seu projeto inicial e o cotidiano em que se concretiza, guardam
as marcas seculares de uma instituição total. Vale ressaltar que certamente a questão de ser um
modelo que privilegie uma menor quantidade de presos sai à frente nas questões mínimas de
sobrevivência que não são observadas em outros modelos prisionais. Cama, armário individual,
chuveiro quente ilustram algumas dessas vantagens do modelo aqui situado. Entretanto, é
interessante notar como a relação entre presos e funcionários são instituídas para que a ordem e a
disciplina garantam o bom funcionamento da instituição. E que fique claro: são regras próprias
para o funcionamento interno, já que preso bom é aquele que sabe “tirar cadeia numa boa”, é
aquele que se adapta e é visto com bons olhos pelos funcionários. Essa lógica é inicialmente
percebida pelos que chegam e passa a ser este o investimento do preso numa construção de corpo
e saberes que lhe garantam a sobrevivência. Essa relação de construção de um corpo adaptado
para a sobrevivência é demarcada pelo agente que me diz: “Guarde uma coisa que eu vou
falar e nunca mais esqueça: aqui é mundo irreal. Eles representam papéis. Vem
aqui no dia 20 de dezembro (indulto de Natal) e fique observando como eles
saem daqui... da porta pra fora... eles são diferentes”.
Após um dia inteiro de campo participando das aulas, já eram 21h00 da noite e encontro
com os agentes que fariam o plantão noturno. A cena que se passa me chama a atenção: sobre a
mesa, cartas que chegam para os presos e cartas que saem. Os agentes abrem todas as cartas e
79
leem. Ao notarem que chego próxima à mesa exclamam: “Aqui é leitura dinâmica!”, “Já vi
cada coisa nestas cartas... que depois passei a mexer nelas com luvas”(risos).
Eles escolhem duas cartas que são lidas para mim em voz alta. O agente coloca
entonação e enfatiza: “Olha, mas sou eu que to colocando o plural... porque o
negócio aqui é feio.” Discutem entre eles alguns significados de palavras e explicam que os
anos de sistema apuram os olhos e eles já sabem quando é armação ou recado pra realizar alguma
“função” na rua.
A cena das cartas me fez recordar do conceito goffminiano de “carreira moral”. Para o
autor, o funcionamento da instituição total, desde o ingresso do preso é marcado por rituais de
despersonificação e despojamento do “eu”. Nesse sentido, a vida a partir da entrada na unidade
prisional está exposta e administrada por todos, sua história, seus problemas, suas emoções. Ou
ainda ousaríamos dizer que esses sujeitos já foram despersonificados mesmo antes de chegarem à
prisão. O que suas trajetórias marcam são vidas em que os direitos foram negados, em que a luta
pela sobrevivência é diária e que estabelece um processo de invisibilidade social.
O telefone toca. Recado de visita de preso que não vem no próximo final de semana.
“Aqui a gente até dá o recado porque é pequeno...mas nos outros lugares... o
povo liga e a gente diz: pode deixar... mas não dá o recado. O problema aqui é
que você vira “babá” de preso, enquanto que nos outros lugares, os presos
resolvem todos os B.Os43 entre eles. Eles se viram. Agora eu te digo: pra
trabalhar aqui (se referindo ao sistema prisional) precisa de coragem e necessidade.
Nunca saio de casa sem estar armado. Se um carro encosta, eu atiro e depois
pergunto o porquê queria me pegar. Em outra cadeia que eu trabalhava eu
morava em hotel e quando saía do trabalho enchia a cara no bar. Olha, tem que
ter coragem. Eu já bati muito, mas também já apanhei muito.”
A agente que estava junto no plantão cruza a conversa e complementa: “O fato da
gente ficar fechada junto com os presos, pega esse esquema de isolamento e
funcionário do sistema prisional vive assim: trabalha e dorme. Eu não tenho
mais amigos, antes eu era tão comunicativa... aqui é muito negativo, tem que
se proteger de alguma forma”.
43
B.O- Boletim de Ocorrência e na gíria prisional pode significar algum problema ou situação delicada.
80
Desses relatos depreende-se que o ambiente prisional é constituído de saberes/poderes
específicos em que é preciso estar imerso para perceber sua rede em funcionamento, tornar-se
parte dela de maneira intencional para escapar à sua lógica. Parece contraditória a afirmação, mas
é sabendo operar nessa rede de saberes/poderes que as possibilidades de sobrevivência se abrem
dentro desse universo e é possível resistir tendo como alvo a liberdade, “o mundão”.
A polícia precisa do preso para existir. E a criminalidade é diretamente associada à
pobreza. Constrói-se o imaginário de que pobres praticam crimes e como consequência imediata
dessa relação é que precisam ser controlados e contidos. No Brasil a história de nosso
encarceramento na Época Colonial tinha como objetivo a contenção de indivíduos que não
estivessem de acordo com os costumes europeus trazidos pelos portugueses. Atualmente nossa
senzala e nossos porões atualizaram-se com estratégias para continuar contendo aqueles que não
se enquadram nos bons costumes da globalização. Portanto, vivemos numa democracia e sendo
assim possuímos escolhas, somos livres! Deste modo, opera-se com o discurso da
responsabilidade dos indivíduos por suas escolhas, desviando o foco da responsabilidade do
Estado na promoção de políticas sociais e acentua-se o fortalecimento de políticas penais.
Silvio durante a entrevista faz um contraponto a essa visão liberal em que as
oportunidades estão para todos: “Acho que hoje pro sistema penitenciário a
ressocialização é individual (risos)... O nome é muito bonito... porque ela
realmente existe, mas pra se encontrar uma ressocialização ela é um trabalho
árduo que não depende só de você.”
A questão penitenciária enquanto política de Estado paulista não pode ser lida fora de uma
constelação discursiva. Com isso pretendo sinalizar que a onda discursiva de controle, punição e
repressão precisa ser entendida como um jogo de linguagem constitutivo de saberes que instituem
“verdades” que organizam a sociedade de que fazemos parte.
Nesse sentido, toda a produção do discurso sobre a prisão, a pena, o preso, a lei, a ordem,
a disciplina, o crime, o pobre, são estratégias de tecnologias de poder operadas para produzir e
conter os indesejáveis que nos cercam.
Wellington em uma das entrevistas faz sua leitura e diz: “O governo não criou aqui
pensando em colocar a gente aqui pra ressocializar ...pra eles voltar na
sociedade... pensou assim: vou colocar lá dentro e deixar o tempo que o juíz
determinar e pronto..ninguém pensou em mudar a nossa mente...é só
81
pensando no risco da sociedade... tipo tranca eles ali e depois de um tempo
solta... mas isso não muda até hoje e não ajudou a abaixar os índices... só tá
piorando...eles não pensou em ensinar, educar... o que realmente vale a pena
pra eles... não! Deixa assim do jeito que tá... todo mundo com pouco
conhecimento, não sabe nada pra poder reclamar...e a população acaba
achando bom..uma imagem que não existe...é criado uma imagem de filme, de
seriado americano...da “prison break”... precisa o sistema mudar... investir
mais... parar de só prender e pronto... deixar lá pra quando der a hora...”
Para Fonseca (2012) a questão da punição e controle do crime perpassa por um
contingente de população que não consegue a mobilidade social e integração econômica. E
continua:
Já que eles (os presos) não formam um exército de reserva para o mercado,
reintegração e reabilitação não são consideradas nem possíveis, nem desejáveis,
porque essas barreiras econômicas são tomadas como inevitáveis e esse grupo
não consegue mais compartilhar a estrutura normativa das classes médias.
(FONSECA, 2012, p. 307)
Na saída do CR, o agente Rodrigo me pergunta como anda a pesquisa e sugere: “Já leu
Michel Foucault?”.
Feita a aposta de que a sugestão de Rodrigo iria me render ferramentas analíticas para
entender o currículo da escola, procedo agora à emergência dos discursos sobre a escola, o
currículo e o cárcere.
82
83
O CALEIDOSCÓPIO CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PRISIONAL:
ENTRE GIROS E NOVOS DESENHOS
Muito se pesquisa sobre a escola, entretanto a escola na prisão não ocupa os debates e a
cena pública. Afinal, a história da educação brasileira está intimamente relacionada à história do
desenvolvimento desigual do país, estrutura, por muitas vezes, a partir de um modelo dual: uma
escola para os mais ricos e outra que é ofertada para a maioria da população. Desta forma,
quando me proponho a situar a temática da educação prisional através de sua configuração
curricular é preciso de início salientar que essa é uma discussão que não passa com muita leveza
para ampla parcela conservadora da sociedade, já que a relação entre “educação e direitos” parece
não combinar com a população encarcerada. Embora privados de sua liberdade, outros direitos
devem ser assegurados, e dentre eles o direito à educação. Porém, quando observamos como
estão distribuídos os dados referentes à renda, escolarização e trabalho podemos inferir que a
história dos sujeitos pesquisados me permite considerar que o processo de exclusão e negação de
direitos se dá anteriormente ao ingresso em atos ilícitos ou criminosos.
Realizando uma busca44
na biblioteca digital da Faculdade de Educação da UNICAMP foi
possível averiguar a lacuna na esfera acadêmica quanto ao assunto da “Educação na prisão”.
Encontrei apenas um trabalho de conclusão de curso e uma tese de doutorado: MONTEIRO,
Marcia Regina. A educação prisional: uma visão histórica do descaso. (2010) 60 f. Trabalho
de conclusão de curso. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, 2010. E a tese de: PREVE, Ana Maria Hoepers. Mapas, prisão e fugas: cartografias
intensivas em Educação. (2010) 347 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2010.
No portal de teses e dissertações da CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior, dos cento e oitenta e três registros (183) a partir da palavra “prisão”, apenas
nove (9) são trabalhos da área da Educação. No restante, são pesquisas em sua maioria
provenientes da área de Saúde, Direito, Serviço Social e Psicologia. Sem, portanto realizar um
estudo profundo sobre cada uma das pesquisas nestas áreas foi possível observar que em muitas
44
Acesso em 15/05/2013
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vezes, essas pesquisas foram produzidas por pessoas que realizavam trabalhos voluntários ou
mesmo funcionários públicos da instituição penal. No Estado de São Paulo, anteriormente à
constituição do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Administração Penitenciária
(SAP), era possível conseguir a autorização para realização da pesquisa diretamente com o
Diretor da Unidade Prisional pretendida. Assim, minha hipótese é que para as pessoas que já
trabalhavam dentro da unidade esse processo era mais horizontal, o que talvez justifique um
número grande de pesquisas nestas áreas e poucas na área educacional. A lacuna de estudos sobre
a prisão brasileira está em consonância com o que Foucault (2008) encontrou em outros países e
expôs numa entrevista concedida a Magazine Littéraire, em 1979. Todavia, o autor fazia um
alerta para os que se interessassem em estudar o tema: propunha que o trabalho de pesquisa se
constituísse “em deixar aparecer os discursos em suas conexões estratégicas”. ( FOUCAULT,
p.130)
Nesse sentido, quando me proponho a investigar a configuração do currículo dentro de
uma unidade prisional pretendo compreendê-lo como uma construção social, imerso em uma rede
de discursos que se movimentam e produzem efeitos de sentido sobre as práticas curriculares
tecidas no espaço. Portanto, nesta pesquisa me afasto da concepção de discurso como um signo
(SAUSSURE, 2000) que representa a fala, mas sim como produtor e instituinte de regimes de
verdade que controlam e moldam nossas maneiras de fazer funcionar o mundo.
Ainda procurando circunscrever a maneira pela qual opero com a noção de discurso, e
aqui, o de um discurso curricular que configura uma escola prisional, recorro às palavras de
Foucault (2008):
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral da verdade”, isto
é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade, o estatuto
daqueles que tem a função de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, 2008, p. 12)
No Brasil, a publicação de recentes documentos sobre a oferta de Educação nas Prisões
coloca esta temática tão opaca e sombria como um tema que deve ser tratado. E colabora também
para que esses documentos entendidos como dispositivos discursivos façam “funcionar” a
educação prisional. Desta maneira, documentos como as “Diretrizes Nacionais para a oferta de
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educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos
penais”45
(maio /2010), a Resolução nº 3 de 11/03/2009 e Resolução nº 2 de 19/05/2010 que
dispõe sobre as Diretrizes acima citadas corroboram para trazer para a responsabilidade
governamental a oferta educativa dentro de um ambiente não pensado para tal função. Além dos
documentos acima descritos houve também uma mudança na Lei de Execução Penal (LEP) que
permite a redução da pena do encarcerado com base nas horas de estudo. Apesar dos avanços
normativos para o campo prisional e sabendo que a educação é considerada um “direito humano”
instituído pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), percebe-se uma notável
distância entre o que se coloca enquanto “lei” e o cotidiano das instituições educacionais. Um
destaque ainda deve ser posto enquanto distância quando o assunto é a oferta educativa dentro de
estabelecimentos penais.
Nesse sentido, não há como concordar com a afirmação do documento referência
(MEC/CNE) produzido durante o Seminário “Educação nas Prisões” que destaca que o Brasil “já
ultrapassou a etapa em que discute o direito à educação dentro do cárcere” (p.4) e que deve
investir na consolidação das práticas e programas. Já em outro documento46
produzido pelo MEC
(2013), a questão foi colocada de maneira mais real:
Ainda estamos vivenciando uma etapa introdutória, ou seja, o início de um
processo de institucionalização da oferta de educação em âmbito nacional,
mobilizando estudiosos, gestores e o poder público em geral a pensar sobre o
tema, colocando-o na ordem do dia no país, porém ainda falta um grande
investimento, principalmente no campo normativo. (BRASIL, 2013, p.305)
Ao menos no Estado de São Paulo essa etapa ainda precisa estar no “front” dos debates.
Lenival em uma das entrevistas ressalta que: “Lá na Penita (Penitenciária) outros pouco
estudava... quem estudava é quem tinha visita quem não tinha visita tinha que
trabalhar porque precisa de dinheiro pra se manter lá dentro entendeu. Então
... pra você ir pra escola você tem que fazer um pipa (bilhete) e entregar pro
funcionário, pro guarda ele leva e deixa na mesa do... ( esquece... pensa...) do
cara que (bate na mesa)... que tem a firma lá dentro ele pega as pessoas pra
trabalhar e estudar tipo encarregado... ce dá o nome pra ele e quando ele vinha
45
Em anexo. 46
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão, Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Básica. (2013).
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e você pergunta ele falava aguarda aí que eu to vendo, mas nem aí. E o tempo
passando. aí ce falava com o diretor com um, com outro aí o que acontece
daqueles nomes ... vinha sorteado... fulano de tal vai estudar e fulano de tal
também... O resto não... aí tem que fazer prova... tem que fazer prova.”
De fato, apesar de todas as dificuldades é preciso salientar a importância da temática
sendo colocada em pauta e problematizada, pois torna o tema menos sombrio e atrai olhares com
diferentes perspectivas e interesses, os quais possibilitam pensar sobre suas condições de
emergência no contexto atual brasileiro. Entretanto, quando se observa a viabilidade de acesso
para a escola é interessante notar pela fala de Lenival como a questão da relação entre
trabalho/escola é problemática também dentro dos muros da prisão. Quando ele aponta que quem
não tem visita e precisa de dinheiro vai pro trabalho e deixando a escola para segundo plano.
Além da relação entre a escola/trabalho nota-se também que a demanda pela escola é maior do
que a quantidade de vagas oferecidas. Por isso, estamos ainda no passo de pensar o acesso para a
escola e suas implicações no cotidiano da prisão.
Há que se fazer, portanto, um esclarecimento: não pretendo colocar as iniciativas e
avanços da educação prisional como algo a ser desconsiderado. O que pretendo é colocar a
emergência dos discursos através de documentos publicados sobre a temática em que olhar para
as produções normativas “é tomar o texto menos por aquilo que o compõe por dentro, e mais
pelos contatos de superfície que ele mantém com aquilo que o cerca.” (VEIGA-NETO, 2007, p.
105)
Ciavatta e Ramos (2012) sugere atenção à produção de documentos normativos, que são
movimentos de disputas para se orientar ações e consensos. No caso da temática prisional, é
preciso circunscrever a discussão atrelada ao modo como o Direito Penal é exercido no país. É
preciso salientar que tratar da Educação Prisional é estabelecer conexão com outras áreas e neste
caso, o Direito. Conforme apontado em outras situações deste trabalho, a desfederalização do
Direito Penal pensada para garantir a autonomia dos Estados frente à sua Execução Penal traz
algumas dificuldades e distâncias entre o governo federal e o estadual, por exemplo. Como a
pesquisa acontece no Estado de São Paulo focamos nossa análise sobre as problemáticas dessa
desfederalização no que se refere à questão educacional e curricular neste Estado. Assim sendo, a
Lei de Execução Penal (LEP) de âmbito federal prevê que (apenas) o Ensino Fundamental seja
obrigatório constituindo-se como uma das formas de assistência do Estado ao recluso. Nesse
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sentido, há uma restrição de oferecimento do Ensino Médio e Superior aos reclusos e mesmo a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), publicada posteriormente à LEP, não
contemplou a educação prisional. Essa lacuna foi de certa forma resolvida quando o Plano
Nacional de Educação (PNE/ 10.172, de 9/01/2001), em sua meta 17ª defende o oferecimento do
Ensino Médio e Educação Profissional.
Na seção V da LEP, trata-se da Assistência Educacional e aponta para que o Ensino
Fundamental obrigatório esteja integrado ao sistema escolar da unidade federativa. Descreve
também que cada estabelecimento deve conter uma biblioteca com acervo de qualidade.
Vejamos: a data de criação da LEP é de 1984. Interessante notar uma contradição entre as datas
que tratam da questão da responsabilidade pelo oferecimento da educação dentro dos
estabelecimentos penais. Se a LEP (1984) prioriza a responsabilidade do sistema escolar pela
unidade federativa (Secretaria de Estado da Educação) temos informação pelas pesquisas de
Santos (2007) e Português (2001) que a educação prisional até o início da década de 80 foi tarefa
da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e os professores transferiam o exercício da
docência para os estabelecimentos penais. Além disso, cada unidade prisional estava vinculada a
uma escola da rede estadual de ensino, denominadas escolas vinculadoras. Não há, portanto
registro de quando a Secretaria Estadual de Educação, criada no início da década de 1930, iniciou
os serviços educacionais dentro dos estabelecimentos penais.
Passos (2012) em sua dissertação de mestrado ao realizar uma pesquisa histórica sobre a
educação prisional em São Paulo apresenta que a retração da Secretaria Estadual de Educação foi
realizada por força de ato político administrativo, no fim do ano de 1978, pelo então governador
paulista Paulo Egydio Martins (1975-1979). Ora, isto significa que a LEP previu algo que não se
estabeleceu. Com a retirada de campo da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e de seus
professores das escolas em estabelecimentos penais, transfere-se para a FUNAP- Fundação Profº
Doutor Manoel Pedro Pimentel a responsabilidade pela educação no sistema prisional.
Sendo assim, a FUNAP que é um órgão executivo da Secretaria de Administração
Penitenciária inicia sua história oficialmente no ano de 1976 com o objetivo de oferecer trabalho
remunerado aos encarcerados. Recebe este nome após o apoio do juiz Manoel Pedro Pimentel
que na época da sua criação era então Secretario de Justiça do governo paulista. Porém, ao que
parecia ser seu foco apenas o projeto de profissionalização dos encarcerados, nota-se que com a
crise dos anos noventa, seus ecos nas novas formas de administração e a mudança do papel do
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Estado fizeram com que a FUNAP perdesse em recursos econômicos, mas ganhasse novas
atribuições: a responsabilidade pelas atividades educacionais nas instituições penais paulistas.
Isso ocorreu no ano de 1987.
Conforme apontado, o foco da FUNAP era a profissionalização dos encarcerados.
Entretanto, desde 1987 tem realizado com recursos próprios, a responsabilidade pela oferta de
atividades educacionais de diferentes naturezas.
Deste modo, é neste pântano de ausências escancarado pela retração do investimento
público e descaso para com a população carcerária que a FUNAP busca alternativas para a
questão educacional: entra em cena a figura do monitor- preso. Na página trinta e quatro deste
trabalho relatei como se dá o processo de seleção para que um preso “vire” monitor-preso, isto é
exerça a docência. Assim, para que realize a função recebe ¾ do salário mínimo e a redução de
sua pena por trabalho. Logo, para cada três dias de docência, se reduz um dia de sua pena. (o
mesmo cálculo de remição pelo trabalho)
Nas conversas individuais com os monitores-presos solicitava que me contassem como foi
o “virar” professor, como buscaram nortear sua postura em sala de aula, já que dos três
monitores-presos, apenas um na rua tinha tido experiência com a docência através de aulas de
informática. Robinson, representante deste último caso explica que: “A minha postura, eu
primeiro eu tive que tirar da minha cabeça que eu era um preso... porque eu
escutava de funcionário que dizia: como eu ia ser exemplo se eu era preso? Aí
nisso me bloqueou de vir pra educação... eu já estava aqui há um ano e
naquele momento eu não tava com o psicológico bom pra mostrar nada pra
ninguém... porque eu acho que pro professor funcionar bem, ele tem que ser
exemplo e na rua eu percebia isso também. Aqui eu tive que primeiro construir
meu espaço dentro da cadeia por isso eu demorei pra vir pro Setor da
Educação, fazer a entrevista...” E relembra que o que fez dele “professor” foi a influência
de pessoas do Centro Paula Souza47
que entendiam que educação era transformação. “Meu
diretor (se referindo aos tempos que trabalhou com informática no Centro Paula
Souza) amava Paulo Freire e tinha uma relação bem horizontal com os alunos...
47
Robinson trabalhou como Técnico em Informática no Centro Paula Souza.
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levava em casa, em churrasco e essa forma horizontal eu procuro manter aqui
com os alunos do CR”.
Já, para Leão, sua principal influência é a esposa que é professora: “(risos) Ela é
publicitária, mestra e dá aula em faculdade, professora universitária. Então,
como eu acompanhei muito ela em todos os períodos com ela... e quando ela
entrou na área acadêmica eu peguei ela como referência... foi ela que eu me
espelhei para que eu conseguisse desenvolver essa atividade... e modestamente
acho que to fazendo bem... o começo foi difícil, mas a referência central foi
minha esposa. Eu só nunca falei isso pra ela (risos)”. E Paulo, o último monitor-preso
a chegar também mostra que foi influenciado por um professor: “Eu tirei por base um
professor de Química que eu tinha e ele era muito calmo, a gente podia estar
colando, fazendo tudo errado e ele conversando na classe não chamava a sua
atenção... ele ficava olhando pra você e então você se sentia errado e você
parava com aquilo. E aqui eu fazia isso... eu parava e ficava olhando pra eles...
e no final da aula tinha até uns que vinha pedir desculpa”.
Pude acompanhar a rotina dos monitores-presos bem de perto. É incrível a semelhança
das condições para se exercer a docência “na rua”48
e dentro do cárcere, em especial, no que se
refere à burocracia. Além de ministrar as aulas diariamente, são os monitores-presos responsáveis
por toda a vida burocrática escolar dos alunos. Essa centralidade pela parte burocrática se
assemelha às escolas do campo consideradas isoladas. Nestas escolas, normalmente são os
professores os responsáveis por organizar a vida burocrática dos alunos.
Assim, os monitores-presos diariamente atualizam a quantidade de presos estudando, já
que a rotatividade é diária, incluem os presos que chegam ao CR, formam as turmas e organizam
o prontuário penitenciário escolar dentre outras diversas atribuições que vem a pedido da Diretora
Geral. Normalmente, elaboram relatórios como, por exemplo, quando as empresas que oferecem
trabalho para o CR marcam reuniões para ter acesso aos relatórios, ou mesmo os que seguem para
a Vara de Execuções Criminais com a quantidade de presos estudando/ trabalhando, as
transferências ou os chamados “bondes” e etc...
48
Com isso me refiro ao exercício da docência em escolas fora do ambiente prisional. Essa é uma gíria
prisional para evidenciar a diferença do mundo da prisão e o mundo da rua.
90
Foram várias as situações durante a aula em que os galerias49
gritavam pelo nome de um
dos monitores-presos e estes tinham que sair da sala e deixar os alunos para correr com algum
documento ou dado que estivesse no computador do Setor da Educação.
O acúmulo de funções intensifica-se no ambiente escolar prisional. Para além dos
assuntos de organização burocrática, o problema que assola a vida do professor “da rua” e
também do monitor-preso no cárcere: a falta de tempo para o estudo. Leão aponta o problema:
“Eu tenho muito pouco tempo para estudar antes da aula, mas depois que to
usando o livro ficou mais fácil. É só seguir.”
Como Robinson apontou no trecho de sua entrevista, o monitor-preso ali dentro funciona
como um apoio ao preso. Lembro- me que na saída de uma das aulas, um aluno que se ausentara
durante a aula, por chamado dos galerias para resolver assunto no Setor Jurídico, volta para pegar
o material. Chega à sala de aula, com um papel na mão e nervoso diz que seu coração está
disparado. Pede para Robinson ler o papel que recebeu do jurídico da instituição e complementa:
“Eu não entendo nada disso... e to tão nervoso... o que fala? Me diz, é que eu
não vou sair daqui... meu coração tá disparado.”
Robinson lê o papel e explica com suas palavras a situação que ocorre: o aluno não poderá
receber a visita de sua mulher no CR. O monitor-preso termina a conversa e se vira para mim
dizendo: “Aqui é assim, senhora... o dia todo... de psicólogo a ... o psicológico
da gente fica...” (e não completa). Utilizando os termos de Ginzburg (1989) essa fala
incompleta do monitor-preso pode ser lida como um sinal, um indício de que ali dentro a sua
função extrapola a de monitor-preso passando a exercer múltiplas funções pela falta de uma
equipe multidisciplinar que trabalhe nesse sentido de assistência ao preso.
A FUNAP50
semestralmente abria para a contratação de um monitor que atua fazendo a
ponte entre a Gerência Regional e a unidade prisional. No caso do CR o monitor da FUNAP era
um estudante do curso de História, do último ano. A Gerência Regional responsável pelo CR de
Bragança se localiza em Campinas e de acordo com o monitor a comunicação “é mais via
email, fica difícil ir para as reuniões.” A função do monitor da FUNAP é subsidiar os
49
Conforme já descrito na página 15 deste trabalho, a função “galeria” é desempenhada por um preso que
recebe remição por trabalho para realizar a “tranca” dos portões internos.
50
Essa contratação para esse tipo de monitor que se assemelha a um Coordenador Pedagógico foi extinta no CR
quando no início de 2013 a Secretaria Estadual de Educação assumiu o “Setor de Educação”.
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monitores-presos com materiais e acompanhar as atividades educacionais. Estabelecendo um
paralelo possível, é como se esse monitor realizasse o papel de Coordenador Pedagógico que
existe nas escolas da “rua”.
Com relação a materiais de apoio, estes seguem a lógica do semestre. Sendo assim, a cada
início de semestre letivo, a FUNAP envia um email para a Diretora Geral da unidade com o tema
que deve ser abordado pelos monitores-presos durante as aulas. Para se ter uma ideia, no primeiro
semestre de 2012, o tema enviado foi “Trabalho” e no 2º semestre “Sustentabilidade”.
Mas Leão reforça que esses temas ficam difíceis de serem trabalhados quando ilustra que
“se a gente tivesse mais recursos, mas é só o livro mesmo”. Durante a participação
nas aulas, muitas vezes, principalmente no 2º semestre do ano de 2012, quando a pesquisa de
campo iniciou-se, procurava colaborar com materiais que pudessem ajudar no tema da
Sustentabilidade. Porém, a entrada destes materiais não é algo tão simples assim: tudo é revistado
e passado pelo Raio-X. Quando não há alguém disponível para fazê-lo a entrada dos materiais
demora mais. Nesse sentido, diante de algumas investidas, Leão me diz: “Olha, eu agradeço,
mas até conseguir entrar o documentário que a senhora sugeriu... já acabou o
ano. Porque a diretora tá de férias, aí vai passar pra um, pra outro... até chegar
na mão do Diretor de Segurança e Disciplina...”
É nesse emaranhado de dificuldades que o cotidiano escolar prisional acontece. E isso é
percebido pelos alunos entrevistados quando observam que: “Eu acredito que em todo o
sistema penitenciário de São Paulo quem toma conta da educação é o sistema
da FUNAP. Então pelo pouco que eu sei a FUNAP recruta aqueles que
concluíram o Ensino Médio, que tem uma capacidade de interagir ali e “vocês
são os responsáveis” “vocês se virem ai!”... e o povo tem que se virar...Então
assim, acho que a estrutura que tem na escola pra lidar com pessoas que não
tem o hábito, de entender o que é educação e escola é muito precária... então
não é nem culpa da FUNAP, do preso ou da penitenciaria... eu acredito que o
que falte é um projeto do Estado, né... que prepare aí uma estrutura, não digo
da Psicologia, a questão do vídeo, mas a questão da interação... então assim
preparar as pessoas pra lidar com isso, é só com um projeto... acho que o
governo precisa começar a rever essa questão.” (Silvio)
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Em outra entrevista, Celso aponta outras questões que envolvem relações de poder
exercidas pelos monitores-presos: “O preso em si dando aula não é igual o educador
da rua, ele não tem aquela preparação... e isso é TOTALMENTE diferente...
porque o professor da rua ele é culto, ele estudou, se formou pra “quilo” dali...
ele tem uma paciência de jó com os alunos... independente do pré-primário,
fundamental... ele tem uma preparação pra encarar aquela situação... já dentro
do cárcere... o preso que está ali na frente... ele está ali, mas prepara o
conteúdo que só interessa pra ele porque ele não tem a formação pra poder
estar dialogando... e outra, ele está ali na frente... mas ele é preso igual eu, eu
tenho que respeitar ele porque ele está ali... ele senta lá e se sente superior a
nós que somos preso igual ele... e até mesmo às vezes ele tá ali... às vezes o
professor da rua erra... todo mundo é humano... mas quando eles erra eles não
admite e quer debater com a gente e se a gente fala com eles... eles querem
mandar a gente pro castigo... tentar punir a gente de uma forma ou de outra...
eles trabalham com a gente, mas é em cima do psicológico... por exemplo..se
eles me dão uma redação pra eu fazer até o final da aula... mas eu to com uma
dificuldade pra fazer... se tiver o título ou tema a gente aborda ali...a gente faz
e acabou...digamos que eu sei fazer, mas o meu companheiro do lado não
sabe... eu não posso ajudar... e se eu ajudar... ele fala: “Desce... pode descer...
se não descer vou chamar o guarda” E aí a gente desce já sabendo do castigo”.
Para além das questões que aparecem nestes dois trechos, uma grande problemática
instalada é o fato da FUNAP não ter autonomia de certificar os alunos quanto à conclusão das
séries.
Assim, os alunos estudam e para conseguir a certificação de conclusão de algum
segmento (Ensino Fundamental I ou II/ Ensino Médio) tem que realizar as provas de certificação
nacionais (ENCEJA/ENEM51
). E se não passam? Continuam tentando, tentando e tentando...
Então vejamos: até o início de 2013, os alunos de instituições prisionais realizavam os
exames nacionais descritos acima para obterem a regularização de sua vida escolar após serem
aprovados nos mesmos.
51
Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos/ Exame Nacional do Ensino Médio.
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Manoel divide sua experiência: “Eu não tenho o papel que eu terminei a
8ª...mas em 2007 eu fiz a eliminação de matérias da EJA, mas não tenho
nenhum papel que comprove que eu passei de ano... nada... se for... precisa
procurar nos arquivos morto da unidade e tem que procurar bem pra achar
meu nome... mas não tem nadinha que comprove (risos). O ENEM dá o
certificado... mas agora..porque eu não tenho o certificado e pra fazer o ENEM
eu preciso correr atrás do certificado da 8ª. Eu terminei da 5ª até 8ª e fiz
ENCEJA... to desde 2008...4 anos no primeiro colegial sem ter um
conhecimento... e a unidade também não passava um estudo decente pra gente
estar desenvolvendo...e os livros aqui são do tempo da minha avó... Vou ter que
correr atrás... entrando nesse ponto nem sei o que vou fazer..eu tenho o papel
da 4ª que eu conclui. O tempo que eu tive aqui estudando praticamente não
valeu pra nada... porque não tenho nada que comprove... estudei, estudei e
estudei e...” (risos). Mais uma vez ressalta-se o descuido para com esses sujeitos, pois a
questão da vida escolar regularizada através dos certificados e o histórico escolar é condição
básica para qualquer estudante.
O que a FUNAP propõe aos estabelecimentos penais é a cada fim de semestre a realização
de uma prova enviada pela própria Fundação para verificar quem passa de uma série para outra,
apenas para efeitos de formação das novas turmas. As provas são aplicadas e corrigidas pelos
próprios monitores-presos que e a partir do resultado elaboram a formação das turmas para o
próximo semestre. Quanto à formação das turmas existiam também outros critérios que definiam
se o aluno permanecia na série em que obteve resultado satisfatório na prova da FUNAP ou não.
Em conversas com os monitores-presos, esses critérios também levavam em conta a relação do
preso com o monitor-preso da série pretendida. Caso não houvesse “compatibilidade de humor”
entre eles, transferiam o aluno para outra série, mesmo que não correspondesse à que deveria
estar frequentando.
Vale ressaltar que a mudança na Lei de Execução Penal que atribui a cada 12 horas de
estudo a possibilidade de se reduzir 1 dia (Lei nº 12.433/2011) de pena também trouxe seus
impactos para o cotidiano escolar prisional. Vejamos um exemplo: o Ensino Fundamental previa
a duração de quatro horas aula. Portanto, em três dias de estudo, se reduz um dia de pena. Já, o
Ensino Médio previa a duração de duas horas de aula. Logo, para se reduzir um dia da pena, era
94
preciso estudar seis dias. Deste modo, o que alguns alunos do Ensino Fundamental trouxeram na
entrevista é que realizavam a prova de fim de semestre da FUNAP já pensando em não passar
para o Ensino Médio por conta da remição que é maior no Ensino Fundamental conforme explica
Maicon: “Nossa eu viajei aqui...porque se eu passasse na prova eu terminaria a
7ª e 8ª , mas como preciso de remição pra eu ter a saidinha... aí fiz a prova de
um jeito pra eu repetir...porque se eu fosse pro Ensino Médio são menos horas
de remição”.
Silva (2011) faz um alerta para a recente lei da remição por estudo. Ressalta que no Brasil
não há sequer uma avaliação da remição de pena por trabalho, fato já instituído a mais de 24 anos
e nesse sentido, a maneira como a lei da remição por estudo está posta pode tornar-se mais um
mecanismo de “moeda de troca e barganha” 52
, ações tão triviais na cultura prisional.
Edmilson ilustra essa relação da escola no CR e a obrigatoriedade para estudar da
seguinte forma: “Olha eu vou falar pra você... o pessoal vem porque é obrigado
porque tem que estudar, a maioria do pessoal só vem porque é obrigado, não
quer estudar... e falam: “eu só vou pra escola porque tem que ir... se pudesse
não ia... eu mesmo não ia... escola e estudar é ruim... (risos) sei lá...olha pra
falar a verdade escola pra mim não faz diferença... aqui só to vindo porque é
obrigado querendo ou não tem que vir... então to vindo e tem remição também e
ajuda senão não viria não...”
Como dentro do CR o estudo se faz obrigatório, como regra de permanência imposta pela
Direção, os colaboradores da pesquisa frisam muito essa relação da obrigatoriedade, e Jhonatan já
coloca outra questão: “Eu falo pra você aí mano... se chegá a dizer uma coisa
dessas... que Seu Célio (diretor de Segurança e Disciplina) liberou e que não é
mais obrigado... eu garanto pra você que 1 ou 2 venham por vontade própria...
eu sinceramente... não viria... já to preso... cheio de problema na cabeça...
sobre a remição... ajuda... porque o cara tá preso e tá precisando de ir embora e
vamos supor... cada mês de aula é 4,5 dias de cadeia a menos pra você tirar...
então isso é um benefício tão grande que não tem como explicar...porque por
vontade própria eu mesmo não viria...eu penso dessa forma no meu caso
52
Detalharei essa questão no próximo capítulo.
95
mesmo... nossa esqueci o que ia falar... ah! Se não tivesse a remição e não
fosse obrigatório estudar...”
No Brasil, conforme já salientei anteriormente, a desfederalização do Direito Penal fez
com que a Lei de Execução Penal fosse interpretada de muitas maneiras. Nos estados do Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul, por exemplo, assumiu-se a frequência à escola no interior dos
presídios, como contribuição para a remição da pena. O estado do Rio de Janeiro foi pioneiro
com propostas educacionais para o cárcere, mesmo antes da LEP (1984). Suas atividades
educacionais delinearam-se desde 1967. Isto significa que para o restante dos estados brasileiros
a remição de pena por estudo era praticada dentre divergências no Sistema Judiciário, já que cada
juiz interpretava a seu modo.
Portanto, podemos afirmar que a inserção da discussão da remição de pena por estudo
dentro do sistema prisional com a recente Lei Federal abre um campo discursivo que produz ecos
no currículo da escola da unidade prisional. E seus efeitos de sentido são sempre imprevisíveis e
são constantemente criados e re(criados) por quem vive esse cotidiano, conforme os relatos dos
alunos nos indicaram.
“Não existe transição e sim ruptura” (Leão 13/03/2013)
No início do capítulo destaquei alguns avanços no campo normativo para a educação
prisional no Brasil. Neste sentido, faço salientar para efeitos do foco de minha pesquisa a
publicação do documento intitulado: “Diretrizes nacionais para a oferta da Educação de Jovens
e Adultos em situação de privação de liberdade em estabelecimentos penais”, pelo Brasil (2010),
após um conjunto de debates realizados entre pesquisadores, representantes das Secretarias de
Educação, órgãos responsáveis pela administração penitenciária e organizações não
governamentais através dos Seminários Regionais envolvendo treze estados brasileiros. Sendo
assim, as discussões trazidas através destes seminários culminaram no Seminário Nacional, com
representantes de todas as unidades da Federação. Com isso, foram produzidas sugestões para
que o Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP) elaborasse o
documento aqui destacado. O objetivo desta Diretriz é “apresentar elementos para a definição de
uma política macro e não para particularidades regionais e/ou institucionais que deverão ser
96
resolvidas localmente à luz das orientações contidas no Parecer e na Resolução” (nº2
19/05/2010). A Diretriz se preocupa em delinear ações macro porque como já descrito é função
de cada Estado organizar sua política. E sendo assim, mesmo com os avanços constitucionais
para o campo da educação prisional, o que temos no Brasil são experiências estaduais dispersas,
fragmentadas com desenhos de todos os tipos quanto ao tipo de educação oferecida. No recente
texto intitulado: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
(MEC/SEB/DICEI/2013)53
, a questão da diversidade de alternativas educacionais para o cárcere é
sistematizada da seguinte maneira:
O Brasil ainda não possui uma diretriz nacional para a política de educação em espaço
de privação de liberdade. Portanto, cada Estado apresenta uma proposta para a
implementação de suas ações. Muitos sequer possuem uma política regulamentada para
estas ações no cárcere, evidenciando-se, em várias unidades, projetos isolados, sem
fundamentação teórico-metodológica, sem qualquer continuidade administrativa,
beirando o total improviso de espaço, gestão, material didático e atendimento
profissional. (BRASIL, 2013, p.310)
O documento recentemente publicado incorpora ao seu texto introdutório as duas
Resoluções (nº 2 e nº 3) que acompanhavam a publicação das Diretrizes Nacionais para a
Educação em prisões. (2010). Observa-se que os documentos não assumem uma compreensão
estrita de currículo prescritivo visto como grade curricular, lista de conteúdos sequenciais e
rompe com a ideia de que todos os Estados deveriam receber o currículo da mesma maneira.
Ainda sobre a organização do texto da Diretriz (2010), optou-se por organizá-la priorizando três
eixos, quais sejam:
Eixo A - gestão, articulação e mobilização
Eixo B - formação e valorização dos profissionais envolvidos na oferta da educação
prisional
Eixo C - aspectos pedagógicos
Torna-se importante então problematizar sobre as políticas de currículo enquanto
resultantes de processos de lutas pela definição de qual conhecimento é valido ou não dentro de
um espaço educativo. Nesse sentido, não defendo a separação binária de que o Estado seja visto
como produtor de políticas cabendo às escolas implementá-las, porém não descarto também a
53
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
Diversidade e Inclusão e Conselho Nacional da Educação.
97
relação de que toda política curricular está imbricada em processos sociais, econômicos e
culturais que são intermediados pelo Estado (LOPES, 2006). Ao não conceber essa relação como
binária aponto para a prática das escolas como locais de lutas para significação das políticas
curriculares afastando a ideia de encará-las como o lugar subordinado da implementação dessas
políticas curriculares, mas sim ocupando centralidade na produção de novos sentidos para essas
políticas. Assim sendo, procuro olhar para esta diretriz curricular para a educação prisional na
busca por compreender as teias de significações e colocá-la num jogo discursivo que “está
imbricado em instituições, processos econômicos e culturais, normas e técnicas que constituem as
relações sociais” (LOPES, 2006, p. 8).
Desta forma, os itens que serão sinalizados no texto da diretriz devem ser lidos como
terrenos de areia movediça, já que procuram instaurar direcionamentos que por onde passam
serão recontextualizados. Aqui a opção pela palavra recontextualização se aproxima a um
“telefone sem fio”. Esta é uma brincadeira em que uma palavra é dita pela primeira pessoa de
uma fila no ouvido da segunda e ao terminar de ser repassada às pessoas presentes na brincadeira,
a palavra original, primeira a ser pensada, muitas vezes torna-se uma nova palavra quando a
última pessoa da fila diz em voz alta qual é a palavra que ouviu. É com este sentido que vejo as
políticas de currículo.
Assim sendo, conforme a própria diretriz sinaliza, seu objetivo é orientar ações nacionais
a fim de garantir a oferta da educação prisional. Salienta-se, portanto, mais uma vez que a diretriz
precisa encontrar uma estrutura em cada Estado, tornando-a política de Estado e não ação pontual
e dispersa dentro da heterogeneidade do sistema prisional.
A questão que se coloca a partir desse ponto é a seguinte: após o Governo Federal, pela
primeira vez elaborar um documento que busque apresentar elementos e definição para uma
política macro, convoca para ações de uma política curricular de Estado. E neste caso, quais as
ações da política de Estado paulista para garantir a oferta da educação prisional?
A resolução nº2 de 19/05/2010 assegura em seu art.3º que a oferta da Educação de Jovens
e Adultos em estabelecimentos penais deve obedecer “às seguintes orientações”:
I- É atribuição do órgão responsável pela educação nos
Estados [...] (Secretaria de Educação ou órgão equivalente) e deverá ser
realizada em articulação com os órgãos responsáveis pela sua
Administração Penitenciária [...] p.29
98
Dois anos se passaram da publicação das diretrizes e em São Paulo a situação da oferta da
educação prisional permanecia sendo mantida pela FUNAP através dos monitores-presos. A
omissão para com a oferta de ensino dentro das prisões pelo Estado de São Paulo também foi
alvo de comentários dentro de um documento da UNESCO (2009), intitulado: Educação em
Prisões na América Latina: direito, liberdade e cidadania. Neste documento, se situa o Projeto
Educando para a Liberdade, o qual envolveu no ano 2005, diferentes secretarias54
e ministérios
para sua implantação. Foram convidados num primeiro momento, a comparecerem em Brasília,
representantes da Secretaria da Educação e da Administração Penitenciária dos Estados que
apresentavam um alto índice de população carcerária. O objetivo para esta etapa previa a
mobilização dos gestores acima citados para a realização do convênio de implantação do projeto
do governo federal. São Paulo obviamente foi convidado por sua representação nos altos índices
de população carcerária, entretanto transcrevo da nota de rodapé do documento o seguinte
comentário: Tocantins não estava na primeira oficina, mas se identificou com o projeto e
apresentou proposta que foi aprovada pelo MEC. O Estado de São Paulo, por sua vez, não se
interessou em realizar convênio, tampouco seminário regional (UNESCO, 2009, p. 28).
Gostaria de ilustrar essa blindagem do Estado de São Paulo com relação à articulação
entre esferas governamentais e como tem resistido à divulgação de informações sobre seu modelo
educativo prisional. Interessados nesta temática, a ONG Ação Educativa e outras organizações
lançaram uma nota pública (21/06/2012) sobre a falta de transparência da Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo, já que a diretriz já havia sido publicada há dois anos. Segue abaixo um
recorte da nota pública retirado do site55
da ONG Ação Educativa:
[...] vêm por meio desta NOTA PÚBLICA manifestar profunda insatisfação e
indignação com a reiterada ausência de resposta por parte da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) quanto ao pedido de informações
sobre política de educação no sistema prisional paulista a ser implementada com
base nas Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos
privados de liberdade em estabelecimentos penais (Resolução CNE/CEB nº
2/2010). Já foram solicitadas – sem sucesso – informações detalhadas acerca do
plano de implementação de educação de jovens e adultos no sistema prisional do
Estado de São Paulo em cinco ocasiões formais: (i) em reunião com o Sr.
Secretário de Educação do Estado de São Paulo, no dia 1º de setembro de 2011;
(ii) em reuniões públicas realizadas junto à Comissão de Educação e Cultura da
54
MEC- Ministério da Educação e Cultura/ SECADI- Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão, MJ- Ministério da Justiça/ DEPEN- Departamento Penitenciário Nacional. 55
www.acaoeducativa.org.br (Acesso em 23/06/2012)
99
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), nos dias 21 de
setembro e 09 de novembro de 2011; (iii) em petições que solicitavam
informações protocoladas junto à Secretaria de Educação nos dias18 de outubro
de 2011 e 18 de abril de 2012. Repudiamos publicamente, assim, o segredo que
paira sobre a política que vem sendo desenvolvida e discutida no âmbito da
Secretaria. Política da qual sabemos apenas informações genéricas, prestadas
informalmente, porque nunca foi nos encaminhado um documento em que
estivesse explícito o arranjo institucional proposto para a adequação do Estado
de São Paulo às diretrizes nacionais. Na última reunião que tivemos com a
Secretaria Estadual de Educação, fomos informados de que o modelo de
educação a ser seguidos nas unidades prisionais do estado seria através de
convênio com a FUNAP, com a contratação de novos monitores para
desenvolver as atividades educacionais. Tal modelo já vem sendo desenvolvido
no estado e afronta a legislação pertinente ao tema, de tal sorte que nos
mostramos integralmente contrários a perpetuação –e a ampliação- desta forma
de tratar a educação no sistema prisional. Contudo, como já afirmado, tal
informação não nos foi comunicada de modo oficial.Nesse contexto,
REQUEREMOS PUBLICAMENTE, uma vez mais, que a Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo, órgão responsável por elaborar e implementar uma política
de educação no sistema prisional paulista:m1. Torne pública imediatamente sua
proposta de política de educação no sistema prisional paulista a ser
implementada a partir das Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para
jovens e adultos privados de liberdade em estabelecimentos penais (Resolução CNE/CEB nº 2/2010). 2. Informe imediatamente como realizará a chamada pública para identificar as pessoas privadas de liberdade interessadas em estudar em 2012-2013. 3. Realize audiência pública para discutir com organizações, pesquisadores e interessados no tema o arranjo institucional e as diretrizes pedagógicas que visa a implementar na nova proposta de educação para pessoas privadas de liberdade.
Interessante notar que em 17/08/2011 no diário oficial de São Paulo através do Decreto
57.238, o governador do Estado Geraldo Alckmin institui o Programa de Educação nas prisões
(em anexo) conhecido como PEP, o qual permaneceu mais de um ano e meio sem ser
operacionalizado. Com isto quero dizer que o ano de 2011 e o de 2012 seguiram com a educação
sendo oferecida pela FUNAP através dos monitores-presos. No final do ano de 2012 ouvi
rumores, durante o trabalho de campo dentro do CR, de que o “Setor da Educação” seria
assumido pela Secretaria da Educação.
E assim aconteceu. No final do ano de 2012 encontrei no site das Diretorias de Ensino
(Guarulhos Norte e Bragança Paulista) a seguinte chamada: “Abertas inscrições para professores
interessados em atuar nas unidades prisionais em 201356
e nesse período publica-se a Resolução
conjunta entre Secretaria Estadual da Educação e Secretaria de Administração Penitenciária
56
www.derbp.com.br (Acesso em 27/12/2013)
100
nº1 de 16/01/2013.” Vale ressaltar como parte dos discursos que instauram práticas e
significações é preciso olhar com atenção sobre a maneira com que as inscrições para docentes e
os critérios são expostos no site. Nesse sentido, os critérios evidenciam os contratos temporários
exercidos por professores OFAS (Ocupação Função Atividade) contrariando o que a diretriz
enfatiza em seu art. 11 parágrafo primeiro: os docentes que atuam nos espaços penais deverão
ser profissionais do magistério devidamente habilitados e com remuneração condizente com as
especificidades da função. (p.30) Percebe-se que o critério utilizado para a contratação
temporária se assenta na possibilidade de redução de gastos por parte do Estado. Essa alternativa
tem sido realizada não só pela escola intramuros, como também na rua. A seleção temporária é
uma saída econômica viável, já que é muito mais barato para a administração pública manter o
professor por um tempo determinado do que mantê-lo regularmente contratado, pagando os
encargos e cumprindo com todas as obrigações da lei trabalhista. O que não é levado em conta
nesse tipo de seleção do docente são as desvantagens para o processo educativo que é
comprometido com a rotatividade dos professores o que compromete a construção do projeto
pedagógico em seis meses.
Durante parte das entrevistas que realizei em janeiro de 2013, o monitor-preso Leão me
contava o que estava se passando sobre o “Setor da Educação”. Ele estava preocupado porque o
outro monitor-preso Robinson conseguiu a liberdade e ele logo mais iria também. Deste modo,
preocupava-se em como seria a transição da FUNAP para a Secretaria de Educação e me mostrou
a Resolução conjunta (16/01/2013) entre Secretaria de Administração Penitenciária e Secretaria
de Educação para a organização do ano letivo de 2013 (em anexo). Foi quando Leão disse a frase
com a qual iniciei essa discussão: “Não existe transição e sim ruptura.” O que Leão
queria evidenciar é que a FUNAP encerraria sua parte na Educação e ficaria tudo para a
Secretaria da Educação resolver. Conta também que o CR havia recebido a visita da Diretora e
Supervisora da escola vinculadora estadual para conhecer o espaço e que a primeira orientação
foi a de que para efetivar matrícula e ser certificado ao final do semestre letivo, o aluno deveria
ter obrigatoriamente os seguintes documentos: RG, certidão de nascimento ou casamento,
histórico escolar. Alerta também que esses documentos devem estar legíveis para serem aceitos.
Essa foi a primeira indignação por parte de Leão que coloca: “Olha, eu to achando bom a
Secretaria da Educação assumir... mas espera aí... aqui é diferente de uma
escola da rua nesse sentido da documentação. A maior parte aqui não tem
101
esses documentos, tem gente que nem recebe visita de família, gente de outro
Estado... eu vou começar agora a fazer um levantamento da documentação
deles pra começar a pedir. Mas não podemos matricular sem ter esses
documentos.” Pude comprovar esta informação pela publicação da Resolução nº 64
(13/06/2012) quando adverte que:
Artigo 3º - Caberá à unidade escolar, vinculadora das classes de alunos dos
estabelecimentos penais, a incumbência de acompanhar, avaliar e regularizar os
atos escolares praticados, bem como expedir certificação de conclusão de
estudos ou de curso. Parágrafo único – Para expedição de certificação, a que se
refere o caput deste artigo, a unidade escolar vinculadora deverá: 1 – requerer do
estabelecimento penal cópia das avaliações semestrais realizadas pelos alunos,
cópia da carteira de identidade (RG), fichas de matrícula, históricos escolares e
demais documentos comprobatórios dos estudos efetuados, para fins de
verificação de autenticidade e posterior arquivamento.
A questão da documentação é algo bastante problemática para os presos. Em várias das
entrevistas que antecederam a “virada” da FUNAP para SEE foi apontado como uma
preocupação a regularização dos documentos que se perderam desde a entrada na prisão. Quem
explica esse processo é Silvio (31 a) “Engraçado... o Estado não te dá condições... ele
pede pra um aleijado andar... olha... você quer estudar... estuda... só que
precisa do RG... Acho que poucas pessoas sabem, mas todo mundo que vai
preso, a maioria dos documentos é tudo extraviado, entendeu... meu exemplo:
eu fui preso aqui em Bragança e na saidinha temporária eu fui até a delegacia
em que fui preso procurar meus documentos e fui fazer um Boletim de
Ocorrência... né... e no boletim, a mulher digitando e tal e eu falei: olha eu fui
preso pelo doutor tal e meus documentos ficou com ele no dia e meus
documentos extraviaram no dia então to fazendo o boletim. Na hora do
delegado assinar, ele não assinou... falou que não poderia fazer um boletim
desse... então assim pra mim conseguir tirar meus documentos agora... vou
precisar de tempo... não é numa saída temporária que consigo resolver isso.”
A fala de Silvio evidencia um desconhecimento da SEE em lidar com a questão da
Educação Prisional. Criam-se as regras e não se discutem maneiras de resolver a questão. Silvio
conclui: “o que falta aqui é aquele cara interessado nessa melhoria né... porque
102
nós temos a Delegacia Seccional, se tem uma pessoa que vai lá e fala: nós
temos tantos presos aqui sem RG, e tantos presos que estão no semiaberto
perto de voltar pra rua e precisam acertar seus documentos... Pô... a intenção
não é ressocializar?”
Outro momento que pude vivenciar é quando chegou para o CR o calendário escolar. Os
monitores- presos se divertiam com a informação que constava: “Reunião de Pais”.
A fala de Leão nos indica que pensar o funcionamento da escola na prisão não pode
passar pela simples “cópia” do modelo educativo oferecido na rua, apagando todas as questões
que significam a privação da liberdade. Por exemplo, a problemática da documentação acabou
por impedir muitos alunos de iniciarem o semestre letivo. Deste modo, tive acesso aos relatórios
que disponibilizam a quantidade de presos estudando e os que estavam aguardando vaga. No item
aguardando vaga podemos considerar esses casos de documentação incompleta. Assim temos no
início de 2013 (fevereiro), oitenta e oito (88) presos estudando (entre Ensino Fundamental e
Médio) e noventa e dois (92) aguardando vaga. Três meses depois, em outro relatório temos uma
população prisional com duzentos e quarenta e um (241), dos quais noventa e dois (92)
estudando e noventa e cinco (95) aguardando vaga. Os números evidenciam os casos que não
possuem a documentação completa. Outra situação vivenciada neste início de semestre letivo foi
quanto ao processo de atribuição de aulas aos professores (OFAS), os quais foram chegando
devagar e o horário ficou preenchido somente no começo de abril. Em conversa com a professora
da Área de Linguagens e Códigos ela explica o porquê da demora na atribuição das aulas de
forma completa: “O Estado está com uma demanda enorme de aulas e não tem
professor, ainda mais prá cá que tem a resistência”.
As turmas foram montadas com os alunos que possuíam os documentos necessários para
frequentar as aulas. Num segundo momento, a partir de 7/2/2013 iniciou-se o seguinte processo:
o Diretor de Segurança e Disciplina fez uma fala com os alunos sobre “segurança e disciplina”.
No mesmo dia, houve uma reunião com os professores e a Diretora Geral do CR. No dia 8/2/2013
as aulas iniciaram-se e como “abertura”, um dos agentes fez uma fala sobre a questão da
“disciplina” (novamente), mas desta vez na frente dos professores. O monitor-preso Leão foi
orientado a “observar” alunos que não se comportam e passar para o funcionário. Mesmo com a
mudança da assistência educacional para a Secretaria Estadual de Educação perpetua-se o fio
condutor do estabelecimento penal na lógica educacional, como Claudio, (26 a) explica: “O
103
lugar aqui é complicado... pra falar em mudança assim... meio difícil né... não
dá pra ficar sonhando alto... esse ano tá legal... o pessoal tá gostando... Agora
com a mudança da FUNAP para o Estado... a parte do certificado anima a
pessoa porque até o ano passado a gente tava estudando, mas não sabia do
certificado... desanima... a turma sai e sem o certificado... vai ser válido lá
fora... a pessoa quer o certificado... isso animou bastante o pessoal... eu acho
que continua a questão da disciplina... não mudou muita coisa nesse sentido...
a gente vê que muitos tão mais interessado em estudar... eu por exemplo,
quase nem falo na aula... mas a gente vê uns e outros... porque sou galeria e
trabalho lá perto dos funcionários... mesmo sendo o professor da rua... a gente
continua como galeria tendo que observar o comportamento na aula... teve um
outro dia que foi pro castigo... essas coisinhas assim acontece... diariamente a
gente tem um probleminha... na cadeia... é assim... acho que tem gente que
falta parafuso... sempre tem os engraçadinhos... Eu acho que continua a
mesma coisa... a questão da disciplina... tem um ou outro que dependendo do
que falar... vai seguir adiante... e aí eles tem medo... porque aqui é assim... um
vendo todos e todos vendo um... continua assim... e depende muito de como a
pessoa escuta (galeria) e leva pra frente o que o cara falou.
Lembro-me que na semana em que as aulas começaram, lá estava eu no CR para
acompanhar essa mudança com relação à nova organização. Na entrada, encontro seu Manoel,
agente de longa data, com muitos anos de trabalho em unidades prisionais enormes, como o
Carandiru. Pergunto a ele se as aulas já haviam começado. Ele me responde: “Eu nem quero
saber disso! Isso é sua parte!” A fala de seu Manoel mostra o isolamento da escola dentro
da unidade prisional. É reafirmada assim a gênese da instituição penal perpassando por todos os
setores da prisão.
O espaço educativo prisional
“Sabe... quando eu vi que ia mudar da FUNAP pra Secretaria de
Educação e ia aumentar o número de horas de aula eu pensei assim: Será que
104
realmente eles fizeram isso pra realmente ensinar a gente ou só pra soltar mais
logo e desocupar o espaço que tá lotado... não tem mais espaço... onde eu tava
em Hortolândia não tinha espaço pra dormir não... eu já vim pra cá pensando
nisso... Pensar em colocar uma escola lá dentro? Como? Sem condições? Mas
eu penso que se é pra ensinar a gente realmente pra tentar mudar ou pra
soltar?” (Wellington)
A fala de Wellington (22 anos) coloca mais uma vez os jogos discursivos presentes na
configuração de um currículo para a escola do cárcere. Com isso quero dizer que a instituição
prisional demarca práticas discursivas sobre quem a habita e nesse sentido, o que entende por
conhecimento e como significá-lo. Desta forma também quando olhamos para o edital que
seleciona professores para a função da docência no cárcere vemos o quanto a Educação de Jovens
e Adultos não é levada à sério em nosso país e sobrevive de programas pontuais, dispersos e sem
conexão com a especificidade desta modalidade57
. E ainda, como a utilização de conceitos tais
como “ler, escrever e contar” defendidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (5.692/71)
continuam a produzir efeitos nas práticas do cotidiano da escola de jovens e adultos até os dias de
hoje. Mesmo com a mudança na nomenclatura com a nova LDB (9.9394/96) para Educação de
Jovens e Adultos, verifica-se que as marcas do Ensino Supletivo preconizado pela antiga lei,
guardam enunciados como o “suprir”, “reparar” um tempo perdido e mesmo a seleção de um
conteúdo “básico” a ser ensinado são eixos que perpassam as (poucas) investidas na modalidade.
Escolhi a fala de Wellington que problematiza a possibilidade de haver uma escola dentro
de uma unidade prisional e tenho a concordar com ele que uma escola em funcionamento dentro
das unidades prisionais paulistas é algo complexo. Complexo porque se trata da maior
locomotiva de produção de população prisional e sendo assim, a dimensão de sua organização
penitenciária é imensa. Abriga, conforme vimos no capítulo anterior diferentes tipos de unidades
prisionais58
, para diferentes tipos de regime de pena a serem cumpridas. Mesmo na unidade
prisional pesquisada, com sua estrutura menor, já foi difícil acomodar as (três) salas de aula para
a demanda dos alunos. Quando descrevi uma das salas em que as aulas aconteciam, evidenciei
que uma delas não havia janela. Lembro-me na época da pesquisa de campo, verão intenso
57
ALVISI, Cátia. Desenhos curriculares na educação de jovens e adultos: desafios plurais.
Universidade São Francisco, 2009. 58
De acordo com o site www.sap.gov.br o Estado de São Paulo contém cento e sessenta (160) unidades prisionais
divididas em diferentes modelos. (acesso em 17/09/2014)
105
(dezembro), aqueles homens reunidos num espaço pequeno, resolviam a sede com uma garrafa
pet coletiva cheia de água que rodava de boca em boca. Torna-se inviável por questões de
segurança, que os alunos saiam para beber água quando queiram. Desta maneira, quando
chegavam para a aula, já traziam as garrafas cheias. Ao calor insuportável, juntavam-se os ruídos
entre eles como que numa contagem regressiva para a aula terminar: “ai, falta 15’.” (se
referindo aos minutos). O que se verifica é que a prisão da maneira como foi pensada no século
XVIII cumpre seu objetivo de contenção e para isso foi pensada sua arquitetura e modos de
fabricar e disciplinar os corpos ali presentes.
Como inserir uma escola dentro dessa arquitetura? Quando dizemos a palavra escola
pensamos logo numa estrutura composta por gestores, funcionários, corpo docente, discente,
espaços físicos diversos (sala de professores, sala de leitura, secretaria e etc...), entretanto toda a
estrutura organizacional de uma prisão (sua rotina, seus tempos e espaços e a própria arquitetura)
não dialogam tranquilamente com aspectos do trabalho educativo. Ou melhor, podemos inferir
que a arquitetura da prisão tem sim uma proposta educativa, a qual viabiliza as relações de
disciplinamento que ali se estabelecem e que se assenta na marca do controle. O controle aqui
entendido como uma rede de micropoderes que não é apenas horizontal (do corpo dirigente para
os presos), mas também dos presos para a equipe dirigente e entre os próprios presos.
A questão arquitetônica dos estabelecimentos penais foi revisitada numa Resolução nº 3,
de setembro de 2005, que propõe editar e revogar uma antiga Resolução nº 16 de dezembro de
1994. Na Resolução de 2005, o Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária teve como objetivo “consolidar um novo marco na relação de cooperação entre o
Ministério da Justiça e as Unidades da Federação, no tocante às iniciativas de construção,
ampliação ou reforma dos estabelecimentos penais (p.2)”. De acordo com o documento, a
classificação das unidades penais baseia-se no que a Lei de Execução Penal dispõe em seu texto.
Portanto, não abrange todas as conceituações feitas pelo Estado de São Paulo.
Interessante notar que em seu Anexo V “Elaboração de Projetos Arquitetônicos” (p.23), o
texto pressupõe o seguinte:
A criatividade deve ser estimulada na elaboração de um projeto para
estabelecimento penal, porém há alguns aspectos que devem ser considerados
para que atinja o objetivo a que se propõe a edificação. (grifo meu) Deve-se ter
consciência da importância que tem a definição de uma linha de projeto que
poderá vir a facilitar a administração e manutenção do edifício proposto e,
106
consequentemente, influir no comportamento das pessoas que dele fazem uso. É
fundamental favorecer as instalações com um mínimo de conforto, procurando
soluções viáveis que permitam um grau de segurança necessário. (grifo
meu)[...] A princípio, todos os partidos são aceitáveis, mas terá que ser
comprovada sua eficácia quanto à funcionalidade e segurança. (grifo meu)
O texto discorre sobre as possibilidades de inovação arquitetônica, mas ao mesmo tempo,
deixa claro a todo momento que o objetivo final da contenção e segurança não devem se perder.
Por fim, finaliza que se houver quebra dos padrões arquitetônicos, estes devem ser comprovados
quanto à sua eficácia.
Mesmo não adotando a nomenclatura utilizada no Estado de São Paulo para a
classificação das unidades prisionais, é possível verificar a atenção dada pelo documento no que
se refere a prever a construção de salas de aula no que atende ao item das Diretrizes Básicas
Arquitetônicas intitulado como “módulo de ensino”. O módulo de ensino é caracterizado como
“espaço destinado às atividades de ensino formal, informal e profissionalizante e atividades da
comunidade com as pessoas presas” (BRASIL, 2005, p.66)
Sugere-se então que o módulo de ensino contenha: biblioteca, sala de aula, instalação
sanitária (pessoa presa), sala dos professores, sala de informática e sala de encontro com a
sociedade. No item sala de aula faz-se uma observação de área mínima de 1,50 m por aluno e que
a quantidade dimensionada seja para atender a 100% dos presos nos três turnos. As salas devem
ter capacidade para atender 30 alunos. E a observação realizada para a sala de informática é a de
que deve ser dimensionada para atender a 3% do número total de pessoas presas.
E isto tudo pode configurar o currículo? Defendo que sim, pois ao considerarmos todas
essas marcas colocamos numa rede questões que configuram modos de se fazer currículo e neste
caso demarcado pelas práticas de funcionamento do espaço da prisão.
Deste modo, olhar para a arquitetura não apenas como espaço construído a partir de
regras formais, mas como expressão de determinados discursos é o que propõe autores como
Viñao Frago e Escolano (2001). Para eles, é preciso olhar para a arquitetura escolar como “um
programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como
os de ordem, disciplina e vigilância [...]” (VIÑAO FRAGO e ESCOLANO, 2001, p.26).
Se pensarmos a prisão em sua estrutura panóptica e a construção da escola dentro dessa
instituição, é possível perceber que a “espacialização” (ESCOLANO, 2001, p. 27) tanto de uma,
como de outra organizam e facilitam uma economia do tempo e da rotatividade das tarefas. Por
107
exemplo, no Centro de Ressocialização as duas salas de aula ficam no mesmo corredor e para
acessá-las só há uma opção. Não existem possibilidades de criar novos itinerários a partir do
momento em que os presos estão no Anexo I. Da mesma maneira que para sair das salas, o
corredor nos leva sem saída ao portão em que os “galerias” são responsáveis pela tranca. Um
outro exemplo é a disposição que ocupa a cela do castigo (praticamente ao lado da portaria) e a
cela da triagem, a qual recebe os presos que chegam para serem observados antes de serem
colocados no convívio com os outros presos.
Circunscrever o currículo de forma ampla ultrapassando a ideia de guia curricular é uma
possibilidade de colocá-lo em meio a discursos que se adéquam para atender determinadas
demandas, urgências e modos de governar. Nessa perspectiva, a linguagem ocupa um lugar
central, já que a produção dos discursos sobre o currículo pode evidenciar suas conexões e
estratégias para fazer valer como Verdade este ou aquele tipo de conhecimento.
Nesse sentido, entendo o currículo como texto e como discurso dentro da escola prisional
como um dispositivo de governamentalidade. A governamentalidade é definida por Foucault
(2008) como:
O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os
cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica, embora
muito complexa de poder que tem por alvo principal a população, por principal
forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os
dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por “governamentalidade”
entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de
conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que
podemos chamar de “governo” sobre todos os outros- soberania, disciplina- e
que trouxe, por um lado [e por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série
de saberes. Enfim, por “governamentalidade” creio que se deveria entender o
processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da
Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-
se pouco a pouco “governamentalizado”. (FOUCAULT, 2008, p. 144)
Tomando como ferramenta o conceito de governamentalidade, é possível entender como o
Estado desde sempre procurou meios de controlar e corrigir condutas da população. Ao longo da
década de 70, Michel Foucault passa a usar o conceito apontando como um dos modos de agir
politicamente com alvo nos conjuntos populacionais. Essa preocupação também é o foco da
emergência dos novos discursos criminológicos conceituados como “nova penalogia” sinalizados
no capítulo anterior. (FEELEY; SIMON, 2012).
108
Logo vê-se maquinarias de poder que apontam novas maneiras de governar. E nesse
sentido, quando penso na emergência das Diretrizes Curriculares para a Educação Prisional
circunscrevo este documento como uma possibilidade de atuar sobre a população atendida,
controlando-a. E tendo controle sobre os corpos, automaticamente controla também seus modos
de ser e estar no mundo.
Outros pontos a que a Diretriz se refere também merecem ser destacados para que
possamos compreender como se instaura e se organiza uma política da Verdade para a
modalidade da Educação de Jovens e Adultos e como esses discursos que se organizam como
Verdadeiros compõem um currículo traiçoeiro. Traiçoeiro porque permite a construção da ideia
de que a Educação está sendo oferecida enquanto um Direito até para cidadãos presos, mas não
há preocupação com a qualidade do currículo desta oferta educativa. A qualidade do currículo
como possibilidade de problematizar os espaços, tempos, significados do conhecimento e acima
de tudo constitua um projeto que faça sentido à comunidade educacional. Entretanto, enquanto
esse projeto não é construído, pouco importa o que lá dentro se faz, e nos alerta Maeyer (2013,
p.42) que investir na educação prisional “não se trata de ajudar a passar o tempo ou fornecer uma
educação pobre às pessoas pobres.” E como para todo desenvolvimento de uma educação pública
e de qualidade passa por recursos destinados a ela, temos a EJA como o “primo pobre da
Educação”.
Vejamos a questão do financiamento:
Art. 3º (par. II) Será financiada com as fontes de recursos públicos vinculados à
manutenção e desenvolvimento do ensino, entre os quais o FUNDEB (Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, destinados à modalidade de EJA e, de forma
complementar, com outras fontes estaduais e federais. (p.29)
Todavia é preciso destacar que o valor-aluno da Educação de Jovens e Adultos é 36%
menor do que o valor-aluno do Ensino Médio regular. De acordo com a Portaria interministerial
nº19, de 27/12/2013, é previsto para um aluno do Ensino Médio regular/ano o valor de R$
3.792,36 e já para o aluno da EJA/ ano é 2.427,11. Outra questão séria quanto ao destino da
verba do financiamento da EJA é que normalmente os Estados e municípios acabam oferecendo o
Ensino Regular noturno por razões mercantis. Como o aluno da EJA “vale menos”, assumir a
modalidade EJA é uma perda quando se considera o repasse do FUNDEB. E ainda organizam-se
109
salas em período diurno que não são distinguidas como salas da Educação de Jovens e Adultos
(para fins de repasse) e com isso compromete-se o envio de material e possíveis recursos para a
modalidade.
Quanto aos materiais e modo de oferecer a educação:
Art. 5º Os Estados, o Distrito Federal e a União, levando em consideração as
especificidades da educação em espaços de privação de liberdade, deverão
incentivar a promoção de novas estratégias pedagógicas, produção de materiais
didáticos e a implementação de novas metodologias e tecnologias educacionais,
assim como de programas educativos na modalidade Educação a Distância
(EAD), a serem empregados no âmbito do sistema prisional.
Em conversa com os professores foi possível perceber que utilizam o mesmo livro
didático que já estava no CR, do semestre passado (2º semestre/2012). Trata-se do mesmo livro
em que os monitores-presos se apoiavam para suas aulas e trazem o seguinte comentário: “Eu
uso o livro da EJA do 9º ano para o Ensino Médio, não forço muito eles não”. E
me mostra uma cruzadinha que daria naquela aula e termina: “É meio infantil,
mas foi o que achei pra hoje”. Já para outra professora a seleção é feita com base no
critério considerado “o básico para cada série”. Os alunos durante as entrevistas também
trouxeram suas questões sobre o livro didático utilizado. Vejamos: “as questão do livro lá
...só por Deus... ce ficava fritando a cabeça num barato que nem vai usar no
seu dia a dia... não vai ampliar seu ritmo de vida” (Jhonatas) ou mesmo: “Pra falar a
verdade dos livros que eu uso, só uso um livro que é o não lembro o nome, o
verde59 lá... você chegou a ver... eu tava olhando ali e tem coisa interessante, só
que tem muito mais Português ali... Matemática tem muito pouco, e no caso
aquelas contas de Matemática ali é da primeira série e eu to na quarta série.”
(Edmilson)
Para Silvio, sua percepção é a de que os livros didáticos: “são muito fraco,
nossa! o conteúdo...acho que as próprias pessoas que fazem isso elas acham, já
acredita que nois não sabemos nada... sabe... tem umas perguntas muito
repetitivas, muito igual e são matérias de História... a gente estudou sobre os 59
Coleção Tempo de Aprender. vol 3. Multidisciplinar EJA- 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Ed.
IBEP e Base Editorial. 2ª ed.2012.
110
índios... tem coisa que dá pra ir muito mais a fundo do que simplesmente dizer
que eles fazem artesanato... quando entrou na questão dos mamelucos, aquilo
ali é coisa de muita profundidade, tem muita História aquilo ali e o livro te dá
pouco conhecimento, é muito básico, se você realmente precisa do conteúdo
deixa a desejar...”
Quanto a EAD- Educação a Distância, não pretendo me estender aqui sobre o assunto.
Porém, o que nos indica é que essa possibilidade seria a mais “fácil” pensando na complexidade
de colocar a escola em funcionamento dentro do cárcere. Digo isto considerando o entra e sai de
professores e a própria frequência de pessoas de fora na unidade. Então, analisando dessa
maneira, a do ponto de vista da rotina prisional, a EAD é muito bem vinda. Todavia, ao
considerarmos o foco nos aspectos pedagógicos, centralizar o oferecimento do atendimento
educacional nessa perspectiva (EAD) é contar com a autonomia e independência do aluno na sua
própria relação no processo de gerir sua aprendizagem. Desta maneira adotar a EAD como
possibilidade pedagógica central dentro da prisão é desconsiderar o perfil da população atendida
que possui uma história fragmentada de frequência à escola, cheia de idas, vindas e abandonos
para os quais as características exigidas não se coadunam.
Gostaria também de salientar o art.3º par. VII que prevê que a oferta do ensino seja
oferecida em todos os turnos. Em outras oportunidades do trabalho foi possível destacar o quanto
o peso de uma rotina dentro da instituição penal é a chave para o controle e seu funcionamento.
Assim, no 2º semestre letivo do ano de 2012, quando a responsabilidade da oferta educativa era
da FUNAP, a organização das aulas previa uma duração mais curta para o Ensino Médio (duas
horas). Desta forma, o Ensino Médio iniciava suas atividades depois do horário da contagem dos
presos (19:00) e troca do plantão dos funcionários que iniciariam o turno da noite. Como o
horário de “subir o ar”60
é às 22:00h, as aulas encerravam-se às 21:00h e não havia problemas
com a organização da rotina da unidade prisional. Com a mudança para as normas estaduais
(início de 2013), as aulas obrigatoriamente tem a duração de quatro horas e com isso alguns
impasses surgiram e até o momento ainda não foram resolvidos. Como consequência, os presos
que estão no regime semiaberto, isto é, trabalham fora da unidade prisional e retornam para
dormir, não tem como estudar no horário em que as aulas acontecem. (7:00h às 11:00h ou 14:00h
60
É o horário limite para pessoas de fora da unidade estarem lá dentro. E também é o horário em que os presos são
trancados nas celas.
111
ás 18h). Sendo assim, muitos dos alunos que frequentavam as aulas no semestre passado e que
trabalham na rua não podem frequentar a escola, já que mexer na rotina da noite numa unidade
prisional é algo que dificulta o trabalho dos funcionários, que são em menor número e assim... a
vigilância e o controle podem escapar aos dedos. Digo isto porque com a mudança das quatro
horas de aula, o horário provável para a aula da noite seria as 19:00h (depois da contagem dos
presos e troca de plantão de funcionários) e teria como término, o horário de 23h. Como já dito
anteriormente, no CR “sobe o ar” às 22:00h e com isso haveria ruptura com a rotina já muito bem
estabelecida com o foco na Disciplina e Segurança.
No final de abril de 2013, o monitor-preso Paulo, que ainda continua no CR, me mostrou
a nova iniciativa que foi proposta para resolver a sala de alfabetização que também não estava
funcionando, já que a responsabilidade pela oferta do Ensino Fundamental I é do município. Foi
montada uma sala com vinte e cinco alunos, na fase inicial da alfabetização e um monitor-preso,
que na rua cursava o terceiro ano em Pedagogia e demonstrou interesse em ministrar as aulas das
19:00h às 21:00h, na mesma lógica em que acontecia pela FUNAP. Internamente o nome do
projeto foi chamado de “Projeto Aprendizagem e Vida”. Tive a oportunidade de conhecer o
monitor-preso no dia em que estava organizando seu caderno de planejamento. No caderno,
colava atividades infantis para escrita do nome das figuras. Pergunto se ele consegue entregar a
atividade que está colando no caderno para que cada aluno tenha a sua. Ele diz que não. Comenta
o projeto em questão e que os alunos possuem muita dificuldade, além de achar que o tempo é
pouco. “Eles vem só pra remição, mas a gente não pode comentar se não fica
ruim. Olha esses cadernos aqui (aponta para o caderno de planejamento).
Ninguém olha, não tem acompanhamento. Deveria ter. A Dra. (se refere a
diretora geral) e o diretor de segurança e disciplina deveriam ver o que acontece
aqui.”
Quando voltei para o CR no final do ano de 2013 para dar uma devolutiva da pesquisa
para os presos que ainda estavam lá, notei que o Projeto Aprendizagem e Vida havia sido
interrompido.
112
E afinal, o que acontece aqui?
Inicialmente pensava encontrar muitas diferenças entre a escola da prisão e a escola “da
rua”. Porém ao longo da participação nas aulas e o convívio com os alunos, notei muitas
semelhanças principalmente no que tange à questão da cultura escolar. Tomo o conceito de
cultura escolar de Viñao Frago (1995) para a qual é preciso considerar todo o conjunto de
normas, práticas, ideias e procedimentos que se expressam nos modos de pensar e fazer o
cotidiano da escola. Nesse sentido, uma das questões que mais me chamaram a atenção foi o
formato da aula. Independentemente de quando acompanhei os monitores-presos e agora, com os
professores estaduais, a estreita semelhança no padrão da aula ministrada.
Quando buscamos compreender essa formatação da aula, vale ressaltar o impacto dos
métodos introduzidos e aperfeiçoados pelos jesuítas já na Idade Média. Um deles mais conhecido
como “modus parisiensis” foi um método próprio da Universidade de Paris que se centrava no
aluno e em sua atividade. Assim, “a partir da lectio ou expositio se suscitavam, por parte do
professor e dos alunos, as quaestiones e como um desenvolvimento delas, origina-se um diálogo
ou discussão-disputatio.” (NOGUERA-RAMIREZ, 2011, p. 74) Ernesto, 20 anos atualiza o
“modus parisiensis” com suas próprias palavras durante uma entrevista: “Primeiramente a
gente entra e está todo mundo conversando...aí entra o professor e dá “bom dia,
boa tarde ou boa noite”, aí faz a chamada... todo mundo responde...olha hoje a
gente vai falar sobre tal assunto..se tem livro pega o livro, se não tem passa na
lousa... agora eu vou explicar e já era... mais ou menos... e chega... chamada...
exemplos... corrige o exercício”.
Selecionei alguns trechos de aulas de que participei, não enfatizando diferenças ou
semelhanças se foi uma aula dada por um monitor-preso ou um professor estadual por não estar
preocupada em analisar a prática docente, mas sim socializar o (s) movimento (s) complexo e
singular vivido dentro das salas de aula em que estive presente. O registro aqui apresentado das
aulas constitui-se em mais um desdobramento curricular que ao ser organizado narrativamente
provoca sentidos e ilustra dinâmicas do que se entende por conhecimento na escola da prisão.
Aula de Inglês- Ensino Médio (14:00h)
113
Ao entrar na sala, a professora cumprimenta os alunos e diz que hoje a aula será de Inglês.
Faz uma breve introdução de palavras cognatas e passa na lousa uma lista de palavras em inglês
com o significado em Português. Lê as palavras em voz alta e pede para os alunos
acompanharem. Eles ficam tímidos e alguns se arriscam... Após, algumas frases são colocadas na
lousa com espaços faltando para que os alunos completem com as palavras anteriormente
dispostas na lousa. Ela circula pelos cadernos dos alunos e finaliza a aula com a correção coletiva
na lousa.
Aula de Língua Portuguesa- Ensino Fundamental I (7:00 h)
As palavras estavam na lousa desde o dia anterior. TORÓ/ MILHO/ QUILOMBO. O
monitor-preso pede para os alunos falarem para ele a sílaba mais forte para que possa grifar na
lousa. Os alunos têm dúvidas e se divertem com os erros. Um dos alunos comenta: “Ih! to
desligado”. O MP segue falando da acentuação, da nova ortografia e um dos alunos tenta
repetir: “Ah! Todas as proparoxítonas são acentuadas”. O MP pergunta: “O que quer
dizer QUILOMBO?” Um dos alunos responde de imediato: “Ah! É do tempo antigo!” Já,
um outro diz: “Tem a ver com quilômetro?”
O MP repreende e diz: “Nãoooo! Para!!! É o seguinte... e explica. Na lousa, outras
palavras: CAJU/ ARATU/ TATU.
O aluno mais novo ao meu lado que diz encontrar-se “meio desligado” olha para as
palavras na lousa com um olhar vago, distante. Passa os olhos pelas paredes da sala e nada
escreve. Enquanto isso, outro aluno com o dicionário na mão, busca o significado da palavra
“quilombo” e lê: “Refúgio de escravos”.
A aula segue: “CAJU... qual a sílaba mais forte? E Aratu? Francisco responda você:”
“TU”- responde o aluno.
De repente, sinto que o MP se irrita e entra no assunto: “Sandro, abre sua cabeça ae
participa da aula. Você tem problema e eu também tenho. Se você não mudar
aqui e não transformar essa experiência... já era! Sabe o que vai acontecer?
Você chegou agora... está se adaptando... vamos lá... para o exercício!! Próxima
palavra: “Torresmo”.
114
Os alunos em coro: “Ai que vontade de comer torresmo. Faz quatro anos que
não como um torresmo... nossa!!! Fala um deles.”
A próxima atividade do livro é proposta para ser realizada em duplas. Porém, isso é
interditado pelo MP e pede que os alunos realizem individualmente. E completa: “Olha gente,
se vocês ficarem bonzinhos, eu vou passar filme pra vocês.”
Os alunos guardam o material, já que “SUBIU” e saem.
Aula de História- 8º e 9º ano (16:00 h)
“Pessoal, hoje temos visita novamente. Vamos manter a disciplina.” Com
esta frase, o MP inicia a aula. A partir do grito do galeria “AULA!!!”, os alunos vão chegando e
pegando os livros em forma de corrente. Eu também recebo o livro.
“Vamos abrir na página 200 – tema: Os herdeiros da nossa terra. Vamos
seguir o exercício que é um questionário a partir da tela de Candido Portinari.”
O MP pede que um a um leiam as respostas já realizadas em voz alta. Uns não fizeram e outros
repetem a resposta do amigo da frente. O MP comenta: “Ele acha que me engana.”
Começa a conversa paralela na sala quando são interrompidos em voz de
repreensão: “A conversa subiu ae rapaziada”.
As perguntas que se seguem envolvem a resposta pessoal dos alunos. Um dos alunos é
chamado a responder quando diz: “Olha, eu posso até falar, mas é que eu penso de
outro modo. Não tem a ver com o estudo. Eu acredito que é porque Deus quis”.
O MP escuta e diz: “A resposta é o seguinte: estaríamos em situação melhor
se não tivéssemos sido colonizados pelos portugueses. Coloquem aí”.
A próxima atividade sugere que a sala se divida em grupos para apresentar uma
dramatização com os seguintes papéis: júri, promotor público, advogado e réu. A atividade é
pulada.
Tive a oportunidade depois de comentar com Leão sobre as atividades puladas e
interditadas por eles. Ele me explica que: “Você não consegue segurar, controlar.
Depois não dá pra continuar com a aula. Eu preciso controlar até o que eles
comentam sobre alguma atividade do livro. Eu tenho que ter uma autoavaliação
muito séria do que eu preciso e posso falar. Porque aqui dentro não tenho
115
amigos e alguém pode usar isso contra mim. Certa vez, logo que comecei a dar
aula aqui eu li uma história que tinha palavrão. Na hora que li, já me arrependi
e fiquei tenso pensando no que poderia acontecer. Assim, numa atividade que
pede “discuta com seu colega”, numa sala de aula “normal”, com outros
estudantes, tudo bem... mas aqui pulo e peço pra escrever (por escrito). Se
funcionário escuta barulho, não quer saber da didática da minha aula, quer
saber do livro e resposta no caderno. Outra que aconteceu também: no Dia
Internacional da Mulher, combinou-se que cada um leria sua poesia e ao final
bateríamos palmas aqui na sala mesmo. Com o barulho das palmas, o
funcionário veio aqui e ficou perguntando o porquê do barulho. Eu expliquei a
razão e ele responde: “Nunca vi isso acontecer.”
Aula de Ciências- 3ª e 4ª série (7:00 h)
Já de início, a primeira atividade pede que os alunos estejam em grupo para discutir o
tema da alimentação. A atividade é pulada.
O MP explica sobre a diversidade das dietas entre diferentes faixas etárias. A seguir, a
atividade pede que observem duas fotografias que ilustram uma família reunida e feliz, a típica
família Doriana!! Sentada à mesa, tranquilos saboreando os alimentos e a outra fotografia com
uma pessoa caminhando pela Avenida Paulista e comendo um sanduiche enquanto caminha.
A seguir, pede que os alunos respondam as seguintes questões no caderno:
a) Quais desses tipos de refeições você costuma fazer?
b) De quais dessas refeições você gosta mais? E qual é a mais barata?
c) Na sua opinião, qual das formas de fazer as refeições é melhor para sua saúde?
De repente, um grito do galeria para que o MP fosse terminar o relatório para a Diretora
Geral. Quando o MP sai, o aluno ao meu lado começa a conversar comigo contando de seu
processo de escolarização, que tinha dificuldade e que a professora batia nele com a régua. Que
depois que entrou pro mundo do crime, chegou até a roubar a própria escola em que estudou. E
finaliza: “aqui na cadeia, o ambiente é pesado. Para sobreviver aqui, precisa ter:
olho de águia, boca de siri e orelha de elefante.”
116
O MP retorna e inicia a correção com os alunos das questões e solicita a Edmilson que
responda. Sinto o aluno sem graça... faz uma pausa e responde: “Ah! Eu não fazia refeição,
era do jeito que dava, não tinha dia e nem hora”.
Mal o aluno termina de responder, dá o horário. Eles se retiram e o MP comenta: “Nossa,
eu pedi pro Edmilson refazer essa questão porque ele tinha escrito isso que ele
falou. Mas agora que lembrei que ele era morador de rua”.
Aula de Matemática- Ensino Médio (14:00 h)
A professora coloca contas de divisão na lousa e pede que realizem no caderno. Enquanto
isso me diz que tem uns livros na escola vinculadora que gostaria de trazer, mas eles tem espiral e
não é permitido entrar na unidade. Então, enquanto isso vai passando na lousa mesmo.
Dá um tempo para que realizem e percebe que alguns não estão fazendo. “Olha gente,
não é só prova que avalia. Eu avalio quem faz atividade aqui, que troca ideia e
participa.”
Inicia a correção na lousa das contas. Um dos alunos diverge do resultado e teima em
dizer que o jeito dele está certo. A professora comenta: “Olha eu já te disse pra fazer do
meu jeito. Mas se está fazendo do seu jeito, colega... então pelo menos faça
certo.”
A professora se irrita com o aluno visivelmente pela sua expressão facial. Vira-se para a
lousa e termina a correção.
A participação nas aulas contribuiu para que se afirmasse a convicção de que o conceito
de currículo neste trabalho procura ir além da relação entre técnica, eficiência e de uma cultura
comum que deve ser transmitida através de uma perspectiva de conhecimento universal. Assim
sendo, penso que o currículo é configurado por práticas discursivas que instituem o que pode e o
que não poder ser dito, o que deve ser trabalhado e o que deve ser interditado no espaço escolar
perpassando por representações do aluno ali institucionalizado.
117
Um giro no caleidoscópio: produção de documentos normativos como
dispositivos de poder
Se tomarmos como referência as sinalizações que Foucault aponta no livro: A ordem do
discurso (2006) é possível compreender que em toda sociedade a forma como se organizam os
discursos e como são distribuídos apontam para a constituição de modos de se dizer a Verdade
sobre o saber, e neste caso, sobre a educação prisional e seu currículo. A construção dos textos
normativos é imbricada em “poderes e perigos” (FOUCAULT, 2006, p.9) desejosos de dizer a
Verdade sobre a educação prisional e suas formas de funcionamento. Além disso, a escrita de
textos constitucionais e, portanto normativos são dispositivos imersos em relações de força que
recebem suporte institucional (Secretaria da Administração Penitenciária/ Secretaria de
Educação) para sua distribuição. A escrita desses documentos que produzem formas de falar e de
ver a educação prisional possibilitam criar e tecer pontos numa rede discursiva em que, elaboram-
se sentidos sobre o tipo de educação oferecida, para quem e como. Provoca-nos Foucault (2006,
p. 8): “mas o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”.
O perigo neste caso é o de compreender qual o (não) lugar ocupado pela modalidade da
Educação de Jovens e Adultos dentro da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. Se a
educação prisional será oferecida dentro dessa modalidade é possível estabelecer algumas
semelhanças com a maneira em que é realizada nas escolas estaduais da “rua”.
Em relatórios61
que abordam a demanda pela Educação de Jovens e Adultos é destacada a
queda de matrículas nos últimos oito anos nas redes estaduais. Para a pesquisadora da área Di
Pierro (2014) é assustadora a demanda e dramática a oferta oferecida. Vejamos: 16,5 milhões de
paulistas não possuem o Ensino Médio completo e 11 milhões não tem o Ensino Fundamental.
Nesse sentido, a autora destaca que a cobertura é muito reduzida, atingindo cerca de 1,6 milhões
de pessoas.
Ao assumir a responsabilidade pela oferta educativa prisional em 2013, a Secretaria
Estadual juntamente com a Secretaria de Administração Penitenciária publica em Diário Oficial
(17/01/2013) (em anexo) uma resolução conjunta orientando o início das atividades educativas
61
www.acaoeducativa.org.br (acesso em 30 de junho de 2014.). Com cobertura de apenas 10% da demanda,
Educação de Jovens e Adultos continua registrando queda de matrículas no Estado de São Paulo.
118
prisionais. As classes formadas nos níveis Fundamental e Ensino Médio são multisseriadas e
organizadas em semestres letivos que são denominados termos. Assim, temos classes formadas
por termos iniciais do Ensino Fundamental (6º e 7º anos) e termos finais (8º e 9º anos). E classes
multisseriadas compostas pelo Ensino Médio. Na unidade prisional pesquisada, as aulas do
Ensino Fundamental ocorrem no período da manhã e as do Ensino Médio ocorrem no período da
tarde. Temos aqui um primeiro ponto: um dos critérios de atendimento priorizados pela Diretriz
Nacional é que a oferta aconteça nos três turnos para que haja cobertura da demanda, já que
muitos dos alunos encontram-se no regime semiaberto e passam o dia fora da unidade,
trabalhando.
Quanto à organização curricular, a Resolução SEE/SAP prevê no art. 2º: IV- o
desenvolvimento de um currículo acadêmico centrado, fundamentalmente, na superação da
fragmentação de disciplinas, mediante a utilização de eixos temáticos. Porém, logo abaixo, no
parágrafo 1º se contrapõe apresentando uma divisão com aulas de 50 minutos de segunda a sexta
feira.
Dois anos antes da publicação conjunta que orienta o funcionamento da educação
prisional no Estado de São Paulo, foi publicado em Diário Oficial (17/08/2011), o decreto nº
57.238 (em anexo) que institui o Programa de Educação nas Prisões (PEP). Até o momento da
pesquisa de campo (início do 2º semestre de 2013), os professores colocavam que não havia nada
de diferente que não fosse a nomenclatura utilizada (PEP) nos documentos burocráticos entregues
à escola vinculadora.
No Diário Oficial, artigo 1º é colocado que o programa tem por finalidade oferecer ensino
fundamental, médio, profissionalizante e superior aos presos nos estabelecimentos penais.
Percebe-se, portanto apenas uma preocupação em diferenciar a nomenclatura (Programa) para
assegurar que o Estado está cumprindo seu dever de oferecer educação dentro da prisão,
entretanto, utiliza-se dos mesmos moldes da EJA oferecida nas escolas da rua. Destaco também a
nomenclatura utilizada “Programa de Educação nas Prisões” por acreditar que é problemático
inserir a educação prisional como um programa e não como uma política pública que atenda às
necessidades dos alunos privados de liberdade. Programas podem ser descartados a qualquer
momento e neste caso evidencia-se apenas a distinção de que algo diferente acontece no interior
das prisões, quando na verdade, o que temos é a réplica da Educação de Jovens e Adultos da
“rua”, já carregada de problemas desde as concepções de que seu sentido seja apenas alfabetizar
119
ou garantir o básico, até mesmo passando pela dificuldade financeira em investir qualitativamente
na modalidade.
Em conversa informal com a coordenadora da escola vinculadora pude confirmar que a
questão do Programa instituído é apenas a preocupação com a nomenclatura, pois de acordo com
ela, tudo é igual à EJA da rua.
Outra problemática da questão curricular é que a Resolução conjunta prevê no seu artigo
4º que o Ensino Fundamental e Médio sejam organizados por áreas e não por disciplinas.
Exemplo disso seria no Ensino Fundamental a área de Linguagens compreender as disciplinas de
Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna (Inglês ou Espanhol), Arte (com todas as
expressões artísticas) e Educação Física. Quando observamos a proposta da divisão do currículo
por áreas nota-se um avanço no desenho curricular proposto. Entretanto, a coordenadora me
explicou que isso é apenas para organizar a atribuição das aulas, mas o diário de classe é
preenchido pelos docentes separadamente para cada disciplina.
Formas de se dizer e constituir um desenho para a educação prisional através da produção
de documentos aqui entendidos como dispositivos de poder. Assim, (FOUCAULT, 2000)
entende dispositivo:
Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos. (FOUCAULT,
2000, p. 244)
Ao longo da escrita desse capítulo fizemos usos então dessa heterogeneidade que nos
apontou o autor. Se de fato, a concepção de currículo não é estancada aqui como repertório de
conhecimentos a serem transmitidos, interessa-nos então continuar observando as faces desse
caleidoscópio curricular para compreender como circulam outros significados que compõem
desenhos de uma realidade própria: a escola na prisão.
120
121
FACES DO CALEIDOSCÓPIO: MOVIMENTOS, CORES, IMAGENS...
Duas instituições em pleno movimento de funcionamento: a prisão e a escola. Uma se
re(fazendo) dentro da outra. Em meio a tantos protocolos típicos de uma unidade prisional, tais
como a contagem dos presos duas vezes ao dia, a hora da boia, a blitz, o bate grades e etc...
precisa considerar em mais um de seus protocolos de segurança, o acesso dos presos à escola. Por
sua vez, a escola organiza suas práticas educativas considerando o ambiente prisional e todos os
seus horários.
Esse entrelaçamento das duas instituições dentro de um mesmo espaço produz para quem
as ocupa, - e neste caso me refiro aos presos, que com suas entrevistas possibilitaram enxergar
através do tubo óptico do caleidoscópio - sentidos diversos atravessados pelas práticas dessas
instituições que se mesclam a todo momento.
Através da diversidade etária que compôs o grupo de entrevistados foi possível perceber
diferentes sentidos atribuídos quando questionados sobre a importância da escola. Para os mais
velhos que frequentaram pouco a escola em tempos atrás, guardam em suas memórias escolares a
disciplina e o rigor e querem a reprodução desse modelo educativo dentro da prisão. E mesclam-
se a essas memórias escolares o tempo vivido dentro das prisões. Diante disso, estabelecem como
eixo o que consideram importante manter na escola da prisão. A afirmação de Antonio62
(64
anos) coloca sua posição: “A escola precisa ter disciplina...o professor não pode
jogar piadinha e nem receber porque aí vira bola de neve. A escola aqui dentro é
mais severa, tem mais disciplina, não é isso? Aqui é mais disciplina, é mais
rígido... e aqui é pra ter uma finalidade só: estudar...quem não arcar com os
termos da unidade é punido...a moçada mais nova dá trabalho e acaba
arrumando pra cabeça...arrumou pega 10 dias de castigo.”
Certamente o peso que colocam sobre a disciplina nos relatos também é perpassado pela
questão de que se apropriam do discurso de que sabem que são cobrados, isto é a equipe dirigente
foca o trabalho no sentido disciplinar, da conduta dos presos. Isto significa que para os presos
com um tempo maior de institucionalização, a máxima: “preso bom é preso adaptado” é
62
Antonio encontra-se preso desde o ano de 1988.
122
interiorizada para fins de sobrevivência, já que sabem que quanto menos trabalho derem aos
funcionários, sua estadia pode ser menos longa e dentro de muitas aspas...mais leve.
Interessante notar que para os entrevistados mais jovens que já fizeram parte das políticas
de universalização do ensino e que chegaram à escola na idade correta, dois grupos apresentam
sentidos opostos sobre o que consideram importante na escola. Para parte desses jovens que
tiveram suas trajetórias escolares na Fundação CASA, a questão da disciplina se assemelha ao
foco que os mais velhos, como apontado acima, também estabelecem. Vejamos a opinião de
Maicon63
(21 anos): “Rígido!... pode falar a verdade mesmo? Tem que ser rígido
porque senão não aprende nada. E recorda: na Fundação fica guarda na porta
da sala. Eu vejo que a segurança está aqui pra te ajudar e não pra te
prejudicar...porque se você não seguir a disciplina...atrasa a vida.”
O “atrasar a vida” é o que reflete a máxima anunciada um pouco acima de que preso bom
é preso adaptado e logo entende que é preciso seguir as normas da casa para que não se
prejudique aumentando seu tempo de condenação. Com isso, me refiro a tipos de faltas64
que são
registradas e endereçadas para a Vara de Execuções Criminais e podem, dependendo do tipo,
atrasar a condenação entre 3 meses e 1 ano.
Por outro lado, o outro grupo de jovens que teve experiências escolares em “escolas da
rua”, porém marcadas por trajetórias truncadas (evasão e repetência) e com pouco tempo de
escolarização guardam dessa experiência memórias de um tempo positivo e feliz. Como se fosse
esse apenas um curto espaço de tempo em que tiveram sua infância garantida, já que ao longo das
entrevistas percebeu-se a entrada para o mundo do trabalho precocemente. E com isso procuram
trazer esses aspectos para o que consideram importante numa escola prisional. Na pesquisa de
Santos65
(2014) que trata dos sentidos das experiências escolares de mulheres privadas de
liberdade foi possível encontrar semelhanças quanto ao papel da escola na vida das mulheres
presas. A autora argumenta que a escola para essas mulheres operava como um espaço para
63
Maicon esteve na Fundação CASA desde seus 13 anos. Quando completou a maioridade migrou para o Sistema
Penitenciário. 64
Me refiro ao artigo 89 do Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo.(Resolução
Secretaria de Administração Penitenciária 144, de 29/06/2010. 65
SANTOS, Pollyana dos. Os sentidos das experiências escolares nas trajetórias de vida de mulheres em
privação de liberdade. (2014) 171 f. Tese (Doutorado em Educação).Centro de Ciências da Educação,Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2014.
123
diversão separando as alunas (mesmo que momentaneamente) das responsabilidades e deveres
para com o mundo do trabalho.
Edmilson66
(38 anos), em sua entrevista, parece elucidar essa relação da escola como
direito à diversão quando diz: “Mudar geral...essas carteiras assim...poderia colocar
umas mesas...pintar essas... tipo do prezinho de antigamente...tudo
colorido...não com florzinha...sei lá dá uma modificada...sei lá dar uma
pintada...colocar cores assim tipo...como eu posso dizer...colocar outras mesas
de madeira para quiosque...ficaria legal...alguns computadores...trazer um
vídeo game na hora do recreio, um baralho, um dominó...eu acho interessante.”
Nesse sentido, é possível afirmar que nesta pesquisa a questão geracional dos
entrevistados não trouxe elementos suficientes que nos permita explicar os diferentes sentidos
que atribuíam à escola como algo decorrente dessa distinção. Entretanto, o que parece mais
instigante é ver como os presos (independentemente da idade) percebem as duas instituições em
pleno funcionamento dentro do mesmo espaço (conforme já sinalizei no início) evidenciando que
para alguns (com mais tempo de vida em privação de liberdade) as práticas das duas instituições
se assemelham e são uma extensão de toda a maquinaria coercitiva e já para outros (com menos
tempo privados de liberdade) o “fôlego” de pensar um espaço que diferencie as práticas da prisão
para com as da escola.
“Olho de águia, boca de siri e orelha de elefante”. (Sandro, 20 anos)
Em certo dia de pesquisa de campo (09/10/2012), na sala dos anos finais do Ensino
Fundamental, os alunos estão com os livros em mãos realizando as atividades solicitadas. Quando
o último questionário é respondido, a atividade seguinte é pulada. O livro sugere que os alunos
sejam divididos em grupos para apresentar uma dramatização com os seguintes papéis: juiz,
promotores públicos, advogados e réu. A atividade é interditada. É possível perceber que muitos
alunos leem a comanda da atividade, mas em tom de cochicho para tentar passar despercebido.
Essa foi uma das atividades interditadas das que pude presenciar nas diferentes salas. Durante as
66
Edmilson é preso primário e fazia seis meses que estava detido.
124
entrevistas, procurei retomar em algumas delas as atividades interditadas com os alunos, os quais
procediam às suas análises do porquê achavam que a atividade havia sido pulada. Conversei
também com um dos professores que me indicava no livro um tipo de atividade: “Aqui pede
pra entrevistar um grupo, se reunir pra discutir. Eu digo pra eles: ‘O grupo que
você vai entrevistar e se reunir, sou eu: o professor.” Sobre essa questão, Jhonatas (19
anos) rebate: “Quando tinha essas atividades e ele (se refere ao professor) não
deixava a gente fazer em grupo...falava que era pra fazer individual...agora
como a gente vai fazer uma coisa individual que é pra ser feita em grupo? Então
você vai ter que pensar por você e por quem mais tá faltando? Ai nóis não
fazia...espera ele dar a resposta e nóis copiava...agora vai aprender o que
copiando?”
Antonio (64 anos) discorda de Jhonatas e coloca um ponto final no diálogo: “Grupinho
aqui não funciona”.
Já, para o aluno Silvio (31 anos) quando se recorda da atividade da dramatização coloca
de início: “Pois é...Justamente...aqui dentro não pode...porque foge da disciplina,
né...e era teatro...porque o que que acontece...aqui a disciplina você não pode
discutir, né? Então tudo o que possa gerar uma discussão, uma polêmica,
pula-se essa parte e vamos pra outro assunto, né...porque as pessoas também,
a maioria dos presos que vem pra cá...eles tem uma educação que é a que a
família pode dar, muitas vezes é dos revoltados porque vivia na
criminalidade...então a facilidade dele de sair do debate intelectual e ir pra
coisa mais grosseira é muito fácil...então uma atividade dessa que lá fora é
comum, um debate...porque lá fora tem que debater, defender sua tese...aqui
dentro isso pode ser muito perigoso.”
A questão do cuidado em se expor através do mau uso das palavras foi apontada como
uma preocupação para Wellington (22 anos): “Mesmo agora que mudou e tá com
professor da rua, as normas da casa interferem porque não tem a mesma
liberdade...porque na rua já tá numa aula e entra num assunto, num debate de
se expor...aqui já fica meio assim...pensa antes de falar...aqui tem as regras e
125
nem tudo pode fazer...então o que for fazer pode dar problema...então prefere-
se não fazer. Aqui dentro pesa mais”.
Diferentemente da Fundação CASA que o agente da segurança permanece o tempo todo
na porta da sala de aula, vale ressaltar que no Centro de Ressocialização existe a função dos
“galerias”, que retomando o já exposto em outros capítulos do texto, assumem a função de
funcionários e devem “zelar” pela ordem distribuídos ao longo dos corredores onde há tranca.
Funcionam como bodes expiatórios para os funcionários. E são alunos dentro das salas, mas
vistos pelos outros alunos presos como “galerias”. Isso acaba “pesando” como diria Wellington,
pois sabem que o preço da exposição pode “atrasar a vida ali dentro”. Silvio resume essa
questão: “Eu gostaria muito de dar minha opinião e sei que não posso que pode
ser polêmico e pode prejudicar...não só eu, mas todo mundo pensa isso
aqui...às vezes a pessoa faz o comentário porque tem a necessidade de soltar,
mas no mesmo momento já se toca...opa...to falando demais...tem que
lembrar”.
A questão da presença dos “galerias” dentro da sala de aula foi retomada por Marcos
Vinícius (20 anos) quando coloca que: “Aqui no CR é ruim porque tem os galeria que
estuda junto então você se sente mais preso...porque qualquer coisa aqui vira
falta e pode te atrasar”. Os “galerias” são alunos distribuídos ao longo das diferentes séries.
Então, em toda sala há um aluno que é “galeria”.
Como diria Foucault (2010) a disciplina e suas formas de exercer a diferenciação dos
indivíduos (os que seguem a disciplina/ os que não seguem a disciplina) coloca em
funcionamento um “pequeno tribunal” que hierarquiza a relação entre os próprios presos. Nesse
sentido,
temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados
no interior de um dispositivo único três procedimentos: o ensino propriamente
dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade
pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de
fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino:
não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é
inerente e multiplica sua eficiência. (FOUCAULT, 2010, p. 170)
126
De fato, o que os presos nos dizem é que a escola em funcionamento não se mostra como
um oásis perdido dentro da instituição penal, mas sim é preciso considerar toda uma realidade
extrapedagógica em sua organização que influencia na concretude do processo educativo
produzindo um tipo de aluno. A realidade extrapedagógica seria formada por “juízes em toda
parte.” E descreve Foucault, 2010, p. 288:
estamos na sociedade (e eu diria aqui na prisão) do professor-juiz, do médico
juiz, do educador juiz, do assistente social juiz; [...] e cada um no seu ponto em
que se encontra, aí submete o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas,
as aptidões, os desempenhos.
“Vovó, o Juquinha está chorando?
E por quê?
Porque eu mostrei como se fazia para comer o pedaço de torta dele.”
(trecho de livro ditado para os alunos dos anos iniciais durante a pesquisa de campo)
E o que fazemos com Juquinha? O subtítulo escolhido para iniciar esse trecho do texto
mostra uma atividade realizada em uma das aulas em que estive presente. A infantilização das
atividades é algo recorrente dentro das salas de aula de jovens e adultos (dentro da prisão ou
mesmo nas escolas da rua). Logo, a problemática da adaptação dos currículos para a EJA passa
não somente pela questão metodológica ou conceitual dos conteúdos, mas da representação que
se faz desse aluno jovem ou adulto, e neste caso, privado de seu direito de ir e vir, mas não
privado de sua liberdade de ter acesso ao conhecimento que lhe permita construir sentido na
relação do processo de ensino e aprendizagem. E nesse sentido, o choro de Juquinha por ter
perdido seu pedaço de torta não possibilitará sentidos nesse processo.
As perguntas durante as entrevistas permitiram afunilar para a questão do conhecimento e
de como os alunos analisavam essa seleção feita pelos professores para compor as atividades
diárias realizadas durante as aulas. Muito foi falado sobre o livro didático, por constituir ali a
ferramenta central para o exercício da docência e o recurso para a aprendizagem dos alunos.
127
Para os alunos, as atividades do livro não dão conta nem de prepará-los para os exames
nacionais67
, como o ENCEJA e ENEM. Discutem também a concepção das atividades
considerando-as básicas e pouco atrativas.
Foi interessante notar como problematizaram a questão por mim levantada acerca da
necessidade ou não de haver um livro específico para a escola na prisão. Ernesto (20 anos),
acredita que “é importante aprender o que está acontecendo, as atualidades, os
vestibulares, o que cai[...] a escola aqui deveria se aproximar mais da escola da
rua”. Celso (45 anos) compartilha com a opinião de Ernesto: “Em matéria de educação eu
acho que tem que ser igual, de lá (rua) quanto de cá... não sei se é minha
maneira de pensar... mas eu acredito mesmo que o que é passado lá tem que
ser passado aqui também porque um dia a gente vai estar do outro lado e a
pessoa tem que sair daqui e chegar lá fora e tem que estar preparada”.
A crítica de Jhonatan (19 anos) é a de que na prisão é tudo atrasado e compara que na rua
os alunos fazem uso de tablets e ali dentro o livro, lápis e borracha não contribuem para que se
adaptem ao “mundão” quando saírem.
Conforme vimos nos relatos, a preocupação de que a distância que as grades colocam
prejudique o retorno para o “mundão” é algo recorrente.
Entretanto, Silvio (31 anos), apresenta um outro olhar sobre a questão de ter um livro
específico e defende que: “Olha... eu sou a favor sim de um livro específico porque
aqui a gente parou no tempo... e tem atividades que a gente não pode fazer, que
não se argumente... que nem eu vou dar um exemplo: uma vez o Estado
mandou um vídeo, né, aulas de vídeo aí que falavam sobre a valorização
humana... a intenção maravilhosa... mas teve alguns tópicos que falavam sobre
crimes: estelionato, pichador, roubo, homicídio, crimes sexuais... tudo isso aqui
dentro é uma polêmica... e gerou uma polêmica que o professor desligou e
falou: “não dá... não dá...”
Entretanto, me parece que a questão do material didático é um eterno dilema quando se
discute uma proposta para a Educação de Jovens e Adultos, mesmo para aquela fora do presídio.
Muito se fala sobre adaptar à realidade dos alunos, mas afinal, o que significa essa adaptação?
67
Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos/ Exame Nacional do Ensino Médio.
128
Em minha pesquisa de mestrado (2009) verifiquei que essa adaptação passa pelo corte de
conteúdos considerados superficiais pelos docentes a partir do tempo limitado e pela concepção
que os professores têm dos alunos da modalidade em questão. Os enunciados tão bem
demarcados pela 1ª LDB (5692/71), os tais ler, escrever e contar também permanecem vivos no
momento de selecionar os conteúdos: a ideia de suprir conteúdos que os alunos não tiveram
acesso em idade correta, a questão do básico “ler, escrever e contar” impactam os currículos da
modalidade. Quando pensamos no ambiente prisional, autores como Freire (1995) e Gadotti
(1993) alertaram sobre a questão da adaptação de materiais enfatizando que a elaboração de algo
específico para o trabalho com sujeitos em privação de liberdade acarretaria discriminação.
Compartilho com a afirmação dos autores Freire (1995); Gadotti (1993) com uma
ressalva: primeiramente, a questão não é a de produzir um material específico para a EJA
prisional, porém é fundamental que o projeto político pedagógico de cada unidade seja elaborado.
Com isso quero dizer que o que se verificou na pesquisa é que a escola vinculadora faz seu
projeto político pedagógico, inclui a EJA, mas não contempla as salas de aula que mantém dentro
da unidade prisional. Normalmente, o projeto político pedagógico ainda é visto como algo
extremamente burocrático que deve receber o visto do supervisor e não conta com a participação
dos professores em sua construção. Vejo que alterar esse quadro traz uma grande possibilidade
para avançar na concepção de currículo e os modos de fazê-lo funcionar dentro do cárcere.
Todavia, os desafios para a elaboração de um projeto político pedagógico que saia do papel deve
priorizar:
A salutar complementaridade entre a legislação educacional e a penal (LDB e
Execução Penal) favorece a articulação entre políticas setoriais (educação,
trabalho, saúde, segurança pública, serviço social), potencializa a sinergia entre
duas ciências (pedagogia e direito penitenciário) e mobiliza distintos campos
profissionais (professores/agentes penitenciários) em torno de objetivos comuns.
(SILVA, 2011, p. 3)
Assim, o que a escrita de um PPP “vivo” circunscreve é o que a Diretriz Nacional
(Resolução nº2 de maio de 2010) já direciona em seu art 3º, inciso VI sugerindo que a oferta
educativa esteja articulada de maneira intersetorial. Coloca-se aí a necessidade de que diferentes
Secretarias (Justiça, Administração Penitenciária, Educação, Desenvolvimento Social e etc...) se
129
abram ao diálogo e estejam realmente envolvidas para escreverem a educação prisional com uma
visão mais global deixando de ter apenas o foco na escolarização marcada pela lógica disciplinar.
De fato, o que os alunos presos reivindicam é uma escola que, de certo modo, seja um
pedaço do “mundo lá fora dentro dos muros”. Querem o acesso à informação, atualidades, e
nesse sentido, reivindicam também preparo para seguirem a escola da rua quando postos em
liberdade. Entretanto, o argumento de Silvio acima (defendendo o material específico) nos faz
pensar nas atividades interditadas, julgadas inapropriadas e vistas como verdadeiras “bombas
relógio”.
Durante as entrevistas pude observar também que os alunos questionam a maneira como o
planejamento acontece. Se sentem à parte do processo educativo e julgam que é preciso por parte
do professor compartilhar o que estão fazendo e para onde vão. Manoel (26 anos) explica o que
acontece: “Eu presto atenção em tudo. Aí o professor chega na sala e faz a
chamada... e vai falar a matéria que ele vai fazer... vai dar o início, o
procedimento... mas tem muitos professores que eu peguei que nem sabe o
início... não sabe por onde continuar”. A fala de Manoel nos mostra algo além do
problema do livro didático.
Conforme já apontado, a rotatividade dos docentes por conta dos contratos temporários
não permite que um planejamento seja efetivado e que aconteça um processo de ensino e
aprendizagem com sentido.
Uma questão que apareceu nas entrevistas quando lhes foi pedido que analisassem ou
fizessem sugestões sobre o ensino, o material didático e o tipo de escola oferecida é que ao
mesmo tempo em que fazem suas análises próprias, ao final sempre reproduzem o mesmo
discurso: “to viajando né... a gente tá na prisão”. Obviamente que sabem muito bem os
limites da escola frente ao exercício de todos os dispositivos de poder e coerção da prisão. É
preciso destacar que em apenas uma entrevista a educação aparece como direito a ser assegurado
pelo Estado. De um modo geral, é como se a educação fosse uma regalia ou um benefício que
está sendo ofertado.
Dessa maneira alguns dos entrevistados assumem uma postura de achar que tudo está
excelente e não tem nada a mudar. Os que se arriscam a pensar em mudanças...logo são
interceptados por suas vozes interiores dizendo: “Estamos no ambiente prisional...tem
que ter noção e disciplina. (risos) (Manoel, 26 anos).
130
Qualquer que seja o material destinado à modalidade da EJA e neste nosso caso que
tratamos da educação no cárcere, este não pode ser visto como o responsável pelo “sucesso” ou
pelo “fracasso” do processo educativo. É fundamental a formação dos professores e que sejam
efetivadas condições de trabalho em equipe. Uma sugestão prática seria que os professores
pudessem semanalmente cumprir a hora de trabalho pedagógico na unidade prisional para que
discutissem os problemas advindos do cotidiano. Mas não é o que acontece: os professores
cumprem o horário na escola vinculadora junto aos outros docentes e perde-se valioso momento
de problematizar o uso do livro didático e o planejamento. Para a pesquisadora da área Pierro
(2010) é necessário investir numa sólida formação com profissionais que “tenham acumulado
experiências e conhecimentos sobre a aprendizagem das pessoas jovens e adultas”. E ainda: há
que se investir na formação de um quadro estável de profissionais “para reverter a situação de
despreparo profissional dos educadores que a ela se dedicam.” (p.16)
Outros livros... outras leituras...
No Centro de Ressocialização a biblioteca divide espaço com uma sala de aula. São sete
estantes de aço com um acervo composto em sua maioria por doações das igrejas que realizam
suas atividades ali dentro ou mesmo voluntários que passaram ao longo dos anos pela unidade.
Ao lado das estantes existe um comunicado enfatizando a proibição de se mexer nos
livros sem a autorização de um funcionário. Assim, as estantes com os livros também cumprem
uma outra função: servir de separação para um pequeno espaço em que constava um computador,
uma cadeira e uma pequena mesa improvisada.
A FUNAP (Fundação Profº Doutor Manoel Pedro Pimentel) mantém um monitor-preso
para a organização da biblioteca e controle dos livros emprestados. Pude observar que os presos
com interesse no empréstimo dos livros procuravam realizar o empréstimo rapidamente antes do
início das aulas. A distribuição dos livros quanto ao gênero nas estantes fica a critério de cada
monitor-preso que passa pelo Setor da Biblioteca. Assim, os livros de poesia são facilmente
localizados (provavelmente pela estrutura em versos) e os de Direito Penal também. O restante
encontra-se misturado pelas estantes. Para Antonio, monitor-preso da biblioteca durante
131
realização desta pesquisa, a catalogação precisaria de material para separar por gênero, como por
exemplo, etiquetas coloridas e isso ali é um material difícil de conseguir. Colocou sua ideia de
fazer um caderno para que os presos elaborem sugestões de leitura ou mesmo registrem suas
opiniões sobre os livros lidos, entretanto, durante a pesquisa de campo...o caderno não ganhou
vida.
Acompanhei também os registros de empréstimo no computador em que o monitor-preso
Antonio organizava com o nome do preso e o título do livro. Acompanhando mensalmente esses
registros percebe-se que a circulação na biblioteca não passa de 10% da população total na
unidade prisional (que não passa de 250). Antonio enfatiza ainda a necessidade de melhorar o
acervo no “setor jurídico”, já que os presos reclamam muito que os livros são todos
desatualizados. Ele ainda distribui os leitores em três grupos: o primeiro é aquele que pega o livro
pelo título e devolve no dia seguinte, outros são leitores de desenhos e alguns poucos que pedem
para renovar porque não conseguiram ler até o fim.
A Resolução nº 3 (março de 2009) que acompanha a Diretriz Nacional para a oferta da
educação prisional prevê em seu art. 5º que as autoridades responsáveis pela unidade prisional
devem propiciar espaços físicos adequados às atividades educacionais, incluindo a biblioteca. O
artigo citado registra ainda que a atividade da biblioteca esteja integrada à rotina da unidade
prisional e que o preso seja incentivado a participar das atividades.
Ainda sobre o espaço da biblioteca, a Resolução nº 2 (maio de 2010), em seu art.3º inciso
III destaca a necessidade de atividades de fomento à leitura, implantação, recuperação,
manutenção desses espaços e investimento na valorização dos profissionais que nela atuam.
O que se percebe é que a Diretriz prioriza o espaço da biblioteca integrado às práticas
educativas da unidade e que esteja acessível aos presos dentro da unidade. Todavia, as questões
sinalizadas pela Diretriz são expostas pelos alunos que vivem a dinâmica do espaço e através de
seus relatos, nota-se uma lacuna grande entre os itens propostos pela Diretriz e o cotidiano do
espaço da biblioteca. Sobre o acervo e a falta de integração da biblioteca na unidade prisional,
Edmilson (38 a) sinaliza que: “Bom, mas aí é que tá esses livros aqui (aponta para os
livros da biblioteca)... pra que você quer ler esses livros aqui...tudo sem graça
[...] tudo livro antigo...são livros mais velhos que minha vó...eu queria é que
tivesse gibi. Agora o pessoal tá de saidinha, então a biblioteca tá fechada.” Com
relação à “saidinha”, Edmilson se refere aos presos que já tem o beneficio de passar feriado na
132
rua. Nessa época, a cadeia esvazia porque permanecem os presos que ainda não tem direito ao
beneficio. Desta maneira, a biblioteca poderia ser um espaço de leitura para os presos que ficam,
mas permanece fechada. Evidencia-se aqui um descolamento da biblioteca ao funcionamento da
rotina prisional, contrariando a necessidade de integrá-la, sugerida pela Diretriz.
Silvio (31 a) também volta a expor a questão do acervo desses espaços e também faz um
contraponto à questão que a Diretriz aposta com relação a valorização dos profissionais que
atuam nesses espaços. Vejamos: “Se você quiser alguma coisa a mais...tem uma
biblioteca láaaa no fundo com um velhinho que deve estar lá há uns 15
anos..com aqueles mesmos livros, a Revista Veja de mil novecentos e
tanto...então ali pra conseguir algo, a chance é mínima”.
Mesmo com todas as questões que os presos apontam sobre o funcionamento da
biblioteca, nota-se que a leitura passa a ter muitas funções dentro do espaço prisional conforme
os relatos a seguir nos indicam. Certeau (2012) nos ajuda a compreender os relatos através dos
conceitos de “lugar” e “espaço”. Assim, para este autor, o “lugar” é entendido como o fixo, o
estável. No nosso caso, o “lugar” = biblioteca, torna-se um espaço praticado pelos presos. E
assim, “espaço” como a possibilidade de romper o estável, de transitar e ocupar a partir da
experiência de cada um. Diria o autor que “a leitura (e digo, propiciada pela biblioteca), é o
espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos - um escrito.”
(ibidem, p. 184).
Desta forma, Marcolino (72 a) conta que ao ler o Código Penal, mesmo que desatualizado
descobriu que: “Eu achei coisas nesses livros...vi que no meu caso ... Não era pra
eu estar aqui ainda..o Código Penal diz...” Já, para Marcos Vinícius (21 a): “Gosto de
ler poesia...ajuda a sair do foco..vai pra outra dimensão..principalmente
quando não se tem o que fazer...Você foca no livro e presencia ele”. Além da
informação sobre os direitos na vida prisional, a possibilidade de sair um pouco do cotidiano
encarcerado através da imaginação é possível também que a leitura afaste de problemas advindos
da interação em áreas comuns. É o que nos traz Celso (47 a): “Futebol de cadeia eu
corro...o que me interessa é ler, fujo de jogo de
cadeia...dominó...baralho...porque uma coisa leva a outra...se uma pessoa
brinca ali comigo...já vai falar uma palavra ali pra mim...e vai dar problema...eu
prefiro pegar um livro”.
133
Ainda sobre a relação lugar/espaço que nos propõe Certeau (2012), é possível neste caso,
perceber que através dos relatos dos presos a biblioteca como um “lugar”, torna-se “espaço”, a
partir das experiências dos sujeitos que as praticam. Ou melhor, “existem tantos espaços quantas
experiências espaciais distintas” (p. 185) forem criadas.
Resumindo a escola a duas matérias: português e matemática... sempre foi
assim, né?” (Wellington, 22 anos)
Durante as entrevistas pude observar que quando perguntei sobre as disciplinas que
julgavam ser mais importantes e que mais ajudaram ao longo da vida, a percepção dos alunos
presos foi a de que a escola para eles se resume ao ensino das duas disciplinas básicas: Língua
Portuguesa e Matemática. Por isto, o subtítulo trazido no inicio que, de certa forma, sintetiza o
pensamento dos alunos entrevistados.
E sendo assim, para compreender e configurar o currículo na escola prisional é necessário
problematizar a construção de discursos que foram construídos como regimes de Verdade e que
ordenam e dirigem a prática de sala de aula e automaticamente, a prática docente. Neste caso,
evidencio os enunciados: “ler, escrever e contar”, defendidos pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (5692/71), a qual intitulava a Educação de Jovens e Adultos como “Ensino Supletivo”.
Somente com a nova LDB (9.9394/96) é que a nomenclatura muda de “Ensino Supletivo” para
“Educação de Jovens e Adultos”.
Certamente, que quando falamos da escola, sua finalidade passa centralmente pelos
enunciados acima. Entretanto, o que pretendo salientar é a lógica de “estabelecer as relações entre
esses enunciados e aquilo que eles descrevem” (VEIGA-NETO, 1996, p.185). E pensar: Quais os
efeitos de sentido dos enunciados “ler, escrever e contar?” para o currículo da modalidade
Educação de Jovens e Adultos na escola do cárcere?
O circuito dos enunciados “ler, escrever e contar” é perpassado por uma série de indícios
que podemos aqui rastrear: os alunos entendem a potência desses enunciados ao relacionarem a
importância que tem para o mundo do trabalho. Já os professores entendem que a EJA deve
formar para um conhecimento básico bem garantido (ler, escrever e contar) que forneça a esses
alunos jovens, adultos e presos, uma possibilidade de realizarem essas operações num trabalho.
134
Por muitas vezes, o trabalho destinado a esses sujeitos quando saem da prisão é um trabalho
precário que incorpora uma mão-de-obra jovem desqualificada e/ou adulta pouco escolarizada.
Ao carregar o estigma68
de “presidiário” a oportunidade de trabalho estará quase sempre
condicionada a péssimas condições. Essa necessidade de garantir o básico (bastante comum nas
organizações curriculares da EJA) parece ter tido bastante impacto nas formulações de políticas
curriculares para outros níveis. Temos como exemplo, o Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa69
e também as escolas de tempo integral70
da Secretaria Estadual de Educação de São
Paulo. Nestas escolas, com o objetivo de “fortalecer o aprendizado de Língua Portuguesa e
Matemática”, disciplinas como História, Geografia e Ciências foram extintas até o 3º ano. Paro
(2011) faz uma crítica à maneira como os currículos tem se tornado cada vez mais verbalistas e
conteudistas. Desenvolve seu argumento no sentido de que com as mudanças na sociedade, as
novas demandas por direitos e reivindicações em pauta não encontram ecos num currículo que
amplie a seleção de conteúdos, numa perspectiva ampla de cultura. Sugere, por fim, que os
próprios temas transversais elencados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1996)
sejam entendidos como centrais juntamente às disciplinas tradicionais já conhecidas dos
currículos.
Chervell (1990) ao analisar a constituição das disciplinas escolares relata que existe uma
combinação de elementos que ligados às finalidades do ensino compõem seu lugar dentro do
processo do ensino e aprendizagem. Para o autor, os elementos seriam: “um ensino de exposição,
os exercícios, as práticas de incitação e de motivação e um aparelho docimológico.” (p. 207).
Sobre esse último elemento estão inscritas as avaliações de larga escala que contribuem para o
peso que as disciplinas ganham na formação dos estudantes.
A ideia do autor sobre as “finalidades do ensino” nos fazem aqui re (pensar) como a
Educação de Jovens e Adultos é entendida em nosso país. No caso deste trabalho a análise que
gostaria de evidenciar é que a finalidade da modalidade é construída discursivamente sobre a
representação que se tem desses alunos como sujeitos aos quais falta conhecimento. E nesse
68
Goffman em sua obra “Estigma” (1975) é o primeiro a olhar para o conceito a partir de uma perspectiva social de
construção. Assim, os “estigmatizados” são definidos e criados pelos “normais” dentro de um contexto em que
“normais” e “estigmatizados” são perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em
virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro.” (1975, p.148) 69
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é um compromisso assumido pelo Governo Federal, Estados e
municípios para assegurar que as crianças estejam alfabetizadas até oito anos de idade. (www.mec.gov.br) Acesso
em 11/01/2015. 70
www.ig.com.br 22/01/2013.
135
sentido é melhor garantir os conceitos básicos de um ensino que prioriza a linguagem num
sentido estrito (somente como codificação). Essa perspectiva em muito se difere do trabalho de
um expoente no debate sobre Educação em nosso país, ou seja, Paulo Freire. Freire (1997)
entende que a importância da leitura de mundo deve preceder a leitura da palavra. Desta forma, a
ênfase do processo de ensino e aprendizagem recai sobre atividades extremamente preocupadas
apenas com a aquisição do código alfabético desvinculadas de uma problematização maior da
função social da leitura e da escrita.
Gostaria de evidenciar aqui alguns trechos apontados pelos alunos que se referem às
disciplinas destacadas e o sentido que atribuem na perspectiva da utilidade do conhecimento
atrelada centralmente ao mundo do trabalho.
Para Antonio, 64 anos: “Eu era pedreiro e depois eu passei pra encarregado e
exigia muita conta por isso que eu falo pra senhora... eu me adaptei bem na
conta ... porque chegava final de semana e eu tinha que pagar um, pagar
outro..tinha que mexer com conta e não com Português... por isso eu me sai bem
na Matemática...Agora o Português eu não sou mal, mas eu engulo algumas
letras.”
Lenival, 46 anos: “Quando era conta nois interessava fazer conta, fazer
conta é bom...agora eu gosto mais de ler e escrever porque é uma coisa que
quando eu me acordei... porque conta é bom saber conta, mas conta não se
escreve não se lê se você quer mandar uma correspondência pra uma pessoa
a conta não vai fazer... quando eu me acordei eu quero ler e escrever pra mim
mandar uma coisa pra uma pessoa eu não preciso pedir pra um pra outro...
escreve pra mim porque ai quando eu peço pra pessoa escrever ele vai saber
tudo de mim das minhas coisas...”
Marcolino, 72 anos: “Ah! Foi aprender a escrever... porque eu andava de
ônibus e chegava no lugar, no guichê e se não soubesse ler... pra comprar a
passagem... e isso foi bom demais pra mim...”
Moises, 33 anos: “É a de escrever... como é o nome mesmo?
Português...acho importante pra preencher um currículo pra trabalhar..”
Silvio, 31 anos: “A Matemática, né... acho que ela tá em tudo... e é uma maneira de você
mostrar sua inteligência...” ah o Português também é muito essencial porque você
136
falar é uma ótima carta de apresentação... é quando eu fui na última audiência
eu ganhei uns 20 pontos (risos) eu acredito a maneira como você fala, como
você coloca as palavras, se de expressar, de se comunicar e passar aquilo que
você quer... conseguir fazer com que as pessoas entendam aquilo que você
quer dizer... muitas vezes a pessoa que está encarcerada ela não consegue
chegar nos seus objetivos porque ela não consegue se expressar, ela não
consegue... ela vai num atendimento com o advogado, ela pede três
atendimentos porque ela não sabe exatamente o que ela quer, até ela
descobrir...então assim a escola ajuda não só no âmbito da educação, mas num
âmbito social muito grande”.
Tiago, 24 anos: “No meu serviço precisava fazer contas... tinha que contar
as coisas lá, né, serviço de produção”.
Dos dezoito entrevistados apenas um citou a disciplina de História. Ernesto (20 anos) teve
sua trajetória escolar sem evasão e repetência e chegou ao Ensino Médio. Considera que a
disciplina fundamental na escola é História por propiciar o entendimento das atualidades que
assiste na televisão e para saber o porquê vivemos desta forma hoje nos dias atuais.
As falas dos entrevistados reproduzem os enunciados tidos como regimes de verdade para
a antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação (ler, escrever e contar) e nos parece que essa
lógica ainda persiste no currículo da modalidade EJA (e dos muitos programas também
elaborados para outros níveis de ensino desde os anos noventa).
Essa construção histórica é também apontada por Patto (2007) quando retoma a
preocupação desde o Império em dividir os tipos de Educação para os diferentes alunos que a
compõem. Sendo assim, aos moradores de áreas urbanas precárias define-se uma formação com
ênfase em uma racionalidade instrumental. Wellington, 22 anos: nos faz uma provocação:
“Tudo fica focado no Português e Matemática..saber escrever perfeito... a
maioria das provas hoje é redação, mas e as outras matérias? Se não tem
conhecimento de nada, vai escrever sobre o que? Tem que saber fazer conta e
escrever bem... agora se não sabe de nada... o conhecimento onde tá?”
No caso dos colaboradores desta pesquisa, a trajetória escolar marcada pela evasão e
repetência pode, em parte, explicar a falta de sentido e mesmo a pouca relação que possuem com
as outras disciplinas que compõem a grade curricular da escola. Além do mais, a construção de
137
uma racionalidade instrumental com o conhecimento se deve ao fato de acreditarem e assumirem
o discurso de que é pela escola que se consegue uma ascensão social. Outra hipótese é a pouca
presença de outras disciplinas no cotidiano das escolas de ensino fundamental, como já apontado
através de Programas Federais e Estaduais.
A configuração curricular da escola no cárcere deve levar em conta, como já apontado em
outros momentos deste trabalho, todos os dispositivos, sejam eles Documentos Curriculares, as
práticas realizadas, as disciplinas, os professores, os saberes, os sentidos atribuídos pelos alunos e
sua relação com o conhecimento. Assim, observo que todos esses dispositivos:
Buscam o governamento sobretudo pelo discurso, [...] pretendem ensinar o
melhor comportamento e o que é melhor ou mais correto fazer, usar, etc. [...]
Entendendo-se discurso como um conjunto de enunciados que, mesmo
pertencendo a campos de saberes distintos, (Segurança e Educação grifo meu)
seguem regras comuns de funcionamento.Dado que, de um lado, tais
discursividades colocam em circulação determinados regimes de verdade e que,
de outro lado, tais regimes articulam-se segundo determinados saberes, o que
sempre está em jogo, [...] são o governamento e as relações de poder, ambos
sustentados discursivamente (VEIGA-NETO, 2007, p. 958).
Assim sendo, dentro da escola pesquisada, o currículo mostra-se também uma possível
chave de regeneração do homem preso, não pelas vias do conhecimento, mas pela via da
moralidade. Essa questão também foi apontada pelo Relator Especial da ONU71
(Organização das
Nações Unidas), o costa-riquenho Vernor Muñoz. Ao destacar os modelos educativos
predominantes dentro de prisões na América Latina faz referência ao modelo que entende a
educação prisional como “destinada a corrigir pessoas intrinsecamente imorais”. Isto é explicado
pelo monitor-preso Robinson quando diz que “o currículo deve formar pessoas que
reconheçam algumas palavrinhas tais como honestidade, boa vontade, ética.
Aqui eles não precisam só do aprender a ler e escrever, mas dessas coisas
também.
Podemos então depreender que nas escolas da “rua”, sua função é muitas vezes definida
como a forma de prevenir a criminalidade e isto foi salientado por Patto (2007) quando trouxe
71
Trata-se da seção: “Os modelos educativos e a ressocialização” que faz parte do Relatório sobre Educação nas
prisões brasileiras, elaborado por Denise Carreira (2009), já citado em outras partes da pesquisa. (Plataforma
Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. Plataforma DhESCA Brasil)
138
como exemplo bordões de uma campanha para deputado federal do ano de 2006 em que a frase
de efeito era então proclamada: “uma sala de aula a mais, uma cela a menos” (p. 244)
Mas e dentro da prisão? O que pode um currículo? A fala de Robinson nos aponta que o
currículo deve buscar a ressocialização dos homens presos pela chave da transformação de suas
condutas. E assim, a escola torna-se sempre um instrumento de algo, ainda me referindo aos
modelos educativos apontados acima por Vernor Muñoz (ou serve como terapia que busca a cura,
ou transformar imorais e ainda compreendida apenas como formação para o trabalho) e não como
fundamental para o direito humano à formação e ao acesso aos bens culturais produzidos
constantemente pela sociedade. Wellington (22 anos) faz referência em sua fala sobre a ideia de
um currículo voltado para a ressocialização do homem preso quando aponta que: “Aqui dentro
é ressocializar, né! Porque eu acho que é a parte que mais ressocializa é a
escola... porque já tá preso... Na rua seria evoluir”. Interessante notar que o sentido
que Wellington atribui à escola dentro do cárcere se diferencia da “escola da rua”, pois quando
coloca que a escola dentro da prisão deve ressocializar possivelmente se refere aos modelos
educativos já descritos acima (curar, corrigir condutas, explorar mão de obra barata).
A relação que estabelecem com as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática
mantém um estreito canal com o mundo do trabalho, como salientamos através das falas dos
colaboradores. Além do mais, são sentidos que foram construídos por cada trajetória escolar, mas
que evidenciam o acesso ao conhecimento de forma bastante parcial e carregada de uma
racionalidade instrumental. Essa mesma racionalidade foi também problematizada pelos presos
quando o foco de uma das perguntas da entrevista foi problematizar quais as expectativas que a
escola deveria atender dentro de suas perspectivas. É o que traremos a seguir.
O trabalho dignifica o homem?
O subtítulo escolhido para abrir esta parte do texto é carregado de contradições quando
analisamos a constituição dos tempos contemporâneos. Por isso optei pela transformação da
afirmação tão presente nos discursos de senso comum em forma de interrogação. Sabemos que a
relação escolaridade e qualificação profissional são os verdadeiros fetiches de discursos de
políticas públicas, organismos internacionais e fundos de desenvolvimento. As prescrições dadas
139
pelo Banco Mundial (1995) são claras neste sentido e sendo assim, para buscar financiamento, os
países buscam seguir as tendências. Vejamos:
Detalhados estudos econométricos indicam que as taxas de investimentos e os
graus de instrução constituem robustos fatores de previsão de crescimento
futuro. Se nada mais mudar, quanto mais instruídos forem os trabalhadores de
um país, maiores serão suas possibilidades de absorver as tecnologias
predominantes, e assim chegar a um movimento rápido de produção. (...). O
desenvolvimento econômico oferece aos participantes do mercado de trabalho
oportunidades novas e em rápida mudança. (Banco Mundial, p. 26-35)
Pesquisadores como Pochmann (2000; 2004; 2012) e Segnini (2000) questionam essa
relação de atrelar a escolaridade + qualificação profissional ao desenvolvimento de um país.
Argumentam que essa relação instrumental é, sobretudo uma relação social construída no interior
de cada sociedade reafirmando seus preconceitos e desigualdades com base na classe social, no
gênero, na etnia e no processo geracional.
No Brasil, temos avanços consideráveis na última década com relação à universalização
do ensino, todavia podemos questionar a qualidade de educação oferecida à população. Embora
em relação ao acesso pelos bens culturais signifique oportunidades de circulação ao mercado de
trabalho, é certo afirmar que não é qualquer formação que garante o sucesso do indivíduo nos
processos laborativos. Ademais ocorre, juntamente ao processo de universalização de ensino,
uma quantidade de “população excedente” (BAUMANN, 2005) para os quais mesmo portadores
de diplomas não conseguem ter espaço no mercado de trabalho. Os “excedentes” deixam de ser
assunto para investimento social e passam a ser tema de segurança pública, ou como diria o autor
acima, de “lei e ordem”. (p. 67)
O binômio do sucesso: escolaridade + qualificação profissional torna-se relativo quando
temos grande parte da população escolarizada desempregada. E mesmo entre os jovens, os quais
tem postergado a entrada ao mundo do trabalho por conta de investimentos na escolarização, a
dificuldade para conseguir emprego é expressiva e quando o conseguem caracterizam-se como
subempregos marcados por precariedades. Com isso me refiro à dificuldade do país em tornar
algo generalizado para a população, empregos formais, os quais se ocupem de prover garantias e
direitos sociais.
Desta forma, Pochmann (2000) sintetizou dados do IBGE e Ministério do Trabalho e
afirmou que desde a década de 80, a deterioração do mercado de trabalho passa pelo crescimento
140
do desemprego e também por trabalhos informais precários. Evidencia-se que os postos de
trabalhos são marcados por assalariados sem registro.
Dos sujeitos ouvidos nesta pesquisa pode-se afirmar que a sua maioria configurava o
cenário exposto pelo autor, pois indicaram informalmente em conversas nos diferentes espaços da
prisão (refeitório, biblioteca, escola) que no momento em que foram detidos trabalhavam fazendo
“bicos” ou mesmo estavam desempregados há meses.
A relação entre escolaridade + qualificação profissional por mais fragilizada que se
encontre é ainda a possibilidade atribuída pelos presos desta pesquisa como a possível solução
para parte dos infinitos problemas que irão enfrentar quando postos em liberdade.
Nas entrevistas, os presos foram solicitados a delinear expectativas com relação ao que a
escola deveria atender em seus processos formativos. Com o gráfico abaixo, percebe-se que os
cursos profissionalizantes assumem o eixo de suas expectativas no que a escola poderia atendê-
los enquanto privados de sua liberdade. Verifica-se também como segunda opção de modelo
educativo na percepção dos presos, a combinação entre a escola regular + curso
profissionalizante e por último, o interesse pelo modelo educativo oferecido atualmente centrado
nas disciplinas.
Gráfico 3 - Expectativas que a escola deve atender
141
Em pesquisa publicada pela Ação Educativa, coordenada por Mariângela Graciano em
2013, verificou-se semelhança no item que versou sobre as expectativas acerca do que os alunos
gostariam de aprender dentro da escola prisional. E afirma: “a questão referente ao tipo de curso
que os entrevistados gostariam de frequentar coloca os profissionalizantes no topo das
preferências (56%), seguidos da combinação dessa formação com a escolar (35%) do total, 9%
afirmaram se interessar por matérias escolares.” (GRACIANO, 2013, p.35)
Os dados da pesquisa descrita apontam ainda que em uma das unidades pesquisadas, o
índice de escolaridade era de 47% de pessoas que possuíam o Ensino Médio Completo. Desta
maneira, para essas pessoas que terminaram esse nível de ensino, apresentam-se os cursos
profissionalizantes como uma demanda sugerida. (GRACIANO, 2013, p. 36) Entretanto, para os
colaboradores do Centro de Ressocialização, mesmo com pouca escolaridade, centralizaram em
suas demandas (conforme o gráfico acima sinalizou), a questão dos cursos técnicos e
profissionalizantes.
Apesar de falaciosa a relação discutida até o momento entre a escolarização e a formação
profissional como bases para a ascensão social, é preciso compreender a necessidade dos sujeitos
privados de sua liberdade sem escolarização e sem certificação profissional e assim, o anseio de
que o tempo de cumprimento da pena colabore para sua saída para o “mundão” (como dizem) em
melhores condições. Ser posto em liberdade carregando por algum tempo o registro dos
“antecedentes criminais” inviabiliza e muito a contratação do “ex presidiário” como comumente
se refere a sociedade. De acordo com o art. 202 da Lei de Execuções Penais (LEP) esse registro
será retirado depois de cumprida ou extinta a pena. Porém, essa questão aparecia como
preocupação para os entrevistados ao explicarem o tempo que teriam que “pagar carteirinha”, se
referindo a livramento condicional. O preso que teve pena igual ou superior a dois anos pode
terminar o cumprimento de sua pena fora das grades devendo comparecer à Vara de Execução
Criminal, a cada dois ou três meses (tempo estipulado pelo Juiz) para assinar a folha de
comparecimento. Moisés (33 a), por exemplo, coloca: “Você sai com o currículo sujo...a
gente é discriminado... eu fico 1 ano de carteirinha quando sair daqui.” Já, em
outras entrevistas, presos relataram que teriam que “pagar carteirinha” numa média entre 2 a 5
anos. Qual o impacto dessa questão ao apostarem suas demandas na escolarização e
profissionalização dentro do cárcere?
142
Podemos inferir que o imediatismo no modo de entender o conhecimento se dá pela
necessidade primordial de se reinserirem através do trabalho quando postos em liberdade e no
modo de entender o papel dos diplomas. Edmilson (38 anos) enfatiza: “A escola não ajudou
em nada... só pra trabalhar registrado”.
E ainda sobre o livramento condicional verifica-se que não é todo preso que atende aos
requisitos impostos para obtê-lo. Além do mais, ao obtê-lo são muitas as condições (obrigatórias)
para fazer jus ao livramento condicional. Para fins da pesquisa, gostaria de salientar um dos itens
obrigatórios: o preso deve apresentar ocupação lícita e comunicar periodicamente sua ocupação
ao juiz. Lembro-me da preocupação de um dos entrevistados em estabelecer comunicação com
um primo que teria um pet shop e poderia arrumar o atestado de trabalho para ele quando
obtivesse o livramento condicional.
Como vemos o contexto que aguarda o preso quando posto em liberdade é cheio de
exigências e também parte da premissa de que o trabalho e estudo deve ser algo central para
provar às autoridades e a sociedade que se tornou um homem digno...já que conseguiu trabalho e
continua estudando fora da prisão. Os presos em condição de liberdade condicional podem remir
sua pena pelo estudo também fora da prisão. O cálculo continua o mesmo (a cada 12 horas de
aula, rime-se 1 dia da pena) apoiados na Lei nº 12.433/2011.
Interessante notar como algumas premissas defendidas pelo cristianismo e mesmo pelo
protestantismo encontram bases nos textos normativos penitenciários e nas práticas cotidianas das
instituições. Com isso me refiro ao lugar do trabalho para combater o ócio “visto como virtude e
torna-se o caminho religioso para a salvação” (JULIÃO, 2011, p. 202). Em nosso país, o trabalho
nas prisões foi inserido pelo Império e com a concepção de que apenas pelo trabalho seria
possível a reforma do criminoso.
Entretanto, a saída da prisão envolve tantas outras preocupações que, para alguns dos
entrevistados, o lugar da escola não terá a prioridade quando postos em liberdade. Assim pensam
Edmilson (38 anos), Jhonatas (19 anos) e Marcos Vinícius (20 anos): O primeiro diz: “Agora
saindo daqui pra escola eu não vou voltar, não tem o que faça voltar... não vou
mesmo. Sei que não é má ideia voltar a estudar à noite, mas no fim nunca
tinha vaga... quantas vezes eu ia e nunca tinha... posso até pensar em voltar...
mas...” E o segundo complementa: “Saindo... até passou procurar a escola, mas aí
pensei: Procurar a escola? Pra que? Eu ainda não descobri essa resposta...
143
mas no dia a dia vamos ver se descubro a resposta... até o momento não tenho
uma resposta sincera pra te dar... quando eu sair a escola fica por último”.
Marcos Vinícius apresenta as etapas que pretende cumprir quando for egresso:
“Olha...procurar escola eu pretendo, mas primeiro preciso acertar minha vida
né! Tenho que voltar a arrumar a minha casa e depois ver o que vou fazer
primeiro.”
Esse descontentamento para com o formato do modelo educativo escolar foi evidenciado
pelo gráfico trazido acima. Já, por outro lado, a preocupação com uma ocupação, com a
certificação que formalize suas habilidades profissionais através dos cursos profissionalizantes
foram o eixo central trazido por eles. A seguir, selecionei alguns trechos dos entrevistados, os
quais apostam na estreita relação instrumental de que os cursos profissionalizantes sejam a
milagrosa saída para sua reinserção, já que serão capazes de garantir o emprego.
Celso, (45 anos) : Olha... o SENAI veio aí e deu um curso... das 30 e
poucas que participaram, poucas delas farão proveito... que esses tipo de curso
assim... a gente vê o mérito e aproveita, mas tem pessoa que não... eu acho
que sei lá um curso profissional é bom... os dois se for um conjunto técnico e
profissional fica bom...
Claudio, (20 anos): Eu acho que na escola deveria ter curso também.
Edmilson, (38 anos): Olha seria maneiro, bem legal, se eu tivesse essa
oportunidade eu faria... de preferência... aqui não tem, só teve o de salgadeiro,
mas eu gosto da parte de mecânica, sempre quis fazer de mecânica, graxa,
sujar, desmontar motor, entrar embaixo de carro... se tivesse bem legal...
Seria uma boa também de veterinário... aprenderia algumas coisas e quando
saísse já teria algum curso, ficaria mais fácil com o diploma... Computador
também tá dando dinheiro... hoje em dia... podia montar um salãozinho ai e
mexer com computador... interessante... marcenaria trabalhei também um
tempo com isso... aí no caso pra escola aqui... até pro pessoal que tá aqui seria
melhor, o pessoal já ia... olha pessoal... tamo oferecendo vários cursos que não
é pago, é gratuito...e aí chegava na rua chega com o diploma e já ingressa no
trabalho, é bem mais fácil... que nem teve um tempo atrás aí que eu fiz um
144
curso pra parte elétrica... fiz pelo SENAI tenho o certificado e tudo... até esse
quando eu sair eu queria fazer uma coisa diferente: será que pode mandar
plastificar? Ou então fazer um quadro, por na parede e deixo lá...
Jhonatas, (19 anos): Ah eu acho que se o cara tá na cadeia e tá com a intenção
de mudar... como é que fala? Profissiona... (Cátia fala: Profissionalizante) Isso!
Profissionalizante... é melhor porque o cara vai estar focado e vai querer botar
em prática o que ele aprendeu aqui dentro... essa escola profissiona... essa daí
que você falou (risos) uma escola dessa faixa ajudaria muito, sairia daqui
formado, capacitado..
Manoel, (26 anos): Eu acho que muitos aí na escola..muitos chegaram preso
e não tem profissão... já tá um tempo pagando o que deve e parado... e um
curso profissionalizante seria ótimo... eu por exemplo abracei com as dez...fiz o
curso de garçom aqui.
Moises, (33 anos): Era bom ter o curso... ... porque aqui você trabalha e
quando sai pra rua você não tem a oportunidade que tem aqui dentro... e
deveria ter essa oportunidade lá fora também..trabalhar numa firma... era
bom se a gente pudesse continuar na rua... pra encaixar na rua... seria bom
a continuidade... a gente tá aqui e tem a oportunidade e sai na rua e não
tem a mesma oportunidade...tamo na roça... o que aparece tem que
encaixar... agora o curso de salgadeiro que teve... já é bom aprender a fazer
salgadinho... o curso é bom..eu não entrei nesse curso porque não sabia ler
e escrever direito... então não entrei..
Rafael, (30 anos): Olha a escola técnica melhoraria muito... com certeza...
até o interesse dos alunos... que é uma coisa difícil, né... melhoraria muito...
porque vai dar condições de vida e de trabalho..é... no caso uma escola
profissionalizante... poderia ser... ... o melhor seria escola técnica... porque
o interesse ia melhorar dos alunos ... o que acontece... eles vem pro curso
profissionalizante e vão querer se empenhar naquilo ali porque pode dar
uma nova oportunidade pra eles lá fora... porque uns só sabem vender
droga, outros roubar roupa do vizinho então ele vai ter uma opção... ele vai
145
poder chegar e dizer ... olha eu tenho curso, eu sei trabalhar com isso e
dentro desse curso ele teve assim, sei lá.
Percebe-se que a questão do curso profissionalizante se apresenta como a mais viável
alternativa que os sujeitos privados de sua liberdade encontram para alcançar os objetivos tão
bem defendidos pela máquina carcerária:
Reabilitação, reeducação, ressocialização, reinserção social e outros res são
termos equivalentes para designar a pretensão dos discursos bem intencionados
com vistas a alcançar os fins da chamada terapia penal: devolver a pessoa presa
à sociedade para que ela possa ser um cidadão útil e produtivo (SILVA;
MOREIRA, 2006, p. 13)
Apesar da importância na trajetória de todas as pessoas do acesso à escolarização e a
qualificação profissional, trata-se aqui de circunscrevê-las dentro de limites que as tornam
insuficientes para o complexo desafio da garantia do direito humano à educação dentro do
cárcere. O fetiche do binômio do sucesso (escolarização+ formação profissional) é apropriado
pelos sujeitos privados de liberdade como forma de resolver suas demandas pela sobrevivência
quando egressos do sistema penitenciário. Porém, é preciso problematizar esse discurso, já que
como salienta Ferretti (2004, p. 406), é preciso entender “em que medida estão dadas, em nossas
sociedades, as condições para a realização de trabalhos considerados qualificados e qual parcela
da população poderá beneficiar-se dessas condições.”
“Porque de grão de em grão a galinha enche o papo, não é verdade?”
(Edmilson, 38 anos)
Até o momento as faces do caleidoscópio curricular evidenciaram múltiplos desenhos que o
compõem, seja através da disciplina que é própria da instituição penal, ora pelas práticas
interditadas dentro de sala de aula, ou por espaços reinventados pelos alunos presos. Entre os
giros das faces do caleidoscópio também apontamos a relação instrumental com certas disciplinas
escolares e os binômios de sucesso (escolarização + formação profissional) encarados como a
possibilidade de ascensão social. Mas é preciso realizar ainda mais um giro para montarmos um
desenho considerado central na imagem do caleidoscópio que ainda não foi tratado: a remição da
pena por estudo.
146
Silva (2011) realizou uma análise de projetos de Lei (PL) tramitados por diferentes partidos
no Brasil desde 1993, e como incluem a remição da pena pelo estudo. A Lei de Execução Penal
nº 7.210, de 1984 previa até então que se fizesse a remição da pena apenas pelo trabalho em seu
artigo 126, estabelecendo que para 3 (três) dias de trabalho se desconte 1 (um) de pena.
Com o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública) com cidadania lançado pelo
Ministério da Justiça em 2007, a temática da remição da pena pelo estudo encontra possibilidades
de retomada frente aos órgãos normativos, já que a remição pelo estudo é uma das noventa e
quatro ações propostas. O programa72
é uma iniciativa de articulação entre as políticas de
segurança com ações sociais. Dentre os eixos que compõem o programa, a “reestruturação do
sistema penitenciário” é um deles e a questão da remição foi retomada através do PL 1.936/2007
(autoria do Poder Executivo) assinado pelo então Ministro da Justiça Tarso Genro. Estabeleceu-
se então pela Lei 12.433 de junho de 2011, a proporcionalidade de (1) um dia de remição de pena
para (12) doze horas estudadas. Nesse sentido, altera-se a Lei de Execução Penal e os artigos
referentes à questão ficam dessa maneira:
Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por
trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.
§ 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:
I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino
fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação
profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias;
II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.
§ 2o As atividades de estudo a que se refere o § 1
o deste artigo poderão ser desenvolvidas de
forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas
autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados.
§ 3o Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de trabalho e de estudo serão
definidas de forma a se compatibilizarem.
§ 4o O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a
beneficiar-se com a remição.
72
www.mj.com.br
147
§ 5o O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de
conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que
certificada pelo órgão competente do sistema de educação.
§ 6o O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade
condicional poderão remir, pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional,
parte do tempo de execução da pena ou do período de prova, observado o disposto no inciso I do
§ 1o deste artigo.
§ 7o O disposto neste artigo aplica-se às hipóteses de prisão cautelar.
§ 8o A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a
defesa.(NR)
“Art. 127. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido,
observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração
disciplinar.” (NR)
“Art. 128. O tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos.” (NR)
“Art. 129 A autoridade administrativa encaminhará mensalmente ao juízo da execução cópia do
registro de todos os condenados que estejam trabalhando ou estudando, com informação dos dias
de trabalho ou das horas de frequência escolar ou de atividades de ensino de cada um deles.
§ 1o O condenado autorizado a estudar fora do estabelecimento penal deverá comprovar
mensalmente, por meio de declaração da respectiva unidade de ensino, a frequência e o
aproveitamento escolar.
§ 2o Ao condenado dar-se-á a relação de seus dias remidos.” (NR)
A questão da remição da pena pelo trabalho foi posta pelo Código Penal Espanhol (art.
100) tendo como base o Direito Penal Militar da Guerra Civil (1937) e após redirecionamentos
foi incorporada ao Código Penal Espanhol (1944). Sendo assim, a remição da pena pelo trabalho
esteve primeiramente pensada no sistema carcerário como modo de produção de subjetividades
adaptáveis ao ambiente prisional e à lógica tão conhecida: “cabeça vazia, oficina do diabo”.
No Brasil, como vimos a remição da pena por estudo é bastante recente (2011), entretanto
em países vizinhos da América Latina, tais como Venezuela e Colômbia, já acontece desde o ano
de 1993. Como já explanado em outros momentos desse trabalho, o Direito Penal é
148
desfederalizado em nosso país. Sendo assim, é possível afirmar que para alguns estados
brasileiros, a questão da remição da pena pelo estudo já acontecia normatizada através de
portarias administrativas. Como exemplo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais,
Rondônia, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná.
Vale salientar que ao tratarmos de termos do vocabulário jurídico, como no caso, o
instituto da remição, é preciso fazer alguns alertas. A remição pode ser escrita com “ç”, mas
também com “ss”. Assim, as diferenças atribuem-se aos sentidos e as formas de uso. Vejamos: a
remição com dois “s” deve ser entendida como perdão da dívida e indulgência da pena. Nesse
sentido, é uma concessão exclusiva do presidente da República, de acordo com o art.84, XII da
Constituição Federal de 1988. Já, a remição, com “ç”, é uma forma de pagamento da pena através
do trabalho e no caso, recentemente, pelo estudo. Trata-se de uma contrapartida do preso para
atenuar seu tempo de cumprimento da pena, por isso encontra-se presente nos discursos dos
entrevistados a ideia de pagamento da pena.
A questão da remição por estudo é bastante controversa. Ao mesmo tempo em que
verificamos o avanço legal no reconhecimento do estudo como possibilidade de remição, não
temos como desconsiderar também o contexto em que se insere a temática. Assim sendo, da
maneira como está organizado o sistema penitenciário brasileiro e o sistema educacional prisional
assumido como responsabilidade da Secretaria Estadual de São Paulo desde o início de 2013, a
remição torna-se problemática já que:
Assim como a remição pelo trabalho não foi precedida nem acompanhada de
nenhuma providência eficaz no sentido de organizar o ambiente e as condições
para o trabalho dentro da prisão, a remição pela Educação também corre o risco
de sofrer da mesma precariedade e virar mera moeda de barganha e de troca,
introduzindo mais um mecanismo de retroalimentação da cultura prisional.
(SILVA, 2011, p. 91)
O alerta que o autor faz é algo que já está posto pelos alunos presos. A remição da maneira
como acontece, entendida como uma forma de cálculo realizado através da presença em sala de
aula e encaminhada para o Juiz cumpre apenas um papel de administração dos dias “pagos” da
pena com o estudo, entretanto desvinculada totalmente de uma autoavaliação do processo de
aprendizagem pelos alunos e pela equipe pedagógica que deveria acompanhar a rotina da
aprendizagem da unidade prisional. Nota-se nesse aspecto uma grande lacuna, já que como a
149
escola vinculadora está na “rua”, apenas os docentes é que vivem o cotidiano da escola. A parte
da gestão (direção, coordenação, supervisão) toma contato com o processo educativo apenas
através dos relatos dos docentes, já que visitas regulares na instituição penal não acontecem pela
gestão da escola vinculadora. E quando acontecem estão relacionadas a questões administrativas
entre a Direção do estabelecimento penal e a Direção da escola vinculadora. Além do mais, esses
encontros são realizados no anexo administrativo da prisão e não no espaço em que se encontram
as salas de aula.
Percebe-se então um esvaziamento do sentido da remição pelo estudo, pois a questão fica
extremamente circunscrita à presença em sala de aula (12 h) sem a conexão com o processo
educativo.
Penso que Certeau (2012) pode nos ajudar a compreender o instituto da remição pelo estudo
através dos conceitos de “estratégia” e “tática”. O autor usa o exemplo da colonização espanhola
na relação com os povos indígenas. Estes últimos, mesmo em condições de exploração
subvertiam a ordem que lhes era imposta pelos espanhóis e faziam-na funcionar sob uma lógica
própria aos costumes indígenas. Assim, “a tática é a arte do fraco”. (p. 95) e opera dentro do
mesmo campo que o inimigo (usando o termo de Certeau), o qual estrategicamente busca
instaurar um lugar próprio que possa ser isolado para exercer o comando, apesar de que o que se
busca é: “circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro.”
(p. 93)
O que nos interessa aqui é ressaltar os poderes invisíveis desse outro, no caso, o aluno preso
que usa taticamente o instituto da remição a partir do que o Estado estrategicamente postulou
como Lei. (12.433/2011)
Como Edmilson, 38 anos já nos adiantou o funcionamento da matemática da remição de
acordo com seu pensamento que abriu essa parte do texto: “Porque de grão de em grão a
galinha enche o papo, não é verdade?”, se referindo às 12 horas de estudo para se
diminuir um dia da pena, é possível inferir pelos discursos dos alunos presos que esta é a questão
principal que os move. Matematicamente suas vidas guardadas no objeto mais valioso: o diário
de classe que registra diariamente a presença em sala. E matematicamente passam os dias
fazendo cálculos, projeções que os lancem de um regime a outro ou também que os levem para a
tão esperada liberdade.
150
Willian, 21 anos coloca a remição ao lado da obrigação da escola, mas garante que é através
do “fardo” da presença diária na aula que sua mudança de regime vai acontecer: “Agora...
essa remição torna uma obrigação...o cara fala..vou pra escola mesmo porque
falta tantos dias pra mim assinar o semiaberto...então com a remição da escola
vai ajudar.”
Wellington, 22 anos expõe “a moeda de barganha e troca” colocada por Silva (2011) um
pouco acima no texto: “Se tira a remição aqui acaba a escola totalmente”.
A motivação é também evidenciada por Tiago, 24 anos: “Ah, a remição pra mim é
fundamental...com a remição a gente tem mais vontade de estar absorvendo
tudo aquilo e a remição te aproxima mais rápido da saída. E isso ajuda
demais...graças a Deus tem a remição, e se tirasse...os alunos que já nem tem
vontade de estudar ai não ia ter coragem de subir...da minha parte eu acho
assim...ia ser inválido o professor explicar as coisas.” Na mesma abordagem da
remição como motivação, temos o aluno Marcos Vinícius, 20 anos: “Ai que bosta! Só vou
na escola por causa da remição. Motiva.”
Jhonatas, 19 anos vai com o mesmo sentido da contagem matemática: Só pra remição
sinceramente...no momento é a remição. Se parar pra perguntar pra uns
aí...vão falar a mesma coisa...porque o cara não vai querer vir pra sala de aula
pra ficar escutando a pessoa ficar falando na cabeça dele e o cara não tá bom e
ainda vai se arrastar...mas a melhor coisa que tem a escola é a remição...aqui
dentro...agora se fosse falar pra você da escola da rua...é a comida..aqui agora
mudou a alimentação...antigamente era só cupim, cupim, cupim...você já
assistiu Pica Pau? Lembra daquele que ficou preso na ilha e falava: coco no
café, coco no almoço, coco na janta...vixi Maria meu pai!!!”
Como vimos, os discursos perpassam por diferentes táticas e modos de olhar para o direito
adquirido em forma de lei sobre a remição de pena pela Educação. Porém, mais uma vez é
preciso elucidar que ao passo que esse reconhecimento é dado para as horas de estudo, o Estado
ao abraçar essa demanda de movimentos sociais e intelectuais envolvidos com a temática
prisional, tem a oportunidade estratégica de administrar o caos penitenciário da hiperinflação da
151
população carcerária estampada no site oficial73
do Estado de São Paulo: “mais de 15 pessoas são
presas por hora no Estado e são feitas 371 prisões/dia”.
A Educação é prevista na Lei de Execução Penal como um dever que o Estado deve garantir
(ainda que no texto da Lei se faça referência apenas ao Ensino Fundamental apenas), entretanto
da forma como está oferecida, torna-se mais um dos serviços precários disponibilizados pelo
Estado para a população. E a remição atrelada à lógica penal, sob o ponto de vista “matemático”
de pagamento da pena é o eixo que corta toda a dinâmica da vida prisional no Centro de
Ressocialização. De acordo com Silvio, 31 anos: “O que acontece no sistema penal
hoje...o preso tá muito mais preocupado em ir embora do que conseguir nesse
tempo conquistar sua ressocialização.”
Certamente, a remição pela Educação projetada apenas nos moldes “matemáticos” (12 h por 1
dia da pena) reafirma e coloca o processo educativo como mercadoria, por isso escutarmos com
frequência “to pagando a pena”, expressão que carrega consigo uma carga de esforço. Se está
“pagando”, “recebe” a remição. Ou como completa Leão, 47 anos: está “cumprindo seu
horário”. Dessa compreensão utilitarista vemos também que o Direito Penal ao manter “com a
finalidade prática de facilitar a aplicação judiciária ou administrativa das normas” (SOUTO,
SOUTO, 1997, p.40) um isolamento nas variáveis dessa nova questão trazida pela Lei
12.433/2011, não prevê que se exigirá um diálogo entre as áreas envolvidas para que se possa
redimensionar o instituto da remição pela Educação de uma forma que não sirva apenas como um
jogo para acumular pontos.
Mas para que a remição pela Educação possa realmente ter um caráter educacional e não
meramente matemático, é preciso investir na elaboração de um currículo que somado a um
projeto político pedagógico em ação (e não apenas no papel) estabeleça junto aos alunos
objetivos a curto, médio e longo prazo. Faz-se necessário também organizar os portfólios dos
alunos para além das informações de prontuário criminal. Utilizar o portfólio como um
instrumento de autoavaliação do aluno que evidencie seu percurso na relação com o
conhecimento atrelado aos objetivos estabelecidos previamente. Além do mais, quando de sua
transferência entre unidades (ação rotineira na vida do preso), o portfólio educativo o acompanha
levando consigo as informações para a continuidade do seu processo escolar.
73
www.saopaulo.gov.br (acesso em 06/11/2014)
152
Vale ressaltar que o diálogo entre as áreas de Execução Criminal, Educação, Segurança,
Assistência, dentre outras que compõem o cotidiano do cárcere é algo fundamental que aconteça
para a concretização dos objetivos educacionais. Nesse sentido, não apenas manter salas de aula
em funcionamento nos finais dos muitos corredores que encontramos nas prisões e realizar o
registro da presença ou falta do aluno preso para fins da remição, mas estabelecer um trabalho
conjunto entre as diferentes áreas que devem trabalhar para o foco que possuem em comum: o
aluno encarcerado.
Os movimentos, cores e imagens produzidos pelos giros do caleidoscópio através dos
desenhos coloridos formados pelo tubo óptico (o olhar da pesquisadora) indicam que um feixe de
relações precisa ser considerado na configuração do currículo da escola do cárcere. E esse feixe
de relações exige que se problematize a atuação de diferentes instituições dentro de um mesmo
espaço (escola/prisão), com funções distintas e opostas e que caracteriza o sujeito privado de
liberdade ora como aluno, ora como preso. Muito mais do que a publicação conjunta entre
diferentes Secretarias (SAP/SEE) no Diário Oficial normatizando o processo educativo, é
fundamental que se circunscreva os discursos produzidos pelas instituições em jogo e quais seus
efeitos de Verdade sobre o rumo e a regulação da educação prisional.
Depois dessa incursão etnográfica pelo cotidiano de um Centro de Ressocialização chega o
momento de compor o desenho do mapa da viagem realizada nesta pesquisa. Para a ilustração do
desenho do mapa preciso tomar decisões. Afinal, os mapas dizem sobre lugares habitados e cada
marcação produz um sentido e uma representação sobre o que é feito. É sobre essa “viagem no
mesmo lugar, esse é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se desenvolvam também
em extensão. Pensar é viajar...” (DELEUZE e GUATTARI, 1987, p. 189). Assim, será a
composição do mapa da viagem: a exteriorização do pensamento que a viagem me proporcionou.
Itinerários.
153
FAÇO PAISAGENS COM O QUE SINTO!
Bernardo Soares74
Liberdade 2007
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
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Toquinho de madeira, alpiste e água.
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Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
Toquinho de madeira, alpiste e água.
O menino abriu a gaiola; Ele voou por
três dias... morreu de fome.
Anderson Aparecido Machado- CDP Diadema
74
Bernardo Soares é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa. Esse verso faz parte do Livro do
Desassossego. Por Bernardo Soares. Seleção e introdução: Leila Perrone Moisés. São Paulo. Brasiliense, 1989.
154
Lejla Bulja
Sarajevo
Figura 3 - Lejla Bulja (Sarajevo)
155
Governo Alckmin comemora ser o que mais prende no Brasil: 200 mil para 100 mil vagas.75
Nota da Secretaria de Administração Penitenciária paulista aponta 41 mil prisões em quatro
anos, expondo fracasso de políticas sociais.
São Paulo – Uma estatística que soa
preocupante para boa parte da população
desperta suspiros de alegria no Palácio dos
Bandeirantes. Passados 19 anos de governo
do PSDB em São Paulo, a gestão Geraldo
Alckmin se orgulha em dizer que "o
aumento da população prisional é fruto da
política séria", que consiste "em coibir e
combater a ação criminosa. São Paulo conta
hoje com a polícia que mais prende no
Brasil", sem que isso indique problemas
sérios na execução de políticas sociais.
Em quatro anos, o estado ganhou
41.811 presos – "uma média de 37,46
presos ao dia", orgulha-se informe da
Secretaria de Administração Penitenciária
(SAP) enviado à RBA para responder a
informações sobre a população carcerária
paulista. A resposta menospreza a
superlotação, vista como um problema
nacional, e desconsidera também a falta de
atendimento educacional e as doenças
surgidas das más condições de vida dentro
das unidades. Se preferir outra base de
cálculo, o cidadão saberá que “nos três
primeiros anos de gestão Alckmin (2011 a
2013), a média de crescimento ficou em
cerca de 12 mil detentos ao ano”.
A mais recente atualização da
secretaria sobre a população carcerária em
São Paulo é de 20 de janeiro. O estado tem
106.575 vagas, mas mantém 205.467
pessoas presas, praticamente o dobro.
Segundo a SAP, entre 1º de janeiro de 2011
e 20 de janeiro de 2014, a população
carcerária do estado de São Paulo aumentou
em 41.811 presos, uma média de 37,46
encarcerados por dia.
Para a socióloga Maria Victoria
Benevides, os dados demonstram a falência
de outras áreas, como educação, saúde,
moradia. “Esse critério para avaliar a
qualidade do nosso sistema penitenciário
não poderia ser pior. Nós falamos tanto que
aqui viceja a impunidade, mas, realmente, a
impunidade se dá para determinados crimes
e determinadas classes sociais. Para
enfrentar isso tem de haver reformas
estruturais.”
O coordenador nacional da Pastoral
Carcerária, padre Valdir João Silveira,
também avalia que o estado prende mais
porque sofre de ineficiência na área social.
“A nossa população carcerária é sempre a
população mais pobre, mais miserável da
sociedade. Lá onde o estado não trabalhou e
estiveram ausentes as políticas públicas
mínimas e necessárias, o estado responde
sempre com a força policial, com a
repressão. Joga no presídio e continua a
mesma ausência de políticas”, afirmou. [...]
75
por Diego Sartorato e Rodrigo Gomes, da RBA publicado 04/02/2014 12:38 www.redebrasilatual.com.br
(Acesso em 20 de abril de 2014)
156
Takaaki Fujimoto
Japão
Figura 4 - Takaaki Fujimoto (Japão)
157
São Paulo é o Estado que mais investe em segurança76
A 7ª edição do Anuário Brasileiro
de Segurança Pública, produzido pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) e pelo Ministério da Justiça,
aponta que São Paulo foi o Estado que
mais destinou recursos ao setor em 2012:
R$ 14,37 bilhões. O valor é 17,27%
superior ao do ano anterior e 82,36%
maior que o montante aportado pelo
Governo Federal em segurança.
Somente para a área de
Inteligência e Informação, São Paulo
destinou R$ 273,24 milhões deste
montante. O Estado se mantém entre os
mais seguros do país.
O Anuário, que reuniu
informações do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e do
Sistema Nacional de Estatísticas em
Segurança Pública e Justiça Criminal
(SINESPJC),foi lançado nesta terça-feira,
5, em na capital paulista.
76
Do Portal do Governo do Estado de São Paulo, terça-feira, 05/11/2013.
Acesso em 06/11/2013.
158
Joram Rozov
Israel
Figura 5 - Joram Rozorov (Israel)
159
Lex Drawinski
Alemanha
Figura 6 - Lex Drawinki (Alemanha)
160
161
DOE 17/01/2013
Resolução Conjunta SE/SAP 1, de 16 de janeiro de 2013.
Dispõe sobre a oferta da Educação Básica, na modalidade Educação de Jovens e
Adultos - EJA, a jovens e adultos que se encontrem em situação de privação de
liberdade, nos estabelecimentos penais do Estado de São Paulo, e dá providências
correlatas.
Os Secretários da Educação e da
Administração Penitenciária, considerando:
- o dever do Estado de garantir o direito
público subjetivo à educação de jovens e
adultos;
- a reclusos em estabelecimentos penais do
Estado de São Paulo;
- a instituição do Programa de Educação nas
Prisões – PEP, pelo Decreto 57.238, de 17-
08-2011, a ser implementado pela Secretaria
da Educação, em parceria com a Secretaria
da Administração Penitenciária;
- o disposto na Lei 9.394/96, de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, bem como nas
Resoluções CNE/CEB nºs 2/2010 e 3/10 e
nas Deliberações CEE nºs 77/08 e 82/09;
- as peculiaridades da organização didática,
pedagógica e curricular do ensino
fundamental e médio, a ser oferecido aos
jovens e adultos privados de liberdade,
Resolvem:
Artigo 1º - A educação básica, nos níveis
fundamental e médio, será oferecida a
jovens e adultos em situação de privação de
liberdade, nos institutos penais estaduais, a
partir do corrente ano, em ambientes
disponibilizados pela Secretaria da
Administração Penitenciária, caracterizados
como classes vinculadas a unidades
escolares estaduais.
Parágrafo único – A educação básica, de
que trata o caput deste artigo, será
implementada mediante projeto pedagógico
próprio, na modalidade Educação de Jovens
e Adultos – EJA, de modo a atender a
multiplicidade de perfis, interesses e
itinerários escolares da clientela.
Formando classes/turmas segundo critérios
que levem em consideração os interesses e
Artigo 2º - O projeto pedagógico, a que se
refere o parágrafo único do artigo anterior,
inserido no Programa de Educação nas
Prisões – PEP, contemplará, basicamente:
I – a oferta de ensino fundamental, nos anos
iniciais e finais, e de ensino médio;
II – a formação de classes de alunos
multisseriadas, de frequência flexível;
III - a organização curricular estruturada em
semestres letivos, denominados termos,
observados os mínimos de carga horária e
semestres, exigidos para cada nível de
ensino;
IV - o desenvolvimento de um currículo
acadêmico centrado, fundamentalmente, na
superação da fragmentação de disciplinas,
mediante a utilização de eixos temáticos.
§ 1º - O semestre letivo terá 100 (cem) dias
de efetivo trabalho escolar, num total de 400
(quatrocentas) horas, com carga horária
semanal de 25 (vinte e cinco) aulas, de
cinquenta minutos cada, distribuídas de 2ª a
6ª feira.
§ 2º - As cargas horárias de estudos do
ensino fundamental, nas classes dos anos
finais, serão desenvolvidas em 4 (quatro)
semestres/termos e as do ensino médio, em
3 (três) semestres/termos.
§ 3º - Para as classes dos anos iniciais do
ensino fundamental, na hipótese de se
desenvolver apenas o mínimo de carga
horária, o número de semestres/termos,
necessário à finalização do processo de
alfabetização, ficará na dependência dos
resultados que vierem a ser alcançados
pelos alunos ao longo do(s) semestre(s)
cursado(s).
Artigo 3º - Os funcionários dos
estabelecimentos prisionais e os
162
experiências, bem como o grau de instrução
ou de escolaridade dos jovens e adultos que
pretendam frequentar os cursos oferecidos,
valendo-se para tanto, se for o caso, de
instrumentos avaliatórios com conteúdos de
Língua Portuguesa e/ou de Matemática,
para a sua devida classificação.
§ 1º - O aluno matriculado em determinado
termo poderá, a qualquer momento, ser
deslocado para outro, caso se constate a
necessidade de superar dificuldades ou de
avançar no processo de aprendizagem.
§ 2º - Quando posto em liberdade, o aluno
que apresentar rendimento satisfatório no
termo frequentado fará jus ao histórico
escolar, a ser fornecido pela unidade escolar
vinculadora, devidamente referendado pelo
supervisor de ensino da unidade, atestando
os estudos já realizados, para possível
prosseguimento do curso em qualquer
unidade escolar.
§ 3º - O aluno que concluir o curso do
ensino fundamental ou do ensino médio em
classe/turma do estabelecimento penal fará
jus ao certificado de conclusão do curso, a
ser expedido pela unidade escolar
vinculadora, devidamente referendado pelo
supervisor de ensino da unidade.
§ 4º - As classes/turmas de alunos, formadas
de acordo com o disposto no caput deste
artigo, integrarão o quadro de classes da
unidade escolar vinculadora, com
autorização da respectiva Diretoria de
Ensino, devendo ser cadastradas no órgão
específico da Secretaria da Educação, como
classes vinculadas do PEP, constituídas na
seguinte conformidade:
1 – tratando-se de classes dos anos iniciais
do ensino fundamental, com, no máximo,
20 (vinte) alunos;
2 – tratando-se de classes dos anos finais do
ensino fundamental e do ensino médio,
com, no máximo, 30 (trinta) alunos.
Artigo 4º - Observada a abordagem
metodológica, de que trata o inciso IV do
aulas da rede estadual de ensino, efetuar
inscrição específica para este projeto e
atendera os seguintes requisitos:
professoresresponsáveis organizarão os
agrupamentos de alunos de cada termo,
artigo 2º desta resolução, as matrizes
curriculares dos cursos oferecidos nos
estabelecimentos penais serão estruturadas
por áreas de conhecimento da base nacional
comum, na conformidade do contido nos
Anexos I e II, que integram a presente
resolução.
§ 1º - Devidamente dimensionadas a
complexidade dos conteúdos a serem
trabalhados e as condições de aprendizagem
dos alunos, as áreas de conhecimento, a que
se refere o caput deste artigo,
compreenderão os seguintes componentes
curriculares:
1 - no Ensino Fundamental:
a) área de Linguagens: Língua Portuguesa,
Língua Estrangeira Moderna (Inglês ou
Espanhol, Arte (com todas as expressões
artísticas e, obrigatoriamente, música) e
Educação Física;
b) área de Matemática: Matemática;
c) área de Ciências da Natureza: Ciências,
Físicas e Biológicas;
d) área de Ciências Humanas: História,
Geografia e, opcionalmente para o aluno,
Ensino Religioso (apenas no último termo);
2 - no Ensino Médio:
a) área de Linguagens e Códigos: Língua
Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna
(Inglês ou Espanhol), Arte (em suas
diferentes linguagens: artes cênicas, artes
plásticas e, obrigatoriamente, música) e
Educação Física;
b) área de Matemática: Matemática;
c) área de Ciências da Natureza: Física,
Química e Biologia;
d) área de Ciências Humanas: História,
Geografia, Filosofia e Sociologia.
§ 2º - A avaliação dos alunos nas atividades
decorrentes dos eixos temáticos será
contínua e diagnóstica, comportando
autoavaliação e avaliação mútua e
permanente da prática educativa pelo
professor e pelos alunos.
Artigo 5º - Para participar do Programa de
Educação nas Prisões - PEP, instituído por
163
I - conhecer a especificidade do trabalho
pedagógico a ser desenvolvido com jovens e
adultos em situação de privação de
liberdade nos estabelecimentos penais;
II – saber utilizar a metodologia selecionada
para o projeto pedagógico, promovendo
continuadamente a autoestima do aluno,
com vistas a estimulá-lo à reflexão, à
solidariedade e à troca de experiências;
III - ser assíduo e pontual e ter
disponibilidade para participar de trabalho
em equipe, dos conselhos de classe/anos,
das horas de trabalho pedagógico realizado
pela escola vinculadora (HTPCs) e de
programas de capacitação e de formação
continuada, oferecidos pela Secretaria da
Educação e/ou por entidades conveniadas;
IV - conhecer as Diretrizes Curriculares
Nacionais de Educação de Jovens e
Adultos;
V - possuir conhecimentos básicos de
tecnologia de informação e comunicação.
Artigo 6º - As aulas das matrizes
curriculares do Programa Educação nas
Prisões – PEP serão atribuídas por áreas de
conhecimento, pelo diretor de escola da
unidade escolar vinculadora, a docentes e a
candidatos à docência, observada a seguinte
ordem de prioridade:
I - docente ocupante de função-atividade,
abrangido pelo disposto no § 2º, do artigo
2º, da Lei Complementar 1.010/2007, que se
encontre sem aulas atribuídas, cumprindo
apenas horas de permanência em uma
unidade escolar, e desde que tenha sido
aprovado no processo seletivo, previsto pela
Lei Complementar 1.093/2009;
II - candidato à docência que tenha sido
aprovado no processo seletivo, previsto pela
Lei Complementar 1.093/2009;
III - docente ocupante de função-atividade,
abrangido pelo disposto no § 2º, do artigo2º,
da Lei Complementar 1.010, de 1º.10.2007,
que se encontre sem aulas
acompanhar os trabalhos das classes do
PEP, consoante plano de atendimento
quinzenal, que contemple visitas às
referidas classes e reuniões com os
esta resolução, o docente ou candidato à
docência deverá estar inscrito no processo
regular anual de atribuição de classes e
atribuídas, cumprindo apenas horas de
permanência em uma unidade escolar, ainda
que não tenha sido aprovado no processo
seletivo, previsto pela Lei Complementar
1.093, de 16.7.2009;
IV – candidato à docência que não tenha
sido aprovado no processo seletivo, previsto
pela Lei Complementar 1.093/2009.
V - candidato à docência que não tenha
participado do processo seletivo, previsto
pela Lei Complementar 1.093/2009;
Artigo 7º - À exceção de Educação Física,
cujo professor deverá ser portador de
diploma de licenciatura plena específica
nessa disciplina, em observância à Lei
estadual 11.361, de 17.3.2003, as demais
aulas deverão ser atribuídas por área de
conhecimento, preferencialmente ao
professor portador de diploma de
licenciatura plena em:
I - Letras, para as áreas de Linguagens, no
ensino fundamental, e de Linguagens e
Códigos, no ensino médio, que ficará
responsável pela docência dos demais
conteúdos dessas áreas, exceto de Educação
Física;
II - Matemática, para a área de Matemática;
III – Ciências Físicas e Biológicas, para a
área de Ciências da Natureza no ensino
fundamental, e em Física ou em Química,
para a área de Ciências da Natureza no
ensino médio; e
IV - História ou em Geografia, para a área
de Ciências Humanas no ensino
fundamental, e em História,
exclusivamente, para a área de Ciências
Humanas no ensino médio ou no ensino
fundamental, se esta área incluir o Ensino
Religioso.
Artigo 8º - Observadas as datas de início e
término do ano letivo, dos períodos de férias
docentes e de recesso escolar, fixadas em
legislação própria, as demais atividades do
PEP serão desenvolvidas em conformidade
com o calendário escolar da escola
164
professores que nelas atuem.
§1º - As classes de que trata o caput deste
artigo integram o total de classes em
funcionamento na unidade vinculadora, para
fins de definição do módulo de Professor
Coordenador e de Agente de Organização
Escolar, exclusivamente.
§ 2º - As ações de capacitação dos docentes
que atuam em classes do PEP ficarão sob a
responsabilidade do Professor Coordenador
do Núcleo Pedagógico da Diretoria de
Ensino.
Artigo 10 - Caberá ao Supervisor de Ensino,
juntamente com o Diretor de Escola e os
Professores Coordenadores da escola
vinculadora, acompanhar os trabalhos das
classes do PEP, avaliando o processo de
ensino-aprendizagem desenvolvido.
Artigo 11 - A unidade escolar vinculadora
adotará todos os procedimentos para
acompanhamento pedagógico, registro e
expedição de documentos escolares dos
alunos matriculados nas classes do PEP nos
estabelecimentos prisionais.
Artigo 12 - Caberá à Coordenadoria de
Gestão da Educação Básica - CGEB expedir
as orientações complementares que se
fizerem necessárias ao cumprimento da
presente resolução.
Artigo 13 - Esta resolução entra em vigor na
data de sua publicação.
vinculadora.
Artigo 9º - Caberá ao Professor
Coordenador da escola vinculadora
165
Professores assumem aulas nas prisões77
Docentes contratados pelo governo paulista entram nas salas prisionais, antes sob
responsabilidade da Administração Penitenciária
Após três anos de experiência em
uma escola estadual em Hortolândia, Aldo
Cesar de Lima aceitou um desafio: tornou-
se, no início deste mês, professor no
presídio. Uma troca que foi feita por
outros 537 docentes da rede. É que, neste
ano, as classes prisionais saíram das mãos
da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP) e estão sob
responsabilidade da Secretaria de Estado
da Educação (SEE).
A mudança ocorre dois anos e meio
após uma resolução do Conselho Nacional
de Educação definir que a garantia de
educação nos estabelecimentos penais
passasse a ser atribuição direta do órgão
responsável. São Paulo foi um dos últimos
Estados a fazer essa transferência. As 154
penitenciárias paulistas abrigam cerca de
200 mil presos, sendo que 15 mil deles
estudam, o que corresponde a 7,5% da
população encarcerada.
"Isso trará um grande impacto, até
pelo tamanho de seu sistema prisional (o
maior do País, com mais de um terço dos
detentos)", avalia a coordenadora-geral de
Reintegração Social e Ensino da diretoria
de Políticas Penitenciárias do Ministério
da Justiça, Mara Fregapani Barreto. Ela
explica que o objetivo é fazer com que as
questões sejam tratadas sempre em
parceria da SAP com a Educação. Tanto
que, desde 2012, para pleitear recursos da
União, os Estados têm de mandar seu
plano de educação assinado pelos dois
secretários.
Estrutura. Para atender à demanda,
Santos Oliveira, do Núcleo de Inclusão
Educacional da Secretaria de Educação.
Ela diz que, apesar de pagamento de
bônus salarial, adicional de local de
exercício e insalubridade estar sendo
discutido, ainda não há nenhum projeto de
lei a respeito.
Por enquanto, para lecionar no
presídio, o professor temporário foi
motivado pela garantia de não ficar sem
trabalho e, claro, pelo desafio - como
conta Aldo. Ele costumava pegar um
ônibus com ponto final na penitenciária e
ouvia a conversa das mulheres dos presos.
"O assunto eram os planos, sempre
otimistas, para quando a pena terminasse.
Mas eu sabia que era quase impossível."
Quando, no fim do ano passado,
soube das aulas na prisão, decidiu ir.
"Passei a noite adaptando o material. Tudo
o que quero é corresponder às
expectativas dos meus alunos. Quero que
eles tenham o mesmo preparo que um
aluno de fora."
Antes de pisar no presídio, ele e
todos os outros professores participaram
de dois dias de videoconferência e fizeram
uma visita de ambientação à unidade
prisional. O material pedagógico utilizado
é o mesmo das turmas da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) e, de acordo com
a secretaria, os cursos de formação devem
começar em abril e com dois eixos de
atuação.
O primeiro dará conta do conteúdo
pedagógico com foco na atuação em salas
multisseriadas - as turmas não são
77
24 de fevereiro de 2013 | 2h 07 www.estadao.com.br.
Acesso em 25 de fevereiro de 2013.
166
são necessários 1.532 docentes. "Neste
início não foi possível suprir tudo, até por
falta de professores interessados, mas as
atribuições continuarão no decorrer do
ano", explica Andréa dos específica para trabalhos em contexto de
privação de liberdade.
Para Denise Carreira, coordenadora
da área de Educação da Ação Educativa e
membro de grupos de estudo sobre
educação nas prisões, a mudança da SAP
para a Educação representa um avanço.
Mas há ressalvas. "Como é uma política
que exige formação, seria importante que
houvesse estímulo para que profissionais
experientes viessem para o sistema. Mas
foram chamados até professores com
vínculo precário, como os temporários.
Outro problema foi deixá-los assumir
antes dos cursos de formação. Também é
preciso cuidado para não escolarizar
demais e esquecer de se adaptar aos
interessados."
separadas por série, mas em ciclos: anos
inicias e finais do fundamental e ensino
médio. Além desse preparo técnico, uma
parceria com a Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar) garantirá formação
167
A estratégia da interiorização dos presídios.78
Em São Paulo, o problema da
massificação nos presídios é ainda mais
evidente. Com a maior população carcerária
do país, o estado concentra hoje mais de
190 mil presos, 37% do total no Brasil. De
acordo com a Secretaria da Administração
Penitenciária (SAP), para zerar o déficit de
vagas e acabar com a superlotação, o Estado
precisaria construir 93 penitenciárias, cada
uma delas com 768 vagas, um padrão
adotado pelas unidades paulistas. Ainda
segundo a SAP, entre 1º de janeiro e 31 de
agosto deste ano, o sistema penitenciário
recebeu 72.491 novos detentos, média de
302 por dia.
Diante do problema, o método
encontrado pelo governo foi construir
presídios nos pequenos municípios no
interior paulista. A descentralização do
sistema prisional do Estado de São Paulo,
antes concentrado na capital, teve início em
1995. Na época, as carceragens de delegacia
estavam abarrotadas de gente e sofreram
muitas operações de resgate e rebeliões.
De acordo com Rafael Godoi,
pesquisador e doutorando em sociologia
pela Universidade de São Paulo (USP), para
reduzir o excesso de lotação do Complexo
Penitenciário do Carandiru e retirar presos
já condenados das cadeias públicas de São
Paulo, o governo colocou em licitação os
primeiros lotes de presídios no interior.
“Nas penitenciarias mais antigas, como a
penitenciária do Estado e o Carandiru houve
também um aumento muito grande de
rebeliões. O governo Covas [1995-2001]
decide então tirar cada vez mais as
populações carcerárias da responsabilidade
da Secretaria de Segurança Pública em
espaços que eram inapropriados para manter
as pessoas presas”, analisa.
Para justificar a política de expansão, a
Secretaria da Administração Penitenciária
(SAP) declarou que “esta ação é necessária,
por conta do considerável aumento da
população prisional no Estado de São Paulo
nos últimos dez anos. São Paulo conta hoje
com a polícia que mais prende no Brasil,
fruto da política séria adotada pelo
governador Geraldo Alckmin.”
Interesse econômico Além do governo estadual, os
municípios também veem vantagens nessa
política, consolidada no “Plano de Expansão
de Unidades Prisionais do Governo do
Estado de São Paulo”, que prevê a
construção de 49 presídios.
Se por um lado, na capital a ideia da
interiorização surge como um alívio para o
governo e promessa de mais segurança, por
outro, no interior os presídios significam
oportunidade de desenvolvimento
econômico e de geração de renda.
A população carcerária entra no
cálculo da população local e tem um
impacto significativo nas cidades pequenas
com o aumento de repasse de verba federal
assegurada pelo fundo de participação dos
municípios. A distribuição dos recursos é
feita de acordo com o número de habitantes.
Em determinadas localidades, o número de
habitantes chega a dobrar.
“Regiões distantes dos grandes centros
comerciais que careciam de atividades
encontraram no encarceramento um nicho
econômico pra se sustentar, se desenvolver,
aumentar suas arrecadações”, conclui
Godoi.
78
Brasil de Fato 21/03/2014. Acesso em 15 de maio de 2014
168
Nota Pública sobre a política de educação nas prisões do Estado de São Paulo.79
Não obstante o insuficiente diálogo
com a sociedade civil e a ausência de
realização de audiência pública que havia
sido assumida oficialmente pela Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo,
manifestamos a satisfação provocada com
a publicação da Resolução Conjunta
SE/SAP 1, de 17/01/2013. Reconhecemos
a histórica iniciativa do governo do Estado
de São Paulo de, em atenção ao disposto
nas Diretrizes Nacionais para a Educação
em Prisões, reconhecer que as pessoas
privadas de liberdade têm o direito de
acessar as políticas educacionais
destinadas às pessoas jovens e adultas.
Em que pese o incrível avanço, do
ponto de vista formal, representado pelo
anúncio da implementação da modalidade
Educação de Jovens e Adultos (EJA) sob
responsabilidade da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo (SEE-
SP) nas unidades prisionais paulistas, e
certos de compartilharmos o mesmo
objetivo de assegurar educação pública de
qualidade às pessoas jovens e adultas com
baixa escolaridade, apresentamos a seguir
algumas considerações e dúvidas sobre o
exposto na referida Resolução Conjunta.
Em relação ao processo de seleção
dos profissionais da educação que atuarão
nas unidades prisionais, é incompreensível
a exclusão do professorado com vínculo
funcional efetivo na Secretaria Estadual
de Educação (art. 6º da referida
Resolução). Indagamos, então, quais são
as razões para que a atuação nas unidades
prisionais esteja restrita aos educadores
contratados precariamente, de forma
temporária.
A fim de assegurar a qualidade da
diploma de licenciatura plena nas
disciplinas abrangidas por cada uma das
áreas do conhecimento.
Considerando o fato de o PEP
representar um desafio absolutamente
novo para a EJA ofertada nas redes
públicas do Estado de São Paulo,
destacadamente no que se refere à
formação dos docentes e à construção e
implementação do projeto político
pedagógico para cada uma das unidades,
preocupa a ausência de contratação de
profissionais da educação, com formação
em Pedagogia, exclusivamente para
atuação no Programa.
Indagamos, ainda, quais ações serão
desencadeadas visando apoiar os
professores coordenadores para
assumirem mais esta responsabilidade tão
específica quanto desafiadora.
Por fim, lamentamos que
determinações estabelecidas nas Diretrizes
Nacionais para a Educação nas Prisões
tenham sido desconsideradas pela
Resolução Conjunta SE/SAP 1. Entre elas,
destacamos a imprescindível relação entre
a educação formal, representada pela EJA,
e as práticas não formais, muitas vezes já
em curso nas unidades prisionais; a total
ausência da dimensão profissionalizante
no currículo; a não especificação dos
processos de chamada pública e registro
de demanda nas unidades.
Todas as insuficiências acima
identificadas poderiam ser objeto de
debate e aperfeiçoamento caso fosse
concretizado o compromisso assumido
pela Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo de realizar uma audiência
pública para discussão da proposta antes
79
São Paulo, 03 de abril de 2013. Grupo de Trabalho em Defesa do Direito à Educação nas Prisões.
Acesso em 18/05/2013.
169
educação ofertada, consideramos ainda
que todo profissional que participar do
Programa de Educação nas Prisões (PEP)
deve, obrigatoriamente, ser portador do
tramitação SE n. 3469/0001/2012).
Além do esclarecimento de todas as
questões acima, solicitamos, por meio
desta nota pública, a divulgação do
cronograma de implantação do PEP em
todas as unidades prisionais do Estado de
São Paulo, de acordo com a demanda real
em cada uma delas, e reforçamos a
necessidade de que seja realizada uma
audiência pública o mais breve possível,
em que os termos da Resolução Conjunta
SE/SAP 1, de 17/1/2013 possam ser
discutidos.
de sua implementação (o compromisso foi
feito por meio de comunicação oficial da
SEE-SP, em resposta a um pedido de
informação, identificada pelo código de
170
Encontro de gestores do sistema prisional discute educação80
Brasília, 1º/12/14 – Entre os dias 3 a 5
de dezembro, em Brasília, ocorre o Encontro
Nacional de Gestores do Sistema Prisional. O
evento é uma iniciativa conjunta do
Departamento Penitenciário Nacional do
Ministério da Justiça (Depen/MJ) e do
Ministério da Educação (MEC).
O objetivo é reunir gestores envolvidos
com a educação de pessoas privadas de
liberdade, com o intuito de promover o
intercâmbio de boas praticas e orientar a
respeito das ações educacionais desenvolvidas
pelo governo federal nesse âmbito.
Serão discutidas as formas de
financiamento com recursos repassados pelo
Plano de Ações Articuladas (PAR), oriundos
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), além das estratégias para
ampliação da oferta educacional nos
estabelecimentos penais.
Além de um direito, a educação é um
importante pilar para a reintegração da pessoa
em situação de privação de liberdade.
Atualmente existem cerca de 575 mil
presos no Brasil. Desse total, por volta de 59
mil exercem algum tipo de atividade
educacional.
Desde a instituição do “Plano
Estratégico de Educação no Âmbito do
Sistema Prisional”, pelo Decreto no
7.626 de
2011, a educação no sistema prisional é
referenciada pelas mesmas normas e
parâmetros estabelecidos pelo MEC em suas
demais políticas educacionais.
80
www.mj.gov.br. Acesso em 03/01/2015.
171
Diário de um detento81
"São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã.
Aqui estou, mais um dia.
Sob o olhar sanguinário do vigia.
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de
uma HK.
Metralhadora alemã ou de Israel.
Estraçalha ladrão que nem papel.
Na muralha, em pé, mais um cidadão José.
Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson.
Ele sabe o que eu desejo.
Sabe o que eu penso.
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso.
Vários tentaram fugir, eu também quero.
Mas de um a cem, a minha chance é zero.
Será que Deus ouviu minha oração?
Será que o juiz aceitou apelação?
[...]
Cadeia? Claro que o sistema não quis.
Esconde o que a novela não diz.
Ratatatá! sangue jorra como água.
Do ouvido, da boca e nariz.
O Senhor é meu pastor...
perdoe o que seu filho fez.
Morreu de bruços no salmo 23,
sem padre, sem repórter.
sem arma, sem socorro.
Vai pegar HIV na boca do cachorro.
Cadáveres no poço, no pátio interno.
Adolf Hitler sorri no inferno!
O Robocop do governo é frio, não sente pena.
Só ódio e ri como a hiena.
Rátátátá, Fleury e sua gangue
vão nadar numa piscina de sangue.
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento."
81
Racionais Mc's. Álbum: Sobrevivendo no inferno, 1997. Gravadora: Casa Nostra.
172
O Buraco Do Espelho82
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora
82 Arnaldo Antunes. Álbum: O Silêncio, 1997. Gravadora: Sony Music
173
Centro de Ressocialização
“Enfermeiro Angelo Fernando Baratella”
Figura 7 - Centro de Ressocialização
174
Trabalho 183
83
Trabalho oferecido aos presos no Centro de Ressocialização: contar garfinhos e embalar.
Figura 8 - Trabalho I
175
Trabalho 284
84
Montagem das caixas para embalagem dos garfinhos.
Figura 9 - Trabalho II
176
Sala de aula
Figura 10 - Sala do Centro de Ressocialização
177
LANÇAR A ÂNCORA...
acostagem85
Utilizando a metáfora da pesquisa como uma viagem realizada, chega o momento em que
o itinerário traçado me permite realizar considerações sobre o que se buscou descrever nesse
processo: compreender a configuração do currículo dentro de uma escola de uma unidade
prisional.
E nesse processo de traçar e viver o itinerário tenho a concordar com Guimarães Rosa
(1986, p. 26) quando coloca que: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia.”
A possibilidade de realizar a pesquisa com a bolsa CAPES (Coordenadoria de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) permitiu que a incursão etnográfica ao Centro de
Ressocialização me colocasse diretamente com o cotidiano prisional. Foram oito meses
frequentando a unidade semanalmente, por três a quatro vezes. Deste modo, o próprio campo
contribuiu para delinear a perspectiva teórica que alinhavou os capítulos e também permitiu
compreender as entrevistas como vozes que construíram o encadeamento do texto.
A concepção de currículo que corta o texto está circunscrita pela noção de discurso, já que
“em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que tem por função conjurar seus
poderes e perigos”. (FOUCAULT, 2006, p. 8)
Poderes e perigos construídos através de diferentes dispositivos sejam eles da ordem do
normativo, do cultural ou mesmo instituídos para normalizar e formatar a produção dos sujeitos
institucionalizados e “protegidos” pelo Estado.
Quando se problematiza a Educação em contextos de privação de liberdade, há que se
estabelecer relação direta com a modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Conforme discorri
ao longo do texto da pesquisa a modalidade em questão foi construída discursivamente como
uma educação menor, de “bordas”, que considera o conhecimento selecionado como algo que
deve ser básico, fácil e curto. Essa concepção de ensino do “básico” fundamenta-se na
85
Acostagem para a terminologia náutica significa: “encostar a embarcação a um cais, por norma com
proteções.” (www.dicionariodanavegacao.com.br). Acesso em 19/01/2015.
178
representação dos alunos entendidos como sujeitos a quem tudo falta e sendo assim é preciso
depositar para preencher. Depois de preenchidos com situações de aprendizagem engavetadas
pelas disciplinas e sem sentido, devem devolver de forma escrita (avaliações) tudo o que lhes foi
depositado.
E enfim, atingido um conceito razoável, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo
cumpre seu dever para com o aluno preso: organiza seu histórico para que quando sair da prisão
tenha acesso ao papel carimbado que vai lhe garantir emprego e condições de reinserção que
farão com que voltem rapidamente para a instituição penal.
Verifica-se, portanto mais uma vez que a instituição escolar nega à população pesquisada
o direito humano à Educação e uma possibilidade de conhecimento através dos bens culturais.
Essa mesma negação também foi trazida pelos presos durante as entrevistas em que colocaram
suas trajetórias escolares estritamente vinculadas apenas à certificação.
A pesquisa também aponta para a necessidade de que a Educação Prisional não seja
apenas a responsabilidade burocrática da Secretaria Estadual de Educação. Através das
entrevistas dos alunos em situação de privação de liberdade evidencia-se a fundamental
articulação com outras Secretarias (Justiça, Trabalho, Assistência Social, Saúde e etc...) para
compor o trabalho pedagógico. Desta maneira, o que nos dizem é que a reprodução de um
modelo educativo da “rua” não atende seus anseios na possibilidade de um papel para a escola
dentro do cárcere que promova situações com sentido a esses jovens e adultos que, por diferentes
motivos, interromperam suas trajetórias escolares muito cedo.
A maneira como a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo vem assumindo sua
responsabilidade para com a educação nas prisões não tem favorecido a montagem de quadros
estáveis de professores que garanta a elaboração e execução de um projeto político pedagógico
para a unidade prisional. Alterando-se o quadro de professores quase que semestralmente através
dos contratos temporários, é impossível pensar numa proposta de formação que se torna uma
grande lacuna com efeitos na prática pedagógica realizada.
O fato de coexistirem dentro do mesmo espaço: prisão e escola com propósitos tão
divergentes e opostos são questões centrais que devem perseguir a formulação de políticas
públicas. Tanto a prisão quanto a escola são mantidas pelo Estado, todavia cada uma
desempenhando uma função na vida dos apenados. O fortalecimento de um conjunto de
profissionais que atuam dentro do cárcere somados aos educadores pode ser uma possibilidade
179
para a realização do debate que envolve re (pensar) o sentido da pena da prisão, bem como os
objetivos pretendidos pela Execução Penal através da Educação.
Enquanto o entendimento do currículo for restrito apenas à vida dentro da sala de aula, o
processo educativo oferecido pelo Estado para essa população permanece mais uma vez
assentado na negação de direitos. Sendo a educação no cárcere entendida como regalia e não
como direito, o processo educativo permanece fundado apenas na lógica da certificação e não
como possibilidade de entrar em contato com a re (construção) de sua própria história através da
apropriação aos bens culturais como forma de conhecimento.
No Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo86
, capítulo
III temos como título: Das Recompensas. Deste modo, as recompensas são divididas em: elogios
e concessão de regalias. O artigo 31 institui que a compreensão do que se entende como
“concessão de regalias” são atividades voltadas para a área cultural. Por exemplo: sessão de
cinema, teatro, shows e jogos, bem como atividades que envolvam pintura e exposição de
trabalhos. É preciso salientar também que se constituem regalias, concedidas ao preso que
apresente bom comportamento carcerário, desde que atendam aos critérios socioeducativos da
execução da pena e do diretor da unidade prisional:
Vejamos: existe uma incompatibilidade de propósitos plenamente explícitos e
contraditórios pelas duas instituições mantidas pelo Estado dentro do mesmo lugar. Assim, a
produção de saberes/poderes por cada uma das instituições dá a dinâmica dos diferentes
interesses na constituição do sujeito privado de sua liberdade.
A configuração de um currículo para a Educação Prisional requer romper barreiras
disciplinares entre as diferentes ciências para promover dentro do universo prisional práticas
educativas que estejam atreladas ao projeto político pedagógico de cada unidade prisional. É
através da construção desse projeto que todas as ações estarão articuladas, tanto na prisão, como
na escola, para que a oferta educativa e o conhecimento estejam acessíveis a todos. Como diria
Marcelo, o agente penitenciário que me recebeu no primeiro dia de visita ao Centro de
Ressocialização: “O trabalho aqui dentro não pode ser só da Educação. Mas será
que dá?”.
86
Resolução SAP 144-29/06/2010.
180
181
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186
187
ANEXO 1
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
RESOLUÇÃO Nº 2, DE 19 DE MAIO DE 2010 (*)
Dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a
oferta de educação para jovens e adultos em
situação de privação de liberdade nos
estabelecimentos penais.
O PRESIDENTE DA CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO
CONSELHONACIONAL DE EDUCAÇÃO, no uso de suas atribuições legais, e de
conformidade com o disposto na alínea “c” do parágrafo 1º do artigo 9º da Lei nº 4.024/61 com a
redação dada pela Lei nº 9.131/95, nos artigos 36, 36-A, 36-B, 36-C, 36-D, 37, 39, 40, 41 e 42 da
Lei nº 9.394/96 com a redação dada pela Lei nº 11.741/2008, bem como no Decreto nº
5.154/2004, e com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 4/2010, homologado por Despacho do
Senhor Ministro da Educação, publicado no DOU de 7 de maio de 2010,
CONSIDERANDO as responsabilidades do Estado e da sociedade para garantir o direito à
educação para jovens e adultos nos estabelecimentos penais e a necessidade de norma que
regulamente sua oferta para o cumprimento dessas responsabilidades;
CONSIDERANDO as propostas encaminhadas pelo Plenário do I e II Seminários Nacionais de
Educação nas Prisões;
CONSIDERANDO a Resolução nº 3, de 6 de março de 2009, do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, que dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação nos
estabelecimentos penais;
CONSIDERANDO o Protocolo de Intenções firmado entre os Ministérios da Justiça e da
Educação com o objetivo de fortalecer e qualificar a oferta de educação em espaços de privação
de liberdade;
CONSIDERANDO o disposto no Plano Nacional de Educação (PNE) sobre educação em
espaços de privação de liberdade;
188
CONSIDERANDO que o Governo Federal, por intermédio dos Ministérios da Educação e da
Justiça tem a responsabilidade de fomentar políticas públicas de educação em espaços de
privação de liberdade, estabelecendo as parcerias necessárias com os Estados, Distrito Federal e
Municípios;
CONSIDERANDO o disposto na Constituição Federal de 1988, na Lei nº 7.210/84, bem como na
Resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, que fixou as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil;
CONSIDERANDO o que foi aprovado pelas Conferências Internacionais de Educação de
Adultos (V e VI CONFINTEA) quanto à “preocupação de estimular oportunidades de
aprendizagem a todos, em particular, os marginalizados e excluídos”, por meio do Plano de Ação
para o Futuro, que garante o reconhecimento do direito à aprendizagem de todas as pessoas
encarceradas, proporcionando-lhes informações e acesso aos diferentes níveis de ensino e
formação;
CONSIDERANDO que o projeto "Educando para a Liberdade", fruto de parceria entre os
Ministérios da Educação e da Justiça e da Representação da UNESCO no Brasil, constitui
referência fundamental para o desenvolvimento de uma política pública de educação no contexto
de privação de liberdade, elaborada e implementada de forma integrada e (*) Resolução
CNE/CEB 2/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 20 de maio de 2010, Seção 1, p. 20 e
cooperativa, representa novo paradigma de ação a ser desenvolvido no âmbito da Administração
Penitenciária;
CONSIDERANDO, finalmente, as manifestações e contribuições provenientes da participação de
representantes de organizações governamentais e de entidades da sociedade civil em reuniões de
trabalho e audiências públicas promovidas pelo Conselho Nacional de Educação;
RESOLVE:
Art. 1º Ficam estabelecidas as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens
e adultos privados de liberdade em estabelecimentos penais, na forma desta Resolução.
Art. 2º As ações de educação em contexto de privação de liberdade devem estar calcadas
na legislação educacional vigente no país, na Lei de Execução Penal, nos tratados internacionais
firmados pelo Brasil no âmbito das políticas de direitos humanos e privação de liberdade,
devendo atender às especificidades dos diferentes níveis e modalidades de educação e ensino e
189
são extensivas aos presos provisórios, condenados, egressos do sistema prisional e àqueles que
cumprem medidas de segurança.
Art. 3º A oferta de educação para jovens e adultos em estabelecimentos penais obedecerá
às seguintes orientações:
I – é atribuição do órgão responsável pela educação nos Estados e no Distrito Federal
(Secretaria de Educação ou órgão equivalente) e deverá ser realizada em articulação com os
órgãos responsáveis pela sua administração penitenciária, exceto nas penitenciárias federais,
cujos programas educacionais estarão sob a responsabilidade do Ministério da Educação em
articulação com o Ministério da Justiça, que poderá celebrar convênios com Estados, Distrito
Federal e Municípios;
II – será financiada com as fontes de recursos públicos vinculados à manutenção e
desenvolvimento do ensino, entre as quais o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), destinados à
modalidade de Educação de Jovens e Adultos e, de forma complementar, com outras fontes
estaduais e federais;
III – estará associada às ações complementares de cultura, esporte, inclusão digital, educação
profissional, fomento à leitura e a programas de implantação, recuperação e manutenção de
bibliotecas destinadas ao atendimento à população privada de liberdade, inclusive as ações de
valorização dos profissionais que trabalham nesses espaços;
IV – promoverá o envolvimento da comunidade e dos familiares dos indivíduos em situação de
privação de liberdade e preverá atendimento diferenciado de acordo com as especificidades de
cada medida e/ou regime prisional, considerando as necessidades de inclusão e acessibilidade,
bem como as peculiaridades de gênero, raça e etnia, credo, idade e condição social da população
atendida;
V – poderá ser realizada mediante vinculação a unidades educacionais e a programas que
funcionam fora dos estabelecimentos penais;
VI – desenvolverá políticas de elevação de escolaridade associada à qualificação profissional,
articulando-as, também, de maneira intersetorial, a políticas e programas destinados a jovens e
adultos;
VII – contemplará o atendimento em todos os turnos;
190
VIII – será organizada de modo a atender às peculiaridades de tempo, espaço e rotatividade da
população carcerária levando em consideração a flexibilidade prevista no art. 23 da Lei nº
9.394/96 (LDB).
Art. 4º Visando à institucionalização de mecanismos de informação sobre a educação em espaços
de privação de liberdade, com vistas ao planejamento e controle social, os órgãos responsáveis
pela educação nos Estados e no Distrito Federal deverão:
I – tornar público, por meio de relatório anual, a situação e as ações realizadas para a oferta de
Educação de Jovens e Adultos, em cada estabelecimento penal sob sua responsabilidade;
II – promover, em articulação com o órgão responsável pelo sistema prisional nos
Estados e no Distrito Federal, programas e projetos de fomento à pesquisa, de produção de
documentos e publicações e a organização de campanhas sobre o valor da educação em espaços
de privação de liberdade;
III – implementar nos estabelecimentos penais estratégias de divulgação das ações de educação
para os internos, incluindo-se chamadas públicas periódicas destinadas a matrículas.
Art. 5º Os Estados, o Distrito Federal e a União, levando em consideração as especificidades da
educação em espaços de privação de liberdade, deverão incentivar a promoção de novas
estratégias pedagógicas, produção de materiais didáticos e a implementação de novas
metodologias e tecnologias educacionais, assim como de programas educativos na modalidade
Educação a Distância (EAD), a serem empregados no âmbito das escolas do sistema prisional.
Art. 6º A gestão da educação no contexto prisional deverá promover parcerias com diferentes
esferas e áreas de governo, bem como com universidades, instituições de Educação Profissional e
organizações da sociedade civil, com vistas à formulação, execução, monitoramento e avaliação
de políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de liberdade.
Parágrafo Único. As parcerias a que se refere o caput deste artigo dar-se-ão em perspectiva
complementar à política educacional implementada pelos órgãos responsáveis pela educação da
União, dos Estados e do Distrito Federal.
Art. 7º As autoridades responsáveis pela política de execução penal nos Estados e Distrito
Federal deverão, conforme previsto nas Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, propiciar espaços físicos adequados às atividades educacionais, esportivas,
culturais, de formação profissional e de lazer, integrando-as às rotinas dos estabelecimentos
penais.
191
Parágrafo Único. Os Estados e o Distrito Federal deverão contemplar no seu planejamento a
adequação dos espaços físicos e instalações disponíveis para a implementação das ações de
educação de forma a atender às exigências desta Resolução.
Art. 8º As ações, projetos e programas governamentais destinados a EJA, incluindo o provimento
de materiais didáticos e escolares, apoio pedagógico, alimentação e saúde dos estudantes,
contemplarão as instituições e programas educacionais dos estabelecimentos penais.
Art. 9° A oferta de Educação Profissional nos estabelecimentos penais deverá seguir as Diretrizes
Curriculares Nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação, inclusive com relação ao
estágio profissional supervisionado concebido como ato educativo.
Art. 10 As atividades laborais e artístico-culturais deverão ser reconhecidas e valorizadas como
elementos formativos integrados à oferta de educação, podendo ser contempladas no projeto
político-pedagógico como atividades curriculares, desde que devidamente fundamentadas.
Parágrafo Único. As atividades laborais, artístico-culturais, de esporte e de lazer, previstas no
caput deste artigo, deverão ser realizadas em condições e horários compatíveis com as atividades
educacionais.
Art. 11 Educadores, gestores e técnicos que atuam nos estabelecimentos penais deverão ter
acesso a programas de formação inicial e continuada que levem em consideração as
especificidades da política de execução penal.
§ 1º Os docentes que atuam nos espaços penais deverão ser profissionais do magistério
devidamente habilitados e com remuneração condizente com as especificidades da função.
§ 2º A pessoa privada de liberdade ou internada, desde que possua perfil adequado e receba
preparação especial, poderá atuar em apoio ao profissional da educação, auxiliando-o no processo
educativo e não em sua substituição.
Art. 12 O planejamento das ações de educação em espaços prisionais poderá contemplar, além
das atividades de educação formal, propostas de educação não-formal, bem como de educação
para o trabalho, inclusive na modalidade de Educação a Distância, conforme previsto em
Resoluções deste Conselho sobre a EJA.
§ 1º Recomenda-se que, em cada unidade da federação, as ações de educação formal
desenvolvidas nos espaços prisionais sigam um calendário unificado, comum a todos os
estabelecimentos.
192
§ 2º Devem ser garantidas condições de acesso e permanência na Educação Superior
(graduação e pós-graduação), a partir da participação em exames de estudantes que demandam
esse nível de ensino, respeitadas as normas vigentes e as características e possibilidades dos
regimes de cumprimento de pena previstas pela Lei n° 7.210/84.
Art. 13 Os planos de educação da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios
deverão incluir objetivos e metas de educação em espaços de privação de liberdade que atendam
as especificidades dos regimes penais previstos no Plano Nacional de Educação.
Art. 14 Os Conselhos de Educação dos Estados e do Distrito Federal atuarão na implementação e
fiscalização destas Diretrizes, articulando-se, para isso, com os Conselhos Penitenciários
Estaduais e do Distrito Federal ou seus congêneres.
Parágrafo Único. Nas penitenciárias federais a atuação prevista no caput deste artigo compete ao
Conselho Nacional de Educação ou, mediante acordo e delegação, aos Conselhos de Educação
dos Estados onde se localizam os estabelecimentos penais.
Art. 15 Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se quaisquer
disposições em contrário.
CESAR CALLEGARI
193
ANEXO 2
Ministério da Justiça
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA -
CNPCP
RESOLUÇÃO Nº-03, DE 11 DE MARÇO DE 2009
Dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a Oferta de
Educação nos estabelecimentos penais.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E
PENITENCIÁRIA – CNPCP, Dr. SÉRGIO SALOMÃO SHECAIRA, no uso de suas atribuições
legais, previstas no Art. 64, I, Lei nº 7.210/84, bem como no art. 39, I e II, do Anexo I do Decreto
nº 6.061, de 15 de março de 2007,
CONSIDERANDO o Parecer da Conselheira Valdirene Daufemback sobre as propostas
encaminhadas pelo Plenário do I Seminário Nacional de Educação nas Prisões;
CONSIDERANDO o Protocolo de Intenções firmado entre os Ministérios da Justiça e da
Educação com o objetivo de fortalecer e qualificar a oferta de educação nas prisões;
CONSIDERANDO o disposto na Lei nº 10.172/00 – Plano Nacional de Educação;
CONSIDERANDO que o governo federal, por intermédio dos Ministérios da Educação e da
Justiça é responsável pelo fomento e indução de políticas públicas de Estado no domínio da
educação nas prisões, estabelecendo as parcerias necessárias junto aos Estados, Distrito Federal e
Municípios;
CONSIDERANDO o disposto na Constituição Federal de 1988, na Lei nº 7.210, de 11 de julho
de 1984, bem como na Resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, deste Conselho, que fixou
as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil;
CONSIDERANDO, finalmente, que o projeto “Educando para a Liberdade”, fruto de parceria
entre os Ministérios da Educação e da Justiça e da Representação da Unesco no Brasil, constitui
referência fundamental para o desenvolvimento de uma política pública de educação no contexto
prisional, feita de forma integrada e cooperativa, e representa novo paradigma de ação, a ser
desenvolvido no âmbito da Administração Penitenciária,
194
RESOLVE:
Art. 1º - Estabelecer as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação nos estabelecimentos
penais.
Art. 2º - As ações de educação no contexto prisional devem estar calcadas na legislação
educacional vigente no país e na Lei de Execução Penal, devendo atender as especificidades dos
diferentes níveis e modalidades de educação e ensino.
Art. 3º - A oferta de educação no contexto prisional deve:
I – atender aos eixos pactuados quando da realização do Seminário Nacional pela Educação nas
Prisões (2006), quais sejam: a) gestão, articulação e mobilização; b) formação e valorização dos
profissionais envolvidos na oferta de educação na prisão; e c) aspectos pedagógicos;
II – resultar do processo de mobilização, articulação e gestão dos Ministérios da Educação e
Justiça, dos gestores estaduais e distritais da Educação e da Administração Penitenciária, dos
Municípios e da sociedade civil;
III – ser contemplada com as devidas oportunidades de financiamento junto aos órgãos estaduais
e federais;
IV – estar associada às ações de fomento à leitura e a implementação ou recuperação de
bibliotecas para atender à população carcerária e aos profissionais que trabalham nos
estabelecimentos penais; e
V – promover, sempre que possível, o envolvimento da comunidade e dos familiares do(a)s
preso(a)s e internado(a)s e prever atendimento diferenciado para contemplar as especificidades de
cada regime, atentando-se para as questões de inclusão, acessibilidade, gênero, etnia, credo, idade
e outras correlatas.
Art. 4º - A gestão da educação no contexto prisional deve permitir parcerias com outras áreas de
governo, universidades e organizações da sociedade civil, com vistas à formulação, execução,
monitoramento e avaliação de políticas públicas de estímulo à educação nas prisões.
Art. 5º - As autoridades responsáveis pelos estabelecimentos penais devem propiciar espaços
físicos adequados às atividades educacionais (salas de aula, bibliotecas, laboratórios, etc),
integrar as práticas educativas às rotinas da unidade prisional e difundir informações
incentivando a participação do(a)s preso(a)s e internado(a)s.
Art. 6º - A Direção dos estabelecimentos penais deve permitir que os documentos e materiais
produzidos pelos Ministérios da Educação e da Justiça, Secretarias Estaduais de Educação e
órgãos responsáveis pela Administração Penitenciária, que possam interessar aos educadores e
educandos, sejam disponibilizados e socializados.
Art. 7º - Devem ser elaboradas e priorizadas estratégias que possibilitem a continuidade de
estudos para os egressos, articulando-as com entidades que atuam no apoio dos mesmos – tais
como patronatos, conselhos e fundações de apoio ao egresso e organizações da sociedade civil.
Art. 8º - O trabalho prisional, também entendido como elemento de formação integrado à
educação, devendo ser ofertado em horário e condições compatíveis com as atividades
educacionais.
195
Art. 9º - Educadores, gestores, técnicos e agentes penitenciários dos estabelecimentos penais
devem ter acesso a programas de formação integrada e continuada que auxiliem na compreensão
das especificidades e relevância das ações de educação nos estabelecimentos penais, bem como
da dimensão educativa do trabalho.
§ 1º Recomenda-se que os educadores pertençam, preferencialmente, aos quadros da Secretaria
de Educação, sejam selecionados por concursos públicos e percebam remuneração acrescida de
vantagens pecuniárias condizentes com as especificidades do cargo.
§ 2º A pessoa presa ou internada, com perfil e formação adequados, poderá atuar como monitor
no processo educativo, recebendo formação continuada condizente com suas práticas
pedagógicas, devendo este trabalho ser remunerado.
Art. 10 – O planejamento das ações de educação nas prisões poderá contemplar além das
atividades de educação formal, propostas de educação não-formal e formação profissional, bem
como a inclusão da modalidade de educação à distância.
Parágrafo único – Recomenda-se, a cada unidade da federação, que as ações de educação formal
sigam um calendário comum aos estabelecimentos penais onde houver oferta.
Art. 11 – O capítulo “Seminário Nacional pela Educação nas Prisões: Significados e
Proposições”, do Projeto “Educando para a Liberdade”, constitui o Anexo I da presente
Resolução.
Parágrafo único – O texto integral do projeto “Educando para a Liberdade”, pode ser encontrado
no seguinte endereço eletrônico www.mj.gov.br/cnpcp.
Art. 12 - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação.
SÉRGIO SALOMÃO SHECAIRA
Presidente
196
ANEXO 3
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS REALIZADAS COM OS COLABORADORES
Roteiro de entrevista (aluno)
1. Conte suas lembranças de escolas em que estudou fora do CR. O que mais gostava e não
gostava?
2. E as disciplinas? Qual mais gostava? E qual não gostava?
3. Qual disciplina da escola mais te ajudou na vida?
4. Quais as semelhanças e diferenças que você percebe da escola aqui dentro e na rua?
5. Você estudou em outra escola no sistema prisional? Quais as semelhanças e diferenças
dos lugares que você passou?
6. O que você pensa com relação à remição de pena por estudo? Como funcionava a
contagem em outros lugares que passou?
7. Você concorda com o jeito que a remição é contada: 12h de aula para 1 dia de pena? Você
acha que mudou a motivação para a escola depois disso?
8. E se continuasse sem remição por estudo... você optaria por estudar?
9. Como foi feita a transferência de seus documentos escolares de outra escola pra esta
(CR)?
10. De que maneira se dá o processo da escola quando há transferência de unidades?
11. O que considera importante numa escola?
12. O que é preciso para aprender algo aqui na escola?
13. O que considera importante aprender numa escola que pode utilizar aqui dentro e quando
sair daqui?
14. O que não pode faltar numa escola pra ser considerada de excelente qualidade?
15. Para você, o que é ser um bom professor?
16. O que considera importante aprender na escola?
17. Tem algo que não é ensinado e você considera importante?
18. Imagine que exista a possibilidade de mudar radicalmente a escola dentro da prisão: o
espaço, os móveis, o material, as disciplinas... Como seria essa mudança pra você?
Descreva.
197
19. Para você o que significa a palavra “conhecimento”?
20. O que você considera uma pessoa culta?
21. Quais conhecimentos você acha que são importantes?
22. Você tem liberdade na escola?
23. Para que serve a escola aqui dentro e na rua?
198
ROTEIRO DE ENTREVISTA (MONITOR-PRESO)
1. Quais as semelhanças e diferenças da escola aqui de dentro e a da rua?
2. Descreva suas atividades com relação a sua função. Você se sente preparado pra ensinar?
3. O que considera fundamental para exercer a docência?
4. Você tem liberdade para planejar? E o material didático? Você gosta?
5. Como planeja? Como faz a seleção do material que utiliza?
6. Onde busca ou buscou referência para nortear sua postura como professor?
7. Para você o que é currículo?
8. Se pudesse montar o que considera importante aprender de conhecimentos aqui na escola,
o que escolheria como uma lista de possibilidades a serem ensinadas?
9. Quanto as disciplinas e conteúdos: sente falta de alguma coisa? Ou sobra?
10. Como divide a distribuição das disciplinas ao longo da semana?
11. Você considera a carga horária das aulas suficiente para a aprendizagem?
12. Quais as principais dificuldades encontradas por seus alunos para aprender algo novo?
13. Para você o que significa a palavra conhecimento?
14. Qual o peso da remição por estudo na sua concepção? Da maneira como está cumpre seu
objetivo?
15. Sugere alguma outra alternativa?
16. Existe registro do percurso dos alunos, portfólios ou outra maneira de acompanhar a parte
pedagógica dos alunos?
17. Imagine que exista a possibilidade de mudar radicalmente a escola dentro da prisão: o
espaço, os móveis, o material... Como seria essa mudança pra você? Descreva.