Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação...

121
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP José Cavalhero Simon Junior Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação da Profa. Doutora Suely B. Rolnik.

Transcript of Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação...

Page 1: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

José Cavalhero Simon Junior

Cartografias para uma educação inventiva

Mestrado em Psicologia Clínica

São Paulo-SP 2017

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica,

sob a orientação da Profa. Doutora Suely B. Rolnik.

Page 2: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

2

Page 3: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

3

Banca Examinadora

______________________________________________________

______________________________________________________

______________________________________________________

Page 4: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

4

Page 5: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

5

Page 6: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

6

Page 7: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

7

Agradeço à Capes e à Fundasp pelo apoio financeiro.

Page 8: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

8

Page 9: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

9

Agradecimentos

A John Bartholomew, por estar sempre amorosamente ao meu lado.

À Luciana Tonelli, amiga que me apresentou ao Núcleo da Subjetividade, por saber que lá

seria o melhor lugar para gerar tensões no movimento de meus pensamentos.

À Vanessa Marques e Helena Freire, pela oportunidade de transformarmos juntos nossas

inquietudes pedagógicas em motivações formativas para produção da diferença.

À Elizabeth Scatolin, coordenadora da Educação Infantil da Escola Vera Cruz, pela amizade

e iniciativa de propor uma aliança que até os dias de hoje nos propicia compartilharmos

experiências éticas e políticas em educação infantil; às orientadoras Clélia Cortez, Fabiana

Meirelles, Licia Breim, Márcia Cristal e Stela Barbieri, por toda a disposição e empenho para

construirmos nossos processos de aprendizagens na prática; a toda equipe de professores,

atelieristas e auxiliares sempre tão comprometida com a continuidade da formação e com os

princípios da escola.

Às pedagogistas, aos atelieristas e professores de Reggio Emilia que generosamente

partilham seus pontos de vista sobre a potencialidade das crianças de zero a seis anos e que

nos inspiram a fazer educação infantil de qualidade, sob perspectiva socioconstrutivista.

À Suely Rolnik, um especial agradecimento, pelo modo como acolheu minhas indagações e

por me propiciar o aprendizado de que é possível “driblar” o Inconsciente Colonial no

território da educação brasileira.

Page 10: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

10

Page 11: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

11

Resumo: Este trabalho de pesquisa realizou-se pelo desejo de cartografar distintos processos de

subjetivação produzidos no território da educação e seus efeitos na aprendizagem.

Para que o percurso se realizasse, foi escolhido um traçado composto por afetos de um

corpo educado por ensinamentos instituídos desde a escolarização básica, até as

práticas de educador que quer se relacionar com aprendizagens inventivas na

formação de professores da Educação Infantil. Esse traço composto permitiu-me entrar

em diálogo com a filosofia da abordagem Educativa de Reggio Emilia–Itália e com

conceitos criados por Deleuze e Guattari, referenciais utilizados para gerar zonas de

confronto entre o sistema de ensino instituído - que tem em sua estrutura a

objetividade consensual para a formação de sujeitos – e sistemas educativos para

aprendizagens inventivas que abrem espaço para processos de singularização,

efetivação de agenciamentos fora do instituído e produção de diferença.

Palavras-chave: educação inventiva; Reggio Emilia; atelierista; produção de subjetividade; inconsciente colonial; sujeito da experiência; confronto.

Page 12: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

12

Page 13: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

13

Abstract: This research project has been moved by the desire to cartographize different processes

of subjectification produced within the territory of education, as well as their effects on

learning. In order for such an endeavor to take place, a path was chosen that comprised

affects of a body predicated upon the institutionalized teachings of formal education,

as well as its practices as an educator who wished to be in contact with inventive

learning within teacher education for early childhood education. Such a design has

enabled me to promote dialog with the philosophy of the Reggio Emilia Approach

(Italy) and concepts created by Deleuze and Guattari, both of which have been

employed so as to generate zones of confrontation between systems of institutionalized

teaching – which at its core has consensual objectivity as a means for subjectification –

and educational systems that revolve around inventive learning which in turn open up

space for singularization processes, assemblages posited outside the institutionalized

and the production of difference.

Key words: inventive education; Reggio Emilia; atelierista; subjectification; colonial unconscious; subject of experience; confrontation.

Page 14: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

14

Page 15: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

15

Introdução - 19

o processo cartográfico de um confronto pedagógico

Prenúncio outonal - 35

a iniciação de um educador inventivo

Memória e Documentação - 49

conservar para a reprodutibilidade e renovar em produtividade

A prática-ateliê - 59

entre potencialidades expressivas e intencionalidades pedagógicas

A professora, o atelierista e o menino - 71

três pontos de vista de uma mesma experiência escolar

Escuta Nômade e Escuta Sedentária - 87

escutar a indeterminação e o determinado

Projeto educativo paisagístico e projetação educativa paisagisante - 93

duas perspectivas no território da educação

Renovação de votos de obediência e responsabilidades para o sucesso - 105

ou comprometimento com a cartografia paisagisante

Bibliografia - 119

Em busca do sujeito da experiência na escola - 73

uma trajetória em curso constante

Sumário 1 ● 2 ● 3 ● 4 ● 5 ●

6 ●

7 ● 8 ● 9 ●

10 ●

Page 16: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

16

Page 17: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

17

“A aprendizagem e o ensino não devem estar em

margens opostas olhando o rio fluir; pelo contrário,

devem embarcar juntos em uma jornada rio abaixo. Por

meio de trocas ativas e recíprocas, o ensino pode

fortalecer a aprendizagem sobre como aprender.” MALAGUZZI, 2012, p.73

Page 18: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

18

Page 19: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

19

Introdução

o processo cartográfico de um confronto pedagógico

O corpo, sem mergulhar, adentra na piscina da memória semiesvaziada. Não há

profundidade suficiente para o mergulho. Ainda que semi-imerso, sente-se inteiro naquela

experiência de incompletude, de divisamentos que insistem separar o dentro e o fora. Por isso,

só poderia imaginar-se em mergulho, porque estava ali, preso ao raso e escorregadio fundo

de azulejos brancos, equilibrando-se na estranha gravidade entre o que imerge e o que

emerge de si. Ressurge, então, projetando-se fora da piscina, deslocando-se para se ver

completamente envolvido com a experiência da incompletude. No lugar de divisas, deseja

desvios. Para isso, é preciso mergulhar em profundidade no raso da memória.

Tempo de inseminar outras experiências.

slide 01 – Só me lembro da tua ausência - 0,80cmx100cm Acrílica e pastel oleoso, sobre cartão

Page 20: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

20

Page 21: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

21

Fiz parte, primeiro como aluno-aprendiz e mais tarde como educador-ensinador, de um

sistema de ensino e aprendizagem organizado por uma pedagogia condutora que não

permitia frestas de incertezas em suas práticas como estratégia para esquivar-se da

heterogeneidade. Um sistema que ainda persiste e traz em seu enunciado o que se espera de

uma escola “politicamente correta.”

Para que o funcionamento desse sistema seja garantido, é preciso investir na preparação

especializada do adulto que, por sua vez, desenvolve nos alunos-aprendizes competências e

habilidades pontuais e condizentes com o repertório de conhecimento. O objetivo é

instrumentalizar o docente a formar discentes que possam exercer uma suposta autonomia

na inserção social, buscando reconhecer-se e ser reconhecido como “a” representação

identitária no contexto de uma sociedade, de uma cultura. Nessa concepção evolutiva, o que

rege o ensino são mecanismos de homogeneização da aprendizagem, com valores moralizantes pré-

fixados que conduzem à promoção de uma normatividade a ser exercida e mantida. Nesse contexto

educativo, não há espaço para se relacionar com as singularidades, tampouco para que estas

se relacionem entre si – por isso, podemos considerá-la uma abordagem educativa

arborescente e molar.

O sistema de educação arborescente acredita que existe um “tronco” que se expande a

partir de uma fonte nutriente de saberes, e desse tronco derivam-se as especializações. A

árvore como representação do conhecimento expressa um ideal conservador, linear e

evolutivo, que planifica o ensino por meio de hierarquias e que é sustentado por uma única

raiz – da jaqueira nunca se espera colher cerejas.

São muitas as responsabilidades e promessas que envolvem esse tipo de educação.

Trataremos, aqui, daquelas que contribuem para o traçado cartográfico do problema desta

pesquisa. São elas: preparar sujeitos aptos a solucionar problemas objetivos deste mundo

(sem estimular a sua problematização, ou ainda a invenção pragmática de outros mundos);

preparar sujeitos que saibam formular ótimas respostas laborais sem jamais cair na tentação

de indagar sobre possíveis incertezas nas “horas vagas”; é preciso que todos sejam

competentes perante o desafio de manter-se no caminho das certezas e, mesmo que essas

certezas em algum momento da trajetória se tornem obsoletas, o que importa é ter o esforço e

a capacidade de substituí-las prontamente por “novas“ certezas.

Page 22: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

22

Por isso, o enunciado dessa conduta pedagógica pode

ser entendido como uma possível face da colonização,

como uma política do inconsciente colonial-capitalístico1

que maquina e verifica, desde a primeira infância, os

efeitos que se quer (e os “defeitos” que não se quer), a

partir da estratificação de corpo-sujeito-apreendido-no-

mundo-das-formas. Estamos falando de um sistema

coerentemente previsível e programático, transmissível e

hierárquico, de uma educação que tem a moral como sua

medida avaliativa, que discerne e determina o que é certo e

errado ou o que pode ser mais ou menos evolutivo e

produtivo para que ocorra uma experiência educativa

progressista. Entende-se, aqui, por alcance de resultado, a

precisão e potência da força autoexercida pelo sujeito em

um plano onde ele deveria estar em perfeita submissão a

um certo sistema, sentindo-se pertencente à comunidade de

aprendizagem instituída.

A comunidade de aprendizagem instituída, no sentido mais amplo de vivenciar a

educação em coletividade escolar, desenvolve modos de viver para que os sujeitos que a

compõem possam aprender a se reconhecer mutuamente, encontrando-se e se reafirmando

em suas semelhanças por terem como referência os ensinamentos de enunciados

determinantes, onde modelos identitários são preceitos daquilo que passa a ser de direito e

de dever para distintos agrupamentos – gestores, alunos, pais, professores etc. Essa estrutura

de comunidade constitui um corpo-coletivo cindido pelo fato de que, mesmo que todos

estejam necessariamente em situações comunicantes uns com os outros, ainda assim se

encontram na condição de corresponderem às relações previsíveis ditadas por um

enunciado. Essa educação de ensino programático gera expectativas de aprendizagens

instituídas – ou aprendizagens esperadas de um corpo que precisa ser ensinado/disciplinado

para se emancipar.

1 ROLNIK,Suely.Anotaçõesfeitasapartirdapalestra“Pensarapartirdosaber-do-corpo–umamicropolíticapararesistiraoinconscientecolonial”.PACA,SãoPaulo,2015.

No caminho do meu ateliê, deparei-me com essa imagem-ruído. Capturei-a com o olhar desvencilhado de alinhamento e ao mesmo tempo atribuí sentido ao estranhamento (o título da foto é “o aluno”).

Page 23: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

23

Ensina-se e avalia-se nessa comunidade a formação de

indivíduos disciplinados desde a infância, partindo de

categorias representativas de um modelo de adulto,

classificando as crianças como deficitárias pela suposta

inexistência de “pensamento”, de função simbólica, de

capacidade de estabilizar-se em determinadas formas

(irreversibilidade das formas), inteligência pré-cognitiva,

pré-operatória, pré-lógica, etc. São identificadas por suas

“faltas” e conduzidas por um adulto pelo caminho da

superação evolutiva 2 para que, na vida adulta,

especializem-se em uma determinada área do

conhecimento, visando sua inserção num mundo que se

configura por uma ordenação neoliberal, no caso da

atualidade.

Esse tipo de educação se esforça e prima pelo exercício da “igualdade” como um

mecanismo de regulagem que, ao mesmo tempo em que agrega indivíduos para que se

sintam semelhantes, aumenta a distância entre diferentes agregações (grupos, tribos, guetos

etc.). Há um fortalecimento das estereotipias que são arquitetadas por um ideal de poder

hierárquico e que prefiguram imagens de sujeitos e as suas devidas relações comunitárias, de

modo que essas relações sejam simpáticas (enãoempáticas) – comunidade que se forma, e

passa a formar sujeitos, para a conservação de uma determinada ordem.

Para que se tenha uma ideia de como a educação formal corrobora para a manutenção de

tal sistema, muitos municípios brasileiros implantaram nas escolas públicas programas de

empreendedorismo desde a Educação Infantil, como se vê em São José dos Campos (SP),

Patrocínio (MG), Maringá (PR), Lucas do Rio Verde (MT), Rio do Sul (SC), Três Passos (RS),

entre outros3.

2 KASTRUP,Virginia.2000–Nesseensaio,KastrupdesenvolveumacríticasobreaideiadedéficitdacogniçãoinfantilapartirdeumaleituradoconstrutivismodeJeanPiaget.3 Informaçõessobreosprogramasnosmunicípioscitadospodemserconsultadasnossitesdasrespectivasprefeituras.Últimoacessofeitoemoutubrode2016.

“Na construção da criança como um reprodutor de conhecimento, identidade e cultura, a criança pequena é entendida como iniciando a vida sem nada e a partir de nada (...) O desafio é fazer com que ela fique “pronta para aprender” e “pronta para a escola” na idade do ensino obrigatório. Por isso, durante a primeira infância a criança precisa ser equipada com os conhecimentos, com as habilidades e com os valores culturais dominantes que já estão determinados, socialmente sancionados e prontos para serem administrados – um processo de reprodução ou transmissão – e tem também de ser treinada para se adaptar às demandas estabelecidas pelo ensino obrigatório.”

DAHLBERG,Gunilla;MOSS,Peter;PENCE,Alan.2003.p.65

Page 24: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

24

Nessa perspectiva, só cabe a uma educação

arborescente exercer o ensino colonizador que

garanta a constituição de uma aprendizagem

instituída para o confinamento. Quer dizer, cria-se

uma forma determinante para se “viver bem” em

sociedade e, assim, todo o tronco que estrutura o

pensamento pedagógico se ergue para que aprendizes sejam ajustados a essas formas de

existência pré-determinadas e habitem no mundo previsível dos sujeitos assujeitados à

sombra dessa árvore, “com as habilidades e com os valores culturais dominantes que já estão

determinados, socialmente sancionados e prontos para serem administrados”4.

Uma típica educação colonizadora quer que “seu”

sujeito-aprendiz, ou melhor, seu aprendiz-de-sujeito,

sobreviva no mundo, e não que habite o mundo. Por outro

lado, a aprendizagem inventiva deseja a emancipação do

sujeito: que ele não se deixe capturar pelo confinamento do

sobreviva no mundo e experimente a aprendizagem de

liberação das forças para produzir as condições de habitar

o mundo, assim como criar outros mundos partindo do que

nele pede passagem. Em outras palavras, a escola colonizadora produz uma força reativa às

forças liberadoras para confinar o sujeito-aprendiz permanentemente em uma determinada

forma, segundo uma modelização de aluno. Desse modo, evita-se que esse aluno perceba a

força ativa como potência para a produção de aprendizagem inventiva, que se dá fora da

condição de aprendiz-de-sujeito.

A comunidade de aprendizagem inventiva exige um outro modo de estar e agir

socialmente em nome da formação de um coletivo. Ela empreende um sentido de pensar o

ambiente escolar de modo que coletivizar seja em si um ato de empatia (enãodesimpatia),

uma atitude que potencializa a reunião de corpos-indivíduos no convívio e no valor da

“equidade”. Isso, porque considera os saberes de um corpo que não se ensina/não se

disciplina, mas se emancipa a partir das experiências de si, as quais associo às aprendizagens

singulares – ou aprendizagens inventivas, termo que tomo emprestado de Virgínia Kastrup5.

4 DAHLBERG, MOSS e PENCE, 2003, p. 655 KASTRUP,Virgínia.2007

“A transmissão de informação reproduz a antiga ideia de instrução e de transmissão de saber. Não há nada a ser experimentado, criado ou inventado. A aprendizagem é uma questão de processamento de informações e de conservação na memória. Na melhor das hipóteses, trata-se de aprendizagem inteligente, com vistas à solução de problemas.”

VirginiaKastrup-Ensinareaprender:falandodetubos,poteseredes

Page 25: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

25

Isso não quer dizer que nesse tipo de relação não haja encontros entre sujeitos que se

assemelham e escolhem formar seus grupos específicos de convívio. A diferença dessa

comunidade para aquela que se pauta por aprendizagem instituída se encontra no desejo de

seus habitantes de participarem da coconstrução de interesses comuns a partir da

pluralidade, de modo que a escuta para e na diversidade se torna o meio propício para a

realização de encontros entre pontos de vista – uma comunidade que se autoforma e forma

para a criação de uma nova e provisória ordem. Desse modo, podemos pensar em uma

comunidade que faça da escola um viveiro de “propostas de aprendizagem que insistem em

não dividir o mundo em categorias de pensamento mais ou menos rígidas, mas, ao contrário,

que busquem conexões, alianças e solidariedades entre diferentes categorias, linguagens e

materiais.“ (VECCHI,2013,p.88)

Mesmo havendo algumas iniciativas pedagógicas que apoiam pesquisas à procura de

novos meios de ensino para além de suas finalidades, a grande maioria das escolas –

particulares e públicas, universidades e organizações que promovem a formação continuada

para profissionais da educação formal – ainda é muito mais eficaz na atualização de

conhecidos modos de aprendizagem, reforçando o traçado de suas fronteiras territoriais para

que nada escape ao controle. Essa delineada territorialização quer se proteger de uma

suposta instabilidade que “em termos subjetivos, traduz-se como sensação de irreconhecível,

de estranhamento, de perda de sentido – em suma, de crise.”6

Diante dessas configurações educativas, proponho traçar caminhos possíveis para a

pesquisa sobre produção de subjetividade em cada uma delas: seja pela regulagem da

aprendizagem da criança para que ela alcance “sua igualdade” (coletividade homogênea,

identitária), ou pela invenção de dispositivos para o exercício da alteridade, que reconhece a

criança como “outro” na experiência da equidade (coletividade heterogênea, o encontro

entre singularidades), há em ambas seu próprio plano de imanência.

Não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar que a manutenção de uma pedagogia

conservadora é calcada em princípios que buscam atender às expectativas de sua

comunidade. Então, numa vertiginosa ânsia mercadológica, uma máquina de repetição-

reprodutibilidade-criatividade é acionada sob orientação de uma bússola moral que orienta

6 ROLNIK,Suely,2014,p.50

Page 26: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

26

o pensamento “antropo-falo-ego-logocêntrico”7, (re)produzindo (re)arranjos mirabolantes

com as “inovadoras” tecnologias da educação. Portanto, renovar-se, no caso dessas

instituições conservadoras, não é se aventurar, mas instalar-se cada vez mais no mesmo

território de domínio para estar à altura das exigências culturais capitalísticas e fortalecer seu

poder de dominação.Nesta perspectiva, não se faz senão produzir e reproduzir a política de

constituição da subjetividade coletiva que Guattari designa por“subjetividade capitalística”8.

A comunidade de aprendizagem inventiva ganha potência ao implicar a interação entre

sujeitos sob o prisma das corresponsabilidades micropolíticas9, que possibilita fazer das

instituições educativas um campo de composição a ser inventado a partir dos mesmos

componentes, quer dizer, dos componentes educacionais que condizem com as escolas,

associações, grêmios, organizações não governamentais etc. Trata-se de desconstruir uma

formatação conhecida para que um campo de invenções compositivas possam germinar a

criação do n(ovo), a produção da diferença, um estado e um lugar autopoiético que não

antecipa o seu acontecer, mas, de certo modo, deseja o acontecimento. É um plano de

imanência que se constitui, e é ele que “assegura o ajuste dos conceitos, com conexões

sempre crescentes, e são os conceitos que asseguram o povoamento do plano sobre uma

curvatura renovada, sempre variável.”10

Para que a produção da diferença ocorra, é imprescindível implicarmo-nos com os

deslocamentos do processo que não antecipam o modo em que se constituirão, ou mesmo o

quê e quem os impulsionarão. Dessa maneira, há que se reterritorializar a experiência a partir

de deslocamentos nômades, inventando, portanto, novas paisagens e novos povoamentos.

Ou seja, é no confronto entre similaridades e assimilações singulares que poderemos nos

deparar com o saber da experiência, que Jorge Larrosa define por aquilo que “se adquire no

modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no

modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece”11.

As tensões geradas entre o desejo por manutenção do status quo e pela desconstrução do

mesmo podem ser entendidas como um campo potente de agenciamentos para a produção

da diferença, da criação de um outro território para a educação. Mas quando ganham o

7 Conceitoque,naspalavrasdeSuelyRolnik,éaquiloqueorientaopensamentoocidental,identitário,colonial,capitalísticoetc.,quesecontrapõeàbussolaética–pensamentoantropofágico,heterogêneo,animista,relacional,imanente,perspectivistaetc.8VerGuattarieRolnik,Micropolíticas–cartografiasdodesejo,cap.II9 OsconceitostrazidosparaesseparágrafovieramdolivroMicropolítica–cartografiasdodesejo,deSuelyRolnikeFélixGuattari10 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.201011 LARROSA,2014,p.32

Page 27: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

27

sentido de reatividade, de embate entre forças, ao invés de entender as tensões como

oportunidade para atualização e, portanto, invenção de uma outra escola, interpreta-se a

força da desconstrução como destruidora, como aniquiladora de uma vez por todas da

instituição escolar, porque para a força da manutenção não cabe outro modo de se praticar o

ensino formal que não seja arborescente e molar. Porém, desconstruir é dar passagem para a

reinvenção, para rearranjos e novas composições para que a escola se torne lugar da

aprendizagem molecular e rizomática.

Tempos atrás, recusei-me a trabalhar como formador em uma escola diante da

incompatibilidade de concepções, o que impedia que a diferença pudesse ser produzida.

Cheguei a estipular a condição de que a formação só poderia se realizar quando a instituição

eliminasse a priori os problemas, identificados por mim como forças reativas que impediam o

alcance dos resultados que havia planejado no atendimento de minhas convicções

pedagógicas. É claro que isso não aconteceu, e essa experiência levou-me a indagar porque

eu, no lugar de confrontar-me como formador diante de tal desafio, escolhi convencer o

outro que eu saberia o que seria melhor para todos. Ou seja, a minha tentativa em querer

convencer o outro foi uma atitude de força reativa, e não de força ativa – um legado de

minha formação básica.

A experiência educativa que produz diferença não é resultado de uma “técnica” ou

“metodologia” que se aprende fora da experiência para depois exercitá-la. Tampouco

acontece fixando-se na nostalgia por uma educação idealizada. Também não se cria tal

movimento em oposição a tudo isso. Cria-se a partir da relação que se quer estabelecer entre

o desejo por diferença e o desejo de conservação no território em que, nós, educadores,

habitamos e estamos habituados a permanecer. É preciso investigar e problematizar a

constituição das paisagens educativas e os modos de suas ocupações.

As aprendizagens instituída e inventiva, ou molar/arborescente e molecular/rizomática,

foram vividas, e ainda as vivo em meu corpo, em diferentes tempos, situações e

acoplamentos, envolvendo memórias, lembranças, anotações e imagens ligadas diretamente

ao encontro entre vários “eus” - aluno, artista, professor, pesquisador. O esforço desse

encontro se dá no movimento que quer unir e ao mesmo tempo dissolver esses sujeitos, para

que um devir-outro possa surgir da imersão-emergência de si (equilibrar-se na estranha

gravidade), e liberar-se de um simples agrupamento de representações que define um

itinerário de chegada a uma suposta estabilidade, ou identidade composta (no lugar de

Page 28: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

28

divisas, deseja desvios), para implicar-se não mais com aprendizagens mutiladas, mas com

aprendizagens-agenciamentos que colocam em conexão os processos heterogêneos e

comunicantes surgidos no encontro entre esses sujeitos. Para que isso se efetue, lanço mão do

confronto como dispositivo.

Atribuo ao confronto o sentido de dispositivo, por considerá-lo um modo de estabelecer

encontros heterogêneos entre singularidades, movimentando-se em direção às tensões

geradas pela busca do equilíbrio, sem que isso signifique o alinhamento de desejos para se

chegar a uma estabilidade unificadora. Tampouco se espera um resultado parcial, ou mesmo

consensual, nem se estipulam pontos de convergência ou um índice para conivências

apaziguantes. Não confrontar, não se ocupar de espaços intermediados resultantes de

fricções, bem como eximir-se de debates por vezes contundentes, impede que novas

paisagens educativas emerjam com toda a diversidade que nelas possa haver e, ao mesmo

tempo, que sejam constituídas por suas próprias ecologias.

Contextualizo aqui o confronto como território para os agenciamentos maquínicos e de

enunciação, onde cada “confrontado” seja capaz de

distinguir em si e no outro o conteúdo que constitui o

sistema pragmático no qual suas ações e paixões se

manifestam, assim como a expressão que segue um regime

de signos e que por sua vez condiz com um determinado

sistema semiótico. Então, o que proponho é promover

situações de confronto no campo da educação para

problematizar e avaliar as pressuposições recíprocas que

possam surgir no encontro entre distintas estruturas de

pensamento e suas respectivas ações, sob a perspectiva da

dupla articulação pedagógica que se dá por meio do ensino e da aprendizagem. Quer dizer,

tornar evidenciável se o que se diz é o que se faz na escola, para além de um juízo de valor.

A dupla articulação pedagógica não é aquela de ordem binária, que quer verificar se foi

aprendido aquilo que se quis ensinar. Senão, seria apenas um jogo de comparações para

verificar a eficácia de uma certa didática. Em contrapartida, construo uma teoria, mesmo que

ainda provisória, de que o ato voluntário de ensinar tem em si seu próprio conteúdo e

expressão, assim como aprender também tem o seu. O confronto entre esses distintos

conteúdos e expressões, quer dizer, de quem ensina e de quem aprende, é que irá estabelecer

“…a proposta interdisciplinar, em todos seus matizes, aponta para uma tentativa de globalização,este cânonedo neoliberalismo, remetendo ao Uno, ao Mesmo, tentando costurar o incosturável de uma fragmentação histórica dos saberes. A transversalidade rizomática, por sua vez, aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicação, para a atenção às diferenças, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas.”

GALLO,Silvio.2008,p.79

Page 29: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

29

uma unidade composta por distintas subjetividades12 e “tipos de organização formal e

modos de desenvolvimento substancial.” Essa unidade-educação, que a princípio é

heterogênea em sua formação, constitui-se estrato. E é desse estrato que advém território

para possíveis agenciamentos.13

Ao ocupar-me nessa e dessa paisagem educacional, sendo por ela habitado e habitando-a

de modo afetivo, tenho a hipótese de que isso possibilitará a ocorrência de “agenciamentos

promovendo o cruzamento entre múltiplas instâncias da memória. Tais instâncias compõem

então duas dimensões do ato coletivo de agenciar: agenciamento coletivo de enunciação,

posto que se trata de expressar-se apropriando-se de regimes semióticos ou de produção de

signos, e agenciamento maquínico de desejo, posto que se trata não de reproduzir, mas de

criar tanto as subjetividades quanto os meios nos quais elas passam a existir como efeitos,

efeitos de agenciamento.14”

O que há sob a perspectiva das comunidades em aprendizagens inventivas é que, por

serem moleculares e rizomáticas, a educação torna-se ela mesma espaço vibracional de

expansão da vida, e não de sua mera conservação. Ela é pulsão de vida. Uma virtualidade

que se atualiza no frágil (ou nenhum) contorno entre a utopia e o factível, o ordinário e o

extraordinário, porque a vida “não pode ser conceitualizada, porque sempre escapa a

qualquer determinação, porque é, nela mesma, um excesso, um transbordamento, porque é

nela mesma possibilidade, criação, invenção, acontecimento.”15

Esse estado, por vezes assombroso, caótico e incerto,

encontrando-se ainda informe e embrionário (como nos

agenciamentos), permite aos educadores e educandos

viverem juntos a imprevisível processualidade de uma

experiência em coconstrução, simultaneamente

autopoiética, singular e comum. Singular, porque se quer

valorizar o que surge do confronto resultante da

heterogeneidade na vivência das relações. E comum,

porque as forças que atravessam cada um são as mesmas, embora as experiências e os

enunciados que possam vir a produzir para torná-las sensíveis sejam singulares.

12 GUATTARI,Félix,2012,p.19-“...subjetividadeé:‘oconjuntodascondiçõesquetornapossívelqueinstânciasindividuaise/oucoletivasestejamemposiçãodeemergircomoterritórioexistencialautorreferencial,emadjacênciaouemrelaçãodedelimitaçãocomoumaalteridadeelamesmasubjetiva’.”13 osconceitosabordadosnesseparágrafoestãoemDELEUZE,GUATTARI.2012,pp.230-23414 SOUZA,Pedrode.Agenciar.IN:Pesquisarnadiferença,umabecedário.2012,p.3015 LARROSA,Jorge.2014,p.43

“A escuta é um processo permanente que alimenta reflexão, acolhimento e abertura em direção a si e em direção ao outro; é condição indispensável para o diálogo e a mudança. O comportamento da escuta eleva a atenção e sensibilidade com relação aos cenários culturais, de valores e políticos de contemporaneidade.”

RegimentoEscolaseCrechesdacomunadeReggioEmilia–p11

Page 30: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

30

Podemos dizer que a comunidade de aprendizagem inventiva é um sistema autopoiético

por se criar a si mesma e em si mesma. E é rizomática, por ser aberta o suficiente para

estabelecer conexões para além de seu próprio sistema e sofrer afecções (desvios,

bifurcações) para continuar autocriando-se.

Enquanto os saberes instituídos instruem o corpo para que ele seja socialmente

reconhecido num determinado território cultural, os saberes inventivos envolvem um devir-

corpo em toda sua singularidade, abrindo espaço para que, como no campo da arte, surja um

“Projeto Plástico, sob o signo da transdisciplinaridade (cruzamento e superposição de vários

campos do conhecimento) e Intermídia (livre trânsito entre diferentes meios de expressão,

com a utilização de diversos materiais)”16.

Agora, dito isto, me posiciono novamente como formador e busco promover

aproximações entre o que ocorre quando um educador quer se deparar com a fonte inventiva

ou gênese da vida (pulsão de vida) e o que ocorre quando quer se fixar na representatividade

instituída de vida (pulsão de morte). Essa problematização quer trazer à tona a experiência

ocorrida no sujeito-educador e também fora dele para provocar confronto entre educar-sena

experiência para ser educador e no desejo de ser educador em experiência. Mas o confronto

aqui proposto não quer chegar a um veredicto que justifique incompatibilidades de

interesses entre inventar e instituir educação, quer valorizar é a aprendizagem que se dá no

contato com os afectos de um corpo em relação, seja essa relação estabelecida com um saber

instituído e/ou mesmo com uma experiência que está por sugerir um saber. É a busca pelo

ultrapassamento de quaisquer representações e generalizações de sujeito, de mundo e de

sujeitos no mundo, independentemente do que se possa aprender com isso, mesmo que

ainda se insista em saber o que se quer ensinar.

Proponho problematizar tais aprendizagens em seus processos maquínicos de

subjetivação, processos implicados diretamente na formação dos sujeitos que habitam uma

ou outra comunidade educativa, sejam eles crianças ou adultos. Portanto, escolho adentrar

por estes dois cenários que promovem a aprendizagem instituída e a inventiva na esfera da

Educação Infantil, lugar no qual atualmente atuo como professor, assessor, investigador e

provocador de deslocamentos da estrutura de pensamento dos educadores e de suas práticas

educativas que, a princípio, transitam na esteira do antagonismo com seus desejos por

mudança e busca de estabilidade ao mesmo tempo. 16 BASBAUM,2013–p30

Page 31: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

31

Minha investigação é em si um exercício do olhar que se atualiza e atualiza a possível

imagem-percepção do conhecido, na intenção de desfazer a nitidez das ligaduras e dos

contornos já formalizados pela captura de um olhar sujeito de alinhamentos. Quero

descobrir e inventar novos arranjos de passagem estando na própria passagem, outras

matizes e seus meios-tons utilizando a mesma paleta para decompor a imagem-percepção

sobre o pensar e fazer educação vigente, seja nos territórios da pedagogia conservadora ou

fora dele, para iniciar uma recomposição por meio dos processos cartográficos

(reterritorialização).

Desejo viver a difusão, a dispersão e o espalhamento, o desmanchamento e o sfumatto de

traços que me impedem de produzir diferença em minha aprendizagem como formador.

Acredito que essa postura potencializa mudanças no território da educação, para um devir-

todo-mundo, que é “fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas

zonas de indiscernibilidade. O Cosmo como máquina abstrata e cada mundo como

agenciamento concreto que o efetua. Reduzir-se a uma ou várias linhas abstratas, que vão

continuar e conjugar-se com outras, para produzir imediatamente, diretamente, um mundo,

no qual é o mundo que entra em devir e nós devimos de todo mundo”17.

Lanço mão da cartografia para tornar visível a

construção de um território existencial no próprio processo

das minhas práticas formativas, “numa perspectiva de

composição e conjugação de forças”18 que se avizinham,

que provocam tensões entre saberes do corpo instituído e

saberes do corpo inventivo. Na busca de um melhor

itinerário cartográfico, percebi que há muitas entradas e

caminhos que podem se configurar. O que sei é que não

procuro demarcar terras, não adentrarei por objetivos de “ocupação”, e sim de encontrar-me

no movimento de itinerância, ou talvez prefira dizer eterna errância.

17 DELEUZE,GUATTARI.2012,p.7718 ALVAREZJohnny;PASSOS,Eduardo.IN:Pistasdométodocartográfico:aexperiênciadapesquisaeoplanocomum.2014.p.137

“Para a cartografia, o método não se define por metas traçadas anteriormente, tampouco se delimita a partir desta ou daquela ferramenta de pesquisa, mas sobretudo por um caminho e uma direção ético-política. Possibilita que no pesquisar os instrumentos sejam forjados, (re)situando-os sempre a partir do plano de relações que produz a pesquisa, não a partir de si mesmos.”

PASSOS,E.,KASTRUP,V.;TEDESCO,S.2014,p.155

Page 32: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

32

O conceito de cartografia, apresentado por Gilles

Deleuze e Félix Guattari na introdução de Mil Platôs,

define-se por um movimento de construir caminhos ao se

caminhar, fazendo do caminho e do caminhante-

cartógrafo, deles e neles mesmos, o próprio traçado de

possíveis percursos. Desse modo, processos de produção

cartográfica acontecem por sua característica rizomática,

que se faz em múltiplas direções, provocando

deslocamentos e cruzamentos de raízes em conexão de

redes. Diante disso, cartografar uma nova paisagem

educativa gera um movimento socioconstrucionista que advém da ética do encontro. E que,

por sua vez, advém de um ato investigativo, cocriador e coinventivo.

Na perspectiva investigativa, o confronto promove transformações sob linhas de

desterritorialização, possibilitando outras linhas de composições para criar-se outras formas

e forças educativas em agenciamentos. Trazer a educação paraocampo do confronto é por si

produção de diferença: tempo de inseminar outras experiências. É desse modo que trago a

abordagem educativa de Reggio Emilia como inspiração para minha pesquisa, e não apenas

como referência de eficiência pedagógica.

“...a investigação educativa não aspira a ter ideias ou conhecimentos, nem tornar-nos conscientes através de certa tomada de consciência, mas é, antes, um mundo de investigação que abre um espaço existencial e-ducativo: um espaço concreto de liberdade prática. Em outras palavras, a investigação e-ducativa cria um espaço de possível transformação do eu que implica uma liberação (uma dupla ‘e-ducação’) do olhar, e que, nesse sentido, é também esclarecedora. Nessa investigação, o saber não está dirigido a compreender (melhor). Mas a esculpir, isto é, a fazer uma incisão ou uma inscrição concreta no corpo que transforme o que somos e como vivemos. Essa investigação diferencia-se por sua preocupação com o presente, e com a nossa relação com ele; uma preocupação em estar presente no presente, que é outra maneira de dizer que sua principal preocupação é prestar atenção. Estar atento é uma atitude-limite cujo objetivo não é delimitar o presente (mediante julgamento), mas expor as próprias limitações e expor-se a elas.”

JanMasscheleineMaartenSimons–Apedagogia,ademocracia,aescola-pp.46-47

“O trabalho com a ética de um encontro na pedagogia da escuta requer que o educador pense o Outro como alguém que ele não pode aprisionar, e que desafia todo o cenário da pedagogia. Pois a pedagogia do escutar representa ouvir pensamento – ideias e teoria, questões e respostas de crianças e adultos; significa tratar o pensamento de forma séria e respeitosa; significa esforçar-se para extrair sentido daquilo que é dito, sem noções preconcebidas sobre o que é certo e apropriado.”

DAHLBERG,Gunilla;MOSS,PeterinRINALDI,Carla.2003.p.43

Page 33: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

33

EscoladaInfânciaDiana–ReggioEmilia,Itália

Page 34: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

34

Page 35: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

35

Prenúncio outonal

a iniciação de um educador inventivo

Nunca havia vivido as cores de outono que iluminam o hemisfério norte. A primeira vez

foi em 2004, quando estive na pequena Reggio Emilia, cidade italiana de discreta elegância e

intenso legado histórico, social e cultural. Logo no primeiro dia, com o cansaço da viagem

vencido pela ansiedade, encontrei disposição para caminhar por um pequeno trecho da Via

Emilia - estrada romana construída em 187 a.c. e que hoje é uma das principais ruas que dão

acesso ao centro histórico. De lá, segui para o “Parco del Popolo”, um grande jardim público

que se estende pelas laterais e por detrás da imponente edificação do Teatro Municipal.

Ao passear pelas alamedas do parque, quase sozinho, sentia-me inundado pelo sol poente

enquanto meu rosto recebia uma brisa fria, a mesma brisa que fazia dançar lá no alto as

folhas dos plátanos, frássinos e carvalhos. Uma paleta coreográfica de insistentes amarelos,

ocres, laranjas e vermelhos se constituía em indiscreto contraste com o azul brilhante do céu -

ato da natureza que não tem vergonha de propiciar tamanha ousadia para o olhar.

Depois de caminhar por um tempo sem medida, sentei-me num antigo banco de madeira

e ferro típico de jardim e, apesar de todo aquele grito de vida emanando da paisagem,

entendi que havia um apelo outonal para um respirar silencioso e calmo... nada de pressa,

José.

Atendi ao apelo e me permiti ser visitado pelos afetos produzidos por aquele conjunto de

forças. É claro que essa minha predisposição para os dados imediatos de tais forças não

estava isenta de um desejo originário, ou do verdadeiro motivo que me levou até aquela

cidade, até aquele parque. Queria estar em Reggio Emilia e viver, pela primeira vez como

educador, as intensidades das práticas educativas voltadas para a primeira infância, cujo

germe emergiu em toda sua potência diante da imprevisibilidade do pós-guerra. Portanto,

uma história que fez da adversidade um território propício para se produzir diferença. Para

isso, será preciso apresentar Loris Malaguzzi e o seu encontro com o desejo de mudança de

um povo.

Loris Malaguzzi foi um educador e, acima de tudo, um agenciador de extrema

importância para que essa abordagem educativa se consolidasse e se mantivesse em seu

percurso até os dias de hoje. Tudo começou quando ele testemunhou a força ativa de um

grupo de homens e mulheres camponeses e operários da Villa Cella, que, tão logo a guerra

Page 36: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

36

havia se findado, ainda na primavera de 1945, se organizaram para construir uma escola

infantil com a recuperação de escombros das edificações bombardeadas e também por meio

de vendas dos tanques de guerra sucateados e de cavalos abandonados. Enquanto os

homens, durante a semana, se dedicavam ao trabalho nas fábricas e na lavoura, as mulheres

recolhiam escombros a serem transformados em potentes materiais. Aos domingos todos se

dedicavam ao projeto e, a cada tijolo assentado, uma nova ideia de escola, de criança e de

sociedade se erguia – eis aqui o germe de um novo povoamento. E Malaguzzi, ao

testemunhar esse ato, se encontra em plena desestabilização da verdade pedagógica que

aprendera como professor.

“Todos os meus pequenos modelos foram comicamente revirados: que a construção de uma escola se

desse por meio do povo, de mulheres, de fazendeiros, de funcionários era em si traumático. Mas, que

essas mesmas pessoas, sem um centavo em seus nomes, sem conhecimentos técnicos, sem alvarás de

construção, inspetores do Ministério da Educação ou do Partido, pudessem realmente construir uma

escola com as suas próprias forças, tijolo por tijolo, era o segundo paradoxo”19.

A partir dessa experiência, as escolas passaram a ser

projetadas sobre alicerces do acolhimento e da cogestão, para que

sustentassem e abrigassem, ao mesmo tempo, o bem-estar das

crianças, famílias e professores. Um lugar em que o ato de

ensinar não seria produzir aprendizados para as crianças numa

relação linear de causa e efeito, mas construir condições para que

o aprendizado de todos ocorra no estabelecimento estreito de

relações, no entrecruzamento de singularidades, para que se

possa constituir um processo de aprendizagem comum e

autoconstrutivo.

Convidar adultos para se relacionarem com a primeira infância sob essa perspectiva faz

com que o aprendizado de meninos e meninas seja, em grande parte, do trabalho das

próprias crianças, de suas atividades e no emprego de seus próprios recursos, e isso passa a

dar visibilidade ao lugar ativo da criança na construção e aquisição de saberes e de

entendimento. As crianças são auto-organizadoras e construtoras de suas próprias

inteligências e, para os adultos, cabe a responsabilidade e o rigor na criação de contextos em

que escutá-las é parte fundamental do trabalho educativo.

19 Fonte:MalaguzziapudBarazzoniinEDWARD;GANDINI;FORMAN(orgs.),2016,p.46

“A catástrofe consiste em que a sociedade de irmãos ou de amigos passou por uma tal prova que eles não podem mais se olhar um ao outro, ou cada um a si mesmo, sem uma ‘fadiga’, talvez uma desconfiança, que se tornam movimentos infinitos do pensamento, que não suprimem a amizade, mas lhe dão sua cor moderna, e substituem a simples ‘rivalidade’ dos gregos”.DELEUZE;GUATTARI.2010.p.129

Page 37: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

37

Nessa perspectiva, não cabe o exercício ético da

educação arborescente/molar e hegemônica destinada

àquela criança genérica e adultocêntrica, por se tratar de

uma ética que tem sua medida avaliativa constituída por

crivos morais. Será necessária uma ética que deseja estar à

altura da experiência do fazer e do pensar educação por

implicações cruzadas, inventando-se em sua própria

processualidade relacional em busca de “manter o

equilíbrio entre os direitos e as responsabilidades de três

componentes e protagonistas da escola – crianças,

professores e família.20” Nessa proposta é importante a

reunião de pessoalidades que estão dentro e fora da escola

para, juntas, criarem inúmeros e possíveis modos de

coparticipação em diálogo com questões educacionais,

criando um estado democrático por meio de uma ética do

encontro21 que não considera a diferença um obstáculo. Ao

contrário, o outro é considerado como igual, mas só pode

sê-lo na confirmação de não ser o mesmo, já que se trata de

um encontro entre composições singulares de mundos,

singularidades em processo.22

Todo esse saber construído é fruto de uma atividade que se atualiza constantemente e se

inventa, seja pelas discussões sobre as novas concepções de infância trazidas por intelectuais

da psicologia e da pedagogia nos anos 1950, seja pelo atendimento da reinvindicação de

mulheres nos anos 1960 por creches para que pudessem ocupar seus lugares no mercado de

trabalho, e assim por diante.

O que os educadores de Reggio Emilia aprendem a fazer, e fazem muito bem, é colocar

em diálogo com o mundo seus pontos de vista ético-estético-políticos de educação e

sociedade, numa atitude crítica que possibilita cartografarem o encontro entre o mundo

adulto e a cultura da infância em sua potência comunitária, para além de suas fronteiras

citadinas. Essa atitude se exerce por meio de uma micropolítica estabelecida em cada escola,

20 VECCHI,2013,p.121(traduçãominha)21 No capítulo 2, pp. 56-61, do livro “Qualidade na educação infantil”, os autores fazem uma interessante síntese de váriospensadoresa respeitodeumaéticadeumencontro.Mas,écoma leiturasobreEmmanuelLevinasquenosaproximadarelaçãoentreadultosecriançasquesedáaescutadediferentes“si”deumaexperiênciacomum.22 DAHLBERG,MOSS,PENCE,2003

AprimeiravezqueouvialguémtratardaéticadoencontroforadaabordagemreggianafoiMorganaMasetti,minhacolegadepós-graduação,emumadenossasaulascomSuelyRolnik.Emoutromomento,liotextodeMorganaeencontreioseguintedizer:“Estaética[doencontro]estabeleceumasituaçãodecumplicidadeeconfiançanasrelaçõesegeraascondiçõesparaqueseestabeleçamespaçosinternosdereflexãoeaprendizado.Pensaraprendizadonestecontextoéligarensinoaosacontecimentosdavida.Consideraraexperiênciadequemaprendecomoprincipalrecursodeformação.Pensarnaéticadasrelaçõescomofontedeaprendizado,ondeosafetoseocorposãolugaresimportantesdeaprendizado.Ondeseprivilegiaperguntasasoluções,centrandooconhecimentoemumprocessopermanentedepesquisa.Umtrabalhoquereafirmaoaprendercomodaordemdohumano.”MASETTI,Morgana.Porumaéticadoencontro:ainfluênciadaatuaçãodepalhaçosprofissionaisnaaçãodosprofissionaisdesaúde.IN:revistaeletrônicaID–doCentrodeinvestigaçãoDidacticaeTecnologianaFormaçãodeFormadoresdaUniversidadedeAveiro,Portugal.2013-http://revistas.ua.pt/index.php/ID/article/view/2499

Page 38: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

38

que considera a educação “como uma atividade comunitária e como forma de compartilhar a

cultura por meio da exploração conjunta entre crianças e adultos que abrem tópicos em

conjunto para investigação e discussão.”23

Portanto, a comunidade reggiana de pais e educadores,

principalmente de crianças de 0 à 6 anos, parte do princípio

de que a escola é lugar público de uma comunidade aberta,

híbrida e transitória, o que leva ao entendimento de que o

planeta é um território constituído por comunidades

singulares e também constituinte de território comum.

Todos somos corresponsáveis. E esse foi o chamamento que

atendi para que meu desejo me levasse até lá, e procurasse

naquele jardim público a localização da Escola Infantil

Diana, situada dentro do parque.

A escola Diana tornou-se uma referência mundial e principalmente de interesse dos

americanos, quando em 1991 a Revista Newsweek a nomeou como lugar de excelência da

educação infantil. Desde então, o cuidado com os princípios e valores que pautam a vida nas

escolas de Reggio Emilia duplicou. Não para que garantissem um certo “purismo” e nem

proteção contra possíveis invasores. Ao contrário, queriam que outras aproximações os

provocassem, que os atualizassem em seus processos. Desse modo, a filosofia e as práticas da

abordagem educativa de Reggio Emilia seguem em constante construção, porque fundem

educação, política e cultura sob o desejo de estabelecer possíveis diálogos com o mundo em

sua contemporaneidade.

Esse movimento de relacionar-se com o que se faz urgente e “interessante” no cenário

local e mundial em nada ameaça sua potência molecular/rizomática de singularização.

Também não deixa esvair sua memória, a ponto de sucumbir aos encantos de alguma

efemeridade que possa banalizar as relações que primam pela educação ou se deixar

encantar por uma “novidade” qualquer lançada no mercado de produtos simbólicos.

Encontrei a escola, com sua entrada escondida em meio das árvores. É possível acessá-la

por uma rua que fica à margem do parque. Lá permaneci por um outro tempo sem medida.

Sabia que, por ser um fim de semana, a escola estaria fechada e inabitada. Mesmo assim,

intuía que essa visita seria uma experiência para mim, um certo rito de iniciação para o que 23 EDWARD;GANDINI;FORMAN(orgs.),2016,p.25

osseteargumentosimportantesnaabordagemreggiana:

1- foco de atenção na criança e não no que se quer ensinar

2- a transversalidade cultural e não a setorização do saber

3- o projeto e não a programação

4- o processo e não só o produto final

5- a observação e a documentação dos processos individuais e de grupo

6- o confronto e a discussão como estratégias para a formação

7- autoformação dos professores

Page 39: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

39

estava por vir na semana seguinte: participar do primeiro encontro com os educadores

reggianos organizado para países de Língua Portuguesa que, posteriormente, tornou-se anual

e voltado para educadores do continente latinoamericano com palestras, oficinas e visitas às

escolas.

A princípio, a busca por aquela experiência não era nada

simples de se realizar. Afinal de contas, foi preciso um

grande investimento emocional e financeiro para deslocar-

me entre continentes. Ao mesmo tempo, naquele parque, me

vi num ato que, de tão simples que era, de estar diante da tal

escola, permitiu-me tê-la como território para entrar em contato com a memória de tantas

leituras que fiz sobre a vida que ali pulsava e, de repente, todo aquele complexo estado fez

transbordar no lusco-fusco da tarde a dimensão cheia do vazio. Um vazio de tamanha

plenitude que nele me fiz noite serena para que pudesse viver um despertar revigorante.

Em uma das páginas dos diários de Paul Klee, há uma passagem em que o artista se

depara com o vazio infinito de uma tela em branco e se dá conta da impossibilidade de ter,

de antemão, uma “orientação adequada” para aventurar-se no extremo e vasto campo da

pintura. A tela, mesmo sendo-lhe objeto conhecido, apresentava-se como uma “terra

incógnita [e] suficientemente misteriosa”. Foi preciso que ele vivesse, naquele momento, um

ato de suspensão de tudo que lhe era sabido no campo da arte. Mas, de modo algum, tal

suspensão o retirou de cena. Ao contrário – “É preciso avançar, porque há muito tempo há

indícios de que esse passo adiante vem sendo preparado.”

O branco-vazio da tela aos poucos transbordava os limites do chassi para fundir-se com o

esvaziamento do “eu” que delimitava Klee. Houve um desmanchamento de limites, houve

um encontro entre o esvaziamento do eu-artista e o transbordamento do vazio da tela. A

expansão dos dois vazios se confrontou e isso pôde compor um único vazio pleno de

potência. Criou-se um plano de imanência, que se fez devir pintura.

Não havia mais como negar a necessidade de me colocar

em suspensão diante daquele contexto em Reggio Emilia.

Também era preciso avançar, porque havia indícios

suficientes de que eu estava lá pronto para dar o passo

adiante nas minhas investidas em Educação, passo que a

tanto tempo vem sendo preparado. Foi, então, que se deu a

“...o vazio é uma sensação, toda sensação se compõe com o vazio, compondo-se consigo, tudo se mantém sobre a terra e no ar, e conserva o vazio, se conserva no vazio conservando-se a si mesmo.”

DELEUZE;GUATTARI.2010.p.195-96

“Em cada acontecimento, há muitos componentes heterogêneos, sempre simultâneos, já que são cada um um entre-tempo, todos no entre-tempo que os fazem comunicar por zonas de indiscernibilidade: são variações, modulações, intermezzi, singularidades de uma nova ordem infinita.”

DELEUZE;GUATTARI,2010,p.188

Page 40: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

40

iniciação do meu outono para que pudesse viver o “entre-tempo” dos processos, dedicando-

me à colheita-semeadura. Ou quando a memória se encontra e confronta com novas

experiências. Ou, nas palavras de Guattari: “O nada caótico patina e faz transitar a

complexidade, coloca-a em relação com ela mesma e com que lhe é outro, com o que a altera”

(GUATTARI.2012.p.130).

Estava numa dimensão entre saber e não saber, como se estivesse preparando uma paleta

de cores contrastantes para produzir pintura que, enquanto a preparava, o branco-vazio da

tela nunca deixou de convocar a pincelada suspensa no ar. O que ainda interessa é o devir

que se faz entre o pincel e a tela, entre o que nem é começo e nem fim, ou o devir que se faz

entre ensinamentos e aprendizagens - tensões que possam

movimentar o pensamento como experimentação de si.

Nas palavras de Deleuze e Guattari, “...a experimentação é

sempre o que se está fazendo – o novo, o notável, o

interessante, que substituem a aparência de verdade e que

são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não é o

que se acaba, mas menos ainda o que começa.”24

Talvez hoje possa compreender melhor que o encontro que tive com a abordagem

reggiana em 2002, quando foi realizada na cidade de São Paulo a exposição As Cem

Linguagens da Criança25, foi muito mais uma oportunidade para que eu pudesse iniciar

“outra” experimentação do pensamento, do que simplesmente conhecer uma nova proposta

para se fazer e pensar educação.

Aquela mostra nos colocava diante de complexos diálogos interdimensionais, abrindo

para nós, adultos, indagações, inquietações, problematizações que possibilitavam o encontro

com a infância para além das costumeiras interpretações pedagógicas e psicológicas. A

metáfora “Cem Linguagens” é inspirada na poesia De jeito nenhum. As cem estão lá de Loris

Malaguzzi:

24 DELEUZE;GUATTARI.2010.p.13325 DAHLBERG,Gunilla;MOSS,PeterinRINALDI,Carla.2003.p.43- “A mostra foi idealizada pelo pedagogista Loris Malaguzzi e seus colaboradores com o desejo de trazer à público as experiências e os diferentes pontos de vista dos educadores, das crianças e pais em suas protagonizações nas instituições educativas. Para socializar essa história em toda sua complexidade, adotou-se uma pluralidade de recursos e meios com a finalidade de melhor evidenciar a imagem de criança e os indicadores de pesquisa educativa desenvolvidas e em constante desenvolvimento nas creches e escolas de Reggio Emilia. Esta mostra é a história de uma aventura educativa - digamos de vida - que tem entrelaçado durante longos anos experiências, pensamentos, discussões, pesquisas teóricas, ideais éticos e sociais de muitas gerações de crianças, educadores e pais. De amigos italianos e do mundo todo também. Uma história nunca acabada, que quer falar de si mesma procurando espaços mais amplos para a reflexão e o confronto.”

“O vazio é o despojamento dos hábitos e dos rituais de existência, o desnudado dos modos habituais de significação e de experiência. O que está povoado, em suma, pelos hábitos da história pessoal e coletiva. E, por isso, é a plena disponibilidade, a possibilidade, a possibilidade absoluta.”

LARROSA, 2006. p. 58

Page 41: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

41

Voltei várias vezes à exposição que ocupava todo espaço

social da escola e algumas salas do térreo com vídeos,

painéis e trabalhos das crianças. Tudo muito bem

contextualizado, de estética impecável em que o olhar do

adulto não se sobrepunha ao da criança, ao contrário, era

uma mostra da processualidade que envolvia a relação

entre adultos e crianças onde ambos estavam em estado de

aprendizagem.

A organizadora da mostra, Anna Maria Barrucci, cidadã

reggiana que vive em São Paulo, na época participava da

comissão de pais da escola ítalo-brasileira Eugenio Montale

(local onde a mostra foi sediada) e criou um grupo de estudos que teve início logo após o

término da temporada expositiva. Nesse grupo, permaneci os quatro anos de sua existência e

tive a oportunidade de ser o responsável pela disseminação de nossas pesquisas em

congressos e seminários pelo território brasileiro.

Em meio a esse tempo, conheci várias pedagogistas e atelieristas26 de Reggio Emilia que

passaram pelo Brasil em conferências e trabalhos de assessoria. Eram esses italianos que se

aproximavam de nós, com curiosidade sobre nossos pensamentos e olhares, porque não se

dispunham à relação pura e simplesmente cordial ou de boa vizinhança entre estrangeiros,

26 asnomenclaturaspedagogistaeatelieristaforamcriadaspelaequipedeeducadoresinfantisreggianosparadistinguiremdohabitualpapelqueexercemopedagogoeoprofessordeartenasescolas,respectivamente.

(TraduçãodeLellaGandini)

“A translação de uma linguagem a outra ajuda-nos a nos libertarmos das gaiolas da repetição e a descobrirmos mais facilmente que podemos encontrar sempre novos pontos de exploração e de partida. Na realidade, essa metáfora traz também uma ideia de conhecimento com múltiplos pontos de vista subjetivos e intersubjetivos, portanto, que faz da participação uma estratégia, uma estrutura. A cultura das cem linguagens não é só uma abordagem expressiva ou disciplinar, mas uma ética da necessidade da pluralidade dos pontos de vista e das culturas na construção do conhecimento”.

ProjectZero-ReggioChildren–Tornandovisívelaaprendizagem–p.58

.

Page 42: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

42

mas de uma relação que sempre transpirou ética por vivência macrocomunitária – quero

dizer que se tratava da acolhida generosa de uma comunidade nômade que quer fazer

educação no mundo, para o mundo e com o mundo, estabelecendo relações heterogêneas e

complexas entre todos os envolvidos com questões educacionais na contemporaneidade em

diferentes realidades, rompendo fronteiras culturais ou geográficas.

Enquanto isso, em muitos de nós, integrantes do grupo de estudos ou não, prevalecia o

desejo de recepcioná-los com o nosso imaginário de prática educativa perfeita.

Recepcionávamos com as interpretações dadas pelos livros editados no Brasil, Itália e

Estados Unidos sobre suas experiências, com a nossa atenta escuta desenvolvida em seus

colóquios e com os indícios que estudávamos nas documentações de suas escolas. O que

menos estava presente nesses encontros éramos nós com a nossa realidade. Talvez, tudo isso

fosse um exercício da força reativa do inconsciente colonial, dificultando e até mesmo

impossibilitando o estabelecimento de um produtivo e verdadeiro confronto.

Apesar da nossa possível postura de colonizados, tudo florescia vigorosamente nos

primeiros anos do Grupo de Estudos e nos pedia atenção cuidadosa diante de toda

ansiedade despertada pela diferença que se anunciava e a ânsia de disseminá-la. Era preciso

que desenvolvêssemos uma escuta para discernir entre o choro de um povo colonizado que

busca aliviar-se à sombra de um comando vindo do exterior, certificando-se do caminho

certo a ser seguido, e do pulsar inquietante que se deixa ser afetado pelo campo das

diferenças processuais de uma invenção – como Virgínia Kastrup nos elucida, “se houvesse

uma teoria da invenção, ou mesmo leis da invenção, seus resultados seriam passíveis de

previsão, o que trairia o caráter de novidade e imprevisibilidade que toda invenção

comporta” 27 . Para produzir a diferença, no entanto, entende-se ser preciso criar um

movimento de desterritorialização que tem início na investigação do exercício vigente de

educação e seu mecanismo de subjetivação.

Nada poderia ser mais contraditório ao desejar para a

Educação um modelo definitivo para se fazer diferença. A

diferença não se representa, mas se produz e se apresenta

em sua própria produção. Quer dizer, essa experiência

educativa que queremos só se faz na processualidade da

desterritorialização e reterritorialização dela mesma. Não

27 KASTRUP,2005, p. 127

“A desterritorialização e a reterritorialização se cruzam no duplo devir. Não se pode mais distinguir o autóctone e o estrangeiro, porque o estrangeiro se torna autóctone no outro que não o é, ao mesmo tempo que o autóctone se torna estrangeiro a si mesmo, a sua própria língua: nós falamos a mesma língua, e todavia eu não entendo você...”

DELEUZE;GUATTARI.2010.p.132

Page 43: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

43

cabe seguir modelos, tampouco produzi-los para inferir em substituições. A experiência

educativa da diferença inventa-se, por isso se apresenta em todo seu indeterminismo e

incompletude, para que surja dela e nela mesma um campo de imanência. A única coisa que

o desejo por produzir diferença pode antecipar é que “algo” será produzido em uma incerta

e difusa paisagem circunscrita a partir de um determinado território. No nosso caso, essa

circunscrição territorial chama-se Educação.

Infelizmente, a grande maioria dos educadores brasileiros interpretava (ou ainda

interpreta) a abordagem italiana como um modelo que definitivamente representa a

diferença. Mas, o que isso significa? Que subjetividade estaria em jogo quando se evidencia a

necessidade de ter uma representação da diferença? Me arrisco dizer que ainda prevalece o

desejo de reproduzir “aquilo que dá certo” para que se possa evitar a angústia de correr

riscos de permanecer no caos, no lugar de viver os riscos de poder criar a partir do caos,28 ou

viver o que não se valida pelo crivo da previsibilidade. Seria um pensamento de idealismo

romântico, uma utopia querer esse lugar para um educador?

Em uma breve apresentação no “Grupo de estudos

Latino América - 2015”, Carla Rinaldi disse que a

abordagem de Reggio Emilia é uma utopia concreta, e isso

é perceptível em cada fala, gesto e espaço construído por

adultos e crianças daquela cidade. Em Reggio Emilia,

produz-se uma pedagogia da diferença na prática. Para

isso, criaram uma abordagem que acontece em sua

processualidade – que envolve virtualidades atualizando-

se constantemente em suas teorias.

O território escola, para aquela cidade, torna-se lugar da invenção educativa, aliando a

bagagem de conhecimentos da humanidade com aquilo que ainda há de se conhecer, que se

opõe à necessidade de buscar o que ainda não se sabe. Essa abordagem propicia inaugurar

um percurso formativo com (e não para) educadores e crianças, tornando a formação viva e

necessariamente coconstruída na experiência. Portanto, trata-se de um movimento político

de corresponsabilidade socioconstrucionista da educação e da cultura da infância.

Se considerarmos a educação reggiana de direito e de fato29, na perspectiva de uma

micropolítica que pensa a escola como lugar de uma coletividade constituída pela

28 Caosnosentidodeumvazioplenoenãodeimpossibilidade,deumfundodediferençaspré-individuaisquepossibilitacriarumcorpo;estadodegerminação.29 Dedireitoedefato,éumtemadiscutidoporJoãoPerciemsuatesededoutorado-PragmatismoPulsional–ClínicaPsicanalítica.PUC/SP,2012

“A utopia não aspira a um ponto no futuro, um ideal a ser alcançado, um sonho a ser atingido, mas designa o encontro entre um movimento infinito e o que há de real aqui e agora (não é isto precisamente o desejo?), entre o conceito e as forças do presente que o estado de coisas atual não deixou vir à tona.” PELBART, P. Peter. Deleuze e a Pós-modernidade.originalmentepublicadoem:PELBART, Peter Pál. Vida Capital: Ensaiosdebiopolítica.SãoPaulo:Iluminuras,2000.https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/06/13/deleuze-e-a-pos-modernidade-peter-pal-pelbart/

Page 44: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

44

heterogenia e pela alteridade, no lugar de concebermos a criança como um projeto de vir a

ser adulto, partimos da premissa de que a escola é o lugar de viver a pluralidade, onde cada

sujeito em sua singularidade encontra-se com o outro e, desse encontro, inventa-se um modo

de viver em coletividade no patamar da equidade. Quer dizer, cada adulto e cada criança

afirmando-se mutuamente como legítimo outro no convívio escolar, capazes de juntos e

separadamente produzirem significados em encontros com pessoas e com o mundo.

(MATURANA,2002)

Os direitos das crianças

Consta no regimento das escolas e creches de Reggio Emilia a atitude que se espera de

uma comunidade de aprendizagem que promove o encontro e valoriza a coparticipação

como estratégia educativa “construída e vivida no encontro e na relação dia após dia (...) e se

articula em uma multiplicidade de ocasiões e iniciativas para construir o diálogo e o senso de

pertencimento a uma comunidade.30”

O que faz acontecer essa política educativa para crianças de 0 a 6 anos tem a ver

diretamente com a constituição de uma rede colaborativa e de gestão comunitária em

estâncias local e mundial, que considera a educação direito das crianças, dos pais, dos

educadores. A gestão desses direitos não é apenas da responsabilidade dos atores da escola,

mas da comunidade toda sob o princípio de que “Educação e/é Política”31, valorizando o

30 ReggioChildren-RegimentoEscolaseCrechesparaainfânciadacomunadeReggioEmilia,201331 Educaçãoe/éPolitica:geraraliançasnosistemadeserviçosparaainfância-títulodadoparaoXIXcongressonacionalrealizadoem2014.

O direito das crianças de serem reconhecidas como sujeitos de direitos individuais, jurídicos, civis, sociais: portadores e construtores das próprias culturas e para tanto participantes ativos da organização das suas identidades, autonomias e competências através de relações e interações com os coetâneos, os adultos, as ideias, as coisas, os acontecimentos verdadeiros e imaginários de mundos comunicantes. Isso, enquanto confirma as premissas fundamentais para uma maior condição de cidadania do indivíduo e das suas relações inter-humanas, credita às crianças, e a cada criança, dotes e potencialidades natos de extraordinária riqueza, força, criatividade, que não podem ser renegados e desprezados, senão provocando sofrimentos e empobrecimentos frequentemente irreversíveis. Daí surge o direito das crianças de realizar e expandir todas as suas potencialidades, valorizando as capacidades de socializar, recolhendo afeto e confiança e satisfazendo as suas necessidades e desejos de aprender: mais ainda se assegurados por uma eficaz aliança dos adultos prontos a oferecer ajuda, a qual privilegie mais a pesquisa das estratégias construtivas do pensamento e do agir que a transmissão do saber e das habilidades. O último aspecto é o que possibilita a formação de inteligências criativas, conhecimentos livres e individualidades reflexivas e sensíveis através de ininterruptos processos de diferenciação e integração com o outro e com outras culturas. Que os direitos das crianças sejam os direitos das outras crianças é a dimensão de valor de uma humanidade mais compacta.

Loris Malaguzzi – Reggio Emilia – Janeiro/1993

Page 45: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

45

aprender junto e em relação para que todos procurem saber escutar as diferentes vidas e

criarem um constante movimento coparticipativo para novos modos de vida escolar.

Portanto, uma educação que se constitui de direito e de fato – dupla articulação do que se faz

e do que se diz.

Uma escola que quer aprender nas e com as conexões e as interconexões de mundos se

predispõe a colocar as áreas de conhecimentos e cotidiano em relação. Isso implica não

apenas saber fazer conexões com as mais diversas fontes e experiências com sentido, mas

principalmente saber pensar sobre como fazê-las e o sentido de fazê-las. Esse movimento

tem seu próprio ritmo e possibilita para uma comunidade de aprendizagem estar à altura de

uma experiência educativa inventiva que se constrói coparticipativa e singularmente por

uma rede que se faz em conectividade.

Compartilho aqui o olhar de Virgínia Kastrup sobre construção desse tipo de rede, que se

desenha como tal por ser “variável e flexível, sem extensão ou forma fixa, (...) faz-se e refaz-

se pelas conexões que cada nó estabelece com sua vizinhança. Sua estrutura é

multidimensional no sentido de que existem diversas séries heterogêneas encaixadas. Dito

de outra forma, existem redes dentro da rede, ou ainda, cada nó pode abrir e constituir ele

próprio uma rede. Enfim, a rede define-se durante seu funcionamento, definindo posições

que não são localizáveis nem previamente dadas. Por sua vez, o funcionamento não é linear

e as conexões propagam-se por vizinhança em diversas direções, de maneira divergente ou

bifurcante, atravessando diferentes dimensões por caminhos imprevisíveis”32.

Portanto, para que a rede em seu rizoma aconteça nos processos de nossa mútua formação

(formador e formandos) é imprescindível nos depararmos com aquilo que possa emergir das

relações entre todos nós, para confrontarmo-nos com o que não sabemos e sofrermos

afecções diante das incertezas e imprevisibilidades do que está por vir. Há que se desprover

do ilusório controle sobre o conhecido, para, em seu lugar, tomarmos emprestado o

conhecido apenas como uma pré-forma para o que ainda não se formou, como um estágio

ainda embrionário em sua potencialidade plástica para criar diferenças.

Aproximar minha experiência profissional com a de pesquisador da abordagem educativa

de Reggio Emilia, ao longo dos anos, abriu um campo para a ocorrência de confrontos

pedagógicos. Campo no qual buscarei posicionar-me criticamente por meio de um processo

cartográfico, perpassando pela pesquisa e necessidade de criar teorias sobre no que e como

duas perspectivas de aprendizagens que se contradizem distinguem-se na produção de

subjetividade na formação de sujeitos.

32 KASTRUP,2007,p.140

Page 46: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

46

Page 47: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

47

Pedaços de tempo que, de fato, se acham em mim, desde

quando os vivi, à espera de outro tempo, que até poderia não

ter vindo como veio, em que aqueles se alongassem na

composição da trama maior.

Às vezes, nós é que não percebemos o “parentesco” entre os

tempos vividos e perdemos assim a possibilidade de

“soldar” conhecimentos desligados e, ao fazê-lo, iluminar

com os segundos a precária claridade dos primeiros.

Paulo Freire

Page 48: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

48

Page 49: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

49

Memória e Documentação

conservar para a reprodutibilidade e renovar em produtividade

A memória que tenho de

tua ausência está entre a

quente luz incidente e o reflexo

no azulejo. Uma memória que

me aproxima da nossa

distância. Ao revisitar o antigo

slide, percebo que ainda posso

sentir os cômodos da nossa

casa preenchidos por nossos

vazios. Suspendo-nos na

imagem pausada, mas os

fungos insistem em se

proliferar, transpassando o

corredor em seus planos de

intensidades. Quero espreitar

com tinta e pincel a duração

dos olhares de quem capturou

aquela imagem e daquele eu

que se deixou capturar. Aos

poucos, a captura da imagem

faz com que (um) eu se

desloque para outro lugar.

Onde realmente essa captura

se dá? O que eu, agora, e eles,

outrora, o que nós buscávamos

espreitar separadamente juntos? É possível que haja aí uma multiplicidade em jogo? Uma dobra?

Talvez seja apenas um desejo de estabelecer o encontro entre as ausências. Mas, nunca as

considerei como se fossem ausências quaisquer. São significativamente ausências presentes –

estavam lá, se entreolhando na interrupção do tempo do corredor, e agora se entreolham por uma

fresta da memória entre fungos.

slide 03 – Só me lembro da tua ausência 100cmx0,64cm Acrílica e pastel oleoso, sobre cartão

Page 50: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

50

Page 51: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

51

“Não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de infância, que são devires-criança no presente.” (DELEUZE;GUATTARI.2010)

A arte e a educação não habitaram comigo ao mesmo tempo e o tempo todo um mesmo

território, mas sempre se avizinharam e constituem um dos estratos da minha memória,

lembranças significativas sobre a experiência de aprendizagem.

Desde muito pequeno, antes de ocupar a escola como aluno, lembro-me de ficar horas

observando coloridas ilustrações de revistas, de livros e de toda sorte de embalagens que

estivessem diante de meus olhos. Como toda criança, me aventurei nas explorações gráficas

(que não foram poucas), descobrindo as possibilidades da linha ao conduzir o lápis com todo

o cuidado sobre o papel, passando por experimentos com o intenso e luminoso colorido das

canetas hidrocor, com a delicadeza opaca do lápis de cor, ou qualquer outro material

“riscante” que produzisse linha, forma, cor, textura para os meus pensamentos.

Certa vez meu pai retirou do bolso de sua camisa uma

caneta esferográfica para me dar. Caneta desse tipo era

coisa de adulto, nunca havia utilizado tal material, o que

me fez imediatamente experimentá-lo sobre a folha de

papel manilha amassada que minha mãe retirou de uma

gaveta da cozinha. Antes de dormir, guardei a caneta em

meu quarto, junto com meus brinquedos. Na manhã

seguinte, ao acordar, decidi usar a caneta sobre a fronha

branca de meu travesseiro para desenhar um cavalo azul.

Ao revisitar na memória a imagem daquele desenho, seria

essa imagem que se imprimiu em mim, a mesma que

expressei na fronha? Acho que isso não é tão relevante,

porque o que me afeta da experiência que vivi não está na imagem, mas no acontecimento

que não cessa de se atualizar.

Passado algum tempo, e ainda menino, ao término de um dia de jornada escolar, minha

professora foi comigo até o portão da escola para conversar com minha mãe. Queria

aconselhá-la a me matricular numa escola de pintura para que eu desenvolvesse meus

“dons”. Dias depois, fui à casa de dona Ester, uma sorridente senhora de cabelos brancos

com quem simpatizei logo de cara.

O presente configura-se em meio a paisagens que por vezes se tornam transitórias e sazonais, ou por sítios que preservam preciosas ruínas e outros que se encontram em plena construção planificada em contemporaneidade. Um verdadeiro estado onde devires e memória transitam livremente em movimento de atualizações. E o que se atualiza “não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos tornando, o que chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução. (...) aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. (...). Sendo que a história e o arquivo são o que nos separa ainda de nós próprios, e o atual é esse outro com o qual já coincidimos.”

DELEUZE,Gilles.1990,pp.155-161.

Page 52: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

52

Não conseguia entender o que aquela mulher e minha mãe tanto conversavam sentadas

naquele sofá, mas também não fiz muito esforço para acompanhá-las. O que eu queria

mesmo era continuar com meu olhar absorto no avental todo manchado de tinta que dona

Ester vestia e nos tantos quadros que disputavam lugar nas paredes da pequena sala.

“É isso que você quer?” – perguntou minha mãe, e, com toda convicção, acenei a cabeça

positivamente. A única coisa que sabia é que queria pertencer àquele mundo.

Ao revisitar a minha trajetória educativa, percebo os

distintos caminhos traçados que ora se entrecruzavam e

ora se bifurcavam. Por um lado, uma professora se deixa

afetar pelas minhas habilidades artísticas e entendeu-as

como “dom”, uma competência que eu deveria aprimorar e

melhor desenvolver aprendendo arte fora da escola –

afinal, não havia lugar para aquela especialização técnica

dentro do currículo programático no ensino formal. Por

outro lado, deveria eu frequentar, como aluno regular, as

aulas de educação artística que se concentravam na

aprendizagem funcional, preparavam-nos para a execução

de trabalhos manuais. Esse tipo de ensino referendado no

saber instituído e tecnicista faz a escola funcionar como

uma máquina normativa, ignorando toda e qualquer possibilidade de viver a aprendizagem

inventiva.

Naquele mesmo dia, ao sair da casa de dona Ester, minha mãe e eu estávamos numa loja

de materiais artísticos, o que foi para mim (e confesso que ainda é) entrar acordado num

sonho. Por detrás do balcão, um homem alto e magro andava de um lado para o outro

consultando a lista que lhe foi entregue para retirar de pequenas gavetas tubos metálicos de

tinta óleo das mais variadas cores com nomes estranhos: Verde Veronése, Terra de Siena

Queimada, Amarelo Cromo... Por fim, tínhamos sobre o balcão, além das tintas, pincéis

chatos e redondos, algumas espátulas, duas pequenas telas, três tipos de vidrinhos com

líquidos misteriosos, e uma maleta de madeira envernizada em que o homem da loja

distribuiu organizadamente todos os materiais. Tudo aquilo ali era para mim. Foi difícil

acreditar.

“No início dos anos 70, concomitante ao enraizamento da pedagogia tecnicista no Brasil, é assinada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71, que introduz a Educação Artística no currículo escolar de 1º e 2º graus (...). Desde a sua implantação, observa-se que a Educação Artística é tratada de modo indefinido, o que fica patente na redação de um dos documentos explicativos da lei, ou seja, (no) Parecer nº 540/77 (...) fala-se na importância do ‘processo’ de trabalho e estimulação da livre expressão. Contraditoriamente a essa diretriz um tanto escolanovista, os professores de Educação Artística, assim como os das demais disciplinas, deveriam explicitar os planejamentos de suas aulas com planos de cursos onde objetivos, conteúdos, métodos e avaliações deveriam estar bem claros e organizados.”

FUSARI,M.,FERRAZ,T.2000,p.37.

Page 53: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

53

Primeira aula no ateliê de dona Ester:

_ Que cor é o céu nessa pintura? – perguntava-me a professora, apontando para a

reprodução de uma pintura realista impressa no formato postal.

_ Azul.

_ Será mesmo, menino? Olha bem.

_ Hmmm... Tem um pouco de branco misturado também.

_ Então experimenta o azul e o branco. Vamos ver o que vai dar.

Branco titânio + azul cobalto. Pincelada da cor no canto superior esquerdo da pequena tela. Olhos

do aprendiz passeando entre a estampa da pintura no postal e a mancha azul desmaiado que

foi produzida.

_ Dona Ester, não ficou igual.

_ Igual não vai ficar mesmo, porque esse quadro é seu... Quando você copia, não significa

que vai fazer igualzinho ao modelo. Deixa eu ver o que você fez.

Silêncio. Olhos da mestra passeando entre o modelo e o resultado da minha tentativa de

reproduzir cor. E eu aguardava o veredicto ao acompanhar aquele grandioso e quieto

movimento do olhar carregado por um saber instituído. Um olhar que verifica aproximações

estabelecidas com a referência.

_ Olha menino, presta atenção. Vou te contar um segredo: o céu sempre tem uma

corzinha a mais do que o azul e o branco. Mistura um pouco, só um pouquinho, de Amarelo

Nápoles nessa cor que você fez. E também, um fiozinho de pincel do Vermelhão Francês. Ah!

Você usou o Azul Cobalto, não foi? Então, use agora o Ultramar. Depois, me chama para eu

ver.

Assim fui iniciado na arte da pintura com referência acadêmica, baseada numa estética

mimética, sob a tutoria daquela mestra – uma funcionária pública aposentada que recebia

em sua casa, nas manhãs de sábado, pessoas que queriam produzir pintura aprendendo por

meio das regras instituídas pela Academia de Belas Artes. Essa minha passagem se deu dos

10 aos 13 anos de idade.

Vivencio e participo dessas memórias como duração de experienciar ser aprendiz de

artista e de educador que agora sou – como educadorartistaprendiz.

Cada vez que voltava à casa de minha professora, iniciava um verdadeiro ritual

preparatório que envolvia o reposicionamento da tela sobre o cavalete, reconhecer o que já

havia pintado, observar a paleta de tinta para redescobrir as cores que até então havia

conseguido produzir, separar os pincéis adequados, acondicionar por perto o solvente e o

paninho de limpeza, me certificar dos procedimentos que iria adotar, e então “avançar”

como aprendiz-dependente dos saberes instituídos para PINTAR.

Page 54: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

54

Mas, sábado não era apenas o dia que

eu iria me reencontrar com os

procedimentos de pintura. Também se

tratava de um reencontro com o meu

processo de fazer e aprender arte e isso,

para mim, era sinônimo de prazer, de

possibilitar o entendimento do percurso

que a experiência estava delineando.

Tudo isso trazia uma deliciosa sensação

de autoria. Não era possível, pelo menos

aos olhos verificantes de Dona Ester, perceber o que estava ocorrendo para além de seus

ensinamentos. Havia um movimento singular que se fazia na própria experiência que, por

sua vez, me fez aprender a “transcender os materiais e as técnicas.” Hoje, entendo que foi

naquele lugar de experiência-criança-arte que pude inaugurar processos de empatia e de

intensas relações com as coisas – um estado de germinação de minha prática-ateliê. Prática

flexível e inventiva, que não pode ser antecipada, mas que antevê situações potentes para

intervir na produção de acontecimentos.

minhaprimeirapinturaaóleo–0,27x0,35,1974

Page 55: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

55

páginadocadernodeanotações–ReggioEmilia,2004

Page 56: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

56

Page 57: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

57

ateliêondeproduzomeustrabalhosartísticos

"E vou seguindo uma estrela, que brilha no céu escuro, mais bela

e resplandecente que quantas viu Palinuro. Eu não sei aonde me

guia, e a navegar me costumo, mirando-a com alma atenta,

cuidoso, mas não do rumo."

Miguel de Cervantes – Dom Quixote de la Mancha

Page 58: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

58

Page 59: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

59

A prática-ateliê

entre potencialidades expressivas e intencionalidades pedagógicas

Há uma cultura de ateliê nas escolas de educação infantil de Reggio Emilia que permite à

comunidade abrir processos de subjetivação no diálogo entre as potencialidades expressivas

das linguagens artísticas e as intencionalidades pedagógicas da educação, justamente porque

essa cultura valoriza o aspecto educativo que se constitui nas experiências emotivas e

cognitivas. Essa concepção é resultado do aprendizado de que a “racionalidade, sem

sensibilidade e empatia, e a imaginação, sem cognição ou racionalidade, gera um

conhecimento humano parcial e incompleto.” (VECCHI,2013,p.60.)

As práticas-ateliê possibilitam a criação de contextos para que todos vivam o inédito na

escola, por considerarem como valor o ato de transcender os materiais e as técnicas do fazer

arte, assim como os equipamentos e metodologias do fazer educação. Isso requer um

movimento coletivo que propõe o “descentramento estético dos pontos de vista”, como

sugere Félix Guattari em seu livro Caosmose.

Para que isso ocorra, faz-se necessário, primeiro, evidenciar o que se quer transcender, ou

seja, a ordem, as estruturas e os códigos vigentes que fazem da escola e seus protagonistas

serem o que são. Diante dessas evidências, inicia-se um processo de desconstrução, como se

fosse o pré-requisito para que todos, coparticipativamente, possam recompor e recriar a

realidade para que a escola se torne lugar de “proliferação não apenas de formas, mas das

modalidades de ser.”33 A polissensorialidade e a plurilinguagem experienciadas no ateliê

fazem dele um lugar difuso que possibilita tanto alternar distintos meios e modos

expressivos para se fazer educação como estabelecer diversas conectividades entre

aprendizagens inventivas e ensinamentos de uma cultura instituída.

O ateliê é como um prisma das cem linguagens e ocupa um lugar na escola como

metáfora da construção de conhecimento, por ser ele fronteiriço ao dar passagem à arte em

toda sua inventividade e à pedagogia em seu caráter instituidor, para que possam encontrar-

se e confrontar-se uma com a outra. Desse modo, atribui-se ao ateliê especificidades

diferenciadas das escolas convencionais em relação ao tempo, ao espaço e ao sentido na

educação de meninos e meninas, por não comportar o costumeiro planejamento voltado para

o ensino teórico e contemplativo da arte, e nem propostas de sequências didáticas ou

sequências de atividades para experimentações estéticas. A arte deixa de habitar as escolas

33 GUATTARI,Félix.2012

Page 60: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

60

afirmando-se como portadora de um saber artístico a ser mediado e transmitido de forma a

assegurar a correta execução e o bom comportamento contemplativo.

As escolas infantis reggianas contam com a presença de um educador com formação

artístico-expressiva responsável pelas práticas-ateliê, e que recebe o nome de atelierista. Esse

profissional não tem formação em pedagogia ou magistério, mas conhecimentos teórico-

práticos em uma ou mais linguagens artísticas que o habilitam a ocupar o lugar da oposição

diante de conhecidas normas constituintes de escola e criar contextos provocativos que

convidam à curiosidade.

A criação de tais contextos no ambiente escolar

pressupõe uma concepção, entre tantas outras, de criança

capaz de aprender a organizar, a relacionar e dar

visibilidade aos seus pensamentos por meio de diversas

linguagens. Isso quer dizer que para a prática ateliê o saber

fazer é saber pensar como fazer, e que, para a criança, a

transdisciplinaridade é o modo de alcançar a compreensão

mais significativa de mundo. Talvez nós, adultos,

tenhamos esquecido dessa estratégia natural do

pensamento que nos constitui desde a infância, e com isso

desaprendemos a entrar em contato com a simultaneidade

do mundo. Mas se ainda houver o desejo em cada um de

nós, educadores, de restabelecer nosso contato com a

complexidade do conhecimento, certamente isso

potencializará nossa percepção sobre a dimensão estética

na qual a criança “encontra uma expressão significativa e

tangível por meio dos olhos, ouvidos e mãos que são

capazes simultaneamente de construir e emocionar-se 34”.

Essa é a conectividade que a prática ateliê quer evidenciar,

e assim ampliar possibilidades de se fazer educação,

garantindo que a criança em seu dizer aconteça

cotidianamente por meio das “cem linguagens”.

34 VECCHI,2013,p.66

“Cada linguagem tem sua própria gramática, sua especificidade, mas também possui uma estrutura disposta para a comunicação e relação (...). Quanto mais rica e complexa for uma linguagem, mais será capaz de acolher e estabelecer sinergias com outras. No entanto, isto implica que nós, adultos, devemos tratar cada linguagem com as crianças por sua rica estrutura e suas possibilidades expressivas. Naturalmente, isso não é tão simples de ocorrer, pelo fato de que são poucas as linguagens que cada um de nós conhece profundamente e em muitas delas somos praticamente semianalfabetos, o que limita nossa capacidade de escutar os processos das crianças. (...) Basta escutar as crianças para entender que a transdisciplinaridade, o modo em que o pensamento humano conecta diferentes disciplinas (linguagens) com propósito de alcançar uma compreensão mais profunda de algo, não é uma teoria completamente independente da realidade e nem um mandato docente; é uma estratégia natural do pensamento, respaldada por nossa hipótese inicial de que as oportunidades de combinação e criatividade em uma pluralidade de linguagens enriquece as percepções das crianças e intensifica suas relações com a realidade e a imaginação.”

VECCHI,V.2013,p.72/73/75

Page 61: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

61

A linguagem escrita sempre teve seu lugar assegurado dentro da escola, e isso não teria

nenhum problema se a linguagem passasse a ser um dispositivo emancipatório do sujeito,

abrindo um campo para a transformação. Mas, se é tratada como conhecimento científico e

tecnológico, “algo universal e objetivo, de alguma forma impessoal” 35 , torna-se um

instrumento pura e simplesmente pragmático para construir enunciados que garantam a

reprodutibilidade de uma ordem hegemônica, de um sentido instituído que está fora da

experiência, mas preso ao sujeito. Portanto, “a linguagem não é apenas algo que temos e sim

quase tudo o que somos, que determina a forma e a substância não só do mundo mas

também de nós mesmos (...). E aí o problema não é só o que é aquilo que dizemos e o que é

que podemos dizer, mas também, e sobretudo, como dizemos: o modo como diferentes

maneiras de dizer nos colocam em diferentes relações com o mundo, com nós mesmos e com

os outros.”36

Dessa perspectiva, as regras pressupunham uma ordem pré-estabelecida para o proceder

de dona Ester – uma ordem “explicadora”, como nomeia Jacques Rancière, em seu livro O

mestre ignorante, ao estudar o pensamento e as ações de Joseph Jacotot, um transgressor da

pedagogia no século XIX. Em sua época, Jacotot criticou o pragmatismo da linguagem nas

escolas, que se dá por uma ordenação explicadora e por um juízo da falta, segundo regras

determinantes do que deve ser conhecido para garantir a boa formação do sujeito,

aproximando-o, o mais precisamente possível, de sua condição de aprendiz-dependente dos

saberes consolidados 37.

Ao considerarmos as crianças pequenas em escolas que não estão preocupadas em

alfabetizá-las previamente, é preciso entender a linguagem sob um outro ponto de vista para

além da oral e escrita. É preciso se relacionar com as “Cem Linguagens”. Mas de nada

adiantará ter o compromisso com a diversidade de linguagens se a escola tratar, por

exemplo, a linguagem visual de modo pragmático, instituído, arborescente/molar. É como

está dito no poema de Malaguzzi, ainda que as crianças saibam se relacionar com as “cem

linguagens”, a escola lhes roubará noventa e nove.

Segundo Jacotot, nas palavras de Rancière, o ensino que adota o livro para instruir

crianças, por exemplo, pressupõe um professor que tomará a palavra para explicar ao aluno

o que se espera que ele compreenda sobre a matéria, reafirmando o raciocínio que já está

35 LARROSA,Jorge.2014,p.3136 Idem,p.5837 RANCIÈRE,Jacques.2013

Page 62: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

62

organizado em páginas. Esse modo de se relacionar com a aprendizagem do outro, por meio

das palavras explicadoras, é o modo de se relacionar com um outro-projetado, que

desconsidera o fato de que “essa criança aprendeu a falar por sua própria inteligência e por

intermédio de mestres que não lhe explicam a língua”. E quando ela entra na escola, é “como

se ela não mais pudesse aprender com o recurso da inteligência que lhe serviu até aqui, como

se a relação autônoma entre aprendizagem e verificação lhe fosse, a partir daí, estrangeira.”38

Naquele ano de 2004, em Reggio Emilia, tive a oportunidade de visitar uma escola de

Educação Infantil em plena rotina. Entrei em uma das salas, chamadas por seções39, e nela

estavam presentes uma professora, uma atelierista e um grupo de mais ou menos 15 crianças

de quatro anos. Elas estavam finalizando o “retrato” de uma colega que aniversariava

naquele dia e que, por sua vez, posava como modelo vivo. Aqueles retratos foram feitos com

“desenho matérico”, como uma espécie de alto-relevo produzido a partir de linhas

preparadas com argila e fixadas sobre suporte de cartão. Eram os presentes que a

aniversariante receberia.

Com os retratos finalizados e apreciados por todos, a atelierista convida um menino e

duas meninas para darem continuidade ao projeto que haviam iniciado juntos no dia

anterior. Eles foram para um pequeno cômodo que tinha transparência para o restante da

sala. A atelierista havia preparado cuidadosamente, sobre uma pequena mesa, os materiais e

algumas produções já realizadas na experiência investigativa daquelas crianças. Estavam

trabalhando com a linguagem da pintura, e ao retomar o processo com uma conversa inicial,

a atelierista pergunta, diante de três potes com tinta nas cores primárias, preto e branco, qual

a cor que gostariam de experimentar para intervirem em uma de suas pinturas com a técnica

da sobreposição.

O primeiro a se pronunciar foi o menino, escolhendo o amarelo, mas logo foi protestado

por uma das meninas, justificando que ele não poderia escolher aquela cor, por ser o amarelo

“cor de menina”. Até então, a atelierista, que estava sentada à mesa com um gravador ligado,

e tinha uma máquina fotográfica em suas mãos para registrar o processo, estava apenas

observando. Mas diante da problematização que estava surgindo, perguntou para o menino

38 Idem,p.22-339 Otermo“seção”refere-seaterritóriosdeinvestigaçãopropostospelosadultoseconstituiummóduloorganizativodebaseparaaatuaçãodoprojetoeducativo,ondedoisoutrêseducadoresseresponsabilizamporcriaremintencionalidadeseorganizaçãocommateriais,materialidadeerecursosdelinguagensquepropiciamoaprofundamentoparaapesquisaenovasdescobertasdascriançasdeumamesmafaixaetária,paraserelacionaremeinteragiremcomaambientaçãoecomseuscolegas.Aseçãopodeserinauguraldeprocessosinvestigativosapartirdeumahipótese,deumateoriaprovisóriadoadultooudacriança,oudeumaprofundamentodeumapesquisaemandamento.

Page 63: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

63

se ele concordava com o argumento da colega. E então,

respondeu: “não é de menina. Amarelo é cor de perfume!”

A partir dessa metáfora poética, do uso da linguagem

como potência expressiva para estabelecer aproximações

com os afetos e dar passagem para o incerto, para o

imprevisível, o problema que estava exposto ia muito além

das questões de gênero ou mesmo sobre técnicas de

pintura. A escuta da atelierista voltava-se para dar atenção

aos processos de subjetivação que aquela experiência

proporcionava, e isso a fez assumir o lugar de problematizadora, preparando aquela situação

de confronto em dispositivos para agenciamentos entre perceptos e afectos que, ao se

manifestarem individualmente e ao se relacionarem mutuamente – consigo e com o outro –,

certamente geraram um campo de imanência que orientaria a experiência a partir daquele

momento. Mas, sem perder sua intencionalidade pedagógica, a atelierista propõe ao grupo

uma investigação por meio da linguagem visual sobre “as cores dos cheiros” e “os cheiros

das cores” que habitavam a escola por seus diversos ambientes.

A aproximação da atelierista do que pode a metáfora deu abertura para um dizer que não

representa o mundo, mas apresenta-o de modo poético, e assim, como propõe Juan Mata,

isso nos libera do “visgo de uma língua banal e cotidiana” e nos faz “ultrapassar o valor

denotativo e pragmático das palavras. Para isso, são necessários explicações e diálogo,

estímulos para a livre interpretação e criação. E essa exigência não é de caráter escolar ou

meramente recreativo, mas ético.”40

Infelizmente, não pude acompanhar o desenrolar desse processo investigativo que traz a

linguagem, como diz Larrosa, em sua potência criadora de forma e substância. Mas durante

o tempo que permaneci naquele miniateliê, não me restaram dúvidas de que a atenção

disponibilizada por aquela atelierista estava voltada para o que poderia emergir como força

motriz, como conectividade entre afectos e perceptos sob o prisma da transmutação, da

transgressão à ordem instituída, para que as linguagens pudessem povoar a escola em todo a

sua inventividade. Portanto, a “atenção em si é, nesse sentido, concentração sem focalização,

abertura, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado. A

atenção se desdobra na qualidade do encontro, do acolhimento. As experiências vão então

40 MATA,Juan.InGOBBI,MárciaA;PINAZZA,MônicaA.(Orgs.),2014

“Numa educação participativa, um comportamento ativo de escuta entre adultos, crianças e ambiente é premissa e contexto de toda relação educativa. A escuta é um processo permanente que alimenta a reflexão, o acolhimento e a abertura em direção a si e em direção ao outro; é condição indispensável para o diálogo e a mudança. O comportamento da escuta eleva a atenção e a sensibilidade com relação aos cenários culturais, de valores e políticos da contemporaneidade.”

RegimentoEscolaseCrechesparaainfânciadacomunade ReggioEmilia

Page 64: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

64

ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido imediato. Pontas de presente,

movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que há uma processualidade

em curso. Algumas concorrem para modular o próprio problema, tornando-o mais concreto

e bem colocado. Assim, surge um encaminhamento de solução ou resposta ao problema;

outras experiências se desdobram em microproblemas que exigirão tratamento em

separado.”41

O ateliê traz a arte para a escola como uma força agenciadora que desestabiliza os

pensamentos pedagógico e cultural dominantes, a ponto de desterritorializá-los para que a

reterritorialização da escola ocorra a partir dos possíveis entrelaçamentos e conexões entre

arte e pedagogia. Dessa trama complexa e por vir, não se quer outra coisa que não seja

“escola”. Ou, de algum modo, como Jan Masschelein diz, “encontrar na escola o seu próprio

destino”. Por isso, a reterritorialização da escola está mais para uma nova experiência

estética que busca constituir um lugar híbrido em que possa sugerir um outro arranjo

singular entre arte e pedagogia. Arranjo que se faz por empatia e pelo desejo de coconstruir

outros modos de invenção educativa.

Nesse centro de forças chamado ateliê, a arte passa a habitar a escola como um campo de

experiência ativo onde crianças e adultos possam experienciar a produção pessoal (criadora),

como também a produção comum (cocriadora).

Para que a cocriação aconteça, é preciso que as distintas processualidades vividas por

cada um no ateliê entrem em relação e gerem aprendizagens compartilhadas e,

consequentemente, durante esse diálogo dos processos cada produção pessoal se reinventa,

provocando “desvios” em suas produções originárias. É nessa troca que também se

encontrará o germe para uma produção comum – encontros/confrontos compositivos que se

dão em colaboração agenciadora entre expressão e cognição, entre poética e racionalidade,

por isso entre arte e pedagogia.

Esses encontros/confrontos compositivos possibilitam a todos viverem a “perfeita

congenialidade que une autores vizinhos ou distantes no espaço e no tempo, e

congenialidade significa pessoalidade, isto é, similaridade de pessoas que conseguem

assemelhar-se sem nada sacrificarem da própria independência e da própria personalidade,

mas antes afirmando a própria independência e encontrando a própria personalidade,

41 E.Passos,V.KastrupeL.-EscossíaPistasdométododacartografia–pp.39

Page 65: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

65

precisamente naquele estado de semelhança e naquele esforço de assimilação”. (PAREYSON,

1997,p.104)

As escolas reggianas, ao promoverem o encontro entre

arte e pedagogia, ultrapassam os limites que separam

originalidade de continuidade, inventividade de

sistematização ou inovação de conservação. Não está

designado à pedagogia isenção de originalidade e

inovação, assim como à arte falta de continuidade e

conservação. Talvez, se colocarmos em jogo a frase de

Godard - Cultura é regra. E arte exceção, facilmente

associaríamos a pedagogia como constituidora de regras e

a arte como seu contraponto. No entanto, vejo que a

problematização está em como “o” encontro entre

pedagogia e arte se estabelece nas instituições educativas

sem confinar-se a um regime determinista e excludente:

inovar sempre e conservar jamais, e vice e versa.

Nas palavras de Pareyson, as funções de inovar e de conservar “só podem ser exercidas

conjuntamente, já que continuar sem inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem

continuar significa fantasiar no vazio.” (PAREYSON, 1997, p.137). Mas esse vazio difere, e

muito, daquele em que me encontrei diante dos portões da Escola Diana, porque lá se fez o

vazio de dimensão cheia e de tamanha plenitude que me possibilitou vagar pelas distintas

experiências educativas que habitam a memória (é preciso mergulhar em profundidade no

raso da memória).

Durante o Seminário Internacional “Utopia da Continuidade”, realizado no ano de 2016,

em Belo Horizonte, as educadoras italianas Maddalena Tedeschi e Alessia Forghieri nos

apresentaram uma prática ateliê com crianças de quatro anos da Escola Girotondo, que

foram convidadas a viverem o desafio de realizar um projeto de construtividade aeroplástica

a partir da consigna: “o que podemos construir no ar?” A complexidade de tal projeto

consistia na criação coletiva de um tipo de objeto, considerando a instabilidade e

inconsistência do ar como suporte. Esse desafio possibilitou às crianças aproximações da

física com a estética.

Jean-LucGodarddirigiuofilmeJeVousSalueSarajevo,quetevesuaexibiçãona29ªBienaldeSãoPaulo.SeguetrechodanarrativafeitapelopróprioGodard:

“...há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoievski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.

Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem.”

Page 66: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

66

O processo, que teve um longa duração, envolveu uma dinâmica de pesquisa simultânea

entre crianças e educadores (professor, atelierista e pedagogista), e gerou muitos

conhecimentos para os adultos sobre a abordagem dos alunos em relação aos fenômenos

como: gravidade, inércia (oscilação, ondulação, estremecimento, vibração), volume,

equilíbrio, peso, contrapeso. Também estava em jogo na experiência um campo semântico

da materialidade que implicou estudos sobre o sentido da incidência de luz (natural e

artificial), suas nuances e atribuições estéticas sobre os objetos no espaço aéreo, assim como a

escolha de materialidades por sua potencialidade plástica expressiva, numa investigação de

tipologias e pertinências que se aproximassem mais ao que se desejava como resultado para

o projeto. Essas indagações não estavam dissociadas da investigação sobre a ocupação do

espaço. Era preciso encontrar, dentro da escola, um local que fosse o mais adequado para

que a instalação final não perdesse sua força expressiva e construtiva, o que trouxe

discussões a partir de observações sobre dimensão e proporcionalidade espacial,

luminosidade, visibilidade, ambiência, circularidade, estrutura de sustentação etc.

Todas essas questões ocorriam durante os processos de experimentações realizadas no

ateliê em pequenos grupos formados por quatro a cinco crianças e, apesar dos grupos terem

o mesmo desafio, não seguiam uma sequência previamente planejada pelo atelierista e nem

pelo professor, já que o percurso investigativo foi coconstruído entre adultos e crianças

durante a experiência, o que evidencia que seria impossível prever um resultado para todos,

tampouco para cada grupo.

Para se fazer a síntese dos processos, as crianças foram convidadas a se relacionarem com

os resultados alcançados, lançando mão de recursos gráficos e da fotografia para indagarem

sobre os conceitos que se materializaram na instalação, dando visibilidade para as suas

aprendizagens por meio de desenhos, mapas e narrativas fotográficas. Esse foi o modo

escolhido para que as crianças pudessem organizar seus pensamentos, se auto-avaliarem e

avaliarem a experiência. Para o adulto não é diferente, porque cabe a ele fazer os registros

dos processos vividos com as crianças, analisá-los e organizá-los para uma narrativa

nomeada por documentação, que perpassa por subjetividades e objetividades constituintes

da experiência educativa.

A documentação é um recurso que organiza os registros de uma memória com

intencionalidade variável e voltada para um público diferenciado (adultos e/ou crianças). As

intenções que possivelmente modelam a documentação poderão ser: instrumento para a

Page 67: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

67

formação de professores, comunicação para os pais, evidência dos processos de

aprendizagem das e para as crianças, índice para um determinado assunto a ser abordado

em palestras etc. Quer dizer, os registros não moldam a documentação, mas a documentação

os modela para dar visibilidade a um certo ponto de vista subjetivo. O que torna a

documentação potente é que esse ponto de vista não é da ordem da pessoalidade, mas da

experiência em si. E ter o ponto de vista da experiência faz toda a diferença.

Page 68: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

68

Page 69: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

69

Page 70: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

70

Page 71: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

71

A professora, o atelierista e o menino três pontos de vista de uma mesma experiência escolar

Da porta entreaberta, o menino de três anos desloca seu olharcorpoatenção para fora da

sala. A professora em relação a criança – 1) fecha a porta para evitar o desvio de atenção; 2)

impede o deslocamento do olhar; 3) evita a mobilidade do corpo daquela criança. O

atelierista registra fotograficamente os acontecimentos que surgem a partir da experiência

“porta entreaberta que se fecha” e dos “olhares entreabertos que se abrem”. Do lado de fora

da porta, a correria da outra criança no pátio pede para o menino se juntar ao meninocorreria.

Agora, mesmo ainda distantes, eles já são um só. Do lado de dentro da porta, a professora

exige a atenção do mesmo menino para se separar do meninocorreria e se juntar aos que

precisam ser ensinados, porque ela quer que todos eles sejam um só. O menino escapa ao

olhar da professora, sobe em um banquinho junto à janela, segura firmemente a grade e dá

gritinhos com o corpo agitado quando avista o meninocorreria no pátio. Antes que a

professora interviesse, o atelierista sai da sala e fotografa as feições de extrema alegria do

menino. Em seguida, mostra para ele a imagem capturada no visor da máquina e pergunta:

Quem está feliz aqui nessa imagem? E o menino, sem hesitar de sua alegria, diz “Ele” –

apontando para o meninocorreira que estava fora.

Page 72: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

72

Page 73: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

73

Em busca do sujeito da experiência na escola

uma trajetória em curso constante

Antes mesmo de enunciar o atual posicionamento que tomo como formador e criar todo

um campo de argumentações, trago aqui, propositadamente, experiências vividas entre os

planos educativos instituído (arborescente/molar) e inventivo (rizomático/molecular).

A criação de um grupo para discutir práticas educativas e seus sujeitos da experiência se

deu quando estabeleci parceria com Vanessa Marques e Helena Freire. Foram as inquietações

geradas por nossas experiências como formadores de professores, coordenadores e gestores

de escolas públicas que, ao serem compartilhadas entre nós, despertaram a necessidade de

criar um tipo de dispositivo que pudesse produzir diferença na educação instituída, que

rompesse com a condição de assujeitamento ao sistema de ensino programático, mas sem

sair dele, enfrentando-o como território de passagem para que linhas de desterritorialização

proporcionassem uma territorialidade por vir.

A maior parte de nossas experiências com a rede de ensino pública tinham a mesma

origem, mas ocorreram separadamente e em distintas ocasiões e

lugares. Isso porque éramos contratados por uma OSCIP como

prestadores de serviços para o desenvolvimento de projetos de

formação continuada. Mas iniciei esse trabalho anos antes de

Vanessa e Helena. Foi em 2004 que lá ingressei, e permaneci por

quatro anos no papel de formador e assistente de coordenação da

equipe de artistas-educadores. Também fui um dos organizadores e

coautor da publicação institucional “Entreartes”.

Os projetos eram firmados por contratos estabelecidos entre a

OSCIP e as secretarias de ensino, e muitos deles eram patrocinados

por grandes empresas. Quando Vanessa e Helena integraram a

equipe de formadores de outras áreas da OSCIP eu já não trabalhava

mais lá. Em 2010 assumi a coordenação do Programa Singular, do

Instituto Rodrigo Mendes, no qual fui professor desde 2005. O

programa realizava ateliês de artes visuais para públicos

heterogêneos (diferentes origens sociais, culturais, características

físicas e cognitivas), além de promover publicamente discussões relacionadas a atitudes de

exclusão e inclusão no campo da arte e da educação. Essa experiência resultou numa

publicação intitulada “Artes visuais na educação inclusiva”, da qual também sou coautor.

Page 74: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

74

O propósito de contextualizar aqui essas duas trajetórias profissionais, ocorridas

paralelamente, é evidenciar que as minhas experiências não se deram fora de um intenso e

tenso confronto entre a educação instituída por programas de formação colonizadora e a

educação que se faz inventiva em sua própria processualidade formativa. Por isso, antes de

prosseguir com a narrativa sobre a criação do grupo “em busca do sujeito da experiência na

escola”, explicitarei a seguir as experiências por mim vividas em situações de micropolítica

reativa e micropolítica ativa dentro dos dois territórios – OSCIP e Instituto Rodrigo Mendes.

A OSCIP sempre esteve preocupada e comprometida com o alcance de bons resultados,

segundo instrumentais avaliativos como: o “Ideb” (Índice de Desenvolvimento da Educação

Básica), que serve para medir a qualidade do aprendizado nacional e estabelecer metas para

a melhoria do ensino; a “Provinha Brasil” – avaliação diagnóstica das habilidades relativas à

alfabetização e ao letramento em língua portuguesa e em matemática.

Já sabemos que não caberia às instituições molar/arborescente quaisquer novos

posicionamentos diante da velha e sabida paisagem da educação. Elas precisam ressaltar o

que consideram o não-saber do outro para dar sentido à sua existência, que é ensinar o saber

instituído. Isso se faz conveniente para que as forças de controle refutem os procedimentos

investigativos e inventivos na escola, inviabilizando o fluir da transição de uma “curiosidade

ingênua” para a “curiosidade crítica”, como Paulo Freire defende em seus pensamentos tão

vivos e ao mesmo tempo muito pouco vividos na escola.42

Mesmo que eu atuasse com formação dentro da área de artes visuais, ainda assim era

preciso que meu trabalho na OSCIP estivesse submetido aos interesses dos programas de

alfabetização e de matemática. Os principais interesses eram: 1 – construir planejamentos

didáticos reunindo atividades sequenciadas em artes visuais para que as crianças

produzissem “boas” ilustrações dos textos que lhes eram apresentados. Também cartazes,

tabelas e tabuleiros de jogos para o programa de matemática; 2 – oferecer oficinas de arte

para professores de modo que sensibilizassem mais o olhar, ajudando-os a despertar o desejo

pelo aprimoramento do senso estético.

Havia um padrão explícito a ser disseminado e isso não era incômodo para ninguém. Ao

contrário, os formadores se vangloriavam quando atingiam seus objetivos e eram enaltecidos

pela própria equipe, reconhecendo o seu árduo e vigoroso esforço para fazer com que os

42 AcitaçãodePauloFreirefoiumadascontribuiçõesdeVanessaMarquesparaonossodocumentodeavaliação,experiênciaqueseráabordadaadiante.

Page 75: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

75

professores do munícipio que estava sob sua tutela dessem aulas conforme as expectativas

do formador. Isso significava que finalmente aqueles professores haviam entendido que

eram apenas repetidores, replicadores de um único, melhor e inquestionável modo de

operar. Bastava obedecer aos comandos e cumprir com seu dever.

Que tristeza era participar das reuniões com essas formadoras que, quando voltavam de

suas viagens expedicionárias, alardeavam espalhafatosamente os seus louros em

comemorações bizarras. Tudo muito festejado em nome da “qualidade” da educação de

nosso país, em nome da vitória de uma micropolítica das forças reativas guiando-se pela

“bússola moral, reproduzindo o Inconsciente Colonial na perspectiva antropo-falo-ego-

logocêntrica (individual/ homogenética/ identitária/ universal-capitalística).”43

Em contrapartida, no Instituto Rodrigo Mendes estava ocupado em coconstruir com a

equipe de professores um plano de ação para o Programa Singular, a partir dos princípios e

valores que já foram citados acima. Precisávamos nos empenhar para que essa resistência

micropolítica de força ativa pudesse dar passagem para o surgimento de uma forma de

educar com arte a partir do que já era consenso entre nós: “a inclusão não seria um conteúdo

conceitual a ser trabalhado nos ateliês, mas uma atitude relacional que deveria transparecer

em nossas ações. Tínhamos, então, que descobrir como proceder didaticamente em sintonia

com uma abordagem contemporânea da arte e da educação que valorizasse a construção de

processos singulares e autorais em um ambiente configurado pela diversidade”44. Estávamos

nos orientando pela “bússola ética driblando o Inconsciente Colonial, sob perspectiva

antropofágica (relacional/ heterogenética/ singular/ pluriversal).”45

À medida que prefigurávamos o Programa Singular, “procurávamos entender quem era e

onde estava cada sujeito da experiência de nossas propostas. Isso envolvia tanto as pessoas

que frequentavam o programa quanto os educadores. Começamos a nos debruçar sobre

essas questões (...) [e] uma cuidadosa análise de casos foi iniciada, não somente para

reconhecer os percursos que se delineavam no campo das aprendizagens como também para

identificar e avaliar procedimentos educativos e intencionalidades.”46.

O confronto entre essas conflitantes experiências é o que provocou, e ainda provoca,

abertura para o surgimento de novos agenciamentos na produção de subjetividade do

43 ROLNIK,Suely–aulaproferidaduranteocursodapós-graduaçãoemmarçode201644 CAVALHERO,Joséin“ArtesVisuaisnaeducaçãoinclusiva”,2010,p.56-5745 ROLNIK,Suely–aulaproferidaduranteocursodapós-graduaçãoemmarçode201646 CAVALHERO,Joséin“ArtesVisuaisnaeducaçãoinclusiva”,2010,p.56-57

Page 76: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

76

sujeito-experiência-educador. O que realmente me mobiliza está naquilo que emerge desse

confronto, e não ele mesmo. Situo no presente pelo fato de não se tratar de uma memória,

mas do afeto que pulsa causado pela relação que se estabelece no confronto. E, se meu desejo

é entrar em contato com os afetos provocados tanto por forças reativas quanto por ativas,

não tenho como escapar do processo de decodificação dos distintos regimes de signos que

articulam suas expressões (agenciamento de enunciação), assim como dos sistemas

pragmáticos de seus conteúdos que sustentam suas distintas ações e paixões (agenciamento

maquínico) para ter uma escuta interessada e atenta para os ruídos dos afetos. Só assim

conseguirei, cada vez mais, me aproximar dos processos de subjetivação da experiência

educativa molar/arborescente; instituída; paisagística; profética; e da experiência educativa

molecular/rizomática; inventiva; paisagisante; militante.

Entre 2012 e 2013, eu e Vanessa fizemos parte de um grupo de educadores latino-

americanos na primeira edição do curso “o papel do coordenador pedagógico”, promovido

pela RedSolare Argentina e realizado em Buenos Aires e em Reggio Emilia, tendo a formação

ministrada por pedagogistas e atelieristas reggianos. No grupo havia, além de outras

brasileiras, duas coordenadoras da OSCIP.

Durante o curso, uma das coordenadoras trouxe a notícia de que um município de Minas

Gerais iria renovar o contrato com a OSCIP para dar continuidade ao projeto de formação de

seus educadores das escolas de educação infantil. Era Vanessa que estava à frente desse

projeto como formadora e em parceria com a mesma coordenadora durante os quatro anos

anteriores. Foi então que recebi o convite para ser formador no projeto junto com elas.

O projeto foi redesenhado, apresentado para a Secretária de Educação do tal município,

discutido em detalhes todas as instâncias que o envolvia e a dinâmica pela qual se efetivaria.

Tudo certo, tudo combinado, contrato assinado. E lá fomos nós para a prática, sabendo que o

projeto duraria quatro anos e teríamos muitas viagens, muitos planejamentos e muitos

confrontos pela frente.

Depois de alguns meses, apresentamos a nossa proposta em andamento na sede da

OSCIP, em São Paulo, para toda a equipe de formadores de todas as áreas. A reação de todos

mesclava um certo encantamento com estranhamento diante do novo, do que parecia ser

muito inusitado dentro do habitual. Essa inquietude despertou a curiosidade e o desejo em

alguns para aprofundar as teorias e práticas que apresentávamos, o que fez com que

Page 77: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

77

iniciássemos um grupo de estudos aberto para os membros da OSCIP. Foi nessa ocasião que

nos aproximamos mais de Helena Freire e demos início a uma relação que geraria o grupo

“em busca do sujeito da experiência na escola.”

Mas, depois de um ano e meio de trabalho naquele município de Minas Gerais, quando

havíamos atingido um perigoso grau de proximidade da zona da desestabilização do sistema

molar/arborescente, imediatamente, e com a mesma potência que vinha se constituindo, o

projeto foi aniquilado em uma reunião com a direção da OSCIP e a coordenadora

responsável pelo mesmo – aquela que até então se estampava como parceira.

Eu tinha acabado de desembarcar da Itália. Todos sabiam o motivo de minha viagem:

apresentar o projeto para uma equipe de pedagogistas em Reggio Emilia. O mesmo projeto

que, enquanto interessava às pedagogistas, estava rápida e bombasticamente sendo

dizimado. Trazia em minha bagagem as anotações das conversas com as italianas para

compartilhar com Vanessa e, certamente, serviriam de orientação para darmos continuidade

aos processos. Isso nem chegou a se efetivar, não houve tempo suficiente entre o retorno de

minha viagem e a data que a OSCIP havia marcado para uma reunião em caráter de

urgência.

A reunião durou apenas 15 minutos. A presidente da OSCIP foi a porta voz, trazendo a

notícia imediata e absoluta de que não haveria, em hipótese alguma, a possibilidade de

tomar outra decisão que não a de interromper definitivamente o fluxo daquela “negativa”

experiência, que tanto prejudicava o bom andamento das escolas (inclusive as do Ensino

Fundamental, segmento com que não tínhamos nenhuma relação). E seguiu a pauta, que

continha uma lista de agressividade inimaginável, chegando a nos responsabilizar pelo

“baixo rendimento” no processo de alfabetização das crianças (outro absurdo, já que

estávamos atuando somente com a Educação Infantil) etc., etc., etc. Os fatos que

apressadamente eram trazidos estavam interpretados segundo uma lógica instituída,

controladora e perversa. Nenhuma, absolutamente nenhuma daquelas justificativas faziam

sentido para mim e Vanessa. Mas sabíamos exatamente o que disparou todo aquele ódio e

que se converteu naquela reatividade voraz.

Meses antes, um dos atelieristas em formação no projeto apresentou sua documentação

em uma reunião de coordenadoras de escola. A documentação dava visibilidade à relação

dele com um menino de quatro anos que – sob o ponto de vista das professoras,

Page 78: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

78

coordenadora e diretora da escola – era indisciplinado e hiperativo e precisava ser retirado

da sala de aula por não conseguir ficar sentado enquanto a professora tentava ensinar algum

conteúdo aos seus alunos. Mas, para que o menino não ficasse sozinho “aprontando” pelos

espaços da escola, a diretora e a coordenadora decidiram que ele deveria ficar sob tutela do

atelierista.

O pior estava por vir, pois o atelierista fez o registo de todo o processo de transformação

do menino enquanto estava sendo medicado com Metilfenidato, componente da conhecida

Ritalina. Foi esse o caminho escolhido pela escola, e com consentimento dos pais, para

resolver o problema. Dias depois do início de sua medicação, a criança, sentindo-se sem

energia, pede ao atelierista: “me ajuda a tirar isso de mim?”

Ao término da apresentação, um silêncio tomou lugar na sala. Um silêncio que nos

expunha ao constrangimento. Não podíamos ter outra saída, senão encarar e compartilhar

nossos afetos diante de tal fato. Era impossível conceber que naquele momento alguém

optasse por se omitir, isentar-se do compromisso ético e da cumplicidade que estávamos

vivendo até então.

Decidi por manifestar energicamente toda a minha perplexidade, que foi recebida com

agressividade desrespeitosa. As coordenadoras começaram a se pronunciar em tom de

lamento e queixas, na tentativa de argumentar, justificar, e principalmente amenizar, o

problema. Mas não me lembro de nenhuma delas ter dado abertura para problematizarmos

as incoerências entre a escolha dos adultos perante aquela criança e os princípios e valores

que estávamos trabalhando no processo de formação, por exemplo.

Naquela situação claustrofóbica, vivíamos um agenciamento coletivo de enunciação para

a manutenção do confinamento do sujeito-educador e do sujeito-aluno no território da

educação molar/arboresceste. O projeto de formação que havíamos desenhado não se

expressava pelo mesmo sistema de signos, tampouco atuava pelos mesmos dispositivos

maquínicos para produção de subjetividade. Tudo indicava, cada vez mais, que o projeto se

desenvolvia, mas a força reativa ganhava potência. Era o momento de saber que não haveria

mais condições de nos encontrarmos em confronto para se produzir diferença. Não haveria

espaço para dar passagem aos processos heterogêneos.

Então, estas são minhas hipóteses sobre o real motivo que engendrou o término do

projeto, já que as justificativas não condiziam com as documentações, registros de reuniões,

Page 79: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

79

vídeos e fotografias que havíamos reunido e compartilhado com todos que participavam

direta e indiretamente na formação durante aquele um ano e meio. Foi preciso despender

um enorme esforço para expulsar o mais rapidamente tudo que poderia “ameaçar” o

controle e a ordem estabelecida naquele território. Naqueles 15 minutos não cabia exercer o

nosso direito de minimamente argumentar sob nosso ponto de vista. Muito menos

compartilhar as contribuições das pedagogistas. Nada disso interessava. Na verdade, tudo

isso ameaçava.

Saímos da reunião sob os mais “insinceros” votos de

sucesso, que eram absolutamente condizentes com toda

aquela representatividade do instituído. Era impossível, a

partir daquele momento, não me ressentir diante da

situação. E mais uma vez, precisei entrar em contato com

os meus afetos e procurar desprende-los do ressentimento.

Porém, algo inusitado se procedeu durante esse

movimento – aqueles 15 minutos que ficamos expostos

diante de tamanha força reativa me deram a dimensão do

tamanho da força ativa que tínhamos gerado. Não

tínhamos como nos paralisar, mesmo porque estávamos nos libertando de uma condição

aprisionante. Tudo foi se transformando e ganhando maior potência para a passagem da

pulsão, para que o fio de continuidade da experiência pudesse compor tessituras e nos

desocupar do lugar de sujeito da experiência para nos ocupar e interagir com os afetos da

experiência.

À procura de um desvio para que pudéssemos dar continuidade à nossa cartografia de

formadores, eu e Vanessa no juntamos com Helena e iniciamos um processo de

desterritorialização das nossas experiências. Os encontros com o grupo “em busca do sujeito

da experiência na escola” se iniciaram ainda com o projeto em andamento e teve

continuidade por mais dois anos.

Apesar de nossas diferentes formações, respectivamente eu em Artes Plásticas, Helena em

História e Vanessa em Pedagogia, conseguíamos estabelecer interessantes aproximações

dialógicas. Cada um de nós sentia a necessidade de transdisciplinarizar as nossas próprias

atuações, e isso nos avizinhava por princípio. Mas, o que mais significativamente ainda nos

“O sujeito da experiência é um sujeito ‘ex-posto’. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a ‘oposição’(nossa maneira de opormos), nem a ‘imposição’ (nossa maneira de impormos), mas a ‘ex-posição’, nossa maneira de ‘ex-pormos’, com tudo que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência (...) a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.”

LARROSA,2014,p.26

Page 80: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

80

une e ainda nos convida para trabalharmos juntos é a nossa postura analítica e crítica perante

os sistemas formativos.

Parece-nos que, de um modo geral, há um certo adiamento por parte dos projetos de

formação para que o confronto pedagógico entre as concepções educativas instituídas e

inventivas aconteça. Minha hipótese, que compartilho com Helena e Vanessa, está no fato de

que os profissionais da educação não procuram situar onde estão localizados seus problemas

dentro da dupla articulação educativa. Ao mesmo tempo, exercem uma resistência para não

se deslocarem até a real localização dos problemas.

O sujeito educador, quando é reconhecido e se reconhece como professor profeta ou

indivíduo especialista disciplinar, ou ainda transmissor de conteúdos pré-programáticos,

executa seu papel de reprodutor da educação instituída sem nada implicar-se singularmente,

esquivando-se do exercício da alteridade ou de se abrir para o devir-outro diante da

experiência de ensino e de aprendizagem. Desse modo, esquece-se que há sempre a presença

de si e do outro. Esquece-se que sempre há confronto de subjetividades.

Só entrando em contato com aquilo que emerge do encontro consigo mesmo e com o

outro, numa atitude de alteridade, é que se conseguirá reconhecer o outro em sua

singularidade. O caminho que se cartografa a partir desse contato é da aprendizagem

inventiva que ultrapassa a pessoalidade de professor e de aluno, produzindo uma

subjetivação de experiência comum e indisciplinar.

Na época em que divulgamos a nossa proposta, tivemos o cuidado de enunciar que os

nossos encontros envolveriam a construção processual e conjunta de uma documentação da

experiência que aconteceria em grupo. Explicitamos também que nosso interesse por essa

coautoria documental, com inspiração na abordagem educativa de Reggio Emilia – Itália,

procuraria dar visibilidade ao diálogo que estabeleceríamos entre as experiências dos

participantes em seus contextos educativos.

Queríamos, com essa decisão, nos relacionarmos com o professor e cartografar com ele:

como ele se apresenta, como ele se vê em sua singularidade e como reconhece seu papel na

comunidade educativa em que atua. O desejo de nos encontrarmos com esse sujeito não

tinha a finalidade da constatação identitária. Ao buscá-lo, por meio de sua própria narrativa

e da narrativa de suas ações educativas, procurávamos estabelecer uma maior aproximação

Page 81: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

81

com a imagem que reflete esse sujeito no mundo e com a que o sujeito projeta para se tornar

visível ao mundo.

Quanto a nós, propositores dessa cartografia, também nos buscávamos nos encontros com

esses sujeitos, inaugurando, em primeira instância, uma relação-escuta flutuante e atenta (e

por que não uma metaescuta) sobre como a proposta seria “percebida” pelos professores e,

consequentemente, o que poderíamos escutar dos afetos que disso tudo resultasse. Para isso,

criamos várias situações de confronto com o grupo.

Os confrontos oportunizaram observar e mapear o modo de produção e de transformação

da subjetividade do sujeito-educador. As intervenções que fazíamos durante os confrontos

tinham a intenção de promover situações relacionais para que pudéssemos criar em

colaboração um campo de imanência para a produção da diferença. Esse movimento fez

parte de um plano coletivo de forças que requereu uma atitude de militância-compositiva

para que a coautoria de processos ocorresse.

Os encontros iniciados com o primeiro grupo geraram momentos intensos de investigação

e interpretação que, na maioria das vezes, propiciaram-nos rever com toda acuidade a

importância da experiência educativa em seus processos de reprodução e produção de

subjetividade.

No início, as professoras narravam suas experiências por um discurso ressentido,

transbordando impotência diante das sombras das representações institucionalizadas da

educação. Essa exposição nos permitiu confrontarmos, nos âmbitos individual e coletivo, os

distintos modos de produção de subjetividade: aquela que valoriza a singularidade do

individuo – que considera a narrativa de si como ato criador e que passa a se conhecer na

produção de sua própria diferença; e a que valoriza a igualdade – narrativa sobre si como ato

identificador de sujeito que se reconhece por sua representação.

O percurso investigativo que trilhamos evidenciou a importância de criarmos espaço-

tempo para que cada educadora pudesse indagar-se sobre a sua prática educativa. Por

“indagação da prática” referimo-nos a entrar em contato com os afetos gerados na

experiência, e não tentar perceber se na experiência é possível se reconhecer como sujeito

professor idealizado. Ao narrar-se pelos afetos da experiência, individualmente, em grupo e

com o grupo, as educadoras estabeleciam relações com a sua própria subjetividade, e

também conexões entre elas que, por fim, constituíram um plano comum de investigação.

Aumentar o grau de abertura comunicacional intragrupos e intergrupos, transversalizando os grupos ao liberar diferenças que estão fechadas em seus lugares próprios [...] traçar e acessar o plano comum e coletivo ampliando as relações intra e intergrupais. Esse procedimento produz coletivos não identitários por meio dos quais podemos criar condições para o acesso do sujeito ao seu plano de subjetivação. KastrupePassos.2014,p.26

Page 82: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

82

Este processo possibilitou “dar sentido ao acontecer que nos acontece”47 por intermédio de

dois movimentos distintos e complementares: a contração e a expansão do que nos afeta.

O movimento de contração ocorre quando nos relacionamos com a memória-do-corpo,

que possibilita entrarmos em contato com a fala interior48 e nos relacionarmos com as marcas

advindas da experiência. O de expansão, quando reunimos e organizamos os registros da

experiência-fora-do-corpo. Esse processo envolve escolhas de linguagens e seus modos de

expressão para compor uma documentação que seja narrada pela voz dos afetos.

Para algumas das participantes, esse processo provocou incômodos e tensões, porque se

percebiam habitando o território conhecido e instituído e queriam deslocar-se de lá, mas só

se permitiriam tal aventura se alguém lhes indicassem o caminho para se chegar ao território

desconhecido da inventividade e criação. Outras, mais aventureiras, se lançavam para o

desconhecido e experimentavam traçar seus próprios caminhos.

Esta atitude nos possibilitou trazer à superfície as diferenças e as divergências, as

similitudes e as discrepâncias, as incongruências e as incoerências, para que tudo isso se

relacionasse entre si e com todos nós. Esta implicação com as singulares narrativas da

experiência abriu espaço para que a aprendizagem de liberação das forças criasse

deslocamentos do sujeito a partir de cada um de nós.

Com a liberação das forças que deveio do movimento de contração e expansão,

dedicamos um tempo para criar uma forma comum que melhor expressasse o acontecimento

de grupo. Essa busca implicou diretamente, e ao mesmo tempo, a perspectiva das linguagens

em sua potência expressiva e do pensamento na elaboração conceitual da experiência. A

linguagem escrita aliada à gráfica foi o meio escolhido para que palavras-conceitos e

imagens-símbolos49 advindos da experiência se tornassem forma-força.

O mapa construído pelo grupo foi de uma complexa e contínua elipse que, em

movimento, apresenta as palavras-conceito em constante interação, como se vê ao lado. A

Documentação Pedagógica, embora esteja citada apenas abaixo no mapa, é a força motriz

que liga a forma e o movimento. Ao redor das elipses está o espaço do educador, ocupando o

campo de forças que possibilita o processo de subjetivação. Esse foi um trabalho construído

47 LARROSA, Jorge. 201448 Zero Project, 201449 “Nãoexiste,portanto,umaformaparadescrevercorretamenteascoisas.Cadadescrição,cadadesenhoqueconfiguraomundo(internoeexterno),éfeitadesímbolosquesãodistintosdoprópriomundo.Asdescriçõesgráficasrepresentamcertomododerepresentaromundo,eofazemusandosímbolos.Sãoimagensquecriamosmundos(quesãosimbolizadosnasimagens),maisqueseroresultadodeumabuscaquerepresentaomundoatravésdesímbolos.”STACCIOLI,Gianfranco.IN:Infânciasesuaslinguagens.2014.p.115.

Falar (ou escrever) com as próprias palavras significa se colocar na língua a partir de dentro, sentir que as palavras que usamos tem a ver conosco, que a podemos sentir como próprias quando a dizemos, que são palavras que de alguma maneira nos dizem, embora não seja de nós quem falam. Falar (ou escrever) na primeira pessoa não significa falar de si mesmo, colocar a si mesmo como tema ou conteúdo do que se diz, mas significa, de preferência, falar ou escrever a partir de si mesmo, colocar a si mesmo em jogo no que se diz ou pensa, expor-se no que se diz e no que se pensa. Além disso, trata-se de falar (ou escrever), talvez de pensar, em direção a alguém. Larossa,2014

Page 83: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

83

a quinze vozes de afetos que convocou cada um de nós a se relacionar com o papel de

educador, desde um outro ponto de vista – o comum.

A construção de sentido em grupo não

diluiu os processos singulares de cada

educadora. Ao invés disso, evidenciou a

heterogeneidade como um valor no processo

investigativo. Como vemos no registro da

educadora Isabel Valli Espindola, integrante do

grupo:

E como resposta à Isabel...

Confesso que o último encontro foi bastante confuso!! E acho que isso é bom!! Estava escrevendo algumas coisas sobre isso de "confusão" que já foi levantado em alguns encontros por algumas de nós.

Con- fusão,

Fusão: “é o nome dado ao processo de passagem de uma substância do estado sólido para o estado líquido.”

Fluidificar ou liquidificar, sair do estado sólido e passar para o estado líquido. Acompanhar os processos. Parece-me um movimento interessante.

E foi exatamente na confusão que conseguimos dar forma ou OUTRA forma (mesmo que temporária) ao que estávamos vivendo. A tentativa de desenho parecia ser a estética se fazendo no grupo. E foi nesse esforço que fomos conseguindo falar do que vivemos e "entendemos" sobre documentação pedagógica e tudo que atravesse isso...

Enfim, foi confuso e foi bom!!

Adorei sua colocação "co-fundida" e acho que podemos adentrar mais líquida ou solidamente por esse seu pensamento com o grupo. Eu mesmo tenho me dedicado a desenvolver uma ideia sobre o olhar que se faz pela captura da precisão difusa da imagem. Precisaria explicar essa ideia com um pouco mais de tempo, o que não caberia aqui. Mas, se te interessar, podemos conversar mais "confusamente" sobre o assunto. Acho que tem muito a ver com a sua escrita.

Como vc diz, a tentativa de buscar uma forma estética (desenho) para nossas investigações é que possibilitou dar consistência e força (visibilidade) para os nossos pensamentos, mesmo ainda embrionários. Acho que se permitir estar nesse lugar "confuso e bom" é que nos desterritorializa daquela velha e sabida paisagem educativa, para então podermos criar "uma" diferença. Digo “uma” por sua singularidade. E isso tem a ver com o "deslocamento do educador”.

Posso garantir que isso só pôde acontecer em mim por eu estar junto com Vanessa, Helena e todas vocês, criando uma experiência inovadora plural e singular ao mesmo tempo, e a experiência não se aloca num terreno fixo, mas no terreno dos afetos que é geograficamente estabelecido por conexões entre diferentes realidades. É o território do "ENTRE".

Bel, querida.

Criou-se uma grande con-fusão??? Que bom!

Page 84: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

84

Page 85: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

85

“O extraordinário na mente humana é não apenas a capacidade de passar de

uma linguagem para outra, de uma “inteligência” para outra, mas também a

habilidade de uma escuta recíproca, que é o que torna possível o diálogo e a

comunicação. As crianças são os ouvintes mais extraordinários de todos; elas

codificam e decodificam, interpretando dados com incrível criatividade: as

crianças “ouvem” a vida em todas as suas facetas, ouvem os outros com boa

vontade, percebendo rapidamente como o ato da escuta é essencial para a

comunicação. (...) Criamos, então, aquilo que chamamos de “audiência

competente”, que são sujeitos capazes de ouvir, de ouvir reciprocamente e de

se tornar sensíveis às ideias dos outros, para enriquecer as próprias e gerar

ideias de grupo. Essa é, portanto, a revolução que precisamos fazer:

desenvolver a sensibilidade natural das crianças para apreciar e expandir as

ideias dos outros, compartilhando-as em conjunto.”

Carla Rinaldi

Page 86: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

86

Escuta Nômade e Escuta Sedentária

escutar a indeterminação e o determinado

Busco aproximar o significado de “escuta competente”

na educação, trazida por Carla Rinaldi, ao de “escuta-

agenciamento” que estou desenvolvendo nesta pesquisa,

por entender que a competência está na disposição de ser

flutuante e ao mesmo tempo atenta à indeterminação dos

contextos da experiência educativa, ou àquilo que possa

emergir das relações de aprendizagens singulares. Trata-se

de um exercício que se compõe com ética e nomadismo,

capaz de escutar a “vida em todas as suas facetas” e de

suspender a necessidade de reconhecer o que se escuta, ou suspender o juízo que torna a

escuta sedentária, que espera escutar o que já está determinado.

Em 2015 tive a oportunidade, mais uma vez, de visitar outra escola reggiana que me

chamou muito a atenção para a forma como se deu a preparação de uma das seções situada

no segundo andar do pequeno prédio. Além da costumeira e cuidadosa visibilidade que dão

para as documentações pedagógicas, assim como para os trabalhos elaborados pelas

crianças, ouvia-se por todo ambiente uma delicada voz infantil que facilmente se dispersava

na pouca atenção de meus ouvidos por causa dos meus olhos demasiadamente atentos.

Precisei aquietar o olhar para ocupar-me com a narrativa entoada pela voz de um menino de

três anos.

Mais tarde soube que essa narrativa se deu por intervenção das educadoras, que

anunciaram para as crianças que um grupo de adultos estrangeiros iria visitar a escola no

período em que estariam ausentes. Todos na escola estavam procurando a melhor maneira

de tornar as crianças presentes não só por meio de suas marcas deixadas pelo espaço. Então,

os adultos perguntaram para elas: O que vocês acham que seria importante para esses

visitantes conhecerem da escola? A partir dessa pergunta, o ponto de vista da criança

tornou-se voz e potência para relacionar-se com o outro que estava por vir. Uma experiência

que se iniciou na virtualidade de recepcionar o outro que não se conhece, mas que já o

percebe e o acolhe como desconhecido e em relação.

“Numa educação participativa, um comportamento ativo de escuta entre adultos, crianças e ambiente é premissa e contexto de toda relação educativa. A escuta é um processo permanente que alimenta reflexão, acolhimento e abertura em direção a si e em direção ao outro; é condição indispensável para o diálogo e a mudança. O comportamento da escuta eleva a atenção e sensibilidade com relação aos cenários culturais, de valores e políticos de contemporaneidade.”

RegimentoEscolaseCrechesparaainfânciadacomunadeReggioEmilia,2013.p11

Page 87: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

87

Voltando ao dizer que escutei daquela criança, a voz flutuante elegia alguns locais e

objetos que constituem a escola, atribuindo-lhes sentido sob seu singular ponto de vista – “a

escada que nos faz descer e subir quando precisamos; a pia para lavar as mãos com sabonete

perfumado; o galho pendurado no teto que faz sombra no chão; a cozinha que cheira bem”;

etc.

Lá permaneci, naquela voz, de olhos fechados, por um tempo que talvez ainda perdure

por detrás de minhas pálpebras. Deixei-me ser acolhido por uma cegueira plena de

sonoridade, que trouxe para o meu corpo a vibração de texturas, luminosidades, sabores e

cheiros. Me fiz ritmo daquela experiência que se compassava entre desterritorializar e

reterritorializar – desejei compor uma outra solução a partir da dissolução de saberes,

considerando-os como substâncias solutas a se tornarem dispersantes naquela experiência

solvente50.

Queria dar passagem à construção de uma paisagem de precisão em seu dizer pulsional e

de difusão molecular em seu fazer expressivo. Em outras palavras, a “precisão em seu dizer

pulsional” daquele menino só foi possível expressar-se pela sua capacidade polimorfa de

transformar a linguagem verbal numa potente difusão molecular de afetos, que nos

transporta a um espaço liso que adveio na relação singular com um espaço estriado e comum

– a escola.

Toda essa involução da criança permitiu-me ouvi-la em sua narrativa, seguindo

atentamente a direção daquele dizer que brincava entre os espaços lisos e estriados,

misturando-os à medida que as espacialidades formais da escola não eram trazidas como

localizadores geográficos ou identificadores de lugares. Esses espaços convertiam-se em

linhas, acontecimentos ou hecceidades que não nos confinavam enquanto sujeitos dentro de

um cenário determinado, “nem em apêndices que segurariam as coisas e as pessoas no

chão”51, tampouco ocupava-se em identificar coisas formadas e percebidas, mas eram/são

“um espaço de afetos, mais do que de propriedades”52. Era todo o agenciamento em seu

50 Meemprestodofenômenofísico-químicoquedefine“solução”comoresultadodaagregaçãodeduasoumaissubstânciascompropriedadesvariantesentresoluto(dispersor,quesedistribuinointeriordeoutrasubstância)esolvente(dispersante,quepermitequeosoluto distribua-se em seu interior). Existem diferentes tipos de soluções, mas a qual me refiro é a solução concentrada quecaracteriza-sedessemodoquandoaquantidadedesolutoseencontranaquantidademáximaqueosolventepodedissolver.Jáosentidodedifusãomolecularéumfenômenofísico,ondeumsolutoétransportadopelomovimentodasmoléculasaoredor.Estemovimentosedánadireçãodaáreamaisconcentradaparaamenosconcentrada,procurandoencontrarumequilíbrio.Aprecisão,nestesentido,éadispersãodoconjuntodevaloresqueseobtémapartirdasmediçõesrepetidasdeumamagnitudeougrandeza.51 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Milplatôs,vol.4.2012.p.5252 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Milplatôs,vol.5.2012.p.198

Page 88: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

88

conjunto individuado “comandando a metamorfose das coisas e dos sujeitos”53, sem ter

“começo e nem fim, nem origem e nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de

pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma.”54 Ou seja, havia uma correlação entre os

espaços, “retomando um ao outro, este atravessando aquele e, no entanto, persistindo uma

diferença complexa”55. Estava eu imerso na imprevisibilidade da experiência.

Mais tarde, para poder criar minhas próprias hipóteses e

teorias e cartografar a experiência, passei a ter uma escuta

de um dizer composto, que resultava da fusão eu e menino,

numa solução concentrada – Escutava a minha voz que por

vezes era a mesma do menino. E a voz do menino, ao escolher o que dizer, dizia o que ele

escutava de si mesmo desejando a escuta do outro.

Ele nunca soube quem seria esse outro ouvinte, mas

conviveu com o outro desejando-lhe presença no momento

de seu dizer. E eu não sabia quem ele era, mas desejei

escutá-lo para me encontrar com ele. Então o nós, ou o que

parecia ser eu e o menino, se dissolvia precisamente no

encontro de forças difusas do acontecer daquela

experiência. Tudo se desmanchava em nova experiência.

Não era mais a minha experiência e nem a do menino que

estavam se relacionando, em jogo.

Ali, no acontecimento, o desmanchamento daquilo que nos separava se fez por uma

urgência de dizer-ouvir, de uma escuta-encontro. Um encontro que só ocorreria se ele, o

menino, tivesse dito. E eu, o seu interlocutor, tivesse escutado. O narrador-menino e o eu-

ouvinte só puderam se desmanchar porque se distanciaram de suas representações, o que

possibilitou encontrarem-se como narrador-menino-eu-ouvinte, agenciando palavras e as

diferentes atribuições de sentido na produção de uma intensidade dada pela experiência de

um contexto aberto.

Contexto aberto é um interessante recurso, que se materializa em ambientação e se

expressa nas ações do professor, para se inaugurar processos diversificados de

53 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Milplatôs,vol.4.2012.p.5054 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Milplatôs,vol.4.2012.p.5355 DELEUZE,Gilles;GUATTARI,Félix.Milplatôs,vol.5.2012.p.195

“Os indivíduos devem se tornar a um só ponto solidários e cada vez mais diferentes – o mesmo se passa com a ressingularização das escolas, das prefeituras, do urbanismo etc. ”.

As3ecologias(p.55)

“As relações se compõem e decompõem segundo suas próprias leis. E são essas leis que determinam a passagem à existência e o término da existência dos modos. As partes componentes de um modo existente estão sempre se renovando. Pouco importa. Um modo existe enquanto suas partes extensivas estão submetidas a uma determinada relação característica pela qual elas pertencem ou correspondem a uma essência de modo.”

MACHADO,2010.p.72

Page 89: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

89

aprendizagens investigativas para crianças e adultos. Trata-se de uma situação interventiva

em que o educador prepara um ambiente e escolhe materiais propícios a uma experiência de

aprendizagem investigativa, onde meninos e meninas possam levantar suas hipóteses diante

do novo e as confrontarem com objetos, adultos e entre colegas a partir de suas teorias

provisórias, formulando perguntas e não apenas produzindo respostas.

Para que um contexto aberto seja constituído é preciso lançar mão de um planejamento

que esteja sob rigor da pedagogia da escuta porque, ao mesmo tempo em que precisa contar

com a presença de um adulto atento para acompanhar o aprofundamento do foco da

investigação, também é preciso que ele seja flexível para perceber o quanto os desvios que

surgem durante a experiência podem se tornar interessantes oportunidades para se criar

outras e/ou complementares situações indagativas.

Esse estado flutuante e atento, constituinte de experiência, possibilita para o adulto

“ouvir” com todos os seus sentidos, desempenhando assim uma escuta polissensorial,

nômade e suficientemente aberta para as emissões de ícones, símbolos e códigos presentes

nas interações comunicantes, não necessariamente ditas.

Para constituir esse contexto, o educador precisa partir de uma indagação que se conecte

com os valores da escola e que surja no interior de uma ou mais experiências vividas pelas

crianças, em grupo ou individualmente. O que realmente importa é a qualidade da pergunta,

que deve gerar problematizações e provocar movimentação rumo a um processo

investigativo – por exemplo, as crianças de um determinado grupo da escola passaram por

uma experiência que despertou a curiosidade em saber como nascem as plantas. A questão

para o educador não é formular perguntas já prevendo as respostas em que crianças

chegarão, mas viver uma experiência indagadora durante a processualidade investigativa,

quer dizer, uma experiência que cria seu próprio modo de existir e não se configura por

antecipações representacionais, mas pelo florescimento das relações possíveis e estabelecidas

em lugares nunca antes cultivados.

O território de uma experiência determinante, e não determinada, acontece por uma

abertura para o por vir. E se, ao contrário, a proposta é viver num território de experiência

determinada, o mapa já está dado, não havendo muitas possibilidades de exploração de

novas aprendizagens, de invenção de novos caminhos, ou do que pode advir para além do

lugar de chegada previsível. Por isso o território das experiências determinantes precisa

Page 90: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

90

ainda ser cartografado – e são os diferentes pontos de vista que o cartografam enquanto

vivem o fluxo da experiência.

Se dentro dos valores e procedimentos de uma escola

está a coconstrução de processos para a aprendizagem

inventiva, então o educador não estará promovendo

experiências para se relacionar com crianças

respondedoras de suas perguntas ou dos saberes

instituídos. Tampouco dirigirá a cena, encaminhando o

grupo pelo “caminho suave” de uma sequência didática

que artificializa a coconstrução.

Numa situação que se dá no território de experiência determinante, torna-se

imprescindível a participação do educador intervindo para que, juntos – ele e as crianças –,

inventem modos para que a processualidade da aprendizagem inventiva se realize. Mas a

presença do adulto está muito distante daquele que se coloca no mesmo lugar das crianças.

A ideia é interrogar-se sobre que tipo de agenciamentos se estabelecem no encontro entre o

ponto de vista do adulto e o ponto de vista da criança numa mesma experiência, sem que

ninguém abra mão de sua singularidade. É dar espaço para que o ponto de vista do outro

ganhe visibilidade e possibilite estabelecer intercessões, gerando multiplicidades em

conectividades56.

Essa postura de educador requer disposição para lidar com a imprevisibilidade e a

incerteza que podem emergir do próprio movimento relacional, comprometendo-se com a

sua investigação na intenção de realizar uma autoformação, além de contribuir com seus

pares na coconstrução da experiência educativa, que se faz por intercessões e conectividade,

implicada pedagogicamente com a aprendizagem que ultrapassa o sujeito no devir criança e

no devir educador. É a experiência em si: ela, vida. É dar passagem para o movimento

paisagisante dentro do território da educação.

56DELEUZE,2013

“Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação (...) O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que devém.”

DeleuzeeGuattari–MilPlatôs4-p.19

Page 91: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

91

Page 92: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

92

Page 93: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

93

Projeto educativo paisagístico e projetação educativa paisagisante

duas perspectivas no território da educação

Cara Madá

A cada encontro com você me sentia convidado a desencontrar-me. E esses deliciosos desencontros me provocaram deslocamentos em busca de novos posicionamentos diante da velha e sabida paisagem da educação. Foi nesse jogo de encontros-desencontros-posicionamentos que pude me relacionar com essa mesma paisagem desde outros pontos de vista, por um olhar que se constitui pelas tramas de valores conhecidos e, ao mesmo tempo, por tantas outras que surgem diante de novos e possíveis movimentos do pensamento. A questão é que, com esse olhar, criou-se em mim uma imagem de precisão difusa da paisagem educativa, reunindo diferentes concepções que compõem plasticamente um quadro de singularidades... Trecho da carta que escrevi em 2013, ao término de uma série de encontros organizada porMadalena Freire para umgrupodeeducadores.

Page 94: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

94

Page 95: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

95

Ao deixar-me deslocar pelo movimento de novos

pensamentos que constelam o universo da educação, sei

que nunca parto de um lugar qualquer, mas sempre de

um lugar do qual me ocupo e o qual me ocupa. Quando

me proponho cartografar essa pré-ocupação e o modo

em que se circunscreve a situação em que me encontro, o

itinerário do deslocamento do pensamento passa a ser

construído e ganha sentido à medida em que cada

“passo” é dado. É preciso estar atento aos traçados que

surgem e às indicações de rumos a serem percorridos

durante o processo de deslocamento, procedimentos da

pedagogia da escuta.

O meu desejo por esses deslocamentos e sua

cartografia não está em me tornar um desbravador de

caminhos, a nos levar para terras que ainda nem foram

descobertas em território educacional. Tampouco quero

me colocar na missão de ser o revelador de algum

segredo, ou do portal que pronuncie o que ainda se faz

inédito em educação. Seria possível dizer que a

prometida “Shangri-La” existe, mas o acesso a ela nunca

nos é revelado?

O que movimenta atualmente minhas investigações

cartográficas é o desejo de continuar, seja qual for o

ponto de partida, a composição de uma transdisciplinar

paisagem educativa, que se pauta por uma ética-estética

de precisão difusa – onde tudo se inicia no tempo

impreciso da aprendizagem, mas que me faz perceber

sua duração em encontros como os que se deram com

Madalena Freire.

A expressão precisão difusa da paisagem educativa foi o modo que encontrei para dar

sentido à cartografia das minhas experiências. O termo precisão quer dizer que sempre

houve um rigor que orientava e ainda orienta as escolhas que faço. Há um ethos estabelecido

“O fazer estético, entendido e experienciado como um filtro para interpretar o mundo, uma atitude ética, um modo de pensar que requer cuidado, graça, atenção, sutileza e humor, uma abordagem mental que vai para além da simples aparência das coisas para destacar aspectos e qualidades inesperados (...) é um sistema de valores e a poética é um projeto de valores (...) onde a criatividade e o rigor caminham juntos.”

Vea Vecchi - Arte y Criatividade enReggioEmilia–p65

Page 96: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

96

que “conecta” os dizeres pronunciados por teóricos que fortalecem o movimento do meu

pensamento e as práticas de minha atuação profissional que dão corpo às experiências. E

difusão, como aquilo que ocorre entre solução e solvente, a dispersão e o espalhamento, o

desmanchamento e o sfumatto de traços que impedem a produção da diferença.

A virtualidade da memória em constante atualização é um movimento constituinte de

minha trajetória educativa, porque o que se atualiza é aquilo que perpassa entre pontos de

referências teóricos, lembranças de criança aprendiz e impressões de um fazer artístico. É

essa passagem que se dá nos encontros/confrontos entre distintas experiências que

verdadeiramente me compõe e compõe a paisagem na qual insisto em habitar.

Por isso, o que me é de interesse cartografar são essas

atualizações-passagens que se inscrevem no caminhar de

minhas experiências. Não é, de modo algum, catalogar as

experiências vividas e transformá-las em referências

determinadas para que delas se extraia os “pontos” que

poderão ser identificados como assertivos ou equivocados

para prescrever uma “boa” ação formativa. Escolher traçar

uma trajetória que não se faça por meio de linhas-pontes

homogeneizadoras das experiências vividas é se permitir

traçar linhas-derivantes enquanto se vive a experiência.

Não estamos mais falando do sujeito da experiência, mas

da experiência em si em seu potencial de operar com

vetores de campo ampliado na produção dos afetos.

Nesse processo a precisão opera de forma difusa justamente porque produz uma

composição a partir do entrecruzamento de experiências teóricas e práticas elaboradas por

linhas de devir, por linhas de fuga que surgem na errância de um singular ato de desenhar

cartograficamente, porque o desenho cartográfico não é um traçado para servir de

cumprimento a uma tarefa, mas para fazer do ato de desenhar uma trajetória em si.

Trata-se de traçar um desenho cartográfico elaborado por um tipo de linha que “não se

define nem por pontos que ela liga e nem por pontos que a compõem: ao contrário, ela passa

entre os pontos, ela só cresce pelo meio, e corre em direção perpendicular aos pontos que

distinguimos primeiro, transversal à relação localizável entre pontos contíguos ou

“Produzir arte hoje é operar com vetores de um campo ampliado. Um campo que se abre ao entrecruzamento das diversas áreas do conhecimento, num panorama transdisciplinar, sem prejuízo de sua autonomia e especificidade enquanto prática de visibilidade. A cultura como paisagem não natural configura o território onde se move o artista: sua ação transforma-se em intervenção precisa ao mobilizar instabilidades no campo cultural (regiões que permitem problematizações, conflitos, paradoxos), por meio de uma inteligência plástica que torna visível uma rede de relações entre múltiplos pontos de oposições, onde trabalho de arte é um dispositivo de processamento simultâneo e ininterrupto, e nunca uma representação destas relações.”

BASBAUM,2013-P.27

Page 97: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

97

distantes”57. O que se mescla das experiências que vivo é o que possa haver entre os pontos

de partida de um fazer artístico, de teorizações sobre a infância e de experiências em práticas

educativas. Parece-me que, desse modo, estou em direção ao exercício de uma prática

defendida por Paulo Freire: a do educador aventureiro responsável, predispondo-me às

mudanças e à aceitação daquilo que possa emergir da transdisciplinaridade.

Minha hipótese é que isso envolve a intensidade da minha implicação na pesquisa

qualitativa, “que compreende tanto o envolvente quanto o envolvido, a profundidade e a

distância. Quando uma intensidade envolvente exprime claramente tais relações diferenciais

(precisão/difusão) e tais pontos notáveis (aqueles que saltam ao olhar deslocado), ela não deixa de

exprimir confusamente todas as outras relações, todas as variações e seus pontos”58.

Uma das inspirações-traços que trago de Reggio Emilia para riscar minha cartografia é

que ao se defender a educação como direito da criança, por exemplo, pressupõe-se que essa

defesa esteja baseada em princípios que, por sua vez, dão visibilidade aos valores de

infância, de comunidade, de sociedade e de cultura. Então, antes mesmo de falar em direito,

vejo a importância de trazer para o debate “qual seria a imagem de criança que se projeta” e

de que modo essa imagem determina os valores em relação ao ensino e à aprendizagem de

meninos e meninas.

Se a criança é considerada como um ser unívoco, uma identidade de sujeito, uma criança

molar, ou então considerada por sua singularidade e potência auto-organizativa, portanto

uma criança molecular, isso indica que há distintos caminhos para as práticas educativas

serem exercidas. Mas independente disso, toda instituição escolar defende os direitos à

educação da criança, o que poderá diferenciá-las são seus pontos de vista ou jogo de forças

que fundamenta uma ética e uma estética institucional representadas pelas expressões

territorializantes e funções territorializadas.

Para um projeto que procura pensar como se constituem as expectativas sociais para a

educação e debatê-las publicamente sob a luz dos valores implicados à infância e à

contemporaneidade, não caberia estipular a priori um consenso a fim de eliminar

divergências que poderiam surgir entre pontos de vista sobre concepções de ensino formal e

aprendizagem informal, família e escola, direitos e deveres, público e privado etc. Explicitar

expectativas de uma comunidade é também um modo de explicitá-la em sua subjetividade.

57 DELEUZE,GilleseGUATTARI,Félix.2013,p.9558 DELEUZE,G.2009,p.355–oqueestágrafadoemitalicédeminhaintervenção.Aintençãoédarênfaseaoempréstimoquefaço,ouexplicitaraminhainterpretação,sobreumaideiadeDeleuze.

Page 98: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

98

Trata-se de desnudar o que aí está e, ao mesmo tempo,

de desnudarmo-nos diante do que aí está. Estamos falando

de viver um processo clínico que envolve a

dessubjetivação da experiência-educativa-determinada e

de seus sujeitos, para que uma singularização-educativa-

determinante se faça na pluralidade, na multiplicidade que

se dá por um conjunto de distintas forças, fluxos e

movimentos, por confrontos onde todos modificam uns aos

outros.

É justamente nesse confronto que se produz estranhamentos e fricção entre diferentes

pontos de vista, o que dá potência aos movimentos de transformação, à criação do novo,

numa ultrapassagem dos sujeitos e dos objetos que planificam a paisagem educativa.

Parafraseando Marcel Duchamp, é dispor-se a criar uma educação inovadora que resulte do

coeficiente da multiplicidade, e não multiplicador.

Marcel Duchamp, em seu texto O ato criador59, enfatiza que no embate em que o

artista se encontra, entre a intenção e a realização de sua obra, depara-se com uma “cadeia de

reações totalmente subjetivas”. Essa cadeia é o lugar intermediário ocupado pela tensão

conflituosa que se dá por uma série de “esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões

que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano

estético”. A criação, que é a diferença revelada, só é possível pelo esforço do artista em

querer que sua intenção se realize. Porém, Duchamp afirma que o que resulta desse processo

advém do “coeficiente artístico pessoal, que é aquilo que se situa entre o que se quis realizar

e o que na verdade se realizou [...] é como uma relação aritmética entre o que permanece

inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente” na obra60.

Vivemos – não apenas nós brasileiros, mas o mundo – imersos em uma cultura do

imediatismo que se pauta na busca por modelos certeiros e de respostas rápidas, procurando

o máximo possível de esforços para o estreitamento de qualquer brecha que oportunize às

instituições, inclusive as educativas, lidar com a imprevisibilidade diante do desconhecido e

investigar o que nos faz optar pela previsibilidade do conhecido – condições essenciais para

o processo investigativo na busca de rever valores na perspectiva ética e, consequentemente,

59 TextooriginalmenteapresentadoàConvençãodaFederaçãoAmericanadeArtes,emHouston,Texas,USA,emabrilde1957.60 DUCHAMP,2004,p.73

“É a desterritorialização que faz “manterem-se” juntos os componentes moleculares. Opõe-se desse ponto de vista um bloco de infância, ou um devir-criança, à lembrança de infância: ‘uma criança molecular é produzida... ‘uma’ criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro.”

MilPlatôs.vol.4,p.97

Page 99: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

99

criar possibilidades de renovação. Nas palavras de Carla Rinaldi, “essa ‘atitude de

investigação’ é a única abordagem ético-existencial factível numa realidade cultural, social e

política como a nossa, sujeita a mudanças, colapsos e formações híbridas de raças e culturas,

que são positivas e potencialmente arriscadas. É o valor da pesquisa, mas também a busca de

valores”61.

Gosto de pensar em projetos pedagógicos como se fossem paisagísticos. Digo isso porque

parto do pressuposto de que não há nada de natural no processo do fazer educação. Os

programas educativos, dos mais alternativos aos mais conservadores, não estão isentos de

suas inserções nos contextos sociais e culturais. Esses programas são pensados e organizados

para que uma possível escola configure sua identidade de educação formal no agenciamento

espaço-tempo para o ensino e para a aprendizagem de sujeitos.

O território para que tal agenciamento ocorra não se reduz a uma ou outra demarcação

espacial e nem ao usufruto de equipamentos específicos que garantam o melhor ou mais

adequado “funcionamento” de uma escola. A constituição da artificialidade territoralizante

do projeto educativo, quer dizer, do projeto de dupla articulação, como dito antes, pautado

no que se diz – expressão de um dizer pedagógico – e no que se faz – conteúdo de um fazer

procedimental técnico – está entrelaçado por um conjunto de valores que estruturam uma

determinada concepção de educação. Esses valores estão presentes desde a prospecção,

concretização e manutenção de tal projeto, e por esse motivo necessita de artifícios

planejados para criarem uma situação educativa cotidiana. Portanto, projeto tem a ver com

funções territorializadas, por ser arborescente e molar e dizer respeito ao educador e à escola

que têm por plano de ação educar o aluno no cumprimento de tarefa funcional.

Uma paisagem educativa não se constitui naturalmente. Cada paisagem,

independentemente do território em que se encontra, possui sua volumetria, que possibilita

organizar as horizontalidades, as verticalidades, os fluxos e, consequentemente, formar um

espaço-ambiente a ser ocupado por determinados sujeitos ou indivíduos determinantes.

Um possível projeto paisagístico educacional poderá se alicerçar em valores regidos pela

essência62, num movimento reterritorializado que busca o equilíbrio na função de reproduzir-

se no instituído; e uma projetação paisagisante parte de valores regidos pela construção de

61 RINALDI,2012,p.18662 Entende-seaquipor“essência”umconjuntodevaloresqueseconstituipelacrençamoralnapermanênciadeumsaberacabado,quesefortalecepormovimentosconcêntricos,deconvergência.

Page 100: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

100

um campo de imanência63, movimento desterritorializante em busca de uma expressão para

produzir diferença. A partir dessas distintas regências, também são estabelecidos distintos

parâmetros para que se decida o que deverá compor a identidade de educação formal.

Os projetos educativos pautados em valores advindos

da crença moral divergem daqueles que se originam a

partir da confiança ética, e ambos são determinantes para

que a paisagem educativa se estruture como projeção

paisagística ou como projetação paisagisante, por

definirem distintos conteúdos (intencionalidades para o

ensino e aprendizagem) e formas (práticas metodológicas)

que poderão se dar por uma ordem hierárquica ou por uma atitude que instaura processos

para produção da diferença.

Ao conhecer algumas escolas no Brasil que, por um

esforço espetacular, anunciam o movimento em direção à

realização de uma diferenciação pedagógica, deparei-me

com o fato de que muitas delas se perdem no caminho ao

buscarem “o” modelo de diferenciação sem se autorizarem

a produzir diferença. Quer dizer, são escolas ou sistemas

que nada alteram suas bases estruturantes de pensamento,

que não efetivam uma ação analítica e crítica de suas

produções para se colocarem à altura de um agenciamento

maquínico de desejo no alcance de mudança. Uma força

acaba por ser exercida, a mesma força que extinguiu

aquele projeto criado para o município de Minas Gerais,

para inviabilizar o processo de ressignificação do conjunto

de valores que fundamenta as comunidades de

aprendizagem instituídas.

Dentro desse panorama, não há garantia alguma de

constituir outras formas de educar se a força de um projeto educativo estiver sustentada em

valores essenciais que operam por mecanismos da organização dentro de um sistema

regulador, com expectativas específicas de ensino e aprendizagem, no esforço de alcançar

resultados que garantam um ambiente harmonioso, segundo uma estética da 63 Contrapondo-seà“essência”encontra-seomovimentoquedesejaaconstruçãodeum“campodeimanência”.Essemovimentoédinamizadopelaconfiança-éticaeseconectacomoindeterminadoqueemergedofora,dadivergência

O problema da qualidade pode ser entendido em termos da localização do “discurso da qualidade” no projeto da modernidade, e que a pós-modernidade sugere maneiras alternativas de se entender e avaliar o trabalho pedagógico que acomoda a diversidade e as perspectivas múltiplas em um “discurso de construção de significado”.

DAHLBERG,Gunilla;MOSS,Peter;PENCE,Alan.2003.p.60

A crítica não avalia o presente a partir do horizonte da terra prometida. É, antes, uma atitude, uma ex-posição ao presente, que implica tanto a suspensão do julgamento como um embarcar fisicamente em algo que possa nos des-atar, e também possa nos liberar no sentido de permitir-nos outras experiências.

MASSCHELEIN,Jan;SIMONS,Maarten,2014,p.46

As sociedades disciplinares têm dois polos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo.

DELEUZE,Gilles–Conversações.p.226

Page 101: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

101

homogeneização regida pelo binômio poder-disciplina, tema tão bem explorado por

Foucault.

Dá-se, assim, uma paisagem de superfície acrílica com

cores chapadas, onde nada adere e nada se conecta, a não ser

ela nela mesma, onde objetos e pessoas são representações e

representam-se nessa geografia asséptica que substitui o real

para dar lugar à artificialidade da vida. Um terreno infértil,

aplainado e com calçamentos que definem uma constância

rítmica e balizadora para o caminhar, livrando-nos de

qualquer acidente, desvios ou deslizes – um exemplo dessa

insípida paisagem é a clássica ilustração de capa criada nos

anos 1970 para a cartilha Caminho Suave.

A pre-ocupação do projeto educativo paisagístico é erigir-se como reterritorialização

equilibrante que interrompe quaisquer forças e funções desestratificadas que poderiam

gerar uma territorialidade ainda por vir. Quer dizer, há necessidade de reafirmar-se numa

desterritorialização negativa que se dá pela reprodutibilidade do mesmo regime de signos,

ainda que possa ocorrer de forma “diferenciada” e “criativa”.

Os projetos da educação paisagística convocam como partícipe “o professor-profeta” que

“é o legislador, que enxerga um mundo novo e constrói leis, planos e diretrizes, para fazê-lo

acontecer.”64. Em contraponto, as projetações paisagisantes acolhem “o professor militante”

que está “na sua sala, agindo nas microrrelações cotidianas, construindo um mundo dentro

do mundo, cavando trincheiras de desejo.”65

64 GALLO,2008,p.6565 idem

Page 102: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

102

Page 103: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

103

"Um pobre e oprimido coração de estudante confessou-se comigo. Algo

impelia-o para junto da janela, longe de seus cadernos, longe de sua pena

mergulhada no tinteiro. Seus olhos queriam sair para passear lá fora,

atravessar a vidraça, contra a qual batia levemente a testa. Crianças

felizes brincando lá embaixo. A risada feliz de Irene, aquela garotinha

adorável. Felizes olhos dele por a estarem seguindo. Feliz o seu pobre

coração de estudante, pobre coração oprimido.

Mas as árvores, invejosas, ocultam o único prazer que seus olhos têm

sobre a Terra. Por quanto tempo ainda manterão Irene prisioneira? O

tempo escoa no tique-taque do relógio, e a pena já está bem molhada de

tinta."

Paul Klee

Page 104: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

104

Page 105: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

105

Renovação de votos de obediência e responsabilidades para o sucesso

ou comprometimento com a cartografia paisagisante

Muitas instituições de ensino público e privado

investem na terceirização da formação de seus educadores

em busca de solucionar os problemas em seu sistema

regulador. Então, busca-se “especialistas” que prometem a

“melhor” formação dos sujeitos para torná-los mais

capazes e mais competentes de aprimorar a paisagem

instituída. Geralmente, para atender essa demanda, são

criadas projeções paisagísticas do tipo “Caminho Suave”–

como aqueles da OSCIP que comentei anteriormente –, que

muitas vezes se dão através de iniciativas do setor

empresarial em parceria com as políticas públicas.

Essas parcerias se mostram extremamente bem

intencionadas ao desejarem contribuir para o “aumento”

da qualidade da educação em nosso país, idealizando e

implantando sistemas educacionais nas dimensões

formais, substanciais, conteudísticas e expressivas em

âmbito nacional para suprir as demandas de uma

escolarização deficitária das “minorias”(diagnóstico feito

por uma medida avaliativa mercadológica).

Como negar o poder benevolente dessa iniciativa que quer erradicar o déficit de

qualidade educativa em âmbito nacional? Mas, isso tudo tem seu preço, porque o poder

hegemônico passa a assumir o controle da formação de indivíduos para transformá-los em

sujeitos-mão-de-obra, treinando-os para ocuparem seus lugares no mercado. Isso ocorre

graças ao esforço de induzir diversas comunidades a renovarem seus votos de obediência em

nome de se responsabilizarem por um ensino melhor.

Todo esse mecanismo gera um falso problema relacionado à baixa qualidade do ensino,

porque se localiza o problema sob a perspectiva da “subjetividade coletiva territorializada”66

que, ao mesmo tempo em que aponta para uma suposta “falta” na formação dos educadores,

66 GUATTARI,Félix.2012,p.117

“A média brasileira de gastos com treinamentos é de R$ 518 por funcionário. Seria ótimo se os donos de grandes empresas pudessem economizar esse dinheiro, que significa aproximadamente R$ 1,38 milhão anuais por empresa escoando das companhias com mais de 500 funcionários. Já para a Ambev, de Jorge Paulo Lemann — que também está à frente da Fundação Lemann — significaria uma economia de aproximadamente R$ 20 milhões ao ano, afinal são mais de 40 mil empregados. Se, ao menos, no ensino técnico ou médio já fossem ministrados alguns dos treinamentos necessários aos futuros empregados, empresários como Lemann não precisariam gastar tanto com RH.”

BORGES,Helena.Conheçaosbilionáriosconvidadospara“reformar”aeducaçãobrasileiradeacordocomsuaideologia.InTheIntercept-Brasil.04denovembrode2016https://theintercept.com/2016/11/04/conheca-os-bilionarios-convidados-para-reformar-a-educacao-brasileira-de-acordo-com-sua-ideologia/

Page 106: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

106

organiza-se para supri-la “através de um movimento geral de fechamento em torno de si

mesma”67. Ou seja, possivelmente o verdadeiro problema das escolas “advém de uma

impotência de avaliar” 68 de que modo contribuem ou não para a manutenção do

funcionamento deficitário que opera o sistema da educação nacional, e a si mesmas, se lhes

conferem ou não a responsabilidade de serem “geradoras” do déficit de qualidade educativa

do país. Essa impotência avaliadora dá margem para que ações homogeneizantes entrem no

sistema e controlem o desenvolvimento do ensino arborescente e molar.

As metodologias pré-ocupadas em reproduzir o modelo arborescente e molar,

articulando-se por meio de generalizações de “boas práticas” funcionalistas e idealistas para

solucionarem problemas, assumem a representação do progresso e de um futuro melhor69.

Esse regime se dá por um sistema fechado que insiste em se manter e manter os sujeitos

confinados no campo das redundâncias. Trata-se de uma máquina que funciona por meio da

retroalimentação, de retrocognição, não no sentido do fenômeno parapsíquico de regressão

de memória ou regressão a vidas passadas, mas fechando-se em seu próprio processo de

regulação cognitiva e emotiva, controlando o conhecimento de mundo e de si no

ensinamento de respostas pré-existentes.

A mesma força que implanta a “falta” dentro do próprio sistema cria medidas

reprodutoras das verdades proféticas para supri-la, atribuindo à formação continuada um

caráter de vigília para que a operacionalidade de sua máquina ganhe potência e continue

impedindo o surgimento de pequenas fissuras, ou de microrrachaduras pessoais e coletivas

onde possam germinar campos de imanência.

O projeto que se guia por valores regidos pela construção de um campo de imanência,

desejando-se fazer paisagem heterogênea, ou seja, paisagisante, busca constituir um lugar

composto por contrastes, como nos projetos de jardinagem que combinam diferentes

espécies de plantas, diversificando raízes (pivotantes, escoras, aéreas etc.), caules (troncos,

estipes, colmos, trepadeiras etc.) folhas, flores e frutos.

Aquilo que resultará dessa composição viva e diversificada, transformadora e

autopoiética, é que vai encontrar a forma de expressão para o seu dizer na própria potência

desse dizer. Isso implica proceder no interesse de inaugurar um processo avaliativo de

transvaloração que identifique quais são os valores irrevogáveis, negociáveis e transitórios 67 idem68 ZOURABICHVILI,François,2016.P.7869 Masschelein e Simons, 2014

Page 107: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

107

que povoam tal projeto, no sentido de poder ratificar a realidade por um processo de

desterritorialização.

A iniciativa de querer ratificar a realidade envolve escolhas e tomadas de decisões que

ultrapassam a cultura para se pensar com as categorias da vida, elevando o projeto à altura

da experiência humana de modo extrapessoal e extramoral. São tensões que ocorrem entre

direitos e deveres como tensões necessárias para a experiência da comunidade educativa

acontecer.

Não podemos dizer que tais tensões são necessariamente resultantes de um conflito de

interesses (desejos?) entre as instituições família e escola, tampouco entre seus sujeitos. Há

comunidades em que tudo e todos estão unidos e em relação pela comunhão de valores

(sejam morais ou éticos), produzindo modos de viver e subjetivação na experiência de

constituir um certo tipo de coletividade onde todos possam estar à altura daquilo que

acontece. Quer dizer, a comunhão de valores determina se a comunidade será constituída

por projeção paisagística ou por projetação paisagisante.

O que irá diferenciar uma comunidade da outra é que

enquanto a projeção planeja uma determinada paisagem

educativa, a projetação deseja o acontecimento de uma

paisagem educativa. Quer dizer, a projetação é uma ação

educativa paisagisante, molecular e rizomática,

cartográfica por se fazer paisagem enquanto se está em

processo, enquanto se está em aprendizagem no processo, e

“o ponto de partida da avaliação está na diferença sentida

entre maneiras de avaliar (ponto de vista, problemas), de

modo que a crítica decorre de um primeiro ato positivo”70.

Para uma escola que se propõe a produzir diferença, poderíamos pressupor que “ela”

queira problematizar a educação formal e seu sistema na atualidade, colocando em avaliação

os discursos dominantes que regem a sua própria institucionalização e indagando a respeito

da cultura e da sociedade que “espera” reconhecer a escola como lugar da

representatividade qualitativa da formação intelectual humana.

Foi preciso dar muitos giros em minha jornada profissional para encontrar pessoas tão

dispostas e disponíveis a viverem os processos paisagisantes da educação quanto a 70 ZOURABICHVILI,François,2016.P.78

“A ação educativa toma forma através da projetação, da didática, dos ambientes, da participação, da formação do pessoal, e não através da aplicação de programas predefinidos. A projetação é uma estratégia do pensamento e da ação respeitosa e solidária com os processos de aprendizado das crianças e dos adultos, que aceita a dúvida, a incerteza e o erro como recursos e é capaz de modificar-se de acordo com os contextos. É feita através dos processos de observação, da documentação e da interpretação em uma relação recursiva. A projetação é realizada através de uma estreita sinergia entre a organização do trabalho e a pesquisa educativa.”

RegimentodasescolasecrechesparaainfânciadaComunadeReggioEmilia.ReggioChildren,2012.p.12

Page 108: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

108

comunidade de Educação Infantil da Escola Vera Cruz (EIVC). Esse encontro se deu pelo

convite de Elizabeth Scatolin, coordenadora da escola, que sensivelmente percebeu o

momento propício de trazer nossa relação de amizade e cumplicidade educativa para dentro

da escola como potência criadora de um plano de consistência.

Ao mesmo tempo em que iniciávamos o processo complexo de coautoria do traçado para

formalizar nossa aliança, fui acolhido por essa comunidade a convite da coordenadora da

escola, que me possibilita criar outras formas relacionais como formador de professores,

deslocando-me da necessidade de estabelecer pontos de distinção hierárquica (o outro

precisa saber o que sei), espacial (cada um coloca-se em seu devido lugar) e cronológica (a

quantidade de experiência acumulada no tempo sobrepondo-se à qualidade da experiência

no presente).

Portanto, diferentemente de projetar-se numa imagem

idealizada de escola e preparar educadores para ocuparem

devidamente esse lugar imaginado, a EIVC abre espaço

para que eu possa estar junto, como assessor e formador,

onde todos estão (e não estar por eles ou para eles), de

modo a percebermo-nos em nossas singulares ocupações

no processo compositivo do comum. Essa composição

ocorre aproximando-nos e afastando-nos do lugar

conhecido, sem precisar abandoná-lo. Quer dizer,

ocupando-nos do mesmo lugar sob uma outra perspectiva,

o que nos permite viver coletivamente o estranhamento do

familiar. Todo esse processo me convoca a uma escuta

sobre a produção de subjetividade, estabelecendo o compromisso ético que ultrapassa os

limites do vivido representacional para valorizar a “articulação dos objetos de estudos a seu

plano de produção”71

A comunidade da EIVC se lança, como nos lembra Guattari, por uma noção de interesse

coletivo, predisposta a viver a imprevisibilidade de processos “que a curto prazo não trazem

proveito a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o

conjunto da humanidade.”72

71 PASSOS,E.,KASTRUP,V.;TEDESCO,S.2014,p.15472 GUATTARI,Félix.2006,p.51

“... o caminho da pesquisa cartográfica é constituído de passos que se sucedem sem se separar. Como o próprio ato de caminhar, onde um passo segue o outro num movimento contínuo, cada momento da pesquisa traz consigo o anterior e se prolonga nos momentos seguintes. O objeto-processo requer uma pesquisa igualmente processual e a processualidade está presente em todos os momentos – na coleta, na análise, na discussão dos dados e também, como veremos, na escrita dos textos.”

PistasdoMétododaCartografia-Pista3–cartografaréacompanharprocessos.LauraPozzanadeBarroseVirgíniaKastrup.p.-59

Page 109: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

109

A projetação educativa paisagisante se move a partir da

processualidade do seu acontecer, uma subjetivação a ser

vivida pela “multiplicidade”73 de agenciamentos. Trata-se

de um devir-minoritário de uma micropolítica ativa que se

implica e é implicada em processos participativos em que

todos se constituem na desterritorialização e

reterritorialização educativa. Tudo e todos se agenciam no

acontecimento da paisagem.

“Projetação paisagisante” tem a ver com expressões

territorializantes e diz respeito ao educador, à criança e à

escola constituindo-se mutuamente enquanto território que

emerge dos componentes de seus meios exterior, interior,

intermediário e anexado. Paisagisante se define pela

expressão de um ritmo que se dá pela “passagem

transcodificada de um para outro meio, comunicação de

meios, coordenação de espaços-tempos heterogêneos” 74 .

Portanto, a experiência que se vive atualmente na EIVC

reverbera devir-expressivo da rítmica de suas qualidades

próprias que a faz território, e “as funções que nele se

exercem são produtos da territorialização”75.

Na implementação de um sistema de projetação

paisagisante, não caberia constituir uma comunidade de

aprendizagem inventiva a priori, tampouco ir em busca de

modelos para pré-elaborar futuros planos de ação. É a

própria ética da projetação que, ao exercer sua potência nas

atitudes e nos contextos educativos conhecidos e não

conhecidos, produz diferença. E isso tem a ver com a

postura de um professor que, ao se colocar como sujeito da

73 A “multiplicidade” tem dois objetivos: 1. sublinhar os processos demovimento e de devir, em vez das noções estáticas deessência e de “ser”, já-e-para-sempre constituído; 2. permitir pensar a diversidade e a variedade do mundo sem recorrer às noçõestradicionaisdeunoemúltiplo.Ummundoconstituídodemultiplicidadeséummundoemmovimentocontínuo,ummundodecriações.VeraesterespeitoTomazTadeu(2002).74 DELEUZE,GilleseGUATTARI,Félix.2013,p.12775 DELEUZE,GilleseGUATTARI,Félix.2013,p.127

Conversapore-mailcomacoordenadoradaEducaçãoInfantildaEscolaVeraCruz,ElizabethScatolin.

Beth: (...) Outro pensamento que fiquei da nossa última reunião é que não pode existir moralização na relação educativa. A ética pede a consciência dos valores em jogo nas percepções e a transparência bruta do que está sendo desconstruído e construído. Não tem lugar pra gerúndio no valor. Ou ele é ou não é ... Ou eu vejo ou não vejo... É preciso ter coragem para escutar os gerúndios moralizantes!

José: Sim, concordo com tudo o que diz, e justamente por estar em consonância com suas palavras, proponho um "desmanchamento das fronteiras gerundianas", fronteiras que nos asseguram dentro das muralhas de uma pedagogia vertical e certeira. Ao ler o que você escreve aqui, me leva diretamente para a imagem da "América Invertida" de Torres García que se compõe perfeitamente com a frase que a Stela Barbieri nos trouxe do Godard - "a cultura é a regra, a arte exceção". Propor uma exceção à regra é querer conhecer a regra como tal e desejar o que dela nos é desconhecido. Por isso, como a arte deseja fazer-se no desconhecido, ela nos mobiliza para a construção de um outro ponto de vista - "um novo olhar” que ultrapasse a percepção do familiar, que não permite apagamento da diferença e nem a amenização do estranhamento, como se desconhecido e incerteza fosse algo a ser urgentemente eliminado para nunca ser vivido.

Page 110: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

110

experiência em trânsito, acolhe a imprevisibilidade como oportunidade para se criar um

campo de imanência.

Uma dupla de professores de Educação Infantil da

Escola Vera Cruz havia iniciado um trabalho com crianças

de quatro anos, convidando-as a viverem experiências

coparticipativas por diferentes configurações de

agrupamentos (duplas, trios, quartetos; dentro e fora da

sala), para que pudessem experienciar empaticamente

encontros entre desejos, interesses e pontos de vista, num

exercício de alteridade. A intenção era investigar, por parte

dos adultos, as situações que melhor demonstravam ser

uma oportunidade para iniciar um projeto comum.

O que mobilizou os professores nessa investigação era o fato de que as crianças estavam

com dificuldade de se comporem como grupo, o que dificultava aprofundar os vínculos e

estabelecer uma maior interatividade. Havia o desejo dos adultos de colocar as crianças

numa relação que lhes propiciasse “curiosiar” juntas, de maneira a confrontar pontos de

vista para a realização de investigações coletivas.

Depois de várias tentativas, nenhum contexto foi capaz o suficiente de gerar potência

agenciadora. Até que, então, surge na área externa da sala uma calopsita. Lá estava ela,

debatendo-se com suas asas, presa a uma árvore do jardim. E, diante da surpresa de todos, o

professor se aproxima da calopsita e consegue trazê-la para dentro da sala, já que estava no

fim do dia e se tratava de um pássaro de cativeiro. Seria um grande risco deixá-lo ao relento.

Na sala, a ave fez um curto voo e se alojou sobre uma das vigas que sustenta o teto. Com a

chegada dos pais, as crianças os convidavam para ver o inusitado visitante, e todos, adultos e

crianças, começaram a interagir, levantando hipóteses, colocando-se com suas teorias e, aos

poucos, faziam das incertezas que pairavam no ar um campo de consistência promissor. O

que ocorrerá a partir de agora? E amanhã? O que fazer com a presença desse estranho

visitante? Para os professores, as perguntas que surgiam ultrapassavam a condição de busca

para solucionar o problema, elas foram acolhidas como indagações que gerariam uma

significativa e prazerosa investigação coletiva das crianças e dos adultos.

A presença do pássaro possibilitou a criação de um contexto inaugural de pesquisa

coletiva, uma vez que a ave deu passagem ao fluxo da processualidade do convívio. Os

[...] uma vez que as crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras ou inventoras, uma vez que sejam ajudadas a descobrir o prazer da investigação, sua motivação e interesse explodem. Elas começam a esperar discrepâncias e surpresas. Como educadores, precisamos reconhecer sua tensão, em parte porque, com um mínimo de introspecção, descobrimos o mesmo dentro de nós mesmos (a menos que o apelo vital da novidade e da curiosidade tenha diminuído ou morrido).

EDWARD,GANDINI;FORMAN,1999,p.76–LorisMalaguzzi-entrevistatranscritanolivroAscemlinguagensdacriança

Page 111: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

111

professores, por sua vez, não “capturaram” o pássaro para que as crianças pudessem estudá-

lo cientificamente. O que entrou naquela sala era um devir-pássaro, um acontecimento que

esboçava uma linha de fuga para alçar outros voos, uma oportunidade outra, transformando

a imprevisibilidade em oportunidade de aprendizagem comum, e isso necessariamente

envolveu a escuta atenta dos adultos para as singularidades de todos os participantes,

inclusive para a calopsita. Assim cartografavam a singularidade não mais de cada indivíduo,

mas a que se fez comum, que coproduziu subjetividade. No convívio com a ave, que habitou

a sala daquele grupo por vários meses, os professores e as crianças experienciaram “habitar e

coabitar a vida de uma calopsita, que nos convidou ao convívio, ao cuidado, ao olhar o

outro.”76

Numa das várias discussões em grupo, as crianças questionavam a necessidade de colocar

a calopsita em uma gaiola – “Mas e agora! O que fazer? Como cuidar? Do que uma calopsita

precisa? Quem é seu dono? Ele quer sair da gaiola. Eu quero pegar. O que eu quero, o que

ele quer? O que nós queremos? Como ele se sente? E como eu me sinto ao vê-lo assim? (...). Já

não era mais possível decidir apenas pensando em cada um, em nós, mas principalmente no

outro...”77

As crianças passaram por várias experiências de aprendizagens instituídas e

aprendizagens inventivas durante todo o processo. Uma delas foi quando receberam a visita

de um veterinário para instruí-los sobre quais seriam os cuidados necessários para manter a

calopsita com eles. Isso fez com que a rotina fosse reorganizada, para viabilizar a

corresponsabilidade pelos cuidados com a ave.

Outra interessante experiência se deu quando confrontaram o sentido de proteção e

segurança da calopsita em relação à liberdade. Isso porque, diante do procedimento da apara

das asas, iniciou-se um debate que lhes deu a oportunidade de exercitarem a argumentação

sobre o desejo de ficar com o animal perdido ou buscar alternativas para devolvê-lo ao seu

dono etc.

Ao final, todos chegaram à conclusão de que não seria justo, nem para o dono e nem para

a calopsita, viverem a dor da separação. Então, decidiram produzir modos de divulgar a

localização do animal para a comunidade do entorno da escola. Isso abriu outro processo – a

criação de cartazes para serem expostos fora da escola. Todas as crianças estavam de acordo

76 TrechoextraídodadocumentaçãopedagógicaelaboradapelosprofessoresLucianaCabraleAndréGimenes.77 Idem.

Page 112: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

112

sobre a importância da comunicação visual e algumas decidiram por produzir desenhos de

observação da calopsita para melhor evidenciar suas particularidades físicas. Outras, ainda

que com a mesma argumentação, optaram pela fotografia. Então, estava decidido: as crianças

se subdividiriam em pequenos grupos, para que uns produzissem cartazes com desenhos e

outros com fotos.

Mas, surge um outro problema trazido por uma criança: como saber se quem se

pronunciar a partir do cartaz é mesmo o dono? Poderá simplesmente ser alguém com o

desejo de ter uma calopsita. Essa questão mobilizou o grupo a encontrar uma solução. E,

assim, com a colaboração de uma profissional da área administrativa da escola, as crianças

elaboraram uma série de perguntas relacionadas às características que identificavam a

singularidade daquela calopsita, como um roteiro a ser respondido para quem entrasse em

contato reivindicando a posse da ave.

Com os trabalhos prontos e os procedimentos definidos, as crianças, acompanhadas pelos

professores, saíram em pequenos grupos pelo bairro à procura dos melhores locais para se

fixar os cartazes. Isso envolveu negociações com o jornaleiro e com os funcionários de uma

padaria. Uma criança em particular escolheu um tronco muito largo e robusto para fixar o

seu cartaz, dizendo que a força daquela árvore faria o cartaz ter mais força ainda. Muitos

candidatos entraram em contato e até mesmo compareceram na escola, mas nenhum

reconheceu a ave como sendo sua. E a calopsita passou a ser adotada pelos professores, que

ainda se revezam acolhendo-a em suas casas e, de vez enquanto, levam-na para visitar a

escola.

Quando os educadores se veem diante das incertezas e imprevisibilidades emergentes,

isso pode propiciar um deslocamento do sujeito da experiência para a experiência fora do

sujeito. Quer dizer, é quando eles mesmos se tornam “território de passagem, algo como

uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,

inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos (...). (...) o sujeito da

experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.”78. E isso requer uma

prática pedagógica de agenciamento para a aprendizagem inventiva que, por sua vez,

constrói um campo de imanência para o aprendizado coletivo, complexo e aberto.

78 LARROSA,2014,p.25.

Page 113: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

113

No território da educação que cria diferença, a paisagem se constitui a si mesma à

medida que é constituída por um projeto que se inventa “fora” da idealização e do sujeito,

convocando a criança cartógrafa e o adulto cartógrafo para ambos traçarem o espaço do

acontecimento “de seu aprendizado e a organização de sua experiência, de seu conhecimento

e do significado dos seus relacionamentos com os outros.”79. Nesse proceder cartográfico

cada qual tem o seu passo, caminhando às vezes juntos, em outras separados por seus

respectivos caminhos, demarcando lugares por onde passam distantemente uns dos outros.

Ainda assim, em algum ponto eles se cruzam, mesmo que passageiramente ou comungando

demorados passeios, porque o território por onde caminham lhes é comum. O método da

cartografia é empático às projetações paisagisantes.

Para aqueles que valorizam o projeto paisagisante, avaliar e analisar a processualidade de

uma projetação, sua cartografia ou o devir-expressivo que se faz território, é de fundamental

importância para se seguir em continuidade. Quem educa sob essa perspectiva vive

constantemente o registro de troca de aprendizagens de modo que, nas palavras de John

Dewey, “a sugestão do professor não é um molde para um resultado forjado, mas um ponto

de partida para ser desenvolvido em um plano através de contribuições a partir da

experiência de todos os envolvidos no processo de aprendizagem. O desenvolvimento ocorre

através de trocas recíprocas em que o professor recebe, mas também não tem medo de dar”.80

Silvio Gallo traz uma interessante observação sobre a diferença nos modos de ocupar o

mundo que há entre o educador profeta e o militante. O primeiro legisla a progressão do

ensino e da aprendizagem homogêneos e programáticos, e o outro, “por sua vez, está na sala de

aula, agindo nas microrrelações cotidianas, construindo um mundo dentro do mundo, cavando

trincheiras do desejo”81. Reconheço esse sentido de militância nas atitudes de profissionais da

escola que se predispõem ao devir das relações, num esforço de aproximar inventividades

que envolvam as aprendizagens singulares de crianças e adultos, evidenciadas, por exemplo,

por meio da pedagogia da escuta e da cartografia, entre tantas outras iniciativas que

poderíamos nomear como transgressoras da ordem profética.

79 RINALDI,2012,p.162.80 DEWEY,2010,p.74.81 GALLO,2008,p.65

Page 114: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

114

Numa pedagogia-agenciamento o adulto, em hipótese

alguma, se isenta de planejar suas ações, de trazer suas

contribuições para o grupo e se corresponsabilizar, como

sugere Freire, aventureiramente por aquilo que possa

emergir das experiências coletivas e individuais. Ou seja,

praticar esse tipo de pedagogia requer um professor

circunscrito por intencionalidades educativas e em

constante processo avaliativo, como supostamente se espera em qualquer prática

pedagógica. A diferença se dá pela presença de um professor investigador, que abre mão da

posição de detentor do saber, de ensinador, tal qual o pensamento de Jacotot mencionado

anteriormente: um professor que não se deixa guiar por uma ordenação explicadora.

Todo esse cuidado do professor não deixa que a experiência seja carregada pelos fluxos

da normatividade escolar, porque ele não separa objeto de conhecimento do sujeito e

desenha a rede de forças à qual o objeto, sujeito ou fenômeno em questão se encontram

conectados sem que se perca o caráter de heterogeneidade; uma prática que se aprende em

seu fazer e que não pode ser planejada, mas intencionada.

Esse é um modo de resistência que propicia a cocriação do campo de imanência para as

aprendizagens inventivas a partir das relações que se estabelecem entre adultos, entre

crianças, entre adultos e crianças, e entre todos com a cognição e a emoção, já que a

“cognição passa a ser entendida como uma prática e não como uma representação. Como

prática, seu trabalho é o de pôr em relação elementos heterogêneos”82. Em outras palavras,

ao considerarmos que o conhecimento se faz em situação relacional, ele resulta numa

experiência comum, mas é ao mesmo tempo singular e nunca igual, por ser de uma prática

socialmente construída.

Eis aqui uma medida importante que dá sentido à avaliação das práticas educativas de

um projeto de projetação paisagisante: garantir a construção do campo de imanência. Porém,

se a avaliação de tais práticas estiver sob o crivo de um juízo de valor, corre-se o risco de

qualificar a imanência no projeto não por sua potência criadora, mas, muito provavelmente,

pela representação de um estado de permanência laissez-faire, que se perde no caótico

espontaneísmo justamente por se tratar de uma educação que não se pré-configura e não

determina previamente os objetivos que se pretende alcançar.

82 KASTRUP,2007

Também no âmbito de uma educação menor corremos o risco de reterritorialização, de reconstrução da educação maior.(...) A permanência do potencial de uma educação menor, a manutenção de seu caráter minoritário, está relacionada com sua capacidade de não se render aos mecanismos de controle; é necessário, uma vez mais, resistir.

Gallo,p.70

Page 115: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

115

Quando ainda era assessor de arte na Escola Viva, em São Paulo, organizei um encontro

com os professores para juntos avaliarmos o percurso que construímos e trilhamos durante o

ano de 2015. Um dos professores disse sentir falta de indicações de textos teóricos. Segundo

seu argumento, se eu tivesse essa iniciativa o ajudaria a validar conceitualmente o

planejamento de aula antes mesmo de colocá-lo em prática. Imediatamente, um outro

professor se opôs à solicitação do colega, dizendo: “Para mim se dá o contrário, foi

justamente por não ter referências teóricas a priori que tive de fazer a leitura teórica e

conceitual da minha prática durante todo o percurso. Isso me instigou a investigar dentro e

fora do meu saber, isso me deslocou, e quero sempre brincar desse tal ir e vir. Agora me

sinto instigado a ler os teóricos, aqueles que já conheço e os que ainda não conheço, porque

sei que vou lê-los desde a minha experiência....”

A partir da expressão dos dois pontos de vista, uma discussão-confronto sobre

singularidade dos processos tomou grande parte da nossa avaliação, o que me levou a

entender as escolhas que faço para desenhar o meu percurso de formador. Foi nele que se fez

clara a minha intencionalidade formativa. Os dois educadores, ao dialogarem com o coletivo

a partir do confronto de suas distintas experiências, trouxeram questões relevantes e que

movimentaram as subjetividades singulares e a de grupo. O mais importante do que acabo

de relatar é que isso só pôde acontecer por estarmos juntos criando uma experiência

inovadora, plural e singular ao mesmo tempo. Mais uma vez, o que me interessa é o que

estava por emergir.

Talvez a interpretação de que a projetação paisagisante possa significar descompromisso

com a objetividade ocorra pela ignorância de que “as qualidades expressivas são auto-

objetivas, isto é, encontram uma objetividade no território que elas traçam”83. Então, avaliar

as qualidades expressivas de uma comunidade educativa paisagisante envolve analisar a

sucessão de repetições que faz a rotina escolar acontecer na dupla articulação pedagógica, na

expressão e função, no ensino e aprendizagem. É a partir dessa análise avaliativa que o

projeto político-pedagógico (PPP) e o método exercido são atualizados. Com isso, a escola

inevitavelmente se repete e se faz na repetição “em busca de um centro estável no caos”84,

mas talvez seja preciso entender o quanto essa busca por estabilidade é mantenedora ou

83 DELEUZE,GilleseGUATTARI,Félix.2013,p.13184 DELEUZE,GilleseGUATTARI,Félix.2013,p.122

Page 116: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

116

desestabilizadora da repetição que se renova para produzir aprendizagens inventivas ou

repetição que se conserva à reprodutibilidade das aprendizagens instituídas.

Creio que, para gerarmos ações de transformação paisagisante, precisamos assumir a

militância de educador “inquieto” em e na coletividade, a fim de que se constitua a força que

nos autoriza a sermos agenciadores de mudança num jogo de interação investigativa entre

realidade e utopia, entre princípios e valores vigentes e aqueles desejados. Também acredito

que tenhamos de assumir uma postura crítica que nos coloca em relação direta com a escuta

atenta para a prática educativa exercida com crianças.

Eis aqui uma questão essencial para discutirmos: que formação é preciso para contar com

educadores inquietos – ou seja, educadores investigadores e inseridos num sistema

autopoiético e rizomático? Qual seria a formação profissional ideal para que esse movimento

se realize na escola? Certamente não se daria por um caminho suave, em que se segue uma

ordem, um itinerário pronto para os caminhantes. Penso em algo muito próximo ao que

Dewey diz esperar de um educador: “Nenhum problema surgirá, a não ser que uma dada

experiência conduza a um campo que não seja previamente conhecido e que apresente novos

problemas, estimulando a reflexão.”

Page 117: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

117

ESTRANHARPARAPRODUZIRDIFERENÇA85 SISTEMARIZOMÁTICO

85mapaelaboradocomaequipedecoordenaçãodaEducaçãoInfantildaEscolaVeraCruz

FESTApreparar-separavivero

inesperado

METÁFORAinusitado,contraditório

IMPREVISIBILIDADEDiferentesdispositivosparapossíveis

eimpensadosagenciamentos

ESCUTAFLEXÍVELImplicar-secomosafectosgerados

peloacontecimento-DEVIR

INVENTIVIDADERecomposiçãodos

mesmoscomponentes

ÉTICADOESTRANHAMENTO

QUEBRADEFLUXOComointerromperoautomatismodosmecanismosdanormatividadevigente?FORÇAATIVA/FORÇAREATIVA

QUEBRADEEXPECTATIVASOquesignificatransformarobjetivosdeaprendizagememintencionalidadeinvestigativa?

DOCUMENTAÇÃOCoparticipaçãonacartografiadasprocessualidadesdeaprendizagenssingulares–CRIANÇASEADULTOS

ENCONTROCOMAEXPERIÊNCIA“Legitimarooutrocomolegítimooutro”–dessubjetivaçãodossujeitos

OQUEPOTENCIALIZAOESTABELECIMENTODEEMPATIACOMOESTRANHAMENTO?

ALEGRIApulsãodevida

HUMORambiguidades

IRONIAatrito,confronto

Page 118: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

118

Page 119: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

119

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. 3. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Record, 2003.

BATESON, Gregory. Mente e a natureza; a unidade necessária. Francisco Alves, 1986.

CORAZZA, Sandra. O que Deleuze quer da Educação. Revista Educação, Especial Deleuze pensa a Educação, São Paulo, ano II, n. 6, p. 06-15, maio/jul. 2002. p.16-27.

DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Qualidade na educação infantil: perspectivas pós-modernas. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2003.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter P. Pelbart. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2013. (Trans).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. 2ª. ed. São Paulo: Ed. 34, 2012. (Trans).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. 2ª. ed. São Paulo: Ed. 34, 2013. (Trans).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Junior e Alberto Alonso Muñoz. 3ª. ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Trans).

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. São Paulo, SP: Graal, 2009. (Biblioteca de filosofia).

DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

DEWEY, John. Experiência e Educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

_________. Arte como Experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2010.

DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo. Perspectiva: 2004. 288 p., il. p.b.

EDWARD, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. (Orgs.) As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 1999.

________. As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação. Vol. 2. Trad. Marcelo de Abreu Almeida. Porto Alegre: Penso, 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

FUSARI, Maria Felisminda de Rezende e., FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 2000.

GALLO, Sílvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

GOBBI, Márcia A; PINAZZA, Mônica A. (Orgs.) Infância e suas Linguagens. São Paulo: Cortez, 2014.

GUATTARI, Félix. As três ecologias – um novo paradigma estético. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. 17ª ed. São Paulo: Papirus, 2006.

Page 120: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

120

GUATTARI, Félix. Caosmose – um novo paradigma estético. Trad. Ana Lucia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2012.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

GUTIERRÈZ, Francisco. Educação como práxis política. Trad. Antonio Negrino. São Paulo: Summus, 1988.

KASTRUP, Virginia. O Devir-Criança e a Cognição Contemporânea in revista Psicologia: Reflexão e Crítica - ISSN 0102-7972. vol.13 nº.3 Porto Alegre, 2000.

________. A invenção de si e do mundo. São Paulo: Autêntica, 2007.

________. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. In, Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1273-1288, Set./Dez. 2005.

KLEE, Paul. Diários. Trad. João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

KOAN, Walter. Infância: entre Educação e Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

LARROSA, Jorge. Tremores - escritos sobre experiência. São Paulo: Autêntica, 2014.

________. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

LEVY, Pierre. O Que é o Virtual? 2. ed. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2011. (Trans).

MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A pedagogia, a democracia, a escola. Trad. Alain François; Anadelhi Figueiredo; Carolina Seidel; Cristina Antunes; Marcelly Custodio de Souza; Nathalia Campos; Román Goldenzweig e Walter Kohan. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

________. Em defesa da escola: uma questão pública. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

________. Nossas crianças não são nossas crianças - ou porque a escola não é um ambiente de aprendizagem. In Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 23: nov/2014-abr/2015, p. 282-297.

http://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/view/16150/11480

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Trad. José F. C. Fortes. 3ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

MENDES, Rodrigo H.; CAVALHERO, José; GITAHY, Ana Maria C. Artes Visuais na educação inclusiva – metodologias e práticas do Instituto Rodrigo Mendes. São Paulo: Peirópolis, 2010.

NIETZSCHE. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (Orgs.). Pistas do método cartográfico: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. 3ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2009. 207 p.

Page 121: Cartografias para uma educação inventiva© Cavalhero Si… · Cartografias para uma educação inventiva Mestrado em Psicologia Clínica São Paulo-SP 2017 Dissertação apresentada

121

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; TEDESCO, Silvia (Orgs.). Pistas do método cartográfico: a experiência da pesquisa e o plano comum – vol. 2. Porto Alegre: Sulina, 2014.

PELBART, P. Peter. Deleuze e a Pós-modernidade. originalmente publicado em: Vida Capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2000.

https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/06/13/deleuze-e-a-pos-modernidade-peter-pal-pelbart/ - 13 de junho de 2015 – consultado em 18 de novembro de 2016.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RICOEUR, Paul. La vida: un relato en busca de narrador. Ágora - Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006.

RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia – escutar, investigar e aprender. Trad. Vânia Cury. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental - transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: UFRGS, 2014.

STACCIOLI, Gianfranco. Os traços invisíveis nos desenhos das crianças. In: GOBBI, Márcia A; PINAZZA, Mônica A (Orgs). Infâncias e suas Linguagens. São Paulo: Cortez, 2014.

TADEU, Tomaz. Tinha horror a tudo que apequenava... Biografia intelectual. Revista Educação, Especial Deleuze pensa a Educação, São Paulo, ano II, n. 6, p. 06-15, maio/jul. 2002. VECCHI, Vea. Arte y creatividad en Reggio Emilia – el papel de los talleres y sus posibilidades en educación infantil. Madrid: Morata. 2013.

ZERO, Project. Tornando visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. Trad. Thaís Helena Bonini. Reggio ChildrenPhorte, 2014.

ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 34, 2016. (Trans).

Blog: A navalha de Dali.

Murilo Duarte Costa Corrêa http://murilocorrea.blogspot.com.br/2009/12/sobre-o-conceito-de-hecceidade-deleuze.html – 8 de dezembro de 2009 – consultado em 07 de setembro de 2016.

REGGIO CHILDREN - Regimento Escolas e Creches para a infância da comuna de Reggio Emilia. 2013.

________. Bambini, arte, artisti: il linguaggi espressivi dei bambini, il linguaggio artístico di

Alberto Burri. 2004.