CASAS DE FARINHA: espaço de (con)vivências, saberes e...

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Cirlene do Socorro Silva da Silva CASAS DE FARINHA: espaço de (con)vivências, saberes e práticas educativas. Belém 2011 Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

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Cirlene do Socorro Silva da Silva

CASAS DE FARINHA: espaço de (con)vivências, saberes

e práticas educativas.

Belém 2011

Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

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CIRLENE DO SOCORRO SILVA DA SILVA

CASAS DE FARINHA: espaço de (con)vivências, saberes e práticas educativas

Orientadora: Prof.ª Dra. Maria das Graças da Silva

Belém 2011

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação pelo Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

.

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Dados Internacionais de catalogação na publicação

Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA

Silva, Cirlene do Socorro Silva da

Casas de farinha: espaço de (con)vivências, saberes e práticas educativas. Belém, 2010.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011. Orientação de: Maria das Graças da Silva

Educação popular. 2. Alfabetização de adultos. 3. Cultura popular. 4. Educação comunitária. I. Silva, Maria das Graças da, orient. II. Título.

CDD: 21 ed. 370.115

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DEDICATÓRIA

Aos agricultores e agricultoras da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua,

sujeitos de fazeres, saberes e de

educação.

Que este trabalho contribua no

reconhecimento e visibilidade de suas

experiências e de seus saberes culturais.

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AGRADECIMENTOS

A Deus pela força que alimentou essa caminhada em busca do conhecimento.

Aos meus queridos familiares pelo incentivo constante, compreensão e apoio nos

momentos difíceis.

À minha orientadora professora Draª Graça Silva, pelos ensinamentos e

compromisso com esse trabalho.

Aos moradores da Comunidade Santo Antonio do Piripindeua, pelo acolhimento e

disponibilidade em participar desse estudo.

Aos Professores do PPGED da Uepa, pelos debates teóricos e por compartilhar

seus conhecimentos nas disciplinas por eles ministradas e por acreditarem na

realização de pesquisas focadas na educação, experiências e culturas amazônidas.

À Profª Ivanilde Apoluceno e Profª Denise Simões pela disponibilidade em participar

da banca de qualificação e contribuições para este trabalho.

Á Profª Josebel Akel Fares e Profº José Maurício Paiva Andion Arruti pelas

contribuições por ocasião da banca de defesa desta dissertação.

Aos colegas da 4ª turma do mestrado do Programa de Pós Graduação da Uepa

pelas trocas valiosas de conhecimento e companheirismo, de forma especial a

Cristiana, Darinês, Adolfo, Luís, Madalena e Ana Paula pela amizade, solidariedade,

apoio e convivência durante a missão PROCAD PUC/UEPA no ano de 2009.

Aos professores do PPGED da PUC/RIO, especialmente, Profª Zaia Brandão e Profª

Vera Maria Candau, pelas indicações teóricas que ajudaram na construção desse

estudo.

À Secretaria Executiva de Educação (SEDUC/PA), pela bolsa-mestrado concedida

durante 12 meses.

Ao corpo administrativo do PPGED Uepa que garante a funcionalidade desse

espaço acadêmico.

A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho.

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Nessa casa de farinha, por mais que seja só essa farinha que

trabalhe.... Mas além de ser uma farinha, de um produto, ela se

torna uma troca de experiência, uma aprendizagem porque ali

sai muita coisa, sai conversa boa, sai conversa de todo jeito

(agricultor da comunidade).

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RESUMO

SILVA, Cirlene do Socorro Silva da. Casas de farinha: espaço de (con)vivência , saberes e práticas educativas. 2011. 172f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011.

Este estudo está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação-

Mestrado, da Universidade do Estado do Pará, na Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia e ao Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente (GRUPEMA). Busca contribuir com estudos relacionados à educação e

cultura e tem como foco o seguinte problema: Que saberes e práticas educativas são construídos e/ou reconstruídos nas relações de (con)vivência que se estabelecem nas casas de farinha na comunidade Santo Antonio do Piripindeua?

Como objetivo geral desejo analisar, a partir das práticas de produção de farinha e das relações de (con)vivência, o processo de construção e socialização de saberes e práticas educativas que são desenvolvidas no espaço de três casas de farinha

tipificadas como: Familiar, Mutirão e Comunitária. A área pesquisada foi uma comunidade localizada no município de Mãe do Rio – PA, na mesorregião do nordeste paraense. A pesquisa caracteriza-se como de abordagem qualitativa, na

qual utilizei alguns recursos de um estudo de caso, como entrevista semi-estruturadas, observação participante, conversas cotidianas, fotoetnografia dos espaços das casas de farinha. A produção de dados permitiu a construção de uma

cartografia de saberes que emergiram da organização do espaço das casas de farinha, sua apropriação e do fazer farinha. Nesses espaços, as práticas do ―fazer farinha‖ informam e materializam saberes que são socializados nas relações de

(con)vivências familiares e de cooperação. Por meio dessas relações os agricultores familiares buscam manter a continuidade da cultura do ―fazer farinha‖, utilizam práticas de aprendizagem que são dinamizadas por meio do aprender fazendo, da

oralidade e da observação. Essa aprendizagem vem sofrendo modificações a partir da inserção de artefatos culturais e tecnologias que demandam outras formas de fazer, mas que influenciam no fortalecimento do diálogo de saberes entre as famílias

produtoras.

Palavras chaves: Casas de farinha. Saberes e Práticas educativas. Relações de (con)vivências. Cotidiano.

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ABSTRACT

SILVA, Cirlene do Socorro Silva da. Casas de farinha: espaço de (con)vivência, saberes e práticas educativas. 2011. 172 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011.

This study is linked to the Graduate Program in Education, Master of the Universidade do Estado do Pará, in the Research Line: Knowledge Culture and Education in the Amazon and the Research Group on Education and the

Environment (GRUPEMA). Seeks to contribute to studies related to education and culture and focuses on the following issue: What knowledge and educational practices are built and / or reconstructed in the relations of coexistence that are

established in flour mills in the community of Santo Antonio do Piripindeua? As a general purpose I wish to explore, from the practices of flour production and the relations of experience, the process of building and sharing of knowledge and

educational practices that are developed in three flour mills typified as: Familiar, Mutirão e Comunitária. The area searched was a community located in the municipality of Mãe do Rio , in Southern northeastern of Pará State. The research is

characterized as a qualitative approach, which used some features of a case study, as semi-structured interviews, participant observation, daily conversation, photoethnographic and mapping spaces of flour mills. The production data allowed

the construction of a mapping of knowledge that emerged from the spatial organization of flour mills, their ownership and flour. In these spaces, the practices of "flour" inform and embody knowledge that are socialized in the relations of family experiences and cooperation. Through these relationships the farmers seek to

maintain the continuity of the culture of "flour". Are used for learning practices that are streamlined through learning by doing, orality and observation. This learning has undergone changes from the insertion of cultural artifacts and technologies that

require other forms of doing, but that influence in strengthening the dialogue of knowledge between households.

Keywords: Flour mills. Knowledge and educational practices. Relations of

coexistence. Daily.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 O fazer farinha 15

Figura 2 Vicinal de acesso à comunidade 27

Figura 3 Ramal de acesso a casa mutirão 27

Figura 4 Vicinal de acesso á casa de farinha familiar 27

Figura 5 Mapa da área rural do município de Mãe do Rio 31

Figura 6 Rio Piripindeua 45

Figura 7 Vila da Comunidade 45

Figura 8 Casa Familiar 45

Figura 9 Mapa da área de pesquisa das casas de farinha 53

Figura 10 Esquema da Casa de Farinha Familiar 59

Figura 11 Os malabarismos do fazer farinha 60

Figura 12 A prática da torração da farinha 61

Figura 13 A brincadeira na Casa Familiar 63

Figura 14 Esquema da Casa de Farinha Mutirão 65

Figura 15 O preparo das raízes de mandioca para sevar. 66

Figura 16 A prática de prensar a massa 68

Figura 17 O jogo de dominó 70

Figura 18 Esquema da Casa de Farinha Comunitária 72

Figura 19 A prática da ralação 73

Figura 20 A prática do brincar 77

Figura 21 A alimentação 78

Figura 22 Convivências 78

Figura 23 O zelar 78

Figura 24 Preparação para ida ao roçado 86

Figura 25 O descascar 93

Figura 26 O raspar 93

Figura 27 A prática do descascar 94

Figura 28 A disposição dos fornos na Casa de Farinha Mutirão 99

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Figura 29 A organização do espaço para os rodos 100

Figura 30 A finalização da torração 102

Figura 31 O manuseio da palheta 103

Figura 32 O armazenamento 105

Figura 33 O aturá 107

Figura 34 O manuseio da prensa 108

Figura 35 O manuseio do forno 110

Figura 36 O manuseio da lenha 111

Figura 37 A limpeza da cevadeira 114

Figura 38 A manipueira ou tucupi 115

Figura 39 ―O buraco‖ de tucupi 117

Figura 40 Pesagem da farinha para a venda 121

Figura 41 O alimento 127

Figura 42 O preparo do alimento 128

Figura 43 O alimentar-se da farinha 129

Figura 44 Convivências e o aprender fazendo 139

Figura 45 A presença da criança 144

Figura 46 Filhos ―praticantes‖ 145

Figura 47 A observação do fazer farinha 150

Figura 48 O aprender a partir do gesto 152

Figura 49 A classificação da farinha 156

Figura 50 Momento de conversa 162

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LISTA DE SIGLAS

ADA Agência do Desenvolvimento da Amazônia.

EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

CAPES

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior.

COINP Consórcio Intermunicipal do Nordeste Paraense.

FANEP Fundação Sócio Ambiental do Nordeste Paraense.

JONASA Joaquim Fonseca, Navegação, Indústria e Comércio s/a

MEC Ministério da Educação

MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IDAM Instituto de Assistência Técnica, Extensão Rural Sustentável da

Amazônia.

SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

UEPA Universidade do Estado do Pará

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15

1. MOTIVAÇÕES E ORIGENS DA PESQUISA.................................................... 16

2.O CONTORNO DA PROBLEMÁTICA: OBJETO E OBJETIVOS..................... 23

SEÇÂO 1 - AS TRILHAS METODOLÓGICAS DA PESQUISA 27

1.1 CONTORNOS E ESPECIFICIDADES DA ÁREA DE ESTUDO.................... 30

1.2 AGRICULTORES FAMILIARES, OS SUJEITOS DA PESQUISA.................. 32

1.3 A PESQUISA DE CAMPO ............................................................................ 36

1.4 0 PROCESSO DE ANÁLISE DOS DADOS.................................................... 42

SEÇÃO 2 - A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA COMUNIDADE E AS CASAS DE

FARINHA............................................................................................................ 45

2.1 AS CASAS DE FARINHA NO CONTEXTO DA COMUNIDADE SANTO

ANTONIO DO PIRIPINDEUA.............................................................................. 46

2.2 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS NAS

CASAS DE FARINHA........................................................................................... 54

2.2.1 A Casa de farinha Familiar........................................................................... 57

2.2.2 A Casa de farinha Mutirão........................................................................... 63

2.2.3 A Casa de farinha Comunitária................................................................... 71

SEÇÃO 3 - CARTOGRAFIA DE SABERES QUE EMERGEM DA

ORGANIZAÇÃO, APROPRIAÇÃO E NO FAZER FARINHA.............................

78

3.1 O SABER-FAZER FARINHA.......................................................................... 82

3.1.1 O saber plantar a maniva............................................................................ 82

3.1.2 O saber colher............................................................................................. 88

3.2 O SABER ORGANIZAR O ESPAÇO PARA FAZER FARINHA..................... 91

3.3 O SABER PARA MANUSEAR OS INSTRUMENTOS E UTENSÍLIOS......... 106

3.4 O SABER CUIDAR DA CASA DE FARINHA................................................. 113

3.5 O SABER PARA A COMERCIALIZAÇÃO..................................................... 119

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3.5 O SABER PARA A ALIMENTAÇÃO........................................................... 125

3.6 O SABER POLÍTICO.................................................................................. 131

SEÇÃO 4 – RELAÇÕES DE (CON)VIVÊNCIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS:

MUDANÇAS NO APRENDER E NO FAZER FARINHA....................................

139

4.1 PRÁTICAS EDUCATIVAS INSCRITAS NAS RELAÇÕES FAMILIARES E

DE COOPERAÇÃO.............................................................................................

143

4.2 AS MUDANÇAS NO FAZER E DO APRENDER A FAZER FARINHA. 155

ALGUMAS CONCLUSÕES.................................................................................. 162

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 169

ANEXOS............................................................................................................... 174

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INTRODUÇÃO

Figura 1: O fazer farinha Fonte: Silva (2010)

A experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica conhece e considera importante (SANTOS, 2006, p.98).

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1. MOTIVAÇÕES E ORIGEM DA PESQUISA

Este estudo originou-se de minha vivência enquanto educadora numa escola

de Ensino Médio da rede estadual localizada no município de Mãe do Rio, Estado do

Pará, integrante da Amazônia brasileira. Dentre as muitas situações que marcam o

cotidiano de uma escola em um município que ainda guarda muitas características

rurais, uma, particularmente, inquietou-me e despertou minha curiosidade: o desejo

de conhecer os saberes práticos dos jovens agricultores familiares que se

deslocavam todos os dias de vários assentamentos e comunidades do interior do

município de Mãe do Rio para estudar nessa escola. Além da curiosidade, havia

também uma preocupação: comecei a perceber que a escola não possuía em seu

projeto pedagógico uma proposta de reconhecimento e incorporação desses

saberes nas práticas pedagógicas.

A necessidade de conhecer os saberes culturais que esses sujeitos

construíam fora do espaço escolar, especialmente nas atividades relacionadas ao

mundo do trabalho, influenciou-me e orientou minha escolha pelas práticas

educativas inscritas nos processos do fazer farinha. Essa opção tem sua razão no

fato de que muitas famílias mãerienses têm na agricultura familiar, principalmente no

processo de fazer farinha, uma das formas, e, em muitos casos, a principal garantia

de sua sobrevivência.

Nessa perspectiva, ao conceber as casas de farinha como espaço de práticas

educativas, assumi essa temática como objeto de estudo e procurei construir

informações e dados que dessem conta minimamente de como ela é abordada pela

pesquisa acadêmica, na perspectiva de inserir esse estudo no debate teórico-

metodológico.

Sem a pretensão de realizar um levantamento exaustivo das instituições e/ou

núcleos que vêm se dedicando à pesquisa sobre essa temática, levantei

informações no banco de teses e dissertações da CAPES sob o descritor

―farinhada‖. No mesmo foi encontrada a dissertação de mestrado em História social

intitulada ―Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres

escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888)‖, de Josineide Cunha dos

Santos. Neste trabalho, a autora elege a cultura, a família e a relação

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senhor/escravo como pilares básicos para compreensão da vida desses escravos;

inclui as especificidades econômicas da vila que repercutiram na vida dos escravos.

A autora informa que estes escravos trabalhavam em diversas funções, entre as

quais ―as farinhadas ou desmanchas‖, ato de fazer a farinha de mandioca, atividade

realizada no campo, na maioria das vezes coletiva, que envolvia mulheres e homens

(SANTOS, 2004).

Com o descritor, casas de farinha e práticas educativas, não localizei

dissertações de mestrado ou teses de doutorado, entre os anos 1997 e 2007, no

campo referente à educação. Mas ao inserir, casas de farinha e saberes, encontrei a

dissertação de mestrado intitulada: ―A cultura da produção de farinha: um estudo da

matemática nos saberes dessa tradição‖, de Alexandre Vinícius Campos

Damasceno, do programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, publicada em 2005.

Esta dissertação discute sobre os saberes matemáticos construídos na

tradição da produção da farinha de mandioca e busca analisar esses saberes sobre

a perspectiva das categorias do tempo e medida, construídos e praticados na

produção de farinha no Município da Serra do Navio e Calçoene, no Estado do

Amapá/Brasil. O trabalho procurou identificar e descrever os procedimentos

matemáticos durante as atividades de produção da farinha. Seus resultados indicam

que nas etapas do processo produtivo estão presentes elementos relacionados à

geração e à transmissão de um saber tradicional, condicionantes básicos para

manutenção da tradição da farinha. O autor caracterizou a pesquisa como um

estudo de etnomatemática.

Na atualidade, é perceptível um movimento epistemológico inscrito em alguns

estudos1, que despontam sob a perspectiva de uma produção de conhecimento

crítico, ao considerar que há uma educação inscrita no fazer dos sujeitos. Em outras

palavras, a construção do conhecimento se faz sob o olhar, a percepção de que as

coisas da natureza são transformadas em objetos da cultura por meio dos modos de

ser e de viver dos sujeitos, que ao expressarem seus saberes e conhecimentos

produzem sentido à vida (BRANDÃO, 2002).

1 Dentre eles, as dissertações defendidas no Mestrado em Educação da Universidade do Estado do

Pará, de João Colares da Mota Neto, das práticas religiosas cotidianas de um terreiro do Tambor de Mina na Amazônia onde se desenvolvem processos educativos de construção e transmissão de saberes culturais. E de José Williams da Silva Valentim, que analisa, entre outros, os saberes quilombolas da comunidade de Murumuru a partir das práticas sociais cotidianas.

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Esses estudos indicam que mudanças vêm se processando no campo da

educação, pois, pelo menos, em parte, o território e a história têm sido considerados

nas diversas formas de educação, bem como suas contribuições na construção e na

afirmação das identidades, sejam individuais e/ou coletivas. Para Brandão (2007, p.

09):

Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece, e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a única prática e o professor profissional não é o seu único praticante.

As casas de farinha, quase sempre foram vistas apenas como espaços de

produção econômica, espaços onde são beneficiadas as raízes de mandioca que

passaram anteriormente por um processo de plantio e colheita. Esse processo

envolve a realização de várias etapas e atividades, como descascar, ralar, prensar,

peneirar, torrar, entre outras, que permitem chegar ao produto final, que é a farinha.

Por meio desse produto, historicamente, grupos sociais, geralmente camponeses,

têm construído suas condições de reprodução material de existência.

Embora existam ocorrências de casas de farinha em centros urbanos, é

comum às mesmas estarem localizadas no espaço rural, caracterizado, na maioria

das vezes, como sinônimo de atraso. Nesse sentido, Moreira (2003, p.117)

considera que as imagens culturais hegemônicas sobre o rural, em oposição aos

sentidos conferidos ao urbano, ―carregaram as noções de agrícola (apenas

produção) como atrasado, tradicional, rústico, selvagem, incivilizado e de

comportamentos resistentes a mudanças‖.

Como é sabido, o modelo que orientou o processo de ocupação e apropriação

do rural, especialmente o amazônico, nas últimas décadas, de acordo com Becker

(1994) esteve ancorado num projeto que se orientava ou ainda se orienta pela idéia

de que a única possibilidade de ―desenvolver‖ esse espaço seria a partir de sua

inserção no sistema capitalista global do pós-segunda guerra mundial, em que o

capitalismo atua no espaço planetário e os estados nacionais mantêm as funções de

controle e hierarquização, constituindo agentes primordiais na produção desse

espaço, não importando a que custo fosse: cultural, social ou político.

Essa forma de olhar a Amazônia servia para justificar a subalternização das

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populações que historicamente vivem na região com modos de vida ―tradicionais‖,

como os índios, ribeirinhos, agricultores familiares, seringueiros, populações

quilombolas e outros grupos sociais com modos de vida estruturados a partir de

lógicas econômicas divergentes da lógica capitalista.

Na chamada modernidade, o rural, considerado sinônimo de agricultura, foi

caracterizado pela oposição campo/cidade, concebido como sujeito aos domínios da

natureza e da tradição, a ser transformado pelos processos civilizatórios burgueses

em que a tecnificação, a lógica e a racionalidade do mercado transformariam esse

espaço. Com essa valorização econômica, desqualificaram saberes e outras

racionalidades distintas da racionalidade técnica científica e do mercado, tais como

as camponesas e de outras culturas não hegemônicas que passaram a ser vistas

como irracionais e incivilizadas, tornando-as objeto, inclusive, de políticas de

modernização específica (MOREIRA, 2003).

Dessa forma, é importante esclarecer que estou tratando aqui de acordo com

Moreira (2007) de uma redefinição de espaço rural, não mais apenas como espaço

de produção agrícola, mas, entendido, na perspectiva de mundo contemporâneo

onde se tem atores com interesses diversos construtores de um campo de forças

onde variadas relações de trabalho estão a ele associadas, enquanto campo

sociocultural.

Ao assumir, como pressuposto, que a realidade humana é culturalmente

construída, torna-se imprescindível reconhecermos a construção de processos

sociais que se constituem no campo da cultura e da educação, por considerar que

vivemos num processo de ressignificação da natureza humana e, no caso, da

própria realidade rural (CASTORIADIS, 1992; MOREIRA 2003).

Para Berger e Luckmann (2003), as sociedades elaboram conhecimentos dos

processos sociais associados à dinâmica da natureza e da vida, e realizam as

apropriações desses saberes. Estudos dos processos produtivos das casas de

farinha que estão territorializadas em espaços rurais não podem ficar reduzidos a

uma visão economicista de produção de bens materiais, porque esses processos

também são produtores de cultura.

O reconhecimento do espaço rural enquanto espaço de relações e de

produtor de cultura também pode ser referenciado em Brandão (2007), que afirma

não haver grupo humano estável que, além de ter sua vida social, não tenha

também a sua memória, a sua história e a sua cultura. Para esse autor, essa

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complexa teia e trama que envolve esses conhecimentos consistem na experiência

de uma cultura, de sua partilha recíproca e de seu aprendizado, e está contida nas

diversas formas dos seres humanos ocuparem o planeta, socializarem a natureza e

criarem modos de vida.

Neste sentido, a criação de um produto, como a farinha de mandioca, possui

uma história relacionada com um determinado estilo de vida de grupos sociais da

região amazônica, configura-se como um produto imbricado em contextos

socioculturais e naturais peculiares. Nesse estudo, procuro transgredir a ideia de

que casa de farinha é apenas espaço de produção. Acredito que o fazer farinha é

um ato de criação. Em sendo assim, a casa de farinha é um espaço onde se produz

não apenas a matéria (farinha), mas também cultura e educação, e, ao produzir

cultura e educação, o ser humano está se produzindo enquanto ser multiplicador

desse saber camponês.

Desse modo, os fazeres cotidianos são compreendidos a partir das diferentes

relações sociais, ou relações de (con)vivência exercidas em uma determinada

comunidade dentro de um tempo histórico. Esse tempo histórico implica a realização

de atividades rotineiras e diversificadas, mas, contraditórias no processo de

produção e reprodução. A partir da leitura das obras de Marx, Lefebvre (1991, p.37)

considera que:

A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa de uma parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o espaço sociais), em resumo, a produção ―espiritual‖, e, e de outra parte a produção material, a fabricação das coisas. Ele designa também a produção do ―ser humano―, por si mesmo no desenvolvimento histórico. Isso implica a produção de relações sociais.

Essa produção, na visão de Lefebvre (1991), não está desvinculada da

cultura, essa consiste também numa práxis, ou seja, um modo de repartir os

recursos da sociedade e, por conseguinte, de orientar a produção como uma fonte

de ações e atividades ideologicamente motivadas.

Perceber a educação enquanto prática social pressupõe compreendê-la numa

perspectiva que extrapola o espaço escolar, ou para usar outra terminologia muito

conhecida no mundo acadêmico, o saber formal. Para Castoriadis (2002, p. 233)

―existe sempre um campo social da significação que está longe de ser simplesmente

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formal, e do qual ninguém, nem mesmo o mais original dos artistas, pode escapar:

ele só pode contribuir para sua alteração‖.

O campo de estudos anteriormente classificado como sendo específicos das

ciências sociais passa a ser analisado pela ótica da educação. O conhecimento

científico sob o recorte da educação projeta-se de modo a refletir sobre as práticas

educativas a partir das relações de (con)vivência, como as que acontecem nas

festas, nos rituais, nos espaços de lazer, nas casas, nas ruas, nas florestas, enfim,

nos espaços onde se produzem aprendizagens, saberes e fazeres.

Para Moreira (2003), no Brasil universitário o campo temático rural só era

hegemônico nas pós-graduações de Economia Rural e de Sociologia Rural,

institucionalizadas nas escolas de Ciências Agrárias. Portanto, esse fato é mais um

elemento que ajuda na defesa de que o rural, e especificamente o rural amazônico,

precisa ser apropriado enquanto objeto de conhecimento por outros campos da

ciência.

As práticas de produção de conhecimento envolvem um trabalho sobre a

construção dos objetos de estudo, sendo que alguns se transformam quando

colocados em novas situações, ―seja adquirindo novas propriedades, sem perder as

que os caracterizavam, seja assumindo identidades novas que permitem a sua

reapropriação em novas condições‖ (SANTOS, 2006, p. 149). Compartilhando da

concepção desse autor, procuro neste trabalho produzir um conhecimento, com

base no reconhecimento do que não sabemos sobre a educação construída nas

casas de farinha e do que podemos aprender de novo na relação com esse objeto.

Ao tratar do conhecimento científico voltado para a Região Amazônica,

Loureiro (2009) informa que é indispensável que ao lado deste conhecimento

científico se acolha os saberes tradicionais, o saber comum, as artes, a ética, entre

outros, e, além disso, defende que esforços sejam conjugados, no sentido de se

repensar o valor de conhecimentos alternativos ao saber científico, além do

reconhecimento e aceitação de práticas e saberes que possam contribuir para a

construção de uma vida melhor.

Por argumentar que em todo processo produtivo a cultura e a educação

estão inscritas, pesquisei o cotidiano de uma comunidade rural camponesa

identificada pelos seus moradores como Comunidade Santo Antônio do Piripindeua,

localizada no município de Mãe do Rio, no Estado do Pará, a fim de analisar formas

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de educação praticadas no espaço das casas de farinha. Delimitei meu foco de

estudo sobre as relações de (con)vivência e práticas educativas que perpassam a

produção da farinha de mandioca, reconhecido neste estudo como um processo

eminentemente educativo que possibilita a construção e a difusão de saberes

culturais.

Por considerar que se trata de uma realidade complexa, que incorpora

experiências, construções e circunstâncias que se modificam a cada momento,

estudei de forma cautelosa essa temática, na perspectiva de poder produzir um

conhecimento científico que de fato reflita os saberes dos agricultores familiares

inseridos neste mundo amazônico, com toda sua diversidade socioambiental e

cultural.

Essa diversidade cultural é revelada, pois de acordo com Geertz (1989 p. 37-

38):

Assim como a cultura nos modelou como uma espécie única — e sem dúvida ainda nos está modelando — assim também ela nos modela como indivíduos separados. É isso o que temos realmente em comum — nem um ser subcultural imutável, nem um consenso de cruzamento cultural estabelecido.

Nesse sentido, o reconhecimento e a valorização da cultura desses sujeitos

perpassam pelo estudo da educação que sustenta suas ações, permitindo assim a

afirmação de suas identidades enquanto agricultores familiares camponeses que

desenvolvem práticas sociais ―tradicionais‖ ou não, seja no uso da terra, seja na sua

forma de produzir, seja na relação com a natureza. Nesse caso, a educação passa a

ser vista tanto como uma forma de resistência, como de afirmação da identidade e

dos saberes locais, inclusive de se fazer farinha, um produto, de certa maneira,

desvalorizado na economia de mercado, mas que tem um simbolismo para os

amazônidas.

Esse simbolismo atribuído também às casas de farinha remete a reflexão de

Sacristan (2002) para quem há uma complexa teia de significados que passam

conotações de um ―sentido social‖, como experiências e utopia que continua dando

sentido à vida e à educação de grupos sociais locais. Ao estudar as práticas

educativas nas casas de farinha, nomeei a educação como grande pilar que orienta

a dinâmica desses agricultores familiares. Trata-se de sujeitos que procuram

compartilhar diferenças, misturas, mas sem perder de vista suas identidades.

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2. O CONTORNO DA PROBLEMÁTICA: OBJETO E OBJETIVOS

Durante a realização do estudo exploratório na comunidade, tendo como

recorte as relações de (con)vivência nas casa de farinha, percebi que nestas há um

processo educativo de construção e socialização dos saberes e fazeres culturais, o

que conduziu à necessidade de um olhar apurado para a construção desta pesquisa

a partir da seguinte pergunta: que saberes e práticas educativas são construídos,

e/ou reconstruídos, nas relações de (con)vivência que se estabelecem nas casas de

farinha na Comunidade Santo Antônio do Piripindeua?

Com a finalidade de aprofundar o estudo dessa problemática, tenho apontado

as seguintes questões norteadoras:

Que práticas orientam a organização e apropriação dos espaços das

casas de farinha da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua?

Que práticas educativas estão inscritas nas relações de (con)vivência

dos agricultores da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua?

Os saberes e as práticas educativas inscritos no cotidiano das casas

de farinha contribuem para as relações de (con)vivência que se

estabelecem na Comunidade Santo Antônio do Piripindeua?

A partir da definição do problema, tenho definido como objetivo geral desta

pesquisa o desejo de analisar, a partir da produção da farinha e das relações de

(con)vivência, o processo de construção e transmissão de saberes e práticas

educativas que são desenvolvidos no espaço de três casas de farinha tipificadas

inicialmente como: Familiar, Mutirão e Comunitária.

E busco relacionar respectivamente às questões norteadoras os seguintes

objetivos específicos:

Analisar a organização e apropriação dos espaços das casas de

farinha da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua;

Analisar as práticas educativas inscritas nas relações de (con)vivência

pelos produtores nas casas de farinha na Comunidade Santo Antônio

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do Piripindeua;

Identificar se os saberes e as práticas educativas construídas nos

processos produtivos nas casas de farinha contribuem para a

sustentação das relações de (con)vivência que se estabelecem na

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua.

Por considerar neste estudo as casas de farinha como espaços onde se

produz educação por meio, principalmente, dos costumes, fazeres e da oralidade,

não se constitui objeto de estudo especificamente a forma como se organiza a

produção econômica da farinha, pois não tenho pretendido realizar um estudo sob o

viés da sociologia econômica, embora seja considerada importante para a

compreensão do objeto estudado. Ressalto, que se trata de uma investigação sobre

os saberes culturais e as práticas educativas inscritas nas relações de (con)vivência

no espaço das casas de farinha.

Este trabalho busca contribuir para o campo da educação, pois propõe uma

abordagem que permite aprofundar os conhecimentos sobre os saberes presentes

em uma comunidade da região amazônica que tem como uma das principais

atividades a produção de farinha de mandioca, procura desconstruir concepções

hierárquicas que desconsideram ou inferiorizam saberes e práticas de determinados

grupos sociais da região. E também para estudos ou práticas de Educação do

Campo, seja os referentes às praticas realizadas no espaço escolar, seja no sentido

de uma possível aproximação com os saberes produzidos em espaço não escolar.

Ao caminhar pelos fazeres cotidianos que envolvem o fazer farinha,

compreendendo a diversidade das práticas educativas como práticas sociais de

significações e referências culturais, essa pesquisa busca indicar novas

possibilidades de estudos, uma vez que saberes locais pertencem a populações que

têm ficado em grande parte excluída do processo de ―desenvolvimento‖ da

sociedade capitalista.

Considero que o estudo dos fazeres nas casas de farinha pode contribuir

ainda no sentido de possibilitar a crítica a tendências deterministas do conhecimento

científico, ao revelar práticas educativas por vezes ocultas pela vida rotineira de uma

comunidade.

Compete destacar que o diálogo com alguns teóricos deu suporte para a

construção desse trabalho. Minayo (2000) expõe que os conceitos mais importantes

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dentro de uma teoria são as categorias, sendo que existem as que embasam o

conhecimento do objeto nos seus aspectos gerais, as chamadas categorias

analíticas ou que surgem a partir do trabalho de campo, denominada de categorias

empíricas.

Enquanto categorias empíricas que emergiram da pesquisa de campo,

podemos destacar: fazer farinha; tempo; saber ensinar; aprender a fazer; a

educação como ajuda; saber zelar; e a educação familiar, todas categorias

componentes da prática educativa nas casas de farinha.

Com base nesta abordagem, elenquei algumas categorias teóricas

consideradas como orientadoras analíticas: Práticas educativas, que para Freire

(2007) é uma dimensão necessária da prática social, como a prática produtiva, a

cultural, a religiosa que em sua riqueza e complexidade é fenômeno típico da

existência humana; Saberes, com base na ideia de Geertz (2009), que se expressa

enquanto saber empírico passado de geração em geração ou Brandão (2007), que

concebe como aquilo que todos conhecem de algum modo e que envolve situações

pedagógicas; e cotidiano, que para Heller (2008, p. 31) é onde o ser humano

participa, coloca em funcionamento e adquire todas as suas capacidades, é a ―vida

do homem inteiro‖.

Os dados produzidos e suas análises dão corpo a esta dissertação, que

apresenta a seguinte estrutura:

1. A introdução, na qual apresento o tema da pesquisa, as motivações para

o estudo, a construção do problema, sua justificativa e a perspectiva

teórica de análise;

2. A primeira seção, na qual apresento as trilhas metodológicas, os limites e

potencialidades de uma pesquisa qualitativa, os sujeitos, as surpresas e

desafios postos;

3. A segunda seção, na qual, analiso o processo de construção do território

da comunidade, como ele está organizado e as práticas de fazer farinha

que orientam a organização dos espaços das casas de farinha;

4. A terceira seção, na qual apresento uma cartografia dos saberes que são

construídos, reconstruídos e socializados nas relações de convivências

nas casas de farinha. Nela procuro mostrar que esse processo constitui

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um complexo pedagógico que informa o modo de ser e de viver dos

agricultores dessa comunidade;

5. A quarta e última seção, na qual analiso as práticas educativas mediadas

pelas relações de (con)vivência familiares e de cooperação e as

mudanças que vêm se processando no modo de fazer e de aprender a

fazer farinha.

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SEÇÃO 1 - AS TRILHAS METODOLÓGICAS DA PESQUISA

Figura 2 - Vicinal de acesso à comunidade. Fonte: Silva (2010)

Figura 3 - Ramal de acesso à Casa Mutirão. Fonte: Silva (2010)

Figura 4 - Vicinal de acesso à Casa Familiar.

Fonte: Silva (2010)

O método que nos deve orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade, passear por ela em deambulações vadias, indiciando-a de uma forma bisbilhoteira, tentando ver o que nela se passa mesmo quando ‗nada se passa‘. Nesse vadiar sociológico, como se advinha, importa fazer da sociologia do quotidiano uma viagem e não um porto (PAIS, 2003, p.33).

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Nesta seção, apresento os caminhos metodológicos utilizados nesta

pesquisa, que de acordo com Minayo (2000, p.22), configura-se ―o caminho, o

instrumental próprio da abordagem da realidade‖, ou Pais (2003), para quem a

própria natureza do ato de perguntar, expresso nas interrogações formuladas, abre o

caminho a possíveis respostas.

No caminho que percorri, procurei observar e compreender na trama das

relações de (con)vivência, os saberes e práticas educativas que são construídos nas

casas de farinhas na Comunidade Santo Antônio do Piripindeua. No trajeto, busquei

analisar experiências sociais que não se encaixam nos tradicionais modelos

científicos regulados por teorias e conceitos encastelados.

Não sei avaliar como esta vida ―entre‖ me influenciou nisto ou naquilo. Sei que gosto dela, embora respeite bastante (e de vez em quando até inveje colegas bem mais profissionais e bastante mais especializados). Sei que este viver ―entre‖ tem sido uma experiência fértil e fecunda. Agora mesmo trabalho entre geógrafos, educadores, militantes populares, artistas, ambientalistas, antropólogos. Não sei com qual deles aprendo melhor, e poderia dizer que aprendo o mais belo e mais frutífero ―entre todos eles‖ (BRANDÃO, p. 03, 2007).

Brandão (2007) considera que os saberes de diferentes áreas de

conhecimento contribuem na análise de um determinado objeto de estudo. Nesse

sentido, este estudo baseia-se em referências epistemológicas que optaram por

romper com as ciências de concepção sistemática, dogmática e positivista que

marcam estudos por um rigor experimental ou objetivistas realistas.

A busca pela ruptura e superação de limites disciplinares na construção do

conhecimento científico exige uma atitude aberta ao conhecimento produzido pelo

outro, capaz de trabalhar conflitos que certamente fazem parte das trilhas

metodológicas da pesquisa, e que estão relacionados às tensões existentes entre os

diversos campos, sobretudo o das ciências naturais e ciências sociais (PAIS, 2003).

Como princípio definidor desta pesquisa, espero contribuir para um modo de fazer

ciência cujo caminho metodológico seja um veículo de aproximação entre

conhecimento científico e a educação vivenciada pelos sujeitos da pesquisa.

Em suas formulações, Marx e Engels (2008) indicam que a produção das

ideias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente

ligada à atividade material e ao comércio material dos homens. Tais ideias

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configuram-se com a linguagem da vida real, é na vida real que começa a ciência

real, a análise da atividade prática que inclui as contradições do processo histórico.

A opção por uma aproximação da lógica dialética é fundamentada pela

capacidade explicativa alargada do real que essa abordagem traz, e possibilita uma

multiplicidade de olhares, que não significa menor rigor científico. Para Bourdieu

(2007, p. 17):

Semelhante tarefa propriamente epistemológica consiste em descobrir no decorrer da própria atividade cientifica, incessantemente confrontada com o erro, as condições nas quais é possível tirar o verdadeiro do falso, passando de um conhecimento menos verdadeiro a um conhecimento mais verdadeiro.

A lógica dialética desse ponto de vista permite ao pesquisador criticar a

ciência enquanto prática, e, ao ultrapassar as regras já estabelecidas pelos

tradicionais metodólogos, representa de certa forma, o questionamento dos próprios

objetos, que podem ser conquistados, construídos e constatados (BOURDIEU

2007).

A abordagem dialética neste estudo fundamenta-se ainda na concepção de

que os saberes e práticas educativas dos produtores de farinha estão pautados

numa teia de relações de (con)vivência possuidora de um grau de complexidade que

exige um olhar compreensivo e interpretativo dos dados produzidos historicamente

pelos sujeitos. Essa abordagem tem como base as relações entre os indivíduos e a

sociedade, as ideias e a base material, entre o real e a concepção ou apreensão

deste real pelo conhecimento científico.

De acordo com as considerações de Pais (2003, p. 30) trata-se de:

Aconchegar-se ao calor da intimidade da compreensão, fugindo das arrepiantes e gélidas explicações que, insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido, erguem fronteiras entre os fenômenos, limitando ou anulando as suas relações reciprocas.

Nesse sentido, para a realização da pesquisa sobre as práticas educativas

inscritas no espaço e na dinâmica das casas de farinha, utilizei a pesquisa

qualitativa, por me preocupar com aspectos do real, principalmente, aqueles de

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natureza cultural que não podem ser quantificados e sim interpretados,

contextualizados e analisados (MINAYO, 2000). E também por considerar que a

análise dos saberes e práticas sociais requer uma interpretação a partir da dinâmica

das relações de (con)vivência dos produtores de farinha.

Para Minayo (2000) a investigação social tem como base, na análise de seu

objeto, o aspecto qualitativo, o que pressupõe considerar as condições sociais dos

sujeitos da pesquisa, bem como o grupo ou classe a que pertence, com suas

crenças, valores e significados, uma vez que o objeto das ciências sociais, além de

complexo e contraditório sofre permanente transformação.

Segundo Barth (2000, p. 123), os fenômenos complexos precisam ser

estudados em suas múltiplas singularidades, pois as pessoas estão inseridas em

―mundos diferentes, parciais, simultâneos, nos quais se movimentam‖. Para ele,

nessa tarefa, é necessário o pesquisador elaborar um método de processos sociais

e considere que a cultura é compartilhada por uns e não por outros; que os atores,

estão sempre posicionados, e esses posicionamentos favorecem ações

diferenciadas.

Nessa perspectiva, me dediquei a construir um conhecimento do fazer farinha

a partir da análise de saberes e de práticas educativas, de como se configuram ou

se constituem os processos que os/as geram, que informam, pois, de acordo com

Barth (2000, p. 127), ―vivemos em um mundo em que a realidade é culturalmente

construída, temos que tentar mostrar como se geram socialmente as formas de

cultura‖.

1.1. CONTORNOS E ESPECIFICIDADES DA ÁREA DE ESTUDO

Elegi como área de estudo uma das comunidades que faz parte do

Assentamento Itabocal, no município de Mãe do Rio. Trata-se da Comunidade Santo

Antônio do Piripindeua, que está localizada distante aproximadamente 28 km da

sede do município. Mãe do Rio pertence à Mesorregião do Nordeste Paraense e à

Microrregião Guamá, distante cerca de 200 km da capital do Estado. A sede

municipal tem as seguintes coordenadas geográficas: 02º 02‘ 48‖ de latitude sul e

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47º 33‘ 12‖ de longitude a oeste de Greenwich. Como indica a figura 05, limita-se ao

norte e a leste com o município de Irituia, ao sul com o Município de Capitão Poço e

a oeste com o município de São Domingos do Capim e Aurora do Pará. É

considerado um município novo, com 23 anos de fundação e uma população

estimada em 27.735 habitantes pelo Censo de 2010, segundo dados do IBGE.

Figura 05: Mapa da área rural do município de Mãe do Rio

Fonte (Oliveira e Paixão, 2009).

O território do nordeste paraense é um grande produtor de raiz de mandioca.

Sua produção corresponde a 17% da produção estadual, produção que advém da

agricultura familiar camponesa, sendo, ainda, a mais importante fonte de renda para

os pequenos produtores e produtoras (é por estes denominadas como o seu salário

mensal), além de compor a dieta básica do paraense, por meio da farinha, da goma

e do tucupi (MDA/FANEP, 2006).

A comunidade Santo Antônio do Piripindeua tem como principal fonte de

renda a produção de farinha de mandioca. Sua escolha enquanto objeto de estudo

deu-se pelas singularidades que ela apresenta, principalmente com relação à

composição de sua população, caracterizada, na sua grande maioria, por

paraenses, com reduzido número de famílias de origem nordestina, o que, de certa

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forma, é raro no nordeste do Estado do Pará. Caracteriza-se por ser uma

comunidade que ainda conserva costumes, considerados ―tradicionais‖, como o ato

de caçar e pescar, muito raro na região, em decorrência do avançado processo de

degradação ambiental. Também por ser considerada pelos técnicos que prestavam

assessoria a áreas de assentamento como a comunidade que tem significativa

produção de uma farinha de qualidade e ainda, de acordo com informação local, por

ainda não ter sido objeto de estudo acadêmico.

Na perspectiva marxista, a ideia de produção a partir das relações sociais

permite que as famílias de agricultores camponeses produzam suas próprias

condições de existência, e ao fazer isso, produz-se a si mesmo, ou seja, criam

relações específicas de produção que, pelos fazeres cotidianos, tecem culturas e/ou

fortalecem identidades. A esse respeito Marx (2008, p.239) considera que, ―a

produção tampouco é somente particular, é sempre, ao contrário, um corpo social

dado, um sujeito social que exerce sua atividade em um agregado mais ou menos

considerável de ramos da produção‖.

Acredito que a dinâmica socioeducativa que informa o processo de produção

de farinha de mandioca atende à perspectiva de uma proposta de estudo que se

insere no núcleo temático da linha dos saberes culturais no contexto da região

Amazônica brasileira, porque identifiquei uma lacuna de estudos no campo da

educação que trata das práticas culturais que perpassam as relações de

(con)vivência nas casas de farinha. Portanto, insere-se nas práticas educativas

realizadas em ambientes não escolares.

1.2 - AGRICULTORES FAMILIARES: OS SUJEITOS DA PESQUISA

Embora a comunidade em estudo esteja inserida no ensino formal, ainda que

no limite das precariedades em que funcionam as escolas nas áreas rurais, meu

interesse se volta para a educação em espaços não escolares, aquela vivenciada no

cotidiano pelos sujeitos que o constituem. Essa opção não significa, de forma

alguma, nomear como sendo inferior ou superior à educação escolar. Trata-se de

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uma opção política, mas, principalmente, metodológica.

Conforme anunciado na introdução deste texto, a opção metodológica pelas

práticas educativas que norteiam o processo de produção de farinha de mandioca

orientou a escolha dos sujeitos da pesquisa, que são os agricultores familiares de

três espaços físicos distintos denominados aqui como: Casa de farinha Familiar;

Casa de farinha Mutirão e Casa de farinha Comunitária. Estas estão abaixo

descritas:

Na Casa de Farinha Familiar, as práticas são dinamizadas a partir da

organização da família nuclear, e com o controle de todas as etapas do

fazer farinha, inclusive dos instrumentos de trabalho;

Na Casa de Farinha Mutirão, o processo de produção tem muito de

tradicional, mas existem diferentes relações de parentesco, de relações

de ajuda mútua entre vizinhos, e está localizada em um terreno

agrícola afastado da vila da Comunidade;

Na Casa de Farinha Comunitária, as práticas de fazer farinha são

dinamizadas a partir de uma diversidade de relações objetivadas no

seu interior, familiar de compadrio, de trocas, mutirão. Existe toda uma

organização prévia da produção discutida em uma reunião mensal.

Essa casa foi instalada por uma política pública, por um projeto do

Governo Federal em parceria com o poder público municipal, que teve

a função de atender não apenas os produtores de farinha da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, mas também os de outras

comunidades próximas.

A opção por três casas, e não de apenas uma, deveu-se ao fato de perceber

ainda no estudo exploratório que essas casas adotavam dinâmicas de trabalho

diferenciadas que forneceram uma diversidade de dados que permitiu a realização

de interpretações, comparações e análises numa concepção ampliada do fazer

farinha. As apresentei aqui de forma resumida, pois a análise da apropriação de

seus espaços durante o processo produtivo da farinha é abordada na seção 2 com

mais detalhes.

Nesta investigação, os sujeitos são os agricultores e agricultoras familiares

que, no processo de fazer farinha, também usam conhecimentos elaborados

―tradicionalmente‖, socializados entre as gerações pelas experiências, que informam

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práticas educativas necessárias à reprodução de seus modos de vida.

Além disso, eles são os sujeitos da pesquisa porque dinamizam o cotidiano

das casas de farinha, estabelecem relações sociais de (con)vivência, de ajuda

mútua, que possibilitam sua produção tanto material quanto cultural. E assim,

inserido em sua cotidianidade, voltado para as atividades necessárias à sua

sobrevivência, há o ―amadurecimento do homem [...] o indivíduo adquire todas as

habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em

questão‖ (HELLER 2008, p.33).

Esse ―amadurecimento‖ também se vincula à realização da pesquisa. Antes

de iniciar o trabalho de campo, me referia aos seus sujeitos como produtores de

farinha. Posteriormente, com o início da pesquisa e a descoberta de que se tratava

na realidade de um assentamento, cogitei a ideia de atribuir-lhes a denominação de

assentados, já que se tratava de um assentamento instituído legalmente. No

entanto, a partir das conversas e entrevistas realizadas, percebi que os mesmos se

autoidentificavam como agricultores, tanto os homens como as mulheres. Por isso, a

denominação de agricultores familiares aos assentados está associada neste

trabalho às correspondências de como os mesmo se percebem, ou seja, a partir de

suas práticas sociais e de seus discursos mais presentes.

Essa diversidade de sujeitos e de identidades só mostra que a pluralidade

cultural está presente não apenas na região amazônica, mas nessa se apresenta

com características tão peculiares que a transformam num universo tão rico, que

mesmo submetida a um processo de globalização que impõe uma cultura de massa,

numa espécie de colonização cultural, os saberes culturais de comunidades

camponesas parecem se renovar. Essa renovação, conforme Stuart Hall (2008)

traduz uma resistência à homogeneização, por parte de alguns que tem reforçado

identidades locais e nacionais.

No entanto, no relato de um entrevistado, foi ressaltado que alguns jovens da

comunidade ―tem vergonha de dizer que é agricultor‖ (AFC, 05), por trabalhar na

roça. Esse constrangimento pode estar relacionado ao processo de exclusão social

que nas suas diversas maneiras de existência ressalta a necessidade de nos

contrapormos à imposição capitalista de uma lógica única, em que a exaltação de

apenas um conjunto de conhecimentos como legítimo desfaz-se em muitas

situações de outras formas de conhecimento de interpretação do mundo social

(ALVES, 2008).

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Os agricultores familiares camponeses constituem-se em grupos sociais nos

quais suas principais atividades giram em torno do plantar e colher, lógica de vida e

de comunidade que embasam sua reprodução social. Assim, a agricultura familiar

relaciona-se às noções de ―pequena propriedade, pequena produção e de laços

familiares, e compondo uma unidade social, almeja, objetiva, luta e produz, visando

sua reprodução social‖ (MOREIRA, 2007, p.66).

Na comunidade, identifiquei agricultores familiares: a) que têm como base de

sustentação econômica, apenas o trabalho na agricultura no seu terreno; b)

agricultores com trabalho na agricultura vinculado ao trabalho assalariado, em geral,

trabalham em fazendas, deixam mulher e filhos para cuidar da roça; c) agricultores

que conciliam com a atividade de funcionário público ou de pequeno comerciante; d)

agricultores diaristas, que são contratados principalmente para torrar a farinha, no

caso dos homens, enquanto as mulheres também são contratadas para a tarefa de

descascar a mandioca.

Além dessa diversidade de situações de vida, incluem-se ainda o grau de

mecanização das casas de farinha, os modelos produtivos adotados, a renda obtida,

a forma de comercializar a farinha e outros produtos, a escolha pelo mercado em

que estão inseridos e a forma como utilizam a terra para produzir, entre outros.

Inicialmente, havia optado por trabalhar apenas com os jovens, pois havia a

pretensão de relacionar os saberes da produção da farinha e os saberes escolares.

Como opção metodológica, resolvi não mais realizar a interface, por uma série de

motivos, inclusive considerei a exiguidade do tempo destinado ao mestrado para

realizar uma pesquisa com tamanha amplitude.

Por esse motivo, optei por incluir todos que participam do processo de

produção, em face da necessidade de perceber a socialização e/ou criação de

saberes e de práticas, por não ser conveniente para a produção de dados excluir

nenhum agricultor, principalmente com relação às Casas Familiar e Mutirão, por

envolver menor número de sujeitos.

No caso da Casa de farinha Comunitária, há uma troca permanente de dias

de fazer farinha entre os sujeitos, quando há semanas em que determinada família

não faz farinha, além de que, se antes essa casa tinha seu funcionamento garantido

praticamente todos os dias da semana, com a diminuição da quantidade de

mandioca produzida, isso passou a ocorrer em apenas alguns dias.

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Por tudo isso, os sujeitos deste estudo são os agricultores e agricultoras,

adultos, jovens e crianças que a partir das relações de (con)vivência nas casas de

farinha, constroem e socializam saberes que materializam-se em práticas

educativas. Com essa perspectiva, tenho a crença de que as socializações desses

saberes envolvem um processo de ensino aprendizagem significativo para a

continuidade e fortalecimento cultural da comunidade.

1.3. A PESQUISA DE CAMPO

Esta pesquisa caracterizou-se por ser uma pesquisa de campo. Para Minayo

(2000, p.105), na pesquisa qualitativa, o campo ―é o recorte espacial que

corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente

ao objeto da investigação‖. Trata-se de compreender os saberes inscritos nas

relações de (con)vivência dos sujeitos nas casas de farinha, o que pode possibilitar

a verificação de práticas educativas construídas coletivamente.

A possibilidade de conviver de um a dois dias por semana nas casas de

farinha foi concretizada pelo acolhimento dispensado pela comunidade enquanto

durou a pesquisa de campo. O ―estranhamento‖ inicial foi logo sendo substituído por

uma relação cordial, pois compreendi que eles também tinham o direito de saber um

pouco sobre a pessoa que chegava à comunidade, inseria-se no seu espaço de

trabalho e que fazia tantas perguntas.

Conforme Minayo (2000, p.105), ―na pesquisa qualitativa, a interação entre o

pesquisador e os sujeitos pesquisados é essencial‖. Essa importância está

relacionada ao fato, segundo Thompson (1998), de que alguns costumes podem ser

descritos como visíveis, por estarem codificados, de alguma forma, ou pela

possibilidade de serem justificados. No entanto, outros costumes, por influências de

outras culturas, passam a ser menos visíveis.

Com base nessas afirmações, instaurou-se o desafio de identificar a

educação inserida em relações sociais que se desenvolvem em um ambiente de

realização de práticas de fazer farinha. O que me encaminhou para uma

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observação que permitiu verificar e traduzir as percepções, costumes e

representações dos sujeitos em seu contexto.

Tomei como referência Martins (2008) para optar por algumas técnicas

utilizadas pelo estudo de caso, que é concebido por ele como uma investigação

empírica que pesquisa fenômenos dentro de seu contexto real, em que o

pesquisador não tem controle sobre eventos e variáveis, e busca: apreender,

criativamente, a totalidade de uma situação; descrever, compreender e interpretar a

realidade, mediante um mergulho profundo e exaustivo no problema da pesquisa.

Para Martins (2008, p. 9), no mergulho em um objeto delimitado, ―o estudo

de caso possibilita a penetração em uma realidade social, não conseguida

plenamente por um levantamento amostral e avaliação exclusivamente quantitativa‖,

e exige um diálogo com uma plataforma teórica, com o maior número possível de

informações em função das questões e das diferentes técnicas de levantamento de

dados.

Para a produção dos dados, procurei construir uma estratégia metodológica

capaz de permitir uma aproximação com os agricultores familiares nos diferentes

espaços, ou seja, nas casas de farinha escolhidas, locais onde algumas das

técnicas de produção de dados foram realizadas paralelamente a um processo

avaliativo, para verificar se os dados realmente foram produzidos a contento para

uma pesquisa qualitativa.

O acesso à comunidade se dá por uma estrada vicinal de terra batida. No

trajeto da cidade de Mãe do Rio à Comunidade, percebi que, ao deixar a Rodovia

Belém-Brasília, também conhecida como BR – 010, a ―paisagem‖ vai se

modificando. Observei que na sua maior parte, a estrada vicinal é ladeada por

pastagens, com residências muito distantes uma das outras, o que indica que são

áreas de grandes fazendas.

Nos últimos quilômetros percorridos, foi possível visualizar uma ocorrência de

casas muito mais próximas, o que representa a existência de uma área de

assentamento. Embora continue a existência de pastagens, o cenário muda até que

surge a imagem da primeira roça de mandioca, indicadora da chegada à área da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua.

Ao chegar à comunidade, busquei sempre participar o mais frequentemente

possível do processo que envolve o fazer farinha. Ao interagir com os agricultores,

procurei estabelecer uma relação de confiança. Observei as práticas sociais e

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educativas e, na medida do possível, registrei ações, gestos ou diálogos, utilizando o

diário de campo.

Como estratégia de entrada de campo, conversei inicialmente com os

técnicos que prestavam assessoria nesta comunidade, para ter um conhecimento

prévio sobre a mesma. Também me aproximei de uma das professoras da

comunidade, filha de um dos primeiros moradores, que me conduziu às casas de

farinha para um estudo exploratório, que foi realizado com a finalidade de conhecer

melhor a comunidade estudada, estabelecer contato com as lideranças locais e

definir que casas de farinha seriam pesquisadas.

Sua realização foi importante porque percebi que a comunidade estava

inserida numa complexa teia de relações e de processos, numa mistura de

elementos e práticas que exigiam uma ampliação do campo de estudo que não

ficaria limitado a apenas uma casa de farinha, mas, pelo menos três, que serão

abordadas com mais detalhes na próxima seção.

Embora já tivesse realizado algumas visitas à comunidade, iniciei o

cronograma de pesquisa de maneira mais intensiva no final do segundo semestre de

2009, precisamente na segunda semana do mês de dezembro. Organizei as

atividades com permanência em campo de um a dois dias por semana no decorrer

de sete meses.

Priorizei as quintas e sextas-feiras, uma vez que nas segundas-feiras é dia

dos agricultores realizarem mutirão para outras atividades. Os outros dias são

dedicados ao trabalho na roça, e no sábado é dia de comercializar a farinha na feira

de Mãe do Rio. Algumas vezes, foram incluídas às quartas-feiras para a realização

das entrevistas, para não importunar os agricultores nos dias de fazer a farinha.

Acredito que este recorte temporal de sete meses foi suficiente para desenvolver

condições necessárias para a produção de dados válidos para a pesquisa. A

observação se deu por meio da convivência com os agricultores nas casas de

farinha.

Reconheço que, inicialmente, cheguei à comunidade com uma visão

―romântica‖ do campo. Imaginava que durante a noite, os agricultores reuniam-se

para conversar sobre as atividades do dia seguinte. Por isso, resolvi que iria

pernoitar na comunidade algumas vezes para acompanhar esse movimento: do que

flui ou desliza na vida da comunidade (PAIS, 2003).

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No entanto, logo nos primeiros dias de convivência, percebi que havia pouco

ou nenhum movimento no sentido de conversas, reuniões, trocas ou brincadeiras,

mesmo entre os mais jovens. Assim, minha rotina na comunidade foi assegurada por

idas e vindas. As idas foram quase sempre pela manhã e o retorno no fim da tarde,

com raríssimas exceções, a não ser quando havia dificuldade de transporte em

decorrência das condições da estrada. Nesse caso, o retorno era antecipado.

As atividades que envolveram a dinâmica da pesquisa foram realizadas

incluindo o levantamento de informações por meio de técnicas de pesquisa que

foram aplicadas, avaliadas e, quando necessário, redimensionadas a fim de produzir

os dados que possibilitaram a análise do real estudado.

A observação participante, uma das opções para produzir os dados, foi

fundamentada na necessidade de registrar os relatos detalhados de situações

raramente obtidos, apenas por entrevistas. Para Martins (2008), nessa técnica o

pesquisador observador torna-se parte integrante de uma estrutura social e na

relação face a face com os sujeitos da pesquisa realiza a coleta de dados e

informações, o que requer, ao mesmo tempo, desprendimento e envolvimento

pessoal.

Ao compartilhar desta concepção, assumi o papel do pesquisador formal e

revelado como parte do contexto das relações de (con)vivência nas casas de

farinha, que foram observadas.

Inicialmente percebi olhares desconfiados com relação a minha presença. No

entanto, consciente da necessidade de se produzir os dados, elementos que

possibilitaram descrever situações em que transitam os diferentes saberes, como

conversas, expressões, gestos, costumes, formas de conduzirem seus afazeres,

procurei observar o mais próximo possível, participando em alguns momentos da

descasca da mandioca, uma das etapas mais ricas de aprendizagem, como será

analisado posteriormente. Reconheço que com esta atitude, os olhares modificaram-

se. Percebi uma aceitação mais ―natural‖ da minha presença. Passei então a

participar dos momentos da alimentação e pude perceber a variedade e o ritual de

troca de alimentos.

A continuidade em campo permitiu que os dados obtidos por meio da

observação participante fossem registrados no diário de campo com mais detalhes

da realidade observada. Foram anotadas, minhas impressões e possíveis

indicadores de práticas educativas e de análises. Procurei registrar algumas

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conversas, julgadas pertinentes para a pesquisa, e, em determinadas situações,

foram gravadas, sempre com a permissão dos sujeitos.

Entrevistas foram realizadas, por se tratar de:

Um rico e pertinente recurso metodológico para a apreensão de sentidos e significados e para a compreensão das realidades humanas, na medida em que toma como premissa irremediável que o real é sempre resultante de uma conceituação; o mundo é aquilo que pode ser dito, é um conjunto ordenado de tudo que tem nome, e as coisas existem mediante as denominações que lhe são emprestadas (MACEDO, 2010, p. 104).

A preferência pela entrevista semiestruturada permitiu que tivesse a liberdade

de retirar alguma pergunta, modificar a ordem ou mesmo improvisar outras. De

acordo com Macedo (2010), esse tipo de entrevista admitiu a realização de um

roteiro flexível, no qual a informação inesperada foi valorizada e incluída. No

decorrer de sua realização, a gravação das entrevistas facilitou a obtenção de dados

sobre as práticas educativas dos sujeitos pesquisados e nas descrições das

situações e dos acontecimentos ocorridos, que foram posteriormente transcritas

para sistematização e análise dos dados.

Das entrevistas, três foram realizadas no contexto da pesquisa, ou seja, na

Casa de Farinha Mutirão e uma na Casa de Farinha Comunitária, as demais foram

realizadas nas casas dos entrevistados. Posteriormente, elas foram transcritas e

―devolvidas‖ para os sujeitos, alguns, preferiram que eu as lessem. Nessa

oportunidade, aproveitei para tirar algumas dúvidas ou aprofundar determinados

aspectos que ainda não haviam ficado claros.

A quantidade de entrevista realizada foi definida no decorrer da pesquisa,

mediante a suficiência de dados produzidos, ou até atingir um ponto de saturação

(FLICK, 2004). Sendo assim, foram 10 entrevistas ao todo, sendo 02 (duas) com

sujeitos da Casa de Farinha Familiar, 03 (três) com sujeitos da Casa de Farinha

Mutirão e 05 (cinco) da Casa de Farinha Comunitária. Nesta última, o número maior

de entrevistas realizadas está associado ao número de famílias e sujeitos. Os

critérios para a seleção dos sujeitos entrevistados foram: a) experiência, tempo e

conhecimento dos saberes para produzir farinha; b) amostragem por gênero, pois

em algumas situações havia papéis diferenciados no fazer farinha, detalhe relevante

na análise de estudos culturais.

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Para preservar a identidade dos sujeitos, na escrita do texto utilizei códigos

que são: AFF - para agricultor da Casa de Farinha Familiar; AFM - para agricultor da

Casa de Farinha Mutirão; e AFC - para agricultor da Casa de Farinha Comunitária.

Outra fonte de informação utilizada foi a fotoetnografia. Achutti (1997) define

esta técnica de pesquisa de campo como uma técnica que pode ser usada como

outra forma de narrativa que, somada ao texto etnográfico, enriquece e possibilita à

difusão dos resultados obtidos. Neste sentido, a fotografia teve a função de registro,

de documentar as ocorrências cotidianas, no fazer da farinha, que posteriormente

foram analisadas.

A imagem fotográfica foi incorporada por sociólogos e antropólogos, como

alternativa metodológica no elenco de técnicas de investigação. Os historiadores

também a acrescentaram em seus estudos como matéria prima de suas análises.

Este é um recurso que em diferentes campos do conhecimento: ―amplia e enriquece

a variedade de informações de que o pesquisador pode dispor para reconstituir e

interpretar determinada realidade social [...]. Revela também o ausente, dá-lhe

visibilidade como realismo da certeza‖ (MARTINS 2008, p.26).

Para Boni e Moreschi (2003), os recursos visuais não são recursos apenas

como suporte de pesquisa, mas imagens que agem como um meio de comunicação

e expressão do comportamento cultural. Embora com algumas limitações no que diz

respeito à técnica de fotografar, assumi a realização das fotografias de maneira

bastante cuidadosa, o que evitou distorções no objetivo da pesquisa e na coleta de

materiais a que se referem estes autores.

Desde a apresentação do projeto de pesquisa, que aconteceu após o término

de uma reunião na sede da Associação dos Agricultores e Agricultoras da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, quando houve um processo de

negociação de como seriam realizadas a coleta de dados, nessa ocasião, informei

os sujeitos da pesquisa da necessidade de realizar o registro das imagens, mas, os

esclareci de que esta técnica só seria realizada com o consentimento individual.

Esse processo participativo que antecedeu a realização das técnicas de pesquisa

facilitou a produção de dados.

Nas casas de farinha, antes de realizar o registro fotográfico, a autorização

era solicitada de cada agricultor e agricultora, em caso negativo, o que foi raro, a

vontade foi respeitada, e, nos casos em que se permitiu, após a realização, o

registro ainda na máquina, a imagem era mostrada ao sujeito. Com relação à

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imagem das crianças, o procedimento foi o mesmo, e além de perguntar para a

criança se poderia fotografá-la, solicitei o consentimento dos pais ou responsáveis.

O registro da imagem aconteceu em momentos posteriores à obtenção do

consentimento, mas não em seguida, o que permitiu registro de momentos

importantes para a pesquisa, com alguma ―naturalidade‖. Essa técnica foi associada

à construção de esquemas visuais dos espaços físico das casas de farinha onde os

agricultores e agricultoras se organizam para fazer a farinha ou atividades afins.

Os esquemas visuais das casas de farinha foram utilizados conforme

Niemeyer (1998) numa perspectiva de apoio gráfico de um processo lógico de

orientação espacial. Trata-se de representações que procuram reproduzir a

apropriação do espaço das casas de farinha pelos agricultores e agricultoras,

relacionando-os com a construção dos saberes e as práticas educativas desses

sujeitos.

Para produzi-los, primeiro solicitei para um dos sujeitos de cada casa de

farinha que fizesse o ―desenho‖ que representasse este espaço. De posse desses

desenhos, construí esquemas, que posteriormente permitiu a análise da apropriação

do espaço das casas de farinha.

1.4. O PROCESSO DE ANÁLISE DOS DADOS

Procurei organizar os dados de forma a propor uma interpretação adequada

ao que me propus a investigar, pois, considero que, no momento de análise, ―é

quando se tem a visão real dos dados obtidos‖ (MOROZ; GIALFADONI, 2006, p.

85). Para a realização desse exercício de análise e elaboração, identifiquei a

necessidade de idas a campo para aprofundar a interpretação e conclusões já

levantadas, ou até mesmo para esclarecer mais amiúde.

Como estratégia de sistematização e análise dos dados, procurei relacionar o

que foi observado, ouvido e o que já foi construído teoricamente, com o objetivo de

interpretar as relações de (con)vivência nas casas de farinha e as dinâmicas imersas

de saberes e de práticas educativas. Os dados foram analisados utilizando-se de

alguns recursos da análise de discurso.

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O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência

humana, para Orlandi (2005, p. 15) ―essa mediação, que é o discurso, torna possível

tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do

homem e da realidade em que ele vive‖.

Nessa análise, admite-se que a realidade não existe como algo dissociado,

mas fruto de um emaranhado de relações sociais complexas e contraditórias

construídas historicamente, ou seja, ela é um produto social materializado pelos

sujeitos por meio da linguagem. Então, procurei analisar e interpretar as conversas

com os agricultores e agricultoras, as entrevistas, o dito e o contexto no qual foi dito.

As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: diretrizes presentes e dizeres que se alojam na memória (ORLANDI, 2005, p.43).

Para análise dos dados, busquei ainda construir uma cartografia dos saberes

presentes nas casas de farinha e que emergem dos fazeres cotidianos. Esta

cartografia de saberes é considerada por Oliveira (2008) como estratégia

metodológica, que tem o objetivo de contribuir para o mapeamento de traços da

história e da cultura de comunidades mantidos pela comunicação oral, embora sem

registro, e tem por base a cartografia simbólica de Santos (1998), compreendida

como modo de imaginar-se e representar-se a realidade social. Sua utilização

permite a identificação das estruturas de representações de diversos campos do

saber.

Nas cartografias das casas de farinha, considerei que as representações

espaciais são produções que se desenvolvem sob determinadas condições

socioculturais e político-ideológicas. Condição que não compromete sua viabilidade,

pois, segundo Niemeyer (1998), é possível indicar por meio desses documentos o

caráter inconsciente de dados extrínsecos, o conceito da significação, componentes

linguísticos, o campo da sensibilidade revelado pelas formas e cores. Nesse sentido,

os esquemas construídos contribuíram para a análise dos espaços das casas de

farinha e para percebê-los enquanto espaços de apropriação de agricultores e

agricultoras.

Quanto à análise das imagens, esta foi realizada com base na concepção de

Martins (2008), para quem a informação contida em uma imagem não é aquilo que

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se apresenta, mas a recepção que o sujeito adquiriu a partir de uma interpretação

sobre ela, uma vez que ele considera seus valores em relação à concepção de ser

humano enquanto sujeito histórico e de mundo; a fotografia não é apenas

documento para ilustrar, ela é constitutiva da realidade contemporânea, por isso

pode ser considerada como objeto e também como sujeito. Procurei realizar a

análise das imagens associada ao momento em que a mesma foi realizada e as

anotações de campo, para situá-la no texto de maneira contextualizada.

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SEÇÃO 2 - A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA COMUNIDADE E AS CASAS DE

FARINHA

Figura 6 - Rio Piripindeua Fonte: SILVA (2010)

Figura 7 - Vila da Comunidade. Fonte: SILVA (2010)

Figura 8 – Casa de farinha

Familiar. Fonte: SILVA (2010)

Ser o sujeito da história e ser o agente criador da cultura não são adjetivos qualificadores do homem. São o seu substantivo. Mas não são igualmente a sua essência e, sim, um momento de seu próprio processo dialético de humanização no espaço de tensão entre a necessidade (as suas limitações enquanto ser da natureza) e a liberdade (o seu poder de transcender ao mundo por atos conscientes de reflexão). O homem realiza um trabalho único que, criando o mundo de cultura e fazendo a história humana, cria a própria trajetória de humanização do homem (BRANDÃO, 2002, p. 41).

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2.1. AS CASAS DE FARINHA NO CONTEXTO DA COMUNIDADE SANTO

ANTÔNIO DO PIRIPINDEUA

As casas de farinha nesta seção são analisadas no contexto da Comunidade

Santo Antônio do Piripindeua, com enfoque em traços de sua história relacionados à

sua constituição, examinando as formas como os espaços são apropriados na sua

organização interna. O objetivo deste enfoque é identificar as relações de

(con)vivência construídas pelos diferentes sujeitos produtores de farinha, seus

saberes e práticas educativas, que serão analisados na seção a seguir.

Os agricultores familiares da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua

organizaram espaços específicos para desenvolverem suas práticas de fazer

farinha. São as casas de farinha, conhecidas também na comunidade por ―retiro‖ ou

ainda, ―retirinho‖. Na definição do SEBRAE (2008), as casas de farinha são

estabelecimentos dedicados à produção de farinha e geralmente se refere a

empreendimentos de pequeno porte, em contraste com as grandes farinheiras, que

são aquelas voltadas para uma produção em escala industrial.

Na expressão de um dos entrevistados: ―a gente chama de retiro, mas retiro

hoje é outra coisa, o certo é casa de farinha mesmo, os indígenas chamavam casa

de forno, hoje é casa de farinha‖ (AFC, 03). Embora os sujeitos também façam

referência às casas onde se produz a farinha como ―retiro‖, neste estudo a

denominação utilizada será a de casa de farinha, pois considero que além da

transformação da matéria prima, raízes de mandioca em farinha e em alguns casos

em outros produtos como a goma e o tucupi, o fazer farinha configura-se como um

processo que está para além do resultado final de um sistema produtivo, porque

alberga também relações de (con)vivência e vínculos familiares na sua execução.

O surgimento das casas de farinha na comunidade está relacionado com o

modo como este território foi construído. De acordo com a percepção dos

entrevistados, os primeiros agricultores chegaram ao que hoje se constitui a

comunidade por meio do ―Rio Piripindeua2‖, um dos afluentes do Rio Guamá.

2 De acordo com informação local, o nome de origem indígena ―Piri‖ tem seu significado associado a

perigo, isso porque o local onde o rio deságua no rio Mãe do Rio era considerado pelos indígenas que habitavam esta região um lugar muito escuro, ou seja, perigoso, em decorrência da quantidade de sedimentos que tornava suas águas turvas ou a ―peixe‖, de acordo com manifestações locais.

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Naquela época, nas primeiras entradas onde hoje se constitui a comunidade3, o

principal objetivo era praticarem a caça de animais para alimentação, mas, diante da

exuberância que a mata apresentava e da possibilidade de explorarem aquelas

terras, um grupo resolveu permanecer e praticar a agricultura, como mostra o

depoimento a seguir:

A Comunidade surgiu quando chegamos aqui. Isso aqui era mata. Fizemos a abertura, nesse tempo não era loteado, entramos pelo rio, ficava uns pra cá e outros para o outro lado do rio. Ficamos aí trabalhando. Nesse tempo não tinha formado Comunidade, foi formado aqui depois (...). Antes de a gente vir para cá, nos morávamos ali pra cá de Santana na estrada dali. Naquele tempo era novo, depois que a gente veio para cá, meu tio também veio (AFC, 04).

Dessa maneira, fica evidenciado que estes agricultores já habitavam a região

há muito tempo. A ―colônia‖, como eles denominam o lugar onde seus pais

possuíam terreno, ficava localizada a alguns quilômetros de onde hoje está

constituída a comunidade, do outro lado da margem do Rio Piripindeua.

Em suas manifestações, indicam a composição étnica da população da

comunidade Santo Antônio do Piripindeua. Os índios a que se refere era os Tembé

(Tenetehara: que significa gente), de classificação linguística tupi-guarani, que

migraram por volta de 1850 das regiões de Pindaré e Caru (Maranhão) para próximo

dos rios Guamá, Capim e Gurupi (OLIVEIRA e PAIXAO, 2009).

Até porque a minha mãe, ela ainda tinha na parte, na geração, ainda minha vó que era mãe dele, dizia que o pai dele era índio, filho de índio, sangue nunca se acaba, ele vai multiplicando. Já a minha mulher, a vó dela era filha de índio, mesmo puro, mesmo. Meu pai, a mãe dele não chegou a ser escravo, ela contava que os pais dela e a mãe dele no tempo da escravidão dizia que ―eles não criava o galo, que era pra ele não cantar‖ e ela contava que ela ainda, passou vinte dias no mato, escondido. Naquele tempo os negros eram pegos, ela contava muita história e o pai, do meu pai era filho de português (AFC, 04).

Eles andavam por aqui, por aqui tem pessoas que têm indígena na família, até eu, a minha esposa ela vem de família indígena, bisavô dela, tataravô dela, vem da origem do povo, ainda tem sangue de índio. Segundo eles

3 O termo comunidade refere-se neste trabalho às relações baseadas na vivência, na confiança, na amizade, no trabalho em conjunto e que são construídas a partir da junção de um número limitado de membros que reagem contra uma sociedade burocrática, que caminha no sentido inverso ao relacionamento solidário (WANDERLEY, 2010).

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dizem, tem esse igarapé Piripindeua, ela veio da palavra dos índios, significava peixe, por isso Piripindeua, essa história que o povo conta né. Eles moravam, não era diretamente, mas eles vinham passar semana, daí iam embora. A aldeia, mesmo, ficava no Guamá, mas eles caçavam pra cá pra essa região. Vem de família (AFC, 03).

Durante a realização da pesquisa, um dos entrevistados fez questão de

mostrar-me o Rio Piripindeua e explicou que, na atualidade, este rio é o marco de

delimitação física entre os municípios de Mãe do Rio e Irituia, mas que no início da

ocupação, quando ainda não tinham constituído a comunidade, ele era um dos

poucos pontos de referência na região. Em suas palavras:

Irituia, (o município mãe) extrema bem aqui, o rio passa bem aqui nessa matinha, aqui é Mãe do Rio, do rio pra lá já é Irituia e vai cortando aqui quando chega lá na frente passa pra cá, atravessa pro outro lado, aí já é Irituia. A maior parte do assentamento ficou pra Irituia, ainda pega uma parte de Capitão-Poço, mas é pouco. Agora que se distingue como comunidade, antes as pessoas diziam: ―vou lá para o Piripindeua‖, como era conhecida Santa Ana, mas pra onde? Piripindeua é o rio, é a região, dentro do contexto dele têm várias localidades (AFC, 04).

Assim, o mesmo rio que hoje delimita os municípios orientou os agricultores

no processo de territorialização, uma vez que o processo de formação da

comunidade iniciou-se a partir do Rio Piripindeua, com a demarcação dos primeiros

lotes agrícolas às suas margens. Como não havia estrada que cortasse o espaço da

comunidade, o rio passou a ser o limite físico indicado para delimitarem a

apropriação da terra. Um entrevistado explicou como se deu esse processo:

Era só família mesmo, nesse tempo que nós entramos aqui. A Colônia mesmo ficava do outro lado do Rio, [gestos] em certa parte né, até lá em certa parte não tinha e a gente foi, pegava os igarapés, e eu dizia: ―Vou ficar aqui‖. Mas na frente ficava outro e ia marcando (AFC, 01).

Os agricultores da Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, ao se

apropriarem das terras, delimitam seus espaços para permanência tomando o rio

como elemento natural de orientação. Constroem portanto, um território de vivência,

onde a terra se constitui não apenas um espaço para a prática da caça, atividade

pioneira do grupo, mas também para a prática da agricultura, principalmente pelo

plantio da mandioca, matéria prima para a produção da farinha e/ou de outros

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produtos agrícolas, pois era uma área de mata e de solo fértil, portanto, um indicador

fundamental para sua reprodução social, mas também para a construção de sua

identidade. Esta concepção é referenciada nas análises de Raffestin (2009), para

quem o espaço antecede o território, porque este se constitui a partir do espaço que

se configura como o resultado de um ator que realiza uma ação.

Em seus discursos, os agricultores relatam que por volta do final dos anos

1960 não havia moradores naquela região e por isso mesmo acreditavam serem

eles os donos da terra, mesmo com a existência de ―picos‖ abertos na mata, que nos

boatos locais indicavam que as terras estavam sendo preparadas para serem

utilizadas. Uma das cogitações tinha relação com a construção da Rodovia Belém-

Brasília, que na época estava sendo pavimentada.

Por volta dos anos 1970, notícias de que a terra tinha dono chegou à

comunidade. A indicação era que ela pertenceria ao grupo JONASA, grande

detentor de terras e que atuava em vários ramos da economia na Amazônia. Esse

episódio passou a comprometer o desenvolvimento das atividades econômicas,

inclusive do plantio da mandioca4, porque diante da incerteza de permanência na

área, passou a haver um desestímulo dos agricultores. Na época, os que se

intitulavam donos da terra já haviam retirado algumas famílias de uma área próxima

dali, restando aos agricultores, lutarem pela terra, como evidencia o discurso a

seguir:

A gente não tinha pra quem correr, ficava aqui... Sindicato... Nesse tempo... Não tinha muito abertura pra gente. Foi, foi indo. A gente começou a se mexer. Já quando mexeram com as terras que pertencem a Santa Ana, a gente começou a ir para o INCRA, começamos a reivindicar. A gente não tinha uma certeza. Continuamos aqui, mas sempre com aquela suspeita. Ficou essas catorze famílias aqui, e doze para lá (do outro lado da margem do rio). E um dia a gente estava trabalhando do outro lado do rio e chegou quatro homens: três funcionários da JONASA e um oficial de justiça... De São Miguel, um moreno. Chamaram nós lá, na época. Perguntei o que eles queriam, disseram que tinham vindo conversar sobre a terra. Que puxou um papel sobre a terra, que estava com a ordem da juíza para desocupar a terra. Era da JONASA. Eu disse: ―Se os nossos companheiros aqui tudinho,

4 A mandioca é um arbusto pertencente à ordem Malpighiales, família Euphorbiaceae, gênero

Manihot e espécie Manihot esculenta Crantz. É a única, dentre as 98 espécies conhecidas da família Euphorbiaceae, cultivada para fins de alimentação. Estudos indicam que a planta ancestral da mandioca é natural de vegetação de galeria associada a rios, na zona de transição entre a floresta Amazônica e o Cerrado, próxima às fronteiras entre Peru e Brasil e as mais recentes pesquisas agrícolas e arqueológicas indicam que, provavelmente, a região amazonense foi o berço da mandioca, enquanto versões alternativas dão conta de seu surgimento no Peru (região dos Andes) ou mesmo na África (SEBRAE, 2008, p.08).

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se eles não disser que sai, a gente não vai sair‖. Aí eles disseram não [...] fiquem na certeza que nós também não vamos sair. Eu sei que ele insistiu muito e depois eu disse: - Rapaz, nós não vamos sair, vamos ter que sair tudo, porque a gente não tem pra onde ir, vamos ficar aqui mesmo, e continuamos aí (AFC, 04).

Dessa forma, em meio a essa formação da comunidade enquanto território, a

convivência permitiu que os agricultores familiares, por meio da luta pela terra,

construíssem um saber político que possibilitou a sua territorialização. Essa luta pela

terra é referenciada no estudo de Castro (2000, p. 176), ao considerar que ―no plano

local, pode-se depreender que os conflitos pela apropriação do território estão em

relação direta com as necessidades de reprodução‖, ou de Loureiro (2009), para

quem a história da Região Amazônica caracteriza-se, também, pela reação e luta da

população local, que procura garantir para si uma forma de vida mais livre,

autônoma e própria; por uma terra que seja legitimamente de seus habitantes, a que

têm direito e pela qual se comprometem e lutam.

De acordo com informação local, a década de 1980 nessa região do nordeste

paraense foi marcada por muitos conflitos agrários, e diante de uma iminente

expulsão de suas terras, os agricultores organizaram-se no sentido de garantirem a

sua permanência. Uma comissão de representantes das comunidades Santa Ana e

Santo Antônio do Piripindeua dirigiu-se à sede do INCRA, em Belém, com o objetivo

de garantir a institucionalização da terra, o que só ocorreu cinco anos depois,

quando o INCRA retornou na área para fazer a demarcação oficial, demarcação que

aconteceu tardiamente para algumas famílias que, diante da insegurança que

aquela situação provocava, desistiram e migraram para outros municípios. Somente

em 1995 a demarcação dos lotes foi, de fato, efetivada.

Com a demarcação planejada e executada pelo INCRA, algumas famílias

sentiram-se prejudicadas, uma vez que não correspondeu aos mesmos limites

organizados pelos agricultores, a partir das margens do rio, como mostra o discurso

a seguir:

Depois que veio às demarcações, quase dava confusão porque, se por um acaso meu terreno era daqui para cá (gestos), já veio diferente, que passou travessa do outro lado do Rio por lá, a outra mais em cima. Cortou de lá para cá e o fundo desse terreno passou ali. Atravessamos o rio com tudo, o rio não podia ser mais a divisão. Quem morava aqui já foi mais pra frente, gente que perdeu o sítio para outro (AFC, 04).

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―Perder o sitio para outro‖ significou muito mais do que apenas perder ―seu

terreno‖, mesmo recebendo outro, uma vez que, na minha percepção, constituiu-se

uma perda econômica, e, sobretudo, numa perda de algo significativo para sua

identidade, o que provocou ―desgostos‖ e mais uma vez a saída de alguns

agricultores familiares daquele território.

Para Haesbaert (2004, p. 01), ―o território nasce com uma dupla conotação,

material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territórium

quanto de térreo-territoir (terror, aterrorizar)‖. Relaciona-se com a dominação

(jurídico-política) da terra e com a imposição do terror, do medo, mas ao mesmo

tempo, para aqueles que podem usufruí-lo, o território infunde a ―identificação‖

(positiva) e a efetiva ―apropriação‖.

Na realidade estudada, há indicações de que antes mesmo da

institucionalização do assentamento, algumas formas de identificação já haviam sido

construídas: a luta pela educação escolar para os filhos; a participação nos cursos

pelo Sistema Radiofônico de Bragança; ou a constituição de práticas religiosas, pois,

os agricultores passaram a realizar celebrações litúrgicas na vila e não mais na

comunidade vizinha. O discurso de um dos entrevistados revela que com estas

práticas, tinham a intenção de fundar a comunidade e assim construírem uma

estratégia para garantirem direitos fundamentais de permanência no território

constituído:

Eu moro aqui vai fazer 30 anos dia 02 de maio, por ai assim... Mas antes da comunidade, a gente trabalhava em grupo, e fazia parte da Comunidade Santa Ana. Depois, pelo decorrer do tempo, ia ficando um pouco meio distante, mas tinha vez que a gente já retornava cansado, e achamos por bem conversar com o pessoal formado. Nesse tempo, tinha o Mobral, depois do Mobral passamos a fazer o Estudo Radiofônico de Bragança... (...). A escola começou antes de fundar a comunidade mesmo... Primeiro veio a escola, e o rádio-posto, depois do Mobral a gente passou para o rádio-posto e depois, conversando com o pessoal, a gente chegou a fundar a comunidade. Era só eu e meu irmão, íamos para Santa Ana, toda quarta-feira, sábado e domingo. Saía daqui sábado, chegava só domingo à tarde. A gente trabalhava de mutirão, a gente falava com o pessoal: - rapaz, vamos fundar a comunidade aqui pra gente, que irá ficar melhor pra gente conseguir as coisas. Trazer estrada pra cá. Não tinha estrada, a gente andava de animal. Tinha um ramalzinho de madeireiro (AFC, 04).

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O território de vivência se constitui. De acordo com Raffestin (2009, P.26), é

―apropriando-se concretamente ou abstratamente (por exemplo, através da

representação) de um espaço, [que] o ator o territorializa‖. Isso porque em, sua

análise, o sujeito projeta no espaço um trabalho para construir um território, que

consiste em ―energia e informação, adaptando as condições dadas às necessidades

de uma comunidade ou sociedade‖.

É nesse contexto de luta pela permanência na terra e/ou de construção de

identidade que eles constituem as primeiras casas de farinha na comunidade. Para

Castro (2000, p. 176), a luta pela posse da terra é associada à luta pelo trabalho,

uma vez que ―não é a forma salarial que se encontra em questão‖.

Neste processo, ao referirem-se a estas casas, os sujeitos entrevistados a

caracterizam como um sistema ―manual‖. Neste sistema, a maioria das famílias

possuía sua própria casa de farinha e utilizavam instrumentos como o tipiti e o ralo,

ao invés da prensa e da cevadeira. Com o passar do tempo, algumas famílias

conseguiram agregar à força manual algumas tecnologias que modificaram o fazer

farinha.

Atualmente, nas casas de farinha que se localizam em lugares mais distantes

da vila, as famílias continuam agregando tecnologia ao processo de fazer farinha,

enquanto que algumas daquelas que estão localizadas próximas da Vila foram

desativadas após a implantação da Casa de Farinha Comunitária.

A Casa de Farinha Comunitária foi construída na vila da comunidade e

configura-se como um novo sistema de fazer farinha, a partir do qual, as famílias

optaram por desativar suas casas de farinhas em virtude das facilidades que este

proporcionava.

As residências estão dispostas no território da comunidade, seguindo suas

principais vias de acesso. As estruturas de algumas casas, pela semelhança

arquitetônica, demonstram serem casas de projeto, como se referem às casas

construídas em áreas de assentamento pelo INCRA, embora haja ocorrências de

casas construídas de outros formatos e materiais.

A comunidade hoje, juntada tudo, são quarenta e poucas famílias. Só aqui na vila são quarenta e duas, mas tem família que tem a casa, mas mora no lote. Buscando no total, apesar de que nem todo participa da comunidade, são 56 famílias. Tem quem não frequenta a comunidade pra nada, mas está dentro do setor, a gente conta (AFC, 04).

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Esse discurso revela que nem todas as famílias moram na vila da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua e algumas só utilizam as casas da vila

nos finais de semana, quando deixam suas casas nos lotes agrícolas. Como mostra

a figura 09, é na vila onde os espaços de convivência social estão localizados,

desde as igrejas, o campo de futebol e a sede da associação dos agricultores e

agricultoras, mas nem todas as famílias participam dos movimentos que envolvem a

comunidade.

Figura 9: Mapa da área de pesquisa das casas de farinha. Fonte: Silva (2010).

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As casas de farinha analisadas estão organizadas no território da comunidade

da seguinte maneira: a primeira casa de farinha, que pode ser visualizada por quem

chega à comunidade, é a Casa de Farinha Comunitária, que possui uma

proximidade com outros dois espaços de sociabilidade significativos na comunidade:

o campo de futebol e a escola. A construção dessa casa nesse local deveu-se por

permitir a facilidade de acesso por quem se desloca de comunidades vizinhas, já

que seu projeto inicial deveria atender além da comunidade Santo Antônio do

Piripindeua, mais quatro comunidades.

A Casa de Farinha Familiar foi construída em um terreno agrícola localizado

próximo à vila, distante uns cem metros da última casa. Na entrada do terreno, tem-

se a casa de morada da família e nos fundos do quintal, a casa de farinha.

A Casa de Farinha Mutirão fica localizada a dois quilômetros da Vila Santo

Antônio do Piripindeua. O acesso a essa casa é feito primeiro pela estrada vicinal

que corta a vila da comunidade. Desta vicinal, do lado esquerdo, encontra-se um

estreito ramal que, embora de maneira precária, ainda é trafegável.

2.2. A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS NAS CASAS

DE FARINHA

Ao considerar as casas de farinha enquanto espaços socioeducativos e de

produção de saberes que será analisado na seção a seguir, porque abrigam

relações de (con)vivências multidimensionais, busca-se uma aproximação com o

estudo realizado por Bourdieu (1999), que analisou a organização da Casa Kabyle.

Sua escrita antropológica revela a distribuição do espaço interno dessa casa,

considera as posições dos objetos e dos sujeitos não como algo fixo, mas como

relações homólogas que permitem a incorporação de novos elementos. O espaço é

configurado numa ordem lógica, a partir das práticas e movimentos produzidos de

responsabilidade feminina ou masculina.

Monteiro (1999), ao analisar o texto de Bourdieu, afirma que cada elemento

observado no interior da casa não possui o caráter de causalidade nem sua forma é

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gratuita, ou seja, a posição no qual se encontra possui um sentido e a necessidade

de sua forma está inscrita na relação estabelecida com todos os outros.

Na ideia de Certeau (2008, p. 202), ―espaço é o efeito produzido pelas

operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar

em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais‖.

Esta concepção de espaço como “lugar praticado‖ ampara a análise da organização

e a apropriação dos espaços das casas de farinha, que os produtores de farinha

estabelecem no processo de produção e relações de (con)vivência.

Para essa análise, considero importante identificar que práticas estão

contidas e orientam a organização interna dos espaços das casas de farinha. Suas

definições estão referenciadas nos estudos do SEBRAE (2008) e nas observações

empíricas realizadas nessas casas:

a) a prática de descascamento da mandioca, tarefa iniciada assim que as

raízes chegam do roçado à casa de farinha, as famílias realizam essa etapa de

forma manual;

b) a prática da lavagem da mandioca, tarefa que ocorre após a mandioca ser

descascada, quando são lavadas para retirada de impurezas;

c) a prática da ralação, realizada na cevadeira, onde a mandioca é reduzida

em partículas uniformes e não muito finas;

d) a prática da prensagem, quando se retira de 20 a 30% do volume da

massa, por meio da sua compressão em equipamento manual ou hidráulico. É um

processo importante, pois evita a gomificação da massa. O líquido extraído,

chamado de manipueira, deve ser tratado, pois é altamente tóxico;

e) a prática do esfarelamento, tarefa em que os blocos são compactados

quando tirados das prensas e que devem ser novamente quebrados em partículas.

O equipamento pode ser específico para este fim, mas podem ser utilizadas como

alternativa, (é o caso da casa de farinha comunitária) a máquinas de ralação das

raízes. Se peneirada, (sistema adotado pela Casa Familiar e Mutirão) extrai-se a

crueira (restos de casca e fibras), frequentemente aproveitada para compor a ração

animal;

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f) a prática da torração, processo-chave da produção da farinha. Há vários

tipos de fornos para este processo, os quais modificam o resultado final e a

produtividade da casa de farinha. Na torração é que se determina a cor, o sabor e o

tempo de conservação do produto;

g) a prática da peneiragem, em que a farinha já torrada é separada de acordo

com sua granulação (mais grossa ou mais fina). As partículas excessivamente

grandes podem ser moídas novamente;

h) a prática do acondicionamento ou armazenamento, quando se deixa a

farinha esfriar antes de embalá-la em sacos de náilon (para venda em

supermercados e mercearias). Caso o destino seja a feira, ou seja, a venda sem

intermediário, a embalagem é em sacos de polietileno para melhor conservação.

No seu conjunto, estas práticas orientam a organização social dos espaços

das casas de farinha, que são materializadas em diferentes formas arquitetônicas e

contextos organizativos e configuram-se em espaços de apropriações diversos,

onde os sujeitos produzem e incorporam múltiplos significados para um mesmo

lugar.

Essas casas foram consideradas pelos sujeitos da pesquisa como

importantes, pelo fato de que a maioria das famílias tem nelas sua principal fonte de

renda e por se constituírem em um dos espaços de fortalecimento da cultura local e

onde as territorialidades do fazer farinha são constituídas. Neste sentido, a

compreensão de territorialidade está baseada em Saquet (2007, p. 129), para quem:

A territorialidade é o acontecer de todas as atividades cotidianas, seja no espaço do trabalho, do lazer, da igreja, da família, da escola etc., resultado e determinante do processo de produção de cada território, de cada lugar; é múltipla, e por isso, os territórios também o são, revelando a complexidade social e, ao mesmo tempo, as relações de dominação de indivíduos ou grupos sociais com uma parcela do espaço geográfico, outros indivíduos, objetos, relações.

A partir das informações dos sujeitos entrevistados e das observações

realizadas, para efeito de análise, essas casas foram agrupadas de acordo com os

processos organizativos de produção, com as seguintes denominações: Familiar,

Mutirão e Comunitária.

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2.2.1- A Casa de Farinha Familiar

A estrutura arquitetônica dessa casa de farinha, de acordo com

manifestações locais, ainda guarda muito dos traços característicos das casas de

farinha mais antigas da comunidade. Segundo o depoimento de um dos

entrevistados, quando a família proprietária chegou à comunidade, esta casa já

existia:

Estou aqui nessa comunidade há cinco anos. Vim para cá porque meu sogro morava pra cá, pai da mulher. Eles moravam aí e eu ficava pra lá, numa terra que brejava, não prestava pra mandioca, só para pimenta. Aí ele falou: ―_Rapaz, lá de vez em quando parece um querendo vender terreno. Quando parecer um lá, que seja bom me avisa‖. Aí apareceu esse e comprei (AFF, 01).

Este discurso demonstra que o terreno é apropriado por meio da compra, e

que a mobilidade da família foi justificada e influenciada pela possibilidade que

tinham de continuar a prática de fazer farinha, de construírem um território de

vivência e de estreitarem os laços familiares. Aqui, a noção de território relacionada

à mobilidade remete à concepção de Saquet e Mondardo (2008, p.01), para quem:

As migrações constituem uma ―experiência integrada‖ do espaço, sendo, entretanto, possível somente se os migrantes estiverem articulados em rede, através de múltiplas relações que, muitas vezes, estendem-se do local ao global. Entre os territórios de origem e de destino, há várias relações e vínculos sociais realizados pelos migrantes quando percorrem suas trajetórias e quando se reterritorializam. A construção dos territórios, na migração, passa por uma dinâmica em redes que conectam diferentes nós interligados através dos vínculos e dos contatos estabelecidos.

Esse espaço foi, neste estudo, denominado de Casa de Farinha Familiar pelo

fato de que é o núcleo familiar (pais e filhos) que constituem a força de trabalho no

fazer farinha. Na percepção de um dos agricultores entrevistados, a participação

familiar no processo de produção garante sua reprodução social, conforme indica o

depoimento a seguir: ―A casa de farinha, para mim, é só pra gente de casa mesmo

[...]. Tem tanta importância que dali tô tirando o pão de cada dia, direto, toda

semana, na casa de farinha‖ (AFF, 01).

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A forma de organização dessa atividade produtiva aproxima a família por

meio de laços de solidariedade e de colaboração remete à noção de sociabilidade

de Martins (2008, p. 32), para quem o trabalhador ―em sua produção de subsistência

se produzia (e se produz ainda) um mundo de relações sociais não capitalistas‖, ou,

no sentido familiar e comunitário.

De acordo com as observações, todo processo que envolve o fazer farinha

nessa casa é perpassado por relações de (con)vivência familiar5, que se constituem

em um dos tipos de relações presente no processo de organização dessa prática e

fundamentam a necessidade de seus participantes se reproduzirem econômica e

culturalmente.

O agricultor entrevistado dessa casa de farinha informou, no entanto, que

algumas vezes é necessário recorrer ao pagamento de diárias, em face da

necessidade do apoio de outras pessoas que fazem parte da relação de parentesco

do grupo familiar, para participarem do processo produtivo, especialmente da prática

de descascamento. Em geral, as mulheres são convidadas para a participação

nessa prática.

A prática de fazer farinha, nas casas, pode ser considerada como um trabalho

culinário, que na perspectiva concebida por Certeau (2008, p, 220), ―aparece sem

mistério ou grandeza, mas é desenvolvido numa montagem complexa de coisas a

fazer, seguindo uma sequência lógica pré-determinada‖. Assim, numa sequência

lógica, a organização e as práticas desta casa são realizadas, principalmente, entre

os componentes do grupo familiar.

Ao observar essa organização, percebi que a realização das práticas

guarda uma questão de gênero, em que há uma predominância masculina. Dos

nove espaços onde se executa o fazer farinha, sete são sinalizados como espaços

onde os homens possuem maior participação e dois são identificados como espaços

coletivos, com a predominância de mulheres e crianças como é possível observar na

figura 10.

5 No período em que a pesquisa de campo foi realizada, do grupo familiar, apenas o pai e os três filhos menores (os dois meninos e uma menina) desenvolviam as atividades do fazer farinha, em decorrência de fatores externos à vontade dos sujeitos que impossibilitou a presenças da mãe e da filha adolescente durante o período da pesquisa de campo.

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A figura a seguir é uma representação visual da forma como é organizado o

espaço da Casa Familiar:

O lugar destinado ao processo de descasca das raízes de mandioca fica

localizado do lado direito da casa. Observei que as raízes são depositadas nesse

espaço pela facilidade da entrada do carro de boi e por permitir que a família,

principalmente mulheres e crianças, se organizem para desenvolver a prática do

descascamento. As mandiocas, após serem descascadas, são arremessadas para

dentro de uma grande bacia feita de pneu de trator, onde depois de lavadas são

postas para ―pubar‖, condição que, de acordo com os saberes locais, classifica o tipo

de farinha a ser produzido. Desse recipiente são retiradas principalmente pelo pai,

que as coloca na caixa para serem raladas, prática que é denominada pela família

responsável pela Casa Familiar de sevar. Esta prática caracteriza-se por ser uma

atividade masculina, sendo as mulheres e crianças preservadas dessa função; estas

são orientadas a manterem-se distantes durante a realização desta prática.

Cabe ao filho mais velho a prática de acondicionar a massa proveniente da

mandioca sevada, sempre sob o olhar do pai que, próximo da prensa, orienta o filho

Espaços com maior participação masculina.

Espaços coletivos, com maior participação de mulheres e crianças.

2

7

5 4

8

3

6

9

1

Figura 10 – Esquema da Casa de farinha Familiar. Fonte: Silva (2010)

1. Onde se depositam as raízes de mandioca;

2. Bacia de pneu;

3. Depósito e quarto do motor;

4. Cevadeira;

5. Prensa;

6. Gamela com peneira;

7. Forno;

8. Gamela;

9. Balança.

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na prática do prensar: ―Olha, a prensa já está pra sair‖ (AFF, 01). Essa prática fica

localizada também na parte dos fundos da casa. No seu desenvolvimento, são

incorporadas grandes pedras que ajudam como contrapeso. Essa etapa exige mais

esforço físico, que é driblado, algumas vezes, pelos malabarismos corporais por

parte de seus usuários, como pode ser observado na figura a seguir.

Figura 11 - Os ―malabarismos‖ do fazer farinha. Fonte: Silva (2010)

De acordo com as observações realizadas durante a pesquisa, quando a

massa está no ponto, é função do pai retirá-la. Ao retirá-la da prensa, é colocada na

gamela6, que tem sobre si uma grande peneira que é manuseada num vai e vem

incessantes, pelos irmãos mais novos, a menina e o menino, que se revezam na

tarefa de colocar a massa e peneirar.

Os conflitos entre os dois são rotineiros, pois preferem peneirar a colocar a

massa, mas são controlados pela imposição do pai, que os orienta no sentido de

concluir esta prática. O ritmo imposto ao trabalho depende da quantidade de farinha

a ser produzida. Quando uma das crianças deixa sua tarefa e envolve-se em

brincadeiras, o pai pede atenção para terminarem de fazer a farinha logo. Quando a

produção é menor, geralmente para o consumo da família, as crianças possuem

mais liberdade de realizarem outras atividades no espaço da casa de farinha.

6 Como denomina a família para o que se convencionou nas demais casas chamar de coxa ou canoa,

que é construída de madeira ocada e esculpidas artesanalmente na forma de uma canoa.

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Peneirada a massa, o pai passa o controle do rodo para o filho mais velho

que, utilizando-se de baldes, despeja-a no forno, mas logo depois retoma o controle.

O forno fica localizado do lado esquerdo da casa, estrategicamente posicionado

para proteger os torradores da fumaça e da temperatura elevada do fogo.

Figura 12 - A prática da torração de farinha. Fonte: Silva (2010).

Depois do pai, o filho mais velho é o outro que detém o controle do rodo por

mais tempo, como mostra a figura 12. Em determinada ocasião, durante o trabalho

de campo, o tio que estava presente, se dirigindo ao sobrinho, disse-lhe: ―Tem que

torrar farinha, tem que aprender!‖ Ao responder-lhe que não gostava, pois ficava

todo suado, seu tio falou ainda: ―E quando você arrumar mulher?‖ Este é apenas um

dos diálogos presenciados que nos mostram a preocupação de ensinar os filhos

todas às práticas, inclusive da torração, uma vez que esta é na percepção dos

sujeitos, uma das condições para que possam constituir família.

Para Heller (2008), a assimilação da manipulação das coisas, incluindo o

domínio da natureza e das mediações sociais, é condição de amadurecimento do

homem até tornar-se adulto na cotidianidade, ela começa sempre por grupos, entre

os quais a família, que procura mediar o indivíduo e os costumes, as normas e a

ética de interações maiores.

Nessa prática da torração, a transmissão do saber fazer é realizada mais por

meio de gestos e trocas de percepções do que pela oralidade. Por exemplo, os

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sujeitos percebem pelo cheiro da farinha torrada que está na hora de retirá-la, então,

como de costume, o filho mais velho se aproxima com um balde que é entregue ao

pai que assume o controle do forno e passa a ―puxar‖ 7 a farinha, amontoando-a,

facilitando sua retirada.

Em muitos movimentos realizados, não há a necessidade de conversarem

sobre o passo seguinte, a orientação é feita por meio de sinais corporais ou pelo

conhecimento já acumulado sobre essa prática. Este conhecimento, segundo a

concepção de Castro (2000), ocorre sob padrões de informalidade, cuja

sociabilidade e valores de grupo contam na invenção, origina-se na coletividade e

constroem-se através de gerações.

Assim, é possível inferir que na forma de organização cotidiana da Casa de

Farinha Familiar, o pai é o direcionador do trabalho, ele é quem distribui e orienta a

realização das práticas inerentes ao processo de fazer farinha. É também

consultado durante todo o processo, sendo nomeado pelos demais como o

possuidor e socializador do conhecimento necessário à sua realização.

As manifestações dos sujeitos e as observações realizadas indicam que esta

casa de farinha é um espaço onde abriga a família proprietária e/ou famílias, uma

vez que, em determinadas situações, é preciso contratar uma diarista para o

descascamento da mandioca. Esta diarista possui uma relação de parentesco com a

família proprietária:

Eu chego cedo. Às vezes, quando a mandioca ainda não está no retiro, eu estou ajudando em alguma coisa ali pra ir mais em frente logo, eu raspei até umas onze horas. Em casa, levanto cedo e vou pra lá pro retiro do seu..., às vezes quando não tem nada pra fazer no retiro eu ajudo ele a fazer alguma coisa lá, raspo até umas onze horas aí almoço e assim vai o meu dia a dia. Fico raspando mandioca até umas cinco horas (...), porque de manhã eu não posso deixar ele (o filho) sozinho aqui (em casa) aí vão pra aula e da aula vai, mais eu, pro retiro, e fica lá, e aí têm outros que estudam à tarde, já ficam lá, até umas onze horas. Os meninos são danados e eu falo pra eles não estarem se machucando (AFF, 02).

Dessa maneira, as crianças participam de algumas práticas do fazer farinha.

Apropriam-se do espaço, por meio das relações de (con)vivência, brincando e

interagindo em famílias.

7 Expressão utilizada pelos agricultores para designar o ato de torrar a farinha, em virtude dos movimentos

realizados com o auxílio do rodo dentro do forno.

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Figura 13- A brincadeira na casa familiar (Fonte: SILVA, 2010).

Os praticantes desenvolvem ―estratégias de combatentes‖ que, ocorrem em

espaços instituídos e ―caracterizam a atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos

que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de

representações estabelecidas‖ (Certeau, 2008, p.79). Nesse sentido, o espaço da

casa de farinha é também apropriado pelas crianças para as brincadeiras. A figura

13 mostra esta apropriação, onde as crianças constroem cata-ventos de folhas de

árvores e brincam na realização dessa prática, o que evidencia que para elas, esse

espaço também têm o sentido da ludicidade, uma vez que entre uma prática e outra

se tornam possíveis esses momentos.

2.2.2- A Casa de Farinha Mutirão

O processo produtivo do fazer farinha nessa casa é dinamizado a partir das

relações de (con)vivência familiar ou de cooperação que são construídas pelos

agricultores/as em suas atividades cotidianas. Essas atividades são realizadas pela

família agricultora camponesa proprietária da casa, mas estende-se, algumas vezes,

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aos vizinhos e parentes que moram próximo e com os quais praticam a chamada

ajuda mútua, como revela o discurso a seguir:

Ontem, nós era cinco, fomos roçar pra ele aqui, hoje eu já não pude ir porque eu tava aqui. O meu cunhado que tá trabalhando ali, porque não foi trabalhar na farinha, mas ele já foi fazer o pedacinho que faltava. Um ajudando o outro é muito bom, que nem hoje, hoje ela estava me ajudando aqui na farinha. Quando for a dela, eu já vou ajudar ela, aí se eu não puder ir, e tiver serviço com meus companheiros pra lá [na roça], já mando a mulher: vá ajudar ela, porque ela estava me ajudando naquele dia. É assim que é. O meu sogro ali, se ele precisar de um serviço lá, se eu não tiver marcado com meus companheiros, eu deixo o meu aqui e vou ajudar ele. Sempre quando vem de lá vem dois me ajudar. É assim que vai (AFM, 01).

Nesse sentido, as práticas desenvolvidas no espaço desta casa, as de fazer

farinha, mediadas pelas relações de cooperação ou de parentesco que certa

harmonia de experiências. Isso acontece, segundo Castro (2000) por haver uma

integração entre a vida econômica e social, uma vez que a produção faz parte da

cadeia de sociabilidade e a ela é indissociavelmente ligada, facilitando, entre outros,

encontros interfamiliares.

Ela é importante, porque ela também faz parte da minha vida, porque eu tenho que trabalhar nela para ser sustentada também né, aqui na farinha, porque a casa do retiro ela é o retiro mesmo pra farinhar. Mas não só pra farinhar. Como a gente faz outro tipo de serviço aqui dentro dela, ela faz parte porque eu tenho que torrar a farinha pra me alimentar, arrumar o dinheiro, né? Da farinha, pra saúde, alimentação e todas as coisas (AFM, 02).

Embora a entrevistada não revele nesse discurso que atividades são

desenvolvidas além do ―farinhar‖, que é como se refere ao fazer farinha, deixa claro

que na casa são efetuados outros serviços que, de acordo com minhas

observações, são serviços que complementam a renda familiar, como por exemplo,

a seleção de castanhas de caju e o beneficiamento das sementes de urucum. Ao

expressar a importância da casa, remete a um sentido de vida, porque é do trabalho

na casa que vem o sustento familiar.

A figura 14 é uma representação visual da Casa Mutirão, e mostra a maneira

como se dá a apropriação de seu espaço por meio da realização das práticas de

fazer farinha:

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Figura 14 - Esquema da Casa de Farinha Mutirão. Fonte: Silva (2010).

As observações realizadas durante a pesquisa revelam que nessa casa

existem dois espaços para a prática do descascamento: um dos espaços fica

localizado do lado esquerdo, onde se armazena as raízes de mandioca; e o outro no

lado direito nos fundos da casa, próximo de onde se coloca as raízes para pubar,

facilitando a dinâmica da casa.

Como mostra a figura 15, os fornos, além da finalidade principal que é a de

torrar a farinha, são utilizados também como recipientes onde são lavadas as raízes

de mandioca já descascadas. Essa prática informa o ―saber zelar‖, que é executada

pelas mulheres, com alguma participação dos homens. Elas se revezam entre lavar

e carregar a água usada nessa tarefa. A não existência de recipientes adequados

Espaços com maior participação feminina.

Espaços com maior participação masculina.

Espaço coletivo, com maior participação de crianças.

Espaço com graus de participação femininos e masculinos semelhantes.

6

7

6

8

9

4 3

2 2

1

5

1

1. Locais do descascamento;

2. Bacias de pneu onde se

lava as raízes;

3. Cevadeira;

4. Prensa;

5. Canoa onde a massa é

peneirada;

6. Fornos onde se escalda a

massa;

7. Forno onde se torra a

farinha;

8. Canoa para resfriamento;

9. Mesa onde se joga

dominó.

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para lavar as raízes de mandioca exige que reinventem estratégias e adéquem

utensílios para realizar a tarefa.

Figura 15 - O preparo das raízes de mandioca para sevar. Fonte: Silva (2010).

Em seguida, as raízes de mandiocas descascadas são colocadas nas bacias

no quintal da casa de farinha pelas mulheres para ―pubar‖, ou seja, por de molho,

um conhecimento que permanece entre os agricultores e que os permite fazer a

farinha misturada.

No dia anterior a torração da farinha, as raízes descascadas são colocadas

pelas mulheres na cevadeira, para dar prosseguimento à tarefa seguinte, a de sevar

quando o motor, acoplado a cevadeira, é ligado, cujo som é contrastante com o

silêncio da casa.

A tarefa de sevar é realizada no lado esquerdo, nos fundos da casa, próximo

da prensa, local para onde a massa é levada posteriormente. A proximidade dos

lugares de realização das práticas materializa o saber organizar o espaço e facilita a

dinâmica da casa. Ao referir-se a essa prática antes da introdução do motor, um

agricultor expressa que:

Era na mão de pilão. Depois que tirava da água, metia numa canoa que nem essa daqui e com uma mão de pilão esbandalhava todinha a mandioca (...). Hoje em dia tá muito fácil. Vai na vila compra um litro de gasolina. Vai na roça tira a mandioca. Empurra daqui, de repente tem mandioca sevada aí (AFM, 01).

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Triturar as raízes se tornou ―mais fácil‖ com a inserção da cevadeira. No

entanto, sevar a mandioca requer saber manusear as raízes. Percebi que no início

são sevadas as menos consistentes, ou na expressão local, ―as mais fracas‖, que

são introduzidas com habilidade pelo sevador, utilizando as ―raízes mais fortes‖.

Para evitar o desperdício das raízes, o agricultor utiliza um pouco de massa já

sevada em sua finalização.

Por ser uma prática que exige um acúmulo de conhecimentos, habilidades e

cuidados, é conduzida, na maioria das vezes, pelo filho mais novo de uma família de

oito irmãos, hoje, um pai de família, que herdou o ofício e lidera não apenas a

organização da casa, mas, outras atividades que envolvem o trabalho na agricultura,

na área de localização da casa. Essa liderança é fortemente marcada na

comunidade, tanto que as referências feitas a esta casa de farinha, logo são

associadas à sua pessoa. Essa manutenção do ofício e do papel social na

comunidade remete à ideia de que o ser humano, numa ―assimilação ativa‖, não é

só capaz de ―imitar momentos e funções isoladas, mas, inteiros modos de condutas

e papéis‖ (HELLER, 2008, p. 116).

Nessa casa de farinha, a massa sevada é acondicionada com zelo pelo

praticante ―pra que não caia sujeira‖ (AFM, 01) até o dia seguinte, quando é

prensada. Identifiquei, que o prensar nesta casa é uma prática de controle

masculino, como mostra a figura 16. Por ser uma prensa construída de forma

artesanal, funciona por meio de uma alavanca e, em geral, ela é manuseada por

dois praticantes, sendo um mais experiente, que orienta o mais jovem, que ao

realizar o revezamento da função, o imita, pois seu manuseio exige habilidade para

equilibrar os pesos na direção certa para que ocorra a compressão da massa.

Embora tenha observado que essa prática é realizada apenas por homens, de

acordo com uma das entrevistadas, quando eles não estão presentes, as mulheres

assumem o controle: ―eu descasco mandioca, mas eu sou mais de torrar farinha,

eles só trabalham com a prensa, e quando não tem ninguém pra trabalhar com a

prensa, eu mesmo trabalho com a prensa e torro farinha‖ (AFM, 09).

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Figura 16 - A prática de prensar a massa. Fonte: Silva (2010).

A prática de peneirar é realizada no centro da casa, próximo da prensa, de

onde se recebe a massa compactada e dos fornos, seu próximo destino. É

realizada tendo como base uma ―canoa‖ onde se acopla uma peneira. Seu manuseio

tem o controle das mulheres, que contam, algumas vezes, com ajuda das mais

jovens. De maneira peculiar, uma das mulheres, ao referir-se sobre sua participação

nessa prática, expressou: ―essa é minha função‖ (AFM, 04). Ou seja, ela possui o

domínio dessa prática e demonstra conhecimento e habilidade em peneirar: ―quando

a massa não está boa, ela volta pra prensa [...], no período da chuva a massa está

mais molhada‖ (AFM, 04). Ela ajuda os praticantes em outras atividades e recebe o

apoio familiar no seu dia de fazer a farinha ou nas atividades de seu roçado, como

mostra o depoimento a seguir:

É minha irmã que é minha companheira aqui, ela quer, mas não dá conta. Ela ajuda, faz só peneirar e minha outra irmã fica em casa com meu pai e minha mãe e meus meninos. Ela tem a rocinha dela, ela não dá conta, mas ela quer brocar, ela quer e a gente broca o pedacinho dela (AFM, 01).

De acordo com as observações, depois da massa peneirada, as mulheres

utilizam cuias8 para arremessá-la aos fornos, e assim dar início à torração. Essa

prática é de responsabilidade de homens e mulheres, sendo que um homem mais 8 A cuia é um utensílio muito usado pelos agricultores nas casas de farinha. É confeccionada a partir

do fruto de uma planta chamada cuieira, a coité. Conforme o saber popular, o costume de utilizá-la como utensílio doméstico vem dos indígenas.

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jovem e uma mulher são responsáveis pela etapa inicial de escaldar a massa,

enquanto o agricultor mais experiente fica com a função de torrá-la. Ele possui uma

técnica diferenciada de torrar a massa escaldada: ele ―puxa‖ a massa e manuseia o

rodo em um movimento que abrange boa parte do forno. Essa técnica, repetida de

forma sequencial aprimora a prática da torração e produz formas de saberes.

Próxima dos fornos, no centro da casa, fica a canoa9, que serve para

acondicionar a farinha depois de pronta e resfriá-la. De acordo com informações dos

torradores, esse saber evita que a farinha crie bolores e perca qualidade depois de

embalada. Nessa mesma canoa onde se resfria a farinha, os agricultores iniciam o

processo de medição e embalagem. Como não possuem balança para pesar,

materializam o saber medir, utilizando como medição o litro. Depois de embalada, a

farinha é acondicionada nos sacos e armazenada no centro da casa de farinha,

entre a canoas e os fornos, de forma a ficar protegida da chuva.

Ao analisar a apropriação dessa casa pelos sujeitos praticantes, fica

evidenciado que pelo menos dois lugares recebem maior participação feminina:

onde se lava as raízes de mandioca e onde se peneira a massa. Os lugares que

correspondem às práticas do prensar e o ralar ou sevar recebem mais atenção

masculina, embora, quando solicitadas, as mulheres também contribuam o que não

significa que não haja domínios sociais na realização de algumas das práticas.

Entretanto, o espaço desta casa não é apropriado apenas para fazer farinha.

Se no lado direito são realizadas as práticas da lavagem, prensagem e torração da

farinha, que chega a dificultar a circulação das pessoas pelo movimento dos

torradores no manuseio dos rodos, no lado esquerdo, nos fundos da casa, praticam

o sevar.

Certeau (2008, p. 122) ao referi-se as redes de práticas cotidianas afirma

que os sujeitos ―se movem e deslizam de uma função para outra, pondo em curto

circuito as divisões econômicas sociais e simbólicas‖. Assim, a parte da frente da

casa, do lado esquerdo, é organizada de forma a permitir a realização de outras

práticas, como as rodas de conversa, (realizadas na maioria das vezes no mesmo

9 Expressão utilizada pelos que fazem a farinhada nesta casa para nomear um grande recipiente

construído com madeira ―ocada‖, talhada com instrumentos simples e sustentada por pedaços de madeira para ficar com uma altura de mais ou menos sessenta centímetro do chão.

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lugar onde se pratica o descascamento) onde as crianças são orientadas a

permanecerem ou brincarem ou ainda se distribuem o alimento e se confraternizam.

Nesse deslizamento de funções, agricultores, que são vizinhos e parentes se

ajudam mutuamente, são praticantes desse espaço, apropriam-se dele para jogar

dominó, como mostra a figura 17. Essas partidas de dominó costumam ser

realizadas depois da refeição, no intervalo de um dia de trabalho no roçado. Dessa

maneira, em suas vivências de agricultores, se reúnem na casa para se

alimentarem, descansarem ou jogarem, e assim, educam-se, pois no jogo existem

regras, respeito entre quem perde ou quem ganha, trocam saberes de estrategistas

em momentos de (con)vivências.

Quando Seu... [o prefeito] estava vivo,..., cansaram de reunir o povo aqui tudinho. Vinham reuni aqui, aqui neste retiro. É por isso que estou dizendo, que através desse retiro, conheci várias pessoas que eu não conhecia. Diziam: vamos fazer a reunião aonde? Lá no retiro do..., todo mundo já sabia, todo mundo era convidado. Não tem assento aqui, mas todo mundo sentava por aqui e fazia a reunião deles aqui (AFM, 02).

O depoimento revela que o espaço da casa de farinha é apropriado também

para a realização de reuniões políticas partidárias, ―todo mundo é convidado‖ (AFM,

02). Configura-se então como espaço de participação política, onde é possível

Fig.17 – o jogo de dominó.

Fonte: Silva (2010).

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conhecer pessoas, fortalecer relações de (con)vivência e permitir momentos de

aprendizagens comunitárias.

2.2.3 A Casa de Farinha Comunitária

As relações que orientam a apropriação desse espaço são relações de

(con)vivência que superam o sentido do núcleo familiar, uma vez que o objetivo de

sua construção, seria de atender não apenas as famílias da comunidade Santo

Antonio do Piripindeua, mas também comunidades circunvizinhas.

A Casa de Farinha Comunitária é fruto de uma política pública efetivada a

partir de um convênio celebrado entre a ADA (Agência de Desenvolvimento da

Amazônia) e a Prefeitura de Mãe do Rio (PA), como mostra o depoimento a seguir:

Essa casa de farinha aí, ela foi conseguida através da prefeitura, quando eu era secretário. Ele (o prefeito) era o presidente do COINP [Consórcio Intermunicipal do Nordeste Paraense] e ele fez um projeto com a ADA. Era para construir cinco casas de farinha aqui na região. A ADA era a antiga SUDAM, só que o projeto foi aprovado para cinco, mas só foi liberada para duas. A gente visitou as áreas todinho. Levamos o técnico do COINP para ver as áreas. Ele disse que tinha que ter 100 famílias, cada bloco. Como a gente tinha a comunidade perto, ali da Santana Santa Ana, Santa Rita, Nova Jerusalém, fizemos um bloco de 100 famílias e aqui pegamos São José, Santo Antônio, São Paulo, incluindo Nova Esperança. Conseguimos, colocamos 100 famílias aqui neste bloco (AFC, 04).

Para Saquet (2007, p. 130) ―a apropriação, o controle político e as relações

simbólicas são processos ligados ao capital‖ e conta com o envolvimento de signos,

significados e forças políticas. Nesse sentido, e com base em informação local, a

intenção da política de construção dessa casa de farinha era de ampliar a produção

de farinha, inserindo uma lógica econômica que buscava atingir a estrutura produtiva

dessas comunidades, aproximando-as ainda mais das leis de mercado.

Na percepção de um entrevistado, com a mecanização, alguns agricultores

se mostraram receosos em apropriarem-se dessa casa de farinha, pois ―tinham

medo de perder a farinha‖ (AFC, 05). É possível que esse traço de resistência esteja

associado à falta de experiência na utilização de artefatos mecanizados, mas, foram

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superados pelos agricultores, principalmente os que moram na vila, ao perceberem

que essa inovação da casa, facilitava a prática de fazer farinha; por conseguinte,

passou a ser significativa para a vivência na comunidade, como revela o discurso a

seguir:

A casa de farinha pra mim é importante, [...], porque se não tivesse essa casa farinha, sabe lá o que nós era hoje. Onde nós estava? A casa de farinha hoje é importante porque sem ela a gente não vive não, pode ter mandioca pra fazer, mas sem ela a gente não vive não (AFC, 01).

Essa casa de farinha está localizada em um lugar amplo, de onde se permite

visualizar boa parte da Vila. Compreende um espaço físico em torno de 100 m²,

onde homens, mulheres e crianças, o dinamizam como mostra a figura 18.

Figura 18 – Esquema da casa de farinha Comunitária. Fonte: SILVA (2010).

De acordo com as observações realizadas, a prática do descascamento é

uma prática que incorpora o trabalho familiar com participação de crianças e jovens;

é realizada em quase toda a área frontal da casa. Nesse lugar, a acolhida das raízes

é realizada, amontoando-as para que se inicie o descascamento, prática inerente ao

fazer farinha. É nessa área que os praticantes reúnem-se no início do processo

Espaços com maior participação feminina.

Espaços com maior participação masculina.

Espaço coletivo, com maior participação de crianças.

Espaço com graus de participação femininos e masculinos semelhantes.

1

11

13

10

2

7

4 3

9

8

5

6

12

1. Lugar de descasca da

mandioca;

2. Bacia de pneu;

3. Cevadeira;

4. Prensa;

5. Caixa;

6. Caixa(peneira);

7. Forno mecânico

8. Caixa (esfarelador);

9. Forno mecânico-torra;

10. Caixa (classificatória);

11. Tanques;

12. Balança;

13. Espaço (preparação

dos alimentos).

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produtivo para que possam, além do descascamento, conversar, receber as pessoas

que passam pela casa, algumas vezes para cumprimentá-los, outras para negociar

mercadorias. Nessa área também se prepara os alimentos, prática educativa que

será analisada na seção 3.

No entanto, embora exista essa área onde se pratica o descascamento,

percebi que algumas vezes os produtores já chegam nesta casa com as raízes de

mandioca descascadas, principalmente quando são destinadas a ―pubar‖10. Esta

tarefa é realizada tanto por homens quanto por mulheres, sendo que as mulheres

solicitam a ajuda dos filhos e os orientam sobre a melhor maneira de disporem os

sacos nos tanques com as raízes de mandioca.

A prática da lavagem das raízes de mandioca, de acordo com que observei,

fica na maioria das vezes sob o encargo das mulheres, uma vez que não é uma das

práticas preferidas pelos homens, que só a realizam no caso de pagamento de

diárias. ―Mas a gente tá acostumado, eu não gosto de lavar a mandioca não, mas

quando é prá ganhar dinheiro, a gente faz‖ (AFC, 05).

Figura 19 – A prática da ralação. Fonte: Silva (2010).

Nessa casa de farinha, a prática da ralação, retratada na figura 19, embora

realizada, por vezes sob o controle masculino, também têm uma significativa

participação de algumas mulheres, seja ao ajudarem, na reposição das raízes para

serem sevadas, no manuseio da massa no interior da caixa, ou ainda

10

Refere-se ao processo de deixar as raízes de mandioca já descascadas e embaladas em sacos de náilon nos tanques que ficam localizados no lado externo à casa de farinha.

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compartilhando do controle de sua execução. Nessa casa, é comum as crianças

ficarem observando do lado externo, com seu olhar curioso de aprendiz.

Embora, aparentemente, todos os que ali convivem participem de todo o

processo de fazer farinha, por parte dos sujeitos, há preferências e atribuição de

valores na realização de algumas práticas: ―eu gosto mais de prensar, eu não gosto

de lavar mandioca e quebrar, eu não dou valor, não‖ (AFC, 05). Enquanto o prensar

e o esfarelar na cevadeira são preferência masculina, a prática realizada em

seguida, a de peneirar a massa, é realizada pelas mulheres com alguma

participação dos homens e crianças.

Percebi que a caixa onde peneiram a massa localiza-se próxima dos fornos.

Em movimentos rápidos, homens e mulheres retiram a massa para o escaldamento;

essa proximidade dos utensílios favorece a dinâmica do processo. Com o

escaldamento, a massa adquire uma textura ―embolada‖, proveniente da perda de

líquido e sua tonalidade vai sendo modificada, pois, ―a cor amarela da farinha

depende do escaldamento, quanto mais se escalda, mais amarela fica‖ (AFC, 02).

Essa fala demonstra que a preferência pela cor da farinha depende também de cada

torrador e do seu destino comercial que será analisado na seção 3.

A outra etapa de realização, que consiste no esfarelamento ou na expressão

local ―quebrar a massa‖, é explicada no seguinte depoimento:

A mandioca é sevar e a farinha quando vem escaldada do forno, como estavam fazendo lá, vem pra cargueira pra quebrar ela. Quando a gente escalda, ela fica embolada e tem que quebrar ela pra ficar só aqueles carocinho, para poder torrar (AFC,01).

Essa prática de ―quebrar‖ a massa, referida nesse discurso, é realizada

apenas nessa casa que utiliza a cargueira, como denominam o esfarelador ou, na

falta deste, a cevadeira. Nas demais casas, o quebrar a massa ―embolada‖ é

praticada com o próprio rodo no momento da torração, o que indica que os

agricultores utilizam-se de diferentes artefatos para realizarem o refinamento da

farinha. Isso informa que esses saberes e sua materialização não são homogêneos

e guardam relação com a inserção de artefatos culturais, o que possibilita, de acordo

com Brandão (2006), estabelecer tipos de trocas em que, entre um ser e outro, não

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há apenas seres humanos e natureza, mas também objetos, produto do trabalho do

homem sobre a natureza.

Depois da massa ―quebrada‖, os agricultores levam-na para o outro forno

mecanizado, que, diferente do primeiro, possui um giro mais rápido, próprio para

torrar a farinha. A introdução desse tipo de forno foi um dos motivos que influenciou

os agricultores a apropriarem-se do espaço e inserirem-se em sua organização.

Uma melhora muito grande, até porque eu tinha meu retiro, digo, tenho, até abandonei, porque achei melhor. Hoje representa uma vantagem muito grande, hoje com a idade que tenho. Lá (refere-se à casa de farinha manual) eu não torro duas sacas, e aqui eu torro com minha mulher quatro a cinco sacas, até sete tenho torrado. Aqui é mutirão, é um ajudando o outro, é uma melhora muito grande aí (AFC, 03).

O discurso acima evidencia que a introdução do forno mecanizado possibilitou

uma ―facilitação‖ na execução da torração que, de acordo com o costume local, era

realizada quase sempre pelos mais jovens, e passou a ser praticada também por

pessoas de mais idade, ampliando as possibilidades desses sujeitos de fortalecer

suas relações de (con)vivência e de socialização deste saber-fazer. Para Martins

(2008) na ampliação da convivência há uma ressocialização modernizadora, em que

as concepções tradicionais de parentesco e outros relacionamentos se revigoram e

ganham outro dinamismo fortalecedor da vida social.

De acordo com as observações após a prática da torração, a farinha é

retirada ligeiramente. Os mais jovens ajudam, sob orientação dos pais, que indicam

o melhor posicionamento do recipiente usado para levar a farinha até a caixa

resfriadora, a fim de evitar seu desperdício. Após ser torrada, a farinha passa por

uma classificação técnica:

Hoje eu posso fazer vários tipos de farinha: farinha grossa, farinha fina, pra farofa, e tem quatro classificações de farinha. Ela ajudou porque tem material suficiente pra fazer isso. Antes não tinha, só tinha uma marca de fazer farinha (AFC, 03).

Conforme o discurso acima, essa classificação é realizada na caixa que fica

localizada próxima da balança onde homens e/ou mulheres manuseiam diferentes

peneiras e em seguida procedem ao embalamento. Tal procedimento guarda

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relações também com o saber para a comercialização, que será analisado na seção

3.

Após ser classificada e embalada, a farinha é pesada. Essa prática é

realizada próxima da saída da casa, o que facilita na hora de seu embarque. Em

geral, essa função é atribuída, a um dos agricultores, que também é comerciante e

domina esse saber. Essa prática de pesar a farinha após ser torrada ocorre porque,

em geral, preferem levar a farinha ―pra feira, já pesada‖ (AFC, 03).

Segundo Bondía (2002) ao construírem experiência e o saber que dela deriva,

os sujeitos apropriam-se de sua própria vida, ou seja, constroem autonomia. Ao

relacionar a organização do espaço das três casas de farinha estudadas, percebi

que a organização da Casa de Farinha Comunitária, por meio das práticas, permite

mais autonomia das mulheres, que demonstram em suas manifestações possuir

controle do saber fazer farinha e, por conseguinte, mais mobilidade sobre o espaço

apropriado. Essa autonomia pode ser evidenciada na fala de uma das agricultoras

quando, por ocasião da torração da farinha, se expressou da seguinte forma: ―eu

não preciso de homem para fazer farinha (AFC, 01)‖.

De acordo com as observações, os desafios e confrontos entre homens e

mulheres não são raros, principalmente quando se trata de impor ritmo na realização

das práticas, uma vez que as mulheres demonstram quase sempre ter mais pressa

em concluir que os homens. Esta tensão pode ser atribuída à jornada dupla de

trabalho, pois além do trabalho na casa de farinha, ainda possuem as tarefas

domésticas que relataram serem, quase sempre de sua responsabilidade.

Embora o processo produtivo de fazer farinha tenha se modificado em virtude

da introdução das máquinas, de outra organização do espaço de produção, do uso

de outros instrumentos e utensílios facilitadores, a atribuição das mulheres como

responsáveis por cuidar da casa de morada ou das tarefas domésticas ainda

permanece, elas participam de quase todo o processo de fazer farinha e, em alguns

casos, tanto ou mais que alguns homens.

Assim, ainda que, fazer farinha seja a finalidade principal para apropriação do

espaço dessa casa, como evidenciado nos discursos dos entrevistados, de seu

espaço os agricultores fazem vários usos, pois se apropriam para a convivência,

para a alimentação, ou para as brincadeiras, como mostra a figura 20.

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Figura 20 – A prática do brincar Fonte: SILVA (2010).

Para Certeau (2008, p.93), as ―maneiras de fazer‖ permitem que os sujeitos

criem ―um espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar‖, são

praticantes ordinários, pois, se apropriam e se organizam no espaço da casa de

farinha, dando-lhes novas funções e significações. Os momentos de brincadeiras

entre crianças são momentos de apropriação do espaço, de recriarem sua utilização,

como exemplo, a balança, que passa a ter a função de brinquedo e aprendizado.

Elas se apropriam desse espaço, mesmo que vez ou outra sejam orientadas pelos

adultos para que não o utilizarem, uma vez que na sua percepção, esta não é sua

principal serventia.

Percebi que por vezes, algumas crianças são privadas de se dedicarem às

atividades do brincar, pelas atribuições que lhes são destinadas ou pela

necessidade de ajudar na realização de algumas práticas de fazer farinha.

Apropriam-se dos espaços da casa de farinha para outras atividades apenas por

alguns momentos. No entanto, outras crianças apenas acompanham seus pais e

dedicam a maior parte do tempo às brincadeiras que se realizam em alguns lugares

da casa.

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SEÇÃO 3 - CARTOGRAFIA DE SABERES QUE EMERGEM NA ORGANIZAÇÃO

E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO E NO FAZER FARINHA

Figura 21- A alimentação. Fonte: Silva (2010)

Figura 22 – Convivências. Fonte: Silva (2010)

O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças e adolescentes, jovens, adultos, velhos (...) envolve, portanto, situações pedagógicas interpessoais e comunitárias (BRANDÃO, 2007, p. 20).

Figura 23 – o zelar.

Fonte: Silva (2010)

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Esta seção analisa saberes culturais que são construídos, reconstruídos ou

socializados nas relações de (con)vivências cotidianas presentes nas ações de

organização e apropriação do espaço das Casas de farinha (Familiar, Mutirão e

Comunitária) e nas práticas do fazer farinha.

Para Gonçalves (2005, p. 10) há ―várias amazônias na Amazônia, muitas

delas contraditórias entre si‖ com uma diversidade cultural que de acordo com

Oliveira e Santos (2007, p.22), exige cuidados especiais com a delimitação

conceitual, uma vez que a existência dessas múltiplas ―Amazônias‖, com seus

processos educacionais materializados na produção e transmissão de saberes e

práticas culturais, estão entrelaçados com o ―viver entre a água, a mata as cidades e

suas estratégias de sobrevivência para as populações estudadas rurais-ribeirinhas e

urbano-periféricas‖.

Certeau (2008, p 51) considera que uma teoria das práticas cotidianas extrai o

murmúrio das maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem

muitas vezes, senão a título de resistências ou inércias em relação ao

desenvolvimento sociocultural. Nesse sentido, o estudo dos saberes culturais dos

agricultores familiares, sujeitos que vivem no complexo contexto amazônico, torna-

se possível a partir de um olhar focado nos processos do aprender a fazer farinha e

nas relações de (con)vivências construídas na comunidade.

Os discursos dos entrevistados são reveladores, de que as casas de farinha,

enquanto espaços de (con)vivência, são espaços onde homens e mulheres de

diferentes idades, ao participarem do fazer farinha enquanto práticas cotidianas ou

mesmo realizando outras atividades, observam e perguntam, solicitam explicações,

socializam saberes que permitem dinamizar processos de aprendizagens.

A casa de farinha, além de muitos setores que a gente trabalha, eu acho que na casa de farinha, ele é um setor que se usa muito coisa na parte de conversa e também ela se torna uma aprendizagem, porque a família, mesmo, tem gente aqui, faz de muitas qualidades, tem gente que faz uma farinha boa, que a gente gosta de vê (AFC, 04).

No decorrer da pesquisa, convivi mais frequentemente com o cotidiano das

casas de farinha, oportunidade em que pude observar que na organização e

apropriação dos espaços dessas casas, na realização das diferentes práticas que

envolvem o fazer farinha mediadas pelas relações de (con)vivência, emergem

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saberes que orientam práticas que podem ser denominadas de educativa, uma vez

que elas incorporam uma variedade de conhecimentos e que dão conta do

reconhecimento do tipo de solo para plantar a mandioca, da distinção da diversidade

de espécies, sua qualidade, transformações pelas quais passam seus resíduos ou

mesmo o que pode comprometer sua saúde.

Nesse sentido, ao cartografar os saberes dos agricultores familiares

camponeses que emergem de suas práticas cotidianas do fazer farinha e orientam a

organização e apropriação do espaço das casas de farinha, considero que o fazer, o

organizar e o apropriar-se dos espaços estão marcados por uma lógica cultural

híbrida e diversa que consente modificações e que estão implícitas e explícitas nos

discursos dos sujeitos.

Nós estamos aprendendo, mas se tiver alguém assim que não sabe, a gente ensina também. Tem gente que não sabe, a gente diz: ―vai devagar aí, se não tu vai marcar‖ (AFC, 05).

A gente trabalha com a mandioca, tudo dentro do retiro. Lá só não aprende se não quiser. Tem uns que não gostam de pegar na massa de mandioca (...). Se a pessoa não conhecer a massa, vai tirar mole, tudo é o conhecer, conhecer quando está torrada, enxuta, se já tá bom de sevar. Todinho tem que saber (AFM, 03).

Os saberes aqui analisados, configurados no movimento de construir,

reconstruir e socializar, não surgem por acaso, emergem e se modificam, inseridos

em um processo marcado por relações de compadrio ou conflitos travados no

interior das (con)vivências, que se materializam no cotidiano das casas de farinha

em meio a um emaranhado de situações que constituem e estão na sua organização

socioespacial. E, que envolve: situações de permanência ou desistência,

dificuldades e/ou mesmo algumas facilidades, entre o antigo que almeja o novo e o

novo que não se sustenta sem o antigo, ou seja, sem os saberes que herdaram dos

seus antepassados, enfim, sem a dimensão simbólica.

Assim, os saberes que emergem das práticas do fazer farinha aproximam-se

da análise de Geertz (2009, p. 11), que ao comentar o olhar de um etnógrafo, afirma

que ―as formas de saber, são sempre e inevitavelmente locais, inseparáveis de seus

instrumentos e invólucros‖. Para este autor, é possível até obscurecer a realidade

com a visão ecumênica ou embaçá-la com a teoria, mas não fazê-la desaparecer. O

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mesmo questiona a respeito do significado do universo simbólico no social,

significado que se dá sempre em contexto societário, não sendo, portanto, um

código a ser decifrado de maneira fria e distante, mas, dentro de uma multiplicidade

de modos de ver o mundo e agir nele, pois, apesar de a cultura ser apenas um

elemento no curso do homem, ela não é o menos importante.

Com base na perspectiva de Geertz (1989), que considera a cultura como um

catálogo simbólico que governa e controla nosso comportamento, uma teia de

significados que contextualiza a vida prática do sujeito, busco construir a cartografia

dos saberes culturais, por considerar a possibilidade de análise de parte do real, do

ponto de vista das relações, da apropriação e organização do espaço nas casas de

farinha e das práticas ali desenvolvidas, mas também da incorporação de valores,

de ideias e significados vinculados à dimensão educativa.

Considero que a cartografia, do ponto de vista metodológico, permite analisar

as casas de farinha como dimensão das territorialidades rurais, onde o fazer farinha

é constitutivo de uma temporalidade, enquanto prática social construída e

reconstruída entre as gerações que mapeiam o espaço das casas de farinha e os

inserem no tempo. Assim, espaço e tempo são categorias de análise que nos

aproximam de parte da história e da cultura camponesa amazônica.

Santos (2006), ao criticar o modelo de racionalidade ocidental, analisa que a

experiência social em todo o mundo é muito mais rica e variada do que a tradição

filosófica ocidental, de que esta riqueza está sendo desperdiçada e que para

combater o desperdício, torna-se necessário propor um modelo diferente de

racionalidade.

Nesse sentido, a cartografia de saberes dos agricultores produtores de farinha

insere-se na perspectiva de uma ―sociologia das ausências‖ considerada por Santos

(2006), uma sociologia que parte do pressuposto de que experiências que são

consideradas não existentes, invisíveis e totalmente marginalizadas têm que ser

recuperadas e tornadas visíveis, tornadas presentes e disponíveis por meio de outro

tipo de racionalidade. Para ele, trata-se de apostar na ideia de que há não só

experiência social, mas memória social, que são suprimidas, consideradas

irrelevantes e esquecidas.

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3.1. O SABER-FAZER FARINHA.

O saber-fazer farinha, que informa as atividades cotidianas dos agricultores

da comunidade, tem se configurado como uma prática social por meio da qual se

dinamiza historicamente a socialização de um conjunto de saberes entre as

gerações.

Conforme descritas na seção anterior, as diferentes práticas que fazem parte

do processo de fazer farinha são orientadas e orientam saberes. No entanto, este

saber-fazer farinha não se inicia nas casas de farinha e incorpora outros saberes,

como o saber plantar a maniva e o saber colher.

3.1.1. O saber plantar a maniva

Para fazer a farinha, primeiro precisa saber como se planta a maniva, pra poder dá a mandioca pra gente poder fazer a farinha, porque se a gente pensar só de fazer a farinha sem plantar, mais tarde a gente não vai fazer a farinha porque não tem. Você tem que primeiro aprender como plantar a maniva, porque dali é que vem pra gente poder fazer a farinha. Se você só dizer: ―ah! Eu vou fazer farinha‖, mas se eu não plantar, no próximo ano eu não tenho como fazer a farinha (AFC, 02).

Conforme se pode perceber nesta fala, o saber plantar antecipa o saber fazer

farinha, ou seja, configura-se como um saber necessário à realização das demais

práticas, uma vez que o fazer farinha depende da matéria prima básica, que é a raiz

da mandioca. Ao relatar que ―primeiro precisa aprender como planta a maniva‖

(AFC, 02), o agricultor revela nesse discurso que eles não adquirem a matéria prima

necessária de outras comunidades ou mesmo de outros municípios, sendo, portanto,

responsáveis pelo plantar o que possibilita o fazer farinha.

Identifico nesse processo uma relação dialética entre o fazer farinha e o saber

plantar, pois um precisa do outro para continuar existindo. Não saber plantar para os

agricultores, significa a impossibilidade de não realizar as práticas de fazer farinha.

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Ao perguntar sobre a origem desse saber plantar na comunidade, um dos

entrevistados revelou que o cultivo de roçados de mandioca é de origem indígena,

pois, plantaram o primeiro roçado; ―a gente não sabe se eles produziam a farinha, a

gente conta a história, que eles (os mais antigos) contavam, sabe que mexiam com

o roçado‖ (AFC, 03).

Assim como o conhecimento local, estudos que abordam a origem da raiz de

mandioca (manilhot esculenta Crantz) no Brasil também afirmam que essa raiz já era

cultivada pelo menos há cinco mil anos, numa área que abarcava desde a América

Central, as Antilhas e toda a vertente Atlântica da América do Sul (ADAMS, et all

2006).

O processo que envolve o saber fazer farinha incorpora uma temporalidade e

uma relação intergeracional e que não se configura como uma simples relação de

ensinar e aprender.

Acho que vem mais dos antigos. De primeiro, foi os mais antigos que começaram, nós já somos os mais novos. Não tem bem explicação não, esse saber a gente aprendeu quando começamos mesmo, os outros já estavam há muitos tempos já fazendo a farinha, já tinha aprendido com outros (AFC,02).

O discurso acima evidencia essa temporalidade no saber fazer farinha, um

conhecimento construído que vem sendo socializado de geração em geração e que

se aprende na prática cotidiana da comunidade. Neste sentido, o conhec imento

prático de fazer farinha se aproxima das considerações de conhecimento tradicional

de Diegues (2000, p. 14), que:

Pode ser definido como o saber e o saber-fazer a respeito do mundo natural, sobrenatural, gerados no âmbito da sociedade não-urbano/industrial, transmitidos, em geral, oralmente de geração em geração. Para muitas dessas sociedades, sobretudo as indígenas, existe uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização social. Neste sentido, para estas últimas, não existe uma classificação dualista, uma linha divisória rígida entre o ―natural‖ e o ―social‖, mas sim um continuum entre ambos.

Ao referir-se sobre a importância do fazer farinha para a sua reprodução

social e de sua família, um agricultor destaca, ainda que de forma indireta, a

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importância da roça, ou seja, uma das etapas do processo que antecede o fazer

farinha: ―eu digo que pra mim (o mais importante) é a roça, porque é daqui que eu

vivo, que é como eu estava falando, sem roça é o meu sofrimento‖ (AFM, 01). Essa

fala atribui à existência da roça o sentido da própria vida. Ele concebe a roça como

um território de vivência, a base de sua reprodução material e cultural.

Ao relacionar o ―sofrimento‖ à ausência da roça, este discurso remete à

concepção de Castro (2000), para quem os seres humanos agem sobre o território a

partir de atividades produtivas que contém e combinam formas materiais e

simbólicas, ou de Brandão (2002), que considera as relações de produção e

reprodução social também como relações simbólicas.

O saber plantar incorpora uma diversidade de saberes dos sujeitos. Esses

saberes são construídos na relação com a natureza e nas relações de (con)vivência.

São indicados aqui nos diversos tempos que compreendem o saber plantar: o tempo

de brocar, o tempo de queimar, o tempo de capinar, entre outros, conforme pode-se

perceber nos depoimentos dos entrevistados:

Primeiro a gente prepara a terra, a gente aqui faz é brocar... no tempo de queimar, a gente queima.... No tempo de plantar, a gente planta a maniva... Que é pra produzir a mandioca, a maniva está nascidinha no jeito de limpar, a gente capina, umas duas capinadas (AFC, 02).

O brocar é a gente pega uma foiça e saí no mato, caçando, brocando. Eu acredito que isso se chama brocar, mas é cortar mato né (...). Depois é só esperar secar pra tocar o fogo. Quando queima bem, a gente não ajunta galho, não ajunta nada, nem um mais, queima bem, ficando só a terra. Mas quando não queima bem, a gente tem que ajuntar, fazendo aquele monte que nem caieira, taca fogo, fica só coivara, fica só o chão é só plantar roça (AFM, 01).

Esses procedimentos revelados nesses discursos evidenciam que a

diversidade de saberes dos sujeitos indica um acúmulo de conhecimentos que lhes

possibilitam perceber não só a necessidade de manter a sequência das atividades,

como também as temporalidades de suas realizações.

Na sequência do desenvolvimento das atividades, a broca e a queimada são

as duas práticas relacionadas à preparação da terra. A broca é um processo que

envolve o corte de árvores de pequeno porte, de uma área física denominada de

capoeira, e tem como objetivo deixar o terreno limpo e preparado para que a

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queimada seja efetivada, conformando a ação do fogo para consumir as madeiras

que ficaram no chão. Essas duas práticas iniciais visam preparar o solo para o

plantio da mandioca.

Dependendo do resultado da broca e da queimada, é possível iniciar o

plantio. Caso ainda haja muitos restos de madeira, é necessário praticar a coivara,

processo de limpeza do terreno.

Nesse sentido, é possível perceber que o saber plantar expresso no discurso

dos agricultores remete a um saber popular que orienta o cotidiano desses sujeitos.

Dito de outra forma, um saber empírico ligado à solução de problemas que

transcende o indivíduo e é assumido como certeza básica, que embora não

apresente uma característica própria de validação dos fatos, como é próprio do

conhecimento científico, é constituído pelos conhecimentos, interpretações e

sistemas de compreensão que produzem e atualizam os setores subalternos da

sociedade para esclarecer e compreender sua experiência (MARTINIC, 1994).

No caso analisado, o plantar é um saber construído coletivamente na

(con)vivência com familiares, vizinhos ou até diaristas:

pra plantar, a gente junta o pessoal do trabalho, junta tudo. Aí vai quatro, cinco abrindo os buracos, e dois, três jogando a maniva dentro da cova, jogando a terra em cima, isso no meio do capim, isso que é o plantar (AFM, 01).

Com base nas informações e observações locais analisadas neste texto, é

possível inferir que esse saber construído e socializado na organização social

cotidiana dos agricultores e no fazer farinha, configura-se como uma prática

educativa que envolve todos da família, inclusive as crianças, que participam como

ajudantes. Elas quase sempre estão acompanhadas de uma pessoa adulta, seja dos

pais, ou de demais parentes ou vizinhos.

A figura 24 retrata o momento que antecede a ida ao roçado de uma família.

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Figura 24 – preparação, ida ao roçado. Fonte: Silva (2010).

Contudo, por ser um saber construído na prática, no caso, a de fazer farinha,

há uma dificuldade por parte de uma visão determinista de ciência em conceber

nesse saber plantar uma dimensão educativa. Segundo Brandão (2002), esta

dificuldade ocorre porque temos o costume de associar educação a longínquas

determinações sociais e esquecemo-nos de vê-la no seu contexto cotidiano, no

interior de sua morada, ou seja, na cultura, considerado o lugar das ideias, códigos e

práticas de produção e reinvenção do saber.

Como uma forma de reafirmar que a dinâmica da realidade, na sua relação

com outros saberes, pode ser alterada, o saber plantar tradicional, referido nos

primeiros depoimentos, vem sendo, nos últimos anos, reconstruído ou modificado

com a introdução de produtos químicos para ―matar o mato‖, sobretudo uma espécie

denominada pelos sujeitos de capim furão. De acordo com os depoimentos locais, o

uso de veneno ocorre em decorrência da facilidade de manuseio, na perspectiva de

aumento da produção, além da diminuição da quantidade de trabalho dispendido.

Essa facilidade influenciou seu uso, pois ―diziam que era bom o veneno‖ (AFM, 01),

para o plantio.

Para Silva (2008, p. 59) ―as formas de manejo dos recursos da natureza

utilizados pelas comunidades locais, em alguns casos, têm um custo social e

ambiental muito alto‖, compromete as condições de reprodução material, uma vez

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que algumas práticas produtivas sofrem alterações em função, por exemplo, do

desgaste do solo.

E melhor mexer com veneno do que com a terra gradeada. Porque com a terra gradeada depois que aquilo sara (...) fica ruim, quebra, e assim não, é só você chegar lá puxa a maniva, puxando e jogando ali, fica macia demais e a mandioca cresce. Porque esse capim, o capim furão que a gente chama, embaixo ele é de fibra, a raiz dele é de fibra, ai colocou veneno, a raiz dele fica tudo chocha, seca, fica fofa a terra. Ai quando o capim volta, a gente tira de enxada, mas num volta não, ele morre mesmo. Achei bom trabalhar com ele. De primeiro eu não sabia trabalhar com ele não, eu aprendi entre eu mesmo, só. Diziam que era bom o veneno, mas eu não sabia mexer com ele, aí foi me dando ideia, me dando ideia, ai foi botando pra frente e custei aprender, já tem uns cinco anos que eu uso esse veneno. Com milho, com feijão é o mesmo sistema, é só não deixar ele brolhar. Custa o cabra aprender, depois que ele aprender... (AFM, 01).

Nessa narrativa o agricultor destaca os benefícios da utilização de produtos

químicos, sem que em nenhum momento faça qualquer menção aos prováveis

prejuízos ambientais. Este fato demonstra que o uso de produtos químicos ocorre

sem acompanhamento ou orientação técnica, uma vez que o agricultor aprende

―entre eu mesmo‖ (AFM, 01). Assim, embora existam diferentes modos de aprender

a prática de plantar e de manusear os produtos químicos, o método desenvolvido

pelos agricultores no plantio é exportado para outras pessoas da comunidade,

insere-se, portanto numa problemática ambiental que requer atenção das agências

de formação.

Ao perguntar para um agricultor como ele identificava o momento adequado

para utilização deste produto químico no roçado, ele descreveu:

É só esperar o furão crescer, quando ele tá desse tamanho aqui [faz um gesto], aí você já vai e planta a maniva, o capim é que indica você planta no meio dele, fechou a roça, fechou. Quando chegar no dia você pega a bombinha e sai pelo meio, com veneno, aí aquele capim seca, vai arriando devagar, arriando, arriando e a maniva sobe. Quando a maniva tiver por aqui [em torno de uns 10 cm], que você vai dá uma capinada. É assim que é, não tem esse negócio de queimar, depois capinar não, capina já no meio da roça. Quanto mais a terra fica fofa, mais a mandioca dana a crescer. O veneno mata a maniva, se pegar no grelo da maniva, mata (AFM, 01).

O depoimento acima evidencia que, apesar da utilização de determinados

produtos, o saber plantar ainda é construído também a partir de uma relação

dialética com a natureza, uma vez que ―o capim é que indica‖ o momento adequado

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para a aplicação do produto e depois de alguns meses é que se inicia o processo de

colheita das raízes de mandioca.

3.1.2 O saber colher

Com seis mês, tem mandioca, mas é fraco. Tem gente que tira a roça, mas a precisão aperreia também. Agora não, agora tá boa...na roça de verão é só a mandioca, no mês de julho a agosto, o cabra já tem que tá dentro (AFC, 07).

Para colher, a gente colhe com nove mês, conforme, um ano. Às vezes a gente nem espera ela amadurecer, tem que tirar ela verde. Quando a gente quer mexer nela que o verão já acabou, aí acaba o verão e o jeito é entrar na nova aí (...) a roça de verão começa a plantar no mês de maio, junho ou julho, conforme a chuva. Estes três meses é pra colher, é só quando faz ano, no outro ano. É só de ano a ano, mas às vezes não dá tempo porque a de verão está menor. A gente planta mais no inverno. No verão a gente planta menos. No inverno dá mais, produz mais, dá mais trabalho. Quando é no mês de maio ou junho é que é a roça de verão, aí fica mexendo, capinando nas duas (AFM, 02).

A colheita da mandioca geralmente é realizada de dez a doze meses depois

de plantada. No entanto, algumas manifestações de alterações climáticas podem

alterar e até prejudicar o período da colheita, que ocorreu nos meses de janeiro e

fevereiro de 2010, cujo verão intenso, ocasionou produção insuficiente da farinha em

função do tamanho das raízes.

Para Freire (2008) planejar a prática significa ter uma ideia clara das

condições em que vamos atuar, dos instrumentos e dos meios em que dispomos,

significa saber com quem contamos para executá-la ou prevê os momentos de ação

que são avaliados. Nesse sentido, percebe-se que essa prática da produção de

farinha possui uma dimensão educativa, pois não ocorre sem planejamento, sem

desenvolvimento e sem avaliação, entre outros motivos. Os sujeitos precisam

conhecer o tempo adequado para o plantio, acompanhar seu desenvolvimento e

avaliar o momento adequado para colher.

Lá você vê se vai replantar de novo ou se vai deixar lá pra plantar com três ou quatro anos de novo, naquele mesmo lugar. Se você não for usar a maniva, você deixa lá e lá mesmo estraga. Agora se você for precisar, você apara, corta, põe numa sombra ou afinca ou deixa ela ali deitada com rama

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em cima, pra não secar o leite, pois se secar o leite, não nasce de jeito nenhum [...]. Você tem que escolher pela mandioca a maniva pra poder guardar ela e plantar. [...] É por isso que muita gente na hora de plantar a maniva, que nem agora, os meninos já vão brocar essa semana para plantar no mês de janeiro, e essa de janeiro que nós já vamos tirar a mandioca, né? Já vamos tirando a maniva e já vamos guardando ela pra plantar nessa que eles vão roçar. Tem que reparar a maniva, se é boa, se não é. Tem muita gente que vai tirando e vai só jogando, aí quando chega o tempo dele plantar, ele vai olhar na maniva dele, não presta, tá tudo seco e aí fica num corre, corre, pra ver quem tem (AFM, 02).

Esse discurso revela que, saber colher e saber plantar são atos

intercomplementares de um mesmo processo, pois, no momento em que se está

colhendo o tubérculo da mandioca, as manivas são separadas para posteriormente

serem colocadas em lugares adequados para que possam permanecer hidratadas,

pois se ―secar o leite‖, as manivas não servem de mudas para o plantio. Como uma

maneira de garantir uma boa produção, as manivas são separadas de acordo com a

classificação que recebem, porque precisam ser consideradas como aquelas que

dão boas raízes.

Ao realizarem esse processo de seleção das raízes, os agricultores não

apenas se capacitam tecnicamente, eles constroem o conhecimento que permite a

continuidade do fazer farinha.

Na hora de colher, tem a mandioca amarela, né? Conforme o tipo de farinha que quer fazer é a mandioca que vai colher. Se for para fazer uma farinha seca, branca, colhe uma mandioca branca, mas desde o plantio já planta separado a branca da amarela (AFC, 07).

Essa fala revela que o agricultor planeja o plantio das manivas de mandioca,

pensando no momento da colheita e no tipo de farinha que irá fazer. De acordo com

essas decisões, cada parte do terreno é destinada a um tipo de tubérculo, conforme

a cor do produto e o tipo de farinha que ele almeja produzir.

O agricultor identifica na prática da colheita, o tipo de mandioca que pode

comprometer a qualidade da farinha e que vai exigir maiores cuidados na hora da

produção: ―a gente identifica pelo pau da maniva, antes de saber que esse tipo de

mandioca amargava, às vezes fazia, quando ia ver, a farinha estava amargando. A

gente coloca mais ela pra colocar na água pra ela amolecer‖ (AFC, 05).

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Assim, a colheita do tubérculo da mandioca é feita quando a raiz está

madura: ―bem no ponto, é que a gente vai trazer pra fazer a farinha, aí a gente traz a

mandioca de lá, raspa, bota na água pra gente poder fazer a farinha‖ (AFC, 02).

Além da preocupação prática com as condições de produção a partir do

amadurecimento das raízes, há também a preocupação com o manuseio de

ferramentas para que a retirada do tubérculo do subsolo não seja prejudicada e

ocasione prejuízo: ―na colheita a gente usa o terçado, quando não uma foice. Se

tiver muito duro, tem que levar uma foice pra arrancar as pequenas debaixo da terra,

pra não quebrar e não deixar‖ (AFM, 02).

O saber que orienta a prática da colheita, assim como o saber plantar, é

construído a partir da convivência familiar, pois: ―na colheita é tudo, é mulher, é

criança, é homem é tudo‖ (AFM, 02). A participação das crianças ocorre segundo

uma das agricultoras: ―se não der pra gente deixar na escola‖ (AFM, 02). Essa

participação, ainda crianças, contribui para que adquiram o conhecimento desta

prática e iniciem sua formação como prováveis agricultores.

Dessa maneira, os sujeitos transformam a colheita numa prática educativa,

seja na participação direta dos sujeitos no ato de colher, seja pelo desenvolvimento

de atividades ou brincadeiras. Essa prática educativa, para Freire (1985, p. 76),

ocorre pela interação do ser humano com a realidade que ele sente, percebe e

sobre a qual exerce uma prática transformadora. É um fazer educativo que não pode

ser realizado a não ser, inserido no mundo histórico e cultural.

O deslocamento da produção de mandioca do roçado até as casas de farinha

é feito por meio do uso de diversas alternativas de transporte, dependendo da

distância onde está localizada a roça e a quantidade a ser transportada. Terminada

a colheita, é hora de levar as raízes para casa de farinha:

É pertinho daqui, a gente trazia era na cabeça mesmo. De mais longe, a gente traz no cavalo, usa a cangalha... Traz na bicicleta. Para trazer no cavalo é preciso saber ajeitar, porque se tiver mais para um lado do que para outro a cangalha vira, e tem mais uma coisa, você tem que arrochar na barriga do animal porque se ela tiver folgada, a cangalha vai tombar, se o animal subir a ladeira (AFM, 02).

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3.2 O SABER ORGANIZAR O ESPAÇO PARA FAZER FARINHA

O fazer farinha requer, além das práticas de plantar e de colher, conforme

analisado nos itens anteriores, a organização dos espaços das casas de farinha, nos

quais as diferentes etapas do processo são realizadas antecede e orienta as

práticas produtivas.

Meu dia de trabalho no retiro: começo arrumar tudo direitinho, começa a botar a mandioca, vai trabalhando, trabalhando, quando chega o final do dia limpo todinho, joga fora as cascas, para quando vou no outro dia já tudo limpinho pra começar de novo (AFF, 01).

Conforme se pode perceber no depoimento, há uma preocupação dos

agricultores também com a organização e manutenção dos espaços que são

apropriados e usados nas diferentes etapas do processo produtivo. As raízes, em

geral, são acolhidas em espaços que, por sua localização, facilitam a entrada ou

aproximação do carro de boi ou outro meio de transporte.

O espaço estava pequeno demais. Tem semana que tem aqui oito famílias, precisou aumentar mais (...) melhorou muito. O cara que está trabalhando aqui sabe a necessidade, pra trabalhar, aí (na mudança do espaço) fizemos em três diárias, cada dia veio cinco, seis... No primeiro dia foi tirado as caixas de dentro tudinho, no segundo dia foi lavado e colocado o piso e no terceiro dia foi pra arrumar tudinho. Ficou bom (AFC, 07).

Essa fala evidencia que os agricultores modificaram a arquitetura original da

casa de farinha, para ampliarem o espaço físico com a construção de uma área,

onde os sujeitos praticantes armazenam as raízes de mandioca e realizam o

descascamento. Essa ampliação foi necessária em decorrência de que, em alguns

dias, o número de famílias que produzem farinha nessa casa era superior à sua

capacidade. Para Gadamer (1999), as obras arquitetônicas não estão à margem da

história, uma vez que esta as arrasta consigo, faz parte de sua vivência ou da

relação das pessoas com os lugares em determinado tempo.

Assim, tanto a modificação na arquitetura da casa de farinha quanto as

alterações de seu espaço, revelam a sabedoria dos agricultores para o organizarem,

neste caso, o espaço planejado a partir de um saber acadêmico, como é o espaço

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da casa de farinha comunitária, que foi projetada por engenheiros, mas que, de

acordo com a percepção do agricultor entrevistado, não atende às demandas das

famílias produtoras: ―o cara que está trabalhando aqui sabe a necessidade‖ (AFC,

07).

Nesse sentido, a organização do espaço das casas de farinha incorpora um

saber que emerge das relações de (con)vivência ou da relação com o espaço

praticado, e resguarda, de acordo com o pensamento de Freire (1985), a dimensão

de uma educação humanista e libertadora, uma vez que mostra a tomada de

consciência que se opera nos homens enquanto agem e trabalham.

A organização do espaço demonstra uma ordenação sequencial do fazer

farinha. Nessa perspectiva, após a ―acolhida‖ das raízes, na sequência, ocorre a

apropriação do espaço para o desenvolvimento do saber descascar, que em seus

discursos, os sujeitos também denominam como a prática de raspar. Ao perguntar o

porquê dessa variedade de denominações, uma agricultora explicou:

Pra nós, que torra a farinha da massa, porque eles [de outra comunidade] que mexe com goma, essa parte que fica [próxima à casca] não é aproveitada, por isso que eles fazem o raspador. Na Ponte Nova, no mesmo da que eles sevam eles tiram a goma, né? Se eu raspar e deixar a mandioca aí, no outro dia, ela está toda roxa, por isso, que nós faz descascar (AFC, 01).

Ficou evidenciado nesse discurso que na comunidade a atividade inicial de

beneficiamento da raiz é o descascar, porque ali a mandioca é destinada para fazer

farinha. Para fazer a goma, ―raspar as raízes‖ é mais indicado, pois, se preservar o

amido, enquanto que o descascar é uma técnica mais apropriada para fazer farinha,

impede que as raízes passem por alteração de sua cor.

O descascar, conforme retrata a figura 25, consiste em ―cortar a casca‖, e o

raspar, como mostra a figura 26, trata-se de ―passar a faca na casca da mandioca‖

(AFC, 01).

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Figura 25 - O descascar. Figura 26 - O raspar. Fonte: Silva (2010). Fonte: Silva (2010).

Antes, quando eu era solteira, a gente não descascava, a gente colocava de molho, no igarapé, né? E depois ia tirando tudo com a mão. Já viemos descascar assim depois do motor, antes deixava de molho pra ficar bem molezinha pra depois socar com a mão de pau, agora não, tem que descascar assim, [utilizando instrumentos cortantes] pra poder passar no motor (AFC, 01).

O discurso acima evidencia que a necessidade de mudança na prática do

descascamento das raízes da mandioca relaciona-se com a introdução de outros

artefatos e tecnologias, como motor a diesel. Essa mudança exigiu reelaborarem ou

reconstruírem o saber descascar, uma vez que no período anterior ao uso do motor

a diesel, os agricultores usavam apenas as mãos para o descascamento.

Atualmente, são utilizados instrumentos cortantes para preparação da matéria prima

antes de sevar.

De acordo com as minhas observações, o desenvolvimento da prática do

descascamento faz parte da organização social das casas de farinha. Essa

organização vai configurando um cenário que permite que práticas educativas sejam

construídas por meio das relações de (con)vivências promovidas pelo encontro de

gerações nos espaços, conforme mostra a figura 27.

Este encontro de gerações e de socialização de informações e saberes,

configurados como um ―saber experiencial‖, adquirido no fazer cotidiano de homens

e mulheres, que, como sujeitos da práxis, são sujeitos de ―práticas cotidianas de

resistências‖, constroem seus projetos de vida e ―tecem representações sobre o

mundo vivenciado‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 64).

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Meus registros dão conta de que o descascamento é realizado pelos sujeitos

por etapas, na maioria das vezes a mãe ―faz o capote‖ e o filho ―tira o capote‖. Fazer

o capote significa descascar a parte superior da mandioca, que é a parte mais

grossa e mais difícil, enquanto tirar o capote consiste no ato de retirar a casca da

parte inferior da raiz.

Em uma das ocasiões durante a realização da pesquisa, presenciei um

diálogo entre mãe e filho a respeito de fazer ou não o capote, o filho dizia: ―eu vou

tirar, eu já sei fazer o capote‖. Fazer o capote quer dizer dominar uma técnica de

descascamento. A mãe, no entanto, desaconselhava a fazer: ―não faz o capote, se

não a mandioca escurece! (AFF, 02)‖. Em outras palavras, compromete a qualidade

da farinha. Este diálogo indica que fazer o capote é tarefa para os mais experientes,

enquanto tirar o capote é atividade para os que estão iniciando.

O fazer o capote facilita o descascamento e configura-se como uma prática

educativa, pois durante a sua realização são feitas várias orientações e/ou

observações pelos que possuem mais experiência. Uma das orientações em relação

à manutenção do capote é com relação à higiene da matéria prima durante seu

manuseio, pois contribui para que a parte já descascada da raiz seja mantida com

menos impurezas, o que agrega qualidade ao produto.

Figura 27. A prática de descascar.

Fonte: SILVA ( 2010).

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Essa ideia fica evidente no depoimento de uma agricultora ao responder o

que era fazer o capote:

É descascar meia mandioca e deixar meia, faz parte da limpeza também, porque se eu pegar aqui [mostra a parte limpa] eu já sujei, né? Aí o outro pega aqui [gestos] aí já não tem mais essa sujeira que descascar assim [toda a mandioca] e também fazendo o capote sai mais rápido. De primeiro, a gente não fazia isso não, a gente aprendeu com um cearense que veio pra cá, trouxe essa técnica de descascar a mandioca e nós aprendemos assim (AFC, 01).

O depoimento demonstra também que a aprendizagem da prática de fazer

farinha é um saber socializado não apenas entre pais e filhos da comunidade, mas

também com pessoas que vieram de outras regiões ou territórios, o que indica que

estes sujeitos no que se refere à construção ou reconstrução de seus saberes são

favoráveis a aprendizagens que facilitem o seu fazer. Ou, como se refere Charlot

(2000), existe um diálogo de saberes locais e saberes de fora.

Nesta perspectiva, é possível considerar a casa de farinha não somente como

cenário de (con)vivência de saberes culturais, mas como espaço de educação, pois

conforme analisa Brandão (2002, p. 21):

Os ‗cenários de cultura‘ [...] propicia aos que ali convivem, a internalização não apenas de coisas, habilidades, condutas, saberes e valores, mas aprendizagem, pois os sujeitos aprendem a realizar interações e integrações complexas de e entre tudo isto.

Se para alguns sujeitos o saber descascar é fácil, para outros não. Trata-se

de uma prática que exige, além do manuseio, um conhecimento que ajuda a

identificar as espécies de mandioca que podem ou não comprometer a qualidade da

farinha, como revela o depoimento a seguir:

É um pouco difícil, não é muito fácil o cara aprender, não. O cara está raspando mandioca, o cara corta a mandioca muitas vezes, tem vários tipos de mandioca que deixa a farinha ruim, boa, amarga, às vezes. Se a pessoa não sabe identificar, tá rodado (AFC, 05).

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Nesse sentido, Freire (1985) considera que no processo de aprendizagem, só

aprende os que se apropriam do conhecimento, o transformam e o reinventam, com

a possibilidade de aplicá-lo em situações concretas.

Durante a realização da pesquisa, percebi que a prática do descascamento

favorece o diálogo e a manifestação de processos educativos e de formação. Em um

desses diálogos, uma mãe na Casa de Farinha Comunitária disse para a filha

adolescente: ―não pegue para descascar somente as grandes, não!‖, referindo-se ao

tamanho das raízes da mandioca. Esta fala expressa a percepção da mãe de que

não é justo deixar para as outras pessoas as raízes menores, já que é um

manuseamento mais difícil. São valores éticos que, ao serem socializados no

cotidiano das casas de farinha, promovem a educação do ser humano no sentido de

construir relações de (con)vivência baseadas na justiça e equidade.

Segundo Freire (2008), a ética é inseparável da prática educativa, não

importa com quem trabalhamos. Para ele, a melhor maneira de por ela lutar é

vivenciando-a na prática, testemunhando-a em nossas relações com os educandos.

Essa educação identificada nas casas de farinha está presente em diferentes

práticas, como na prática da lavagem. Percebi que seu desenvolvimento é quase

sempre realizado próximo à cevadeira. Lavar a mandioca demonstra um zelo no

fazer farinha, um saber construído no cotidiano e materializado no cuidado com a

limpeza das raízes, conforme se pode perceber no discurso a seguir.

A gente tem que jogar a mandioca para dentro do tanque da casa pra poder a gente começar a fazer a farinha, porque se a gente ir só daqui e chegar lá, não zelar das coisas da gente ...porque a gente tem que lavar a mandioca, não é só chegar lá e jogar pra dizer que a gente vai fazer a farinha não, a gente tem que lavar (AFC, 01).

No entanto, nem todos os sujeitos procuram dinamizar esse zelamento.

Tem gente que faz a farinha, mas não zela a mandioca. Só faz chegar com a mandioca, joga lá, não lava. Traz do roçado, só vai lavar ela, joga lá e pronto, e já vai torrar. Tem que primeiro lavar ela (AFC, 06).

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Por alguns não participarem dessa assimilação social ou aprendizagem

(PAIS, 2008), as tensões se manifestam, pois os sujeitos que buscam manter o zelo

no fazer farinha passam a criticar os que não têm o hábito de zelar.

Na medida em que as etapas que fazem parte do processo de fazer farinha

vão sendo dinamizadas, torna-se mais evidente que a organização do espaço das

casas de farinha influencia direta ou indiretamente no desenvolvimento dessas

práticas. Por exemplo, é possível perceber que:

A cevadeira fica próxima da prensa; a prensa, a cevadeira e a canoa onde se peneira têm que ficar próximas umas das outras. Porque da cevadeira vai pra prensa e não pode ficar longe, porque tem de carregar peso de um pro outro (AFM, 02).

Alguns espaços das casas de farinha requerem um cuidado e mais atenção

dos pais com relação à aproximação dos filhos, como é o caso da cevadeira, onde

se seva a mandioca, prática inerente ao processo do fazer farinha. Percebi, por

exemplo, que crianças e adolescentes são orientados a manterem-se afastados

deste espaço. Essa orientação acontece em virtude dos riscos de acidente que o

motor representa em funcionamento: ―agora já faz quase tudo, quando era menor,

de pequeno começou assim, rapava mandioca, ele só não fez foi sevar mandioca,

que eu tenho medo dele sevar ainda‖ (AFF, 01).

O cuidado demonstrado por alguns adultos em relação à presença de

crianças na casa de farinha é uma atitude que demonstra atenção, ou como afirma

Boff (2008, p. 33), ―o cuidar é mais que um ato‖, é zelo, desvelo, preocupação,

responsabilização, envolvimento afetivo com o outro.

Ao observar a organização do espaço físico da casa de farinha mutirão,

percebi que a prensa fica localizada na parte dos fundos da casa. Sua localização é

explicada na fala de uma agricultora entrevistada: ―você não pode sentar ela pra cá

[na frente da casa], no meio ou na chegada tem que ser sempre no final, porque o

tucupi escorre. Se ficar pra cá, vai molhar tudo, olha como fica aí no fundo‖ (AFM,

02). Ao considerar que a prensa não poderia ficar localizada na frente da casa, essa

fala revelou, dentre outras coisas, uma preocupação com a estética da casa de

farinha.

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Para Brandão (2006) há uma condição de permanente recriação da própria

cultura, pois a existência de uma relação de saber e troca entre as pessoas tornam

condição de criação pessoal que, ao aprender, realiza uma experiência humana

subjetiva e intersubjetiva.

Outro saber que a organização da casa de farinha revela, é o saber prensar.

Conforme o discurso, prensar ―é enxugar a massa, a massa fica prensada lá dentro,

coloca no saco pra prensar‖ (AFC, 01). Este saber é socializado pelos mais

experientes, como mostra o depoimento a seguir:

Às vezes, o cara aprende, né? Às vezes eu estou prensando e pergunto assim pra outro: ―será que essa massa já está boa? Às vezes, o cara vê no plano de cima: ―tá boa‖. Mas quando olha a debaixo, às vezes sempre o canto fica mole. Às vezes as outras pessoas que estão acostumados dizem: ―Não. Podem tirar, que já tá bom já‖ (AFC, 05).

O saber-fazer farinha é perpassado por um conhecimento técnico, e nas

relações cotidianas compartilham os segredos de como fazer uma farinha de boa

qualidade. Assim, ao realizarem as práticas coletivamente, os agricultores têm a

possibilidade de demonstrarem a experiência acumulada e promovem a socialização

do saber enquanto prática educativa.

Ao acompanhar o desenvolvimento das práticas de fazer farinha, identifiquei o

saber peneirar como parte do processo. Ao referir-se a essa prática, uma agricultora

explicou: ―quando a massa vem lá da prensa, ela ainda vem com uns pedaços de

mandioca‖ (AFM, 02). O saber peneirar permite, entretanto, que a massa passe por

um processo de refinamento.

O peneirar e o descascar configuram-se como os primeiros saberes a serem

ensinados aos que estão aprendendo, conforme demonstra o discurso:

Eu iniciei com meu pai, porque a gente aprende logo com a família da gente, assim como meus filhos vão aprendendo com a gente, desde, peneirar uma massa, que é isso que tu dá conta, vai descascar uma mandioca, aí a gente vai aprendendo, vai crescendo e vai aprendendo cada vez mais, né? (AFM, 02).

Percebe-se que é por meio de um processo de ensino aprendizagem que os

sujeitos vão aprendendo e se apropriam dos diferentes saberes que fazem parte do

saber-fazer farinha. Por exemplo, antes de saber peneirar, é preciso saber

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descascar para alcançar o conhecimento mais amplo da prática de fazer farinha. Em

outras palavras, o discurso revela que há uma distribuição das práticas de acordo

com o acúmulo de conhecimento dos sujeitos, que começa pelo que ―dá conta‖

saber-fazer, sempre orientado por um olhar familiar.

Os sujeitos aprendem na prática, ―vão crescendo‖ e ao mesmo tempo vão

construindo e ampliando o saber inicial, até mais tarde terem autonomia na

realização da prática de fazer farinha, a partir dos seus próprios saberes. Conforme

Brandão (2007), as formas de educação produzem e praticam, reproduzem entre

todos os que ensinam e aprendem o saber, que atravessa, entre outros, os códigos

sociais de conduta ou as regras de trabalho.

Essa aprendizagem a partir da prática influencia no saber organizar o espaço.

Na Casa de Farinha Mutirão, percebi que, a partir do segundo esteio do lado direito

da casa, surge uma fileira composta de três fornos de cobre, como mostra a figura

28, que ficam distantes um do outro cerca de setenta centímetros. Ficam dispostos

dessa maneira, de acordo com uma jovem agricultora acostumada a torrar farinha

―porque o vento leva a fumaça pra lá. Se fosse do outro lado, o vento, o vento vem e

carrega a fumaça e fica tudo no rosto da gente e a gente não consegue mexer a

farinha [...] o forno é de acordo com o vento‖ (AFM, 02).

Figura 28 – A disposição dos fornos na Casa Mutirão. Fonte: Silva (2010).

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Esse saber prático orienta não só a disposição dos instrumentos de

fabricação da farinha, mas também as interferências que fenômenos da natureza

podem ocasionar nas condições de trabalho dos agricultores. Freire (2008)

considera que a prática nos ensina; razão pela qual não podemos duvidar de que

conhecemos muita coisa por causa de nossa prática. Para esse autor, no trabalho, o

ser humano usa o corpo inteiro, e isso faz dos trabalhadores da roça, intelectuais

também.

Guarda em cima, pras crianças não pegarem e ficar mexendo no chão. Então parou o serviço, boto lá e quando for torrar, se ficar sujo o cabo, a pessoa tem que lavar, botar pra enxugar, pra quando chegar a hora de torrar, já está no jeito de sair (AFM, 02).

Essa fala revela que os rodos que manuseiam a torração da farinha são

guardados, após o uso, próximo do telhado e da prensa, para que se tornem

inalcançáveis para as crianças, conforme se pode perceber na figura 29. Essa ação

mostra o cuidado em preservá-los de sujeiras, por serem instrumentos que são

colocados em contato direto com a massa da farinha.

Figura 29 – A organização do espaço para os rodos. Fonte: Silva (2010).

Na distribuição das práticas, por exemplo, o torrar é um saber-fazer

desenvolvido pelos que possuem mais experiência, porque envolve técnicas de

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aperfeiçoamento que só o tempo pode assegurar: ―nós chama de torrar e pra deixar

ela bem sequinha, escalda, põe pra escaldar, que diminui a quantidade de água que

ela tem‖ (AFC, 02). Trata-se de uma prática que está diretamente relacionada com a

qualidade final do produto: a farinha.

O que dá a cor na farinha é o escaldamento dela. Se você não escaldar, dá uma farinha ruim, não é uma farinha cheirosa, aí a gente escalda ela, e depois que ela estiver escaldada passa pra ali (indicou o outro forno). Passou daqui o fogo, é de um jeito, pra escaldar o fogo é de um jeito pra torrar é de outro, pra escaldar o fogo é mais alterado, tem que ser mais quente o forno que é pra poder dá essa liga que a gente chama, mas também se passar muito vai ficar só uma cola e do jeito que ela tá ali (indica o outro forno) tem que ser com o forno bem brando, que é pra poder não queimar o pó, pra ela sair bem branquinha (AFC, 02).

O discurso acima demonstra o conhecimento sobre a técnica do

escaldamento, que é o procedimento que assegura o sabor característico ao

produto. Para isso, saber controlar a temperatura adequada do forno é necessário

para aprimorar a qualidade da farinha. Essa técnica pode ser explicada por um

conjunto de conhecimentos (químicos, físicos, biológicos) que permitem a

transformação da massa da mandioca in natura, em farinha, que embora os

agricultores não expressem ou não se deem conta, é inerente ao processo.

Percebi que depois que a massa ―dá a liga‖, é preciso uniformizá-la. O forno é

desligado e a massa é retirada para ser esfarelada. Para facilitar a execução dessa

prática, a caixa do esfarelador é disposta próxima do forno de escaldamento. Esse

saber é essencial para garantir que os grãos da farinha fiquem uniformes na

torração.

Esses conhecimentos são inerentes ao tratamento técnico da massa de

mandioca, por isso na fala de um agricultor, para ―fazer farinha‖:

É preciso o cara saber trabalhar, saber quando tá no ponto de tirar. O mais difícil é o cara torrar ela. Mas agora não, agora é muito fácil, quando era no rodo, deixava o cara cansado, quando era mais novo não dava conta não, mas agora está mais fácil pra mexer. Se não souber mexer, tem o risco de queimar a farinha. É mais fácil de fazer porque tem o forno elétrico já (AFC, 05).

Esta fala evidencia que o saber torrar era considerado um dos saberes mais

difíceis do fazer farinha. Isto se deve ao fato de que nas casas onde a prática da

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torração ainda é manual, ou onde se ―puxa a farinha‖, é exigido do torrador mais

esforço físico e atenção em sua realização.

A torração da farinha nos fornos manuais é feita com a ajuda do rodo. O seu

manuseio requer uma habilidade técnica, cujo saber é construído também pela

observação atenta dos sujeitos:

Esse aqui está mais fácil para empurrar, esse lado dele aqui [mostra um dos lados do rodo], agora para puxar este lado está mais deitado. Para puxar ele nem tanto, precisa fazer mais força, do jeito que tá é mais maneiro. O rodo tem que botar na posição certa para puxar e para empurrar. Na escaldação, ele para empurrar pode amassar, e é só puxar, vai amassando e vai afinando (AFM, 02).

Para torrar a farinha, os rodos são movimentados com força e técnica.

Geralmente os torradores manuseiam a farinha de um lado para o outro, jogam pra

cima, como mostra a figura 30, prática que requer uma multiplicidade de movimentos

corporais. Talvez, por isso, nem todos os torradores conseguem ter domínio dessa

habilidade: ―eu não sei jogar a farinha pra cima‖ (AFM, 01), afirmou o mais

experiente produtor de farinha da Casa Mutirão.

Figura 30 – A finalização da torração. Fonte: Silva (2010).

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O jogar a farinha para cima configura-se em um movimento de finalização da

prática da torração e possui uma finalidade que é eliminar componentes que não

qualificam a farinha de acordo com os padrões regionais. Assim: ―jogando a farinha

pra cima sai o farelo e o cuí, o cuí é bem pequeninho, é o pó, e o farelo é cumprido‖

(AFM, 02). Da mesma forma, o movimento de manuseio do rodo, possibilita que o pó

queimado da farinha seja retirado, melhorando sua qualidade.

Entretanto, na Casa de Farinha Comunitária, a maneira como os fornos estão

dispostos no seu interior permite que os torradores, homens e mulheres, circulem ao

seu redor, o que facilita a prática do escaldamento e torração. Nessa casa, o forno

fica para o lado esquerdo: ―fica para o outro lado, porque lá é tampado, fica uma

parede‖ (AFM, 02).

De acordo com as informações locais, para que a prática da torração da

farinha seja realizada de maneira mais rápida, na Casa de Farinha Comunitária, os

agricultores não manuseiam rodo como nas demais casas pesquisadas. O tipo de

forno requer o manuseio de outro utensílio, as palhetas, como mostra a figura 31,

cujo formato é semelhante a uma espátula e são confeccionadas em madeira.

Figura 31 – O manuseio da palheta. Fonte: Silva (2010).

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Nas palavras de um torrador: ―as palhetas são utilizadas para ajudar na

torração da farinha, mas tem que saber usar, pode machucar o braço no forno‖

(AFC, 07). O cuidado revelado nessa fala está associado ao tipo de forno, pois

observei que os cilindros que fazem as espátulas girarem, não realizam sempre a

mesma trajetória no forno. Em alguns momentos as espátulas se aproximam das

bordas e em outros, distanciam-se. O manuseio da palheta requer uma habilidade

técnica, que só é adquirida por meio do aprender - fazendo.

Assim, com a introdução do forno elétrico, na percepção dos agricultores a

prática da torração, trouxe modificações neste saber, permitindo que os agricultores

o reconstruíssem, pois ao invés de ―puxarem a farinha‖, utilizam as espátulas na

prática de manusear a farinha e que remete ao pensamento de Freire (1983), para

quem o ser humano é um ser histórico, inserido num permanente movimento de

procura, porque possui a capacidade de fazer e refazer constantemente o seu saber.

Em conversa, um dos agricultores relatou que conhece pelo barulho da

farinha e pelo cheiro a hora certa de tirar do forno. A experiência deste sujeito

remete às palavras de Certeau (2008, p. 219), para quem o preparo de alimentos

―exige uma inteligência programadora: é preciso calcular com perícia o tempo de

preparação e de cozimento‖, além de uma ―receptividade sensorial que também

intervém‖.

O saber organizar o espaço possibilita que os sujeitos realizem duas práticas

em um mesmo lugar, na caixa (canoa), onde a farinha é resfriada e posteriormente

classificada. Classificar implica em peneirar a farinha para retirar a ―coruba‖, que são

grãos maiores que não foram desfeitos no escaldamento, refinando o produto. Na

Casa Mutirão, a ―coruba‖ é triturada no pilão e na Casa Comunitária, passa-se em

um esfarelador, que uniformiza os grãos para que sejam incorporados à farinha já

beneficiada.

Na Casa de Farinha Comunitária, alguns espaços foram redimensionados a

partir da percepção de que a proximidade da caixa de resfriamento da caixa de

sevar poderia umedecer a farinha e comprometer sua qualidade. Dessa forma,

fizeram o deslocamento das caixas de resfriamento para o espaço que fica próximo

de onde se pesa a farinha.

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Figura 32– O armazenamento. Fonte: Silva (2010).

Esse deslocamento da caixa de resfriamento, juntamente com o de outra

caixa de esfarelamento que não estava sendo utilizada, permitiu ampliar um pouco

mais o espaço da casa, o que demonstra que a organização do espaço, informa

saberes práticos, os quais, os sujeitos produtores são portadores, assim como

guardam relação com as práticas que são desenvolvidas no processo. A figura 32

indica o espaço de armazenamento da farinha após seu embalamento.

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3.3. O SABER PARA MANUSEAR OS INSTRUMENTOS E UTENSÍLIOS

O fazer farinha, em si, é uma prática produtiva que requer saber utilizar de

uma diversidade de instrumentos e utensílios próprios que atendem a cada

especificidade que o momento de produção exige.

Você aprendeu a fazer farinha com quem? -Foi com minha mãe mesmo. Minha mãe andava com o aturá e nós também. A senhora também andava com o aturá? -Vichi [expressão local], e muito. Ainda tinha uma rodilha nela, agora não, é só no saco que a gente carrega. A senhora acha que no aturá era melhor de carregar? -Era, porque não precisava de ninguém para arribar em minha cabeça, eu mesmo levantava. Quantos quilos a senhora carregava no aturá? -Eu, mais de trinta quilos, sendo um grande. Era trinta quilos (AFM, 04).

Eu carregava mandioca no aturá. Quero fazer as coisas, mas não dou mais conta. Agora as mulheres só ficam com espinhela caída porque pegam peso no saco e no aturá não. Agora as mulheres tem vergonha de usar o aturá (AFM, 03).

Os discursos revelam que o manuseio de alguns utensílios foi preterido em

função da inserção de outros, por exemplo, para deslocarem as raízes de mandioca

para as casas de farinha, os agricultores utilizavam o ―aturá‖ 11, (utensílio que pode

ser visualizado na figura 33). Esse utensílio favorecia o transporte porque não

precisava da ajuda de outra pessoa. Entretanto, com a inserção dos sacos de náilon,

o aturá foi deixando de ser manuseado, pois as mulheres passaram a ter vergonha

de utilizar esse utensílio que já fazia parte de seus costumes. Com a substituição, as

mulheres passaram a sentir dificuldades de locomoção, que são associadas a um

desconforto do corpo ou ―espinhela caída‖ 12.

11

Cesto em forma de paneiro utilizado para conduzir coisas da roça para casa, especialmente a mandioca. Possui uma ―alça para pendurar na testa‖, possui uma base retangular e borda redonda.

12 Essa expressão é utilizada por algumas agricultoras para referirem-se às ―dores nas costas‖ e ao

cansaço físico provenientes da execução das práticas do fazer farinha.

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Figura 33 – O aturá. Fonte: Silva (2010)

Saber manusear é um conhecimento que vai sendo aperfeiçoado de acordo

com a prática realizada e com o nível de experiência de quem manuseia.

Quem nem às vezes, meus meninos raspam um pouquinho. Aí já ensino pra eles tirar bem a casa, não comer muito a mandioca, porque às vezes passam a faca, que a lapada de mandioca fica. Ai a gente já ensina pra ele, que já estão entendendo também (AFF, 03).

Nessa fala é evidente a preocupação de ensinar os filhos a manusearem a

faca para que seja utilizada de forma adequada no descascamento da mandioca, a

fim de evitar o desperdício do produto e, consequentemente, o prejuízo na produção.

Considero que é possível configurar essa preocupação de ensinar o saber

manusear os instrumentos e utensílios numa pedagogia da cultura, que tem como

uma de suas dimensões a pedagogia do gesto. Uma pedagogia por meio da qual o

ser humano se educa mexendo, manuseando as ferramentas que a humanidade

produziu no decorrer do tempo, ―por que as coisas são portadoras de memória [...] é

a cultura material que simboliza a vida‖ (ARROYO 2008, p. 102).

Para os entrevistados, um dos instrumentos que exige mais atenção em seu

manuseio é o motor de cevar. Sua utilização, em geral, fica sob a responsabilidade

dos agricultores mais experientes, por que: ―se não tiver cuidado, a gente pode ferir

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o dedo‖ (AFC, 07). A aprendizagem desse manuseio começa por meio da

observação, técnica que será detalhada na seção posterior.

O manuseio da prensa, utensílio onde são colocados os sacos de náilon com

a massa, informa saber escolher os recipientes adequados para que suportem a

compactação da massa, e cuidado para não provocar acidentes durante sua

utilização, como mostra os discursos a seguir:

Se a pessoa colocar a massa num saco muito fino, o saco estoura. Tem que ter cuidado pro cara não prensar muito, se não o saco estoura e o cara tem que prensar tudo de novo. Quando a pessoa tá colocando o que não dá conta de prensar, pede ajuda de outro, Aí ajuda a prensar lá (AFC, 05).

Na prensa, o cuidado é com o ferro para não escapulir, porque se escapulir da mão, pode pegar uma pessoa. Tem que ir devagar (AFC, 07).

Para prensar, os sacos são acondicionados e separados por tábuas grossas

alternadamente, e permite extrair ―a manipueira que a gente chama‖ (AFC, 01).

Figura 34 – O manuseio da prensa.

Fonte: Silva (2010)

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Segundo sabedoria local, a manipueira13 é um líquido que sai da massa. Ele é

gerado na ralagem e prensagem da massa da mandioca e possui uma coloração

amarela. Para Santos (2010) a manipueira, em tupi-guarani, quer dizer o que brota

da mandioca. Esse líquido também é denominado de tucupi e para ser utilizado na

culinária, deve ser extraído da ―mandioca ralada no mesmo dia‖ (AFC, 01).

Manusear esse líquido requer conhecimento e cuidado, pois de acordo com o

discurso: ―ele possui um veneno‖ (AFC, 05), percebido na retirada da massa da

mandioca da caixa para a prensa: ―às vezes que a mandioca está quebrada

(mandioca sevada), às vezes deixa o cara tonto, e no outro dia está com gripe‖

(AFC, 05).

Outro manuseio inerente ao processo de produção da farinha de mandioca é

o peneirar, saber materializado em dois momentos distintos: quando a massa sai da

prensa e, posteriormente, depois da farinha torrada. Em conversa, uma agricultora

explicou que:

A massa bem enxutinha, é mais fácil, é rapidinho que cai da peneira. Agora quando tá molhada, ela é mais pesada, custa mais. Só se voltar pra prensa de novo. Quando chega agora mês de março, que chove muito, a mandioca fica chata pra enxugar, fica muito aguada. Pensa que ela tá seca e não tá. Aí volta de novo (AFM, 05).

O manuseio da peneira é facilitado pelo uso satisfatório da prensa, por meio

da qual os sujeitos têm condições de regular o nível de umidade da massa, que por

sua vez interfere na prática de peneirar. Assim, o saber local informa, por meio do

conhecimento já acumulado, que quando a massa da mandioca possui pouca

umidade ―é rapidinho que cai da peneira‖ (AFM, 05), ou seja, por meio do manuseio

da peneira é possível o praticante identificar a qualidade da massa e se ela está

apropriada para a continuidade da prática produtiva.

13

Para Pinho (2007) com base em estudos de Cereda, (2000) e Branco (1967) a manipueira é o resíduo líquido gerado na produção da farinha. Se faz necessário a retirada da água de constituição das raízes, o que é feito por compressão. O resíduo gerado é composto pela mistura de água com o líquido de constituição da raiz da mandioca. A manipueira é um dos resíduos mais prejudiciais ao ambiente, possui uma demanda bioquímica de oxigênio (DBO), e alta concentração de ácido cianídrico, elevado teor de potássio, magnésio, cálcio e fósforo.

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Percebi durante os períodos de convivência com a realidade local, que para a

realização da prática de peneirar, é necessário que o agricultor possua habilidade

para manusear, de forma que a massa caia com precisão na canoa.

Assim, para que essa prática atenda aos padrões de qualidade já

desenvolvidos pelos produtores de farinha, é necessário perceber, por meio do

manuseio da peneira, o teor de umidade da massa. Se ela está com muita umidade,

o praticante bate com a palma da mão a fim de que caia mais rapidamente e assim

aprende a manipular os instrumentos necessários à produção.

Figura 35 - O manuseio do forno. Fonte: Silva (2010).

Constatei que antes de iniciar a prática de torração da farinha, uma agricultora

da Casa Mutirão preparou o forno a ser utilizado. Primeiro limpou-o usando uma

vassoura proveniente do açaizeiro e, posteriormente, pegou um pouco de massa

crua e espalhou no forno com as mãos. De acordo com o saber local, trata-se de

uma técnica utilizada para retirar vestígios de impurezas. A figura 35 mostra como a

criança observa os movimentos da mulher nessa atividade, o que permite inferir que

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essas formas de saberes são transmitidas por meio das experiências dos adultos e

vivenciadas na prática.

Trata-se de um processo de ensino aprendizagem que guarda relação com as

reflexões de Arroyo (2008, p.102), ao considerar que ―o ser humano aprende com o

exemplo, aprende a fazer e aprende a ser, olhando como os outros fazem e o jeito

que os outros são. E os educandos olham especialmente para os educadores, na

sua referência para o modo de vida‖.

Meus registros dão conta que saber manusear o forno está associado ao

sentido de cuidar de um patrimônio familiar material:

Era do meu avô, tinha um retiro numa outra terra, dele. De lá o forno veio para o outro retiro..., o forno veio para os filhos, e dos filhos já veio para os netos e não demora já vem para os bisnetos trabalharem nele (AFM, 04).

Figura 36 – O manuseio da lenha. Fonte: Silva (2010).

O manuseio do forno inclui saber ―fazer o fogo‖. Antes, se limpa a parte

inferior interna do forno, é hora de ―ajeitar o fogo‖ para torrar a farinha. É preciso

saber escolher e manusear a lenha para alimentá-lo, pois, ―para fazer o fogo, tem

que ser com a lenha forte, porque com a lenha fraca não dá pra torrar‖ (AFC, 07). O

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manuseio da lenha na Casa de Farinha Familiar, como mostra a figura 36, se dá

com a ajuda de um instrumento de madeira que permite manter o torrador distante

do fogo. Essa prática quase sempre é realizada pelo torrador, porque ele possui o

conhecimento da quantidade de lenha necessária para torrar a farinha. Nesse

momento, quando o torrador percebe que precisa se deslocar até a ―boca‖ do forno

para monitorar a temperatura, deixa o controle do rodo que na Casa Familiar é

assumido por um dos filhos, mas retorna em seguida.

O manuseio das cuias e dos sacos para embalar a farinha, depois de torrada,

é outro saber identificado durante as observações. Em geral, a prática de manusear

a cuia para tirar a farinha do forno e colocar nos sacos é realizada na Casa Mutirão

pelas mulheres, com auxílio das crianças. Elas ajudam a abrir o saco onde é

depositada a farinha para ser levada para o resfriador. A ajuda configura-se como

uma prática mediadora da aprendizagem dos iniciantes, que para Freire (2010) os

torna participantes do processo educativo e não apenas receptores de

conhecimento.

De primeiro era no saco de pano, a gente lavava. Mamãe conta que chegou a carregar em paneiro. Era empalhada com folha de guarimã. Com o que faz o paneiro. Agora a gente ensaca no plástico, ela não fica mole, fica bem torradinha (AFM, 05).

Charlot (2000) considera a relação de saber, uma relação de um sujeito com

o mundo, com ele mesmo e com os outros, mas, também uma relação com o tempo.

No discurso acima, identifico que com as modificações das embalagens, do paneiro

para o saco de pano e deste para o saco plástico, os sujeitos passaram a aprender

outras maneiras de embalar. É possível inferir que o saco plástico, mesmo não

sendo reutilizáveis como os sacos de algodão, é o que permite uma melhor

conservação do produto. Assim, percebe-se que os sujeitos não são apenas

receptores do conhecimento acumulado dos pais, uma vez que, transformam suas

práticas e seu aprendizado.

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3.3. O SABER CUIDAR DA CASA DE FARINHA

Conforme venho sistematizando ao longo das análises deste texto de

dissertação, os agricultores entrevistados revelam por meio de suas falas e da

dinamização do cotidiano das casas de farinha, um conjunto de saberes acumulados

a partir das relações de convivência e da organização do espaço e do fazer farinha.

Neste item, sistematizarei mais um desses saberes, que é o saber cuidar, um saber

construído nas relações de (con)vivência familiar ou de cooperação.

Quando eu chego na casa de farinha, tenho que limpar lá, porque a gente tem que trabalhar pra gente vender as coisas bem. Tem que tá tudo zelado pra gente vender o produto da gente bem vendido. A gente sai daqui, quando chega lá, a gente tem que limpar (AFC, 01).

O cuidar das casas de farinha é um saber orientador e orientado por meio dos

processos formativos dos agricultores. Esse discurso revela o ―zelar‖ como categoria

empírica, que está incorporada num saber materializado na limpeza da casa de

farinha e que informa uma prática educativa socioambiental. Ele emerge como uma

condição para valorização do produto no mercado, ―pra gente vender as coisas bem‖

(AFC, 01).

Essa prática educativa socioambiental antecede o processo de produção da

farinha, e configura-se em um saber construído a partir da orientação dos pais e

remete às considerações de educação ambiental de Leef (2007, p. 218), como

processo no qual somos todos aprendizes e mestres, sendo que ―os bons mestres

sempre foram aprendizes até alcançarem a maestria de artes e ofícios‖.

O discurso a seguir revela um processo de ensino aprendizagem mediado

pela comunicação verbal de uma mãe:

As coisas que a gente vai fazer pra não ter sujeira, seu fulano vai sujar a coxa. A gente diz: ―fulano, limpa tal coxa, fulano, que tá sujo pra fazer a farinha‖. A gente ensina ele pra não fazer seboseira. Educar pra cuidar da higiene (AFF, 02).

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Neste sentido, a mãe é a agente formadora para quem o educar configura-

se nos cuidados com o espaço onde se realiza a prática de fazer farinha. O zelar da

casa de farinha, enquanto dimensão educativa da higiene aproxima-se da

concepção de Silva (2008) para quem os sujeitos são capazes de construírem

habilidades e atitudes frente a situações socioambientais que permitem

incorporarem-se no trabalho coletivo, em práticas onde o exercício da solidariedade

objetiva um ambiente saudável.

Figura 37 - A limpeza da cevadeira. Fonte: Silva (2010).

De acordo com as manifestações dos entrevistados, o saber cuidar emerge

no fazer farinha a partir da limpeza dos espaços da casa, nos gestos que higienizam

os instrumentos de trabalho, como mostra a figura 37. O cuidar da casa, guarda

relação com cuidar dos artefatos que estão nela. Segundo Boff (2008), o saber

cuidar implica ter intimidade, sentir, acolher e respeitar, entrar em sintonia com as

coisas.

Aqui é só eu mais os meus filhos, e aí eu digo: ―olha meu filho, tem que ajeitar essas coisas tudinho‖. Vou dizendo: ―olha meus filhos, não pode deixar as coisas sujas, porque uma pessoa chega aqui, vê tudo sujo vai, comentar‖. Olha, acolá é muito sebosa, farinha feia, preta e tal. Então tem que fazer desse jeito, assim e assim, que é para ficar bem bacaninha. Quando chegar uma pessoa assim e olhar, uma maravilha a farinha da pessoa. Todo mundo gosta (AFF, 01).

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Essa fala revela que o pai procura formar nos filhos uma consciência de que é

preciso ter cuidado com seus instrumentos de trabalho e com a casa de farinha.

Percebe-se nesses ensinamentos, que o saber cuidar orienta para uma prática

educativa socioambiental, que indica uma preocupação em cuidar da casa e dos

utensílios com vistas a resguardar a qualidade da farinha diante do comprador. E

ainda mais, o saber cuidar da casa, do ponto de vista de seu produto, das coisas

materiais, amplia-se para um cuidar da imagem do lugar – a casa da farinha, pois,

―uma pessoa chega aqui vê tudo sujo, vai comentar‖ (AFF, 01). Dessa maneira, os

sujeitos procuram cuidar da casa para que seu produto tenha uma boa aceitação por

parte de quem vai consumi-lo.

A partir desse mundo de experiência, os agricultores demonstraram, nos

relatos e conversas, uma preocupação com o destino do tucupi, que é produzido em

grande quantidade, como mostra a Figura 38, e as consequências para a estrutura

física da casa.

Figura 38 – A manipueira ou tucupi. Fonte: Silva (2010).

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Essa casa de farinha, ela se torna um intercâmbio. De repente, vem um povo aí visitar e ninguém tá sabendo que vem, como tá acontecendo. Aí onde é a casa de farinha, que queria ver, queria olhar. A gente chega lá e a primeira coisa que o cara vai olhar é a higiene, como é que é. Ontem mesmo, falei: ―isso aqui está bom de limpar, está no mato. Chama o pessoal para dar uma limpeza aí‖. Mas eu estou preocupado pelo seguinte, por que nós temos que botar lajota nos tanques, o tucupi come mesmo. Ontem eu chamei: ―vamos lajotar estes tanques‖. A casa de farinha deveria ser lajotada. Pelo menos o tanque, se a gente lajotar, já tem uma coisa garantida. Melhora muito (AFC, 01).

Nós já pensemos em ajeitar recurso para comprar uma lajota pra nós lajotar tudo, porque come um cimento, descascando tudinho. Tá ficando só o seixo já, tanque. Mais que passa é quatro cinco dia, aí já tá esgotando água, porque o tucupi da mandioca come todinho. Tanto pode ser de um lado, como de outro (AFC, 06).

Os entrevistados preocupam-se com a estética da casa de farinha. Essa

preocupação está relacionada com a opinião de pessoas que a visitam, porque ―a

primeira coisa que o cara vai olhar é a higiene‖ (AFC, 01), por isso os agricultores se

mobilizam para, em mutirão, realizar algumas atividades na casa tornando-a um

ambiente mais adequado possível à prática da produção da farinha.

De acordo com os discursos dos sujeitos, as casas de farinha, não possuem

lugares apropriados para o armazenamento do tucupi. No caso da Comunitária, o

espaço destinada foi insuficiente para armazenar a quantidade produzida, o que

provocou o encharcamento do solo ao redor da casa de farinha. Preocupados com

essa situação e demonstrando conhecimento dos danos provocados, inclusive para

a saúde, os agricultores solicitaram à prefeitura que ―abrissem buracos‖ para o seu

escoamento, como mostra a figura 39.

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Figura 39 – ―Buraco de tucupi‖. Fonte: Silva (2010).

Para Santos (2010), a manipueira (tucupi) tem um grande potencial poluente,

decorrente da quantidade de material não esgotado, essa poluição ambiental

restringe fisicamente os locais de produção pela formação de enormes volumes

deste líquido, por isso, é comum este resíduo ser jogado diretamente nos corpos

d´agua e no próprio ambiente circundante, formando lagos.

A fala de um agricultor revela que eles não comercializam o tucupi: ―a gente

podia vender, mas a gente não vende. Vem sempre uma mulher de outra

comunidade pegar aí pra vender, mas a gente não‖ (AFC, 06). Assim, a comunidade

ainda não conseguiu desenvolver formas de utilização desse resíduo. Para Santos

(2010) isso acontece pela própria desorganização dos produtores de mandioca, que

fortalece a inexistência de estruturas de aproveitamento desses resíduos e o próprio

desconhecimento sobre o seu potencial de uso.

Já está no plano a gente fazer outro curso aí, mas em cima da conscientização. A produção de farinha que tá bom, falta mais é o povo zelar pelo patrimônio que é dele. Por que isso daí a prefeitura veio quando terminou o curso, veio com ADA. Tá aqui, passou para a comunidade por meio de documento, tudo documentado. Então é da comunidade e não da prefeitura, o povo tem que levar a sério (AFC, 04).

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Segundo este depoimento, o saber zelar vai além de uma condição individual

dos agricultores no fazer farinha. Amplia-se numa perspectiva de cuidar da casa de

farinha comunitária enquanto patrimônio público, ―já que o povo tem que zelar pelo

patrimônio que é dele‖ (AFC, 04). Neste contexto, aflora uma tensão entre os

sujeitos que possuem a percepção ou a sensibilidade em manter o zelamento da

casa, e os que a utilizam apenas pela necessidade do fazer farinha, sem muita

preocupação com a conservação, no sentido de ser um bem comunitário.

Essa situação indica uma dimensão ética do cuidar da casa, uma vez que não

é um espaço de uso individual, mas de apropriação da comunidade, e que, portanto,

na percepção de alguns agricultores, exige mais cuidado dos sujeitos que deste

espaço se apropriam e utilizam-no. De acordo com Boff (2008, p. 12):

O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem – viver e das ações um reto agir.

Chama atenção o fato de que, na percepção do entrevistado, a demanda por

uma formação técnica para os agricultores da comunidade, não ocorre pela

necessidade de aprenderem a fazer a farinha, e sim pela necessidade de

―conscientização‖ do zelar da casa de farinha como bem da comunidade e não da

prefeitura. Seu discurso mostra uma percepção crítica em relação à utilização da

casa como um bem público. Para Freire (2010), o ser humano ao distanciar-se de

seu mundo vivido, possivelmente o problematiza e o decodifica criticamente, e nesse

movimento de consciência, se redescobre como sujeito instaurador desse mundo de

experiência.

O ―zelar‖ da casa de farinha e a demanda dos agricultores por um curso de

formação que aprimore suas práticas, aproxima-se da concepção do saber

ambiental, que se produz numa relação entre teoria e práxis, na busca pelo

conhecer e não se encerra em sua relação objetiva com o mundo, mas sim, na

produção de novos sentidos civilizatórios. É um saber forjado no ―diálogo de saberes

[...] no encontro entre a vida e o conhecimento, numa confluência de identidade e

saberes‖ (LEFF, 2008, p. 183).

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Nesta perspectiva, os agricultores, como sujeitos de reflexão e ação,

organizam estratégias que favoreçam sua formação e a transformação dos espaços

das casas de farinha como espaços de trabalho, de vida ou de educação.

3.4. O SABER PARA A COMERCIALIZAÇÃO.

A comercialização é um saber construído inicialmente a partir da vivência dos

agricultores: ―a farinha, a mandioca ela é importante para o agricultor, porque ele

sabe, cultiva isso, ele não aventura em outra coisa pra vender. Ele já sabe que se

ele plantar a mandioca, ele já sabe que vai dá‖ (AFC, 03). Nesse sentido, o ―fazer

farinha‖ para os agricultores está relacionado à facilidade de comércio desse

produto.

Em algumas ocasiões e dependendo da quantidade, os agricultores

negociam o produto na própria casa de farinha. A venda é consolidada assim que a

farinha é embalada, cuja prática de pesagem, é realizada diante da presença do

comprador. É uma oportunidade em que comprador e vendedor dialogam sobre o

preço, a quantidade e a qualidade do produto. Para a elaboração dos cálculos, por

vezes, os sujeitos não usavam caneta, papel, ou calculadora. Comprador e

vendedor dialogam até chegarem a um resultado satisfatório para ambos.

Mesmo quando a farinha não é negociada nas próprias casas, sua pesagem é

quase obrigatória. Essa prática favorece o diálogo entre os agricultores em relação à

verbalização dos cálculos, sendo que o cálculo do dono da farinha quase sempre se

aproxima do peso obtido com a pesagem. Este fato acontece, possivelmente, por ele

ser conhecedor da quantidade de mandioca que foi colhida para fazer a farinha.

A construção coletiva de saberes aproxima-se das análises de Charlot (2000),

para quem a construção do saber implica uma relação consigo mesmo e com os

outros, uma forma de atividade, uma relação com a linguagem e com o tempo.

Nessa perspectiva, os cálculos para a comercialização antecedem o fazer

farinha: ―ele já vai pegando a regra já, se ele colocou pra três sacos e não dá, no

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outro dia ele já coloca quatro. Aí já sabe já se faltou dois quilos, ele tem que colocar

mais um saco, até dá certo. Cada dia ele vai aprendendo mais‖ (AFC, 05).

É possível que esses cálculos que envolvem a quantidade de farinha

produzida pelo agricultor estejam relacionados com o nível de experiência que já

alcançou, mas também com o quanto necessita para suas despesas familiares e

como este conhecimento pode orientar que seja garantido minimamente o sustento

do grupo familiar até a próxima produção de farinha.

Dessa maneira, o saber para a comercialização é construído e remete à

concepção de Brandão (2007), que por meio das relações de troca de objetos e

ideias, as pessoas criam diferentes situações de sobrevivência, convivência e

transcendência.

Se você faz um produto de qualidade, é pensando naqueles que usa porque a nossa farinha não são aqueles grandão que precisa comprar farinha para comer. São aqueles de baixa renda que precisam comprar a farinha para comer. Compra, vende para comer. Então se você começa a trabalhar para melhorar, acho que melhora também, melhora no conhecimento, melhora na venda (AFC, 04).

A fala desse agricultor revela o conhecimento de que a farinha, embora não

seja um produto consumido com exclusividade pelos menos favorecido

economicamente, são os que a consomem em maior quantidade. Esse fato é

considerado pelos agricultores no momento de fazer a farinha. Os que possuem

essa percepção procuram aperfeiçoar o ―fazer farinha‖ e assim, ampliam seus

conhecimentos e suas habilidades de comercialização. Nesse sentido, o

comercializar remete à ideia de ―saber cotidiano‖ que permite resolver problemas

práticos, mas também um adequado desempenho social (MARTINIC, 1994).

Os sujeitos relataram que, dependendo de como o produto será

comercializado, se ―no retalho‖, ―para o retalho‖ ou ―em grosso‖, a prática de fazer a

farinha pode exigir mais tempo ou trabalho do agricultor. Dessa forma, ―vender no

retalho‖ significa que irá ser comercializada diretamente com o consumidor, sendo

que a medida usada para realizar essa forma de comércio é o litro; ―vender para o

retalho‖ configura-se como uma prática de negociação com um atravessador, que,

posteriormente destinará a farinha para a feira; ou ainda ―vender em grosso‖,

consiste em vender no atacado para um só comprador, em sacos de 60 kg, como

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mostra a figura 40, para revenda em comércios e mercados ou feirantes da cidade

de Mãe do Rio.

Figura 40 - Pesagem da farinha. Fonte: Silva (2010).

Ao referir-se a venda a retalho, um agricultou expressou:

A educação que eu acho aqui na casa da farinha é o cabra trabalhar com zelo, não deixando os filhos da gente tarem sujando uma farinha dessa, porque você vai pegar uma farinha dessa, que nem essa. Já estou comprometido pra uma velhinha ali. Aí uma farinha dessa aqui vai [...] eu deixo meus moleques pisarem aí em cima, não pode pisar [...] É uma educação que estou dando para os meus filhos, pra não vender coisa mal vendida, porque do preço de uma farinha dessa aqui, é 25 reais a lata. Aí o cabra chega lá: Ah! De onde veio essa farinha? Do retiro do [...] Mas rapaz, essa farinha dele é imunda, não vale esse preço [...] Espia o que eu achei na farinha dele (AFM, 01).

O depoimento acima revela que a venda ―a retalho‖ exige do agricultor mais

zelo com a farinha, uma vez que ele realiza a comercialização diretamente com o

consumidor, que, em geral, são pessoas da própria comunidade ou de áreas

circunvizinhas. Isso requer do agricultor familiar, cuidados que possam preservar sua

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imagem no comércio local, como fornecer um produto de boa qualidade, que

mantenha os padrões higiênicos da produção e, portanto, a continuidade da prática

de fazer farinha. Este saber presente no discurso do entrevistado evidencia

indicadores de uma prática educativa, em que os filhos atribuem sentido e

significado à ideia de zelar pela farinha, como uma forma de valorizar o produto.

Por essa perspectiva, o saber comercializar a farinha assume uma dimensão

ampliada para além da lógica do vender e do comprar, incorpora uma preocupação

com o outro. Portanto, uma postura ética que, por meio da oralidade, é passada para

as gerações seguintes. Ao enaltecer a qualidade da farinha que produzem, um dos

entrevistados demonstra satisfação com a qualidade do produto que comercializa.

Essa valorização, associada ao zelo que demonstra ter na prática de fazer farinha,

de certa forma, favorece o fortalecimento da identidade enquanto agricultores

familiares camponeses de um determinado lugar, ou região, como se referem

localmente.

Hoje em dia, eu digo que essa nossa farinha na nossa região aqui, acho que é uma farinha que é mais procurada, porque quando você chega no galpão, é mais quem chega no beiço daquele caminhão, porque sabe que chegou a farinha lá. É o caminhão da farinha boa. Porque a farinha que vem no caminhão é só farinha para o retalho. E através disso, a farinha nossa é a mais procurada da nossa região aqui (AFM, 01).

Dessa forma, na ação de vender a farinha, há sentidos compartilhados que se

encontram enraizados e subentendidos. A ―farinha boa‖ é um símbolo da

comunidade. Segundo Arantes (2004), o sistema de posições sociais é prescrito, e

os papéis dos sujeitos são inscritos de maneira em que se põem em prática as

normas previstas pelos usos e costumes.

Na comunidade, os agricultores procuram significar a farinha como um

símbolo da cultura local (GEERTZ, 2009), porque incorpora as evidências do seu

saber e do seu fazer. Segundo Arantes (2004), o que importa não são as coisas em

si mesmo, mas o conhecimento e os valores que elas consolidam como legado e

que são afirmados nas práticas cotidianas dos sujeitos.

Nesse sentido, na comercialização, procuram dar visibilidade aos resultados

de sua práxis, por meio da garantia da qualidade do seu produto.

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Às vezes a pessoa não faz uma farinha bem boa mesmo, porque o cabra não bota o preço. Porque pra pessoa fazer três sacos de farinha, tem que ser quase dois dias pra fazer uma farinha boa, porque ali o cabra tem que fazer tudo no jeito. A mandioca bem mole mesmo, aí vai só peneirando e torrando só de uma fornada, aí você faz uma farinha boa. Aí, o cabra, às vezes, faz desse jeito e o cabra vem buscar e quer pagar o preço de uma toda mesmo aí. Sai uma farinha boa, mas aí a gente faz desse jeito, mas o cabra quer pagar do mesmo preço de uma que é feita com toda terra. Aí não tem condição pra gente. Eu ainda faço assim porque não gosto de coisa mal feita. Eles botam na farinha de 80 reais, não dá de fazer uma

farinha boa não. Dá muito trabalho (AFF, 01).

No discurso acima, é evidente o conhecimento do agricultor quanto à

desvalorização imposta ao produto no mercado pela lógica do atravessador. Essa

condição reforça que outras formas de produção sejam priorizadas, uma vez que o

tempo, trabalho e os cuidados despendidos não são recompensados no momento

da comercialização. Revela ainda que, em algumas situações, há uma resistência

em fazer uma farinha de qualidade.

Essa percepção aproxima-se das análises de Santos (2006, p. 110), para

quem há uma lógica da produção das ausências:

É a lógica da classificação social. Embora em todas as lógicas de produção de ausência e desqualificação das práticas vá de par com a desqualificação dos agentes. É nesta lógica que a desqualificação incide prioritariamente sobre os agentes e só derivadamente sobre a experiência social (práticas e saberes) de que eles são protagonistas.

Conforme observado, durante a realização de algumas práticas nas casas

de farinha, os adultos estão quase sempre rodeados de crianças, o que favorece o

processo de troca de saberes no cotidiano dessas casas. Em uma das ocasiões da

pesquisa, fiquei próxima de uma mãe e seu filho, com idade aproximada de quinze

anos. E registrei o diálogo a seguir:

_ Por quanto vendeu a farinha?

_ Vendi por R$1,50, mas depois, quando ficou difícil pra vender, baixei para R$ 1,30.

Então os dois passaram a fazer a multiplicação de quanto seria o ―apurado‖

de dez litros de farinha. Registrei que, dependendo da situação, a mãe orienta o

filho que é preciso adotar estratégias para garantir minimamente a venda, como, por

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exemplo, baixar o preço da farinha. Ao dar essa orientação, ela situa o filho

historicamente no mundo da vida, um mundo já constituído, em condições sociais

concretas. De acordo com a lógica marxista, nesse mundo é preciso saber viver, no

caso, é preciso saber vender, ou seja, de acordo com Heller (2008, p. 31), é preciso

―colocar em funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades

intelectuais, suas habilidades, seus sentimentos‖. Daí considerar que esse saber

exigido na prática da comercialização da farinha, incorpora uma dimensão

educativa.

Na perspectiva evidenciada por Charlot (2000, p. 54), ―a educação só é

possível a partir de uma produção de si por si mesmo, mas essa autoprodução só é

possível com a produção do outro e com sua ajuda‖. Para esse autor, a educação é

um processo no qual o ser humano educa-se numa troca de si mesmo com o

mundo, e para isso ele mobiliza-se numa atividade e faz uso dela como recurso.

Segundo as informações dos agricultores, a produção da farinha na

comunidade está relacionada ao seu cotidiano alimentar, uma vez que a utilizam

como alimento. Essa utilidade cotidiana ―faz dela valor de uso‖, e constituindo um

valor de uso, ―realiza-se somente no uso ou no consumo‖ (MARX 1998, p. 45-46). A

ideia de cotidiano está referenciada em Heller (2008, p.33), para quem ―a vida

cotidiana é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens

particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da reprodução social‖.

Dessa maneira, nessa perspectiva de reprodução social, os sujeitos

produtores de farinha da comunidade, individualmente ou em pequenos grupos,

estabelecem uma diversidade de relações de mercados que superam o local, pois

adotam lógicas diferenciadas para sua comercialização, o que permite discutir a

farinha enquanto mercadoria. Neste sentido, ―é necessário que o produto seja

transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca‖ (MARX 1998, p.

49).

Nessa aprendizagem e socialização do saber para a comercialização, o

destino principal do comércio da farinha ainda é a compra de alimentos, como

mostra a seguinte declaração:

A gente não tem do que viver mais, porque a gente não planta um feijão, pra gente não está comprando, a gente não planta arroz. E a farinha não, a farinha ajuda a gente, porque nos alimenta e a gente vende pra comprar alimento, e isso é importante. Às vezes, a gente quer fazer uma coisa, ou comprar, aí vai e compra (AFC, 02).

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O discurso dessa agricultora revela que é no espaço das casas de farinha

que, algumas vezes, os sujeitos planejam o destino que será dado ao dinheiro:

Muita coisa a gente aprende, principalmente as mulheres, mesmo que quando estão raspando a mandioca, conversam... a gente conversa sobre nossas casas, comprar tal coisa que precisa para dentro de casa, fazemos planos do que vamos comprar, se der de comprar a gente compra, [...]. Nós planejamos um bocado de coisa. que nós gosta de tá arrumando nossas casas. A gente diz: ―Fulano, vamos fazer farinha?‖. Para fazer tal coisa, que a gente quer ou a gente precisa. É isso. [...] A gente calcula, que nem a gente vai fazer três sacas e baixou de preço, aí a gente calcula, quanto vamos receber pelo que a gente fizer. A gente pode guardar assim, pra inteirar mais, pra comprar de outra vez, se for caro mesmo (AFF, 02).

O discurso acima evidencia que no espaço das casas de farinha, informações

são compartilhadas. Por meio das conversas planejam possibilidades, que ao serem

alcançadas, fortalecem os anseios, tanto individual quanto coletivo no que concerne

a busca por qualidade de vida. Esses diálogos remetem à educação do cuidar, que

de acordo com Oliveira (2003) estabelece-se por meio da cultura de conversa, um

ensino aprendizagem, cujo conteúdo é produzido por homens e mulheres e refletido

enquanto saber-cotidiano.

Assim, a educação se desenvolve nas trocas de saberes, nos processos de

ensino aprendizagem, na realização das práticas de fazer farinha, permitindo que se

construam espaços de informação que orientam e facilitam a relação entre pessoas

e entre saberes.

3.5. O SABER PARA A ALIMENTAÇÃO.

O espaço das casas de farinha é apropriado também para a prática da

alimentação. Percebi que os sujeitos, ao mesmo tempo em que realizam as práticas

inerentes ao fazer a farinha, tratam dos alimentos e se alimentam. Em algumas

ocasiões, basta um convite e a hora chegou. Este saber para a alimentação norteia

as práticas, as ações de criar, cuidar, ou educar.

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A gente cozinha na casa da gente e já leva pronta pra lá. Chega os montinhos pra cá e pra li. E chega lá. Faz tipo uma confraternização. E, às vezes, quando vai muito, a gente faz lá, coloca as panelas num fogo de lenha e faz lá mesmo. Quando não, cada um vem pegar na sua casa. Eu deixo a minha menina pra fazer e quando chega lá, se der pra dá uma colher e repartir pra todo mundo que tá lá (AFC, 02).

Assim, vezes, os alimentos são preparados na casa de morada. Por sua vez,

na casa da farinha, a hora da alimentação assume um ritual coletivo, de

confraternização e solidariedade, porque ―os montinhos pra cá e pra li (AFC,02)‖,

são oferecidos e/ou partilhados entre todos os presentes. Os alimentos que chegam

à casa de farinha são consumidos pela família que os trouxe e oferecidos às demais

num processo de troca. Nesse ritual, o respeito ao alimento alheio é cultivado

possivelmente como forma de evitar tensões. Essa prática simbólica e educativa

informa a existência de normas que orientam a convivência dos sujeitos nas casas

de farinha.

Brandão (2002) em suas reflexões conclui que a cultura humana é fruto do

trabalho e da educação, uma vez que somos seres humanos que aprendemos na e

da cultura somos e participamos do que nos cerca e do que nos enreda. É um

processo que envolve desde a língua que falamos à comida que comemos. Dessa

forma, é possível considerar que há um rito cultural em relação à prática da

alimentação que faz parte no cotidiano das casas de farinha.

Na Casa Comunitária onde um número maior de famílias faz farinha, observei

que em cada canto da casa, em cima da meia - parede ficam dispostos os utensílios

usados nos momentos das refeições e os alimentos que são consumidos durante o

desenvolvimento de suas práticas. Esses alimentos se caracterizam pela

diversidade e variedade, mas, no geral, indicam alguns traços do modo de se

alimentar de outros tempos. Encontra-se desde o alimento proveniente da caça, da

coleta de frutos na comunidade, como mostra a figura 41, ou de alimentos que

conformam hábitos alimentares originados de outros lugares.

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Figura 41 – O alimento. Fonte: Silva (3010).

E fazer farinha é muita coisa... A gente não vai lá só fazer farinha, a gente troca ideias com seus colegas, cozinha, põe a panela lá no fogo, cozinha na hora do almoço, a gente almoça, convida os colegas que estão por lá. É isso, a gente não vai pra lá só fazer a farinha, ficar lá parece um mudo... Tem que conversar, dialogar alguma coisa (AFC, 02).

A comunicação evidenciada nesse depoimento, demostra uma concepção

ampliada do fazer farinha, uma vez que a prática da alimentação configura-se como

uma prática educativa, nos momentos que antecedem e sucedem o preparo do

alimento, configurando o saber fazer, com o saber dividir, com o saber criar

relatando e o saber construir relações afetivas.

No cotidiano das casas de farinha, a prática de preparar os alimentos guarda

uma relação de gênero, pois é de responsabilidade da mulher o seu

desenvolvimento, conforme mostra a figura 42.

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Figura 42 - O preparo do alimento. Fonte: Silva (2010).

Por configurar-se como prática educativa, mesmo sendo uma atividade

elementar da vida cotidiana, requer um processo de transmissão de conhecimentos

acumulados. Para Certeau (2008, p. 218 - 219):

As práticas culinárias se situam no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e mais desprezado [...] envolve a transmissão de saber [...]. Desde que alguém se interesse pela arte culinária, pode-se constatar que ela exige uma memória múltipla: memória de aprendizagem. Memória de gestos vistos, das consistências.

Ao perguntar para um dos entrevistados que saberes se aprende numa casa

de farinha, ele respondeu:

Pra mim é essa união, pra ajudar a trabalhar, todos achando graça, brincando, um ajudando o outro. Muitas vezes na hora do almoço, cada um traz um pouquinho, divide um com o outro. Eu acho isso importante, porque mudou a vida das pessoas, mudou não, tá mudando a vida das pessoas, melhorando a convivência família com família.

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A fala acima revela que na prática do fazer farinha existe a construção de

uma convivência, cujo compartilhamento das práticas e dos saberes promove

―união‖, confraternização, ―brincadeira‖, no seu sentido mais amplo de ludicidade.

Dessa forma, essa convivência e fazer coletivo configuram-se como uma ação

educativa, uma vez que fortalece, por meio de uma diversidade de relações, os

laços famílias, de compadrio e comunitários.

A confraternização pelo alimento, enquanto momento educativo associa-se à

análise de Certeau (2008, p, 232), para quem ―a arte de nutrir tem a ver com a arte

de amar‖, ou de Brandão (2002), ao considerar que por meio do que comemos

trocamos além de mensagens, sentimentos, evocações, ideias e valores de vida.

O discurso de uma entrevistada revela a dimensão educativa do saber para a

alimentação na casa de farinha comunitária. Em sua fala, destaca que o consumo da

farinha está relacionado às normas internas da casa, construídas a partir das

relações de (con)vivência:

São várias as pessoas que trabalham na casa de fazer farinha. Mas se eu torrar primeiro a farinha, e botar no saco, aí a pessoa que tem educação vai pra querer tirar uma mão cheia de lá. Ele pede de quem é o dono da farinha. Acho que isso é educação que a pessoa tem. Porque tem gente que chega e não tá nem aí, não tem educação (AFC, 01).

Figura 43 - O alimentar-se da farinha. Fonte: Silva (2010)

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Identifiquei que um dos alimentos mais consumidos é a própria farinha. Na

Casa de Farinha Familiar, crianças e adultos a consomem sem nenhuma restrição:

aproximam-se das canoas, como mostra a figura 43, e com a mão em forma de

concha retiram um ―punhado‖ que imediatamente é consumido. Segundo Certeau

(2008, p. 234):

Cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias [nas relações cotidianas] sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito [...] empilha-se uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmo e de opções, de hábitos herdados de costumes repetidos.

O consumo da farinha durante o desenvolvimento de seu fazer é uma prática

comum entre os que convivem no espaço das casas. Percebi que algumas vezes a

farinha é retirada das canoas assim que sai do forno. Outras vezes, no próprio

momento da torração, prová-la é uma das maneiras que o agricultor encontra de

identificar se a mesma já está escaldada ou no ponto de retirada.

Estudos analisam a farinha de mandioca enquanto componente ou base da

alimentação da maioria da população amazônida. Sua qualidade é verificada pela

textura e sabor, serve de acompanhamento em vários pratos e pode também ser

consumida sozinha que, com certa habilidade, seus apreciadores arremessam-na a

boca durante o dia (ADAMS, 2008).

De acordo com Brandão (2002, p. 20), ―aprendemos com o tempo [...] a lidar

com os alimentos naturais com entidades de um profundo valor simbólico‖. Assim,

dos produtos cultivados, a raiz de mandioca é nomeada o mais importante para a

família, por considerarem que é dela que fazem a farinha: ―porque se o cara estiver

com fome, tendo a mandioca, a gente vai e torra a farinha e come a farinha então,

toma um chibé aí, faz um bolinho, né?‖ (AFC, 05).

Durante a realização da pesquisa, um dos agricultores explicou a existência

de diversos tipos de farinha, e de que se alimentar da farinha puba ―faz mal para

quem sofre do estômago, a seca não faz mal‖ (AFC, 07) Isso revela um

conhecimento local, de que a maneira de preparar a farinha, enquanto alimento,

pode prejudicar a saúde das pessoas, por isso, os agricultores relatam que

costumam fazer em maior quantidade a farinha misturada, que consiste em

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adicionar porções de massa puba, proveniente das raízes deixadas de molho, à

massa processada do mesmo dia.

Esse saber para a alimentação, que é inserido no cotidiano das casas de

farinha, orienta as práticas alimentares dos sujeitos e foram possíveis de serem

identificados em vários momentos durante as refeições, dos quais tive a

oportunidade de participar, na medida em que me ofereciam o alimento. Em um

desses momentos, um dos agricultores na Casa de Farinha Comunitária informou

que a ―comida seca não sustenta o cabra que trabalha na roça‖ (AFC,09). Ao

perguntar o porquê dessa afirmação, ele respondeu: ―deve ser uma comida com

caldo, pra sustentar‖ (AFC, 09). Essa fala revela que a maneira de preparar os

alimentos que são consumidos pelos agricutores influencia na disposição física para

o trabalho.

Se na Casa de Farinha Comunitária em quase todos os momentos o alimento

está presente, na Casa de Farinha Mutirão, esses momentos são raros. Assim

expressa uma agricultora:

A farinha demora muito pra torrar. Dá logo um abrimento de boca, de barriga cheia. Eu acho que custa mais, porque a gente fica com preguiça, dá uma indisposição muito ruim na gente, aí o cara só quer dormir (AFM, 02).

O conhecimento de que o alimento pode causar indisposição, possivelmente,

tem relação com o fato de que na Casa de Farinha Mutirão o fazer farinha exige

mais esforço físico, como exemplo, o torrar, que é realizado de forma manual, ao

contrário da casa Comunitária, já explicada na seção anterior.

3.6. O SABER POLÍTICO.

Embora reconheça que todos os saberes culturais do ser humano são

políticos, optei por denominar aqui de saberes políticos, os que emergem das

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tensões, das experiências contraditórias ou das estratégias encontradas para

superação de dificuldades pertinentes ao fazer farinha.

Os saberes políticos presentes no cotidiano dos agricultores produtores de

farinha orientam maneiras de ensinar e maneiras de aprender, e remetem às

reflexões de Freire (2010), para quem o ato de ensinar relaciona-se com a maneira

como os seres humanos organizam a sociedade política, ou ainda de Certeau

(2008), ao considerar que a ação dos sujeitos permite traçar ―estratégias‖ de

combate que alteram as regras do espaço opressor com suas destrezas e táticas.

Tem o presidente, todo mês a gente reúne, porque todo mês esbandalha muitas coisas, aí a gente não pode fazer sozinho. Aí essa reunião que a gente faz, vê o balancete e quanto tem de condição financeira. Se tem que comprar ou fazer aquilo que é necessário. Se não tem, e aí se tem o recurso, vê o que falta e cada um tem vez e voz. Se tiver o recurso para o que falta, a gente vai lá, compra e faz. E agora essa semana que vem nós vamos aumentar isso aqui [espaço físico da casa], a reunião é pra isso, é pra combinar dentro do fazer farinha e aí a comunidade tem pessoas que nem fazem farinha aqui [casa de farinha], mas dá o apoio dele na reunião (AFC, 03).

Essa fala evidencia que reuniões são realizadas na Casa de Farinha

Comunitária, pelo menos uma vez por mês, para tratarem sobre situações referentes

ao fazer farinha. As reuniões configuram-se como espaço de discussão e

deliberações sobre assuntos referentes às finanças da casa, à organização do

trabalho, à limpeza da casa, à manutenção das máquinas, ao pagamento das taxas,

aos reparos que precisam ser feitos entre outros. Como espaço de participação

coletiva, pois, ―cada um tem vez e voz‖ (AFC, 03).

Nesse contexto, o saber político é construído por meio de uma relação

dialógica que permite que os agricultores expressem suas percepções, avaliações e

encaminhamentos, portanto, como um saber cultural. A reunião é considerada um

momento significativo, na qual são discutidas estratégias em que os agricultores dão

novas definições para suas questões cotidianas. O estabelecimento de diálogos

firma a educação que encontra-se implícita nas práticas políticas espontânea e são

oportunidades de ampliação de conhecimentos. Para Freire (2010, p. 91):

Se é dizendo a palavra com que ‗pronunciando‘ o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir

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de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro.

Nessa perspectiva, Freire (2009) considera que o ser humano pode ser

eminentemente interferidor. Para ele, o ser humano não se conforma em ser um

simples espectador, pois, interfere na realidade para modificá-la, ao herdar a

experiência adquirida, cria e recria integrando-se ao contexto, lança-se no domínio

da história e da cultura.

Às vezes eu vou, às vezes não, não dá pra nós mulheres! Os homens que tinham que ir pra reunião, porque eles marcam a reunião dia de domingo, e aí a gente vai pra igreja. Tem que ir pro igarapé. Quando a gente pensa que não, eles já estão pra lá, a gente não vai mais (AFC, 01).

A participação das mulheres nas reuniões não acontece na mesma dimensão

e/ou frequência de sua participação na prática de fazer farinha. Dessa maneira,

atribui-se ao homem o papel de participante político. Por outro lado, explicam sua

não participação em virtude do horário realizado, quando estão imbuídas de outras

funções domésticas. O que possivelmente, expresse o quanto as mulheres

agricultoras são invisibilizadas.

Para Geertz (2009, p. 203), ―a vida política é uma batalha de personalidades

em qualquer parte do mundo‖. Assim, os posicionamentos revelados nos discursos

dos sujeitos se mostram mais evidente na Casa de Farinha Comunitária, onde cada

sujeito possui uma função importante, que exige a colaboração e a participação de

todos os que ali fazem farinha.

Quando é a reunião é que nós vamos prestar conta. Vombora ver como é que está aqui: fulano pagou, fulano não pagou. Tinha lá umas castanhas de motor que estava comido, que sacou e um queria comprar a correia, outro disse: ―eu não vou comprar porque se não fulano sexta-feira vai torrar farinha e vai usar‖. E dinheiro não tinha, quando aparecia dinheiro já no ultimo domingo do mês de abril, entrou R$ 250,00 e eu fui comprei bola [do motor], comprei correia e melhorou. Estes tempo tá assim, mas tem um que tá desde o mês de dezembro, até hoje e não paga. Ele me disse que vai tirar o nome dele e vai colocar o nome da mulher porque ele já está no SPC e ele já tá. Aí ele vai fazer por ela, porque vai ficar o nome dela. Aí nos reunimos e disse quem não quiser pagar três reais e quiser fazer a farinha, vamos cobrar quatro quilos por cada saco. Nesse dia, nós temos um grupo aí, que vai lá e traz os quatro quilos por cada saco de farinha. Se o cabra não quiser pagar, porque fica chato o cabra dizer assim: ―você não torra sua farinha hoje‖. Não fica doído? Só se a pessoa tem um coração de pedra pra dizer essas palavras. Mesmo porque têm muitos aqui, que quando passou a

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ter esse retiro aí, ele vendeu o motor, fez tudo isso, quando é agora, não quer pagar, e disse que se passar isso para a pessoa que não ser da comunidade, iam viver melhor [...]. O retiro não é da comunidade, na verdade não é da comunidade mesmo, é de um bocado de pessoa aí, é comunitário (AFC, 06).

De acordo com esse depoimento, durante as reuniões é comum saírem

discussões relacionadas ao pagamento da taxa, que depois de arrecadada é

utilizada para manutenção da casa de farinha. Por vezes, alguns dos agricultores

não realizam o pagamento, provocando tensões e revolta daqueles que pagam. Na

tentativa de solucionar o problema, os agricultores elaboraram uma lista,

denominada de SPC, na qual consta o nome dos principais devedores da casa de

farinha. Essa lista ficou exposta durante alguns dias, mas, segundo a avaliação de

alguns sujeitos, essa estratégia não surtiu o resultado esperado. Uma das possíveis

razões quanto ao não pagamento, pode ser o fato de que a casa é um patrimônio

público, uma vez que o pagamento da taxa de energia elétrica ficou sob

responsabilidade da prefeitura.

Assim, os agricultores buscam superar conflitos por meio da negociação e

estabelecendo normas internas que exigem condutas mais responsáveis e

disciplinadas. Ao mediarem conflitos e atribuírem responsabilidades para os que

não cumprem o acordado na coletividade, a postura política do mediador incorpora

também uma dimensão educativa, que se aproxima do pensamento de Brandão

(2007), ao considerar que a educação é o resultado de uma consciência viva, de

uma norma que rege uma comunidade humana, atuando sobre a vida e o

crescimento da sociedade.

Para Geertz (1989, p. 154):

tudo é manchado com um significado imposto e os companheiros, como os grupos sociais, as obrigações morais, as instituições políticas ou as condições ecológicas, entre outras só são apreendidos através de uma tala de símbolos significantes.

Os saberes culturais dos agricultores não se limitam apenas ao resultado das

práticas sociais do fazer farinha. Ao se disporem a travar debates significativos,

permitem o cruzamento de uma concepção ideológica de coletividade com suas

necessidades de reprodução social. Possibilitam a construção, reconstrução e

socialização de um saber político que os permite discutir questões referentes à

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produção da farinha, ao mesmo tempo em que se dedicam ao planejamento de

alternativas para os problemas que os atinge.

Na Casa de Farinha Mutirão, o saber político emerge da (con)vivência entre

os agricultores, que conseguem se organizar por meio da ajuda mútua para realizar

o fazer farinha ou outras atividades.

Exatamente a gente fica trocando dia com os amigos, tem um grupozinho né? Eu mesmo tenho o meu grupozinho, porque são dois compadres que eu tenho e o meu cunhado. Aí a gente faz a dele, depois a gente faz a do outro e quando for pra mim, todo mundo vem e são meus parentes tudo. E, na verdade dá aquela forcinha e vai fazendo a união. Não é dizer: ―olha, ele fez aquela roça dele, mas foi sozinho, ele que trabalhou‖. Não! Se eu fazer isso, estou mentindo (AFM, 01).

A expressão, ―tenho o meu grupozinho‖ (AFM, 01), pode significar uma

divisão interna dos agricultores. Cada um, forma seu grupo, ou tem um grupo com

quem trabalha e nele assume uma liderança, o que pode não representar uma

relação autoritária, mas algo que permite a organização no trabalho do grupo e o

desenvolvimento de práticas sociais nas casas de farinha informa ainda a

socialização de um saber, a ―união‖, que permite a configuração desse espaço como

sendo educativo também.

Neste sentido, o saber político insere-se como uma dimensão do saber

enquanto produto cultural, que, embora restrito à esfera local, conforme Geertz

(1989) constitui-se em ideias, valores, atos, emoções, capacidades e disposições.

No discurso de um agricultor, o mutirão é uma prática que requer que todos

assumam um compromisso antecipado, pois os acertos são estabelecidos antes de

iniciar a semana de trabalho, definindo quais são as atividades e em quais dias

serão realizadas:

Quando a gente vai trabalhar um com o outro, nós senta que nem um domingo, que todo mundo tá se vendo, nós senta: ―olha, nós vamos trabalhar pra ti‖. Aí nós vamos naquele dia. Aí em caso de doença, se não pode vir, ele manda dizer: ―olha, eu não vou trabalhar pra ti, porque eu tô doente. Não é porque ele tá doente que eu não vou. É assim que é. Que nem hoje. Terminamos de fazer o serviço aqui e todo mundo baixou sua enxada: ―Vamos sentar agora. Agora, qual é o dia fulano que tu quer? Ah! O meu fica para tal dia, o meu pra tal dia‖. Todo mundo fica sabendo do dia do outro. Antes disso, se dá algum caso de doença, pronto, aquele a gente não vai, ele tava doente (AFM, 01).

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136

O mutirão constitui-se em um espaço de agir coletivo, por meio do qual,

socializam conhecimentos e informações do trabalhar com a agricultura e de praticar

a ajuda mútua. Em certa ocasião, perguntei a um agricultor, que concepção ele

tinha de educação nas casas de farinha e ele respondeu que educação pra ele era:

―Essa ajuda, quem não tem a capacidade de ajudar o outro, não tem educação‖

(AFC, 03).

Ao perguntar se essa ajuda por meio das relações de (con)vivência contribuía

para o fortalecimento das relações sociais e manutenção da comunidade, obtive a

seguinte resposta:

Ainda contribui. Tranquilo. Da minha parte e de meus companheiros também, justamente por causa da ajuda, porque se não fosse a ajuda, que nem eu tenho aquela rocinha na beira do caminho, eu tenho a outra aqui, dá uma tarefa, a outra dá quatro, só eu e a mulher, só nós doizinhos. Já pensou? (AFM, 01).

De acordo com esse depoimento, o saber político que permite a ajuda mútua

é traduzido em educação com conteúdo humanista e baseado no valor da

solidariedade e guarda relações com o pensamento de Freire (2009), ao considerar,

que é a partir das relações do homem com a realidade, resultante de estar com ela e

nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, que ele vai dinamizando o seu

mundo, humanizando a realidade, acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o

fazedor.

O saber político construído a partir das relações de (con)vivência ou da ajuda

revelado nos discursos dos agricultores incorpora práticas culturais cotidianas, por

vezes consideradas como insignificantes porque guardam interiormente, lógicas que

se contrapõem à lógica do capital. Essas práticas culturais cotidianas suscitam a

compreensão de que o conhecimento técnico, presente no desenvolvimento das

práticas de fazer farinha, possibilita o repensar dessas casas, como sendo não

apenas espaços de trabalho, mas de educação contínua.

A solidariedade revelada nos discursos dos sujeitos sobre o mutirão ou, a

ajuda remete à concepção de um fazer farinha não apenas produtivo, mas

sociopolítico, já que os sujeitos, por meio da continuidade desta prática, parecem se

contrapor ao processo de invisibilidade e exclusão em que estão inseridos.

Há indícios de recuperação e valorização dos sistemas alternativos de

produção que coloca em questão, conforme Santos (2006, p. 110), ―o paradigma do

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137

desenvolvimento e do crescimento econômico infinito e a lógica da primazia dos

objetivos de acumulação sobre os objetivos da distribuição que sustenta o

capitalismo global‖.

A ajuda, recorrente em várias manifestações dos sujeitos, apresenta-se de

maneira diferenciada nas casas de farinha pesquisadas. Na Casa Comunitária, não

há trocas de dias, como na Casa Mutirão, mas troca de ajuda, ou seja, quando uma

família conclui o seu fazer farinha, quase sempre procura logo ajudar as famílias que

ainda estão fazendo a farinha. Isso demonstra compromisso, pois, na maioria das

vezes, não precisa a outra família ser solicitada, as famílias passam a interagir na

realização das práticas.

Toda essa coisa da pessoa trabalhar junto já é uma coisa muito importante, trabalhando assim um ajudando o outro e aí faz parte porque, às vezes, um não pode torrar, mas aí o outro ajuda, porque antes, cada um cuidava de si. Hoje, cabe a parte da educação familiar, no caso (AFC, 03).

Este depoimento revela que a casa de farinha comunitária tornou-se um

espaço favorável às trocas de saberes no fazer farinha, pois, com a apropriação do

espaço pelas famílias de agricultores, o fazer farinha, que antes era realizado de

maneira individual, no sentido de ser apenas de uma família, e que passou a ser

realizado a partir do trabalho coletivo, guardando relações de (con)vivência que

mediam a socialização dos saberes incorporando a educação familiar, uma

educação do cotidiano, que na análise de Brandão (2002), é um campo de

interligações possíveis de experiências sociais e simbólicas da vida, das pessoas,

da sociedade e da cultura.

Não uso outro canto para fazer a minha farinha... Só no meu retirinho mesmo. O pessoal já pelejaram pra me levar pra li [refere-se à casa de farinha comunitária], mas não gosto não. [...]. É um pra cá, outro pra acolá, aí eu não adoto muita zoada não, prefiro trabalhar devagar, mas tendo o controle de tudo [...]. Quando comecei a aprender com papai, nós botava a mandioca na água pra pubar. Quando estava molezinha, nós pegava e descascava. Nós começava 3 horas da madrugada, dentro da água, daí carregava para o retiro e machucava com a mão de pilão. Nesse tempo não tinha motor, machucava todinho, enxugava no tipiti todinho, peneirava todinho e botava para torrar direto, torrava tudo. Era sufoco demais, mas nós fazia dez, doze sacos de farinha. Era doze pessoas contando com meus irmãos. Agora tenho motor, mas naquele tempo não tinha. Com essas farinha que fizemos, compramos um motor de quebrar mandioca. Ficou melhor pra nós, daí nos fazia 50, 60 sacas de farinha por semana (AFF, 01).

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O depoimento acima informa que na Casa de Farinha Familiar o saber político

é revelado no sentido em que o agricultor demonstra a necessidade de ter o controle

das ações, o que pode significar ter o poder sobre tudo, sobre seus instrumentos de

trabalho, pois prefere trabalhar ―com suas coisas (AFF, 01), envolve o controle de

educar os filhos ou orientá-los na produção da farinha.

Essa perspectiva indica a compreensão de um uso individual da casa de

farinha, mantido pelo trabalho familiar. Isso pode ser atribuído ao fato de que o chefe

da família aprendeu a fazer farinha com seus pais e durante esta aprendizagem, o

trabalho só era realizado entre e com os membros da família.

O depoimento também informa que já houve uma insistência por parte de

agricultores que moram na vila para que esta família passasse a fazer farinha na

casa comunitária. No entanto, há resistência em ceder a esse ―convite‖. De todas as

casas de farinha que existiam próximas à vila, esta é a única nesta dinâmica familiar,

as outras tiveram suas estruturas físicas desativadas, seus proprietários venderam

os instrumentos de trabalho e agora os antigos donos fazem farinha na casa

comunitária. Constata-se, então, que a produção familiar ainda está pautada pela

lógica da individualidade.

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SEÇÃO 4 – RELAÇÕES DE (CON)VIVÊNCIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS:

MUDANÇAS NO APRENDER E NO FAZER FARINHA

Figura 44 – Convivências e o aprender fazendo Fonte: Silva (2010).

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se

de mãos dadas com a decência e com a seriedade (FREIRE, 2008, p. 24).

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Ao analisar os saberes inerentes ao fazer farinha, percebi que são saberes

que incorporam práticas educativas, das quais os agricultores são conhecedores,

conscientes e praticantes criativos. Nesse sentido, procuro desenvolver para além

de uma análise socioantropológica daquele fazer, uma análise dos processos

educativos ou práticas educativas que permitem a continuidade do fazer farinha e

alguns dos desafios identificados para a manutenção dessas práticas na

comunidade.

Identifiquei durante a convivência com os agricultores nos espaços das casas

de farinha que a apropriação e organização desses espaços, descritos na seção 2 e

a socialização dos saberes inerentes ao fazer farinha, analisados na seção 3,

informam que o fazer farinha não é simplesmente uma prática produtiva, mas uma

prática proveniente de um processo educativo. Os agricultores, sejam adultos ou

crianças, inserirem-se nesse complexo cenário de vivências cotidianas, de

experiências interpessoais, de intercomunicações, de troca de saberes ou de

aprendizagens.

Ao transformam as casas de farinha em cenários de aprendizagens, os atores

criam, recriam, negociam e transformam suas práticas, aprendem participando de

vivências culturais ou conforme Brandão (2002, p. 26) se reinventam a si mesmos e

realizam isto ao ―incorporarem seus domínios pessoais de interações de e entre

afetos, sensações, sentidos ou saberes‖.

Para Martins (2008) as relações sociais são responsáveis por edificarem a

humanidade, agindo sobre as condições naturais e sociais de existência, sendo

agentes e mediadoras da humanização de todos.

Nesse sentido, a apropriação dos espaços das casas de farinha é

materializada pelas relações de (con)vivência dos agricultores e agricultoras da

Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, que de acordo com minha análise, são

relações construídas a partir do compartilhar momentos e experiências, uma vez que

nem todas as pessoas que participam da prática de fazer farinha, possuem a

vivência diária, elas convivem nos momentos necessários ao fazer farinha.

Para Gadamer (1990, p. 118), o vivenciar significa ―ainda estar vivo quando

algo acontece‖, pois, ao contrário daquilo que se pensa saber, do que se ouviu ou do

intuído, ―o vivenciado é sempre o que nós vivenciamos‖. Assim, a partir das

(con)vivências dos agricultores nas casas de farinha, é possível analisar não apenas

o processo de produção que dali emerge, mas, sobretudo, os processos educativos

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que ali estão presentes, pois, de acordo com Gadamer (1990) é a partir da vida, que

se compreende a obra.

Conforme Gadamer (1990, p. 119), ―algo se transforma em vivência na

medida em que não somente foi vivenciado, mas que o seu ser – vivenciado teve

uma ênfase especial‖. Assim, ainda que os momentos vivenciados pelos agricultores

guardem relações com o processo produtivo de fazer farinha, eles estão para além

da dimensão econômica, nos depoimentos a seguir, percebe-se que há uma ênfase

na vivência familiar, ainda que outras formas de relações sociais estejam presentes.

É a família, e às vezes é mutirão, contamos com a ajuda. Quando é sábado, temos três ou quatro sacos de farinha, aí eu vou vender e é de repente. Eu trabalho com meus filhos, a gente fala antes com os vizinhos e vamos ajudar eles também (AFF, 02).

Começa uma hora da manhã. Pra ir nesse horário, é que meus filhos estudam pra Mãe do Rio. Se eu não ir nesse horário, eu fico sozinha...Tenho que ir uma hora, porque quando é oito horas, às vezes eles tem que sair porque é prova. Aí eu fico sozinha... Eles me ajudam a fazer (AFC, 01).

Os discursos dos sujeitos e as observações realizadas indicam que estas

relações de (con)vivência, mediadoras do fazer farinha, existem sob o formato de:

a) Relações familiares, que tem por base a organização social da família

nuclear, em que as relações entre pais e filhos se dão unicamente em

termos de participação do processo produtivo do fazer farinha. Em outras

palavras, o sujeito ―ajuda‖ a própria família;

b) Relações de cooperação, que se constituem a partir das relações entre as

famílias, de ajuda mútua que envolve a participação de vizinhos,

conhecidos, diaristas que, algumas vezes, são também familiares que

mesmo recebendo pagamento pelo dia de trabalho não possuem carteira

assinada ou salários fixos. Referem-se a essa relação como sendo uma

ajuda ao parente. Em geral, estes sujeitos não participam de todo o

processo produtivo, mas apenas de alguma(s) prática(s) que são

previamente estabelecidas pelo ―dono da farinha‖.

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Trata-se de relações que guardam semelhanças com a concepção de

relações pré-capitalistas de Marx (1985), para quem o trabalhador é o proprietário

das condições objetivas do seu trabalho. Independente de qual seja, ele possui uma

existência objetiva, o que permite que o indivíduo seja em relação a si mesmo,

proprietário e dono das condições de sua realidade.

Aproxima-se também da ideia de relações de parentesco que, para

Albaladejo e Veiga (2002), são relações que permitem a realização de uma

aprendizagem social, elementos importantes para o fortalecimento do vínculo social

local, por não se tratar apenas de uma questão técnica de troca de trabalho, mas, de

recursos simbólicos, pois, envolve o reconhecimento da ajuda recebida e o

compromisso de devolvê-la posteriormente.

De acordo com as observações e os discursos dos sujeitos, as práticas

desenvolvidas no processo produtivo do fazer farinha pelas relações de

(con)vivência, que orientam a organização e a apropriação dos espaços nas casas

de farinha não são apenas distribuições de fazeres, pelo contrário, refletem práticas

educativas que acionam um conjunto de saberes construídos e socializados pelas

experiências que se materializam em processos educativos.

Nas análises de Severino (2006, p. 632), os processos educativos foram

quase sempre vistos como processo de formação humana, um investimento

formativo do humano, tanto na particularidade da relação pedagógica pessoal,

quanto no âmbito da relação social coletiva. Entretanto, para Freire (2008), formar é

muito mais do que treinar para que desempenhe suas funções com destreza e

habilidade, é educar em favor da autonomia do sujeito.

Nesse sentido, as práticas de fazer farinha não são vistas aqui apenas como

trabalho prático, mas como práticas educativas, porque contribuem no processo de

formação humana dos sujeitos que se relacionam e que constroem relações que

permitem a materialização de ações culturais e pedagógicas, propulsoras na busca

de conhecimentos necessários para transformação social.

Como considerou Freire a prática educativa (1981, p.35), envolve ―não

apenas a associação de imagens sensoriais, como entre animais, mas, sobretudo,

pensamento e linguagem que envolvem desejo, mundo transformado‖, implica numa

concepção de seres humanos e de mundo envolve um processo de orientação

desses seres no mundo.

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4.1. PRÁTICAS EDUCATIVAS INSCRITAS NAS RELAÇÕES FAMILIARES E DE

COOPERAÇÃO.

Nos espaços das casas de farinha, por meio de um olhar atento e de escuta

poética, é possível perceber que a educação e o fazer farinha configuram-se em

dois elementos constitutivos de uma mesma realidade, mediados por relações de

(con)vivências familiares e de cooperação, subjacentes a um processo de produção

de fazer farinha, materializam-se em práticas educativas, incorporando o processo

formativo dos sujeitos.

Desde pequena, com minha mãe, minha mãe fazia farinha e eu também já. E já fiquei naquele jeito. Já estamos nessa idade e todas nós torramos farinha. Somos seis irmãs indo trabalhar com a farinha‖ (AFM, 03).

Essas práticas educativas familiares possuem componentes fundamentais

que as caracterizam, entre estas, o envolvimento da presença dos sujeitos, tanto os

sujeitos que ensinando aprendem como os sujeitos que aprendendo ensinam

(FREIRE, 2007).

Dessa forma, as práticas educativas incorporam-se ao saber-fazer farinha,

saberes que são socializados a partir de diferentes metodologias que se integram no

decorrer do processo de aprendizagem. Entre essas metodologias, as que mais se

destacam são: o aprender - fazendo, a oralidade e a observação.

Antes daqui, acho que desde os meus dez anos, eu já trabalhava com meus pais, né? Aí depois, por minha conta mesmo, [...] aprendi desde cedo com minha família. Desde os dez anos de idade, já acompanhava minha mãe

nesse processo de roça, da infância bem dizer (AF C, 03).

Conforme se pode perceber no depoimento O processo de fazer farinha

envolve, além de um saber prático, uma prática educativa familiar. Nesse sentido, o

aprender-fazendo é realizado por meio dos tempos e com certa constância. Ao

mantê-lo, as famílias tornam-se formadoras de uma geração que, em razão do

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contexto em que vivem, precisam dessa aprendizagem para continuar seu processo

de reprodução social.

Assim, a casa de farinha configura-se num lugar de encontro, de relações de

(con)vivência que conformam processos educativos e que possibilitam criar e recriar

situações de forma dinâmica e construtiva.

Figura 45 - A presença da criança. Fonte: Silva (2010)

Foi possível verificar que a presença das crianças no espaço das casas de

farinha, acontece desde quando são pequenas, como mostra a figura 45. Na medida

em que crescem, vão se apropriando de outros lugares onde são realizadas as

práticas do fazer farinha. Em geral, essas crianças iniciam suas aprendizagens

próximas das mães, quando realizam suas práticas. O descascamento das raízes é,

inicialmente, o lugar onde ficam as crianças menores. Outras, algumas vezes,

proibidas pelas mães de utilizarem instrumentos cortantes, procuram descascar

pequenas raízes de mandioca, usando apenas as mãos. Repetem os gestos

realizados pela mãe, mesmo sem utilizarem os mesmos instrumentos.

Nessa perspectiva, o aprender-fazer farinha realiza-se por meio da própria

prática. É um sinal de continuidade, possível de acordo com Certeau (2008) por

conta das astúcias silenciosas transmitidas por meio de um sistema de valores, em

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ações e comportamentos, configurados nos costumes, que fazem parte da

aprendizagem sensorial motora.

Eu iniciei com meu pai, porque a gente aprende logo com a família da gente, assim como meus filhos vão aprendendo com a gente, desde peneirar uma massa, que é isso que tu dá conta. Vai descascar uma mandioca. Aí a gente vai aprendendo, vai crescendo e vai aprendendo cada vez mais, né? (AFM, 02).

Nesse discurso, a entrevistada revela a concepção de aprendizagem que tem

por base as idades dos sujeitos aprendizes, suas capacidades físicas de praticante e

de realização com base naquilo que ―dá conta‖. Assim, os pais, ao contarem com a

―ajuda‖ dos filhos, como mostra a figura 46, acompanham o desenvolvimento social

e pedagógico por meio da realização das práticas, para que possam aprender ―cada

vez mais‖.

Figura 46- Filhos ―praticantes‖. Fonte; Silva (2010).

Hoje tem umas meninas que estão sempre ajudando, mas elas já sabem o serviço da mandioca, o que é que eu faço. Tem o serviço de rapar, a gente já dá trabalho, quando eles crescerem não é preciso os outros ensinar, eles mesmos já vão aprendendo, a gente mesmo é professora dos filhos da gente nas casas de farinha. Assim como nós aprendemos com os pais,

assim a gente ensina para os filhos da gente. (AFC, 01).

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A nomenclatura professora, própria do ensino escolar, é usada no discurso

de uma das mães, que revela sua atribuição de agente formadora dessas gerações

que ainda estão na condição de aprendizes, por isso, iniciam o processo de

aprendizagem pelas práticas consideradas mais fáceis de realizar. A analogia com

a função de professora é no sentido de que não seja necessário que essa formação

possa ser realizada por alguém externo ao grupo familiar.

A gente vai ensinando os pequenos pra quando eles crescerem, eles vão querer ajudar os pais a raspar, porque enquanto tá pequeno é bom. Porque depois de grande fica difícil. E desde pequeno a criança vai pegando o jeito para raspar. É assim. Porque depois de grande eles não vão querer mais,

porque não sabem, é assim (AFF, 02).

Esse depoimento demonstra que a educação familiar ainda criança, na

percepção local, é o que permite a sua inserção no fazer farinha. A preocupação dos

pais em ensinar, sobretudo quando os filhos ainda são crianças, relaciona-se à

possibilidade de que quando crescerem não queiram mais aprender.

Para Brandão (2007) a prática educativa realiza-se com a transmissão dos

costumes, dos valores que, de maneira informal, possibilitam que os seres humanos

adquiram habilidades por meio da produção material.

Eu aprendi, porque quando eu vi o papai com a mamãe lá no retiro torrando a farinha, eu dizia que eu queria ajudar, eu queria mexer, eu queria aprender: ―Mas meu filho, é assim, assim, assim e assim‖ [gestos]. Aí eu fui e peguei o gosto e sabe que é bom, aí eu fui, fui, fui mesmo. Um dia eu disse: ―Quando eu crescer, vocês não puxam mais farinha, eu vou puxar‖. Pronto, dali bastou, eu gosto de mexer com ela (AFM, 01).

Nesse depoimento, o sujeito expressa que o aprender-fazendo é motivado

pela possibilidade de que, ao torna-se adulto, assuma o lugar dos pais no fazer a

farinha. A disposição de pais e filhos em ensinar e aprender permite a aprendizagem

dessa prática social, evidenciando que, embora não haja regularmente uma

formação institucionalizada de educação nas casas de farinha, existem várias

formas de construção de processos de aprendizagem, de obter conhecimentos ou

mesmo de capacitar as habilidades como as que são inscritas nos fazeres.

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Entretanto, de acordo com os discursos dos sujeitos, a presença dos filhos

nas casas de farinha para o aprender-fazendo, nem sempre se dá de forma

espontânea. Identifiquei que, em algumas situações, o poder coercitivo dos pais, que

associado ao dever do filho de obedecer, condiciona sua participação nesse

processo educativo. Assim, é possível inferir que a participação dos mais jovens nas

práticas de fazer farinha, ocorre porque eles concebem como um dever, o ajudar no

sustento da família, uma vez que o fazer farinha configura-se numa das poucas

atividades econômicas desenvolvidas na comunidade. O depoimento a seguir

mostra essa perspectiva local:

A gente ia pra casa de farinha porque, às vezes, era obrigada a gente ir, porque os pais da gente não deixava a gente na casa, a gente tinha que ir. Se não fosse, era arriscado a gente apanhar. A gente tinha que ir, a gente tinha o dever, né? E aí a gente foi pegando o jeito de fazer a farinha pra ajudar também os nossos pais. Não tinha outro meio, era só na farinha e a

gente aprende logo (AFC, 01).

Essa participação do saber-fazendo de maneira involuntária, indica que

mesmo as relações de (con)vivência familiar podem ocultar relações de exploração

embora involuntárias, abrigadas no discurso de que os filhos precisam aprender ou

precisam ajudar. Esse poder exercido pelos pais no processo de aprendizagem

informa estratégias que guardam a manutenção da solidariedade da família,

sobreposta aos interesses individuais dos filhos.

Eu vou ensinar eles, porque, hoje em dia, o emprego tá difícil. Só pra quem é formado mesmo, porque até mais tarde aquelas crianças vão sofrer muito, então, aprendendo, contudo que a terra não preste mais pra colocar uma roça, mas, a mandioca ainda dá, pelo menos para eles comerem, pra não tarem comprando. Eu vou ensinando eles devagar, eu vou ensinando. Se eles virem que eu estou ensinando conforme meu pai me ensinou e a vontade que eu tinha, se eu ver que eles não querem, então eu não vou poder fazer mais nada, depois não vão dizer: ―Ah! O papai nunca me

ensinou a fazer nada‖ (AFM, 01).

Os agricultores buscam repassar os ensinamentos para as novas gerações

com base nos ensinamentos que receberam de seus antepassados. No entanto,

identifiquei nesse discurso, uma visão crítica e pessimista com relação ao futuro dos

filhos na comunidade. Por conta disso, recomendam aos filhos que mesmo ―que a

terra não preste mais pra colocar uma roça‖ (AFM, 01), torna-se necessário que eles

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aprendam o fazer farinha. Essa aprendizagem incorpora uma garantia de

sobrevivência no futuro, pois, ―o emprego tá difícil, só pra quem é formado‖ (AFM,

01).

Os discursos revelam preocupação por parte dos pais em socializarem os

conhecimentos necessários com os filhos. Ao assumirem o papel de educador, o pai

revela que vai ―ensinando eles devagar‖. Para isso, a maneira como o educador e o

educando relacionam-se, é importante para que conhecimentos sejam transmitidos

por suas experiências sociais, o que demonstra que esse processo educativo não

acontece de forma imediata, apressada; ela requer tempo, planejamento e

organização para o ensinamento.

No discurso a seguir, fica evidenciada a tensão intergeracional existente na

prática educativa familiar, ao afirmar que os jovens não possuem a mesma

disposição para fazer farinha, uma vez que o pai relata que na sua juventude a

prática de fazer farinha não o incomodava ou impedia-o de estudar, enquanto que

na atualidade os jovens resistem em desenvolver algumas das práticas. Isso

possivelmente esteja relacionado a situações de preconceito ou discriminação,

decorrentes da histórica invisibilidade do jovem rural14.

Os jovens de hoje não estão com essa disposição não [...]. Eu lhe digo que os jovens de hoje não está com essa disposição porque é o seguinte: eu parava de torrar massa e eu ainda ia pro colégio. Colégio não! Era uma casinha velha [...], e hoje em dia, não querem nem pegar na massa, porque não querem ir fedendo de massa para o colégio, então por isso que eu digo que tá muito mudado. Eles não têm essa vontade, não querem torrar, tem um que descasca, tem um que não quer torrar, tem outro que já não quer mexer na prensa. É assim, principalmente a mole que está na água, esta que não querem pegar mesmo (AFM, 01).

O aprender – fazendo nas casas de farinha, não acontece para todos os

sujeitos ao mesmo tempo, e nem da mesma maneira. Ao manifestar-se sobre sua

aprendizagem, uma agricultora revelou não possuir a habilidade para desenvolver

todas as práticas, pois se limitou a aprender raspar ou peneirar. Essa aprendizagem

14

Em relação a essa questão, teóricos como Arroyo (2007) consideram que nosso sistema escolar é

pensado no paradigma urbano. Há uma idealização da cidade como o espaço civilizatório por excelência, de convívio, sociabilidade e socialização, da expressão da dinâmica política, cultural e educativa, em detrimento a uma visão negativa do campo como lugar do atraso, devido ao seu tradicionalismo cultural.

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parcelar do fazer farinha, possivelmente esteja relacionada à iniciação tardia no

processo de aprendizagem, haja vista que, ao contrário da maioria das mulheres,

sujeitos da pesquisa, ela aprendeu depois de casada, com o marido, e não com os

pais como é de costume na comunidade:

Logo no começo, foi difícil pra mim. Não era acostumada a mexer, achava esquisito, raspava devagar. Aí agora não, agora já gosto, acho bom. Eu ainda estou aprendendo, porque a menina ali torra. Eu não sei torrar, só sei raspar e peneirar, lavar. Agora torrar, não sei, ainda não aprendi ainda não. Está com nove anos [de casada], é até difícil eu fazer farinha, eu ajudo a fazer farinha ali [...], eu ajudo ele, mas eu mesmo, mexer pra mim mesmo, não mexo, não. Só pra ajudar eles mesmo [...]. Depois que eu me casei, que eu fui [...]. Quando eu morava com meu pai, não trabalhava com

negócio de farinha, não. Depois que constitui família que já ajudo (AFF, 02).

Assim, aprender a fazer apenas uma prática do processo, não é considerado

pela entrevistada, como suficiente para dizer que aprendeu a fazer farinha. Nesse

sentido, a prática é vista apenas como ajuda.

Semana passada tinha um rapaz. Mandou uma mandioca pra fazer farinha, eu perguntei pra ele: ―Tu vais trabalhar na casa de farinha? Ele respondeu: ―não, eu não sei‖. Eu disse: ―se tu só falar que não sabe, tu tens que vir pra cá, pra ti aprender como que a gente faz, se tu não vir, tu nunca vais saber como é‖. Eu também dizia assim, que eu achava difícil trabalhar numa casa dessas, achava que não ia trabalhar nunca, porque não ia largar o manual da gente pra ir pra lá. Mas quando! Agora, a gente não quer mais nem sair de lá. Tive que aprender com os outros, e às vezes já tinha alguém que não sabia, já vinha olhar como era que nós fazia, pra ir passando também. Agora todo mundo já sabe trabalhar na casa de farinha (AFC, 01).

Essa fala revela que o observar é uma estratégia metodológica que contribui

no desenvolvimento da capacidade cognitiva dos agricultores no processo de

aprendizagem do fazer farinha. Assim, os sujeitos que aprendem ao observar as

práticas do cotidiano e assim se apropriam do conhecimento, como mostra a figura

47, na qual, a mãe agricultora pratica a torração e ao mesmo tempo orienta o filho

adolescente que busca ajudá-la e ainda conta com a presença curiosa da neta, que

observa seus movimentos.

Para Heller (2008), a vida cotidiana existe porque existe a imitação. A

imitação viabiliza atividades relacionadas ao trabalho, às trocas e intercâmbios, mas

é preciso saber equilibrar os costumes e as novas atitudes.

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Figura 47 – A observação do fazer farinha Fonte: Silva (2010).

Eu aprendi com a mamãe, eu acho, com meu pai. O cara, no começo, vai olhando assim, o cara não sabe de nada não, mas vai observando. Às vezes, vê se o cara dá conta de fazer, quando não dá, o cara faz só raspar

mesmo, lavar (AFC, 05).

A fala acima demonstra que ao observar, o sujeito também avalia a

aprendizagem. Se ―dá conta de fazer‖ determinadas práticas do processo produtivo.

A organização da prática educativa, nesse processo de formação, pressupõe o

desenvolvimento de uma ação avaliativa do sujeito sobre sua competência para a

realização de alguma prática inerente ao fazer farinha. Ao refletir sobre sua ação

e/ou identificado a fragilidade de seu aprendizado com relação ao processo

produtivo, o aprendiz volta-se para outras práticas que não exigem habilidades mais

específicas.

Freire (2008, p. 83) considera que ―não é possível praticar sem avaliar‖. Essa

avaliação relaciona-se à análise do que se faz e torna possível comparar os

resultados obtidos com as finalidades que buscamos alcançar com a prática. Assim,

permite-se que se revelem acertos, erros e imprecisões. Para o autor, melhoramos

nossa eficiência e nossa prática, pois a avaliação jamais deixa de acompanhar a

prática.

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Na manifestação de uma agricultora, o observar aparece no sentido de ―tomar

atenção‖, pois a aprendizagem requer atenção e dedicação do sujeito para observar

o desenvolvimento do processo produtivo, para que desenvolvam a prática

posteriormente. Em suas palavras: ―Ele tem que tomar atenção primeiramente de

como se faz; depois que ele tomou toda a atenção. Ele vai né, fazer o teste, né? Se

ele aprendeu, aí sim‖ (AFM, 02).

A mamãe mesmo falou que não ia fazer a farinha lá, mas depois que fez a primeira vez, agora só faz lá. E ela pesa, mas, a farinha, né? A farinha pesa mais, ela é cortada mais, aproveita mais a massa. Os primeiros que fizeram já conseguiram dominar a técnica. Logo quando começou, aqui tinha cara que dizia que não ia fazer, mas, ficaram olhando. A farinha saiu bonita, aí começaram a esbandalhar os retiros que tinha, desmontaram o retiro, venderam até o forno (AFC, 05).

Revela-se que a estratégia metodológica da observação foi utilizada pelos

agricultores que possuíam resistência para fazer farinha com artefatos mecanizados,

e ao perceberem a qualidade da farinha da casa comunitária, passaram a não

produzir mais nas casas de farinha de sua propriedade.

Essa maneira de os agricultores praticarem a observação assemelha-se à

ideia de Brandão (2007, p.20), para quem os sujeitos que não sabem, ―veem fazer e

imitam, são instruídos com o exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos,

premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e ensinar‖.

De acordo com as observações e os discursos dos sujeitos, outra estratégia

metodológica adotada é a oralidade, que permeia todo o processo de aprendizagem

do fazer farinha. Em algumas práticas educativas, essa oralidade é mais presente,

por exemplo, no descascamento e torração.

A preocupação em ensinar os filhos é presente, tanto nos discursos dos pais

quanto no das mães. Sendo que as mães ensinam mais pela conversa, orientações

e dizeres de como tem que fazer, enquanto que os pais não dialogam tanto quanto,

educam pela prática e por indicações gestuais.

No momento da torração, em que os pais precisam de ajuda, muitas vezes

não precisam chamar os filhos, basta baixar o rodo. O som emitido pelo rodo, ao ser

deixado na borda do forno, é um dos sinais que rapidamente é atendido: ―eles

sabem, eles verem assim e já vão vendo eu torrar a farinha. Quando eu deixo o

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cabo do rodo, eles já vão pegar, puxar, puxar‖ (AFM, 03). A imagem a seguir

demonstra um desses momentos.

Figura 48 - O aprender a partir do gesto. Fonte: Silva (2010).

Assim, fica evidenciada a complexidade nessa aprendizagem, pois, além da

oralidade, ela ocorre por meio de uma série de elementos sensoriais: cheiros,

gestos, cores, sabores, que se configuram numa estratégia de ensinamentos e

conduzem agricultores e agricultoras de todas as idades a se integrarem no tempo e

no espaço do fazer farinha.

Meu pai e a minha mãe, né? E lá era assim, eles diziam: ―Olha, é desse jeito, é dessa forma, não faz isso, faz aquilo‖. E foi assim que a gente foi aprendendo: ―Não! Tá mal feito. Tem que ser direito‖. Aí a gente vai aprendendo (AFM, 02). Na casa de farinha, porque ali é uma troca de diálogo, uma troca de conversa, de ideias. Ainda mais aqui, numa casa de farinha dessas que tem vez que tem três, ou quatro famílias trabalhando, cada uma delas puxa uma ideia, ideia que às vezes favorece troca de experiência de um para outro

(AFC, 04).

É um lugar onde se aprende um monte de coisas, porque, às vezes, a gente tá lá, a gente conversa, a gente fala muita coisa, a gente aprende mais, quem nem eu, que agora já sei raspar mandioca, peneirar, lavar às vezes

(AFC, 02).

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A estratégia metodológica da oralidade é percebida, de acordo com os

discursos dos sujeitos, como uma troca de diálogo que favorece a aprendizagem, a

partir do intercâmbio de experiências entre as famílias e que incorpora ao processo

do fazer farinha uma dimensão educativa.

Pelo diálogo se estabelece uma relação diferenciada entre os sujeitos.

Conforme Freire (2005) trata-se de uma circunstância em que existe

companheirismo e respeito pelo ser do outro, pois se nós nos fazemos na relação

com os outros, o diálogo é o passo inicial para a realização do processo educativo.

Assim, a troca de diálogo entre os agricultores durante o fazer farinha permite que

aqueles que possuem mais experiências, contribuam com os que ainda estão

aprendendo, tornando possível o aprimoramento dessa prática.

Neste sentido, com base na perspectiva freiriana, é possível inferir que o

diálogo guarda a centralidade da prática educativa, não apenas como estratégia

pedagógica, mas como condição para o conhecimento, uma vez que é por meio dele

que é possível a compreensão crítica da realidade.

Essa compreensão sinaliza que o processo de formação dos sujeitos, nos

espaços de vivência das casas de farinha, parte de sua experiência real, das

reflexões sobre suas práticas e seus problemas, e constroem parafraseando Freire

(2010) uma percepção mais politizada da realidade.

Através desse retiro eu tenho muita informação, então eu gosto desse retiro, porque aqui eu converso, eu torro a minha farinha, recebo meus amigos, vêm várias pessoas aqui me procurar e vai daqui bem recebido, graças a Deus. Eu só não sei ler, mas graças a Deus e à educação [...]. Se ela [a casa de farinha] não fosse aqui, eu não conhecia muita coisa, pois pra mim ela tem uma importância muito grande. Porque aqui, como diz a música, vem o preto, vem o branco, vem o feio, vem o bonito, tudo eu recebo aqui

(AFM, 01).

Nessa fala a oralidade aparece nos momentos de conversa, é como uma

extensão da casa de morada, onde receber as pessoas para conversar significa

muito mais do que receber apenas informação, configura-se numa possibilidade de

ampliação de conhecimento do mundo, uma vez que, ―se não fosse aqui, eu não

conhecia muita coisa‖ (AFM, 01).

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A oralidade evidencia, nos momentos de confraternização, a cultura de

conversa, compreendida por Oliveira e Mota Neto (2007) como uma forma cultural

de base predominantemente oral, pela qual as populações rurais ribeirinhas

expressam suas vivências, transmitem saberes, valores e hábitos para as novas

gerações.

De acordo com meus registros, é por meio das conversas que o imaginário da

comunidade é revelado:

Um dos agricultores/as começou a falar sobre remédio caseiro para curar asma e disse: ―Vou tirar leite da égua pra dar pra minha filha!”. No mesmo instante, as meninas que estavam raspando a mandioca disseram não saber desse remédio. E uma das agricultoras mais idosa do grupo confirmou a eficácia do remédio (Anotações de campo, 15 de janeiro de

2010).

Uma das meninas que estavam raspando a mandioca, que não mora na comunidade, perguntou se ali existia matim-pererê. Um dos agricultores passou a explicar sua presença nas caçadas realizadas à noite, nas matas, e sugeriu que a matim poderia ser uma das senhoras da comunidade

(Anotações de campo, 15 de janeiro de 2010).

Um dos agricultores perguntou sobre sua corda e um menino respondeu: ―eu amarrei a cangalha, não sabia que era sua‖. Ele respondeu: ―É minha, é de amarrar a rede‖. Ao ouvir o diálogo, uma das agricultoras que no momento descascava a mandioca disse: ―Ele vai virar lobisomem, porque a corda de amarrar a rede foi amarrada para amarrar a cangalha‖ (Anotações de campo, 12 de março de 2010).

Esses registros revelam que as casas de farinha são espaços de construção

e transmissão do imaginário social da comunidade. Para Castoriadis (1982, p.171),

a criação imaginária age na prática e no fazer da sociedade, considerada como sentido organizador do comportamento humano e das relações, independentemente de sua existência para com a consciência desta sociedade.

Nessa construção dos saberes mitológicos, o processo de aprendizagem dos

sujeitos em suas relações de (con)vivência nas casas de farinha, incorpora o

imaginário social, uma vez que expressam múltiplas representações culturais

configuradas em desejos, mitos e realidades pela oralidade.

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4.2. AS MUDANÇAS NO FAZER E DO APRENDER A FAZER FARINHA

De acordo com as manifestações dos entrevistados, o fazer farinha, por ser

um processo socialmente construído, passa por modificações com a introdução de

outros artefatos culturais15.

Tem muita diferença porque as casas de farinha que a gente trabalhava não é igual às de agora. As casas de farinha que a gente trabalhava era manual, o retiro era pequeno e agora não, melhorou bastante porque ajuda a gente também. Porque antigamente a gente ia fazer farinha, quando a gente chegava do retiro, a gente já tava quase morto de cansado, no manual, né? O retiro era pequeno... Agora não, melhorou, a gente faz do jeito que a gente quer. De primeiro não, a gente socava na mão de pilão. Muito de nós trabalhava só no tipiti... Antes pra misturar a mandioca... A gente tinha que ralar, às vezes a gente ficava com as mãos tudo cortada... (AFC, 01). A gente chegava lá, chegava com a mandioca, botava na água com a casca, ficava quatro dias na água. Quando estava com quatro dias, a gente ia lá, tirava da casca, trazia a mandioca pra dentro da coxa. Socava ela com a mão de pilão pra enxugar e poder torrar... Assim que começamos a trabalhar, era socado com a mão de pilão, manual. Enchia no tipiti pra enxugar pra fazer a farinha (AFC, 02). Faço farinha neste retiro aqui [comunitária], e faço farinha no rodo, faço nos três. No meu retiro, tenho a prensa e dois fornos. Quando precisam da ajuda [...]. Neste aqui é mais fácil, que a gente não cansa e no cabo do rodo a gente cansa mais. Esse aqui não, é só mais carregar a mandioca da água, da coxa pra prensa. Aí é mais fácil (AFM, 03).

Nos discursos, é recorrente a ideia de que na atualidade, o processo

produtivo de fazer farinha melhorou bastante, pois, no sistema manual, esse

processo era desenvolvido com artefatos que dispendiam mais força física, como a

prática de ralar a mandioca, em geral realizada em um ralo confeccionado de

maneira artesanal. Ao explicar como faziam estes ralos, um agricultor revelou:

―pegava uma lata de óleo, abria todinha e ia pro ralo. Hoje em dia tá muito fácil‖

(AFM, 01).

A partir da inserção do motor no fazer farinha, modificações foram

incorporadas no processo produtivo da farinha e são avaliadas pelos agricultores em

15 São considerados ―artefatos culturais‖ todos os equipamentos disponibilizados nas casas de

farinha, que variam de produtos construídos manualmente pelos agricultores aos mecanizados, que

são utilizados no processo produtivo.

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seus discursos como facilitadoras dessa prática social. Identifiquei uma postura

favorável à inserção de artefatos e tecnologias que facilitam a realização das

práticas. Logo, os sujeitos não compreendem as inovações como opressoras.

Essas modificações no processo produtivo da farinha são realizadas no

sentido de atender suas necessidades, uma vez que os sujeitos constroem relações

sociais, concepções, ideias e interpretações que dão sentido àquilo que fazem e

àquilo de que precisam. Reproduzem o que já está posto, mas também produzem,

modificam, revolucionam a sociedade, base de suas atuações sobre a natureza

(Martins, 2008).

Já vem desde a infância, agora já tem treinamento, já tem pelo SENAI, a própria EMATER, eles já ensinam a fazer, fazer não mudar de forma de fazer a farinha, né? Que antes se fazia, mas antes era só um tipo de fazer farinha, a gente aqui já muda, né? Fazer farinha branca, a seca (AFC, 03).

A formação a que o agricultor se refere, não ensina a fazer a farinha, mas

orienta quanto outras possibilidades no manuseio, com a inclusão de técnicas que

os ajudam a produzir e classificar a farinha em grossa, média ou fina, como mostra a

figura a seguir:

Figura 49 - A classificação da farinha. Fonte: Silva (2010)

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Em suas manifestações, os agricultores mostram-se favoráveis não apenas

às facilitações no processo, mas, à outras maneiras de aprender. Assim, eles

educam-se ao mesmo tempo em que fazem farinha, pois segundo Brandão (2002)

são sujeitos de aprendizado e educação, e essa aprendizagem representa muito do

que precisam saber no cotidiano.

Por isso que eu me preocupo. Quando a gente terminou a casa de farinha aqui, que o [prefeito] foi lá, eu disse: ―Seu [...] está pronto, o homem entregou. E agora?‖. Ele disse: ―Agora o seguinte, primeiro nós vamos fazer um curso para botar as pessoas para aprender como se vai fazer a farinha. Apesar de que muita gente saber como se faz farinha, mas esse curso traz mais uma qualidade de aprendizagem para quem vai fazer a farinha, porque é uma fábrica mecânica, com máquinas que ninguém nunca mexeu. E tem que partir da educação, desde como se mexe nas máquinas‖. E aí então a gente foi e marcou e conseguimos um curso para eles, de uma semana

(AFC, 04).

A fala desse entrevistado revela que a partir do funcionamento da Casa de

Farinha Comunitária, em decorrência da presença de outras tecnologias, passou-se

a exigir outros conhecimentos dos agricultores, como condição para manusear os

equipamentos.

Assim, os sujeitos constroem formas democráticas de produção de saber e de

relação de saberes, uma vez que os saberes da experiência local e os saberes

acadêmicos de uma agência formadora, embrincaram-se e reconstruíram outros

saberes.

Para Cota (2000, p.11), alguns conhecimentos ―são construídos como ponto

de partida, outros novos configuram-se como ponto de chegada, que por sua vez se

tornam ponto de chegada, num processo contínuo‖, nessa concepção, é na chegada

que as mudanças, inovações e transformações resultantes da intervenção na

realidade se manifestam.

Essa integração de saberes alterou a prática de fazer farinha, construída na

comunidade, pois tiveram que ―partir da educação, desde como se mexe nas

máquinas‖ (AFC, 04). Para Gadotti e Gutiérrez (2005, p. 27), a ―educação integrada

(ou integradora) ao trabalho produtivo é essencialmente educativa quando consegue

fazer do homem e da mulher os sujeitos aglutinadores de todo o processo‖.

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Fizemos o curso, inclusive peguei dois de cada comunidade, que foi colocado para fazer o curso. Só tem, se não me engano, um só, os outros que a gente colocou mais jovens, pensando que os jovens tinham mais entusiasmo e esses outros que foram embora, levaram o material que pegaram: avental, luva. Pegou e levaram, não deixaram para a comunidade. Só tem um mesmo que fez o curso que trabalha, mas os outros que trabalham já aprenderam, já pegaram prática e continuam animados (AFC,

04).

O depoimento acima evidencia que a participação dos jovens das

comunidades que compunham o bloco da Casa Comunitária no curso de formação

se deu na perspectiva de se manter e incentivar a produção com outras tecnologias .

No entanto, não ocorreu o esperado, pois, apenas dois participantes tornaram-se

multiplicadores e contribuíram para que os agricultores ―pegassem a prática‖.

Atualmente apenas um dos multiplicadores, o de mais idade, continua o fazer farinha

na Casa Comunitária.

Porém, os agricultores mais experientes, que não participaram diretamente do

curso, mostraram-se mais motivados em aprender outras práticas de fazer farinha, e

passaram a multiplicar distintos saberes.

Nesse sentido, outro agricultor, ao referir-se ao curso de formação,

expressou: ―Não participei, fui só pra entrega do retiro. Participei só da palestra da

entrega do retiro [...]. Os que participaram do curso ficou, já repassou pra gente

como era pra gente trabalhar‖ (AFC, 02).

Para Certeau (2008, p, 122) ―as estratégias, combinações sutis, [...] navegam

entre as regras, jogam com todas as possibilidades oferecidas pelas tradições, usam

esta de preferencia àquela, compensam uma pela outra‖.

A mudança introduzida no processo produtivo com a formação contribuiu para

que não ocorressem maiores desperdícios na produção. É percebida pelos

agricultores como importante, e expressam: ―podemos aproveitar melhor, porque

antes a gente perdia muito, hoje não perde quase nada, até a casca, embora não

use ela, mais o cara aproveita para um adubo‖ (AFC, 03). Além de aproveitarem

para o adubo, ―serve pra ração de animais. Eles carregam pra dá pro gado‖ (AFC,

01). Para um entrevistado, essa aprendizagem:

Fez foi ampliar mais alguma coisa, é mais um conhecimento. Não foi difícil porque a gente já nasceu foi naquele trabalho, como foi meu caso. Aí não

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tenho tanta dificuldade para aprender, já teve para mudar, né? Mudou o ritmo de trabalho, antes se jogava no igarapezão a mandioca aí, hoje não... É no tanque. A higiene também entrou, né? Nessa parte eles sempre jogam um curso, como eles sabem lá que tem um retiro desses, eles vêm e jogam um treinamento [...] porque isso aqui é pra produzir melhor, então... O cara

tem que aprender pra produzir melhor... (AFC, 03).

O discurso ressalta a importância de ―aprender para produzir melhor‖

(AFC,03) ou seja, reconhece que outras formas de aprendizagem são importantes

no processo de formação do produtor de farinha, uma vez que, a mudança de

hábitos na higienização modificou o costume de pubar as raízes de mandioca, antes

depositadas no igarapé, e posteriormente postas de molho em tanques.

A partir dos discursos e das observações de campo, é possível inferir que

educação familiar permanece propulsora de formação do fazer farinha.

Tinha até um curso pra vir pra cá, tinha uma área que a gente ia fazer o demonstrativo um plantio de mandioca, e outros tipos de cultura no meio: coco, cupuaçu, um bocado. Aí mandamos aradar, aí a prefeitura mandou o trator pra aradar. Só que eles não receberam mais a condição financeira deles e daí ficou chato. Agora nós quer mandar aradar pra plantar feijão, já em parceria com a secretaria de agricultura. E o IDAM [Instituto de Desenvolvimento Ambiental] que sempre dava assistência aqui, agora... Tem o SEBRAE [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] também, que teve aí, foi bateu foto lá todinho, pra vê se tem algum projeto pra melhorar aí (AFC, 06).

Nesse depoimento, identifico que há uma disposição de alguns sujeitos em

participar dos cursos que concernem o fazer farinha. Nessa proposta de formação

técnica, os agricultores aprenderiam como realizar o cultivo da mandioca

consorciada com outras culturas. No entanto, em decorrência da ausência de

investimentos públicos, a formação prevista não foi realizada pelas agências

responsáveis, pois ―eles não receberam mais a condição financeira deles‖ (AFC, 06).

Esse ramo aqui não está dando. Às vezes as pessoas dizem: ―Ah! Eu vou sair daqui, pra ir pra outro lugar, que daqui não está dando não. Ele não tem que ir pra outro lugar, não tem mais nenhum lugar pra onde o cara ir, agora tem que mudar as coisas, pro cara sobreviver de outra forma, porque plantar roça e arrancar roça está difícil [...] eu vou ficar por aqui mesmo!

(AFC, 03).

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De acordo com esse discurso, a continuidade da produção da mandioca está

comprometida em decorrência das dificuldades inerentes ao plantio e a colheita.

Também revela a preocupação de que ―agora tem que mudar as coisas, pro cara

sobreviver de outra forma‖. Nesse sentido, é preciso construir outras lógicas de

produção agrícola que não se limitem ao fazer farinha.

Sabe-se que a prática educativa por si só não garante a permanência na

comunidade, ―porque não tem condições, porque o que falta mais é condição

mesmo, às vezes o cara aprende a coisa, mas não tem condições de mexer‖ (AFC,

03), ou seja, o baixo poder aquisitivo da maioria das famílias é fator de impedimento.

Há uma preocupação com a continuidade da prática de fazer farinha, para um

dos entrevistados:

O jovem rural, por um lado, é penalizado, porque eles se formam, o que ele aprende em torno de sobrevivência é na roça e no campo [...]. Mas hoje, o jovem que se forma, principalmente na área rural, quando ele se forma, faz o 2º grau que ele acha que tá formado. Ele diz: ―Hoje eu vou embora, vou procurar um emprego‖. Sai e muitas vezes vão embora e não encontra emprego, volta para o mesmo lugar [...]. Pra mim é que pudesse ter para o jovem uns cursos pra ele aprender cada vez mais aquilo que ele tem uma visão [...]. Ele planta, ele tem que plantar mesmo, tem que colher alguma coisa que ele tem que comer, mas não dá mais, porque que nós quando criamos nossos filhos, eu botava só 10/12 tarefa de roça, aí nós plantava milho, arroz e mandioca. E cada um quando tinha necessidade, fazia dois sacos de farinha e vendia... Hoje não dá mais pra isso, porque a família aqui não tem mais condição de fazer isso, com a terra do jeito que tem aqui. O jovem sai daqui por um acaso [...]. Se ele vem pra cidade, na cidade o emprego que tem é em loja, supermercado ele não tem um curso de computação, pra mexer em nada de computador. Eu disse pra ele, se ele aprender como ele pode fazer alguma coisa no campo pra ele sobreviver, ter um plantio, pode até ter um produto de qualidade [...]. A família não tem condições de dar esse apoio. Quem pode, quem tem, continua, mas quem não tem, fica por aí encostado. Ele acaba não aprendendo nada que vá servir pra ele (AFC, 04).

A sabedoria política, neste depoimento, emerge na crítica à educação escolar

que os jovens recebem: ―eles se formam, mas o que ele aprende em torno da

sobrevivência é na roça e no campo‖ (AFC, 04). A expressão demonstra o

distanciamento do que o jovem aprende na escola e o que ele precisa aprender para

desenvolver práticas sociais de agricultor familiar, e assim, ―ele acaba não

aprendendo nada que vá servir pra ele‖ (AFC, 04).

A educação preconizada aproxima-se da concepção de Arroyo (2008), para

quem essa educação parte dos diferentes sujeitos do campo, de seus contextos,

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suas culturas e seus valores, das maneiras de ver ou de se relacionar com o tempo,

com a terra, com o ambiente, com a organização familiar, o trabalho, bem como, na

formação enquanto seres humanos. Entretanto esse autor reforça que a educação

por si só não resolverá os problemas da comunidade camponesa, se não for

combinada com um conjunto de ações políticas, econômicas e culturais.

É evidenciado nos discursos dos sujeitos o processo de degradação das

terras, situação que dificulta a diversificação da atividade da agricultura familiar

camponesa e compromete a permanência dos jovens na comunidade. Diante o

exposto, é possível inferir que o processo de degradação da terra diminui a

produção da mandioca, comprometendo a quantidade e a qualidade da farinha

produzida, trazendo implicações para a reprodução social da família e a

continuidade da educação familiar no fazer farinha.

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ALGUMAS CONCLUSÕES

Figura 50 – Momento de conversa Fonte: Silva (2010).

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si mesmo (BRANDÃO, 2002, p. 26).

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Depois de percorrer diversas trilhas para realização dessa pesquisa e trilhas

empíricas, metodológicas e teóricas, o objetivo aqui nessa chegada é de indicar

algumas conclusões e sugerir outras possibilidades de estudo que motivem o início

de outros percursos capazes de dar continuidade ao desvelamento de processos

culturais ou educativos em cursos.

Na introdução revelei a intenção dessa pesquisa transgredir a idéia das

casas de farinha serem consideradas apenas como espaços de produção material.

Nesse sentido, o diálogo com teóricos de várias áreas do conhecimento amparou o

estudo sobre as perspectivas de educação nesses espaços e contribuiu para a

interpretação e análise de saberes e práticas educativas, que emergem dos

processos de apropriação e usos desses espaços e das práticas cotidianas de fazer

farinha dos agricultores familiares.

A partir dos discursos dos sujeitos e das observações em campo, constatei

que as práticas de fazer farinha orientam a organização social dos espaços das

casas de farinha, e conformam as relações que ali são estabelecidas: há lugares

onde os homens participam mais que as mulheres, que informam também

preferências por realizarem determinadas práticas.

Essas preferências guardam relação com os costumes e valores locais, uma

vez que na ausência dos homens, são as mulheres que assumem a realização das

práticas, mesmo aquelas que exigem mais esforço físico. Identifiquei que a

mobilidade das mulheres nos espaços da casa de farinha também está associada à

inserção de artefatos culturais e tecnologias que facilitam o desenvolvimento do

processo produtivo da farinha. Isso possibilitou mais autonomia às mulheres e às

pessoas de mais idade. Estas continuam dinamizando as práticas de fazer farinha e,

por meio delas, socializando com os menos experientes esse saber-fazer.

Constatei que as práticas de fazer farinha, além de orientarem a organização

interna dos espaços das casas de farinha, materializam diversos saberes como: o

saber plantar a maniva; o saber colher; o saber organizar o espaço para fazer

farinha; o saber para manusear os instrumentos e utensílios; o saber cuidar da casa

de farinha; o saber para a comercialização; o saber para a alimentação; e o saber

político.

A pesquisa indicou que esses saberes são socializados pelos mais

experientes e aprendido na prática, nas vivências dos aprendizes, que buscam

seguir o exemplo dos que possuem mais habilidade na execução das práticas de

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fazer farinha e não são construídos de forma isolada, mas guardam relações de

interdependência entre si, de maneira que o saber colher depende do saber plantar

a maniva, que saber cuidar da casa e dos instrumentos influencia na qualidade do

produto e, portanto, agrega valor na prática da comercialização. Ou ainda, que

manusear os instrumentos e utensílios, guarda relação com a prevenção de

acidentes dos praticantes e informa saber cuidar de si e do outro.

Os discursos dos sujeitos permitem afirmar que o saber cuidar orienta-se para

uma prática educativa socioambiental, pois estes demonstram uma preocupação em

cuidar da casa e dos utensílios como uma estratégia de proteger e fortalecer a

imagem de produtores de farinha de qualidade, o que confere ao produto uma

valorização e uma preferência no mercado local.

Essa preocupação ficou demonstrada ao relatarem que consideram seus

consumidores, principalmente, os que compram a farinha no retalho, uma vez que

estes compram para se alimentarem. Essa é uma questão ética.

A pesquisa revelou também que saber comercializar a farinha assume uma

dimensão que extrapola a lógica do vender e do comprar, incorpora além de uma

preocupação com o negociar um produto de qualidade, também o fortalecer a

própria identidade cultural.

Na construção desse saber, os agricultores enaltecem a qualidade da farinha

que produzem, buscam aperfeiçoar suas práticas, ampliam seus conhecimentos,

defendem que é preciso zelar na/pela prática de fazer farinha, como forma de

fortalecer suas identidades de agricultores familiares camponeses e colocar em

evidencia a farinha como símbolo da comunidade.

Observei que o saber para a alimentação é materializado nas trocas de

alimentos, ritual no qual as famílias se confraternizam, transformando os encontros

em momentos de interações, de trocas de saberes. Esta é uma prática simbólica e

educativa que norteia algumas normas e influencia no desenvolvimento das práticas

de fazer farinha.

Os discursos dos sujeitos informam um saber político materializado em suas

convivências. Este saber permite negociar tensões, criar estratégias para superação

de algumas dificuldades, planejar o processo produtivo, entre outros. Também

contribui para a permanência das famílias na comunidade, uma vez que a educação

está presente na prática da solidariedade, ou da ajuda mútua.

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165

Dessa forma, considero que esses saberes são construídos num movimento

espiralar, a partir das relações de (con)vivência dos agricultores, que dinamizam os

processos socioeducativos de maneira lenta e gradual: os menos experientes vão se

inserindo e sendo inseridos nas práticas consideradas mais fáceis de aprender e

guardam relação com o desenvolvimento de suas capacidades físicas e cognitivas.

Essa ―educação familiar‖ que os pais desenvolvem com as crianças, permite a

inserção, delas, desde cedo no fazer farinha e previne possíveis resistências ao

processo produtivo ou à sua aprendizagem, pois na percepção deles (pais), depois

que crescem, interessam-se menos por essa atividade.

Ao realizarem as práticas coletivamente, os agricultores demonstram a

experiência acumulada e promovem a socialização dos saberes, principalmente com

os aprendizes, que vão construindo e ampliando o saber inicial, até conseguirem

autonomia na realização da prática de fazer farinha.

Nesse movimento, os saberes são revelados e a educação tornam-se

presente como ajuda, ou seja, a capacidade que o sujeito tem de contribuir na

execução de uma determinada prática; na revelação de como se faz uma farinha de

qualidade; na troca de experiências ou de informações; no modo de zelar; no modo

de cuidar; no modo de conviver.

No discurso de alguns praticantes foi identificado que eles aprenderam a fazer

farinha por que queriam continuar com o ofício do pai ou da mãe, queriam ajudá-los,

e para essa continuidade, foram formados na vivência das casas de farinha.

Embora, o estudo indique também que nem sempre os mais jovens são educados

(as) para fazer farinha de maneira espontânea.

Verifiquei que as práticas educativas no fazer farinha são realizadas sem um

planejamento formal, como acontece no ambiente escolar. Assim, formadores e

aprendizes, conscientes ou não de suas atribuições ou de suas ações, utilizam-se

de diferentes estratégias ou metodologias para que as práticas do fazer farinha

sejam aprendidas. Dentre essas estratégias identifiquei: a oralidade, na qual se

insere não apenas a comunicação verbal, mas também gestual, que são

dinamizadas, principalmente, na prática do descascamento e da torração; o

aprender-fazendo, ora desenvolvido em todas as práticas, em sua iniciação, os

sujeitos preferem fazer as tarefas mais fáceis, dentre elas o peneirar a massa; e a

observação, mais utilizada na prática do sevar e do prensar, que configura-se

também numa maneira de avaliar o aprendido.

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Essa oralidade não se resume às práticas de fazer farinha, os agricultores se

reúnem de forma espontânea para conversarem sobre assuntos da comunidade,

sobre os saberes cotidianos, inclusive para orientarem os filhos em relação à vida

cotidiana escolar. Dialogam sobre seus relacionamentos; fazem planos ou trocam

informações, que muitas vezes chegam à comunidade por outros meios de

comunicação.

Outra constatação da pesquisa foi de que a (con)vivência na casa de farinha

e o fazer coletivo possibilitam a socialização dos saberes, configuram-se como

práticas educativas, fortalecedoras de laços familiares, de compadrio. O

fortalecimento da convivência entre as famílias guarda relações com a inserção de

artefatos culturais, que modificaram o fazer farinha. Isso possibilitou que o espaço

da Casa Comunitária se tornasse um espaço favorável à trocas de saberes, uma vez

que estes antes eram vivenciados pelas famílias de forma individual e que passaram

a ser materializados a partir do ―trabalhar junto‖, incorporando à ―educação familiar‖.

Essa modificação no fazer farinha demandou formação técnica para alguns

agricultores, realizada em parceria com o poder público municipal, que embora

tenha favorecido ampliar seus conhecimentos, não representou ruptura na atuação

das famílias enquanto agentes formadoras.

A terra para o plantio configura-se como uma das principais preocupações

dos agricultores, uma vez que, nos últimos anos, o processo de empobrecimento do

solo vem comprometendo a produção da matéria prima para fazer a farinha. Com

isso, tem-se a necessidade de utilizar produtos químicos para o controle do mato, o

que intensifica ainda mais a degradação ambiental.

Nesse contexto, há uma demanda por formações que não se reportem

apenas ao fazer farinha, mas que contribuam para o estabelecimento de outras

lógicas de produção que venham permitir a continuidade dos sujeitos na

comunidade. No entanto, as agências de formação ou de acompanhamento técnico

não têm desenvolvido uma educação que possibilite a melhoria de algumas práticas,

com destaque para ―o plantar‖, quanto à utilização de produtos químicos. Esse fato

demonstra também a insuficiência de uma política de Estado que fortaleça o ―diálogo

de saberes‖ dos agricultores e dos saberes produzidos pela academia e por essas

agências.

Considero que essa pesquisa trouxe indicações de estudo de outras questões

como: o processo de degradação da terra; o processo de socialização de saberes

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167

camponeses; a efetiva contribuição, ou não, das agências de assessoria técnica na

construção de processos educativos de agricultores familiares; as práticas

educativas do ambiente escolar; o diálogo com as práticas dos jovens agricultores

familiares; as relações de gênero nas casas de farinha e a invisibilidade da mulher

camponesa, entre outros.

Ao trazer essas questões, a expectativa é de que elas possam ser o ponto de

partida para outros percursos de pesquisas e de reflexões, pois no campo da

educação, em contexto não escolar, particularmente em relação à agricultura familiar

camponesa amazônica, ainda são pouco os estudos com enfoque nos saberes

culturais e nas práticas educativas desses sujeitos.

Portanto, além de sua contribuição teórica, considero que esse estudo

contribui para dar visibilidade às experiências sociais que tem sido historicamente

desperdiçadas, mas que na prática contribuem para o fortalecimento dos saberes e

da identidade dos agricultores e agricultoras produtores de farinha.

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ANEXOS

ANEXO A: Termo de consentimento livre e esclarecido ........................... p.173

ANEXO B: Consentimento livre e esclarecido ........................................... p.173

ANEXO C: Carta de informação para os pais ........................................... p.174

ANEXO D: Formulário de consentimento para os pais ............................. p.174

ANEXO E: Instrumental das Entrevistas Semi-estruturadas ..................... p.175

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

CASAS DE FARINHA: ESPAÇO DE (COM)VIVÊNCIA, SABERES E PRÁTICAS

EDUCATIVAS.

Vimos, por meio deste Termo, convidá-lo (a) a participar da pesquisa de dissertação de mestrado, intitulada ―Casas de Farinha: Espaço de (con)vivência,

Saberes e Práticas Educativas‖, vinculada ao Programa de Pós -Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), tendo como orientadora a Profª. Dra. Maria das Graças da Silva. Esta pesquisa tem como objetivo geral

analisar os saberes e as práticas educativas que são construídos ou reconstruídos nas relações de (com)vivência que se estabelecem nas casas de farinha na Comunidade Santo Antonio do Piripindeua.

Esclarecemos que sua participação será por meio de entrevista, cujo

instrumento foi elaborado por nós a respeito do tema em estudo. Para o registro das respostas, utilizaremos se você concordar, um gravador. Poderemos utilizar, também, imagens fotográficas suas tiradas em diferentes momentos nas casas de

farinha com a finalidade de embasar aspectos sobre a educação e os saberes culturais construídos no fazer farinha.

As entrevistas concedidas serão posteriormente transcritas e devolvidas para

os sujeitos entrevistados quando serão lidas para aprovação ou não do texto, acréscimos e explicações de trechos que expressem ambigüidades. Convém esclarecer que as imagens só serão utilizadas mediante aprovação dos sujeitos.

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu,............................................................................................, declaro que li as informações sobre a pesquisa e que me sinto perfeitamente esclarecido (a) sobre o conteúdo da mesma. Declaro, ainda, por minha livre vontade, que aceito participar,

cooperando com a coleta de informações necessárias para a realização da mesma.

Mãe do Rio, _____/_____/_____

CARTA DE INFORMAÇÃO PARA OS PAIS/RESPONSÁVEIS

Pesquisadora

CIRLENE DO S. S. DA SILVA

(91) 8272-0480

Orientadora

MARIA DAS GRAÇAS DA SILVA

ASSINATURA DO SUJEITO DA PESQUISA

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Caro Pai/Mãe/Responsável

Busco seu consentimento para que seu filho(a) seja envolvido em estudo

relacionado à educação nas casas de farinha da Comunidade Santo Antonio do

Piripindeua.

O estudo intitula-se; Casas de farinha: espaço de (con)vivência, saberes e práticas

educativas e concentra-se em analisar os saberes e práticas educativas impressos

nas atividades que envolvem o processo de fazer farinha. Envolverá registros em

áudio, e imagens (fotografias), na casa de farinha. Os jovens e crianças poderão ser

gravados e fotografados enquanto conversarem e interagirem durante suas

atividades cotidianas na casa de farinha.

O nome das crianças e jovens não aparecerão nos relatos, escritos da pesquisa.

Como abordagem ética da pesquisa asseguro-lhe que:

-As crianças estarão realizando suas atividades cotidianas de maneira usual.

-As crianças ou jovens não serão identificadas ou chamadas pelo nome.

-As fotografias só serão usadas para propósito de pesquisa.

Cirlene do Socorro Silva - Responsável pelo estudo.

FORMULÁRIO DE CONSENTIMENTO PARA PAIS/RESPONSÁVEIS

Concordo ( ) Não concordo ( ) (por favor, risque ao que se aplicar), em deixar

meu

filho:________________________________________________________________

_participar do estudo conduzido por Cirlene do Socorro Silva da Silva na casa de

farinha.

Entendo que os registros de áudio, desenhos e fotografias só serão utilizados para

fins de pesquisa e acadêmicos.

Assinatura:_________________________________________________________

Data:______/______/_______

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PESQUISA: CASAS DE FARINHA; ESPAÇO DE (CON)VIVÊNCIA, SABERES E

PRÁTICAS EDUCATIVAS

Instrumental das Entrevistas Semi-estruturadas

1- Identificação

a) Nome:_____________________ b) Idade:_____________________ c) Sexo: _____________________ d) Naturalidade:________________ e) Escolaridade:________________ f) Religião:____________________

I - Identificação e Trabalho agrícola:

1) Nas atividades relacionadas ao fazer farinha, como você se identifica (agricultor ou agricultora, produtor e produtora, assentados?

2) Dos produtos que você cultiva, qual o mais importante para sua sobrevivência

e de seu grupo familiar?

3) Qual o tipo de organização de trabalho com a terra é o mais utilizado por você

(familiar, mutirão, individual?

II - Elementos históricos da produção da farinha:

4) Como você começou a fazer farinha?

5) Que tipo(s) de conhecimento você já adquiriu até hoje sobre o fazer farinha ?

6) Você fez farinha em outro tipo de ―casa de farinha‖? 7) Você aprendeu a fazer farinha com quem?

8) Você participa de todas as etapas da produção da farinha ou de apenas

alguma atividade ou etapa? Qual?

9) Você acha que a forma tradicional de se fazer farinha está se perdendo ou se

modificando? Por quê?

III - Concepções sobre a “casa de farinha".

10)O que a ―casa da farinha‖ representa para vocês que fazem farinha? lugar

que agrega, lugar onde realizam diversas atividades, lugar onde se ensina ou

se aprende? 11)Para você o que é fazer farinha?

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12)Que tipo de conhecimento(s) pode-se aprender na convivência de uma ―casa de farinha‖

III - As relações de convivência e aprendizagens na casa de farinha:

13)Que tipo de práticas (educativas) são desenvolvidas nas atividades de fazer

farinha? Na sua avaliação, na casa de farinha pode-se desenvolver algum tipo de educação?Qual ou quais?

14)Descreva o seu dia a dia na casa de farinha?

15)Que importância tem a casa de farinha no seu cotidiano? 16) Que tarefas ou obrigações você tem na casa de farinha? Com qual você

mais se identifica? 17)Como aprendeu as etapas das atividades de fazer farinha (descascar, ralar,

torrar etc.)? Foi difícil? Demorou? Ainda está aprendendo? Como? 18)Você ensina ―fazer farinha‖ (o processo de produção da farinha) para outras

pessoas? Para quem? (São jovens?) O que ensina? Como ensina? Em que momento do fazer a farinha você ensina? Que tipo de recursos utiliza para ensinar? Você costuma perguntar para as pessoas se da maneira como

ensinou, foi fácil elas aprenderem? Como você avalia essa atividade de ensinar os outras a aprender esse ofício de ―fazer farinha‖?

19)Como se dá a participação dos produtores no curso que a assistência

agrotécnica ofereceu para a produção da farinha? Como você avalia esse curso?

20) Como são as relações de convivência nas casas de farinha? cooperação? Há conflitos? Como são resolvidos?

21)A convivência na casa de farinha contribui para a continuidade na Comunidade? Justifique.

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