Casa Grande e Senzala
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![Page 1: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/1.jpg)
“Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."
Mestre Gilberto Freyre... Escritor pernambucano, morador de Apipucos, no
Recife. Era descendente de senhores de engenho. Conhecia bem os casarões...
Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre
publica Casa-Grande & Senzala, um livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto
pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.
Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus
próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em
Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios,
africanos e portugueses.
Em Casa-Grande & Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele diz:
"o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada".
Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e
mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.
"Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a
mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação
fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos
estímulos."
Havia tempos Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões
políticas e familiares o levaram, entre 1930 e 1932, a viver o que chamou de "a aventura
do exílio". Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro Nina
Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros. Observou
que a culinária baiana era neta da velha cozinha das casas-grandes.
Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e
estudos que sedimentariam o livro Casa-Grande & Senzala. De Portugal foi, como
professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde viajou
pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo
de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro.
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"Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares
Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota,
parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou
sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto-
conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava um
estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse...
um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande
tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil."
Durante o período de estudos na universidade americana, o escritor elaborou uma linha
de pensamento que diferenciava raça e cultura, separava herança cultural de herança
étnica; trabalhou o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos costumes,
hábitos e crenças do povo brasileiro.
"Gilberto Freyre diz que Franz Boas foi a figura de mestre que nele ficou maior
impressão, porque foi com Franz Boas que ele aprendeu a distinguir raça de cultura, e
nessa distinção ele se baseou para escrever Casa-Grande & Senzala. Agora, o conceito
de antropologia de Freyre era muito mais amplo, ele partiu para uma interpretação
global do povo brasileiro. É uma história ao mesmo tempo econômica, religiosa,
folclórica, sociológica."
Édson Nery da Fonseca, historiador (Olinda, PE)
"Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade
brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os
trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical.
Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura,
escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio, e mais
tarde de negro, na composição."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Portugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos
os lugares do mundo. Seus portos eram rota de comércio e de
migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no povo português,
tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península
Ibérica as raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas
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árabes e romana impregnava a moral, a arte, a economia e a vida do português. Os
árabes - excelentes técnicos navais - e os judeus - financistas e com altos cargos de
administração, no conselho real -, emprestavam conhecimento e dinheiro para o
empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial ganhava
mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e
riquezas nunca exploradas.
Além da mobilidade, o português tinha a capacidade de se misturar facilmente com
outras raças. Os homens vinham sem família, sozinhos. Chegavam carentes de contato
humano e começavam a se reproduzir primeiro com as índias e depois com as negras
escravas. Era preciso povoar o território. No momento em que embarcou na aventura
ultramarina, Portugal tinha três milhões de habitantes. O Brasil era imenso; então, como
povoar esse território?
"Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros,
só importando às autoridades que fossem de fé católica. Temia-se no
adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela solidariedade
que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica. Essa
solidariedade manteve-se entre nós esplendidamente através de toda a nossa
formação colonial."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Foi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho
Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação: Oh! linda situação para se construir
uma vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês,
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habitada pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se
desenvolvia à sombra das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de
taipa ou de pedra e cal, longe das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.
"A casa-grande do engenho que o colonizador começou,
ainda no século XVI, a levantar no Brasil - grossas
paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados caídos num
máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas
tropicais - não foi nenhuma reprodução das casas
portuguesas, mas expressão nova do imperialismo
português. A casa-grande é brasileirinha da silva."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Num processo de equilíbrio de antagonismos, o branco e o negro se misturavam no
interior da casa-grande e alteravam as relações sociais e culturais, criando um novo
modo de vida no século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os
negócios e a religiosidade forjavam, no dia-a-dia, a base da sociedade brasileira.
A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja
estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. O suor do negro ajudava a
dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de cofre
e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que
fundamentariam a colonização portuguesa no Brasil. Embora diretamente associada ao
engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos
senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações
de café, como uma característica da cultura escravocrata e latifundiária do Brasil.
O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a
implantação de uma cultura agrícola, nos moldes do costume europeu. O português teve
então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das
verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua
dieta ficava empobrecida, devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em
datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para o cultivo da cana em
detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de
robustez e a incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem.
Os portugueses não traziam para o Brasil nem separatismo político, nem divergências
religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a
![Page 5: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/5.jpg)
unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida
muitas vezes com o uso da força, aconteceu devido à uniformidade da língua e da
religião.
A Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América
Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase
cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um papel
importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com
base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram
vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois
casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o
interior.
"Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e
menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã,
vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do
continente... Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a
resistência das grandes semicivilizações americanas, como os Incas e os
Astecas."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
"O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação
sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios
padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé
em carne."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
A sociedade brasileira, entre todas da América, era a que se formava com maior troca de
valores culturais. Havia um aproveitamento de experiências dos indígenas pelos
colonizadores. Mesmo quando inimigo, o índio não provocava no branco uma reação
que levasse a uma política deliberada de extermínio, como a que ocorria no México e
Peru. A reação dos índios ao domínio do colonizador era quase contemplativa. O
português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de
novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. Esse contato
provocava o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente.
![Page 6: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/6.jpg)
"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer
artesanato. A gente faz cocares..., a gente vive só disso, de artesanato,
a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu.
Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e
arroz. A gente fala em pataxó: jocana baixu significa mulher bonita e
jocana baixa é mulher feia."
Paturi, índio pataxó (Coroa Vermelha, BA)
"A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi
uma presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português,
talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando
escrevi Casa Grande & Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive
a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que orgiásticos
para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que há de acentuar
é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira, essa índia fêmea não
só através do relacionamento mencionado sexual, mas através do papel social
que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma figura capital
na formação brasileira."
"Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A
higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do
banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de
coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em
que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
A união do português com a índia havia gerado os mamelucos que atuavam como
bandeirantes e, junto com os índios, formavam a muralha movediça da fronteira
colonial. O mameluco e o índio, que excediam o português em mobilidade, atrevimento
e ardor guerreiro; que defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de
piratas estrangeiros, nunca firmaram as mãos na enxada. Os pés de nômades não se
fixavam na plantação da cana-de-açúcar.
"Essa arte é descendência dos índios, né! Aí nós somos seguidores já dos índios. A gente
ficou fazendo as panelas de barro, que eu aprendi com meu pai. Meu pai já trabalhava,
aí eu fiquei trabalhando. Agora meus filhos também trabalham na mesma arte."
![Page 7: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/7.jpg)
Zé Galego, artesão (Caruaru, PE).
Dos costumes dos primitivos habitantes da terra eram as relações sexuais e de família, a
magia e a mítica que marcavam a vida do colonizador. A poligamia e a sexualidade da
índia iam ao encontro da voracidade do português, ainda que a vida sexual dos indígenas
não se processasse tão à solta quanto o relatado pelos viajantes que aqui estiveram. Para
as tribos mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de
oferecer mulheres aos hóspedes era prática de hospitalidade, quase um ritual. A mulher
nativa resgatava o sonho da ninfa, que se banhava no rio e penteava os longos cabelos
negros. Uma imagem deixada pela invasão moura na Península Ibérica e adormecida no
inconsciente do português.
"Figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os
imperialistas modernos. Assemelha-se nuns à do inglês; noutros, à do
espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do
conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O
tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos inflexíveis.
...Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de
água..."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Os portugueses davam uma contribuição criativa ao novo mundo através da produção de
açúcar. E implantavam um sistema econômico que aprenderam com os mouros durante a
ocupação da Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a
![Page 8: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/8.jpg)
laranjeira, o limoeiro e a tangerina e implantaram a tecnologia do fabrico do açúcar em
Portugal. O engenho mouro é avô do engenho pernambucano.
Essa contribuição criativa é que diferenciava o português do holandês e do francês, que
para cá traziam apenas aperfeiçoamentos tecnocráticos. O choque das duas culturas, a
européia e a ameríndia, no Brasil colônia, se dava mais lentamente, não por meio da
guerra, mas nas relações entre homem e mulher, mestre e discípulo. A Igreja ganhava no
Brasil capelas simples dentro do complexo arquitetônico da casa-grande. Lá morava o
capelão, que dela tirava seu sustento. E essa mesma Igreja, através dos jesuítas, partia
maciça e indiscriminadamente para a catequização dos índios.
O animalismo e a magia impregnavam a vida dos índios: desde o berço, quando a mãe
entoava cantigas de ninar e, já meninos, nas brincadeiras de imitar animais. Entre os
jogos infantis dos curumins, o jogo de cabeçada com a bola de borracha ficava como
contribuição da cultura indígena. Apesar de crescerem livres de castigos corporais e de
disciplina paterna, os meninos estavam sempre em contato com rituais da vida primitiva.
Na puberdade eram levados para o baíto, a casa secreta dos homens, onde passavam por
provas de iniciação à fase adulta. Para os padres da Companhia de Jesus, os índios
acreditavam em tudo e aprendiam e desaprendiam os ensinamentos rapidamente. Havia
uma enorme quantidade de aldeias espalhadas pela floresta, que falavam diferentes
línguas. Era preciso unificar as tribos para poder pregar a doutrina católica. O menino
indígena servia de intérprete aos jesuítas, que aprendiam com ele as primeiras palavras
em tupi. Os padres puderam então escrever uma gramática, unificando a língua dos
Brasis. Estava criando o tupi-guarani.
Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o
índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat
natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para
suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e
do Recôncavo baiano começavam a importar negros caçados na África. Agora, as
escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na cama do senhor. Na
agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no
mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava
finalmente o interesse do Reino de Portugal.
Entre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros
muçulmanos, de cultura superior não só à dos índios como também à
da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem
nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda
![Page 9: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/9.jpg)
do padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo
da cultura adiantada, que era oprimida por outra menos nobre. Contava-se que os
revoltosos sabiam ler e escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e
escreviam em árabe.
"Pode-se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua
predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua
maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre
fresca e nova quando em contato com a floresta tropical."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
O Brasil importava da África não somente o animal de tração que fecundou os
canaviais, mas também técnicos para as minas, donas de casa para os colonos, criadores
de gado e comerciantes de panos e sabão. Os negros vindos das áreas
de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo, criador e
pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela
condição de escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar
fundamentavam a colonização aristocrática e a estrutura básica do
mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de
Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra.
![Page 10: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/10.jpg)
Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais
se misturavam à revelia de brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o
intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que influenciavam a formação do
caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos.
"Na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se
fundam, parte nas sua instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia,
por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o
Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista?"
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
O senhor de engenho, um homem extremamente rico e poderoso, passava a maior parte
do tempo deitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a
passeio ou em viagem, o negro era seus pés e mãos. O sinhô não
precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava
gritar.
Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recém-chegados na
moral e nos costumes dos brancos. Ensinavam a língua e orientavam nos cultos
religiosos sincretizados. Eram ainda os ladinos que ensinavam aos boçais a técnica e a
rotina na plantação da cana e no fabrico do açúcar.
A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares.
Além dos trabalhos forçados, ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso
aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As crias nascidas eram logo
batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos,
agia da mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre
a senzala e o interior da casa-grande e representava o ventre gerador. As negras mais
bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos
desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra
sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes
incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do
senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as tarefas que
normalmente estariam destinadas à mãe de família. As damas da sociedade se casavam
entre os doze e os quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que
tinham da vida de casada, os acontecimentos de fora do engenho e outras histórias - nem
sempre românticas - elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas sentadas à
![Page 11: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/11.jpg)
mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo
cafuné. Cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam
matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres
amarguradas. E ignorantes: era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever. A
presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e
acalentava o seu sono. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português
errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava com a própria boca a
comida do menino de engenho. Os sofrimentos da primeira infância - castigos por mijar
na cama e purgante uma vez por mês os meninos descontariam tornando-se pequenos
diabos. O moleque, o pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em brincadeiras e
aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do prazer mórbido de
tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema
escravocrata. Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino
desde o início da adolescência era entregue aos cuidados eróticos da fulô.
"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil,
entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A
contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro
já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que
contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a
crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha
virgem."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens
sobrinhas; exagerava-se, então, o sentimento da propriedade privada. As heranças eram
disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos bastardos, gerados nas
casa-grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os
libertava. Nomes e sobrenomes se confundiam: os escravos mais próximos, que
ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome dos brancos. Na
tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de
superioridade. Mas muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos
indígenas e africanos das propriedades rurais - a terra recriava os nomes dos
proprietários à sua imagem e semelhança.
A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais
alegre. A risada do negro quebrava a melancolia e o silêncio infinito do
senhor de engenho. As mães negras e as mucamas, aliadas aos
![Page 12: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/12.jpg)
meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, corrompiam o português arcaico
ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava
fechada nas salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior
espontaneidade de expressão da senzala. Mas o modo carinhoso do brasileiro colocar os
pronomes: me diga, me espere... vem do africano. Também do seu modo de falar
ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho.
Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer... A
culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da casa-grande, usava o aipim
indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a
pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que
combinavam com a dureza do trabalho no cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos
portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos negros
feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens
sinhás, que não conseguiam engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do
café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte, muito açúcar e sangue
de mulata.
Na religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo
praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os
santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas
vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do
terreiro. Nasciam então as religiões afro-brasileiras: São Jorge é o
orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá.
"Esse terreiro tem 110 anos. A minha avó era descendente de escravos. Tinha uma
aldeia que se chamava Catongo. Nessa aldeia ela também cultivava os orixás, quando
chegavam assim os escravos chicoteados de outros lugares, fazendas, engenhos, essas
coisas. Aí ela curava com aquelas difusões de ervas, né, aqueles remédios das folhas, e
curava esses escravos, que ficavam gratos e acabavam ficando com ela. Quer dizer, ela
era assim uma espécie de protetora desses escravos. E a minha mãe falava que era uma
senzala, onde ela abrigava esses escravos."
Ilza R.P. Santos, mãe-de-santo (Ilhéus, BA) (??)
"Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas.
Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se
![Page 13: Casa Grande e Senzala](https://reader035.fdocumentos.com/reader035/viewer/2022081800/55cf8f15550346703b98c247/html5/thumbnails/13.jpg)
com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O
banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos,
idiotas. Não morreram, mas ficaram penando."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
Os negros, muitos agora, libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas, unidos nos
quilombos, lutavam pelo fim da escravidão. Aliavam-se aos ideais libertários os filhos
de poderosos senhores de engenho que se tornavam abolicionistas por motivos
econômicos, humanitários ou, simplesmente, pelo apego que tinham às suas mães de
leite.
" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda
instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela
cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda
instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela
pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva
de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala."
Florestan Fernandes, cientista social.
Em 1984, numa de suas últimas entrevistas, o escritor Gilberto Freyre resumia o seu
pensamento sobre a situação presente do negro, lembrando o abolicionista
pernambucano Joaquim Nabuco:
"O problema é que a abolição da escravatura, embora tenha sido fato notável
na história da formação brasileira, foi muito incompleta."
Com a abolição, os problemas do negro estariam apenas começando. Mas quem se
interessou por isso? Ninguém se interessou. O negro livre deixou as fazendas e os
engenhos e foi inchar as periferias das cidades. Abandonado, constituiu-se num sub-
brasileiro.
"Todo mundo... não quer se encontrar com os pretos,
não quer, só quer se ligar aos brancos. Mas isso naquela época a
Princesa Isabel libertou! Cabou-se, né! esse negócio de não querer
se encontrar com o negro.
Porque tristes dos brancos se não fosse o sangue do negro."
Maria Madalena Correia, cantora (Ilha de Itamaracá, PE).