CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

220

Transcript of CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Page 1: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico
Page 2: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

coleção TRANS

Barbara CassÍn

o EFEITO SOFÍSTICO

Sofística, filosofia, retórica, literatura

Tradução dos ensaios Ana Lúcia de Oliveira

Maria Cristina Franco Ferraz

Tradução dos documentos Paulo Pinheiro

editora.34

Page 3: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

EDITORA 34

Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo - SP Brasil Tel!Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34 Ltda., (edição brasileira), 2005 L"Effet sophistique © Éditions Gallimard, 1995

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CO:--JFIGURA UMA

APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS !)JTELECTUAlS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme de participation à la publication, bénéficie du soutien du Ministere français des Affaires Etrangeres, de I'Ambassade de France au Brésil et de la Maison française de

Rio de Janeiro. Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison française do Rio de Janeiro.

Título original: L'Effet sophistique

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica

Revisão técnica: Paulo Pinheiro Fernando Santoro

l' Edição - 2005

CIP ~ Brasil. Catalogação-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

Cassin, Barbara C388e O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica,

literatura I Barbara Cassio; tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Maria Cristina Franco Ferraz e Paulo Pinheiro. - São Paulo: Ed. 34, 2005. 448 p. (Coleção TRANS)

ISBN 85-7326-330-X

Tradução de: L'Effct sophistique

1. Filosofia. n. Título. m. Série.

CDO - 140

o EFEITO SOFÍSTICO

Apresentação da edição brasileira

O efeito sofístico I. A ontologia como obra-prima sofística ...................... .

11. Como a política é uma questão de lagos .................... . III. Das plantas que falam ............................................... . IV. De uma sofística a outra: boas e más retóricas ........... . V. Descompartimentar os gêneros .................................. .

VI. Conclusões ................................................................ .

Documentos Górgias, O tratado do não-ser, M.X.G./Sexto ................... .

Pseudo-Aristóteles, De Melisso, Xenófanes e Górgias (979 a12-980 b22) .............. .

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos (VII, 65-87) .......................................................... .

Górgias, Elogio de Helena ........................................... .. Antifonte, Sobre a verdade ........................................... .

Primeira tetralogia ................................................. . Platão, Protágoras (320 b-328 d) .................................. . Élio Aristides, Contra Platão,

para defender a retórica (394-428) ....................... . O uso (trechos escolhidos) ........................................... .. Platão, Górgias (492 e3-494 b6) ................................... . Aristóteles, Metafísica

(livro Gama, IV, 1003 a21-1012 b31) .................. . Filóstrato, Vidas dos sofistas (I, 479-484) ..................... . Luciano, Como escrever a história (extratos) ................ .

História verdadeira (1-4) ....................................... .

Indicações bibliográficas ....................................................... . Sumário da edição francesa ................................................... . Índice onomástico ................................................................. .

7

13 65 77

143 211 263

269

272

283 293 303 311 331

347 367 371

377 401 411 421

425 429 435

J

] ~ I

Page 4: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

"O título dado ao 'Gabinete logológico' procede da idéia de um logos no segundo grau que, deixando de ser uma codificação remetendo aos fenômenos e objetos do mundo, põe-se a proliferar a partir de si mesmo. Portan­to, desembreado e na banguela. [ ... ] O mecanismo visa­do é, pois, justamente o de embaralhar a demarcação de nossa área mental e torná-la movediça, de modo a deso­rientá-la, levá-la a perder o norte, ou melhor, a se de­frontar com um número infinito de direções que podem indiferentemente servir-lhe de norte. De temporário, re­lativo e movediço norte".

(Jean Dubuffet, 9 de março de 1970; nota escrita por oca­sião da exposição Le Cabinet logologique, no C.N.A.C., de 14 de abril a 11 de maio de 1970, presente no Cata­logue des travaux de Jean Dubuffet, fase. 24: Tour aux figures, amoncellements, cabinet logologique, Paris, We­ber, p. 115).

o presente livro não tem nada a ver com a sua "versão france­sa", L'Effet sophistique, publicado pela Gallimard em 1996. Pois, de certo modo, L'Ef(et sophistique já havia sido publicado no Brasil an­tes de o ser na França. Foi a pedido de Éric Alliez para a coleção Trans, na época publicada pela editora Siciliano, que em 1990 eu reuni sob o título de Ensaios sofísticos os artigos que dariam origem a L'Effet sophistiquel, já reagrupando-os sob os três grandes gestos caracterís­ticos do efeito que a sofística faz junto à história do pensamento: da ontologia à logologia, do físico ao político, e da filosofia à literatura,

I Encontra-se, no final do volume, o plano de L'Effet sophistique na edição francesa, para que se possa medir o sentido e a importância dos remanejamentos.

Apresentação da edição brasileira 7

Page 5: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

antes de concluir com o retorno do recalcado sofístico, particularmente em Freud e Lacan. Depois, em 1996, a Editora 34 publicava Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros, uma obra composta com Nicole Loraux e Catherine Peschanski, oriunda de um seminário rea­lizado no Rio de Janeiro, no Colégio Internacional de Estudos Filosó­ficos Transdisciplinares (dirigido por É. Alliez), onde retrabalhei, a partir de Antifonte e Eurípides, a passagem do físico ao político: "cida­daniza-se", diz Antifonte, fazendo da natureza um simples escape, bárbaro além do mais, deste imediato que é a cidade.

Tenho, portanto, agora, que embaralhar as cartas de outro modo, e dar outras cartas para completar o jogo. As cartas que acrescento são essencialmente textos e análises de textos. Insisto aqui em dois grandes momentos de constituição da sofística. Primeiro, o momento fundador, mas que seria melhor chamar de "afundador", retomando o termo de Deleuze, já que escapa a todo pathos de origem ao repre­sentar-se explicitamente como segundo, crítico. Trata-se do Tratado do não-ser de Górgias, que manifesta linha por linha de que modo o Poema de Parmênides, no nascimento da ontologia, não deixa de ser um discurso entre outros, particularmente performativo.

Em seguida, a grande réplica filosófica, a devolução do tapa, que não é tão platônica quanto aristotélica: o princípio de não-contradi­ção, na medida em que constitui por si só uma regulação do discurso. Sua impossível demonstração no livro Gama da Metafísica, que eu apresento e comento aqui por completo, impõe a grande equação: falar é significar alguma coisa, uma só coisa, a mesma, para si e para ou­trem. A palavra é, assim, a primeira entidade a obedecer ao princípio: uma palavra não poderia ter e não ter ao mesmo tempo o mesmo sen­tido. Tanto que os sofistas amadores de homonímia e de significante, que não se dobram à decisão do sentido, não são homens; no máxi­mo, plantas que falam.

Pois eles falam, todavia; mas para não dizer nada, pela graça de falar. "Uma filosofia de raciocínio verbal, sem solidez e sem serieda­de", diz Lalande no verbete "Sofística", em seu Vocàbulário técnico e crítico da filosofia, indefinidamente reeditado. Não os encontrare­mos senão intimados em juízo às margens da fala filosófica, ou com­pletamente fora, do lado da retórica, da ficção, do romance - do sen­tido sem referência, desancorado do ser. Exploro, então, a resposta à resposta aristotélica, isto é, os textos em que a segunda sofística se in­venta, em sua relação com a retórica, a história, a literatura; e as ma-

8 o efeito sofístico

neiras com que reivindica - com Élio Aristides, com Filóstrato, com Luciano - a soberania de seu estatuto discursivo, capaz de englobar, engolir ou subjugar, a filosofia - uma filosofia que ela descreve como se esforçando por se lhe assemelhar sem o conseguir.

Proponho chamar de "história sofística da filosofia" esta que relaciona as posições, não as relativas à unicidade da verdade, quer seja ela eterna ou progressivamente constituída ao modo hegeliano (a verdade como telas, em um tempo orientado, ou "como se fosse" orien­tado), mas esta que as relaciona aos instantâneos do kairos, ocasião, oportunidade, graças a mekhanai, procedimentos, astúcias, ma qui­,nações, permitindo agarrar o kairos por seu topete. Duas frases de co­mentário, para poder captar com esta mudança de perspectiva a ba­nalidade completamente diferente da história sofística (completamente diferente, mas não menos banal). Uma, contemporânea, de Gilles De­leuze, em Pourparlers2: "O que se chama de sentido de uma proposi­ção (acrescento: ou de uma interpretação) é o interesse que ela apre­senta. Não há outra definição do sentido, e isto é o mesmo que a no­vidade de uma proposição". E, um pouco mais além: "As noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais deter­minantes que a noção de verdade. De modo algum porque as substi­tuem, mas porque medem a verdade do que eu digo". A outra frase, no outro extremo da cadeia temporal, é de Protágoras, ou antes, de Sócrates falando em nome de Protágoras na Apologia do Teeteto, para explicitar a doutrina do homem-medida. Não se trata de fazer passar do falso ao verdadeiro, pois nem se deve nem se pode sequer fazê-lo, mas, diz Protágoras: "Aquele que pensa sob o efeito de um estado penoso de sua alma coisas igualmente penosas, fazemos com que pense outras coisas, pensamentos que alguns, por falta de experiência, cha­mam de verdadeiros, mas que eu chamo de melhores uns que os ou­tros, em nada mais verdadeiros" (167 b). Enfim, na história sofística. da filosofia, ficaria explícito que o melhor, a performance, é a medi- ' da do verdadeiro. O primeiro interesse desse tipo de série compara­tiva, diferentemente da clausura do superlativo, mesmo reflexivo, é que ela nunca é, de direito, finita. "Como diz Lindon", escreve Deleuze, "não se repara a ausência de um desconhecido". O desafio do "ainda melhor" dá lugar à possibilidade do "difere~ent~". E até

.2 Paris, Minuit, 1990, p. 177 [edição brasileira: Conversações, trad. Peter Pál Pelbart, São Paulo, Editora 34, 1992, p. 1621. Grifo meu.

Apresentação da edição brasileira 9

1

Page 6: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

mesmo, conforme Deleuze e Lindon, é diferentemente melhor já pura e simplesmente porque é diferente.

':. * >,c

Eu não saberia o quanto agradecer a minhas tradutoras e ami­gas queridas, Ana Lúcia Machado de Oliveira e Maria Cristina Fran­co Ferraz, que traduziram os ensaios; a Paulo Pinheiro, que traduziu os textos em anexo, e a Fernando Santoro, colega em aristotelismo e connaisseur em saudade, que os reviu com uma atenção cúmplice.

Barbara Cassin

10 o efeito sofístico

o EFEITO SOFÍSTICO

Sofística, filosofia, retórica, literatura

Page 7: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I. A ONTOLOGIA COMO OBRA-PRIMA SOFÍSTICA

GÓRGIAS CRÍTICO DE PARMÊNIDES: EMPIRISMO OU RETÓRICA?

~'Górgias crítico de Parmênides", e, de modo mais abrangente, "Górgias crítico do eleatismo", tal era o cavalo de batalha, e sem dúvida se tornou um lugar-comum, da "reabilitação da sofística" à qual as­sistimos há certo tempo, talvez dez anos, em nossa França retardatá­ria. Para situar as coisas em suas linhas gerais, encontra-se nos Estu­dos sobre o eleatismo, de Guido Calogero (1932), um argumento de peso contra a tese, até então dominante, de Heinrich Gomperz (50-phistik und Rhetorik, 1912), segundo a qual a sofística não pertence à história da filosofia mas à história da retórica, e para quem, portan­to, o Tratado do não-ser se desqualifica como um "jogo" (paignion, é o próprio Górgias que o diz, a propósito do Elogio de Helena), até mesmo como uma "farsa" 1.

A reabilitação a que então assistimos contradiz a tese retórica por meio de uma antítese empirista: à tese "a sofística não é mais do que logos", opõe-se um "não, a sofística trata dos pragmata, ela vai às pró­prias coisas,,2. É claro que as conotações desse julgamento e o valor

1 É uma expressão de Karl Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie, Bonn, 1916 (reimpr. Frankfurt, 1959). Hans Joachim Newiger (Untersuchungen ZU Gorgias' Schrift über das Nichtseiende, BerlimINova' York, Walter de Gruyter, 1973), e mesmo Giuseppe Mazzara (Gorgia ontologo e metafisico, Palerma, lia Palma, 1982), analisam muito bem o efeito Calógero em suas respectivas introduções.

2 É, sem dúvida, G.B. Kerferd, em seu artigo de 1955, "Gorgias on nature ar that which is not", Phronesis I, 1955, pp. 3-25, que vai mais longe nessa inter· pretação.

A ontologIa como obra-prima sofística 13

1 1

Page 8: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

atribuído à posição sofística podem, a partir daí, variar considera­velmente: de um empirismo subjetivista até uma ontologia fenome­nológica. Os sofistas - Górgias então bastante próximo de Protágo-~ ras - são um momento necessário da história da filosofia: eles re-I futam a abstração vazia do ser eleático pela consideração das coisasl , efetivas, da realidade do mundo sensível e vivo, pluralidade, movi-~ mento, subjetividade. Enquanto tais, como mais tarde e de modo di­verso a Aufkliirung, devem ser reconhecidos e ultrapassados; reco­nhece-se, na linhagem de Hegel, por exemplo Walter Brócker: "O que Parmênides rejeitara como erro de uma multidão desprovida de julga­mento eles colocaram no trono da verdade. Devemos a Platão o re­conhecimento de que isso também foi um erro,,3. Com um humor mais mediterrâneo e com mais simpatia, pode-se ainda interpretar, como Mário Untersteiner4, o interesse, dessa vez não relativista, pelos prag­mata como uma instância do .humanismo que dá sentido a essa gran­de tragédia fenomenológica que é a existência. Pode-se, sobretudo, de um modo mais crítico em relação à tradição metafísica dominante, no rastro de Nietzsche e com o mais recente Kerferds, insistir no anti-·~ idealismo dos pragmata e considerar o momento sofístico como um: momento de lucidez da filosofia, anti-platônica antes mesmo de Pla-', tão: hoje, quando continuamos pretendendo reverter e ultrapassar o, platonismo, eis um momento para ser analisado e saboreado.

Digamos logo de saída que essa reabilitação, e todas as reabili­tações desse tipo, ainda me parecem inteiramente tributárias da con­denação platônico-aristotélica. Acusar a sofística de retórica e excluí­la do campo da filosofia são procedimentos equiparáveis a tal julga­mento. Basta encadear algumas frases. Platão, no Teeteto (160 doe), faz uma equivalência entre Homero, Heráclito, a tribo que os segue, o lagos de Protágoras segundo o qual o homem é a medida de todas as coisas, e a tese de Teeteto segundo a qual "a ciência não é nada mais do que a sensação" . Aristóteles amplia essa construção, acrescentan­do-lhe, para o espanto do leitor atento, o próprio Parmênides, na re­futação que, no livro Gama da Metafísica, deve servir para demons­trar o indemonstrável princípio de não-contradição: "De modo geral,

14

3 "Gorgias contra Parmenides", Hermes LXXXVI, 1958, p. 440.

4 Les Sophistes, op. cito

5 The Sophistic Movement, Cambridge, CU.P., 1981.

o efeito sofístico

é por considerarem como pensamento a sensação - que, aliás, tam­bém é alteração - que podem afirmar que o que aparece na sensação é necessariamente verdadeiro" (5, 1009 b12-14). É inegável que Ker­ferd, no momento mesmo em que professa um anti-platonismo, não faz mais do que se inscrever nessa interpretação bastante platônica -afirmando, por exemplo: "Para [os sofistas], o ponto de partida é o próprio mundo fenomênico, regularmente considerado como consti­tuindo todo o real e, conseqüentemente, como único objeto possível de conhecimento" 6 -, para melhor esboçar a imagem de uma sofística hiper-racionalista. A única diferença refere-se então simplesmente ao fato de que não se trata mais, como em Platão e Aristóteles, de uma insuficiência ou de um erro de conseqüências teórico e praticamente deploráveis, mas antes de uma posição alternativa, por si só digna de interesse e já moderna.

Não é, de modo algum, surpreendente o fato de que atualmente se tenha operado uma inversão dos valores em filosofia e que a sofística, na condição de empirismo mais ou menos racionalista ou mais ou menos fenomenológico, esteja marcada por um signo positivo. É, no entanto, bastante insuficiente limitar-se a uma tal reabilitação: é dei­xar de lado - na crença de um amálgama doxográfico tão erudita­mente hostil e eficaz que nem chega a aflorar em nossa consciência fi­losófica - o essencial, ou antes, o específico da sofística.

Górgias não se contenta em "colocar o mundo da doxa no tro­no da aletheia", mesmo sendo esse um dos efeitos possíveis de seu discurso. Na verdade, tanto Platão quanto Aristóteles não se detêm em uma tal caracterização. Assim Sócrates vem, por conta própria, socorrer a tese que empirismo e relativismo deixaram órfã, e faz a apologia de Protágoras: o sofista não transforma o falso ou a opinião em menos falso ou em verdade; ele transforma os "estados" e faz passar do "menos bom" ao "melhor" ("é preciso fazer a inversão dos estados, pois um vale mais do que o outro", cf. Teeteto, 166 d-167 d). E, enquanto "o médico transforma por meio de remédios", é "por meio de discursos" que opera o sofista. Aristóteles, por sua vez, de-, senvolve sua refutação distinguindo dentre os fisiólogos, cujo erro é fácil de dissipar, um último bastião de irredutíveis: aqueles que fa­lam não sob a influência de dificuldades reais, mas logou kharin, "pelo prazer de falar" (6, 1011 b2s., 1011 a4, 15). Os grandes Antigos não

6 Op. cit., p. 72.

A ontologia como obra~prima sofística 15

Page 9: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

se contentavam em caracterizar os sofistas como heraclitianos deses­peradamente racionalistas: ao contrário, o empirismo, que poderia ser de fato a doutrina física mais apropriada a uma ciência do homem, já era reconduzido por eles, como à sua fonte, a uma instância lógica, e indexado como concernindo, antes de mais nada, ao discursivo.

Tudo poderia, então, se passar como se devêssemos retornar, a partir daí, à outra tese central referente à sofística, aquela que a pre­cedente tinha, no entanto, por função ultrapassar. Após "os sofistas são empiristas", novamente: "os sofistas fazem discursos" . É claro que seu discurso trata dos pragmata, tem uma eficácia mundana, em to­dos os sentidos do termo, mas não porque sejam, antes de tudo, em­piristas e sim porque falam. Como então escapar à tentação de repe­tir, com Platão e Aristóteles, que, falando em vez de pensar, os sofis­tas se abrigam na aparência e são, assim, apenas pseudo-filósofos? E como não concluir, com Gomperz, que eles pertencem pura e simples­mente, antes de mais nada, ou somente, à história da retórica?

Se chegássemos a não mais interpretar a retórica segundo a ten­dência da tradição que a faz passar irresistivelmente do filosófico ao literário, tal julgamento seria sem dúvida, em sua unilateralidade, mais verdadeiro do que o outro. Para evitar contra-sensos e malentendi­dos, substituamos "retórica" pelo termo, a ser tomado literalmente, de "lógica", ou por aquele, ainda menos equívoco, de "discursivo": a crítica que Górgias faz de Parmênides, no meu entender, só pode ser apreendida adequadamente desse ponto de vista. Mas, ao invés de assim cairmos na não-filosofia, creio que, pelo contrário, somos con­frontados com uma tomada de posição tão forte acerca da ontologia e da metafísica em geral, que ela bem poderia revelar-se filosoficamente não superável.

TRATADO CONTRA POEMA

Sobre o não-ente ou sobre a natureza: o título conservado por Sexto Empírico para o tratado de Górgias é provocativo. É o próprio título dado aos escritos de quase todos os filósofos que compuseram um tratado Sobre a natureza. Mas é também sua exata inversão, uma vez que todos esses físicos, ou fisiólogos, e dentre eles Parmênides, designam por natureza - como Heidegger não cessa de enfatizar -aquilo que cresce e vem assim à presença: o ente. Assim, a identidade

16 o efeito sofístico

do título acompanha a inversão mais extrema: falar da natureza não é, como todos eles acreditam, falar do ente, mas, antes, tratar do não­ente; é o que não é que está em vias de brotar. O Tratado de Górgias, paradigmático da sofística nesse aspecto, poderia ser compreendido apenas como um discurso segundo, crítico de um discurso primeiro já efetuado, no caso o Poema de Parmênides, fonte de toda a ontologia platônico-aristotélica sob a qual vivemos.

"Nada é." "Se é, é incognoscível" (ou, na versão de Sexto, "não pode ser apreendido pelo homem"). "Se é e se é cognoscível, não pode ser mostrado aos outros" (ou: "formulado e explicado a seu próximo"). Após o título, é o gesto discursivo de Górgias que contesta a expansão do poema. Em lugar do auto-desdobramento do "é" na plenitude es­férica de sua identidade presente e apresentada (fr. 1-8), talvez em lugar de sua perda através do mundo dos homens e de suas opiniões, e de sua retomada em um cosmos enriquecido, pleno de pensamento (fr. 16, e a ordem bem hegeliana dos fragmentos proposta pelos editores), em lugar então da "natureza" como progresso, acúmulo identitário, simples ou dialético, o tratado apresenta uma estrutura de recuo que consome de saída a tese máxima, em seguida se adelgaça segundo as características da antilogia, da defesa, do discurso ainda sempre segun­do. Freud o repetiu magistralmente - e ainda é difícil resistir a tal repetição - A pediu emprestado a B um caldeirão de cobre; ao rece­bê-lo de volta, B reclama que o caldeirão tem um grande furo que o põe fora de uso. Eis a defesa de A: (1) Nuuca pedi um caldeirão em­prestado a B. (2) Já havia um furo quando eu o peguei emprestado. (3) Devolvi o caldeirão intacto.

Após o título e a série, finalmente, cada uma das três teses de Gór­gias se apresenta, por sua vez, como uma inversão irônica ou grossei­ra do Parmênides escolar que cada um de nós, de Pia tão aos nossos dias, teve que memorizar: inicialmente, que há o ser pois o ser é e o não­ser não é; em seguida, que esse ser é por essência cognoscível, já que

: ser e pensar são a mesma coisa; por meio disso a filosofia, e mais es-pecificamente essa filosofia primeira que foi denominada de metafí­sica, pôde se engajar muito naturalmente em seu caminho - conhecer

: o ser enquanto ser - e se cunhou em doutrinas, discípulos e escolas. Ser, conhecer, transmitir: não é, não é cognoscível, não é transmissível.

Essa série de inversões não vem do exterior como um truque arbitrário. Ao contrário, ela diz respeito ao próprio Poema e se efe­tua somente por meio de sua repetição, por sua retomada literal. Como,

A ontologia como obra-prima sofística 17

1 1

Page 10: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

por sua vez, o Estrangeiro do Sofista irá constatar acerca do interdito parmenidiano, é de fato o enunciado que se desmente a si mesmo. Todo o trabalho de Górgias consiste em tornar manifesto que o poema on­tológico já é em si um discurso sofístico, e mesmo - toda a philoso­phia perennis está aí para testemunhar isso - o mais eficaz de todos os discursos sofísticos possíveis. Em outros termos, a sofística é uma outra espécie de poesia, poesia de gramáticos talvez, que se esforça em desvelar os mecanismos da graça eficaz da linguagem.

QUE NÃO É: CRÍTICA DA KRISIS

PARMÊNlDES, O GÓRGIAS DE SEXTO

E O DO ANÔNIMO

Eis então, texto contra texto, Górgias e Parmênides: "não é" contra "é".

Estabeleçamos previamente uma questão que, entretanto, devi­do à especialização dos filólogos, corre o risco de permanecer para sempre pendente, ou de ter uma solução pendular: a da "melhor" versão do tratado, transmitido duas vezes (de um lado, por Sexto Em­pírico, VII, 65-87; de outro, na terceira parte de um opúsculo pseu­do-aristotélico, De Me/isso, Xenófanes e Górgias, designado pela si­gla De M.X.G., que convém a seu mistérioj?, e a da reconstituição do texto original. No que se refere à primeira tese, a argumentação do De M.X. G. está mais próxima de uma compreensão afim ao dizer do poema, ela tem mesmo como função fazer entender a maneira pela qual logos e ser são inseparáveis no nascimento da onto-Iogia. A argumen­tação de Sexto utiliza os mesmos materiais, alguns mas não todos, vertendo-os no molde posterior de uma lógica que se aplica a propo­sições já constituídas, ao invés de ser sensível à emergência da estru­tura proposicional como tal. Essa formalização constitui uma perda: trata-se, e isso é explicitado por Sexto, do uso com finalidade cética classicamente lapidada - abolir o critério da verdade - daquilo que parece por si só uma escuta desmistificadora mais violenta, pois mais à espreita da origem, da violência da ontologia.

A começar por Parmênides. A deusa começa nomeando" os dois únicos caminhos de busca que se pode pensar" (fr. 11):

7 Ver, nesta edição, Documentos.

18 o efeito sofístico

3 o primeiro que é e que não é [possível] não ser, é caminho de persuasão, pois segue a verdade. O segundo que não é e que é necessário não ser, esse, eu te digo que é uma vereda muito enganadora pois não poderias conhecer justamente aquilo que não é

[(pois não se pode realizar isso) nem dizê-lo.8

De um lado, portanto, o "é", a verdade, mas também - é raro não esquecê-lo - a persuasão. Do outro: "não é", e isso é tudo. Não se pode desdobrar, realizar - conhecer, dizer - a identidade do "não é": é por isso que tal via é impraticável. De tal modo que, no fragmen­to VIII, "só permanece a palavra do caminho: é" (ls.).

Primeira tese de Górgias, tal como lançada de início: "Não é, diz ele, nada" (ouk einai [ ... ] ouden, M.X.G., 979 alO), "Que nada é" (hati auden estin, Sexto, 65, retomado no início de 66). Ela se opõe direta­mente, como indica sua retomada concessiva - literalmente: "se é" (ei d'estin, 979 alO, 979 b20s.; igualmente, ei kai estin, 65) -, ao "é", estin, de Parmênides.

A demonstração em Sexto baseia-se exclusivamente na impos­sibilidade de encontrar um sujeito que convenha à "palavra do cami­nho: é". É preciso concluir "o fato de que: nada é" (to meden einai, 76, retomado por "mesmo se alguma coisa é", kan ei ti, 77) do fato de que "não há alguma coisa para ser" (ouk ara esti ti, conclusão do anúncio, fim de 66); pois nenhum dos sujeitos pensáveis resiste, nem o não-ente (67) nem o ente (68-74), tanto separadamente (67-74) quanto juntos (75-76). É então subsidiariamente, como uma das duas maneiras de demonstrar a impossibilidade de que o não-ente seja su­jeito, que se apela para a consideração do verbo, "é", "não é", como tal: o não-ente não é, quer dizer, não é um sujeito possível para o é, porque então seria necessário ao mesmo tempo que ele fosse (por ser não-ente) e que não fosse (por ser não-ente). É ainda subsidiariamente,

8 'H ,I.l.~ am.tXT e<TrL v 'tE )((li: Wc; oux e<TrL J.l n e:'í. val, lTeL1'toiX; ~<TrL xÉÀeu1'toç, CtÀTj1'}eln ràp blrr)bel:, Íl b' Wç; oux e<TrLV 'te xai: Wç; ~ewv e<TrL .un etval, TIjv 6Tí 'tOL cppci'{w lTavalTeul'téa CtTrraplTóv· olhe ràp av YVOLTJÇ; 'tó re J.ln e6v, ou rdp Ctvl.)(J[6v, olhe cppcicrCttc;;.

A ontologia como obra-prima sofística 19

Page 11: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

como maneira de demonstrar que o ente também não é sujeito, que se apela para a consideração dos predicados: nenhum dos predicados pensáveis, separadamente ou em conjunto, se aplica ao ente, e por­tanto o ente não é, quer dizer, não é um sujeito possível para o "é". Para o Górgias de Sexto, que funciona conformando-se à lógica da exaustão dos casos, nada é porque não há nada para ser. Concluir­se-á daí que o caminho da ontologia é um impasse, que a frase deve parar na afirmação dogmática do impessoal: é [il est], assim como chove [il pleut].

No De M.X.G., ao contrário, a demonstração da primeira tesel: implica uma leitura muito mais próxima do poema, modelando-se nele para mostrar como o sujeito, "o ente", é o produto do verbo "é", e então por meio de que série de operações discursivas se constitui a ontologia como tal. No seu decurso, ela mostra que o mesmo tipo de operações pode, e mesmo deve, acontecer para a via pretensamente im­praticável do "não é": não apenas o "é" goza, no poema, de um esta­tuto de exceção injustificável, mas é o "não é" que deveria normal­mente fornecer a regra para o "é". A crítica de Górgias se refere as­sim, de início e antes de mais nada, à krisis, à crise ou à partilha que Parmênides instaura entre o Ser e o não-ser no ponto de partida da filosofia, e que o fragmento VIII, 15s. especificamente designa: "a decisão sobre isso está no seguinte: é ou não é (estin e auk estin)". Em suma, a ontologia que se pretende necessária é possível se, e somente se, erigimos como regra uma exceção que se ignora: quando fazemos do ser urna tese, e do ente o herói de um romance.

A LEITURA DO DE M.X,G, Recapitulemos os principais índices capazes de sustentar uma tal

leitura do tratado, e a leitura do poema que essa leitura supõe. É sig­nificativo, em primeiro lugar, o fato de haver duas demonstrações, em dois níveis distintos, e não apenas uma, como em Sexto. A segunda, apre­sentada primeiro (§ 2), que combina as teses dos outro~as, ba­seia-se no sujeito: ela prova que "não é" porque, como nenhum pre­dicado convém ao sujeito, tampouco há sujeito, não há "alguma coija" (ei ti esti, 979 a19) para ser - matriz da argu'ffientação predicativa que servia, em Sexto, para demonstrar que apenas o ente não era sujeito (68-74). A "primeira" demonstração, a que é considerada "própria" de Górgias (ela é apresentada em segundo lugar, mas exposta antes da outra, em 3), baseia-se no verbo como tal: prova que "não é" por-

20 o efeito sofístico

que nem "ser" nem "não ser" não se sustentam em posição de verbo, porque não há verbo para ser (hati ouk estin oute einai oute me einai, 979 a24s.) - encontramos certos elementos dela em Sexto, mas ela se referia então, não a "ser" e "não ser", no infinitivo, mas somente ao "não-ente", no particípio, e servia apenas para provar que ele tam­pouco podia servir de sujeito (67). É, portanto, duplamente necessário concluir nesse caso "não é": porque não é verdade que exista ser, e porque não é verdade que haja um ente para ser; assim se interpreta, com suas duas negações como reforço, referindo-se uma ao verbo e a outra ao sujeito, o enunciado inaugural dessa primeira tese, impossível de ser traduzida literalmente por causa das regras francesas da dupla negação: ouk einai ouden, "não é [absolutamente] nada", e sua dife­rença em relação ao enunciado que ocupa o mesmo lugar em Sexto implicando apenas a falta de um sujeito: ouden estin, "nada é".

Essa complexidade atenta às posições da sintaxe é confirmada pela análise da demonstração própria. Detenhamo-nos ainda um mo­mento na frase que a anuncia: ouk estin oute einai oute me einai (979 a24s.). Ela imita e completa o final do verso 3 do fragmento lI, que traduzimos com grande reforço de colchetes: e men hopos estin te kai hos ouk esti me einai, "que é e que não é [possível] não ser". A fórmula de Górgias, como o enunciado de Parmênides, é ao mesmo tempo ho­monímica e anfibólica. Homonímica porque ela joga, em ouk estin, com todos os sentidos não-categoriais do verbo ser, que, nesse caso preciso, a acentuação dos manuscritos, aliás codificada tardiamente, não permite nem mesmo distinguir; estin, com efeito, pode ser verbo de existência, ou então cópula, ou ainda, já que em início de frase, um impessoal marcando a possibilidade. A fórmula é não menos anfibó-' !iça. porque, segundo o sentido de estin, três construções difere~ possíveis, e todas igualmente verossímeis; se se trata do verbo de exis­tência, então os dois infinitivos têm função de sujeito: "nem o ser nem o não ser existem"; em se tratando da cópula, eles são os predicados de um sujeito que, normalmente, pode estar em elipse: "não é nem ser nem não ser"; com a modalidade enfim, os infinitivos se tornam completivos: "não é possível ser nem não ser". A "tradução" menos ruim, na medida em que ainda se possa utilizar esse termo, talvez se servisse de parênteses como de um álibi, para sugerir a ubiqüidade da frase: "não é ([possível]) nem ser nem não ser". Pois, na demonstra­ção de Górgias, nenhum desses três sentidos deve ser excluído, mas, eles derivam, ao contrário, um do outro de modo regrado: se "ser" e

A ontologia como obra-prima sofística 21

1

1

Page 12: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"não-ser" não têm existência, então eles nunca poderão servir de ver­bo em nenhuma frase, caso em que não se poderia dizer, de nenhum sujeito, que ele é ou que não é. Desde que consideremos seriamente o tratado de Górgias como uma leitura e um contra -texto do poema de Parmênides, parece que o equívoco, homonímico e sintático, não é um acaso nem um defeito: é o funcionamento deliberado de um recurso da língua, onde o que está em jogo é tornar manifesta a maneira pela qual esse mesmo recurso já é explorado, mas de modo subreptício, no texto fundador.

"[ ... ] Após uma primeira demonstração bem a seu estilo, em que . diz que não é possível nem ser nem não ser. Pois se o não ser é não ser, assim como o ente, o não-ente seria: com efeito, o não-ente é não­ente assim como o ente, ente, de modo que são, bem como não são, as coisas efetivas" (979 a25-28). O detalhe dessa demonstração, com a condição de dar uma atenção escrupulosa à diferença das expressões gramaticais (infinitivo, substantiva do ou não; particípio, substanti­vado ou não), força, de fato, a uma certa leitura do poema. A deusa revela para o filósofo duas vias, uma que "é" e outra que "não é", e ordena solenemente que se evite a segunda. Do mesmo modo Górgias não se engaja nessa via - o que seria uma violência completamente

\ externa, e portanto anódina -, mero jogo de um garoto desobedien­te. Ele se contenta em repetir o gesto do evitar. Mas, para evitar o caminho interdito, ainda é necessário poder marcá-lo como tal. O ponto de partida do engajamento filosófico é então uma proposição do tipo "não é não é", ou "o não ser é não ser".

Ora, essa simples proposição, de uma exigência mínima, já é catastrófica. Pois, desde que é acionada, nada pode deter o processo da identidade: ele se desenvolve para o "não é", em conformidade com o que se efetua para o "é", no e pelo poema, no qual, através de todas as formas requeridas e propostas por uma sintaxe que se inventa, o verbo secreta seu sujeito. As duas primeiras balizas da operação par­menideana são legíveis para nós nos versos 1 e 2 do fragmento VI, que eu gloso tanto quanto traduzo:

22

"É preciso dizer e pensar que [é] sendo [que] é. Pois só há ser para ser ['é' tem como sujeito 'ser'], e é nada que não é [e 'não é' não encontra nenhum sujeito] 9."

9 Xpij "[o Àr€L" "[o voéi v "[' Eôov lJ.LJ.L€"av €(fn ràp €l vm,! J.LTlÓ€V o' OUX

O efeito sofístico

Em um primeiro tempo, cuja anterioridade é assinalada por um "pois", o "é" do caminho desdobra um infinitivo: seqüência em que vejo mais uma vez, não em primeiro lugar a modalidade ("pois é pos­sível ser", trad. O'Brien 10), mas, se ouso dizer, o posicionamento do sujeito do verbo, desse "é" original da deusa, por meio de sua passagem para o infinitivo ("pois é ser"). O segundo tempo é o da forma verbal mais próxima do substantivo, tão bem denominada "particípio", em sua duplicidade ou dobradura morfológica carregada de heidegge­rianismo ll

; é preciso dizer que "é" "sendo", quer dizer, "na medida em que", "quando", "enquanto é,,12. Particípio que basta, enfim, subs­tantivar por meio do artigo para obter o sujeito pleno, em um tercei­ro e definido tempo, no meio do fragmento VIII: to eon (32), "o ente".

€ITt'L". Convencida por Nestor-Luis Cordero ("Les deux chemins de Parménide dans les fragmenrs 6 e 7", Phronesis 24,1979, pp. 1-32, aqui p. 24s.), abjuro o te que mantive em Si Parmenide (Lille, P.U.L, 1980, p. 52s.). O primeiro to não po­deria, então, ser sujeito ("o" no sentido arcaico de "esse", "isso"). O importante continua sendo o desdobramento com aparecimento do particípio presente.

10 D. O'Brien, em colaboração com J. Frere, Le Poeme de Parménide. Tex­to, tradução, ensaio crítico, em Études SUr Parménide, direção de P. Aubenque, t. I, Paris, Vrin, 1987, p. 24.

11 Pode-se manter a análise do sentido do particípio sem com isso manter a análise, ou antes, a não-análise heideggeriana da seqüência eon emmenai, em que a sintaxe é recusada em prol de uma para taxe pretensa mente portadora de qual­quer fantasma de primitividade: "'Necessário: assim o dizer, o pensamento igual­mente: o ente: ser'. Ora, não consideramos, de modo algum, o para tático como o ainda não sintático. Tampouco julgamos que seja primitivo ... Pois a frase fala no lugar em que não há palavras, no intervalo que deixam e que os dois pontos de­signam" (Qu'appelle-t-on penser?, trad. Becker e Granel, Paris, P.U.F., 1959, p. 176s.; cf. "Moira", Essais et Conférences, trad. Préau, Paris, Gallimard, 1958, es .. pecialmente p. 289). Eu tenderia, antes, a crer, com a leitura do próprio Poema e de sua leitura por Górgias, que, como diz Benjamin, a sintaxe é a arcada da pare­de da língua, e que é ela que se constitui quando a língua pensa e fala, no interva­lo, com efeito, que as palavras deixam entre si para serem palavras. Mas, apesar de tudo, e tanto mais se o paratático não é o "ainda não sintático", é injustificável negligenciar ou ir contra as indicações que justamente as palavras trazem, sua presença, sua seqüência, sua combinação: por exemplo, de fazer como se houves­se to diante de eon.

12 Na perspectiva que se traça aqui, compreende-se que a tradução de Q'Brien, "É preciso dizer e pensar isto: o ente é" (p. 24), seja inaceitável. Assim como a de VIII, 32, para to eon: "Assim é regra estabelecida que o que é não seja privado de completude" (p. 39).

A ontologia como obra-prima sofística 23

Page 13: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o ENTE, COMO ULISSES

Gostaria de deter-me um instante nesse fragmento VIII, em que o ente aparece tal como nele mesmo, não mais na economia de sua língua própria atribuída ao Tratado, mas como palimpsesto da obra por excelência que é, no mesmo momento, o poema homérico. Isso deveria permitir delimitar ainda melhor o tipo de discursividade que o Tratado se empenha em fazer funcionar catastroficamente, antes de fazer uma espécie de teoria disso, como se verá em sua terceira parte.

De fato talvez tenhamos, no interior do fragmento, a matriz e o paradigma do palimpsesto entre "literatura" e "filosofia", em sua conjunção de "poema": parece-me poder ler aí até que ponto o Ser é o herói de Parmênides assim como Ulisses é o de Homero. Parmênides toma de empréstimo a seqüência do narrativo por excelência que é a Odisséia, com seus episódios e seu clímax, para instituir na língua, ou mesmo constituir como língua, o personagem filosófico definitivamente soberano que é o Ser. Assim, quando os primeiros romances gregos se precipitam nas possibilidades abertas pelo tipo de discursividade tematizada no Tratado do não-ser, eles estarão apenas exercendo, em sentido inverso, a captação.

Freqüentemente se considerou o Poema de Parmênides como uma epopéia filosófica: "Odisséia espiritual" 13 ,essa busca cognitiva, amea­çada pela errância, de um ser de exceção divinamente guiado. A per­tinência do lugar-comum, fundado na analogia de certos motivos e temas como na identidade formal do hexâmetro, torna-se mais pre­mente quando os paralelos terminológicos não concernem unicamen­te apenas ao fraseado épico14. Um desses paralelos me parece, singu­larmente, digno de atenção: ele superpõe, de fato, a imobilidade de Ulisses atado ao mastro por seus companheiros no episódio das Se­reias, e a imobilidade, descrita no fragmento XVIII sobre o qual nos detemos, do que será a esfera, retida por uma necessidade potente nos liames do limite: um ou outro "permanece aqui mesmo solidamente plantado no solo".

Eis os textos:

13 Esses são os termos de W.K.C Guthrie ("thc spiritual Odyssey of a shaman", History of Greek Philosophy, Cambridge etc, CU.P., 1969,11, p. 61).

14 É preciso basear-se no livro de A.P.D. Mourelatos, The Route of Par· menides, New Haven/Londres, 1970, que estabelece uma lista dos paralelos, pp. 8·10.

24 o efeito sofístico

[I] Parmênides, fr. VIII, 26-33 15:

Por outro lado, imóvel nos limites de grandes liames, ele é sem começo, sem fim, porque nascimento e perda foram para longe lançados totalmente, a crença verdadeira

[os repeliu. O mesmo e permanecendo no mesmo, ele se mantém em si

[mesmo, e é assim que firmemente ele permanece aí, pois

[Necessidade poderosa o mantém nos liames do limite que o encerra à sua volta; é por isso que não se permite que o ente seja privado de

[completude po.is ele não está em falta, senão em sendo, tudo lhe faltaria.

[11] Homero, Odisséia, XII, 158-16416:

[Circe] ordena de início fugir às modulações das Sereias de canto divino e ao prado em flor

15 [VIII, 261 airtàp Cxx;CvTrrov J.L€yáAWV ev TT€Lpa(n b€O"J.LWV €o-tl v uvapxov aTTmXJrov, md rÉV€O"lç' x;aL õÀ€{}-poç-TI;A€ )J.áA' €TTAárx{h]O"av, CtnwO'e b€ TT(O'TlÇ' CxArt&-ríc;. TaLrróv T' €v TauTwL TE j.LÉ-vov x;cx{}-' €CXUTÓ Te X;€LTaL [301 XoUTWÇ' €J.LTf60v cxl){h J.L€veL· x;pcxTepTj ràp 'AvúYX;T] Tf€LPCXTOÇ' €v oeO'j.LOLO"L v €x€L, TO j.LL v Cxj.L'PlÇ' eÉPT€L, oüvex;el v oux; CxTeA€ÚTrjTov TO eov {}-Éj.LlÇ el vm Eo-tl Tàp oux; €1TloeuÉç' [.uTj] eov 6' av ncxV't'Oç €OeLTo. Ciro aqui o texto de Dicls-Kranz e remeto a seu aparato crítico. No verso

33, aceito, como tradicionalmente, a supressão de Bergk: O)J.T] está subentendido ("mas se ele não fosse, tudo lhe faltaria"), mas não é escandido.

16 1158] LelP'lÍvwv J.L€V npWTov CtVWTeL {}e01'TeO'láwv q)"tÓrrOv CtÀeooO'{}m X;CXl ÀeL)J.wv' Ctv{}-ej.LóevTcx [160]6lov €J.L' 1,VWreL Õn' Ctx;ouÉj.Lev· Cx)J...à. j.Le 6€0")J.w 6iíO'a'T' €v CtPTCXÀÉw, &pp' Ej.LTr€60v CXUTÓ{}t )J.(J.LVW ' bp{}ov €v \O'TonÉb~, 'ex; 6' tXU'TOU neLpcxT' tXvlÍq>Tw. e't &€ x;e À(O'O'o)J.m' u)J.Éaç Àoom Te x;eAeúw u)J.eLç' 6' €v nAeóveO'O'L 'TÓ'T€ beO'j.LOLO'l v mÉ'Ç€L v. Cito o texto de Thomas V. Allen (Oxford, Clarendon Press, 1908), inclusi­

ve no caso do verso 164, e remero a seu aparato crítico.

A ontologia como obra-prima sofística 25

Page 14: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

enquanto ordena que eu ouça sua voz; mas atem-me em um liame doloroso, para que firmemente eu permaneça aí, ereto ao pé do mastro, e que eu seja mantido nos limites que

Mas se vos suplicar e ordenar que me soltem, então apertai ainda mais os laços.17

[dele partem.

Pode-se efetuar essa sugestão da leitura, e como duas passagens tão difíceis de interpretar, cada uma em sua ordem, podem se esclare­cer mutuamente?

Há, sem dúvida, duas maneiras de proceder. A primeira utiliza uma causalidade de tipo histórico. É verossímil que Parmênides conhe­cesse Homero assim como Hesíodo: uma tese prudente postulará que o texto da Odisséia é, por assim dizer, uma causa material do Poema, que é um dos elementos a que sua escrita, como todas as escritas se­guramente palimpsêsticas, dá uma forma diferente. "Minha sugestão, portanto", escreve Mourelatos, "é que Parmênides utiliza velhas pa­lavras, velhos motivos, velhos temas e velhas imagens precisamente para pensar novos pensamentos e através deles,,18. Esse tipo de análise, per­feitamente capaz de assinalar os paralelismos, não pode manter o mes­mo rigor metodológico quando se trata de precisar como o antigo dá lugar ao novo, sob pena de fracassar consideravelmente. Assim, quando Mourelatos aborda de modo explícito o paralelo que nos intriga, ele o completa legitimamente, aproximando-o de uma terceira ocorrên­cia das mesmas palavras, aplicadas dessa vez aos cavalos que Posseidon prende em uma gruta marinha "para que permaneçam aqui mesmo solidamente plantados no solo esperando o retorno do dono" (Ilíada, XIII, 37). Interpretando, então, a imobilização de Ulisses como "um

17 No texto homérico, o mesmo episódio é reproduzido três vezes seguidas. Na primeira vez, Circe avisa Ulisses (47-54). Na segunda, cujo texto cito aqui, Ulisses repete o aviso para seus companheiros para partilhar com eles seu saber. A terceira (178s.), por fim, é a descrição direta dos próprios acontecimentos. Nas três vezes, é sempre Ulisses que fala, pois ele narra, substituindo o aedo, a Odisséia a Alcínoo. As três narrativas são muito semelhantes, mas é apenas na segunda que figuram, além dos termos "laços" e "limites", a seqüência €,I.l'IT€OO\l Cx.U1:Ó,'}L ).lLJ.L\lW característica do fragmento VIII. O que aí se fixa é, auge da reflexão, Ulisses di­zendo o que Ulisses disse.

18 Op. cit., p. 9.

26 o efeito sofístico l

símbolo manifesto de sua determinação em chegar a ftaca e resistir às tentações da viagem", ele conclui: "Não estou sugerindo que B VIII, 30-31, configure uma convergência entre essas três idéias: cavalos presos, marinheiro atado ao mastro, marinheiro que busca chegar a seu destino. Minha idéia é, antes, a de que a frase homérica tem uma certa força de sugestão e uma certa flexibilidade que permite uma modulação de um motivo a outro,,19. Como se vê, é o próprio senti­do do paralelo que é assim, infelizmente, esvaziado.

A outra tese, mais forte - "mais forte do que a evidência", diz Mourelatos -, é a de uma "continuidade temática" entre a Odisséia e o Poema, que seria então algo como a primeira alegoria filosófica da viagem de Ulisses. Ela requer um outro procedimento de legitimação, pois é bem verdade que as evidências cronológicas e lingüísticas não bastam para apoiar esse lugar, entretanto comum, de onde partimos. Com uma hipótese desse gênero, é preciso necessariamente substituir a determinação causal pela finalidade hermenêutica20. É preciso aceitar' algo como o movimento retrógrado do verdadeiro; no "como se" da finalidade, é a temática filosófica que vai permitir ler aquilo que da narrativa deve permanecer, que fixa seus traços pertinentes: não é mais a Odisséia que dá a Parmênides sua matéria, mas Parmênides que dá à Odisséia sua significação. Conseqüentemente, a Odisséia assim in­terpretada por Parmênides pode, por sua vez, servir de chave, num procedimento cruzado ou circular, para interpretar o Poema, nos pró­prios lugares em que Parmênides a convoca.

No caso que nos ocupa, como construir o sentido que deve ser dado ao fato que é esse próprio paralelo? Uma primeira observação se impõe, tão rudimentar que aparentemente nunca foi notada. Ulisses 1

e "o homem que sabe", aquele que diz "eu" e a quem a deusa se diri- i ge no fragmento I, ocupam o mesmo lugar na busca do retorno ou da : verdade. Mas enquanto Ulisses, sempre ele, é atado ao mastro no epi­sódio das Sereias, não é mais o homem mas "o que é" que é mantido! nos liames do limite. Há substituição de herói ou, mais exatamente, desdobramento entre aquele que sabe e o que é, o jovem e o ente, nomeado como ~'11 pela primeira vez no final da nossa passagem. Esse desdobramento é tão pouco ousado que é retomado imediatamente de

19 Ibid., p. 30.

20 É assim que procede, sem explicitá-lo, Eric A. Havelock ("Parmenides and Odysseus", Harvard Studies in Classica/ Philology 83,1958, pp. 133-43).

A ontologia como obra-prima sofística 27

i I l 1 ~ 1

Page 15: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Imodo temático, em uma seqüência que adquire assim toda a sua in­I I teligibilidade: "o mesmo é pensar e aquilo de que há pensamento, pois Isem o ente [ ... ]" (34s.). Da epopéia à filosofia haveria então bifurca­\Ção do sujeito, tensão entre o sujeito que conhece e o sujeito que é, !que se poderia denominar sujeito e objeto, espírito e natureza, vonta­'de e representação.

Sendo a decaI agem assim marcada, o que pode significar a apro­ximação? Trata-se de duas imobilidades, ou antes de duas imobiliza­ções forçadas por meio de um aparelhamento de laços (Od. 160, 164; fr. VIII, 26; 31). Na Odisséia, a violência que se exerce é de uma na­tureza paradoxal; como qualquer coação, ela é imposta e provém do fora; são os companheiros de Ulisses que prendem seus pés e punhos ao mastro do navio, o laço é até mesmo "doloroso" (161), e é contra a vontade de seuS cenhos franzidos que Euríloco e Perímedes amar- """ ram Ulisses mais firmemente ainda (54, 64, 196). No entanto, foi o'. próprio Ulisses quem ordenou que seus companheiros o prendessem, ' ordenando até mesmo que lhe desobedecessem: sua paixão é, de fato, uma ação redobrada, um domínio de si que utiliza os outros, uma, autonomia ardilosa21 .

No Poema, também se trata de uma violência, exercida de fora; é o poder da necessidade que retém o que está nos liames do limite. Necessidade ocupa o lugar dos companheiros: seria, então, possível que ela fosse uma instância do que é, assim como os companheiros são uma instância de Ulisses? A escolha do termo Anagke22 se presta a isso, em todo caso; segundo as etin:lOlogias mais prováveis, percebe-se aí essa "curvatura" (agkos) de um braço arredondando-se para abraçar, o "cotovelo" (agkon). Com a circularidade do amphis, "em toda a vol­ta" (31), em seguida a volta sobre si do telos, "fim" (ouk ateleuteton, 32, retomado em tetelesmenon, 42)23, o termO já anuncia a represen­tação esférica do ente. A ação da necessidade é requerida para man-

21 Não levo em conta o fato de que Ulisses obedece, em tudo isso, às reco­mendações de Circe e omito, assim, o problema de seu "destino".

22 Diferenciando-se dos dois outros nomes próprios do que prende e fixa: .6,(XTl (VIII 14), "a Mostradora", em relação à indicação dos caminhos; MOLpa (VIII, 37), "a Repartidora", invocada antes da diversidade mortal das palavras e das mudanças_

23 Cf- R.B. Onians, The Origins of European Thought, Cambridge (Cam­bridge University Press), 1951, pp. 442 e ss. e Mourelatos, op. cit., p. 30 e ss.

28 o efeito sofístico'

ter a dualidade que trabalha a identidade e que se diz aqui como a maneira específica pela qual o que é permanece plantado aí (koutos, 30): "o mesmo e permanecendo no mesmo, ele repousa em si mesmo, e é assim que ele permanece plantado aí"; a identidade é, de fato, dita duas vezes, e a primeira vez de maneira ainda duplicada, fornecendo assim a matriz dos enunciados bem como das críticas filosóficas ulte­riores: identidade física do mesmo no mesmo (objeto/lugar, que as críticas zenonianas ou sofísticas dissociarão), identidade lógica do que permanece ele mesmo junto de si (em si e para si, se ousamos dizê-lo) segundo a fórmula da idéia platônica, que os átomos de Demócrito multiplicarão e agregarão ao infinito_ É então necessário o retorno a si, a flexão ou reflexão da necessidade, esse outro que é um mesmo, para fixar solidamente o que é. É somente então que pode advir a substantivação-substantificação completa do "ente" (to eon, 32), que assim não é apenas o efeito de uma imobilização em limites físicos (en peirasi desmon, 26, onde "limites" está no plural), mas o resultado da auto-limitação lógica necessária à posição de identidade (peiratos en desmoisin, 31, onde "limite" está no singular)_ Lendo-se o poema de Parmênides como uma identificação progressiva do sujeito de "é", palavra do caminho, a última etapa agora alcançada é aquela em que o ente se torna representável, esfera.

Por sua vez, a Odisséia pode ser lida, e já foi lida, pelo viés da busca do retorno, como uma procura da identidade, e o episódio das Sereias s'empre pareceu decisivo desse ponto de vista. Tomemos dois exemplos tão distantes quanto possível; o da interpretação neopla­tônica, que vê em Ulisses atado ao mastro a alegoria da alma: se não se detiver na música carnal das Sereias, a alma pode recuperar sua pátria celeste para, enfim, repousar longe do túmulo que é o corpo, em seu lugar próprio, em perfeita adequação consigo mesma24. Não mais platônica, mas hegeliano-marxista, a interpretação moderna, certa­mente a mais marcante, a que Horkheimer e Adorno propõem na Dia­lética da razão, faz de Ulisses "o protótipo do indivíduo burguês" (p. 58), "um sujeito fisicamente muito fraco face às forças da natureza e que só se realiza na tomada de consciência de si" (p. 61). Suas aven­turas "representam todas elas perigosas tentações que tendem a des­viar o eu da trajetória de sua lógica" (p. 61). O episódio das Sereias

24 Cf Pierre Courcelle, "Quelques symboles funéraires du néoplatonisme latin", Revue des Études Anciennes, 1944, pp_ 65-93.

A ontologia como obra-prima sofística 29

Page 16: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

aparece, então, como uma confrontação não mais com a atração da carne, mas com o atrativo da arte na plenitude de seu poder mágico, antes de ser reduzida a uma simples estética.

O paralelo parmenideano permite apurar essa leitura da Odis­séia? Podemos tentar formular questões cruzadas: que perigo repre­senta o canto das Sereias e a que canto das Sereias o ente escapa? O canto das Sereias: oito versos, 184 a 191, no livro XII da Odisséia, que, para o leitor de hoje, certamente insensível aos dáctilos líricos que elas entoam, não permitem compreender a fascinação mortal que elas exercem - a não ser que, sendo somente o proêmio de si mes­mo, esse canto decepcionante nos dê, como para Ulisses, o desejo de continuar a ouvi-lo. As Sereias chamam Ulisses por seu nome de gló-; ria, e lhe propõem, em suma, escutar a Ilíada, um passado que ele' conhece até demais, por tê-lo vivido; mas elas também asseguram que sabem tudo o que pode acontecer sobre a terra 25. Portanto, elas não representam apenas, como Horkheimer e Adorno afirmam, "a tenta­ção de se perder no passado" (op. cit., p. 48), mas, de modo mais exato, a tentação de se perder em "tudo o que pode nascer" (hossa' genetai, 191), no evento, no devir, seja ele passado ou por vir: no tem-: po. Ora, é precisamente esse devir que se deixa repetir no canto e; constitui a matéria mesma da narrativa épica26. O canto das Sereias representa assim, ao mesmo tempo, a imortalidade da glória e a rea­lidade física da morte, dos ossos e das carnes em putrefação (45s.).' De fato, para que Ulisses conheça, enfim, o dia do retorno e "passe'\·. entre os seus o resto de sua vida", é preciso que escape não apenas da morte, mas de sua glória e da própria epopéia.

De modo efetivamente paralelo no Poema de Parmênides, o ente escapa por sua auto-limitação ao inca ativo do evento, ao nascimento

25 Eis uma tradução literal de seu canto: "Venha aqui, aproximando, Ulis­ses tão louvado, grande glória dos aqueus, pare a nau para ouvir nossas duas vo­zes. Pois ninguém jamais ultrapassou esse lugar em uma negra nau sem ouvir a voz doce como o mel que sai de nossas bocas, mas o enfeitiçado retoma daqui saben­do ainda mais sobre isso; pois sabemos tudo o que, na vasta Tróia, argivos e troia­nos sofreram pela vontade dos deuses, e sabemos tudo o que pode advir sobre a terra nutridora." Para uma interpretação "iliádica" do canto das Sereias, cf. P. Puc­ci, "The song of the Sirens", Arethusa 12, 1979, pp. 121-32.

26 Seria necessário elaborar aqui, com a maior precaução, uma comparação entre Sereias e Musas (cf. Ilíada, 11, 485s.)

30 o efeito sofístico

e à morte (anarkhon apauston; genesis kai olethros, 27) que a crença verdadeira afasta de seu caminho e lança na errância épica (ep/akhthe­san, apose, 28; plazomai é o verbo que caracteriza Ulisses na Odisséia, cf. 1,2; e, para os dois verbos juntos, IX, 81). O ente, que é mas "nunca foi nem será" (fr. VI, 5), só se imobiliza em uma identidade presente a si mesma ao deixar o tempo e o devir fora de seus limites. A errân­cia em que são lançados é a dos "mortais" que também "erram", têm "o espírito errante" (p/attontai, p/akton noon, fr. VI, 5s.) e de que, aí mesmo, em VIII, 54, se diz "estarem na errância" ou "no extravio,,27. E o discurso que lhes é adequado não é o discurso fiel e digno de crença da verdade (pistis a/ethes, fr. VIII, 28; piston /ogon ede noema amphis aletheies, VIII, 50s.), mas as "opiniões mortais" que duplicam e con­trariam. A doxa "nomeia" (fr. VIII, 38; 53) como as Sereias nomeiam "Ulisses, glória dos Aqueus", e produz o renome nesse mundo em que se morre, cheio de eventos contraditórios, variado e cambiante e, se o paralelo vale, decididamente cheio de encanto.

Odisséia e Poema servindo alternadamente de próprio e de me­táfora ou de alegoria um do outro, o canto das Sereias apareceu as­sim para nós como um espelho e, portanto, como uma caricatura da epopéia na própria epopéia: Ulisses passa amarrado, preferindo aos rumores de sua glória uma identidade mínima - ele será reconheci­do por seu cão ao chegar ao país. De modo paralelo, a doxa é espelho ou caricatura da aletheia no seio da própria aletheia, e o ente que lhe escapa é, também ele, amarrado em uma identidade mínima.

Fazer sentir, com o palimpsesto, que o ente é "como Ulisses", é antes de tudo confirmar, por meio de outras ferramentas que não as de Górgias, que o ser é um efeito de dizer: um personagem filosófi­co, assim como existem personagens narrativos, produtos do discur­s028. É também deter a imagem no momento em que adquire seu no-

27 Peplanemenoi eisin vem de planaomai e não, como eplakhthesan, do mais odisseano plazomai, mas podemos nos espantar com o fato de que Chantraine, que entretanto propõe "errar" como tradução comum, considere o parentesco difícil, não apenas no que concerne à forma mas também ao sentido (Dic. ét., I1I, p. 910, s.v. Tl'ÀaveXoj.LctL).

2i! Sem dúvida deve-se acrescentar que roda "escrita" é palimpsêstica, e en­fatizar que a elaboração dessa prática do palimpsesto, através do motivo da mimesis como mimesis não de natureza mas de cultura, é precisamente uma das caracte­rísticas da segunda sofística.

A ontologia como obra-prima sofística 31

Page 17: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

me de sujeito: o momento da identificação, da re-presentação, é tam­bém o momento da maior violência. Pois aí estão em jogo, ao mesmo tempo, a criação e a recusa de um outro mundo, ou do mundo do ou­tro, criação e recusa estruturalmente ligadas ao próprio processo da identidade.

A ONTOLOGIA COMO SOFISMA

Voltemos à maneira própria com que o Tratado aborda o sujei­to do Poema. Na versão de Sexto, o não-ente não pode servir de su­jeito para o "é" porque, sujeito ao mesmo tempo de um "é" e de um "não é", logo entidade atópica ou absurda, ele "não é": trata-se, em suma, apenas da auto-contradição do não-ser. No De M.X.G., a auto­contradição está igualmente em jogo, mas como resultado da cons­tituição da identidade do não-ser, que se produz de modo incontor­nável no modelo da identidade do ser no e pelo poema. O verbo, pela aplicação predicativa de si a si mesmo ("Se o [fato de] não ser é não ser", ei men gar to me einai esti me einai, 979 a25), advém efetiva­mente como sujeito: "O não-ente é não-ente, assim como o ente é ente" (To te gar me on esti me on kai to on on, 27). Conseqüentemente, o não-ente é da mesma forma, e não menos, que o ente (ouden an hetton to me on tou antas eie, 26); e torna-se impossível, quando se enuncia apenas o verbo "é", saber se o sujeito, qualquer que seja, com o qual lidamos, nas frases como no mundo, ta pragmata, é como é o ente ou como é o não-ente, se ele é mais não-ente do que ente (ouden mallon einai e ouk einai ta pragmata, 28s.). Impossível então saber se o caminho nO qual estamos engajados é de fato o do "é" ou apenas o do "não é".

Assim, é o movimento de diferenciação entre "não é" e "é" que supõe que se possa pelo menos dizer o "não é" para distingui-lo, é o próprio ato da krisis, que produz sua indistinção: como observa He­gel no início da Ciência da lógica, "os que insistem na diferença entre o ser e o nada deveriam nos dizer em que ela consiste,,29. Toda a fide­lidade, perversa, de Górgias está em dizê-la, no lugar de Parmênides, 'no ponto em que a origem falha. A repetição que o discurso faz assim ido poema é segurança, em todos os sentidos do termo, e nessa segu­Irança reside a reversão.

29 Science de la logique, Theorie Werkausgabe, Frankfurt, V. Klostermann,

1965, V, 1, p. 95.

32 o· efeito sofístico

Tal repetição catastrófica do gesto do engajamento faz-se, co­mo se percebe, por meio de uma outra repetição: a repetição cons­titutiva da proposição de identidade. A identificação do sujeito exige sua repetição como predicado, e a afirmação da identidade dos dois: ela implica então, simultaneamente, o enunciado de sua diferença. Uma vez que "o não-ser é não-ser", ei to me einai esti me einai, no grego como em português, os dois termos não têm mais nada de idên­tico. E mais ainda no grego, em que, por falta de taxinomia norma­tiva, o predicado só é identificável pela ausência do artigo com toda legalidade gramatical. O artigo obrigatório diante do sujeito é a marca de sua consistência, de sua substancialidade; ele indica que toda po­sição de um sujeito em uma proposição de identidade implica uma pressuposição de existência, ou ainda que para dizer "o não-ser é não­"'ser", é necessário já ter antes proferido: "o não-ser é". Toda a crítica do anônimo incide, aliás, sobre isso, defendendo obstinadamente que, no caso do não-ente, se trata não de uma identidade mas de duas, uma que é e a outra que não é, com a vontade ostensiva de estabili­zar o problema antecipando o continuum discursivo por meio de uma repartição meta discursiva ("é como se se tratasse de dois entes, em que um é e o outro parece: o primeiro é, mas quanto ao outro, não é verdade dizer que ele é, pois é primeiramente não-ente", 979 a37-979 b) - mas é o discurso por si só que, em sua linearidade cons­titutiva ligada à sua temporalidade, não pode evitar a produção des­sa catástrofe que o sofista, e mais ainda o anônimo, buscam tornar perceptível.

O sofista, com efeito, ao invés de se refugiar, de saída, no não­ser como em um antro inexpugnável, como o Estrangeiro o acusa, ao invés de recusar-se a distinguir entre as diversas acepções do pollakhos legomenon que é o ser, como diagnostica Aristóteles, torna, antes, manifesto que a exceção, o equívoco - em uma palavra, o sofisma - são o erro do outro, que eles se referem ao "é" e ao seu tratamento ontológico. Pois é, antes, como dirá Benveniste a seu modo, a iden­tidade consigo do ser que cria um jogo de palavras e, em todo caso, um jogo de língua. Com "o ser é ser", a diferença entre sujeito e pre­dicado é imperceptível, como que anestesiada, já que as duas seqüên­cias "o ser é" e "o ser é ser" se confirmam, até mesmo se confundem, assim como os dois sentidos, existência e cópula, do "é". Ao invés de o sofista tirar proveito de um equívoco, é, ao contrário, o enunciado de identidade tradicional que se utiliza do equívoco do "é", o explora

A ontologia como obra-prima sofística 33

~ I

J

Page 18: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

e dissimula, para erigi-Io como regra. Somente o caso do não-ser per­mite tomar consciência do curso do discurso e da diferença normal­mente inscrita no enunciado de identidade: é o "não é" que deve se tornar a regra do "é". De acordo com o olhar que se lance sobre elas, a homonímia e a anfibolia devem assim aparecer quer como a essên­cia pensante de uma língua, quer como seu desnudamento, sua vir­tuosidade gímnica.

O efeito-limite produzido por Górgias, com essa tese do Trata­do do não-ser, é o de mostrar que, se o texto da ontologia é rigoroso, isto é, se ele próprio não constitui uma exceção em relação à regra que ele instaura, então é um texto sofístico. Duplamente: primeiro porque toda identificação do ser, tal corno se prova pela do não-ser, apóia-se

, em um equívoco entre cópula e existência eternamente característico do sofisma. Em seguida porque o próprio ser, tal como Ulisses pelo poema homérico, é de facto produzido como um efeito de linguagem, e dessa linguagem que opera no poema: o ser da ontologia nada mais

lé do que um efeito do dizer. Isso é constatado facilmente, o que confirma nossa crítica de

uma certa "revalorização" ambiente, o operador sofístico não é a evi­dência sensível dos pragmata, mas o próprio fato do lagos, sua reali­dade concreta. O mundo exterior não irrompe para convencer Par­mênides do erro ou da utopia, e o discurso do sofista não refuta o' poema por conta de uma maior preocupção com a adequação às coi­sas, mas por uma maior atenção ao próprio discurso, a começar pelo de Parmênides.

AS REGULAÇÕES FILOSÓFICAS DA LINGUAGEM

SE É, É INCOGNOSCÍVEL:

A IMPOSSIBILIDADE DO PSEUDOS

Tudo gira, então, em torno da necessidade da krisis - dizer o "não é" para identificar o "é" -, acrescida da impossibilidade de dizer o "não é", mesmo que apenas para impedi-lo. Essa é exatamen­te a posição do Estrangeiro no Sofista, ao q~erer que se compreenda que a ordem reiterada da deusa é impraticável, e portanto a krisis é impossível. Citando os dois primeiros versos de nosso fragmento VII, para o quais uma das traduções possíveis, verossímeis, seria: "'Pois

34 o efeito sofístico

jamais isso poderá ser conciliado: que não-entes sejam. Mas você, desvie seu pensamento dessa via de investigaçã030", ele prova, as­sim como Górgias, que Parmênides já disse demais sobre isso. "É de Parmênides que vem o testemunho, e principalmente, em todo caso, é o próprio enunciado que o mostraria, se fosse suficientemente in­quirido" (237 a-b). Que confessa então o lagos ao ser questionado como um escravo? Primeiram-ente que essa "palavra" (tounoma, 237 c2), "o não-ente", não se pode encontrar "sobre o que colocá-lo", "onde aplicá-lo", não se pode "colocá-lo em cena" (pai epipherein, c2, cf. 7s., lOs.): eis por que "é preciso afirmar que aquele que ten­tasse pronunciar 'não-ente' nem mesmo falaria" (oude legein phateon, hos g'an epikheirei me on phtheggesthai, e 5s.). A deusa, ao contrá­rio de Wittgenstein, não soube se calar: ela não deveria, para afastá­los, nem mesmo ter enunciado a segunda via ("não é"), nem frasear a pseudo-via dos mortais ("ser não-entes"). Além disso, ao dizer, como aqui, me eonta, ela "apõe" (prospherein, 238 bIs.) visivelmente nú­mero, ou seja, ente, sobre não-ente, o que a rigor já se faz com o sin-

300b yàp J.!1ÍlTOT€ TOUTO oo.J.l~, q)'rpl'v, €t"CXl J.!r) €6VTCX

aÀÀà oU TIp-S' acp' OOoU cSL'ÇlÚJ,€"OÇ' lLpT€ volÚJ,cx. É necessário, de uma vez por todas, com Monique Dixsaut ("Platon et le

lagos de Parménide", Études sur Parménide, op. cit., lI, pp. 215-53, aqui pp. 244-6; ver também "La derniêre définition du sophiste", em EO<l>IHE MAIHTOPEI:, "Chercheurs de sagesse", Hommage à Jean Pépin, Paris, Institut d'Études Augusti­niennes, 1992, pp. 45-75.), ressaltar todos os equívocos do primeiro verso: touto anuncia o infinitivo ("domar esse enunciado, a saber que"), ou sujeito no infinitivo ("coagir isso a ser não-seres"), e - eu acrescentaria -, no primeiro caso, me eonta sujeito ("a saber que não-entes sejam"), ou predicado ("esse enunciado: ser não­entes"). À luz da leitura "sintática" do poema sugerida por Górgias, cada uma dessas construções representa uma etapa distinta no caminho impossível. Na eco­nomia geral dos fragmentos VII e VIII, que passa de "é" a "ente" por intermédio de uma série de predicados, não seria absurdo considerar me eonta, no plural e sem artigo, como designando o predicado que, por excelência, não se pode en­contrar seguindo o "é": "ser não-entes" poderia ser um enunciado de mistura, portanto indomável. Não mantenho essa análise porque ela me parece finalmen­te menos compatível com a seqüência do diálogo: mesmo se o estrangeiro se per­gunta "a que aplicar" o não-ente ("a que atribuí-lo", dizem usualmente as tra­duções, cf Diês, 237c), trata-se de tounoma [ ... ] touto, to me on (el), antes "nome" do que verbo ou predicado (cf a symploke mínima, "Teeteto voa", de 262), e a questão é a de saber a que coisa atribuir a palavra. Ela talvez também seja menos simples de se ajustar à "estrada" pela qual o hábito conduz os mor­tais, na seqüência do fragmento de Parmênides.

A ontologia como obra-prima sofística 35

j

~ I

Page 19: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

guIar ("não-ente" implica ou comporta a unidade): dito de outra ma­neira, ela mistura o que afirma que deve ser mantido separado. Insis­to nessas duas críticas, pelo epipherein (falar é colocar a palavra até sobre a coisa) e pelo prospherein (falar é também acrescentar quali­dades, predicados, a um sujeito), pois os dois registros que elas deter­minam serão, como veremos, retomados no momento da definição do pseudos; elas se superpõem, de fato, à distinção fundamental inven­tada por Platão como máquina de guerra contra o "discurso" par­mênido-sofístico, aquela entre lQgos tinos, "discurso de alguma coi­sa" (simples substantivação do sofístico legein ti, "dizer alguma coi­sa "), e logos peri tinos, "discurso que gira em torno de", "que concerne ~

a alguma coisa". E assim duplamente que o suposto lagos pretende "harmonizar", "adaptar o ente ao não-ente" (on epikheirin me anti prosarmottein, 238 c6s.): que Parmênides, portanto, é uma armadi­lha para si próprio, e que o Poema da deusa se confunde com o ruido­so hábito dos mortais31 . Contrariamente ao sentido do enunciado, mas conformemente ao fato da enunciação, o não-ser é. Ou, se preferimos, o célebre parricídio, que, novamente, "inquire" (basanizein, 241 d, como em 237 b) o lagos parmenideano para coagir o não-ente a ser em uma certa relação (kata ti), não faz mais do que atestar um inevi­

tável suicídio. A problemática do Sofista confirma que não há "ortologia" do

não-ser: sempre já se provou, a contragosto, que nada é quando se enunciou que "não é". É nesse ponto que reencontramos a segunda tese do tratado, e sua relação com a impossibilidade do pseudos: tudo o que é, é no modelo do não-ser, aquele que passa a ser simplesmente porque o enunciam. A crítica da ontologia retorna, então, sob a for­ma de tese discursiva: o ser parmenideano é apenas um efeito de di­zer, mas isso porque não há outro ser senão o que é produzido pelo dizer. Com isso, "ser" muda de sentido: não se trata mais do ser triun­fante das origens, mas do ser sub specie non entis, quando nada é, uma vez demonstrado que o ser do ser e o do não-ser são a mesma coisa. Vejamos como essa segunda tese é, por sua vez, apresentada por Gór­gias como uma implicação direta do poema.

31 Sobre a série de verbos que dão a entender que não poderia haver or­tologia do não-ser porque não há lagia de modo algum, mas apenas um ruído, comparar-se-á o Sofista 238 c10-12 ao Crátilo, 429 e1-430 aS, acerca dos no­

mes falsos.

36 o efeito sofístico

No interior do poema, diz-se que o ser se diz e que o não-ser não pode e não deve se dizer: o poema enuncia as regras da relação entre o ser e o dizer, ou antes, a regra de que o ser e o dizer estão relaciona­dos. É preciso acrescentar três observações para compreender. Aque­le ou aquela que diz "eu" no poema, o sujeito da enunciação, diz o que se diz, decide sobre o sujeito do enunciado (fr. II: egon ereo, 1, "quanto a mim, direi"; phrazo, 6, "declaro"; fr. VI, 2: ego phrazesthai anoga, "eu te intimo a declarar"). O ser, sujeito do enunciado decre­tado pelo sujeito da enunciação, se diz ao mesmo tempo como mythos, nome próprio herói do Poema, palavra isolada que serve para nomear a via segura da verdade e da persuasão (fr. VIII, 1; cf. fr. Il, 1), e como lagos, ou seja, como dando lugar a relação, composição e sintaxe, discurso mesmo (fr. VI, 1). Resta, para dizer o que não se diz, além do imperativo de não dizê-lo, uma não-linguagem adaptada a seu não­ser: sons (glossa, fr. VII, 5; onoma, fr. VIII, 38). "O fato de que falar seja dizer o ser é portanto a 'decisão' que se encontra no fundamento

! da 'tese' de Parmênides" 32.

Essa leitura do poema é exatamente a de Górgias, e Pierre Au­benque propõe, rei ventando-a após Górgias, a única interpretação suscetível de tornar inteligível a conseqüência sofística. Tal é, de fa­to, a conseqüência que Górgias tira, da maneira que parece a mais di­reta, do que chegou até nós como fragmento lU: "É a mesma coisa, pensar e ser,,33.

Para evitar o anacronismo de um "eu penso, eu sou", agimos freqüentemente, inadvertidamente ou não, como se "pensar" fosse passivo: é a mesma coisa ser objeto de pensamento e ser34. Tal é, em todo caso, a leitura que Górgias já propunha para introduzir a segun­da tese de seu tratado, "se é, é incognoscível": "É preciso que aquilo que é representado (ta phronoumena) seja, e que o não-ente, se ele realmente não é, tampouco seja representado" (980 a10-11). Ora, a transitividade, ou a coextensividade, como preferirmos, entre "pen­sar" e "dizer" é afirmada e reafirmada ao longo de todo o poema (nega-

32 Pierre Aubenque, "Synraxe et sémantique du I'être", em Études sur Par­ménide, 11, Problemes d'interpreration, ap. cit., pp. 102-34, nesse caso p. 121.

33 To yàp airro voeLv €OTLV T€ XClL e'LvClL.

34 Sobre esse ponto, ver as análises de P. Aubenque, art. cit., pp. 115-7 (cf O'Brien, Frere, 0I). cit., I, pp. 19-20).

A ontologia como obra-prima sofísrica 37

~ I

j

Page 20: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tivamente. a propósito do não-ser: gnoies-phrasais, fr. lI, 7-8; cf. fr. VIII, 7-8; positivamente, a propósito do ser: to legein to noein te, fr. VI, 1; cf. fr. VIII, 34-36). Górgias pode, então, concluir imediatamente! que "se assim é, ninguém diz que algo falso não seria nada, mesmo se\j dissesse que carroças lutam em pleno mar, pois todas essas coisas se-j riam" libid., 12-14); não que não haja pseudos, mas, de modo mais.; exato, porque uma mentira, um erro, uma ficção existem tanto quan-! to o verdadeiro tão logo os proferimos. Se basta ser pensado para ser, \ e ser dito para ser pensado, então à evidência sensível se substitui o i fato de língua: não é, portanto, o ente parmenideano, mas de igual \ modo e indiscernivelmente, o não-ente, que nos é assim acessível.

A argurnentaçã~) __ e_m Sexto é muito menos elíptica. Mas seria in­correto ~~r~dlta·r-que-ela-a.e;-~volve apena~ a do D~M.X.G. Ao eon.: trário: a dedução que ela opera não poderia depender das teses dd Parmênides; ela condui que o ente é incognoscível porque o ente não: é pensado, e não porque basta ser pensado para ser. Ela estabelece. inicialmente a validade da inferência: "se os pensamentos não são entes,: então o ente não é pensado" (77-78). A seguir demonstra duas veze~i a premissa pelo absurdo: de início, se os pensamentos fossem entes,! então bastaria ser pensado para ser, e carroças correriam sobre o mar\ - não haveria pseudos; em seguida, se os pensamentos fossem entes,1 os não-entes não seriam pensados; ora, não param de sê-los, como \, testemunham Sila ou a Quimera - mais uma vez, não haveria pseudos. I

Enfatizemos o caráter inverso das duas argumentações: com o Anônimo, tiram-se -as conseqüências da ontologia; com Sexto, re­cusam-se suas premissas. Atitudes ligadas a posições antitéticas face ao pseudos: De M.X. G demonstra a incognoscibilidade pela impos­sibilidade do pseudos, no sentido de sua indiscernibilidade em rela­ção à verdade (se o pseudos não existe, é porque ele existe igualmen­te e tanto quanto o verdadeiro, exatamente como o não-ente existe assim como o ente). Sexto demonstra a incognoscibilidade pressupon­do, ao contrário, a existência, no sentido do caráter evidentemente re­conhecível, das frases e das entidades fictícias3S. Pode-se perceber aí

35 O argumento da diferença entre os campos sensíveis (a visão, a audição e o pensamento compreendido como modo de apreensão equivalente aos outros) é utilizado de modo não menos característico em De M.X.G., por um lado, e em Sexto, por outro. No texto anônimo, ele serve para mostrar a difração do que exatamente não constitui um objeto (não mais esse do que aquele, não mais a

38 O efeito sofístico

a irrupção da diferença entre uma crítica sofística e uma crítica céti­ca da ontologia: tomar ao pé da letra as premissas e tirar todas as suas conseqüências, ou colocá-las em dúvida opondo-lhes a força igual, a isostenia, do que parece igualmente ser evidente.

Sigamos a pista aberta aqui pelo De M.X.G. As duas principais afirmações do poema: o ser é, o não-ser não é, e a identidade ou o co­pertencimento do ser e do pensar (Se Parmênides), bastam para produ­zir a tese característica da sofística: a impossibilidade de distinguir, do ponto de vista do ser, o verdadeiro do falso (então GÓrgias). Não há lugar para o não-ser, tampouco há lugar para o erro ou a mentira: é a ontologia de Parmênides, e apenas ela, tomada ao pé da letra e levada ao extremo, que garante a infalibilidade e a eficácia do discurso, so­fístico por isso mesmo. De novo, o ser é um efeito de dizer, só que não se trata mais aí de uma crítica da ontologia - o seu pretenso ser não passa de um efeito da maneira com que se fala -, mas de uma reivin­dicação da logologia: "as demonstrações dizem tudo sem exceção" (ibid., 980 a9s.) - uma vez que nada é da maneira que (se) faz crer a ontologia, não há outra consistência senão a de ser argumentada.

FILOSOFAR COM O PSEUDOS

Antes de examinar a terceira tese que nos levará ao cerne da teoria sofística da linguagem, gostaria de tornar mais palpável toda a força dessa posição do pseudos apresentada por Górgias, e o custo das ma­nobras filosóficas necessárias para dela se desfazer.

Nesse ponto da reflexão sobre o Tratado do não-ser, o comen­tador geralmente não pode deixar de apelar para a confirmação for­necida pela citação de Antístenes, dada por Prodo em seu comentá­rio do Crátilo de Platã036. Antístenes dizia que não se deve contradi-

invisibilidade das carroças do que a idéia que delas temos), e a incognoscibilidade dos pragmata. Em Sexto, o critério próprio de cada ordem serve para recusar, por absurdo, a premissa "os entes são pensados". Não extraio mais qualquer argu­mento daí, devido à real incerteza do texto do Anônimo.

36 É o capítulo XXXVII da edição Pasquali (Proclus in Platonis Cratylum commentaria, Teubner), citado especialmente por Pierre Aubenque em Le pro­bleme de l'être chez Aristote (Paris, P.U.F., 1983, p. 100), e "Syntaxe et sémanti­que de ]'être dans le pocme de Parménide" (art. cit., p. 120s. e nota 58); cf B. Cassin eM. Narcy, La Décisiol1 du sens, Paris (Vrin), 1989, p. 28. Na ausência de qual­quer menção a Antístenes no texto platônico, notar-se-á que não se trata, ao me­nos para Pasquali, considerando-se a ordem que ele propõe, de um comentário de

A ontologia como obra-prima sofística 39

Page 21: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

zero "Pois todo discurso, diz ele, assevera [aletheuei]; de fato, aquele que diz diz algo; ora, aquele que diz algo diz o ente; ora, aquele que diz o ente assevera".37

A equação sofística, ultra-parmenideana, aí se desdobra deta­lhadamente em toda a sua transitividade: dizer é dizer algo; dizer al­go é dizer o ser; dizer o ser é dizer a verdade; dizer é, portanto, dizer a verdade. Nem mesmo há "necessidade" de contradizer (é o sentido próprio de me dein antilegein, que introduz a citação), pois todos os discursos como todas as sensações valem e se equivalem, sem que ne-

" nhum tenha que triunfar sobre o outro. Pode-se deduzir daí, a esco­lher: em linguagem protagórica, que "o homem é medida de todas as coisas", quer delas fale e as faça ser, quer não as evoque e as deixe em seu não-ser; ou, na língua do Elogio de Helena, que breve ouviremos,

·que "o discurso é um grande soberano" porque está em condições de I'propor a cada alma o mundo em que acreditar.

Essa apresentação da posição sofística não constitui, entretanto, um simples resumo, pois indica, ao mesmo tempo, todos os ângulos a partir dos quais se pode atacá-la. É o que confirma a continuação desse breve capítulo, em que Prodo propõe seu comentário da citação, que, em compensação, os intérpretes deixam comumente de lado: "Deve­se, então, dizer contra ele que o falso também é, e que nada impede que aquele que diz o ente diga o falso; e, além disso, aquele que diz diz acerca de algo [peri tinos legei], e não diz algo [ti legei] " 38

429 b (como pensa Pierre Aubenque), ou de 429 d (como eu pensava), mas de um escólio em 385 d, vinculado à observação de Sócrates sobre hekastoi onoma, o nome, sempre adequado mesmo se diferente segundo as línguas e os usuários, que cada um dá a cada coisa: AntÍstenes faz assim a cama de Protágoras de uma manei­ra inteiramente diferente da de Aristóteles, em que se trata do nome de cada coisa (hekaston, Metaph. IJ., 29, 1024 b35), do enunciado próprio a cada coisa (ho oikeios lagos, ho autou lagos, 33, 35). Em Platão, todas as maneiras de nomear, igualmente relativas, são igualmente adequadas; em Aristóteles, há apenas um enunciado apropriado para cada coisa, e todos os outros falam de algo diferente. Seodo dada uma coisa, é então impossível contradizer, quer porque todos os no­mes sejam igualmente verdadeiros no momento em que são dados a ela, quer por­que o nome ou o enunciado verdadeiro é, ao mesmo tempo, o único possível.

37 nãç rcfp, tpT)O'L, À.ÓrOÇ' àÀ~eúel' o rclp ÀÉrw\I 'tl ÀÉrel' o Sé 'tl ÀÉrw\I 'tO

0\1 ÀÉyet· o O€ 'to 0\1 ÀÉrw\I CxÀl'jiteúel.

.)8 'PrrrÉov otv TrpOç aJ.rro\l o-n EO'Tl \I XUL 'to l./Je:U5oç KaL ooo€v XWÀÚ€l 'tO\l 'to

0\1 ÀÉyO\l'tU l./JeUooc; ÀÉy€l \I' KaL €-rl b ÀÉyWV Tr€pe n \l0Ç' ÀÉyel, XUl OUxl Tl ÀÉy€l.

40 o efeito sofístico

Sem empregarmos aqui os meios para determinar finamente a po­sição própria de Prodo e o impacto de seu neoplatonismo, constate­mos simplesmente que, de três equivalências, ele objeta a duas: dizer o ente não é necessariamente dizer a verdade; e dizer não é necessaria­mente dizer algo. Ora, essas duas objeções vão ao encontro das demons­trações platônicas, apresentadas pelo Estrangeiro no Sofista, para afron­tar precisamente a conseqüência sofística da posição parmenideana.

Primeira objeção: também o falso é e, conseqüentemente, (se) enganar é ainda dizer o ser. O Estrangeiro convoca duas vezes a cita­ção de Parmênides (fr. VII, v. 1 e 2), que começa por: "Pois isso ja­mais poderá ser conciliado: os não-entes são"39. Na primeira vez, em 237 a, como lembramos, trata-se de provar, assim como Górgias, to­mando o logos ao pé da letra, que Parmênides com me eonta já disse demais, e que, contrariamente a seu enunciado (é um parricídio), mas em conformidade com sua enunciação (o parricídio atesta um suicí­dio), o não-ser é. Na segunda vez, em 258 d, o Estrangeiro retoma isso triunfante, para alardear que ele enfim esclareceu plenamente o ser do não-ser (não um pretenso contrário do ser, mas algo diferente dele, que portanto existe pura e simplesmente à sua maneira) - mas também, repentinamente modesto, para constatar que ainda falta fazer o mais difícil. Como observa lamuriosamente Teeteto, o sofista cria defesa após defesa: "Conseguimos agora vencer a duras penas o obstáculo que consiste em dizer que o não-ser não é, e eis que um novo obstá­culo se ergue, e agora é preciso demonstrar que o falso é, no que con­cerne tanto ao discurso quanto à opinião" (261 a-b). O fato de que o falso, e não apenas o não-ser, seja constitui portanto, pura e simples­mente, para Platão como para Prodo, uma passagem obrigatória pa­ra refutar a equivalência parmenídeo-sofística entre ser e verdade.

Mas é preciso observar que a demonstração, para ser operante, não é assim tão fácil de se efetuar. Pois se nos contentamos em afir­mar que o falso é, recaímos no argumento sofístico, sob a forma que lhe acaba de ser dada por Górgias no tratado: o falso é, simplesmen­te, porque está em minhas frases e porque o único critério do ser é o de ser dito; quando digo que carroças correm sobre o mar, então carro­ças correm sobre o mar. Dito de outro modo, para fazer face a Górgias, a demonstração do ser do não-ser e a do ser do falso devem ser sepa­radas: o Estrangeiro o diz e isso deve ser levado em consideração.

39 Cf nota 30.

A ontologia como obra-prima sofística 41

Page 22: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

É aí que intervém a segunda objeçª? de. ~~<?<:!9, que distingue entre "dizer algo", legein ti" ob~to q-ue se torna objeto interno, e "dizer ac~n; . .a.ili! . ..al~~i~, com o genitivo do objeto de que se trata, que se nos defronta uma vez que o circundamos e que o captu­ramos com a rede da linguagem. Essa distinção confirma novamente a que opera a análise do Estrangeiro para chegar à última definição do discurso falso (262 e-263 d). "Teeteto está sentado" - discurso mínimo, uma vez que composto apenas de um nome e de um verbo - é ao mesmo tempo, diz Teeteto, "discurso acerca de mim e discur­so meu" (peri emou te kai emas, 263 aS, respondendo a peri hou t' esti kai hotou da linha precedente). Admitamos, por ora, a equivalência entre legein ti ("dizer algo") e Iogas tinos ("discurso de algo"), sendo dada sua distinção comum em relação à fórmula com peri (/egein peri tinos~ lagos peri tinos, "dizer acerca de algo", "discurso acerca de algo"). A diferença que subsiste entre a análise de Prodo e a do Estran­geiro é que Proelo propõe substituir ti por peri tinos, enquanto o Es­trangeiro acrecenta peri tinos à construção direta em tinos. Aliás, para este último, essa é a condição da symploke, do enlace, da com­binatória, entre verbos e nomes (cf. 262 d3): na medida em que Teeteto é nomeado, em que é, se preferirmos, o sujeito do discurso, então tra­ta-se de um lagos "de Teeteto" (no genitivo de posse, sem preposição), mas na medida em que se trata de um predicado, "voa" ou "está sen­tado", que fazemos gravitar em torno de Teeteto, trata-se ao mesmo tempo de um lagos "a propósito de Teeteto" (peri e o genitivo). Con­tudo as duas análises convergem na ênfase finalmente dada ao peri, pois é exatamente do peri que depende, no Sofista, a possibilidade da opinião ou do discurso falso, e sua distinção em relação aos verda­deiros: "Assim, quando se diz acerca de ti (peri de sou legomena) coi­sas outras como se fossem as mesmas, quer dizer, não-entes como se fossem entes, um tal conjunto constituído de verbos e de nomes pare­ce, real e verdadeiramente, constituir o discurso falso" (263 dl-4).

O que é assim enfatizado, por Platão bem como por Prodo, é a necessidade de atenção à sintaxe, como a única que permite ter uma concepção do discurso que não seja imediatamente referencial. "Di­zer algo": trata-se, ao falar, de dar a algo seu nome próprio, de evocá­lo, de fazê-lo ser, quer esse "algo" seja, aliás, uma entidade simples ("Teeteto" é o lagos de Teeteto), ou já complexo, como uma ação (a frase "carroças correm sobre o mar" sempre é apenas o nome próprio desse ti: carroças correm sobre o mar). Permanecemos aqui não ape-

42 o efeito sofístico

nas no ser, mas aquém da distinção verdadeiro-falso, naquilo que po­deríamos chamar, à moda heideggeriana, o desvelamento da presen-ça ou, à maneira de Antístenes, a revelação. "Dizer acerca de algo",' falar de algo, capturar algo com a rede da linguagem: trata-se dessa vez não mais de nomear, mas de "delimitar" (ouk onomazei monon alia ti perainei, 262 d2s.), entrelaçando entidades que são compatíveis ><.

ou não, operando bem ou mal conexões, e é aí que se introduz a "qua­lidade" do discurso (262 e9, cf 263 alI, b2): verdadeiro ou falso. Permanecemos no ser, uma vez que há um ser do falso, uma vez que o falso existe realmente no discurso, mas não estamos mais necessaria­mente no verdadeiro. As duas críticas têm, assim, necessidade uma da outra para serem operantes.

Reencontramos aí, em suma, o mesmo julgamento de Aristóteles sobre Antístenes: Antístenes "acreditava que nada pode ser dito a não ser por seu próprio enunciado (methen [ ... ]legesthai plen toi oikeioi logoi), um único (nome, uma única expressão?) para um único (obje­to?)" (Metaf. 1>., 29,1024 b32s.). Mas Antístenes se engana, erra ao permanecer apenas nos nomes próprios ou, o que dá na mesma, ape­nas nos próprios definicionais (definição é também o sentido usual de lagos tinos), pois pode-se também falar de algo "por meio de algo diferente" - por exemplo, de oito por meio do lagos da díade, dizen­do a propósito de oito que ele é divisível por dois. E justamente isso é o que se pode fazer de duas maneiras: de modo falso, evidentemente, mas também, como no exemplo, com verdade (36). Para Aristóteles como para Platão, e contra Antístenes, a sintaxe, a síntese, que reme­te o outro ao mesmo, é de fato a condição necessária para toda dife­rença possível entre verdadeiro e falso e, como se dirá, para a distin­ção dos valores de verdade.

TI PERI TINOS E TI KATA TINOS

Sabe-se, todavia, que, de Aristóteles a Platão, a novidade é nesse ponto considerável. Para perceber isso, basta apenas uma observação, em seguida à análise do Sofista que acabou de ser proposta. A mais simples symploke, entre nome e verbo, é de saída explicitada por Pla­tão como um lagos tinos peri tinos. Em Aristóteles, essa mesma symplo­ke (essa é a tarefa das Categorias e do Sobre a interpretação) explicita­se na célebre fórmula: legein ti kata tinos. Ora, de uma fórmula à outra, há mais do que uma mudança de preposição - de peri, "em torno de", a kata, "~º-re" -, mesmo se, como se pensa, o ~ des.erp.Q.99 em

A ontologia como obra-prima sofística 43

)

Page 23: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"categorias" que permitem normatizar a taxionomia de questiona­mentos de um sujeito e, por excelência, explicitar em quantos senti­dos o ser se diz. Com efeito, na fórmula platônica, conforme vimos, os dois tinos designam a mesma coisa: em "Teeteto voa" , por exem­plo, trata-se em ambas as vezes de Teeteto, uma primeira vez como "idéia" propriamente "nomeada" no lagos (é Teeteto), e uma segun­da vez como ligado a, participando de, algo diferente dele, como esfe­ra de pertencimento (Teeteto: ele voa; não, está sentado). Na fórmula aristotélica, ao contrário, em cada ocorrência de ti trata -se de duas coisas diferentes: legein ti é enunciar algo que é um predicado (por exemplo: voa, está sentado), e kata tinos é enunciar algo de outra coisa, a qual é um sujeito (por exemplo: Teeteto). Notar-se-á mesmo o quias­ma: a preposição platônica abre o lugar da predicação, ao passo que a preposição aristotélica marca o lugar do sujeito.

Essa preeminência do sujeito na symploke platônica contribui para explicar, em sua base, a diferença de posição entre Platão e Aris­tóteles, face a Antístenes, tomado como fórmula emblemática da dis­cursividade sofística. E também explica a força totalmente nova do aristotelismo, a única capaz de pagar a essa sofística na mesma moe­da. Tentemos assinalar as principais modalidades dessa diferença.

Como nota perspicazmente Pierre Aubenque, uma das três par­tes da equação antisteniana "é aceita quase sem discussão por Platão", do mesmo modo que, assinalemos, ela é a única a não suscitar objeção por parte de Praclo. Entretanto, prossegue Pierre Aubenque, é ela que realmente constitui um problema: trata-se da segunda equivalência, entre "dizer algo" e "dizer o ente,,40. Se Platão não questiona essa equiva­lência é porque, em primeiro lugar, em minha opinião, não coloca em questão o fato de que um lagos seja sempre (mesmo se não apenas) um lagos tinos, isto é, exatamente como na interpretação que Aristóteles dá de Antístenes, o nome próprio, talvez a definição, em todo caso a evocação de um sujeito em sua presença. Eu chegaria mesmo a dizer que a locução lagos tinos contém a interpretação platônica de legein ti, e que a seqüência das análises do Sofista permite constatar. De fato, logo após a primeira ocorrência da citação parmenideana, o Estrangeiro deduz, como um bom Górgias, que não se poderia dizer o não-ser porque "aquele que não diz algo não diz absolutamente nada" (ton de me ti

40 "Syntaxe et sémantique de I'être", art. cit., n. 58, p. 21: "É nela que re­pousa o sofisma ou, se preferirmos, o arbitrário da decisão".

44 o efeito sofístico

,

legonta anagkaiotaton, hos eoike, pantapasin meden legein, 237 els.), de modo que aquele que se empenha em propalar o não-ser "nem mes­mo fala" (oude legein, e4). Vêm, então, para expulsar o sofista desse refúgio inextricável oferecido pelo pai Parmênides, a demonstração do ser do não-ser, a escansão pela repetição da citação, em seguida a de­monstração, que examinamos, do ser do falso. A evidência que perdu­ra ao longo de toda essa última demonstração se enuncia com a mes­ma força que o interdito parmenideano possuía outrora: na medida em que mesmo o não-ser e mesmo o falso são, "o discurso é necessariamente, cada vez que ele é, discurso de algo; é impossível que não seja discurso de algo" (logon anagkaion, hotanper ei, tinos einai logon, me de ti­nos adynaton, 262 e5s.); ela se encontra ainda repetida pouco antes da definição do falso que arremata a demonstração ("impossível que haja um discurso que seja discurso de nada", logon anta medenos einai 10-gon, 263 elOs.). A passagem de legein ti a lagos tinos assinala a aceita­ção da equivalência entre ti e to on. Quando falo, sempre se trata final­mente de um "Teeteto COm quem dialogo agora" (263 a8), mesmo quan­do digo que ele voa: o exemplo é o paradigma da presença em jogo no discurso. Platão então é, por essa razão, ainda pré-socrático41 .

Para resumir: lagos tinos, a interpretação platônica de legein ti, perfeitamente conforme à equivalência legein ti = legein to on. A isso se opõe, em sua radical novidade, a interpretação aristotélica, desenvol­vida no livro Gama da Metafísica. Legein ti se explicita dessa vez em semanein ti, "significar algo". Com isso, e contrariamente ao que gran­de parte dos aristotélicos ainda pensa42, o "algo" em questão não tem mais que satisfazer à exigência de ser também um "ente". Em outros termos, Aristóteles nos faz deixar a aurora, de que gozava a sofística, e entrar na modernidade clássica. Esse movimento me parece conforme à diferença já assinalada entre as duas fórmulas da symploke, legein ti (predicado) kata tinos (sujeito), e logos tinos (sujeito) peri tinos (su­jeito, cercado pelo predicado); com efeito, nada de espantoso no fato

41 É aqui que a recusa total do legein ti por Prodo ganharia todo o seu sen­tido, dando imediatamente uma outra intenção ao silêncio sobre a equivalência !egein ti = legein to an.

42 Por exemplo Terence Irwin, em Aristot!e's First Principies, Oxford, Cla­rendon Press, 1988. Ver nossa contribuição em "Quelques apories de la seience de l'être"j "Arisrote et le linguistic turn", em Nos Grecs et leurs modernes, Paris, Seuil, 1992, pp. 417-52.

A ontologia como obra-prima sofística 45

i j

~ 1

Page 24: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

de que a atenção ao predicado, veiculada pelo legein ti aristotélico, con­duza ao menos substancial ou, se preferirmos, ao mais lingüístico.

É INCOMUNICÁVEL: BEHA VIORISMO OU LOGOLOGIA?

A AUTONOMIA DA LINGUAGEM

Admitamos que se possa estabelecer a diferença entre "é" e "não é". Admitamos que se possa dizer o "não é" como não sendo, e que a linguagem seja capaz de enunciar o falso sem torná-lo, com isso, verda­deiro. Em síntese, admitamos que o poema de Parmênides, com ajuda da bofetada crítica de Górgias, se torne tratável pela e para a filoso­fia. A terceira tese, "é incomunicável", não parece contradizer, então, da mesma maneira um enunciado ou uma implicação do poema. Ela contradiz, antes, o ato de sua enunciação, o gesto da deusa, seu discurso àquele que ela quer arrebatar e a seqüência das ordens ou dos conse­lhos que ela lhe prodigaliza, desde o fragmento I: "E a deusa me acolheu com benevolência, segurou na sua a minha mão direita, tomou assim a palavra e dirigiu-se a mim: Jovem, [ ... ] é preciso que te instruas so­bre tudo (panta pythesthai), ao mesmo tempo sobre o coração sem frêmito da verdade que convence bem e sobre as opiniões dos mor­tais, em que não há convicção verdadeira. Entretanto, aprenderás ainda isto (kai tauta matheseai): como era necessário que o que aparece seja realmente aparente uma vez que através de tudo penetra tudo" (panta peronta, lição retida por Heiberg e recentemente por O'Brien)43.

43 A análise das interpretações possíveis (ou antes, impossíveis) desses dois últimos versos é notavelmente efetuada por Rémi Brague, "La vraissemblance du faux: fr. I, 31-32", em Études sur Parménide, ap. cit., 11, pp. 44-68. Ele propõe a conjectura lTcXv{J-' éílT€p OV!cx: "aprenderás como os dakaunta são [ ... ] tudo o que (são) os anta". Mas não estou convencida da necessidade de atribuir a peronta o sentido falso de "recoberto", tampouco da possibilidade de intepretar, nessa eta­pa do poema, o plural sem artigo anta como se presumisse, em resposta aos siste­mas que se interrogam sobre as realidades do mundo, que o sujeito anta não pode convir ao verbo esti, que não é, mantendo-se, em todo caso, a ordem natural, nem mesmo ainda nome do caminho. Independentemente da lição que se retenha, tra­ta-se, em todo caso, da maneira, ou do fato de que as aparências, as opiniões são, pura e simplesmente, aparentes, dominantes e reinantes: como diz Rémi Brague, elas têm tudo, menos o ser.

46 o efeito sofístico

o que a deusa tenta assim comunicar é, não o ser, mas ao mes­mo tempo a verdade, as opiniões e, "ainda" ou "também", a maneira pela qual se pode confundi-los. Assim, a terceira tese não se opõe so­mente ao gesto do poema, mas às doxai, à sua maneira de serem ar­ticuladas e de apresentarem o mundo. Se não há enunciado parme­nideano diretamente retomado nessa última tese, entretanto, Górgias propõe aí uma série de termos e de distinções que concorda com a descrição da linguagem comum dos mortais. Assim, no fragmento VII e no início do fragmento VIII, logo após a citação platônica, apare­cem ao mesmo tempo os órgãos dos sentidos em sua separação e sua relação com um discurso puramente sonoro, sem medida comum com a linguagem do ser:

[VII, 1] Jamais com efeito esse enunciado será domado: [não-entes são.

Mas tu, desvia teu pensamento dessa via de busca. Que um hábito de experiências múltiplas não te carregue

[para essa via: mover um olho sem finalidade, um ouvido cheio de ruído e uma língua, mas faze-te juiz por meio do lagos dessa refutação de disputas múltiplas [VIII, 1] que acabo de dizer. Só permanece a palavra do caminho: é. [trad. O' Brien modificada]44

Como assinalava Ernst Hoffmann, evocado por Pierre Auben­que4S , pode-se aqui verificar que Parmênides "dispõe de dois voca­bulários diferentes para designar, por um lado, o discurso verdadeiro"

44 [VII, lj OL yàp )J.:rílTo't€ 'tou'to OOJ.ln ltVCXL J.l1l €ÓV!CX &),,)..d, crU TI)crS' lxcp' bóou ÓL'Çi)crLOÇ; lLp~€ VÓTUJ.CX, J.lTjÓe. (1' ~{J-oç; lTOÀÚlT€LPOV OOOV xcnà ní"vÓ€ ~tcX(1{J-w

'\IwJ.lãv lXcrxolTOV ÕJ.lJ.lCX xcxL +r.x1Í€(1(Jcxv lxxoulÍV )((XL yÀw(J(Jcxv, XPLVCXL Se. ÀÓyw lTOÀÚÓllPLV €À€yxov [VIII, 1 J <\ <)1€~€V P~€VT": Móvoç ó' ETl )1U~oç bóolO À€( lT€'tCXl Wç; EOLl v·

45 E. Hoffrnann, Die Sprache und die archaische Logik, Tübingen, 1925, pp. 10 e ss., citado por P. Aubenque, "Syntaxe et sémantique de I'être", art. cit., p. 1195.

A ontologia como obra· prima sofística 47

Page 25: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(essencialmente logos, e os termos de mesma família como rhethenta, bem como mythos e phrazo), "e por outro, o discurso vazio e enga­nador" (ekhessan, "o que ressoa", ruídos, sons, ecos, e glossa, "a lín­gua", mas também em VIII, 38: onoma, "o nome", "a palavra"). Con­sideremos, desse ponto de vista, a terceira tese do tratado. Mais do que nunca, deparamo-nos com a dificuldade do texto anônimo e com a complexidade da relação entre as duas versões. Mas nas duas versões, em todo caso, o argumento se apóia na separação dos órgãos e dos campos sensoriais: o olho vê e só vê a cor, O ouvido escuta e só escuta o som (De M.X.G., 980 bl-4): "Assim como a visão não chega a co­nhecer os sons da voz, tampouco a audição ouve as cores, mas sim os sons" - phtoggous, em seguida psophos, 6, 9; cf. Sexto, 83, "mas que dentre (os entes), os visíveis sejam apreendidos pela visão, os audíveis pela audição, e não reciprocamente"). O olho é certamente "sem fi­nalidade" e o ouvido "cheio de ruído" porque o objeto sensível não existe, difratado em perceptos, sem que qualquer geometral, qualquer concretum ou qualquer pragma, como se quiser, os reúna. Essa seria exatamente a função do logos, se ele mesmo não fosse tão isolado quanto cada um dos sentidos, tanto em relação aos outros sentidos, quanto em relação a um eventual objeto de síntese perceptiva: "E aque­le que diz diz, mas não uma cor nem uma coisa" (b4s.). A incomu-' nicabilidade é, pura e simplesmente, um efeito da distinção parme­nideana: assim como o ser não se mistura com o não-ser, o logos pro­priamente dito é por si só seu próprio campo, nada tem a ver com a doxa dos mortais, de tal modo que não se relaciona mesmo com os sons que se pode ouvir. A distinção entre Iogas e ruído passa finalmente: entre aquele que fala e aquele que ouve: aquele que diz diz um dizer ("para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer", 6s.), mas aquele;' que ouve sempre ouve apenas sons ("a audição não ouve cores, mas sons"): entre aquele que fala e aquele que ouve não se estabelece qual-, quer diálogo, a propósito de qualquer objeto46. Hoffman via em Par-

46 Essa distinção entre falar (com impossibilidade de dizer algo além de um dizer, de codificar uma pragma) e ouvir (com impossibilidade de ouvir algo além de sons, de decodificar), e a diferença incomensurável entre os dois "não-inter­locutores", ainda aprofundada no argumento seguinte (§ 11), sem dúvida mais sensível, apesar das dificuldades, se conservamos o texto manuscrito L, impedem­me de subscrever o julgamento de Mourelatos sobre essa passagem: "Nas duas versões, o argumento é pateticamente f taco. Parece, com efeito, admitir que o lagos, sendo audível, pode muito bem servit para acompanhar realidades no campo do

48 o efe'ire sofístico

I

mênides o primeiro filósofo da "unidade trinitária" do ser, do pensa­mento e do discurso; é, tese após tese, o funcionamento fusional des­sa unidade trinitária que se vê desmontado como uma máquina infer­nal e, se ouso dizer, remontado para operar no vazio.

Legei ho legon [ ... ]logon, "aquele que diz diz [ ... ] um dizer": temos com essa concatenação - verbo, depois sujeito e predicado, se­guindo-se uns aos outros - o que eu chamaria de princípio de identi­dade sofística, em que a autonomia discursiva se inflete em 10goIogia, em uma esfera auto-suficiente análoga à do "é". Princípio que aí está para pregar uma peça no princípio de identidade ontológica, ao mes­mo tempo construído no Poema a partir do "é" primeiro, e secular­mente deduzido ou infinitamente glosado: "o ente é ser", modelo do bem acabado.

A INTERPRETAÇÃO BEHAVIORISTA

Se a análise da função ou do funcionamento da linguagem pro­posta por Górgias se apóia na partição parmenideana entre lagos (do ser, emitido pela deusa ou pelo filósofo, poema-língua) e ruído (da mistura, dos sentidos, das doxai, hábito dos mortais), para levá-la à sua conseqüência aporética, também serviria, como nos dizem, para explorar - é claro que diferentemente do poema - o que se pôde cha­mar sem rodeios de "concepções do sentido". Em seu importante ar­tigo, "Gorgias on the function of language", Mourelatos afirma que "Górgias ataca duas concepções sedutoras da natureza do sentido lingüístico, a saber: que o sentido é a referência e que o sentido é a imagem mental ou a idéia ,,47. Os puzzles assim armados por Górgias seriam portanto, pode-se imaginar, recorrentes na história da filoso­fia, até representar um grande papel no desenvolvimento da filosofia analítica de nosso século. Antes de discutir suas conclusões, gostaria de resumir as notáveis análises de Mourelatos.

som. De tal modo que, afinal, uma comunicação bem sucedida, seria possível, todas as vezes, que onomatopéias possam ser utilizadas" ("Gorgias and the function of language", Gorgia e la sofistica, Atti deI convegno internazionale Lentini/Catânia, 12-15 dezembro 1983, a cura di L. Monteneri e F. Romano, Facolta di Lettere, Universidade da Catânia, Sicularum Gymnasium, 1985, pp. 607-38).

47 Art. cit., p. 608. Uma segunda versão, revista e aumentada, foi publica­da em Philosophical Topics, XV, 2, outono 1987, pp. 135-70 (referir-me-ei a ela por M2j.

A ontologia como obra-prima sofística 49

Page 26: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"O argumento categoria I ", que ele define por analogia entre o fechamento de cada sentido em seu campo sensorial (visão-cor) e o fechamento do logos sobre si mesmo, incapaz de remeter a um prag­ma48 , está apto para refutar uma concepção referencial do sentido tal como é representada, por exemplo, pelo primeiro Russell: "Todas as palavras têm uma significação [meaning], simplesmente no sentido em que são símbolos que ocupam lugar de outra coisa que não eles mes­mos,,49. Aquele que diz diz um dizer e não uma coisa: por mais sim­plista que seja a formulação, o argumento não é, de modo algum, tri­vial; como refutação da concepção referencial, tem mesmo tanta for­ça quanto sua versão megárico-estóica: "quando eu digo uma car­roça, uma carroça passa pela minha boca", ou sua versão moderna sofisticada: "we do not eat the meaning of 'cake'''; trata-se simples­mente de destruir o erro categorial sob o lugar-comum: a palavra se refere à coisa.

Antes de continuar, assinalemos imediatamente o primeiro e con­siderável risco dessa análise: o de confundir - para dizê-lo em grego - ti e pragma, ou "alguma coisa" e "uma coisa". Assim Russell diz com prudência que as palavras "ocupam o lugar de outra coisa que não elas mesmas" [stand for something other than themselves]", e Mourelatos explicita em "elas devem fazer referência a coisas do mun-

48 Algumas observações a esse respeito. A analogia, que existe de faro, não poderia, ao menos em De M.X.G., ser deduzida da comparação em "assim como" (a visão ... ), "assim como" (a audição), que apenas concerne a dois campos senso­riais, e não a um sentido e ao lagos (cf. p. 609). Além disso, Mourelaros se apóia, a partir de 980 b8, em um texto ligeiramente diferente daquele que proponho, e que reserva para o fim as lições mais imediatamente inteligíveis do manuscrito R: "Indeed, that which a man is not aware of, how - Gorgias demands (aitei) - will such a man come to grasp it mentally from someone else by means of discourse, ar by means of a sign, something other than (semeioi heteroi) the thing itself­except by virtue of having seen it, if [it is] a colar, ar having heard [it, if ir is] a sound. For it is decidely not <sound> that the speaker speaks, nor colar, but dis­course. It follows that the possibility is not one of having the thought of a colar, rather of seeing it, and not one having the thought of a sound, rather of hearing it". Enfatizei com itálico as divergências de leitura e de interpretação, que, a bem dizer, pouco alteram a análise do conjunto, ainda mais porque resolvemos e tra­duzimos da mesma maneira a cláusula como atre (980 b5): "- se não, se for uma cor, vendo-a, e se for um ruído, ouvindo-o?" (p. 613).

49 The PrincipIes of Mathematics, Londres, 1903, citado por Mourelatos, p. 634, nota 34.

50 o efeiro sofístico

do real (extra lingüístico, extramentall [they must refer to things in the real (extra-linguistic, extra-mental) world]" (p. 625, grifas meus). É toda a interpretação aristotélica do semainein ti, "significar algo" no sentido de "ter um único sentido para si mesmo e para outrem", que se encontra assim de saída privada de sua tópica de exercício que lhe permite remeter tanto ao homem quanto ao bode-cervo, e logo priva­da de sua força anti-sofística. Mas é sem dúvida, de modo muito mais drástico, a idéia de que se possa tratar, com Górgias ou, aliás, com Parmênides, de "significação" no sentido moderno do termo, mani­festamente determinado de maneira aristotélico-estóica, para recusá­la ou admiti-la, que já é problemática: a ausência do conceito, como na citação de Antístenes, não é fortuita, mas revela uma "impensabi­lida de ". O discurso não significa, nem uma coisa nem alguma coisa, não porque pensar a significação em termos de referência contenha aporias, mas porque o discurso, então, não significa50.

Mourelatos descreve perfeitamente bem o corpo da argumenta­ção que se desenrola, em Górgias, como um desdobramento das aporias da identidade perceptiva ("puzzles of perceptual sameness", pp. 614-24 e p. 625). O argumento é, ao mesmo tempo, inter-subjetivo e intra­subjetivo. Inter-subjetivo porque, dados dois indivíduos, a identidade da impressão sensorial ou da idéia (aisthanesthai~ ennoein) é, de início, objetivamente impossível: "[ ... ] como aquele que ouve terá a mesma coisa na idéia? Pois a mesma coisa não tem o poder de estar ao mes­mo tempo em vários (sujeitos) e que estão separados: dois seria então o um" (980 b8-11151; em seguida, subjetivamente impossível: "Aliás, mes­mo se a mesma coisa exatamente estivesse em vários, nada impediria que ela não lhes parecesse semelhante, para eles que não são, em to­dos os aspectos, semelhantes" (11-13 I. O argumento é igualmente intra­subjetivo, porque, se acrescentamos a distinção categorial à desconti­nuidade do tempo, um único indivíduo não perceberá nem mesmo a mes-

50 É claro que essa objeção vale, igualmente, em relação ao artigo de G.B. Kerferd, "Meaning and reference: Gorgias and the relation between language and' reality", em 'H 'Apxaía LO<pL<ITLxTj, The Sophistic Movement, Atenas (Athenian Library of Philosophy), 1984, pp. 215-22, que faz de Górgias um adepto da con­cepção ideacional do sentido, mas não sem relação com Frege; para uma crítica desse híbrido, cf Mourelatos, nota 40, p. 634s.

51 Cito minha tradução, que difere pouco da de Mourelatos quanto a essas passagens significativas, que escolho, não litigiosas; cf p. 6145.

A ontologia como obra-prima sofística 51

Page 27: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ma coisa que ele próprio: "Não parecemos, aliás, nem mesmo ter per­cepções semelhantes àquelas que temos em um mesmo tempo, mas outras pela audição e pela visão, e diferentemente o instante presente do instante passado" (14-17) - "nem uma linguagem privada nem uma linguagem pública são possíveis", conclui Mourelatos (p. 624).

Esse segundo bloco de aporias é dessa vez, segundo ele, perfei­tamente capaz de desacreditar "uma concepção menta lista ou idea­cional do sentido" (p. 625) - a de um Stephen Ullmann, por exem­plo: "Se ouvir a palavra 'mesa', pensarei em uma mesa; se pensar em uma mesa, articularei a palavra se for necessário"S2. Alston ou Ayer apenas reiteram as observações de Górgias quando objetam: o primei­ro, que um pouco de introspecção basta para convencer o leitor de que a imagética mental que acompanha a palavra "cão" não é, de modo algum, idêntica cada vez que utilizamos a palavra da mesma maneira (é o argumento intra-subjetivo); o segundo, que eu não teria qualquer meio de saber se os outros têm aS mesmas sensações ou sen­timentos do que eu, nem mesmo se querem dizer a mesma coisa com as palavras que utilizam para remeter aos objetos físicos, uma vez que as percepções que eles têm desses objetos podem ser radicalmente di­ferentes das minhas.

Pode-se então, à maneira de um Wittgenstein, decidir varrer as objeções de Górgias simplesmente levando em consideração nossa prática da linguagem. Entre nós: "[ ... ] é claro que a própria idéia de ver o vermelho perde sua utilidade se não podemos jamais saber se outro não vê algo absolutamente diferente"; e em nós: "Como posso saber se o que chamo de ver o vermelho não é uma experiência intei­ramente diferente a cada vez? .. " Mais uma vez, a resposta: "Não posso sabê-lo", e por conseqüência "o desaparecimento da questão" (cita­

do p. 627). Mas se mantemos precisamente a questão, apresenta-se então

urna "alternativa padrão" para as duas concepções, referencial e idea-

S2 Cf. Mourelatos, nota 37, p. 634. "O elenchos de Górgias é especialmente devastador" em relação àqueles que gostariam de combinar as duas concepções: o sentido é a referência, mas a referência é não o objeto físico, mas a percepção. Devastador em relação a um Locke, por exemplo, que, no seu Ensaio sobre o en­tendimento humano (III, 2, 2, 2, citado na nota 37), defende que: "As palavras, em sua significação [signification] imediata ou primeira, só ocupam o lugar das idéias [stand for nothing but the ideas] que estão no espírito daquele que as utili­za" (grifas meus).

52 O efeito sofístico l

cional, do sentido: a concepção comportamental, "rhe behavioural conception". Ela modifica a maneira de formular a questão: "a boa questão a ser formulada a propósito de uma palavra não é 'Por que a palavra é empregada?', ou 'Que imagem a palavra evoca no espírito?', mas antes 'Qual a sua função?', 'Que efeito exerce sobre aqueles que falam a linguagem?'" (p. 628). Essa concepção behaviorista, que des­creve todas as ocorrências em termos de estímulo-resposta, é a de um número expressivo "de lingüistas, de psicólogos, de filósofos nas últi­mas décadas". É também exatamente a de Górgias, sugere Mourelatos apoiando-se no Elogio de Helena, isto é, em outro texto de Górgias, amplamente conservado, que trata do logos e de seus poderes, e que dessa vez exprimiria a concepção positiva própria ao sofista e a colo­caria efetivamente em prática, após a exposição puramente crítica do Tratado. Encontramo-nos, assim, diante de uma versão recente da velha idéia segundo a qual a sofística é essencialmente uma retórica, e de­senvolvê-la completamente permitirá a contrario justificar a necessi­dade de um conceito como o de logologia.

RETÓRICA E LOGOLOGIA: O GRANDE DINASTA

Górgias - segundo Isócrates, que pretende superá-lo - jamais propôs um elogio de Helena, mas apenas uma apologia, uma defesa. De fato, Helena de início pleiteia não ser culpada: ela é vítima de um mais poderoso do que ela, quer se trate dos deuses (ou da "fortuna", da "necessidade", 6), da violência viril (um rapto, 7), ou do discurso (8-15). É uma notável linha de defesa essa terceira hipótese, que faz de todo persuadido um inocente - quão perturbadora, ou imedia­tamente aterrorizadora, tão logo se evoca, em vez dos perigos distan­tes dos demagogos, o entusiasmo mortal das multidões totalitárias, mas entre Platão e Górgias instruiremos mais tarde, estipulando, em sua amplitude e e:m sua especificidade, o estatuto do logos em política.

Leiamos por ora, com Mourelatos, a célebre passagem na qual apóia a sua tese: "O discurso é um grande soberano que, por meio do \ menor e do mais inaparente dos corpos, realiza os atos mais divinos" i:'

(8). O Elogio retoma a dificuldade final do Tratado, hiato entre pala· vra e coisa, como se incarnada no interior do próprio logos. Esse con­traste constituído pela onipotência de um quase nada coloca pre~isa-

A ontologia como obra-prima sofística 53

Page 28: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

mente em evidência, para Mourelatos, o fato de que o lagos é um "estímulo substitutivo" 1M2, p. 156). O exemplo do teatro, de que Górgias imediatamente lança mão, seria a mais deslumbrante das ilus­trações: "Sobrevêm, naqueles que escutam [a poesia], o arrepio tran­sido de medo, a piedade que se derrama em lágrimas, o luto que se compraz na dor, e a alma experimenta, diante das felicidades e dos reversos que advêm de ações e de corpos estranhos, por intermédio do discurso, uma paixão que lhe é própria" (9). É Édipo que desposa sua mãe e fura seus olhos, "os acontecimentos que se desenrolam na cena não nos concernem realmente" ("are of no real concern to us", M2, p. 156), mas somos nós que choramos: as palavras, repete Mourelatos, serviram de "estímulos substitutivos" (p. 157). Igualmente, no segundo exemplo, "os sortilégios que os deuses inspiram vêm através das pa­lavras do discurso conduzir o prazer, afastar a dor" (10): "o análogo moderno" dessa terapia praticada nos templos não difere do "uso das palavras na psicoterapia" (p. 157). Górgias se dedica mesmo - acres­centa Mourelatos - a estender essa concepção behaviorista aos con­textos aparentemente mais desfavoráveis; por exemplo, a ciência, em que, como em meteorologia, as palavras fazem com que objetos "ina­creditáveis e inaparentes" se tornem "evidentes aos olhos da opinião": Górgias tocaria aí no "espinhoso problema da semântica dos termos teóricos", em que, na falta de objetos observáveis, apenas a lingua­gem em todos os seus tropas é capaz de fornecer os objetos. Igualmen­te com as argumentações judiciária e filosófica: trata-se sempre de induzir a uma mudança de opi-nião. Tudo se conclui com a compara­ção, que terá decididamente uma grande fortuna, entre logos e phar­makon: "Há a mesma relação entre o poder do discurso e a disposi­ção da alma, o dispositivo das drogas e a natureza dos corpos: assim como tal droga faz sair do corpo tal humor, e como umas fazem ces­sar a doença, outras a vida, assim também, dentre os discursos, alguns afligem, outrOS encantam, metem medo, inflamam os ouvintes, e ah guns, por efeito de alguma má persuasão, drogam a alma e enfeitiçam-' na" (14). Basta, conclui Mourelatos, traduzir a expressão arcaica "fa­zer sair um humor" para idioma behaviorista: "induzir uma reação fisiológica", para ter um L. Bloomgield, um B.F. Skinner ou um c.L. Stevenson (pp. 157-8).

Encontra-se aí, em uma ambiência analítica up-to-date, o velho retrato do sofista como sedutor. Seu conhecimento de fallacies talvez faça dele um perito em distinções promissoras (sentido, referência,

54 o efeito sofístico l

idéia), mas ele permanece, ainda e sempre, o orador típico aos olhos do filósofo: considerar o discurso como um estímulo próprio para induzir no ouvinte uma resposta é empenhar-se em produzir, tal como em manuais, as receitas do sucesso, tais ingredientes para tal resulta­do em tais circunstâncias, com a captura do kairos como destreza da cozinheira. Com, por detrás do behaviorismo, o adestramento bem pavloviano de cães que salivam diante de nada. Diante de nada, ou, mais exatamente, diante de quase nada: nada de assassinato em cena, nem verdadeiro nem sequer representado, tampouco nada de carne nem de simulacro de carne, nada de objeto, mas, de fato, uma sineta que a evoca ou que provoca alucinação, e palavras como "estímulos­substitutivos" .

O grande mérito dessa análise é o de fornecer, com uma inter­pretação de texto pelo menos séria e documentada, como que a últi­ma palavra sobre a retórica vista pela filosofia, ainda a filosofia e sem­pre a filosofia (através de Platão, Aristóteles e até PereIman). Ora, a concisão ou a simplicidade da análise em termos de estímulo-respos­ta se deixa apreender, precisamente, através dessa idéia de "estímulo substitutivo", cuja inconsistência se pode testar.

Com efeito, na condição de estímulo, a palavra é exatamente o substituto de quê? No teatro, por exemplo, a passagem destacada por Górgias não se faz de um objeto a uma palavra, substituto de objeto. Quais seriam, aliás, as ações e os corpos "reais", próprios a servir como objeto? Os do primeiro Édipo, de que fala o mito, ou os da máscara que diz os versos de Sófocles em cena? E que tipo de aprendizagem teria produzido qual associação? A aprendizagem da língua, que subs­titui as coisas por palavras, ou a aprendizagem da poesia, que torna sensível às metáforas? A passagem, tal como explicitada por Górgias, se faz estritamente - Mourelatos também deve enfatizar isso - do estrangeiro (allotrion) ao próprio (idion), e não às palavras mas "por meio das palavras", "através delas" (dia ton logon, 9). As palavras não servem como objetos ausentes, mas, apenas por sua força, produzem o terror e a piedade, a dor e o prazer naqueles que, ao invés de pro­nunciá-las, as ouvem. Em suma, como teorizará fielmente Aristóteles, a poesia, nisso mais filosófica do que a história, faz passar do singu- l lar ao universal e perceber o outro como si mesmo, si mesmo no ou- ! tro. O conceito de "substituto" não resiste melhor ao exame do se­gundo modelo: a terapia, mesmo à americana, não tira sua eficácia da realidade dos objetos de que as palavras seriam substituto (alguma

A ontologia como obra-prima sofística 55

Page 29: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

li!

carne, momentaneamente ausente), mas dos sortilégios propriamente ditos que, "pelas palavras" (de novo dia logon, 10), transformam a opinião da alma. Acontece o mesmo nos três outros tipos de discur­sos considerados, e primeiramente naquele que é, não discurso da ciên­cia em geral, palavras substituíveis por seus objetos perfeitamente de­finidos, mas "meteorológicos", apresentação de objetos sobre os quais nada se sabe e que são, por definição, ausentes, "inacreditáveis e invi­síveis": em que é necessário compreender que são as palavras e somente elas que constituem toda a objetividade do objeto, tal série de pala­vras fazendo opinar sobre tal objeto, uma outra sobre um outro, ao sabor das palavras, mas não segundo a ordem dos objetos. Igualmen-: te de modo evidente no caso dos tribunais, em que se trata, durante as sessões, segundo as práticas antilógicas de acusação e de defesa, e mesmo as idas e vindas das tetralogias, de constituir o próprio objetq e de determinar categoricamente o corpo de delito. Igualmente, enfim; para os filósofos, que não têm outros objetos senão aqueles de que são dotados por seus discursos em batalha. Em suma, ou as palavras são

l

estímulos-substitutivos, no sentido pavloviano de substitutos de ob-, jetos ausentes, mas reais de uma maneira diferente daqueles de onde', extraem toda sua eficácia de estímulo, e os exemplos de Górgias são" inadequados e excedentários; ou as palavras são estímulos verdadei-, ros, isto é, mais exatamente os verdadeiros estímulos, e nesse caso não se percebe o que ele? ainda teriam de "substitutivos". Não é um obje-' to preexistente que é eficaz através da palavra, é a palavra que pro­duz imediatamente algo como um objeto: sentimento, opinião, cren­ça nessa ou naquela realidade, estado do mundo, a realidade mesma, indiscernivelmente. Não para melhor permanecer ancorado em um anacrônico subjetivismo ("o homem é a medida de todas as coisas" no sentido em que minha opinião, a que induzem em mim, seria mais real do que o ser ou faria toda a realidade do real), mas para des­mistificar a doação ontológica e mostrar como essa dita doação é uma produção discursiva.

Em suma, o estímulo é eficaz no mundo, ele lhe dá forma, infor­ma-o, transforma-o, performa-o. Com o discurso tematizado e prati­cado pela sofística, trata-se não de um efeito "retórico" sobre o ou­vinte (behaviorismo pavloviano dos filósofos sobre os quais as pala­vras só agem por meio de domesticação e na falta das coisas), mas de um efeito-mundo.

56 o efeito sofístico

I ~.

o DISCURSO SOFISTICO E SEU EFEITO-MUNDO:

"O DISCURSO NÃO COMEMORA O DE FORA,

É O DE FORA QUE SE FAZ O REVELADOR DO DISCURSO"

Para assegurar essa interpretação, é preciso examinar uma pas­sagem, importante e difícil, da terceira parte do Tratado do não-ser na versão de Sexto, que não tem precisamente equivalente na versão anônima, e no qual o próprio Mourelatos se apóia na versão mais completa de seu artigo: "Se é assim, não é o discurso que comemora o de fora Iparastatikos; Mourelatos: representsl, mas é o de fora que se torna revelador lmenytikon; Mourelatos: comes to foretoken] do discurso" 5 3.

Tudo depende aqui do sentido a ser dado aos dois adjetivos ver­bais colocados em simetria, parastatikos e menytikon, em que ocorre o quiasma entre discurso e de fora54. Mourelatos tem o mérito de

S3 E'L be Tálrro, OUX à ÀÓ,OÇ' TOU €xTOç napacnaTlx<Jç EcnL \I, àJ.,JI.à. EXTOç TOU ÀÓ,ou }.l.T]\lUTLXà\l ,{\I€TaL. Deixo aqui de lado a articulação com o que precede imediatamente (ei de touto, "se é assim"), que é entretanto uma das causas das interpretações equivocadas do sentido de menytikon.

54 Mourelatos explica por que menytikon, que é encontrado em Górgias apenas nessa versão do Tratado, é difícil de compreender: nunca se conseguiu conservar o mesmo sentido para as quatro ocorrências do termo, todavia próxi­mas (83, 84 bis e 85, portanto). Menyein significa "revelar", "descobrir o que é secreto", e, de modo mais geral, "fazer conhecer", "indicar", "comunicar". t esse último sentido que, em geral, se privilegia (menytikos: "conveys the 'communi­catory' function performed by the messenger, the message, or the vehicle of the message", diz Mourelatos, p. 159), mas, com esse sentido, a última frase não quer dizer mais nada. É fácil compreender, com efeito, que "os entes não são comuni­cáveis" (83), que "é por meio do discurso que nos comunicamos", que "não co­municamos entes, mas discurso" (84), mas o que entender - pergunta-se Mou­relatos - por: "é a realidade exterior que comunica o discurso" (is communicatory of discourse, 85)? Isto é "levar ao absurdo o paradoxo sofístico", pois: "O que isto quer mesmo dizer? Será que as pedras falam? Mensagens são emitidas pelo marulhar das ondas ou pelo murmúrio dos pinheiros?" (ibid., p. 159). Mourelatos constata que nossos eruditos de hoje apenas escapam ao absurdo modulando inde­vidamente, em sua opinião, o sentido de menytikon, para lhe dar a conotação de "explicar", "interpretar", "tornar inteligível". "O mecanismo em virtude do qual as coisas explicam as palavras é, segundo uma das elaborações dessa leitura, o da onomatopéia": o ruído das coisas seria, então, a última palavra das palavras. Se­gundo uma outra elaboração, mais amplamente partilhada (Calogero, Untcrsteiner, Loenen, Newiger, uma das hipóteses de Kerferd), o mecanismo é "o da referência (no sentido semântico) a Ítens (objetos exteriores ou sense data) imediatamente

A ontologia como obra-prima sofística 57

Page 30: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

li!

propor que se siga, até o fim, uma boa pista: a do uso de menytikos feito em todos os outros lugares por Sexto, tendo como" home context" a crítica da teoria estóica do signo. Apostar-se-á assim que, mesmo se, muito provavelmente, esse não for um termo de Górgias, trata-se, no entanto, de uma tradução inteligente e inteligível do que Górgias quer dizer.

Nesse ponto, não podemos deixar de lembrar brevemente a dis­tinção fundamental entre as duas espécies de signos, que estrutura o enunciado e a crítica céticos da semiologia dogmático-estóica, propos­tos no capítulo 3 do livro VII de Adversus Mathematicos55 . Deixemos de lado as coisas manifestas (enarge), que só necessitam de sua pró­pria evidência, e não pertencem então ao campo do signo. Só pode haver signo de coisas não-evidentes (adela), com a condição, entretanto, de que não sejam "absolutamente não-evidentes" (kathapax adela, por exemplo, o número de grãos de areia no deserto da Líbia), já que elas escapam, por definição, a qualquer apreensão possível. Existirá, en­tão, signo de coisas quer "ocasionalmente não-evidentes" (pros kairon adela, por exemplo, Atenas quando estou na Líbia), quer "naturalmente não-evidentes" (ei adela, por exemplo a idéia de poros inteligíveis ou de um vazio infinito exterior ao cosmo). No primeiro caso, diz-se que o signo é "comemorativo", hypomnestikon, pois apenas junta duas per­cepções cuja conexão (symparateresis) já foi freqüentemente observada; uma dessas percepções, que então é rememorada, está temporariamente ausente, aliás segundo qualquer modalidade de tempo: a cicatriz, signo de um passado, lembra a ferida; a fumaça, signo de um presente, evoca o fogo; o ataque cardíaco, signo de um futuro, anuncia a morte56 . No

dados na experiência": mas dizer que as coisas explicam as palavras porque elas lhes servem de referência não equivaleria a dizer, ao mesmo tempo, que, recipro­camente, as palavras representam as coisas, o que a primeira parte da frase apa­rentemente desmente? Compreende-se que os intérpretes insatisfeitos concordem quanto à afirmação de que o relato de Sexto não é absolutamente confiável (cf. por exemplo Newiger, op. cit., p. 164, nota 47, que prefere postular, ao mesmo tempo, que menytikos e parastatikos são sinônimos) e se atêm ao De M.X.G., no caso menos difícil do que os outros.

55 É nesse capítulo (= Contre les Logiciens, 11) que se encontram 7 das 13 ocorrências de menytikos tinos, e 7 das 10 ocorrências de parastatikos tinos, ar­rolados no índice de Janacek. Ver também Hipotiposes pirrônicas, 11, capo 10 e 11.

56 Compreende-se que o estudo do signo possa concernir, ao mesmo tem­po, ao que denominamos signo, à coisa que serve de signo (a fumaça em relação

58 o efeito sofístico l

segundo caso, diz-se que o signo é "indicativo", endeiktikon: contém em si toda a mostração, pois o que é significado é, por natureza, não observável em si57, de tal modo que "é diretamente a partir de sua natureza e de sua constituição próprias, quase emitindo um som de voz (monon oukhi phoneen aphien), que se considera que ele signifi­que aquilo de que é indicativo" (154, enfatizado com pertinência por Mourelatos). Assim os movimentos do corpo são signos indicativos da existência da alma que, por natureza, escapa aos nossos sentidos. Todo o trabalho antidogmático de Sexto consiste, então, em desvin­cular radicalmente -as duas espécies de signos, em manter o signo co­memorativo, cujo caráter confiável vivemos e experimentamos todos os dias, mas também em despojar o signo indicativo de suas preten­sões, expondo as aporias de seu conceito.

Nesse contexto, qual é, então, o significado desses adjetivos? Contrariamente a Mourelatos, para quem menytikos remete ao signo comemorativo, pode-se afirmar que o termo é empregado indiferen­temente para as duas espécies de signos: assim, em VIII, 193-194, quando se trata de marcar que, segundo os dogmáticos evidentemen­te, tanto ° signo comemorativo quanto o signo indicativo são suscetí­veis de corresponder a uma pluralidade de significados diferentes, é menytikos que sempre serve (indicate, depois revealing, traduz Bury, tentando manter a diferença). É mesmo incontestável que menytikos serve para dizer o que torna o signo indicativo: assim Sexto conclui a propósito do paradigma do signo indicativo que, sendo a alma não­evidente, "é a partir dos movimentos do corpo que ela é indicativa­mente revelada (endeiktikos menyetai)" (VIII, 155). É revelador o sin­tagma que une o verbo supostamente encarregado da comemoração ao enunciado expresso da indicação.

ao fogo, Adversus Mathematicos) e ao synemmenon, a proposição em "se ... en­tão", característica da lógica estóica ("se há fumaça, há fogo", P.).

57 É aí que está a diferença entre "absolutamente não-manifesto" e "natu­ralmente não-manifesto": absolutamente, quer dizer, nem mesmo por um signo, portanto escapando absolutamente à "faculdade humana de apreensão" (an­thropinen katalepsin, 147). O fato de que Sexto, como veremos, recuse ratifi­car os signos indicativos basta para explicar que os exemplos de um caso pos­sam parecer convir ao outro: se as coisas "naturalmente não-manifestas" não são, contrariamente ao que pretendem os dogmáticos, suscetíveis de se tornarem manifestas por signos, então elas são, no fim das contas, "absolutamente não­manifestas" .

A ontologia como obra-prima sofística 59

Page 31: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Mais ainda, na única outra frase em que, ao que me consta, pa­rastatikos e menytikos figuram ao mesmo tempo, como na nossa, é o primeiro, parastatikos, que remete ao signo comemorativo, enquanto o segundo, menytikos, remete ao signo indicativo, sem que nenhum intérprete jamais tenha posto isto em dúvida. Trata-se (VIII, 202) da resposta de Sexto aos argumentos dogmáticos precedentes, em seu desejo de manter a diferença entre signo indicativo, mau, e signo co­memorativo, bom. Para o cético, nesse momento, o signo comemora­tivo é considerado em seu aspecto convencional: o som do sino indi­ca, nesse caso, tanto que o açougueiro passa ou que é preciso inundar as estradas (200, retomando 193); pelo contrário, o signo indicativo é um signo que deve evocar ek physeos a coisa significa da, de tal mo­do que, necessáriamente, só indica uma única coisa (201,202). Sexto pode, então, concluir: "Assim, o signo indicativo difere do signo co­memorativo, e não se deve inferir do primeiro ao segundo, na medida em que o primeiro deve servir para revelar l dei menytikon hyparkhein; Bury: indicate] apenas uma coisa, ao passo que o segundo pode com­binar-se [dynatai einai parastatikon; Bury: manifest] a várias coisas, e ter os sentidos que nós mesmos damos" (202). A tradução, no idio­ma de Sexto, da frase atribuída a Górgias por Sexto será então: "O discurso não é o signo comemorativo do de fora, é o de fora que se torna o signo indicativo do discurso"S8.

@Ou seja, o exato inverso da proposição de Mourelatos, para quem Sexto, interpretando Górgias, compreende que "o discurso não funciona como um signo indicativo do real, mas, no máximo, como um signo comemorativo". Ele propõe traduzir: "[ ... [ Não é verdade que o discurso seja algo que represente lrepresentsl uma realidade exterior; é, antes, a realidade exterior que vem anunciar [comes to foretokenl o discurso" (M2, p. 161). Note-se que já há torção e até mesmo dis­cordância entre o sentido que Mourelatos atribui à frase e a tradução que dela propõe. Segundo o sentido, o discurso não é signo indicativo (parastatikos, repre­sentante) do fora, mas signo comemorativo; segundo a frase traduzida, o discurso não é signo indicativo do fora, mas é () fora (e não o discurso, como o pretende o sentido) que é signo comemorativo (do discurso, nesse caso, e não do fora, evi­dentemente). Essa inversão só valeria se as posições do signo c do significado fos­sem intercambiáveis, indiferentes, o que não seria o caso porque um é necessaria­mente manifesto e o outro não.

A compreensão de Mourelatos é claramente induzida pelo que precede ime­diatamente no tratado: "é do encontro com o sabor que nasce em nós o discurso que emitimos sobre essa qualidade, e da incidência da cor, o discurso sobre a cor". Apoiando-se nesse contexto, ele pode afirmar: "a maneira correta de interpretar

60 o efeito sofístico l

Não se deve temer ser explícito. Em "o discurso não é comemo­rativo do de fora", deve-se compreender que, segundo Górgias (con­trariamente, sem dúvida, ao que pensava Sexto, que admitia, como cé­tico, a validade e a utilidade dos signos comemorativos), o discurso

menytikon é a de tomá-lo como uma alusão à regularidade com a qual certos es­tímulos não-lingüísticos são acompanhados por certas respostas lingüísticas" (ibid., p. 161). Notemos entretanto que, para passar do behaviorismo lingüístico do Tra­tado (falar é responder aos estímulos perceptivos) ao behaviorismo retórico tira­do do Elogio de Helena (falar é induzir condutas em outrem), a distância é bas­tante longa. Pode-se duvidar que a doutrina do signo comemorativo baste para eliminá-la. Medir-se-á a dificuldade lendo de perto o parágrafo que segue a tradu­ção que Mourelatos acaba de dar da nossa famosa frase segundo a qual "é a rea­lidade exterior que vem anunciar o discurso":

Exemplos do tipo de aviso considerado são dados por Sexto na frase que precede sua observação conclusiva: sabores diferentes induzem respostas verbais diferentes; o mesmo ocorre com cores diferentes. A doutrina do signo comemo­rativo pode, então, se encaixar no resto de uma descrição da função da lingua­gem em termos de estímulo-resposta, de modo mais ou menos conforme às grandes linhas traçadas pelos behavioristas atuais. A história é tão familiar quanto sim­plista. Como ouvimos, repetidamente, nós mesmos e os outros falarem "doce!" após provar o mel, terminamos por esperar a presença do mel ao escutarmos "doce!". Aprendemos também que podemos instilar em outrem a expectativa de que haja mel apenas ao pronunciarmos: "doce!". E, assim que nos damos conta de que podemos manipular os outros ao pronunciarmos: "doce!", mesmo quan­do não houver mel ao alcance, já estamos além da invenção da linguagem; inven­tamos essa arte particular própria a Górgias, a arte retórica. (ihid., p. 162; tradu­ção e grifas meus).

É necessário constatar que se trata aí de dois behaviorismos inteiramente distintos; pode-se pensar que a linguagem foi estabelecida por qualquer nomoteta (descartando-se assim o espinhoso problema da passagem de "Yum!" ou "Yuk" a "sweet", depois a "honey", sem falar na diferença em relação a uma seqüência como "Humm!", "doce" e "mel") e acreditar, com um certo Platão, que a retóri­ca - sofística, em todo caso - apenas é, com efeito, uma prática das condutas. Há mesmo, afinal de contas, uma contradição entre esses dois behaviorismos, pois, se podemos emitir a palavra na ausência da coisa, como é necessário para a mani­pulação retórica, então é porque a palavra não é, pelo menos nem sempre nem ne­cessariamente, uma resposta ao estímulo que a coisa constitui. Para sair desse impasse, é preciso pura e simplesmente considerar o discurso duas vezes, de ma­neira radicalmente heterogênea: uma primeira vez, como resposta verbal a um estímulo exterior, na caixa preta de um homem-máquina; uma segunda vez, como invenção livre de um sujeito falante que se dirige a homens-máquinas para quem o discurso funciona como um estímulo exterior. Isso me parece um excesso de emendas, para uma interpretação cujo caráter fluente e "simplista" o próprio Mourelatos enfatiza.

A ontologia como obra-prima sofística 61

I I

j 1

Page 32: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

não serve para guardar na memória, para lembrar, uma afecção exte­rior à qual estaria, de maneira observável, constantemente ligado. Em "o de fora é indicativo do discurso", é preciso compreender que o de fora funciona como esses signos recusados por Sexto, e que servem para os dogmáticos deduzirem aquilo que, por natureza, escapa à nossa apreensão: por exemplo, a alma. O termo menytikos nos introduz, sem dúvida, segundo uma das etimologias mais verossímeis, no campo da mântica, o que se enquandra perfeitamente na doutrina do signo in­dicativo, em que os dogmáticos se comportam sempre apenas como adivinhos 59. Daí minha tradução de menyein por "revelar", que con­vém perfeitamente às outras ocorrências, já que Górgias se dedica a marcar, em cada etapa, o caráter incompreensível, impossível, quase mágico, do papel de instrumento de comunicação que se pretende atri­buir à linguagem60

"Não é o discurso que comemora o de fora, é o de fora que se torna revelador do discurso" . Essa frase me parece a melhor maneira de precisar a relação que se instaura entre discurso sofístico e mundo. Ela explicita o enunciado emblemático da discursividade sofística que construía o De M.X.G., "aquele que diz, diz um dizer", e desenvolve as modalidades da logologia. "Não é o discurso que comemora o de fora": o discurso não pode representar o real e não tem de fazê-lo, ele não ocupa o lugar de, não faz referência a, uma coisa ou uma idéia exteriores, estranhas a ele. Em suma, não estamos no regime parme­nídeo-aristotélico da comunicabilidade, que vai do co-pertencimento e da eclosão simultânea à adequação. "Mas é o de fora que se torna o

59 Mourelatos evoca (ibid., nota 61, p. 168), para servir de "paralelo" a 85, uma observação no final do livro V (104), em que Sexto "adapta sua crítica da reoria estóica dos signos para pôr à prova as pretensões da astrologia caldéia": "Do mesmo modo que, na medicina, observamos que uma ferida no coração é causa da morte, por não ter sido observada apenas em relação à morte de Díon, mas também à de Téon, de Sócrates e de muitos outros, o mesmo ocorre em astrolo­gia, se é crível que tal configuração das estrelas se mostre reveladora (menytikon) de tal tipo de vida, isso não deve certamente ter sido observado uma única vez para um único caso, mas freqüentemente para muito casos". Esse exemplo confirma ainda nosso ponto de vista: rrata-se de mântica, e de mântica na medida em que ela não sustenta a comparação com o signo comemorativo (em que menytikon­não se trata aqui de negá-lo - pode também servir para descrever, sobretudo quando se trata de evocar a pluralidade dos sentidos possíveis da comemoração).

60 Ver supra, nota 54.

62 o efeito sofístico

, revelador do discurso": se a relação de significação existe, é necessá­rio invertê-la. Proposição que, levando em conta todos os ensinamentos do tratado, eu articularia da seguinte maneira: o discurso faz ser, e é por isso que seu sentido só pode ser apreendido a posteriori, em vista do mundo que ele produziu.

Retomemos. Onto-logia: o discurso comemora o ser, tem por tarefa dizê-lo. Logologia: o discurso faz ser, o ser é um efeito de dizer. Em um caso, o de fora se impõe e impõe que se o diga; no outro, o discurso produz o de fora. Compreende-se que um desses efeitos-mundo possa ser o efeito retórico sobre o comportamento do ouvinte, mas esse é apenas um de seus efeitos possíveis. Se ainda encontramos a idéia de sedução, é com um aspecto ontológico a mais, que muda tudo e pode servir para definir a 10gologia: "Seria necessário ampliar a idéia de sedução", escreve Jean-François Lyotard, "[ ... ] Não é o destinatário que é seduzido pelo destinador. Este, o referente, o sentido, não se deixa seduzir menos do que o destinatário [ ... ],,61. O discurso sofístico não é apenas uma performance, no sentido epidítico do termo, é inteira­mente um performativo, no sentido austiniano do termo: "How to do things with words". Ele é demiúrgico, fabrica o mundo, faz com que advenha - e teremos, logo mais, a exata medida disso com a cidade e a política.

61 Le Différend, Paris, Minuit, 1983, §148. Estendo essa frase, magnífica, para além do gênero de discurso a que pertence; com efeito, trata-se, no contexto, apenas da maneira pela qual um gênero de discurso e o que nele está em jogo de­terminam os encadeamentos entre frases: "Um gênero de discurso exerce uma se­dução sobre um universo de frases".

A ontologia como obra-prima sofística 63

Page 33: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

lI. COMO A POLÍTICA É UMA QUESTÃO DE LOGOS

Desde Grote, que estigmatizou o artefato platônico perpetuado por seus colegas alemães, não se fala de "sofística" sem remorsos, sobretudo no que se refere à política: os sofistas, considerados caso a caso, tiveram, levando-se em conta todos os testemunhos, atitudes bem contraditórias. Por vezes supõe-se que a primeira geração, a de um Protágoras de Abdera (circa 490-421 a.c.), amigo de Péricles, legisla­dor de Tourioi e finalmente exilado por impiedade, foi composta por democratas e livre-pensadores, ao passo que a segunda, a de um Crítias, que pertenceu aos Trinta e se entendeu com Esparta para fazer da Ática um "deserto abandonado às ovelhas" (Filóstrato, Vidas dos sofistas, I, 16), não gostava mais dessa espécie de igualdade. Não é somente em lógica ou em ontologia que a sofística parece prezar a contradi­ção, mas igualmente no campo político e social: os sofistas habilmen­te conseguem aparecer, ao mesmo tempo, como os "novos sábios" que querem despedaçar as crenças dominantes e os valores tradicionais, e como os promotores de uma ortodoxia da cidade, adeptos das mais convencionais e estereotipadas condutas gnômicas, um verdadeiro "cle­ro estabelecido". 1

A dificuldade chega a seu ápice no caso Antifonte, em que as opções políticas fortaleceram dissimulações biográficas elaboradas pela doxografia e retrabalhadas pela crítica; na verdade, durante muito tempo se distinguiu - e às vezes ainda se distingue - Antifonte de Ramnunte, nascido por volta de 470, historicamente bem identifi­cado como o aristocrata oligarca condenado à morte em 411 por alta traição em conseqüência de seu envolvimento no caso dos Quatrocen­tos, logógrafo e orador ortodoxo cujo retrato elogioso é traçado por

1 George Grote, A History of Greece, Londres, Dent, 18501, 1906, VIII, p. 359, nota 2.

Como a política é uma questão de lagos 65

Page 34: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

i 11 I,

I Tucídides (VIII, 68; cf. Pseudo-Plutarco, Vida dos dez oradores, A' 1-11 e 22-24), e aquele que Hermógenes, apoiando-se em Dídimo de Alexandria, apresenta, por motivos estilísticos, como "o outro An­tifonte" (De ideis, 11, VII, p. 399, 18 Rabe), autor de um Peri aletheias e de um Peri homonoias, em quem a tradição posterior reconheceu um "Antifonte, o sofista", o único capaz de defender, como anarco-de­moera ta, a identidade de natureza entre Gregos e Bárbaros.

O paradoxo começa a se explicar quando aceitamos regredir, para aquém de nossas antíteses modernas (democracia/conservado­rismo, revolução/reação), à própria constituição da polis que marca o "milagre grego" do século V. Polis, logos, sofística: o caráter emi­nentemente político da sofística é, antes de tudo, um questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Pé­ricIes e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega - que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porquefalam (Política, I, 2,1353 a7-15), a mesma que Jacob Burck­hardt chamará de "o sistema mais tagarela de todos" - teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.

Pode-se verificar novamente a força da relação entre lagos e po­lítica na frase de Protágoras, a que coage Sócrates, como que enver­gonhado após sua interpretação relativista, a fazer a "apologia" de seu autor. Protágoras não quer apenas dizer que o fenômeno é somente como aparece, para quem ele aparece, homem ou porco, mas também' que não pode mais haver, conseqüentemente, qualquer distinção en­tre ser e parecer, opinião e verdade. Portanto, o sábio não estará no campo do verdadeiro, nem jamais fará alguém passar de uma opinião -* falsa a uma opinião verdadeira: mas saberá, como o médico por meio das drogas e o sofista, precisamente, por seus discursos, proceder ,a "inversões" ou "reversões", e fazer o outro passar de um estado me­nos bom a um estado melhor. É assim que "os oradores sábios e bons fazem com que, ao invés de coisas nocivas, sejam as coisas úteis às cidades que pareçam e sejam justas" (Teeteto, 167 c). Em perfeita consonância com o Elogio de Helena (14), o lagos dos sofistª~ nãoé_ um organon, _~_IB_ .. instr~mento ºeç~_~,§á-riº_ E<:l~a most!:ª!"_~u 9~X!!9.!l~~~ o que é:"mas-um phãrma~-º.n, umxemédio para o melh~ia..m_en!Qflas almas e das cidades - mesmo que ninguém possa, após Platão, esque-

66 o efeito sofístico

l

I l

cer que pharmakon significa, indissoluvelmente, veneno. Tal como o pretenso "niilismo" de Górgias, o que se denomina de o "relativism0" de Protágoras só tem sentido se for interpretado à luz da vida política associada à eloqüência, Como seu próprio fundamento.

Assim, em lugar da bivalência do verdadeiro e do falso, se insta ~ la uma problemática do valor; e não sob a forma de uma nova exclu­são entre bem e mal, mas, segundo a pluralidade inerente ao compa­rativo, como um cálculo do melhor, no sentido do "útil", e, mais exa­tamente, do "útil para". É a partir daí que se deve compreender, na frase sobre o homem-medida, o termo khremata que Protágoras uti­liza para designar justamente aquilo de que o homem é a medida. Khrema, da mesma família que khre, "é preciso, é necessário", e que khraamai, "desejar, sentir falta, utilizar-se de", se entende como liga­do a kheir, "a mão": designa, diferentemente dos pragmata ("as coi­sas" como resultado de uma ação, o estado de coisas) e dos anta ("as

~ coisas" na condição de estarem presentes, os entes), aquilo de que se necessita ou de que se utiliza - um caso, um acontecimento e, no plu­ral, as riquezas, o dinheiro. Essa palavra-chave da sofística inaugu­ra, face à economia eterna do ser, o desdobramento temporalizado do uso, da usura, do gasto: "Aquilo que alguém não utilizou nem uti­lizará (me ekhresato mede khresetai), quer seja seu ou não, isso não terá mais ou menos efeito" , diz, por exemplo, Antifonte, para conso­lar o avarento da fábula (87 B 54 D.K.) que, ao invés de "despejar o máximo possível" , como Cálicles em seus tonéis furados, enterrara seu tesouro (khremata, portanto) no jardim - e foi roubado. Poder-se-á, com Aristóteles, relacionar isso ao mau infinito da crematística, em que o dinheiro, apenas por sua circulação, produz dinheiro indepen­dentemente de qualquer necessidade, ou então ler aí o modelo de uma economia geral em que a acumulação e a troca dão lugar ao fluxo e ao que Bataille denomina de "consumação". Quer se trate de lagos ou de khremata, compreende-se, em todo caso, que a sofística esco~ lhe o tempo e seu curso contra o espaço e a presença.

Diante do cálculo do melhor, "a fronteira entre bem e mal se apa­ga: eis aí o sofista" (Nietzsche, Fragmentos póstumos, 87-88, 343ss.). Entretanto, Protágoras afirma ensinar a "virtude" (pelo menos é as­sim que se traduz comumente arete), apesar dos protestos de Sócrates no Protágoras ou no Górgias, que não pára de se insurgir contra tal pretensão, servindo-se de exemplos de pais e de estadistas célebres por

Como a política é lima questão de logos 67

Page 35: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

sua virtude, mas consternados com filhos e concidadãos pouco reco­mendáveis. O célebre mito do Protágoras parece dar crédito a essa vontade boa do sofista e dar a entender que a política digna desse nome, estabilizada sob a forma de cidade, depende da ética, já que não é concebida sem a participação de todos em ~idos e dik~, essas duas virtudes fundamentais que são "~" e "justiça" - como se traduz freqüentemente. Essa interpretação de um texto relevante de filosofia política, que oferece aos conservadores um valoroso Protágoras para compensar os insuportáveis Cálicles ou Trasímaco, merece, entretan­to, um sério reexame, a partir da letra do mito e do discurso corrido que o explicita (Protágoras, 320 c-328 di.

Sabe-se que Prometeu furta de Hefaístos e Atena, para reparar o desatino de Epimeteu, "a sabedoria da arte associada ao fogo", e que bastam esses dons para facultar aos homens "todas as facilidades para viver": podem não apenas construir casas, se vestir ou cultivar a ter­ra, mas também honrar os deuses e pronunciar palavras; eles buscam mesmo, face às agressões dos animais, "se agrupar"e "fundar cidades". Mas a arte política falta-lhes duplamente: para ganharem a guerra contra os animais e para pemanecerem juntos sem que as injustiças cometidas por uns contra os outros não os separem logo. Daí a inter­venção de Zeus, inquieto com nossa espécie em vias de extinção, que envia Hermes, portador de aidos e dike, "para que pertençam às ci­dades as estruturas e os laços de amizade próprios para reunir", com a missão de reparti-los por todos os homens e condenar à morte, como "doença da cidade", os incapazes de partilhar isso.

Ora, tomando os termos mais literalmente, aidos, a "vergonha", diz o sentimento do olhar e da espera de outrem, o respeito da opi­nião pública, e com isso o respeito de si mesmo; de igual modo, dike, antes de ser a "justiça", portanto o "processo" e o "castigo", designa a "regra", o "uso", tudo o que se pode "exibir" (deiknymi): a norma pública da conduta. Aidos é assim apenas a motivação de respeitar a dike, e a dike só tem força na medida em que cada um experimenta o aidos: não há, nessa combinação, respeito e norma, qualquer matéria de intenção ética, menos ainda de autonomia de um sujeito moral, mas trata-se exclusivamente das regras do jogo público, sempre mediati­zado pelo olhar de outrem. Além disso, esse jogo exige necessariamente a hipocrisia: quando Protágoras comenta o seu mito, ele tem o cuida­do de, reinterpretando assim a "doença" condenada por Zeus, ressal­tar enfaticamente que "todos os homens devem se dizer justos, quer

68 o efeito sofístico

sejam ou não e que aquele que não imita a justiça é um louco" (323 b). O mito não poderia ser, portanto, pura e simplesmente, o de uma fundação ética do político.

A rigor, o modelo da "excelência" (é a tradução mais literal de arete) política não é senão, mais uma vez, o próprio lagos. Seus en­sinamentos se confundem, desde o momento em que a criança come­ça a efetuar a convenção que são as palavras, depois, através da apren­dizagem da leitura, da escrita ou da música, até essas outras páginas de escrita que são as leis, cuja prestação de contas em fim de magis­tratura testemunha que elas foram bem recopiadas. "Buscar o profes­sor de virtude é como buscar quem ensine a hellenizein", conclui Pro­tágoras (327 e-328 a): politicidade e linguagem ou, mais exatamente, língua grega, estão assim imbricadas. É o que um Élio Aristides, so­fista da segunda sofística, destacará vigorosamente, reescrevendo o mito sete séculos mais tarde para substituir aidos e dike só pela "virtude retórica" (11 Behr, 394-399). Se os homens de Prometeu tinham meios "de articular o som e as palavras" (Protágoras, 322 a), é claro que nem por isso conheciam o grego ou a arte de bem falar: o mito de Protágo­ras, relido na perspectiva de sua explicitação por Protágoras no Protá­goras de Platão, faz da instituição do político ao menos um analogon da excelência discursiva.

O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a vir­tude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente "me­Ihores" , sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, en­

,fim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que demo­cracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que

:subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística - no final das contas, espantosamente moderna - de desunir ética e política, asse­gurando, simultaneamente, a democracia.

O lagos produz a criação contínua da cidade, porque é o arte­são dessa homonoia (literalmente: "identidade de espírito, de sentimen­to"), a que ao menos Górgias e Antifonte consagraram um tratado.

Como a política é uma questão de logos 69

Page 36: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Na República de Platão, em que política e ética se imbricam, subme­tidas à mesma idéia do Bem, a homonoia determinará uma das qua­tro virtudes características da alma do indivíduo bem como dessa alma ampliada que é a cidade: ela se definirá como sentido da hierarquia (IV, 432 a) e, com a justiça, virtude da estrutura, ela ordenará o fixismo das diferenças funcionais no interior de uma unidade orgânica. Ao contrário, um consenso de tipo sofístico é o resultado sempre precá­rio de uma operação retórica de persuasão, que produz, em cada oca­sião (é o kairos, esse belo jovem careca atrás, e que deve ser captura­do pelo seu topete da frente), uma unidade instantânea inteiramente feita de dissensos, de diferenças. Esse substituto plural e temporalizado da identidade ontológica estende o modelo da cidade (homonoia: "con­senso"), não apenas à relação das cidades entre si (homonoia: "con­córdia"), mas também à maneira pela qual cada indivíduo, por não estar "em guerra consigo mesmo", se relaciona consigo (homonoia: "acordo de si consigo", cf. Estobeu, 11, 33,15 = 87 B 44a D.K.): é a unidade do "com" que se torna a matriz da unicidade.

Os retalhos do Peri homonoias, Sobre o consenso (sobre a con­córdia, sobre o acordo, como se queira) atribuídos a Antifonte são por demais fragmentários para nos permitir avançar muito: eles nos levam, freqüentemente na forma de provérbio ou de fábula (a do avarento, por exemplo, ver supra), a considerar o tempo e o uso na efetividade das condutas, mas o termo homonoia só aparece para nós no título.

Por outro lado, seu Sobre a verdade, que certos fragmentos, re­centemente descobertos, obrigam a repensar, constitui o mais longo texto autêntico que chegou até nós sobre a política de um sofista. Objeto de interpretações proliferantes (a propósito desse texto, falou­se de Hobbes, Rousseau, Kant, Sade), ele instaura, sem dúvida pela primeira vez, a oposição entre natureza e lei, reempregada em segui­da, com valorizações contraditórias, por Sócrates e pelo Cálicles do Górgias, de Platão, ou pelo Trasímaco da República. Elas aí se distin­guem não por sua idéia, mas por seu uso, sua utilização, sua utilida­de, e, em particular, pelas conseqüências acarretadas por sua trans­gressão. A transgressão da necessidade natural produz um dano "se­gundo a verdade" (di'aletheian, fr. B, col. 11 e IlI): como testemunha­do pela etimologização, não se poderia "escapar" (lathei, de lanthano, "estar escondido", ibid., cal. II) à natureza, de tal modo que o castigo sempre ocorre. Ao contrário, a transgressão de uma regra convencio­nal só produz efeito "segundo a opinião", logo radicalmente diferen-

70 o efeito sofístico l

te quando se opera sob o olhar do público ou no secreto do privado. Com esse secreto se opera evidentemente um retorno ao natural, mas a natureza não tem, então, mais nada de primeiro: é uma simples saí­da - que Antifonte descreve com acentos às vezes sadeanos - do im­perialismo dessa legalidade que pretende coagir até mesmo os nossos sentidos e prescrever, por exemplo, aos olhos "o que devem ver e o que não devem ver" (ibid., col. 11 e I1I). Ora, essas mesmas leis que de­finem a cidade em que se vive são "o resultado de um acordo" ou "de um consenso" (homologetenta, ibid., cal. I e 11): esse é o papel da homonoia, em toda sua força de novidade e de ruptura em relação à ordem natural. Antifonte chega a inventar um neologismo para dizer que, de saída, o homem não é mais ser de natureza, mas ser de cultu­ra: "cidadaniza-se" (politeuetai tis, ibid., col. I), dito de outro modo, se está no "existe" o âmbito político. Por conseguinte, o homem-ci­dadão está, de saída, confrontado às leis, embora possa ter interesse, mais uma vez, em entrar o menos possível em atrito com elas, sobre­tudo se são impotentes para defendê-lo do encadeamento das violên­cias. Reencontra-se assim, de uma maneira que autoriza a crítica da lei após a constatação maciça de sua efetividade, essa substituição do físico pelo político característica da sofística, e a definição da legali­dade política como partilha, acordo, e até mesmo - é o sentido pró­prio de homologia - acordo discursivo.

Antifonte, no muito controverso fragmento A, é sem dúvida o inventor de um outro neologismo: "barbarizar". "As leis [?] daqueles que moram longe, não as conhecemos nem as veneramos. Nisso, de fato, nos tornamos bárbaros (bebarbarometha, fr. A, cal. 11, 9s.) uns em relação aos outros, ao passo que, por natureza em todo caso, to­dos, em tudo, da mesma maneira, somos naturalmente feitos para ser, ao mesmo tempo, bárbaros e gregos": essa simples frase contribuiu para fazer de Antifonte um partidário subversivo e moderno da igualdade absoluta entre todos os homens. Trata-se, em todo caso, de substituir o fundamento natural da diferença grego/bárbaro, invalidado pela universalidade dos caracteres de espécie ("respiramos o ar, todos, atra­vés da boca e das narinas"), por um fundamento cultural, e mesmo político: a diferença na maneira de se relacionar com a lei. Sabe-se que "barbarizar" (é o traço incontornável do etnocentrismo) significará, geralmente, mais tarde, "falar de maneira ininteligível", "fazer bar­barismos": certamente deve-se compreender que, para Antifonte, "bar­barizamos" e perdemos nossa identidade de gregos, quando nos rela-

Como a política é uma questão de logos 71

Page 37: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

cionamos com a lei de maneira puramente idiossincrática, renuncian­do à inteligibilidade e à universalidade, tanto as do Iogas quanto as da homologia. O que confirma, dentre outras coisas, a aproximação com textos da esfera de influência sofística, tal como Orestes, de Eurí­pides ("barbarizar" é recusar, com Orestes, a "lei comum" dos gre­gos e recair, assim, na bestialidade, cf. vv. 485-525), ou o diálogo en­tre Sócrates e Hípias relatado por Xenofonte (Memoráveis, IV, 4,16), em que Sócrates distingue a Grécia do resto do mundo porque uma lei prescreve a seus cidadãos "prestar o juramente de homonaia". Se, como Bignone, quiséssemos ler Kant em Antifonte, seria, então, não o da autonomia da consciência moral, mas, antes, o da típica da ra­zão pura prática, que recomenda agir como se a lei fosse universal, tão universal quanto uma lei natural.

Com a condição de ter sempre, sob os olhos, esse "como se" que se relaciona à fabricação do universal e do legal. Além dos motivos históricos e filológicos, essa é, sem dúvida, a melhor razão para crer que os dois Antifonte são um só. Pois, nas Tetralagias, assiste-se, por meio de casos de escola, à fabricação da lei. Assim, na segunda Te­tralogia, por exemplo, um jovem matou seu colega exercitando-se com a lança: um especialista em direito ateniense como Glotz não com­preende decididamente por que Antifonte não invoca a lei ateniense que prevê a absolvição nesse caso preciso de assassinato involuntário. É que tudo acontece, antes, como se a lei, e não apenas a jurisprudên­cia, devesse ser inventada, ao mesmo tempo que o sentido e a denota­ção dos conceitos que permitem definir e qualificar um estado de causa. Assim, o pai daquele que arremessou a lança estipula que seu filbo agiu voluntariamente ao lançar, mas sofreu involuntariamente, estando impedido de alcançar seu objetivo: o responsável ativo pelo assassi­nato involuntário passa a ser a própria vítima, cuja falta (hamartia) com relação a si mesmo já foi punida com a morte (Tetralogias, IlI,~, 7-8). Naminon e dikaion, o que é conforme à lei, ao direito e à justi­ça, são, e apenas são, o efeito de uma convenção cujo derradeiro teor será dado pelo julgamento, até o próximo processo. Para surpresa dos especialistas em direito ateniense, mas não dos leitores da Retó­rica de Aristóteles, o orador apresenta apenas a elaboração que con­vém ao kairos: ele pode apelar para o jus sacrum, miasma e vingança para restabelecer a pureza, ou para o jus civile, que ele pode, nova­mente, acionar em um sentido ou em outro (" A lei que serve para me acusar me absolve", ibid., IV,~, 5). Isso será tematizado por Aristóteles,

72 o efeito sofístico l

sem qualquer disposição afetiva, com O título de "prova não-técnica" (atekhnos pistis), no capítulo 15 do primeiro livro de sua Retórica: as leis, como os testemunhos, as convenções, as declarações em interro­gatório e os juramentos, é preciso saber utilizá-los, determinar "seu espírito"; pode-se e deve-se jogar a lei escrita contra a lei comum, o legal contra o equitativo, um texto contra outro, uma intepretação con­tra outra - em suma, trata-se de discurso.

Compreende-se, com isso, toda a força sofística do modelo de retórica judiciária que são as Tetralagias, essas séries de quatro dis­cursos: uma acusação, uma defesa, uma nova acusação que leva em conta a primeira defesa, em seguida uma última defesa, cada uma delas propondo sua narrativa e sua versão de uma mesma ação segundo as exigências instantâneas da tática. A identidade dos indivíduos e das condutas se encontra assim difratada, perfeita encenação do fato de que a '''verdade'' sempre é segunda. Assim como o papiro desdobra a imediatidade insuperável do nômico, face à qual a natureza não é mais do que secundariamente primeira, também as Tetralagias nos imergem no eikas, o "provável", o "verossímil", de tal modo que o verdadeiro não possa mais aparecer senão como uma torção do eikos. De um la­do, então, o eikas, bem como o nomos, são pura e simplesmente -quer dizer, magistralmente - o produto de um discurso que conse­gue obter o consentimento para aquilo que ele apresenta, construin­do, assim, o espaço público. Por outro lado, a aletheia não existe mais do que a physis: lógica ou física, elas só podem aparecer como um vá­cuo, uma escapada ou uma escapatória, um secreto, do qual, por de­finição, nenhuma prova pública jamais será dada definitivamente.

É, então, por sólidas razões teóricas, ligadas à sofística como lan­ce inicial do político e à especificação do convencional e do legal co­mo lógico ou lingüístico, que um mesmo Antifonte é, pelo menos, sus­cetível de ser ao mesmo tempo orador e sofista, sem que se tenha de buscar na história o álibi de um desdobramento.

A temática sofística é o melhor fio condutor para compreender a clivagem, que esclarece bem antagonismos contemporâneos, entre as duas filosofias políticas principais da Antigüidade clássica: a de Platão e a de Aristóteles. Hannah Arendt é particularmente sensível a isso, ao tentar, para se diferenciar do platonismo trágico de um Heidegger, caracterizar à sua maneira o bios politikos e a "solução dos gregos" para a fragilidade dos problemas humanos: é fácil cons-

Como a política é uma questão de logos 73

i

J

Page 38: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tatar que a theoria platônica, e a submissão absoluta do político ao filosófico que ela implica, é inteiramente elaborada contra uma polí­tica de tipo sofístico e sua prática ateniense; ao contrário, um certo número de princípios fundamentais da Política de Aristóteles consti­tui de facto uma reabilitação anti platônica dos temas tradicionais da sofística. Recapitular-se-ão facilmente os traços por meio dos quais um certo Aristóteles, para não ser platônico, se faz sofista: a cidade, que implica distinguir o econômico do político, o privado do públi­co, define-se como uma "pluralidade de cidadãos" cuja diversidade importa manter, a "sinfonia", distante de uma unidade "homófona" de tipo orgânico ou hierárquico que faz desaparecer a dimensão es­pecificamente política. É por isso que os defeitos ou as anomalias dos indivíduos se tornam - como no caso do público que julga um espe­táculo ou por ocasião desses banquetes em que cada um traz o seu quinhão - qualidades suplementares para a mistura, e a democracia é o único regime que recebe, simplesmente, o nome de "constituição" (cf. Política lI, 5; III, 1, 4, 11; IV, 2). Os cidadãos, armados desssa virtude crítica e doxástica que é a "prudência", são assim formados, na ágora, com Eurípides, Isócrates ou Tucídides, na escola dos sofis­tas (dentre os quais se poderia colocar, com razão, um certo Sócrates), em que aprendem o espaço das aparências, a pluralidade pugnaz dos discursos, a troca e a crítica dos pontos de vista - aquilo a que Arendt dá o nome de julgamento.

É aí que a distância em relação à aurora heideggeriana adquire todo o seu impacto: na Grécia filosofante da aletheia, a invenção da cidade é não-política, porque o político na condição de político não tem nada de político, mas é sempre subordinado ao Ser, ao Verdadei­ro, ao Bem. Mas, em uma Grécia filosofistizante em que a ontologia é, de saída, revertida em logologia, mantém-se, com o lagos, a ima­nência mesma do político como sua condição de possibilidade, em uma percepção necessariamente mais aristotélico-arendtiana do que pla­tônico-heideggeriana. "Os homens vivem juntos sob o modo da fala"2: a especificidade do político é a competição dos logoi normatizada por aquilo que, após Kant, pode ser denominado de gosto, que "corteja o consentimento do outro" , no interior de uma condição plural. É a razão

2 "Philosophie et politique", Les Cahiers du GRIPH, Hannah Arendt, 33 (primavera 86), especialmente pp. 89-90; em seguida "Vérité et politique", em La crise de la culture, Paris, Gallimard, 1972, p. 330.

74 o efeito sofístico

pela qual, enfatiza Arendt, fazer "filosofia política", ou seja, "consi­derar a política na perspectiva da verdade, significa tomar pé fora do campo político". Sob a égide da primeira constatação - politeuetai tis, "cidadaniza-se" - formulada por Antifonte, a fabricação do le­gal, a consistência lógico-retórica do liame social e a autonomia do po­lítico doravante passam a se imbricar.

Como a política é uma questão de logos 75

Page 39: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

m. DAS PLANTAS QUE FALAM

COMO ARISTÓTELES DEVOLVEU A GÓRGIAS O QUE GÓRGIAS FEZ A PARMÊNIDES

O troco da bofetada que o Tratado de Górgias representa para o Poema de Parmênides é perfeitamente localizável: trata-se da impos­sível demonstração do princípio de não-contradição operada por Aris­tóteles no início de Gama IV. É então que os sofistas conseqüentes tornam-se plantas.

"É simplesmente quando imaginamos que Aristóteles quer dizer algo que nos inquietamos com o que ele circunscreve. O que ele pren­de em suas malhas, em sua rede, o que retira, o que manipula, de que se ocupa, com quem briga, o que defende, o que ele trabalha, o que persegue?"l. Essa frase de Jacques Lacao, banal, tagarela, não é nem banal nem tagarela, ou, no mínimo, não no mesmo sentido. Com efei­to, ela toca no centro do alvo que é o livro Gama da Metafísica, de Aristóteles.

Inicialmente, trata-se de "querer dizer algo". Querer dizer algo, legein ti, semainein ti: eis a decisão que Aristóteles exige de todo ho­mem, se ele quer ser um homem. É essa decisão de sentido que cons­titui o cerne do que costumamos chamar de princípio de não-contra­dição. Lacan reflete, portanto, a exigência Aristotélica, aplicando-a ao próprio Aristóteles como objeto hermenêutica.

Em segundo lugar, o sentido só ganha sentido em função do adversário, em termos de manipulação e de objetivo. Ora, o livro Gama, aquele que, como se sabe, trata da ciência do ser enquanto ser e de seu primeiro princípio, procede a partir de seu quarto capítulo - e há oito deles - a uma série de refutações, tanto para estabelecer

1 Jacques Lacan, Le séminaire, livre Xx. Encare, Paris, Seuil, 1975, p. 51.

Das plantas que falam 77

Page 40: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o princípio quanto para proibir o discurso de Protágoras. Mas essas duas unidades - ontológica, de um lado; dialética, de outro - são comumente percebidas como apenas justapostas; inversamente, a lei­tura que operamos leva em consideração a estratégia de Aristóteles e propõe articular metafísica e desterro da sofística.

Ao longo do século XX, essa justaposição - ou melhor, essa de­sarticulação - foi tomando a forma de uma alternativa: na medida em que lógicos e filósofos analíticos, por um lado, filósofos e historia­dores da filosofia, por outro, se percebem seguindo os passos de Aris­tóteles, atêm-se quer à validade das demonstrações do princípio, quer à problemática da ciência do ser enquanto ser.

Desde 1910, Lukasiewicz inaugurou uma tradição, atualmente em vigor para além da Mancha e do Atlântico, que, reverenciando Aristóteles como o inventor da lógica, apóia-se em progressos da dis­ciplina para cobrar dele a primazia atribuída ao princípio de não-con­tradição, o rigor de suas demonstrações, mesmo as refutativas, e até de suas formulações. É evidente que, se há progresso, é em relação à insuficiência inicial: a refutação aristotélica, julgada pelos parâmetros do cálculo proposicional e da escrita simbólica, revela-se inevitavel­mente caduca.

Lukasiewicz2, lendo Gama após ter lido Boole, de Morgan, Peir­ce, Frege, Peano e Russell, localiza em seu percurso três tipos de formu­lação, que determinam três princípios. ~'Ontológico" (é o enunciado explicitamente proposto como enunciado do princípio por Aristóteles, o enunciado canônico): "impossível que o mesmo pertença e não per­tença ao mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação" (3, 1005 b19-20), que ele transcreve em termos de "objeto" (Gegenstand) e de "ca­racterística" ou de "propriedade" (Merkmal). "Lógico": "o mais cer­to de todos os (princípios) é que os enunciados contraditórios (an­tikeimenai) não são verdadeiros ao mesmo tempo" (6, 1011 b13-14)3,

2 Jan Lukasiewicz, "O zasadzie sprzecznosci u Arystotelesa (Ueber den Satz des Widerspruchs bei Aristoteles)", Bulletin lnternational de l'Académie des Scien­ces de Cracovie, Classe d'hisroire et de philosophie, 1910, pp. 15-38.

3 Esta é a tradução da tradução de Lukasiewicz, mas o grego fala aqui da mais certa das "crenças" (doxai), e a formulação é assim psicologicamente con­taminada. Seria portanto necessário, para a pureza de sua demonstração, que Lukasiewicz escolhesse a frase seguinte: "Impossível que a contradição (antipha­sis) seja verdadeira ao mesmo tempo da mesma coisa".

78 O efeito sofístico

que ele transcreve em termos de "proposição" e de "verdade". Psico­lógico, enfim: "ninguém pode acreditar que o mesmo possa ao mes­mo tempo ser e não-ser" (3, 1005 b23-24), que ele transcreve em ter­mos de "crença" e de "consciência ".

Lukasiewicz invalida, então, sucessivamente as provas que Aris­tóteles lhe parece propor como apoio a essas três candidaturas. Sem entrar no detalhe da sua crítica, que implica uma leitura, ela mesma eminentemente criticável, de um certo número de passagens, podemos nos deter em suas conclusões. Em primeiro lugar, sobre o princípio psicológico, ele propõe, lembrando as observações de Husserl4, que é uma lei simplesmente empírica, mas que ainda não foi provada em­piricamente e que, sem dúvida, levando-se em conta os contra-exem­plos fornecidos pela e na história da filosofia, não pode sê-lo.

A lei lógica e a lei ontológica, embora tenham uma "significa­ção" diferente, podem ser consideradas mesmo assim como "equiva­lentes" devido ao próprio fato da correspondência, palavra por pala­vra, das proposições e das objetividades implicadas pela definição aristotélica da verdade ("Enunciar que o ente existe e que o não-ente não existe é verdadeiro", 7, 1011 b26-27, constituiria uma versão mais exata da tradicional adequatio rei et intellectus); mas nenhuma delas é o melhor candidato possível ao papel de primeiro princípio. O prin­cípio de identidade, que não comporta negação nem conjunção, é, com efeito, bem melhor; mas ainda melhor, ou seja, efetivamente (talvez se deva dizer pragmaticamente) verdadeira e demonstrada por ela mes­ma, uma proposição do tipo: "designo como verdadeira uma propo­sição afirmativa que atribui a um objeto a característica que lhe per­tence". Finalmente, em sua generalidade ontológica, o princípio não tem qualquer valor lógico: já que há objetos contraditórios (como o maior número primo), ou que acabam por se mostrar como tais, aos fundamentos das matemáticas, por exemplo, ele é mesmo "com mui­ta certeza falso" (p. 35). Deve-se, então, considerá-lo apenas quer como uma constatação empírica, cuja generalização é da ordem da suposi­ção in demonstrável: "ele quer simplesmente dizer que, de fato, não conhecemos um só caso de contradição existindo na realidade"; quer, e isso não é exclusivo, como um princípio prático-ético: "nossa única arma contra o erro e a mentira" , e portanto "um signo da imperfei­ção moral e intelectual do homem".

4 Husser!, Logische Untersuchungen, I, Halle, 1900, p. 82.

Das plantas que falam 79

Page 41: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Assim, é para preservar a ciência nascente que Aristóteles, tal­vez sentindo as fraquezas de sua argumentação, deverá ter proclama­do seu princípio "como um axioma último", "como um dogma intan­gível" (p. 37). Sua grandiosa desonestidade, da qual não mais preci­samos, terá consistido em fazer passar o contingente por necessário e o empírico por lógico ou transcendental.

Esse tipo de leitura e esse gênero de crítica caracterizam, sem ambigüidade, aquele que Heidegger denomina "o homem ligado ao modo de pensamento científico,,5 Reencontramo-los, mutatis mutan­dis, em um Benveniste, por exemplo, a propósito das categorias6, em que o lingüista pretende mostrar que Aristóteles faz passar "categorias da língua", e mesmo as categorias de uma língua muito singular, a lín­gua grega, por "categorias de pensamento". "Conseqüentemente, aqui­lo que Aristóteles nos dá como um quadro de condições gerais e per­manentes não passa de uma projeção conceitual de um estado ligüístico dado" (p. 70). É dessa vez "inconscientemente" e "sem querer" que Aristóteles toma, e faz com que se tome, o acidente pela lei.

As decepções científicas do lingüista e do lógico são passíveis de um mesmo tratamento filosófico. Jacques Derrida prescreve esse com­posto magistral para Benveniste em "O suplemento de cópula"7: é o remédio do "passo atrás" que suscita a interrogação sobre a catego­ria de categoria e o regresso, a montante da separação entre língua e pensamento, em direção ao ser. "O que não se interroga em nenhum momento é essa categoria comum de categoria, é essa categorialidade em geral a partir da qual se pode dissociar as categorias de língua das categorias de pensamento" (p. 218). Ora, com a categoria de catego­ria, "a língua é interrogada no lugar em que a significação 'ser' se produz" (p. 219): "sem a transcategorialidade do 'ser' que 'envolve tudo', a passagem entre categorias de língua e categorias de pensamen­to não teria sido possível, nem em um sentido nem em outro, nem pa­ra Aristóteles nem para Benveniste" (p. 236).

5 Martin Heidegger, "O que é e como se determina a <I>YIIE", trad. F. Fé­dier, in Questions lI, Paris, Gallimard, 1968, p. 187.

6 Émile Benveniste, "Catégories de pensée et catégories de langue" (1958), republicado em Problemes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, pp. 63-74.

7 Jacques Derrida, "Le supplément de copule" (1971), republicado em Mar­ges de Ia philosophie, Paris, Minuit, 1972, pp. 209-46.

80 o efeito sofístico

Assim como é impertinente situar-se no âmbito da cisão língua/ pensamento quando Aristóteles tenta "reconduzir a análise" à sua "raiz comum", também "o velho debate em que nos perguntamos se o prin­cípio de contradição tem em Aristóteles uma significação 'ontológica' ou 'lógica' é mal conduzido, porque não há, para Aristóteles, nem 'ontologia' nem 'lógica'. Tanto uma quanto a outra só brotam no ter­reno da filosofia aristotélica,,8. Acrescentar-se-á "nem psicológica" , recusando - se dermos crédito ao próprio Gama - que o objeto, a proposição e a consciência, que, sem dúvida, nesses termos, não de­vem coincidir, constituam uma tradução adequada. O passo atrás con­siste, ainda aqui, em regressar à ontologia, não como região do saber, mas como lugar em que o ser se diz: "o princípio de contradição tem, antes, uma significação 'ontológica' porque é uma lei fundamental do logos, um princípio 'lógico'" (ibidem). Assim como o problema colo­cado por Benveniste permite passar com Aristóteles por trás de Aris­tóteles, para avaliar melhor a ontologia, a explanação de Lukasiewicz deixa entrever a posição historiaI do estagirita. Assim a objeção, defi­nitiva para Lukasiewicz, à formulação ontológica do princípio - "Ele (o princípio) poderia ... apenas ser verdadeiro, e então seria também demonstrado formalmente, se a palavra 'objeto' devesse designar uni­camente objetos isentos de contradição" (op. cit., p. 35) - se redu­plica na interpretação heideggeriana, "a saber, que o princípio de (a) contradição (a evitar) afirma para o sujeito do ente enquanto tal nada menos do que isto: a essência do ente consiste na constante ausência de qualquer contradição"9.

A grandeza de Aristóteles não reside, então, no fato de ter dese­jado coroar o edifício de sua lógica inteiramente nova e proteger a ciência, em seus primeiros vôos, com um princípio tão insuficiente e incompleto, mas também tão perfectível, quanto os Elementos de Euclides, mas no fato de ter conseguido estabelecer a metafísica oci­dental como lógica, penetrando em um espaço para além do qual "desde então nenhum passo novo foi efetuado" (ibidem, p. 469). En­tre a frase inicial de Gama - "Há uma ciência que considera o ente

8 Martia Heidegger, lntroduction à Ia métaphysique, trad. G. Kahn, Paris, Gallimard, 1967, p. 191. [Edição brasileira: Introdução à metafísica, trad. E.C. Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, p. 207.]

9 M. Heidegger, Nietzsche, I, trad. P. Klossowski, Paris, Gallimard, 1971, p.468.

Das plantas que falam 81

1 ~

Page 42: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

enquanto ente" (1, 1003 a21) - e o enunciado do princípio, no ca­pítulo 3, há, nessa perspectiva, uma relação de sinonímia.

Assim o livro Gama da Metafísica e a reflexão sobre o princípio de não-contradição encontram-se, atualmente, contidos em duas pai­sagens intelectuais antípodas, que podem ser caracterizadas da seguin­te maneira:

- O lógico, ou o logicista, faz sua interpretação depender da segunda parte do livro, lida como uma série de demonstrações do princípio; o pensador, ou o metafísico, focaliza a sua interpretação nos três primeiros capítulos, em que decifra o projeto da própria filosofia, repleto das questões essenciais da metafísica como ooto­teologia.

- O primeiro se interessa a parte post, na intemporalidade do "ainda não", pela retidão dos enunciados e das deduções, para rees­crevê-los, reorganizá-los e retificá-los: é todo o trabalho de Kirwan10,

por exemplo; o outro, na temporalidade do "sempre já" e às vezes do "já não mais", dá ao gesto aristotélico sua dimensão insuperável.

- Avalia-se a distância quando, a propósito de uma mesma fra­se grega - o enunciado do princípio (traduzido, lembremo-lo, em um português inexoravelmente tosco, por "impossível que o mesmo si­multaneamente pertença e não pertença ao mesmo e segundo o mes­mo") -, o simbolismo, atualmente anglo-saxão, transcreve: O ((x) (F) - (Fx & - Fx))l1, formulando assim, a propósito de uma variável, uma relação entre modalidade, negação, conjunção e função pre­dicativa. Já o alemão de Heidegger, desarticulando o grego para apa­gar da frase qualquer sintaxe formalizável (notar-se-á que o dativo não é analisado gramaticalmente como o do sujeito de inerência, a que o predicado pertence, mas, de modo mais surpreendente, como sujeito da impossibilidade da contradição, "o mesmo" só se referin­do sempre ao mesmo), visa ao desvelamento constitutivo da aletheia: Dass niimlich dasselbe zugleich anwese sowohl ais auch nicht anwese, das ist unmoglich bei demselben und in der Hinsicht auf dasselbe, ["Que, com efeito, a mesma coisa se torne presente ao mesmo tempo

10 Aristotle's Metaphysics, Books r,!:::.., and E, traduzido, com notas, por Christopher Kirwan, Oxford, Clarendon Press, 1971.

11 Por exemplo, H.W. Noonan, "An argument of Aristotle on non-con­tradiction", in Analysis 37,1976-1977, pp. 163-9 (p. 164).

82 o efeito sofístico

em que ela é ausente, eis o que é impossível para a mesma coisa e em relação a essa mesma coisa"jI2.

- A segunda perspectiva tem a vantagem filosófica de conseguir situar a primeira como efeito moderno da mutação do conceito de verdade; mas é claro que a primeira tem o poder científico de negar à segunda qualquer interesse como verborragia.

o ESQUECIMENTO DA REFUTAÇÃO E O CONFISCO DO SENTIDO

Se ousamos rebater essas duas perspectivas uma sobre a outra, sem levar em conta a incomensurabilidade de suas questões, é por­que elas têm o notável ponto comum de ignorar, por omissão ou denegação, a articulação refutativa das duas partes de Gama; arti­culação que constitui, no entanto, a passagem que Aristóteles não pode evitar, tão logo enunciado o princípio. O fato de que o autor, com efeito, constitui, sob a imagem de um adversário, o destinatário de suas demonstrações, dando, assim, a seu texto um caráter aberta­mente agonístico, não entra em nenhuma das duas perspectivas que acabamos de descrever. A conseqüência é a de que ambas são, defi­nitivamente e apesar das aparências, interpreteções internas. Isso não significa que elas se movam exclusivamente no interior do texto con­siderado, sem apelar para nenhum outro contexto nem para nenhum outro conceito: para reler ou reescrever Aristóteles, elas devem com­preendê-lo melhor do que ele compreendeu a si mesmo. Mas isso su­põe, de modo mais radical, que elas sejam, cada uma a seu modo, subjugadas por Aristóteles. Quer se tenha em vista a validade das inferências ou o caráter apofântico da aletheia, trata -se sempre de ler Aristóteles em seu "fio reto", ou, para mudar de metáfora, com a decisão, consciente ou não, de estar em seu campo, perto dele, como ele, seu semelhante: um animal dotado de logos, e de lagos tal como ele o define: de lagos semantikos.

Leituras de herdeiros: avalia-se o peso da filiação pelo vigor do julgamento de valor que ela suscita. Para Lukasiewicz, como vimos,

12 Martin Heidegger, Nietzsche, I, p. 597 do alemão (Neske, 1961), e p. 464 da tradução francesa, cito

Das plantas que falam 83

Page 43: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o princípio só é justificado pelo seu papel de anteparo, para evitar aqueles que (se) enganam, fazendo ressoar o agon grego até mesmo diante dos juízes da Polônia ("se existir, portanto, uma só testemunha que, sem recuar diante de um perjúrio, culpe de assassinato o acusa­do, então sua falsa declaração não pode de maneira alguma ser refu­tada e o acusado está irremediavelmente perdido", op. cit., p. 37). O julgamento de Heidegger é, na mesma medida de sua intepretação, muito mais fundamental: para além dos critérios morais, culturais ou políticos, trata-se da "responsabilidade do pensamento". O homem que se mantém na contradição se exclui da sua própria essência e sua inconseqüência é, se não um mal, ao menos uma ameaça radical:

"Ao sabor das afirmações contraditórias que o ho­mem é capaz de produzir, bem à vontade, acerca de uma única e mesma coisa, ele sai de sua própria essência para passar à não-essência: ele rompe qualquer relação ao ente enquanto tal.

Essa queda na não-essência de si mesmo tem como assustador o fato de ocorrer regularmente e só se mostrar sob a aparência do puramente inofensivo sem que os negó­cios e os prazeres sejam de forma alguma afetados, e que o modo pelo qual pensamos não pareça absolutamente ter importância; até que edoda a catástrofe - em tal dia que espere talvez há muitos séculos antes de sair da noite feita de crescente inconsciente." 13

Quem sabe, com efeito, não há, desde Aristóteles, outro parti­do a tomar senão o partido aristotélico: com o livro Gama da Me­tafísica poderia ser que Aristóteles tivesse investido todo o campo da filosofia, da racionalidade, da humanidade. Pois é muito provavel­mente da natureza do sentido o fato de ser totalitário, quer dizer, de reduzir a si mesmo tudo o que não é ele. Como observa Greimas, na introdução de Du sens14, com uma feição filosófica de um Raymond Devas:

13 Martin Heidegger, Nietzsche, I, op. cit., trad. p. 468.

14 AIgirdas Julien Greimas, Du sens, Essais sémiotiques, Paris, Seuil, 1970, p.7.

84 o efeito sofístico

"É extremamente difícil falar do sentido e dizer qual­quer coisa de sensato a seu respeito. Para fazê-lo convenien­temente, o único meio seria construir uma linguagem que não significasse nada: estabelecer-se-ia, assim, uma distân­cia objetivante que permitisse fazer discursos desprovidos de sentido sobre discursos sensatos ... Infelizmente, a expres­são 'desprovido de sentido' não é desprovida de sentido."

Eis aí "o problema mais geral da lógica do sentido", tal como estabelecida por Gilles Deleuze: "O sentido e o não-sentido têm uma relação que não pode ser decalcada da relação do verdadeiro e do fal­so, ou seja, que não pode ser concebida simplesmente como uma re­lação de exclusão" 15. Não há fora de sentido: o sentido é feito de tal modo que algo ou tem sentido ou não é.

Mas essa é precisamente a problemática de uma nova leitura de Gama: compreender como se instaura esse confisco do sentido. Assim

. pode-se esperar compreender aquilo que Aristóteles reduz e anula por seu próprio gesto e que, conseqüentemente, no ponto ainda aristotélico da modernidade em que estamos, só é perceptível como não-filosófi­co, irracional, inumano. Para mudar de ponto de vista, seria necessá­rio contar brevemente a história, parafraseando Benjamin, não do ponto de vista do cliente, mas pelo da prostituta, que é, como se sabe quando se lê Aristófanes, não peripatética, mas sofista.

De fato, é apenas do ponto de vista do sofista que a própria ques­tão de uma demonstração do princípio, mesmo que refutativa, tem qualquer chance de parecer consistente. Enquando permanecemos, como faz a tradição, ao lado de Aristóteles, temos, ao contrário, to­dos os motivos para considerar o problema suspeito: o próprio Aris­tóteles não estabelece, de saída, que não poderia haver demonstração do princípio? Há duas razões complementares para isso. A primeira é formal: é que se trata do primeiro princípio, de forma que apenas al­guns mal educados, ignorantes dos Analíticos, podem exigir uma de­monstração para tudo, inclusive para ele, sem perceber que, regredin­do ao infinito, destroem a própria possibilidade de qualquer demons­tração (4, 1006 aSss.). A segunda razão leva em consideração o pró­prio conteúdo: já que o princípio estipula evitar a contradição, aque-

1S G. Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, p. 85 [edição brasileira: Ló­gica do sentido, trad. Luis R. Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 71J.

Das plantas que falam 85

Page 44: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

le que tenta demonstrá-lo é forçado a supô-lo de maneira mais ou menos aparente; tal é o sentido de aitesthai to en arkhei (1006 a15-16), reivindicar aquilo que está no princípio da demonstração consi­derada, o que pode aqui, ao mesmo tempo, ser compreendido de modo radical: reivindicar o que está no princípio de toda demonstração, o princípio de não-contradição. Então interpretar a petição não como um erro lógico, a evitar, mas como o ato fundador da ciência do ser enquanto tal é atestar a resistência aristotélica. "O petere principium, dito de outro modo, inclinar-se para o fundamento e sua fundação, eis o único e singular passo da filosofia, o passo que vai além, para a frente, e que abre o campo no interior do qual apenas uma ciência está apta a se estabelecer."16

Se a petição de princípio é o gesto filosófico por excelência, essa estranha "refutação" por meio da qual Aristóteles pretende, apesar de tudo, se desculpar, deve parecer, ao mesmo tempo, como uma falha e como uma impossibilidade. Na perspectiva de Lukasiewicz, o erro de Aristóteles se duplica. Por um lado, Aristóteles se contradiz propon­do demonstrações de início refutativas, em seguida apagógicas ou por absurdo, de um princípio que ele considera indemonstrável. Por ou~ tro lado, todas essas refutações não poderiam escapar à petição de princípio. Uma demonstração por absurdo consiste apenas, de fato, em tornar manifesta uma contradição que o próprio princípio proí­be. Quanto à refutação, é ainda, segundo a definição dada nos Analí­ticos, "um silogismo que deduz a contraditória de uma tese dada" (Apr., 11, 20, 66 bll); de tal modo que a diferença entre demonstra­ção por refutação e demonstração propriamente dita, que permite, segundo Aristóteles, tornar o adversário responsável pela petição, só pode parecer a Lukasiewicz como "palavras vazias ditadas pela con­fusão": "o que deve ser dito com isso - conclui ele muito simples~ mente - eu não percebo" (op. cit., p. 24).

Pode~se ir mais longe: do ponto de vista da existência ou não de uma petição, seria necessário estigmatizar o procedimento de refuta­ção: pois se exigir uma demonstração do princípio é uma falta de cul­tura, é uma falta de filosofia remediar a impossibilidade científica da própria coisa através de uma encenação dialética que implica tanto a esquiva quanto a astúcia.

16 Martin Heidegger, "Ce qu'est et comment se détermine la Cl>Yi:li:", op. cit., p. 187, acerca de epagoge.

86 o efeito sofístico

Karl Otto Apel assinala com propriedade que "a fundação do . princípio de contradição por Aristóteles pode servir de ilustração para o problema clássico da fundação primeira"I? O princípio de não-con­tradição tem, de fato, a dupla característica das "evidências primei­ras": nem poder ser contestado sem auto-refutação nem ser fundado sem petitio principii. Prosseguindo a leitura, pode-se deduzir que, na perspectiva de Apel, se Aristóteles fracassa em fundar o princípio, é porque ele não é, em suma, nem Sócrates nem Descartes, mas, antes, "o artesão do Apodítico", ou seja, de um "organon da argumentação, depurado de qualquer elemento pragmático perturbador possível". Devido ao fato de diferenciar uma filosofia atenta à relação do dis­curso Com as coisas, de uma poética e de uma retórica que existem tendo em vista a relação com o ouvinte, Aristóteles pode ser conside­rado como o iniciador do "sofisma de abstração" (ou seja, a abstra­ção da dimensão pragmática) sobre o qual "repousa toda a lógica contemporânea da ciência, inteiramente orientada para a sintaxe e para a semântica".

REFUTAÇÃO LÓGICA, REFUTAÇÃO PRAGMÁTICA, REFUTAÇÃO TRANSCENDENTAL

Entretanto, a insistência de Aristóteles em falar aqui de uma "re­futação" põe em dúvida o conjunto desses diagnósticos. Trata-se do problema da fundação primeira, mas Aristóteles indica, com isso, que o instrui, ou tenta instruí-lo, de uma maneira que não se reduz nem à petição característica do primeiro passo nem a uma demonstração silogística necessariamente insuficiente. Pois é na diferença entre "de­monstrar" e "demonstrar por refutação" (1006 a15-16), e em segui. da, para ser breve, entre demonstração e refutação (a18), que Aris­tóteles, explicitamente, baseia toda a sua argumentação em favor do princípio de não-contradição. E é precisamente dessa diferença que ele se serve para se inocentar da petição de princípio e atribuí-la ao adver­sário: "aquele que fizesse uma demonstração reivindicaria, visivelmen­te, o que está em questão no início, ao passo que, se outro fosse res-

17 Karl Otto Apel, "La question d'une fondation ultime de la raison", trad. S. Foisy e J. Poulain, Critique, 413, ouro 1981, pp. 895·928 Ip. 899, n. 15).

Das plantas que falam 87

Page 45: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ponsável por uma reivindicação dessa espécie, haveria refutação e não demonstração" (aI6-18).

A estratégia é mais sutil, e mais decisiva, do que parece inicial­mente. A refutação não consiste aqui, simplesmente, na habilidade de fazer com que o adversário caia no mesmo erro em que se cairá caso se assuma o risco de demonstrar; como se, por exemplo, lhe fosse mos­trado que sua própria conclusão também já está em suas premissas. Passar da demonstração à refutação consistiria, nesse caso, apenas em uma inversão de papéis, e a petição de princípio, receita de um pro­cesso de mútuo fracasso, valeria tão-somente como erro formal. Além do caráter aleatório de uma refutação como essa - quem garantirá que ela funcione sempre? -, ela não leva, mesmo caso funcione, a nada de decisivo quanto à verdade do princípio de não-contradição. A re­futação, na realidade, vale como demonstração desse princípio se, e apenas se, ela mostrar que, tanto ao contestá-lo quanto ao querer demonstrá-lo, ele está pressuposto. Refutar, nesse caso, não consiste portanto em imputar ao adversário um erro simétrico ao do demons­trador: não é preciso convencê-lo a pressupor sua própria conclusão, mas aquela mesma que ele nega. É o que diz literalmente o grego de Aristóteles: a condição para que haja refutação é a de que "um outro seja responsável por aquilo que se descreve assim (tou toioutou)" (aI7-18); ora, "aquilo que se descreve assim" é "reivindicar o que está na arkhe" (al?), isto é, ao mesmo tempo "de saída" e "no princípio", aquele evidentemente que está em questão. Só se evita portanto, diz Aristóteles, a petição de princípio fazendo com que seja cometida pelo adversário - entenda-se bem: a mesma.

Da demonstração à refutação, não há mudança de papel, como na ironia de um Sócrates que passa, pela forma de suas respostas aos sofistas, da defesa ao ataque; pois o onus probandi, nos dois casos, compete ao mesmo Aristóteles, quer ele demonstre diretamente ° prin­cípio ou, indiretamente, a falsidade da posição adversa. Entretanto, há transferência de responsabilidade: Aristóteles refuta quem o teria refutado, e pela mesma razão, ou seja, a de que é impossível- o que quer que se diga - não fazer petição desse princípio.

Em um primeiro nível de análise, Aristóteles se encontra então em plena conformidade com sua própria definição da refutação: "uma dedução da contraditória" (syllogismos antiphaseos, Apr., 11, 20, 66 bll = SE, 9, 170 bl), ou "com contradição da conclusão" (met' anti­phaseos tou symperasmatos, SE, 1, 165 a3), isto é, um encadeamento

88 o efeito sofístico

lógico cuja conclusão é contraditória com a premissa que constitui a tese a ser refutada 18. Se, como é o caso aqui, a tese não é diferente da negação do princípio, é a afirmação deste que será sua contraditória, mas, posto que o princípio é indemonstrável, não é como conclusão das premissas estabelecidas ou admitidas pelo adversário que ele pode ser "deduzido", mas somente como pressuposição oculta na própria tese, ou seja, pura e simplesmente como petição de princípio. Assim, a indemonstrabilidade do princípio cria, no livro Gama, uma situa­ção antes de tudo exemplar da refutação tal como a descrevem os Analíticos, distinguindo-se da demonstração.

Para que haja refutação, é preciso - o que é essencial- estar no registro da dialética, ou seja, haver dois protagonistas com dois papéis bem distintos: no caso, Aristóteles e seu adversário (ho amphis­beton, 1006 a13). Em seguida, para que esse esquema funcione, é necessário que o adversário consinta em propor algo, pois, para que haja refutação, é preciso que algo seja aceito ("se nada for aceito, é impossível haver refutação", AFr., ibid., 66 blls). O roteiro típico descrito nos Analíticos é bastante claro: trata-se de um diálogo com perguntas e respostas no qual o adversário deve ou aceitar duas pro­posições afirmativas ou aceitar uma proposição e recusar a outra, para que essa dedução que é a refutação possa ocorrer. Se o adversário não aceita nem mesmo uma afirmação, então nenhuma refutação é pos­sível, porque nenhuma conclusão pode ser tirada de duas premissas negativas. Além disso, uma premissa, quer seja demonstrativa ou dialética, é "um enunciado que afirma ou que nega algo acerca de algo" (logos kataphatikos e apophatikos tinos kata tinos, AFr., I, 1, 24 aI6s.): para que haja refutação, é preciso então que o adversário aceite duas proposições predicativas, sendo pelo menos uma delas uma afirmação.

Mas uma premissa dialética tem uma característica suplementar: é "uma questão concernente à contradição", em que se pede que o adversário escolha entre as duas partes da contradição (erotesis anti-

18 É assim que se deve compreender igualmente Retórica, m, 9, 1410 a22-23: "o silogismo refutativo (ho gar elegkhos) é a aproximação (synagoge)", não de "premissas antitéticas", como traduzem Dufour e Wartelle (Paris, Les Belles Lettres, 1973, ad loc.), mas, antes, "de uma premissa e de uma conclusão opos­tas", ou "contraditórias" (ton antikeimenon). Ou ainda: o entimema refutativo, diferenremente do entimema demonstrativo, "produz conclusões que não são con­cordantes" (to d'elegktikon ta anom%goumena synagein, Re., 11, 22,1396 b26).

Das plantas que falam 89

Page 46: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

" 11:

:11

phaseos estin, APr., I, 1, 24 a25). Ora, é de encontro a isso que vem, de saída, o procedimento de uma refutação clássica referente ao prin­cípio de não-contradição: exigir tal escolha da parte daquele que re­cusa o princípio é, justamente, querer "demonstrar por si só o que não é manifesto por si só" (to di hautou deiknynai to me di hautou delon, APr., II, 16,65 a24s. e.g.), segundo a própria definição da petição de princípio. E é certamente Aristóteles, e não seu adversário, que será responsável por isso, já que a própria forma de sua questão, que ex­clui a permanência simultânea da afirmação e da negação, determi­na a tese do outro. No que se refere à petição, passar da demonstra­ção a uma refutação segundo o esquema clássico não resultaria, de direito, em qualquer ganho.

Aristóteles se vê, portanto, forçado a elaborar, para Gama, um procedimento de exceção: "O ponto de partida, em todos os casos des­se gênero, não é exigir que se diga que algo é ou não é (pois seria por demais precipitado sustentar que aí está a petição de princípio)" (1006 aI8-21). Desde então, coloca-se a questão de saber quais podem ser, precisamente nesse caso, a ou as proposições defendidas pelo adver­sário, que constituem sua tese, e com que grau de eficácia essa tese pode ser refutada.

Os comenta dores, dos mais antigos aos mais recentes, imagina­ram, e até mesmo freqüentemente misturaram, três situações que pro­ponho distinguir do seguinte modo:

CD Refutação lógica: A refutação mais óbvia, por provir direta­mente da própria definição da refutação, consiste em um processo de contradição lógica. O papel do adversário é o de afirmar um enun­ciado que constitua, direta ou indiretamente, uma recusa do princí­pio. Podem-se imaginar dois tipos de enunciados. Os primeiros reme­tem aos próprios termos do enunciado canônico, diretamente - "o mesmo é e não é", "o mesmo pertence e não pertence ao mesmo" -,ou indiretamente - "o não-ser é", "o homem negro é branco". Os segundos constituem um caso particular dos primeiros, aproximando­se dos enunciados já atribuídos por Platão aos relativistas, e se for­mulam em termos de verdade e de falsidade: tudo é verdadeiro, tudo é falso, o mesmo é simultaneamente verdadeiro e falso.

Quanto ao primeiro tipo de premissa, o processo de contradição, tal como descrito nas Refutações sofísticas, por exemplo, consiste em distinguir, especialmente graças às categorias, entre diversos sentidos

90 o efeito sofístico

da existência ou da predicação e em concluir, a partir daí, que, con­trariamente à tese inicial, não é possível que o mesmo seja e não seja - pelo menos ao mesmo tempo e segundo a mesma relação. Um ad­versário de boa vontade pode então se declarar convencido pela refuta­ção, isto é, reconhecer que sua premissa é falsa ou mal formulada, con­traditória com o princípio apenas aparentemente: em suma, que é por ignorância que ele pensou tê-la recusado até então. Eis aí um adver­sário que a refutação, bem pedagógica, reconduz à razão aristotélica; Aristóteles dele fará, em seguida, uma categoria particular: aqueles que falam "sob o efeito de dificuldades reais" e que podem ser convenci­dos "por persuasão" (5,1009 aI6s.; 22s.).

Com o segundo tipo de premissa, a refutação aproxima-se da velha refutação platônica por autocontradição: se o mesmo é verda­deiro e falso, como admitido por quem a defende, tal tese é igualmen­te falsa e verdadeira. Observa-se que Aristóteles conota a insuficiên­cia ou a não-radica lida de de uma refutação como essa, mesmo se ela pode sempre servir, sendo invocada totalmente ao final do processo, como "refrão" 19. Uma demonstração como essa, no entanto, já é su­til. Não basta, de fato, dizer que o relativista afirma ser verdadeira a opinião contrária à sua (pois o fato de todas as opiniões serem falsas desmente que todas as opiniões sejam verdadeiras, se, e apenas se, o princípio de não-contradição e do terceiro excluído já tiver sido acei­to: para Aristóteles, portanto, não para seu adversário); mas é preci­so assinalar, como o faz exatamente Aristóteles, que ele afirma assim a verdade de uma opinião muito precisa: a opinião que afirma que sua própria opinião é falsa (1012 b27)2o

Nos dois casos, no interior da conclusão que resume o nervo da refutação - anairon gar logon, hypomenei logon, 1006 a26 -, tra­ta-se, com o logos, do "princípio" propriamente dito, em seu "enun­ciado" aristotélico. No primeiro caso, compreender-se-á que "acredi­tando destruir o princípio, o adversário, no entanto, a ele permanece

19 Aristóteles, Thryloumenon, 8, 1012 b14.

20 O argumento platônico, tal como apresentado por Sócrates no Teeteto, já é, lido adequadamente, mais pragmático do que lógico, posto que consiste em perceber o instante em que o relativista defende a opinião contrária à sua para provar que então a sua não é mais verdadeira para ninguém. Cf meu artigo "Peur-00 être autrement présocratique?", in Revue de philosophie ancienne, IV, 2, 1986, pp.217-8.

Das plantas que falam 91

Page 47: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

submisso"; no segundo, perceber-se-á que "querendo destruir o prin­cípio, o adversário sofre o golpe dessa própria destruição".

Mas, tanto em um caso como no outro, um adversário tenaz não deve se sentir coagido, e pode se recusar a retirar sua tese sob pretex­to de que ela foi refutada, já que a impossibilidade da contradição constitui precisamente a petição desse princípio que ele se recusa a endossar. Tal é a interpretação de Colle, por exemplo: "Resta saber, mas Aristóteles não levanta esse ponto - e não por acaso -, a que se chega em uma discussão desse gênero, acuando o adversário até a contradição, uma vez que aquilo que ele defende é precisamente o direito de professar duas opiniões contraditórias" .21

Em tal roteiro, a objeção é absolutamente incontornável.

(3) Refutação pragmática: Assim, a segunda descrição não con­cerne ao nível da contradição lógica, característica de toda refutação, mas se situa no nível do que se poderia adequadamente chamar de uma contradição pragmática. Pois ela não se refere ao conteúdo da tese propriamente dito, mas à posição mesma na qual a refutação põe o adversário: se ele recusa o princípio, aceita, entretanto, cumprir o papel de respondente, isto é, defender sua tese da contradição. A impossibi­lidade da contradição não lhe é, como ainda há pouco, infligida de fora, pois é constitutiva de sua própria decisão de argumentar: é sua atitu­de que é auto-contraditória. É assim, por exemplo, que pensa Dancy, quando enfatiza que "é nesse sentido e apenas nesse sentido que a refutação aristotélica é um argumento ad hominem": "Antiphasis' willingness to take up an argument seals his doom ,,22. Nessa perspec­tiva, a conclusão de Aristóteles deve ser traduzida como: "enquanto ele destrói a argumentação, ele segue uma argumentação" (anairon gar logon, hypomenei logon, 1006 a26, ainda).

Mas, nessa análise, supõe-se novamente um adversário de boa vontade: por ter uma tese, ele se dispõe a responder por ela de modo não contraditório, fazendo assim "pragmaticamente" a petição do princípio que ele combate. O próprio Aristóteles irá colocar em cena esse adversário posteriormente: não é um físico ou um relativista con-

21 Gaston Colle, Aristote, la Métaphysique, livre IV, tradução e comentá­rio, Louvain, 1931, p. 72.

22 R.-M. Dancy, Sense and contradiction, Dordrecht/Bosron, Reide1, 1975, p.19.

92 o efelto sofístico

victo, preso nas aporias do sensível e da sensação; ao contrário, ele sabe negociar, nas categorias do pollakhos legomenon - Aristóteles aju­dando-o quando necessário -, um discurso não contraditório sobre o fluxo (6, 1011 a22-25); mas, justamente ao fazê-lo, ele é daqueles que aceitam hypekhein logon, "defender seu discurso" (6, 1011 a22): entrar no jogo formalmente não contraditório da coerência não dis­cursiva. É por isso que existem adversários ainda mais recalcitrantes, que "estimam ter o direito de dizer contraditórios tão logo os digam" (6, 1011 a16): que recusam entrar no jogo dialético.

O limite do roteiro lógico e do roteiro pragmático é o mesmo: ambos supõem um adversário que aceite entrar nele; ora, da parte de um adversário que adota como tese a negação do princípio de não­contradição, esse consentimento não é consistente com a tese, e assi­nala de fato seu fracasso. Em outros termos, são os roteiros, mais do que o adversário, que pressupõem aqui o princípio, e é por isso que eles não se enquadram perfeitamente na refutação tal como descrita em Gama.

Nos dois casos, o ponto fraco é não considerar, em todo o seu alcance, a precaução enunciada, de saída, por Aristóteles: "o ponto de partida [ ... ] não é exigir que se diga que algo é ou não é (pois seria por demais precipitado sustentar que aí está a petição de princípio), mas que, pelo menos, se signifique algo para si e para outrem".

Dito de outro modo, visto que a dialética, que constitui, no en­tanto, o elemento da refutação, faz por si só petição do princípio, é preciso um procedimento extremo: algo como uma refutação no grau zero de dialética. Pode-se nomeá-la - porque a ela se relacionam con­dições de possibilidade da própria dialética - de uma:

® Refutação transcendenta[23: Para que haja refutação, portan­to, basta "que o adversário diga algo" (1006 a12-13): isso não im­plica nem estabelecer uma premissa nem defender uma tese, mas ape-

23 O termo "transcendental" é utilizado por Enrico Berti (Studi Aristotelici, L'Aquila, 1975, p. 83) para designar o valor do princípio de não-contradição por exprimir "não apenas algo real, mas, de modo mais exato, todo o real". Se con­cordamos com sua descrição da refutação como "innegabilità" (p. 78), e com sua análise do princípio como "criterio suprema di significanza" (p. 82), esse uso do termo transcendental, que não apenas implica a totalidade da experiência possí­vel (cf p. 87), mas se articula com a necessidade de um transcendenre (cf p. 84 e

Das plantas que falam 93

Page 48: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

li

;\1 !I

II

III

"

I'

I I"

nas "significar algo, para si e para outrem" (a21). Na equivalência entre essas duas formulações, "dizer algo" e "significar algo", consiste toda a condição da refutação, que é ao mesmo tempo sua condição de base: ela é necessária, não apenas para que haja refutação ou dialética, mas para que haja, antes de tudo, discurso. É o que enuncia, entrementes, a seqüência completa das equivalências produzidas por Aristóteles (a13-15): "não significar algo para si mesmo e para outrem" = "não dizer algo" = "não fazer um discurso que se refira a algo" = "não fa­zer qualquer discurso" (ou: "que não haja discurso para ele, nem con­sigo mesmo nem com outrem");;;; "ser semelhante a uma planta".

Portanto, o problema não é mais, de modo algum, para Aristó­teles, como pensa Dancy, o de evitar parecer fazer uma petição de prin­cípio, aliás inevitável ("So it appears, Aristotle's concern is not to avoid begging the question, but to avoid seeming to beg the question", op. cit., p. 20), propondo ao adversário uma premissa suficientemente afastada do princípio para que ele não a fareje por detrás: a definição do homem como animal bípede, por exemplo - todo interesse filo­sófico da manobra consistindo, aliás, em retirar o disfarce dessa pre­missa-petição. Pois, nesse caso, a refutação ainda seria um fracasso, pelo menos no sentido de que com ela não se venceria duas vezes o mesmo adversário ("you won't be able to run the same refutation on him twice", ibidem). Ao contrário, tudo o que Aristóteles tem a fazer é deixar o outro tomar a palavra.

O adversário é assim intimado a ter de satisfazer ao caráter es­pecífico do homem, que é o de ser logon ekhon, "dotado de palavra", ou a não contar como adversário: um adversário que não fala, ressal­ta Aristóteles, é como se não houvesse qualquer adversário. A intimação a falar funciona, portanto, definitivamente, comO arma absoluta, uma vez que o adversário só pode evitá-la se renunciar à possibilidade mes­ma de negar o princípio, sem que se tenha tido, dessa vez, de implicá-

todo o capítulo 5: "Il valore teologico dei principio ... "), impõe uma perspectiva bem diferente da nossa.

Por outro lado, José Ortega y Gasset (L'Evolution de la théorie déductive, trad. J.-P. Borel, Paris, Gallimard, 1970, p. 90) fala de "dedução transcendental" para marcar que o princípio dos princípios já é, em Aristóteles, provado como principium cognoscendi antes de funcionar como principium essendi.

Para nós, trata-se de assinalar, retomando tal termo, que a refutação que serve de demonstração só poderia remeter às condições de possibilidade de todo discurso.

94 o efeito sofístico

lo de qualquer modo, de fazer petição dele: pois "para destruir o dis­curso, é necessário, de todo modo, que se faça um discurso" (anairon gar logon, hypomenei logon, 1006 a26, enfim).

o ENTE É FEITO COMO UM SENTIDO

Entretanto, examinando-se mais detidamente, para que a refu­tação ocorra, não pode bastar que o adversário simplesmente "fale" (legei), ou que seja simplesmente dotado de lagos, o que no entanto deveria bastar para diferenciar o homem da planta; é preciso ainda que ele diga algo (legei ti), que ele signifique algo (semainei ti), que ele te­nha um logos, e não nenhum (methena logon). É esse "algo", de fato, que constitui propriamente o eixo da refutação: sem ele, a exigência de significação não poderia implicar a impossibilidade da contradi­ção. Pois é esse "algo", na medida em que, uma vez dito, se encontra "determinado" ou "definido" (horismenon), que constitui a entida­de, a identidade enquanto tal não contraditória em que jaz a petição de princípio.

Basta que um heraclitiano diga a Aristóteles "bom dia!" para que Aristóteles tire daí a refutação de que, se "bom dia!" não signifi­ca "dane-se!", ele toma o sentido de "bom dia!" como algo de deter­minado. Ou melhor, pois ainda mais econômico: basta que um ad­versário do princípio vocifere, falando consigo mesmo, tragelaphos, "bode-cervo", para que essa palavra, que não remete a qualquer es­sência mas que, entretanto, tem um sentido, baste para que ele possa fazer a petição.

O limite inferior é, sem dúvida, assinalável: o capítulo 20 da Poética define, de fato, a "conjunção" (syndesmos, por exemplo: "por um lado", "por outro lado") e a "articulação" (arthron, por exem­plo, nossas preposições: "em torno de", "acerca de") como phone asemos, "voz não significante" (1456 b39 e 1457 a6), por contraste com o nome ou o verbo, definidos como phone semantike, "voz sig­nificante" (1457 aIOs. e 14). Por conta disso, o adversário que diria "portanto" não será, por isso, refutad024,

24 Sobre os problemas levantados pela não-significação desses elementos, cf. R. Dupont-Roc e J. Lallot (La Poétique, Paris, Seuil, 1980), ad loco e especial­mente a nota 7, p. 327s. Notar-se-á que, em nossos dicionários, uma palavra co-

Das plantas que falam 95

Page 49: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Para concluir a polêmica acerca da premissa exigida pela refuta­ção, é agora evidente que toda unidade de sentido, qualquer que seja, pode servir para estabelecer o princípio: não é necessário uma tese (logos), como no primeiro roteiro, tampouco uma argumentação (lo­gos), como no segundo; não há necessidade de uma frase, de um jul­gamento predicativo ou da definição do homem, mas uma palavra deve poder bastar, na medida em que constitui um verbete do dicionário.

Assim, o princípio de não-contradição, em seu enunciado ca­nônico, ao mesmo tempo se prova e se instancia pelo único fato de que é impossível que o mesmo (termo) simultaneamente tenha e não te­nha o mesmo (sentido). O sentido é, portanto, a primeira entidade encontrada e encontrável que não pode tolerar a contradição, ele cons­titui o modelo mesmo da entidade do ente [étantité] e da objetivida­de. A refutação que serve de demonstração para o princípio de não­contradição implica, se não que o mundo é estruturado como uma lin­guagem, pelo menos que o ente é feito como um sentido.

Essa determinação identitária constitutiva do sentido, por sua· vez, só é garantida pelo acordo interpessoal do con-senso ("para si mesmo e para outrem", 1006 a21) ou da convenção (o kata syntheken do Sobre a interpretação), modelo do acordo consigo mesmo neces­sário para a constituição da própria pessoa como agente sensato ("pois para aquele que não signifique algo não haveria discurso, nem dirigindo-se a si mesmo, nem dirigido a outrem", a22-24). Em sua ra­dica lida de transcendental, portanto, a refutação ancora a impossibi­lidade da contradição na necessidade do sentido, e a necessidade do sentido, na essência do homem, essência se não inquestionável, ao menos jamais discutida no Gama, que evita, muito cuidadosamente, qualquer outra definição a não ser aquela de animal bípede.

Vê-se aí que K.O. Apel, quando propõe, em "La question d'une fondation ultime de la raison", "a instituição do jogo de linguagem transcendental" como "meta-instituição de todas as instituições hu­manas possíveis" (p. 926), só faz recuperar - embora acreditando tê­lo deixado bem para trás - O terreno dessa refutação aristotélica. "O ser humano, prossegue Apel, só pode se afastar dessa instituição pa­gando o preço da perda da possibilidade da identidade de si como agente sensato, no suicídio, por desespero existencial, ou na perda do

mo "portanto" rdonc, no original] não é definida, mas descrita na multiplicidade convencionada de seus usos.

96 o efeito sofístico

eu provocada pelo processo patológico de uma paranóia autista" (p. 926)25. Essa ameaça não passa de uma versão, na verdade mais psi­cologizante do que pragmática, da ameaça ontológica que Heidegger exprimia em termos de relação entre o homem e o ser e em termos de exigência do pensamento. Mas a idêntica violência da ameaça e do julgamento de valor tem sua origem aqui mesmo, nesse gesto aristo­télico de exclusão que acabamos de descrever: significa algo, se não és uma planta, ou, aculturado: fala, se és um homem.

ARISTÓTELES SOFISTA

Seguindo-se a análise da refutação transcendental, impõe-se um paradoxo de que habitualmente não nos damos conta: o ponto de partida dessa refutação não se distingue da posição sofística do discur­so. Não basta entender com isso, mesmo que este seja evidentemente o caso, que "a especulação de Aristóteles teve por objeto principal responder aos sofistas .. 26; é preciso compreender que a condição su­ficiente da demonstração - dizer é dizer algo - se confunde muito literalmente com a objeção sofística central que faz com que tudo seja verdadeiro, aquela mesma contra a qual se dirige a refutação.

A posição sofística, escreve Pierre Aubenque, se caracteriza por urna "ausência de distância" (op. cit., p. 100), uma "aderência total" (ibidem, p. 104) entre "a palavra" e "o ser". O risco inerente a essas metáforas é o de ter de estabelecer duas esferas distintas - a lingua­gem e o ser - para identificá-las. Elas são adequadas ao extremismo sofístico, caso se afirme que existe urna só esfera, a da linguagem, que produz um efeito, o ser. É assim que convém interpretar o Tratado do

25 Jürgen Habermas, acreditando defender a pragmática transcendental, impotente, segundo ele, face ao "cético conseqüente", que "por seu comporta­mento renega nada menos do que sua pertença à comunidade daqueles que ar­gumentam", não faz mais do que reeditar o tom de Apel para atribuir ao mau outro, como único refúgio, "o suicídio ou a demência" (Morale et communica­tion, trad. C. Bouchindhomme, Paris, Cerf, 1986, p. 121).

Sobre a relação Ape!, Habermas, Rorty, entre eles e com a refutação aris­totélica, ver meus Ensaios sofísticos, m, 1 (São Paulo, Siciliano, 1990).

26 Pierre Aubenque, te probleme de l'être chez Aristote, Paris, P.U.F., 1962, p.94.

Das plantas que falam 97

Page 50: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ill!

não-ser, de Górgias, inteiramente fabricado para, ao mesmo tempo, demonstrar e instanciar que o ser não é senão um efeito de dizer; pois essa é a conseqüência da identidade parmenideana entre o ser e o pen­sar, que baste que algo seja dito (já que o temos então em mente) para que ele deva ser; tomando Parmênides ao pé da letra, basta de fato que eu diga que "carroças lutam em pleno mar" para que carroças lutem em pleno mar27. Do mesmo modo, é assim que se compreende­rá a análise feita por Prodo da posição de Antístenes: "Todo discurso é verídico (aletheuei); pois aquele que diz diz algo (ho gar legon legei ti), ou aquele que diz algo diz o ente (/egei to on); e aquele que diz o ente é verídico" (Prodo, In Cratylum em 37 Pasquali, citado espe­cialmente por Pierre Aubenque, op. cit., p. 100). É necessário ressal­tar a ordem da seqüência - dizer, dizer algo, dizer o ente, dizer a ver­dade -, e a prioridade do ti, "algo", em sua neutralidade de objeto interno produzido, secreta do pelo próprio ato discursivo, em relação ao ser que aparece apenas secundariamente como sua explicitação, sua concretização.

Essa análise se encontra detalhada por Platão, no Sofista, quan­do o Estrangeiro constrói a posição sofística como conseqüência da ontologia parmenideana. Não se pode nem pensar nem dizer o não­ser, nem mesmo emitir a palavra (238 c8-10), pois isso seria "coagir o não-ser a ser" - o que faz precisamente, de modo auto-contraditó­rio, o próprio interdito parmenideano de saída, já que enuncia o "não­ser" e, mais ainda, no plural, "os não-entes" (ta me eonta).

Nessa perspectiva ultraparmenideana, não há "ortologia" do não­ser (239 b4) porque não há "logia" de modo algum. Mas a análise platônica do discurso sofístico é mais sutilmente lingüística: ela con­siste em mostrar que apenas com a palavra, na condição de palavra, ou seja, por pertencer a uma língua como sistema de oposições perti­nentes, diz-se sempre algo mais do que a palavra. Assim, com ti, "algo" - uma vez dada a diferença intralingüística entre ti, tine, tines, sin­gular, dual, plural-, diz-se sempre, quer se tenha ou não consciên­cia disso, "algo que em todo caso é um", "pelo menos um algo" (hen ge ti, 237 d7): é finalmente na própria língua, nessa "morfologia" pela qual os sofistas tanto se interessavam, que se encontra aquilo que per­imite dar conta de sua capacidade designativa. Reciprocamente, "não

27 Sur Mélissus, Xénophane et Gorgias, G. 9 Cassin (= 980 a9-18); ver Bar­bara Cassin, Si Parménide, Lille, P.U.L, 1980.

98 o efeito sofístico

dizer algo" (me ti legein, e1) é "não dizer nada" (meden legein, e2, "dizer nada", no sentido etimológico de "nem mesmo um"), de tal modo que se tem apenas a escolha entre "dizer algo" (/egein ti) e "nem mesmo falar" (oude legein, e5).

Assim, a eficácia própria à linguagem sofística consiste em im­plicar a realidade de seu objeto, em impedir qualquer alternativa a essa realidade: a impossibilidade de dizer o que não é constitui a fonte de todos os paradoxos sofísticos referentes à impossibilidade do pseudos, da mentira e do falso28 . .

Essa equação sofística - dizer = dizer algo - é exatamente o que força finalmente o Estrangeiro ao parricídio, para que, enfim, o não­ser seja "de algum modo" e para que se possa dizer e pensar o que não é. Ora, Aristóteles, em sua refutação, não opta por educar-nos, como de costume, expondo-nos Sua maneira peculiar de tratar o problema do não-ser, muito menos selvagem ou "arcaica" do que a platônica; pois, usualmente, em vez de, como Platão, "mostrar que o não-ser é" (Metafísica, N, 2, 1089 al-5), Aristóteles contenta-se em produzir uma diferenciação dos sentidos do ser de tal modo que o enunciado "o não-ente é não-ente" possa ser percebido, tal como no próprio Gama, mas no capítulo 2 (1003 b10), como a extremidade normal da amplitude do pollakhos legomenon. Em vez de lançar mão, como em suas Refutações sofísticas nas quais o roteiro lógico se moldava, da distinção entre categorias, potência e ato, substância e acidente, des­sa vez, ao contrário, ele escolhe adotar, sem a menor hesitação, o rigo­rismo ultraparmenideano da posição sofística: pois seu ponto de par­tida é a própria equivalência entre "ter um discurso de" ou "sobre nada" e "não ter qualquer discurso" (methenos logos/methena logon). Ele se apropria assim - e isso merece ser repetido - da posição sofís­tica acerca da linguagem.

Como se dá, então, que tal posição - que normalmente desem­boca no direito de dizer tudo, inclusive os contraditórios, já que tudo o que é dito é (verdadeiro) - seja virada contra ela mesma e possa servir para demonstrar a necessidade de evitar a contradição, o que

28 É o que testemunham, segundo modalidades diferentes, tanto Crátilo (Crátilo, 429 d4), Eutidemo (Eutidemo, 283 c-284 c), Dionisodoro (ibid., 286 c­e), o próprio Sócrates no Teeteto (189 a13s., acerca da opinião, que é precisamente um logos, 190 a4s.), através de Platão, quanto Antísrenes, através de Aristóteles (Metafísica, D, 29,1024 b32-341.

Das plantas que falam 99

Page 51: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Heidegger denomina" o princípio da contradição a ser evitado"? Ou ainda, como se passa do "e" da indiferença à contradição, ao "ou" de sua interdição?

A operação que Aristóteles impinge à equação sofística - dizer = dizer algo - é análoga à que a sofística impinge ao interdito par­menideano: o não-ser não é. Trata-se de um gesto de ater-se à palavra que leva a um ponto extremo, desequilibra e gera catástrofe, e cujo procedimento (no qual, sem dúvida, consiste em suma o próprio ar­cabouço de toda interpretação ao longo da história da filosofia) se resume em um "Não acreditaste dizer tão bem".

Aristóteles retoma: aquele que não diz algo sequer fala; mas, em vez de concluir com isso que todos sempre dizem a verdade, daí infe­re que aqueles que não dizem algo não são homens. É a sofística que dá a Aristóteles o motivo de sua exclusão.

O TEMA DA SIGNIFICAÇÃO

Evidentemente, para que a exclusão funcione, ainda é necessá­rio uma reinterpretação da equação. A operação aristotélica consiste inteiramente, num certo sentido, em validar a equivalência entre "di­zer algo" e "significar algo". Como vimos, Aristóteles indica - mas, apareptemente, como uma simples precaução dialética permitindo evitar à sua refutação a acusação de petição de princípio - que, para significar algo, não é necessário afirmar ou negar o ser da coisa dita, ou seja, escolher entre as duas partes da enunciação. Esse recuo do significar em relação ao fato de afirmar (ou de negar) o que se signifi­ca constitui uma inovação de Aristóteles, embora tal observação, pelo que sei, jamais tenha sido feita. Com essa inovação, ele se diferencia ao mesmo tempo da eficácia ontológica do dizer sofístico e do senti­do, até então usual, de semainein, normalmente ancorado na desig­nação de uma coisa ou de um estado do mundo.

Antes de Aristóteles, semainein tem uma diversidade de empre­gos, que vai de "indicar" (um caminho) a "denunciar", "assinalar" ou "dar o sinal" (de uma batalha), "significar" uma ordem. O frag­mento B 93 de Heráclito caracteriza assim como semântica essa mântica que, em Delfos, "não diz" em uma aderente clareza (oute legei), "nem esconde" em uma disjunção absoluta (oute kryptei), mas "sinaliza" para um acontecimento que ela desencadeia inevitável e fatalmente,

100 o efeito sofístico

nesse mesmo gesto. Eis aí as duas características essenciais do signifi­car pré-aristotélico: trata-se de um verbo de ação (ou seja: cujo sujei­to é um agente) e que implica, como o dizer sofístico, uma transitivida­de ontológica.

É em relação a esse cenário que é preciso avaliar o discurso de Aristóteles. Quanto à segunda característica: dissociando o fato de significar do de afirmar que algo é ou não é, Aristóteles retira da sig­nificação sua conotação designativa, sua eficácia objetiva. Quanto à primeira, Aristóteles parece, de início, se conformar a ela, já que, de saída, no jogo dialético da refutação, é a um homem, o adversário, que se pede para "significar algo, tanto para si quanto para outrem" (1006 a21). Mas, desse modo, se faz referência menos à eficácia da­quilo que o interlocutor ainda poderia querer que fosse uma designa­ção, do que ao acordo que deve reinar entre os interlocutores sobre o conteúdo dessa eventual designação. O ato de significar consiste aqui, em primeiro lugar, em uma convenção de uso que liga, de saída, o locutor ao uso que deu a uma palavra. É nesse sentido que "se se aceita isso (sc. significar algo para si e para outrem) ... logo haverá algo de­terminado" (a24-25): determinado no discurso. A exigência de sig­nificar algo parece, inicialmente - muito para trás em relação à efi­cácia da linguagem sofística -, acatar toda a indeterminação, nas coisas, que o adversário do princípio de não-contradição pode dese­jar. Entretanto, o compromisso que ele obtém do locutor sobre o sen­tido das palavras que ele emprega produz uma conseqüência de peso: fixar o uso das palavras aparentemente nada mais é do que uma ques­tão de convenção, mas é confiar às palavras, doravante, a significa­ção. É extremamente impressionante, de fato, que a primeira ocorrên­cia do verbo semainein no texto de Gama seja igualmente a última em que tal verbo tem como sujeito o locutor: essa construção, normal para o verbo, desaparece completamente na seqüência do capítulo, em que são, a partir de então, sempre as palavras que significam29. Eis a primeira conseqüência que Aristóteles extrai da refutação a partir do momento em que é efetuada: "Inicialmente, é manifesto que, em todo caso, isso, por si só, é verdadeiro, a saber: que a palavra signi­fica o fato de ser ou de não ser isso" (to einai e me einai todi, 1006 a28-30, cf. nota ad IDe.). É assim o ti, o "algo" de "significar algo", o

29 Subsiste, apenas, em 1007 a26, uma construção sem sujeito: "significar a essência é significar ... "

Das plantas que falam 101

Page 52: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"algo de determinado" constituindo o eixo da refutação, que se en­contra explicitado de modo a dissipar qualquer homonímia: quando se significa algo, não se significa uma coisa-ente, um objeto do mun­do, mas uma coisa-sentido: significa-se aquilo que a palavra significa, ou seja, a atribuição positiva ou negativa de um predicado, significa­se um sentido.

Para enfocar as coisas por um outro ângulo, na medida em que significar quer dizer mostrar e que se trata, portanto, de algo a mos­trar e não do sentido de uma palavra, a exigência de significação não pode bastar para diferenciar o homem do animal: Aristóteles, de fato, se refere, em primeiro lugar, aqui ao homem na condição de não ser planta. Constata-se assim, estabelecendo um paralelo com o início da Política (I, 1253 al-18) e o início do Sobre a interpretação (16 a26-29), que "significar algo" e "mostrar algo" são intercambiáveis. Na Política, em que ao homem se atribui a diferença específica de ser o único de todos os animais dotado de logos, no entanto os outros ani­mais podem, como ele, sentir dor e prazer e "significar isso uns para os outros" (tauta semainein allelois), por meio da "voz" (phone), que é o "signo" (semeion) disso; o que constitui, portanto, o próprio do homem é a extensão de sua sensibilidade: ele é o único a sentir igual­mente o bem e o mal, o justo e o injusto. Ora, para "mostrar" (deloun) essas sensações suplementares, a voz não basta, é preciso que ela se torne lagos. Para compreender a especificidade desse suplemento que é o lagos, é preciso convocar o Sobre a interpretação. É portanto dos "sons inarticulados" (psophoi agrammatoi) produzidos pela voz ani­mal que se diz "mostrarem algo" (delousin ge ti); mas nenhum desses sons constitui uma "palavra" ou um "nome" (onoma). Para que haja palavra, em seguida um conjunto de palavras constituindo um lagos (julgamento suscetível de verdadeiro ou de falso, em seguida argu­mentação, discurso) e concernindo ao logos (faculdade discursiva, ratio), é preciso abandonar o campo da significação por natureza (phy­sei) por aquele da significação por convenção (kata syntheken). As­sim, quando a significação é um puro mostrar natural, remetendo às impressões da alma, ela não seria suficiente para separar o homem do animal. Se os animais podem ser, em certos casos, naturalmente polí­ticos (cf. História dos animais, I, 1,487 b33-488 a14), podem tam­bém obedecer naturalmente ao princípio de não-contradição, esco­lhendo aliás constantemente beber água mais do que cair no poço, e ver, ou não ver, um outro animal: aí está uma conseqüência da extre-

102 o efeito sofístico

ma economia do requisito da refutação, pois mesmo um animal pode "significar algo", se não para si mesmo e para os outros, ao menos "mutuamente" (allelois).

Mas tudo se modifica quando se trata de palavras e, mais exa­tamente, quando o sujeito da significação não é aquele cuja voz res­

\soa, mas a palavra, quando não é mais um homem, mas "homem", que significa algo. Nessa ligeira modificação do uso, que, afinal de ~contas, se poderia pensar que passasse legitimamente despercebida, deixa-se apreender a abordagem nova, aristotélica, do discurso, ou seja, a descoberta de sua natureza semântica. A partir do momento em que significar é uma propriedade das palavras, e não mais uma ação cujo instrumento é o discurso, a significação não é mais a. rela­ção entre uma frase e um estado do mundo, que ela faz ser ou que ela designa, nem entre uma palavra e uma coisa, que ela nomeia, menos ainda a relação, geral, entre linguagem e realidade, mas é, an­tes, e apenas, a relação das palavras entre si; mais exatamente, a re­lação que cada palavra mantém com o lagos que a explicita. Aris­tóteles destaca isso, no final do livro Gama, resumindo em uma frase seu princípio de refutação: "é a partir de uma definição que se deve dialogar" (8, 1012 b7). Ora, não é a coisa que se delimita assim pelo entrelaçamento dos nomes e dos verbos, é o sentido ,do nome: "o enunciado que a palavra significa se torna uma definição" (7, 1012 a23-24, cf. nota ad loc.). Esse horismos, a definição, eis o que se tor­na o ti horismenon, o algo determinado, necessário e suficiente para a refutação transcendental.

Para concluir acerca do semainein ti aristotélico, pode-se dizer que ele acaba sendo o instrumento de uma dupla epokhe: a da dimen­são pragmática da linguagem e a de sua dimensão fenomenológica.

Sua dimensão pragmática: a refutação, enquanto tal, deixara no entanto subsistir a dualidade dos protagonistas, Aristóteles e seu ad­versário, eu e outrem, como resíduo do jogo dialético. Mas Aristóteles pode, entretanto, nomeá-la, com razão, de demonstração; pois ela trata não de uma situação determinada tendo como ponto de partida o Io­gas contingente de alguém que me e se fala, mas dessa verdade uni­versal e necessária: a natureza significante da linguagem. Nesse senti­do, Apel tem razão de considerar Aristóteles o iniciador daquilo que ele denomina, um pouco apressadamente, "o sofisma de abstração", com a condição de se discernir até que ponto ele seria, não menos do que Aristóteles, sua vítima.

Das plantas que falam 103

Page 53: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I

ill

Sua dimensão fenomenológica: ao mesmo tempo que a demiur­gia sofística, é a aletheia parmenideana que Aristóteles se obriga a dis­pensar. Pois, quando o ser se desvela no logos que o recolhe, corre-se sempre o risco de poder, partindo-se novamente do logos, afirmar que ele só diz o que é, que ele se confunde com o ser. Aristóteles, que re­toma a posição sofística da linguagem para se defender dela, inter­preta finalmente a autonomia da linguagem como construção conven­cional. O julgamento de Heidegger, que concerne, no Sobre a inter­pretação, a maneira como se deve compreender semeia, symbola e homoiomata, tendo a aletheia como horizonte, como três modos do "mostrar-se", situa Aristóteles "na grande época dos gregos": "Na grande época dos gregos, o signo (das Zeichen) é experimentado a partir do 'mostrar-se' (aus dem Zeigen); ele é assinalado por ele e em vista dele. Desde o tempo helenístico (Stoa), o signo procede de uma fixação, é decretado como instrumento de uma designação; com isso, a representação é dirigida e ajustada de um objeto sobre outro objeto. Designar não é mais mostrar no sentido de deixar aparecer. A altera­ção do signo - passar daquilo que mostra ao que designa - reside na mutação do desdobramento da verdade"30. Parece, agora, que é no próprio momento em que se trata do primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser, que algo dessa mutação do signo já se opera: que se abre, portanto, entre outros regimes, o do puramente lingüístico.

SIGNIFICAR UMA ÚNICA COISA: SENTIDO E ESSÊNCIA

Se a primeira conseqüência da refutação é, por intermédio de semainein, suspender a relação entre palavra e objeto do mundo, a segunda ("ainda mais", 1006 a31) é reestruturar totalmente tal rela­ção: como o mundo retorna no que significam as palavras?

Aristóteles introduz uma nova instância: nem o sentido da pa­lavra nem a existência da coisa, mas aquilo que se denomina, em fran­co-latim, a "quiddité" (é a tradução de Tricot [em português, "qüidi­dade"]), em franco-grego, o "être-pour" [em português, "ser para"] (to einai e dativo, por exemplo, to anthropoi einai, 33s.), retomado

30 M. Heidegger, "Le chemin vers la parole", trad. F. Fédier, in Achemi· nement vers la parole, Paris, Gallimard, 1976, p. 231s.; ver igualmente p. 189.

104 o efeito sofístico

como "essência" (ousia, 1007 a21) e o "o que é ser para" (to ti en einai e dativo, 1007 ali, "o essencial da essência", como traduz Jacques Brunschwig nos Tópicos). Cada uma dessas três entidades distintas é marcada por uma construção diferente do verbo ser: o sen­tido de uma palavra corresponde à predicação de uma determinação ("o fato de ser ou de não ser isso"); a existência de uma coisa, ao uso absoluto do verbo ser ("o fato de que uma coisa seja ou não seja"); enfim, a essência de uma coisa é caracterizada pelo dativo ("o fato de ser para uma coisa" ou "de ser para uma coisa o que ela é").

O sentido, que foi desarticulado da existência, encontra-se ago­ra articulado à essência e, com isso, como se verá, rearticulado à exis­

. tência, mediatamente, mas apenas mediatamente. Deve-se retomar a própria definição do sentido cujos requisitos são igualmente nossas duas conseqüências: só se pode significar, significando algo uno, pois "não significar algo uno é não significar absolutamente nada" (1006 b7s.). Mais uma vez, Aristóteles não faz mais do que desdobrar a equação parmenido-sofística à maneira do Estrangeiro: nada, é nada de uno (ti/hen ge ti, me ti/medein, Sofista, 237 d6s.; aqui, me hen/ outhen); a entidade que constitui o eixo da refutação deve ser, enquanto tal, identificável, distinta, única: para parafrasear Leibniz, tudo o que não tem um sentido, também não possui um sentido; "compreenda­se, portanto, conclui Aristóteles para resumir, que a palavra significa algo e significa uma única coisa" (1006 bll-13).

Ora, para explicitar essa unidade constitutiva do sentido, Aris­tóteles não remete à regra de uma constância do uso estabelecido pela convenção, como se, em cada ocorrência da palavra "homem", fosse possível que nela subsistisse salva veritate o que significa a palavra "homem", sua definição no dicionário - por exemplo, "animal bí­pede". Ao contrário, a explicitação passa pelo ser para a coisa que a palavra nomeia: "Por significar uma única coisa entendo: se é isso (animal bípede) um homem, então se algo é um homem, é isso (ani­mal bípede) que é ser para um homem" (1006 a32-34). Essa frase fundamental, tão simples quanto difícil (cf. nota ad loc.), geralmente ocultou, e até mesmo anulou, toda a singularidade da demonstração transcendental. Pois parece, de imediato, que o sentido não deva ser buscado no âmbito da palavra (a cada vez que digo "homem", isso quer dizer animal bípede), mas no âmbito da coisa (a cada vez que algo é um homem, sua essência é a de ser um animal bípede). Pierre Auben­que defende essa interpretação, supondo que a convenção nunca é

Das plantas que falam 105

Page 54: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

suficiente, salvo acidentalmente, para explicar a virtude significante das palavras: "Aristóteles, portanto, não pode se contentar com isso: se as intenções humanas, como a experiência o prova, se respondem no diálogo, é preciso que isso ocorra em um terreno que funde objeti­vamente a permanência de seu encontro. Essa unidade objetiva, que;

I funda a unidade da significação das palavras, é o que Aristóteles de-: nomina a essência" (op. cit., p. 127). E ele conclui incisivamente: "A permanência da essência é assim pressuposta como o fundamento da unidade do sentido: é porque as coisas têm uma essência que as pala­vras têm um sentido" (p. 128). É importante avaliar toda a conseqüên­cia dessa observação quanto ao próprio princípio de não-contradição: na medida em que a linguagem significaria apenas por ser fundada no ser, nessa medida, é evidente que o princípio concerne unicamente à ciência do ser enquanto ser.

Com uma conotação oposta, é exatamente isso que a filosofia analítica, com lrwin, por exemplo31, ressalta, quando protesta que Aristóteles não tem uma teoria do sentido. O interesse pelo semainein revela-se assim, através de um certo número de textos - dentre os quais Gama 4 -, como não incidindo prioritariamente no sentido que as palavras têm "para nós", o que remeteria a uma construção convencional, mas incide nO que a palavra "significa realmente", até mesmo "por natureza" (p. 262); a saber, uma essência que precisa­mente não é um sentido mas uma "realidade não-lingüística" (p. 246 eg.). Poder-se-ia dizer que Aristóteles, se não é simplesmente "confu­so", desliza, em Gama, de uma concepção da significação para outra, mas lrwin escolhe dizer que se trata de essência desde o início: ape­nas o nível da essência permite de fato, segundo ele, refutar o adver­sário do princípio. Pois de duas coisas uma: ou o adversário não fala de uma única essência, e então não há realmente contradição (ele diz homonimamente que o cão latindo/celeste é e não é o mesmo animal); ou ele fala de um só e mesmo sujeito, mas que sÓ o é na medida em que possui a propriedade que constitui sua essência: nesse caso, se o adversário afirma e nega, ao mesmo tempo, essa propriedade, afirma e nega ao mesmo tempo que ele fale de um único e mesmo sujeito (p. 264). Das duas concepções possíveis da significação - "significar

31 T.H. Irwin, "Aristotle's cancept af signification", in Language and Lo­gos, M. Schafield e M. Craven Nussbaum (orgs.), Cambridge, CU.P., 1982, pp. 241-66.

106 o efeito sofístico

i

algo é necessário para falar e para pensar algo" e "'significar algo re­quer a existência das essências" - é finalmente a segunda delas que, em Gama, de qualquer modo já teria triunfado.

É evidente que esse tipo de análise esvazia a radical economia da refutação transcendental: a exigência de significação encontra-se aí, de saída, privada de toda a ontologia. Um homem, porque fala, só poderia ser aristotélico. A operação aristotélica que consistia em sus­pender essa coesão pré-socrática entre dizer e ser pode reencontrar, a seguir, tal coesão um pouco melhor articulada. Pois, nessa análise, assim como um sofista não pode dizer o não-ser, do mesmo modo o homem aristotélico não pode significá-lo. A razão disso é por demais evidente: o sentido é fundado na essência; ora, só existe "ser-para" para o que é, apenas o que esti pode ter um ti estio Para dizê-lo em termos canônicos, a doutrina constante de Aristóteles é a de que a existência precede a essência. Estabelecendo, nos Analíticos, o paralelo entre os objetos das demonstrações e os das definições, ele repete: "Assim como não é possível conhecer o porquê (to dioti, por exemplo: porque o homem é branco) antes do quê (to hoti: que o homem é branco), do mesmo modo não é evidentemente possível conhecer o que é uma coi­sa (to ti en einai: qual é a essência do homem) sem conhecer que ela é (to hoti estin: que o homem existe): pois é impossível conhecer o que é uma coisa (ti estin) quando se ignora se ela é (ei estin)" (Apo., lI, 7, 93 a17-20).

Avalia-se a conseqüência: as palavras que dizem coisas que não têm essência, ou seja, as palavras que dizem coisas que não existem, não deveriam ter sentido e, em todo caso, não se deveria poder com­preendê-las.

o PROBLEMA DO BODE-CERVO

Ora, Aristóteles opõe-se não menos explícita e constantemente a essa inverossimilhança. Seu grande exemplo é o do bode-cervo (ho tragelaphos). Assim, quando ele pergunta como se poderá mostrar a essência, argumenta: "Necessariamente, aquele que conhece o que é o homem, ou qualquer outra coisa, sabe também que ele é; pois o que não é, ninguém sabe o que é, sabe-se apenas o que significa o enun­ciado ou a palavra (ti men semainei ho logos e to onoma), como quan­do digo 'bode-cervo', mas o que é um bode-cervo (ti d'esti tragela-

Das plantas que falam 107

Page 55: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

phos), impossível sabê-lo" (Apo., lI, 7, 92 b4-7). É preciso, portanto, afirmar enfaticamente que "é possível significar também ceisas que não são" (semainein gar esti kai ta me anta, 92 b29s.), e que "bode-cer­vo" (ho tragelaphos), exatamente do mesmo modo que "homem" ou "branco" (to anthropos e leukon) "significa efetivamente algo" (se­mainei men ti, Int., 1, 16 a14-17; cf. 4, 16 b28).

A única esquiva consiste em recusar qualquer amálgama entre a problemática dos Analíticos ou do Sobre a interpretação e a de Gama: na Metafísica, triunfa normalmente a ontologia. Mas essa es­quiva é inútil, pois, quando se atenta para a condição que, no Gama, suspende a relação com a essência, é evidente que as duas problemá­ticas são compatíveis: é "se (somente se) algo é efetivamente um ho­mem" que então o sentido da palavra e a essência da coisa podem se confundir. O caso do bode-cervo é simplesmente aquele em que eSSa'

condição não é preenchida: não há algo que seja um bode-cervo. É I por isso que se pode, sem dificuldade, dar uma explicação para a pa-I lavra, dizer "o que significa a palavra" (ti semainei tounoma, Apo.,: lI, 7, 92 b26s.; 10, 93 b30)32, e sem dúvida pode-se dizer que se tra­ta aí de uma definição da palavra ou do nome (cf Gama 7,1012 a23s.; e nota ad loc.). Mas não poderia tratar-se, por isso, de uma "defini- i

ção", stricto sensu, quer dizer, de uma definição da coisa, e nem mes­mo dessa definição denominada "nominal" (onomatodes, Apo., II, 10, 93 b31). De fato, toda definição propriamente dita é um "enunciado' da essência" (lagos tou ti estin, ibid., 29); a única diferença entre a definição nominal e a outra definição denominada, por vezes, como por Leibniz, real ou causal, é que a primeira apenas "significa" a es-

@Para evitar os contra-sensos, notemos que as duas passagens não podem ser simplesmente sobrepostas. A primeira serve para provar, por absurdo, que nenhuma definição stricto sensu pode deixar de ser, por pouco que seja, defini­ção da essência: se uma definição fosse somente "um enunciado significando a mesma coisa que a palavra", haveria então definições do que não é nem subs­tância nem ente, o que seria o próprio absurdo (7, 92 b26-29). A segunda preci­sa que a definição nominal, que é efetivamente "o enunciado do que significa a palavra", significa por isso mesmo o que significa a essência da coisa, mas certa­mente sem mostrá-la ou demonstrá-la, uma vez que ela só conhece a existência da coisa por acidente. Pois, se ela a conhecesse causalmente, dela daria então uma definição real. Para esclarecer, assim, deve-se, diferentemente de Ross, por exem­plo, conservar o texto dos manuscritos, em todo caso, o ti esti (ti semainei ti esti trigonon) de 93 b31.

108 o efeito sofístico

sênCla (ho men proteros semainei men, 93 b39-94 aI), enquanto a segunda a "mostra" (delon 93 b39) e dela produz "como que uma demonstração" (deiknysi, 94 ai; hoion apodeixis, 94 ais.), por uma explicação causal. Mas, correntemente, é do primeiro tipo de defini­ção que se trata: nos Tópicos, por exemplo, a definição é definida como "um enunciado que significa o essencial da essência" (lagos ho to ti en einai semainon, I, 1, 101 b39).

Assim, o bode-cervo significa algo: pode-se dar o enunciado ex­plicativo da palavra "bode-cervo", dizer, por exemplo, que é o ani­mal fantástico, meio bode meio cervo, que serve como exemplo de não-ente para Aristóteles. Pode-se mesmo construir, a seu propósito,

. combinando tal termo com outros, enunciados verdadeiros (pelo me­nos um: o bode-cervo não é) e enunciados falsos (cf 2, 1003 blO; 7, 1011 b26s. e notas ad loc.). Mas não se terá definido, assim, o bode­cervo, nem mesmo nominalmente, pois o bode-cervo, que não é, não é um animal. Certamente, nesse caso, o sentido da palavra, em sua unicidade, não poderia estar fundado na essência da coisa. E já que certas palavras têm um sentido sem que qualquer essência a elas corresponda, deve-se recusar a proposição geral segundo a qual as palavras têm um sentido porque as coisas têm uma essência. É pre­ciso, antes, admitir que a convenção, seguramente protegida por to­dos os procedimentos que servem para dissipar as homonímias, mas sem qualquer garantia além dela mesma, basta para que uma pala­vra signifique. O que obriga a inverter a perspectiva, afirmando, se­não que as coisas têm uma essência porque as palavras têm um senti­do, pelo menos que as coisas têm por essência o sentido da palavra que as nomeia.

Não é somente, de modo negativo, a impossibilidade de dar con­ta do caso do bode-cervo, mas é a economia de conjunto do capítulo 4 e de todo o livro Gama que obriga a manter a soberania da exigên­cia de significação, para a qual Aristóteles apela de maneira recorren­te e sempre como argumento sem réplica 33. Em vez de as noções de substância e de acidente preexistirem à de significação, para informá­la e sustentá -la, assiste-se, antes, nesse caso, a uma produção da subs­tância a partir da significação: é a unicidade do sentido que determi-

33 Para 4, remeter-se-á a 1006 a22-26, 1007 a30, 1008 a22, b7-11 (cf nota a 1008 b2-7, pp. 222-4); para 5, a 1010 b24-26; para 7, a 1012 a22-24 (cf. nota a23-27); para 8, a 1012 bS-8 (nota aS-lO).

Das plantas que falam 109

Page 56: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

na a não-contradição da essência e, subsidiariamente, a diferença en­tre essência e acidente.

É por isso que aqueles que recusam fixar o sentido das palavras, supondo, por exemplo, que "homem" e "não-homem" significam a mesma coisa, suprimem, com isso, a essência das coisas (1007 a20s.). O julgamento platônico que Aristóteles ecoa (2, 1004 b6-10), segun­do o qual a sofística se ocupa do não-ser ou do acidente, renova aqui o seu sentido: fazendo convenções insuficientes, voluntariamente ex­cepcionais ou lábeis, os sofistas que jogam com o sentido das palavras são, e tornam, incapazes de apreender a essência das coisas.

Evidentemente, o caso do bode-cervo não é o caso geral, muito pelo contrário. Mais freqüentemente - em todo caso, em filosofia, se­não nas frases - confrontamo-nos com termos tais como" homem" ou "branco" do que com termos como "bode-cervo" ou "bom-dia". Aliás, nem mesmo se trata de bode-cervo em Gama. Entretanto, o caso do bode-cervo é muito precisamente um caso pertinente, até mesmo crucial, no que concerne à sofística. O discurso sofístico é aquele que i faz ser tudo o que diz. A linguagem aristotélica é aquela em que uma, palavra, na medida em que é objeto de uma convenção, significa sem-! pre algo. A diferença entre as duas convenções prende-se à considera­ção do bode-cervo como podendo significar algo sem, por isso, ser. O I bode-cervo ocupa, mutatis mutandis, na reflexão de Aristóteles, o lu-, gar da "seqüência que converge o menos rapidamente" na de Frege: a. ':f palavra ou o enunciado quer dizer algo, "tem um sentido", mas pode­se mostrar, pela história natural ou pelas matemáticas, que ele não cor­responde a qualquer objeto, que ele "não tem denotaçãod4. Tal ca­so, de um sentido sem referência, é possibilitado pelo "significar algo" aristotélico: é o efeito da suspensão introduzida pelo semainein ti.

Para manter essa dupla possibilidade comum ao semainein ti e ao semainein hen: parada no sentido / passagem à essência, forçamo­nos a traduzi-los constantemente por "significar algo" e "significar uma só coisa". "Significar", contra "designar", ou "apontar para" ["faire signe vers"], pois se trata inicialmente de marcar que o sujei­to aristotélico de semainein é, doravante e de modo canônico, a pa­lavra, e não o sujeito falante ("homem" e não o homem): como vi­mos, com Aristóteles é isolado o campo do lingüístico como tal. Mas

.34 Gottlob Frege, "Sens et dénotation", in Écrits logiques et philosophiques, trad. Claude Imbert, Paris, Seuil, 1971, p. 104.

110 o efeito sofístico

"significar algo" e "significar uma única coisa", contra "ter um sen­tido" e "ter um único sentido", na gravidade carregada de real do neutro afrancesado, porque é preciso tornar manifesto que a esfera lingüística assim delimitada, ao menos em Gama, é a única habilita­da a dar acesso, sendo o caso, às coisas e aos entes. O movimento in­verso, de fato - o dos entes que se deixariam fenomenologicamente apreender em um discurso ao qual eles confeririam seu teor de senti­do -, pode sempre conduzir às aporias físicas de Protágoras ou ao silêncio voyeur de Crátilo.

Seria absurdo afirmar que aí se encontra toda a linguagem, até mesmo o essencial da teoria da linguagem em Aristóteles. É a dimen­são de mostração que ancora o animal humano na natureza e no mun­do, e tal dimensão é a da sensibilidade que diz sempre a verdade a propósito de seu sensível próprio. A veracidade fenomenológica da sensibilidade - aquilo mesmo que faz falar e que se elabora em cate­gorias - é a garantia da coincidência entre sentido e essência: em ter­mos heideggerianos, o homem é o lugar em que o ser se diz. Mas o momento em que a linguagem não pode ser outra coisa senão huma­na é, no entanto, aquele em que, de direito, essa coincidência cessa de ter lugar. A demonstração do princípio de não-contradição se desen­rolou no terreno da sofística para barrá-Ia: resta-lhe o fato de ter pro­duzido a possibilidade de que uma palavra signifique algo, pura e sim­plesmente. É por isso que posso dizer algo que tenha somente um sen­tido, mas que não mostre nada. Aristóteles cria, assim, nas bordas do imenso território em que significar algo é dizer a essência de uma coi­sa, a possibilidade-limite de uma autonomia significante.

DO ADVERSÁRIO IMPOSSÍVEL A REFUTAÇÃO IMPOSSÍVEL

É preciso assim investigar nesse momento se a refutação trans­cendental não deixa escapar precisamente aqueles contra os quais ela foi tão genialmente arquitetada.

Por trás da aparente economia do procedimento pelo qual Aris­tóteles faz do próprio elemento da controvérsia - o discurso - um terreno que lhe é previamente ganho, é necessário, de saída, ressaltar o custo de tal manobra. Esse Custo pode ser medido por urna incon­sistência central, contida na própria situação agonística.

Das plantas que falam 111

Page 57: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Lembremo-nos de que a demonstração do princípio primeiro, impossível sob pena de petição, se legitimou em uma refutação que jogava sobre o outro o peso da petição. Mas, no nível de análise em que nos situamos, é a própria refutação, unicamente na medida em que ela supõe um adversário do princípio, que produz inconsistência. O fim do capítulo 3 expunha os requisitos aos quais um princípio deve satisfazer para ser reconhecido como "o mais firme de todos" ou pri­meiro princípio de uma ciência do ente enquanto ente. Na condição de primeiro, ele deve ser "anipotético", ou seja, não depender de qual­quer condição anterior (1005 b14-16); e isso implica que não se pos­sa enganar-se a seu respeito (12), uma vez que nenhum conhecimento deve ser anterior a ele: "o que é necessário conhecer, para quem co­nhece qualquer coisa, também é necessário que ele o tenha desde o início" (16-17). Ora, continua Aristóteles, é o princípio de não-con­tradição que preenche tais condições: não se pode enganar-se a seu respeito, pura e simplesmente, porque é impossível sustentar sua ne­gação (23-24). A própria formulação do princípio impõe essa impos­sibilidade ou, inversamente, a própria idéia de que a negação do prin­cípio constitui uma posição sustentável, podendo mesmo mostrar sua falsidade, traz em si a invalidação do princípio. Aristóteles afirma isso formalmente, tão logo enuncia o princípio - "É impossível, para quem quer que seja, sustentar que o mesmo é e não é ... " -, e nomeia então Heráclito para negar seu caráter de contra-exemplo: "[ ... ] como al­guns crêem que Heráclito diz, pois não é necessário que aquilo que alguém diz, ele também o defenda·· (25-26). Estranha modalidade da dupla precaução: Heráclito não disse aquilo que o fazem dizer, e não pensou o que disse. É preciso, de fato, um duplo cuidado para com­bater a evidência de que Heráclito, o Obscuro, encarna a exceção por excelência ao princípio de não-contradição, logo ele do qual ainda se conservam enunciados tais como "ele não o admite e o admite" (B 32 DK), "presentes, eles estão ausentes" (B 34 DK) ou, evidentemente, "nos mesmos rios, entramos e não entramos, estamos e não estamos" (B 49 a DK). A primeira precaução é a de um historiador, de um her­meneuta e de um filólogo, mas a segunda, que poderia parecer orató­ria35, revela-se filosoficamente essencial.

35 É para Lukasiewicz, por exemplo, uma "hipótese auxiliar", que atinge em cheio o valor da verossimilhança da "tese de base" (ap. cit., p. 21).

112 o efeito sofístico

Ela se apóia na diferença entre legein, "dizer", e hypolambanein, "defender", no sentido em que um sujeito defende uma idéia, a con­cebe, a sustenta, e, portanto, pode também defendê-la diante de um adversário em uma disputa dialética. Pode-se dizer (legein) a contra­dição, pode-se mesmo dizer ou afirmar que se a defende (phase ... kai hypolambanein, 4, 1005 b35-1006 a2), mas em caso algum se pode­ria, pura e simplesmente, defendê-la. A contradição é, de fato, uma opinião composta por duas opiniões contrárias que pertencem ao su­jeito que as defende assim como predicados pertencem (hyparkhein) ao sujeito gramatical; de tal modo que a impossibilidade de um He­ráclito defendendo o que diz se confunde com a impossibilidade da contradição: é o princípio que torna impossível estar "absolutamente no erro" (diepseusmenos) a seu respeito, já que seria então necessário ser dois em um, um monstro não metaforicamente bicéfalo, como os mortais parrnenideanos. Deve-se então concluir de duas coisas, uma: ou é possível possuir em si mesmo atributos contraditórios, e o prin­cípio é falso; ou a própria eventualidade de um negador do princípio está ontologicamente excluída (b28-31).

Ora, constata-se, antes, que ao longo do capítulo 5, após a ins­tauração da refutação, vêm se situar do lado dos adversários, além de Heráclito, depois Protágoras, ao mesmo tempo Anaxágoras, Demó­crito, Empédocles, o próprio Parmênides36, Homero, Crátilo: as maio­res autoridades da física, da cosmologia, da filosofia, da poesia, "to­dos os que buscam e que mais amam a verdade" (5, 1009 b34s.). A conseqüência disso é das mais penosas: "Como não teriam o direito de desencorajar-se, aqueles que se dedicam a filosofar!" (37s.). A Gré­cia inteira constitui, assim, exceção, ignorante acerca daquilo que to­dos, no entanto, sempre souberam.

Mas desde a primeira menção a Heráclito, com a diferença en­tre "dizer" (legein) e "defender (hypolambanein) o pensamento do que se diz" (1005 b23-26), Aristóteles empregou a estratégia que lhe per­mite escapar de tal inconsistência. A clivagem indica que, se há esca­patória ao princípio, essa só poderia ocorrer no registro de um puro

36 Sobre o lugar de Parmênides nessa série, cf Barbara Cassin e Michel Nar­cy, "Parménide sophiste: la citation aristotélicienne du fragment XVI", em Études sur Parménide, sob a direção de P. Aubenque, t. 11, Problemes d'interprétation, pp. 277-93, Paris, Vrin, 1987.

Das plantas que falam 113

Page 58: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

li

dizer, separado do pensar. Ou seja: não há adversário do princípio, e se houver, eles só o serão da boca para fora.

Toda a estratégia de Aristóteles consiste, então, em provar para seus adversários que eles não sabem o que dizem: pois, se eles come­çassem a dizer o que pensam, e mesmo simplesmente a dizer o que fa­zem, acabariam todos por falar como ele. Subsiste, no entanto, a pos­sibilidade limite de um dizer resistente, impedindo qualquer pedago­gia regressiva pelo pensamento, que Aristóteles designa por meio de um desdobramento: legein logou kharin, falar por falar. É com isso, em seu lugar próprio determinado apenas pela exigência de significação, que a refutação transcendental vem se defrontar: do adversário impossível à refutação impossível, o fracasso dessa serialização dos meios de per­suasão obriga a recorrer à solução final: sua exclusão da humanidade.

A TAXIONOMIA DOS ADVERSÁRIOS E SUAS MANIPULAÇÕES3? FAZER PENSAR AQUELES QUE FALAM: A LIÇÃO DE FENOMENOLOGIA.

Detalhemos o procedimento cujo esquema acabamos de for­necer.

A grande distinção entre os adversários do princípio é, no senti­do próprio, estratégica, pois remete à "maneira de abordá-los" (tro­pas tes enteuxeos, 5, 1009 a17). É preciso, em relação a alguns, usar de "persuasão" (peithous, 17-18), em relação a outros, usar de "coa­ção" (bias, 18). "Por um lado, de fato, todos aqueles que defenderam essa posição para se encontrarem na aporia, seu engano é fácil de ser curado, pois não é em relação ao que dizem, mas ao que pensam, que os afrontamos. Mas todos aqueles que discorrem pelo amor do dis­curso, sua cura é uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras" (18-22).

Se a dicotomia passa entre os que defendem seu dizer de um pen­samento, cuja ignorância (agnoia) implica uma reflexão (dianoia), e

37 Essa taxionomia, com suas distorções, parece-nos essencial na argumen­tação de Aristóteles: situa-se aí uma divergência importante em relação a Dancy (op. cit.), que julga pertinente operar, o tempo todo, com uma ficção de adversá­rio nomeada Antiphasis.

114 o efeito sofístico

aqueles cujo discurso se reduplica remetendo a si mesmo, que falam por falar (logou kharin legousin), é preciso ainda encontrar o critério que permita estabelecer a diferença. Heráclito, acerca do qual a dis-' tinção foi inicialmente esboçada, encontra-se imediatamente designa­do pelo seu lagos, de que Aristóteles ressalta que "muitos daqueles que tratam da natureza também o utilizam" (4,1006 a2-3). Ora, utilizar um logos, como se usa uma ferramenta, é uma atitude cuja exterio­ridade não supõe - muito pelo contrário - que se o agregue a seu pensamento. Do mesmo modo, as referências a Protágoras são feitas por intermédio de seu logos (5,1009 a6) e os protagorianos são "aque­les que dizem o que Protágoras diz" (ton Protagorou legousi logon, 4,1007 b22-23, cf. 1008 b13). Tudo então permite supor, de início, que Heráclito, os heraclitianos e os próprios físicos, Protágoras, os protagorianos, devem ser situados do lado ruim da dicotomia.

Mas a persuasão de Aristóteles é uma operação de sedução e de recuperação filosóficas, que consiste precisamente em levar o máxi­mo de adversários possível para o lado bom da barra dicotômica. Tal operação não ocorre sem risco de distorção para a própria dicotomia. Constata-se isso no começo do capítulo 6, em que a retomada mostra que, de fato, as duas categorias de adversários tendem a reagrupar-se sob a égide da melhor entre elas. O fato de estar na aporia, que dife­rencia terminologicamente, no capítulo 5, os que defendem seu dizer e que podem ser persuadidos porque são, eles mesmos, persuadidos do que dizem (pepismenon, 6, 1011 a3, cf. 10, 14, remete a peithous, 5,1009 a17s.), caracteriza assim igualmente "aqueles que apenas pro­ferem esses discursos" (ton tous logous toutous monon legonton, 6, 1011 a4)., em que o monon, "apenas", com a reduplicação de logos, marca que, no entanto, dever-se-ia tratar de discurso puro. Aristóteles escolhe, portanto, para fazer reinar o princípio, manipular não somen­te seus adversários, mas suas próprias taxionomias.

O meio que ele utiliza é, sendo dado o sistema de oposições que ele construiu, o único possível: é preciso esvaziar o Iogas da contradi­ção de uma doxa, pensamento, crença ou opinião, para mostrar que esse Iogas não funciona no vazio, como puro Iogas, e que se pode, então, chegar a modificá-lo, aperfeiçoando-se a doxa subjacente. Efe­tuada tal operação, poder-se-á novamente designar como logos to­das as posições pré-socráticas, precisamente na medida em que elas são suficientes (ho men Herakleitou logos ... ho d'Anaxagorou, 7, 1012 a24-26).

Das plantas que falam 115

Page 59: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o logos de Heráclito é que "o mesmo é e não é" (to auto einai kai me einai, 4,1006 a36; 5,1009 a11-12); o de Protágoras é que "tudo o que aparece é verdadeiro" (ta dokounta panta estin alethe kai ta phainomena, 5, 1009 a7-8; he peri ta phainomena aletheia, 1009 b1). A operação aristotélica consiste em mostrar que os dois logoi têm sua origem na mesma doxa (apo tes autes doxes, 1009 a6): o início do ca­pítulo 5 explicita, com o auxílio das noções de verdadeiro e de falso, as proposições intermediárias que fazem com que, com Protágoras, se tenha Heráclito, assim como, com Heráclito, se tenha Protágoras. Aristóteles insiste: os dois logoi juntos (amphoteroi hoi logoi, 16) são sub-tensionados pelo mesmo" pensamento" (apo tes autes dianoias, 15-16), o que basta para situar aqueles que os proferem do lado bom, ou seja, do lado da aporia (tois diaporousin, 22-23). Eles constituem mesmo, finalmente, uma única doxa que se apresenta sob dois aspec­tos (haute he doxa ... he men ... homoios de kai, 23 ... 38). Não se pode mais duvidar da natureza filosófica daqueles que dizem a contradi­ção, a partir do momento em que se remonta à origem de seu engano: eles "sustentaram" (hypelabon, 1010 a2) que "os entes são apenas os sensíveis" (1010 a2-3).

A opinião, em sua forma heraclitiana, é a de Anaxágoras e de Demócrito; em sua forma protagoriana, a de Empédocles, de Demó­crito, de Parmênides, de Anaxágoras e de Homero. Não é de surpreen­der o fato de se encontrarem os mesmO nomes de ambos os lados, vis­to que precisamente essas opiniões não passam de uma só. Mas no­tar-se-á, por um lado, que Heráclito é de fato o epônimo oficial da con­tradição: ele a inaugurava no capítulo 3, ele completa agora a lista graças a Crátilo, o mais extremista "daqueles de quem se diz heracli­tizarem", por ser o mais conseqüente. Crátilo, de fato, constatando a impossibilidade de dizer adequadamente o fluxo, escolhe calar-se: seu silêncio é o ponto extremo do logos heraclitiano, provando o quanto esse logos é filosoficamente habitado: por uma doxa38.

Se Heráclito fornece o nome, Protágoras fornece o conceito que permite unificar, face ao pensamento aristotélico, o conjunto do pen­samento pré-socrático: o de phainomenon, o fenômeno, o que apare­ce. O phainomenon designa a apresentação do ente através da sensa­ção (aisthesis) e tal presença é naturalmente verdadeira, desvelada,

38 Cf meu ensaio "O dedo de Crátilo", in Ensaios sofísticos, I, 2. São Pau­lo, Siciliano, 1990, pp. 27-37.

116 O efeito sofístico

desveladora, e sem correção possível, a partir do momento em que se estabelece a equivalência entre pensamento e sensação. Ora, é preci­samente o que "defende" Protágoras (hypolambanein, 1009 b12), identificando "alteração" (alloiosis), "sensação" (aisthesis) e "pensa­mento" (phronesis). É, assim, Protágoras que dá sentido ao próprio Parmênides, interpretado por Aristóteles. Um historiador da filosofia sensível ao humor deveria notar que existe aí uma inversão estrita da posição heideggeriana. Protágoras, interpretado a partir do homem­medida, como defensor da "moderação", da "restrição do não-ocul­tamento do ente no ambiente, dado a cada vez, da experiência do mundo", "pressupõe que o não-ocultamento foi experimentado des­de esse momento ... isso especialmente nas posições metafísicas funda­mentais dos pensamentos do começo da filosofia ocidental: em Ana­ximandro, Heráclito e Parmênides"39. Se, portanto, para Heidegger, Protágoras é ainda um pouco pré-socrático, por ser parmenidiano, para Aristóteles Parmênides é pré-socrático por ser protagoriano. Aristóte­les retoma assim, com extrema habilidade, sua primeira abordagem da sofística como sabedoria apenas aparente (2, 1004 b26): sabedo­ria aparente porque saber daquilo que aparece.

Tendo assim detectado, sob seu lagos, uma dianoia cujo erro se deve apenas ao caráter parcial, Aristóteles pode facilmente convencer - ou seja, converter - seus grandes adversários.

Ele lhes propõe, de início, um certo número de operadores lin­güísticos, cuja utilidade para medicação das aporias será ressaltada pela física, a fim de permitir-lhes dizer mais adequadamente o que eles vêem: os de potência e ato (5, 1009 a32-35), e as distinções categoriais (1010 a22-25). Graças a tais conceitos, o imediato feno­menológico, "os pássaros em vôo", pode ser objeto de uma descrição não-contraditória. Em seguida, ele os aconselha a ampliar seu con­ceito de ente, a passar da consideração do fenômeno à do sensível por inteiro, e da consideração do móvel à do imóvel (1009 a36-38; 1010 a26-32). De modo mais global, faz com que eles observem as pressu­posições ou os requisitos das próprias noções de sensível e de sensa­ção: não somente alguém que sinta, mas ainda um substrato (hypo­keimenon), um algo que aparece e causa a sensação (1010 a20s.; 1010 b30-1011 a2). Esse conjunto de argumentos é elaborado no ter­reno que é o dos adversários do princípio, para completar e aper-

39 Martin Heidegger, Nietzsche, 11, op. cit., trad. p. 113.

Das plantas que falam 117

Page 60: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

i

feiçoar, simultaneamente, seu lagos e sua dianoia: Aristóteles, que sempre mantém a verdade da sensação do próprio, lhes dá simples­mente uma lição de fenomenologia.

A LIÇÃO DO MELHOR

Se é essencial à persuasão que o lagos dos adversários do princí­pio seja habitado por um pensamento, pode-se, desde sempre, detec­tar esse pensamento não os ouvindo falar, na medida em que sejam capazes disso, mas simplesmente vendo-os agir. Prova-se assim, pela prática, que aqueles que supostamente não defendem nada (methen hypolambanei, 1008 b10) não cessam de facto de defender (hypo­lambanein, b18, 20, 26).

O argumento é recorrente: capítulos 4 (1008 b14-27), 5 (1010 b9-11) e 6 (1011 a6-11). Ele consiste em mostrar que a indistinção ("todas as coisas juntas", "tudo é um" de Anaxágoras), implicada tan­to pelo logos de Heráclito quanto pelo de Protágoras, é desmentida pela menor de suas ações.

Em sua primeira e mais explícita ocorrência, o argumento é de uma luminosa evidência e, no entanto, palimpsêstica e codificada, tanto em suas alusões doxográficas aos pré-socráticos quanto em sua referência a Platão. A contradição, como o demonstra o conjunto do capítulo 4 a partir de uma reflexão sobre a significação, tem como du­pla conseqüência a indistinção entre as palavras e a indistinção entre as coisas; Aristóteles interpreta tal indistinção em termos de indife­rença, fazendo-a funcionar no campo do bom e do útil: não há diferen­ça entre "bom" e "não-bom"; tampouco nenhuma diferença entre o que é bom (de se fazer, de se escolher) e o que não é bom. Ora, os de­fensores da contradição fazem, como todo mundo, isso mais do que aquilo: sua conduta testemunha a preocupação com um "melhor", com um "preferível" (beltion, 1008 b18, 22; ameinon, 27). Alguns preferem dirigir-se para Mégara a permanecer nas aporias eleatas; outros recusam seguir Tales ao fundo do poço: a escolha prática im­plica que se defenda (hypolambanei, 18,20,26) um pensamento que contradiz o da contradição. Observar-se-á que é no momento preciso em que, no Teeteto, a apologia que Sócrates lhe faz permite a Protágo­ras triunfar, que o sofista é vencido por Aristóteles: se um estado é pre­ferível a outro, se há um pior e um melhor (beber água, ver um ho-

118 o efeito sofístico

mem) - preferível e melhor que os logoi de Protágoras se vangloriam de produzir -, então deve haver também o não-contraditório, o ver­dadeiro e o falso, portanto. E isso vale, justamente, para aqueles que, como Protágoras ou com ele, escolhem - escolhem Protágoras.

De saída, o argumento é grave: ele não propõe nada menos do que fornecer aquilo que, após Leibniz, pode-se denominar o princí­pio do melhor, ou seja, o princípio de razão, como razão ou funda­mento do princípio de não-contradiçã040. O estatuto da verdade se encontra aí até mesmo modificado, ao menos provisoriamente, visto que, a partir de então, há não somente o verdadeiro e o falso, mas o "mais" e o "menos" verdadeiro (to mallon alethes, 1009 a1s.), segun­do uma escala mensurável de relação Com o verdadeiro, como o tes­temunha a comparação com a aritmética. O verdadeiro acaba tendo a natureza de um ente (en tei physei ton onton, 1008 b33), obede­cendo não mais ao que será sua definição canônica, pela contradi­ção Com o falso e exclusão do terceiro (capítulos 6 e 7), mas às apro­ximações do real e à relatividade das verdades contingentes. Suponha­mos que aqui se delineia a duplicidade do próprio princípio de razão, tal como Leibniz a fará reluzir no § 32 de sua Monadologia: "nenhum fato poderia ser tomado COmo verdadeiro ou existente, nenhuma enunciação verdadeira ... " .

Compreende-se então que ele possa ser encadeado à exigência de significação. Aqui ele é precedido pela advertência ameaçadora consti­tuída pelos "seres puramente naturais" (ton pephykoton, 1008 bll-12) com os quais se confundiriam aqueles que não defendem nada. Sua segunda ocorrência (5, 1010 b9-11), que recorre ao argumento do sonho ("não há ninguém que, tendo-se convencido uma noite de que estava em Atenas quando estava na Líbia, comece a andar em direção ao Odeon"), intervém em uma discussão acerca do critério, pertencendo à série dos argumentos fenomenológicos: por sua vez, tal discussão reutiliza o argumento semântico, a propósito do sentido da palavra "doce", que, mesmo se o vinho e o bebedor mudem, não po­deria mudar. Sua terceira ocorrência, por fim, bastante alusiva, diag­nostica, na falta de educação dos que procuram um Iogas para tudo, uma verdadeira doença (pathos, 6, 1011 a12). Para curar tal doença teórica e discursiva, a persuasão sempre poderá apoiar-se nesse des­dobramento prático da personalidade.

40 Cf Si Parménide, op. cit., pp. 88-91.

Das plantas que falam 119

Page 61: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

:1

II

Antes de passar ao outro lado da dicotomia, apostemos que a persuasão de Aristóteles triunfou, em todo caso, sobre esse discurso pré-socrático "ébrio de si mesmo" (akratou, 4,1009 a4), não sepa­rado dessa água que - como efeito mesmo da metáfora - designa a dianoia aristotelizável ou aristotélica: pois ela provou que, para de­fender até o fim um discurso como esse, só se poderia escolher entre o silêncio esquivo de Crátilo e a impotência ou a abulia dos sonhadores acordados.

FAZER FALAR OS QUE NÃO PENSAM: A LIÇÃO DE DIALÉTICA

Do outro lado da dicotomia, portanto, aqueles que falam pelo prazer de falar: logou kharin legousin.

Uma seqüência análoga encontra-se já em Hesíodo, que reco­menda nos Trabalhos não enganar glosses kharin (709), ou em Ésqui­lo, nas Coéforas, em que o Corifeu teme que ainda se traia Orestes glosses kharin, pelo prazer de se deixar levar pela língua. Aristóteles utiliza freqüentemente a seqüência logou kharin de maneira termi­nológica, para designar um exemplo tomado "pelas necessidades da causa" (Ética a Nicômaco, VI, 13, 1144 a33) ou uma tese que se en­dossa "pelas necessidades da discussão" (Tópicos, VIII, 9, 160 b22). Mas, em toda a seqüência legein logou kharin, há uma reduplicação que pode ser melhor compreendida por contraste com as caracterÍsti w

cas da ciência buscada, escolhida não por causa de suas conseqüên­cias mas por causa dela mesma (hautes heneken) e tou eidenai kharin, "pelo prazer de conhecer" (Metafísica, A, 2, 982 aI5). Duas autono­mias simétricas satisfazem, assim, à definição da liberdade, dada um pouco mais à frente na Metafísica, e que precisamente a reduplicação assinala (haute hautes heneken, 982 b26-28): a liberdade do saber e a liberdade do discurso. Mas, enquanto a primeira é munida, ao lon­go da Metafísica, de uma discursividade afim, começando aqui mes­mo com o ton on legetai pollakhos (2, 1003 bS), a segunda é da or­dem de uma perseverança diabólica.

Para melhor compreendê-lo, retomemos brevemente o exemplo dos Tópicos: tratava -se de evitar defender (hypokhein, 9, 160 b 14, 17, 22) uma tese improvável, não apenas no sentido lógico, porque dela derivam conseqüências absurdas, mas também no sentido ético, por-

120 o efeito sofístico

que ela é contrária ao sentimento das pessoas honestas; pois você será então desprezado, por pensarem que você defende a tese não pelas ne­cessidades da discussão, mas por dizer o que pensa (ou gar hos logou kharin hypekhonta, all'hos ta dakounta legonta, 21-22). O exemplo é precioso, pois é preciso distinguir duas maneiras de pensar o que se diz: a primeira, como que de dentro, acreditando nisso, ou seja, ten­do uma dianoia e uma doxa na origem de seu lagos; a segunda, como que de fora, endossando, na discussão, a tarefa de demonstrar ou de responder - o que se tem, de fato, o direito de fazer mesmo em rela­ção a teses ruins -, especialmente se se trata, nesse caso, de um exer­cício (cf. Tópicos, I, 2).

Nessa passagem dos Tópicos, o primeiro caso é marcado por doxa; o segundo, apenas por hypekhein. Em Gama, a parte boa da dicotomia representada pelos "fenomenólogos" defendia seu lagos e o defendia com uma doxa. O fato de que "falar por falar" (/ogou kharin legein) não implique, em contrapartida, nenhum "defender" (hypekhein) de qualquer tipo torna-se manifesto quando, continuan­do o texto, constata-se que Aristóteles acrescenta o hypekhein logon, "defender seu discurso", como uma determinação suplementar.

Duas porções de texto devem ser compreendidas em conjunto. A dicotomia de que partimos: "r ... ] É preciso, para os outros, a coa­ção [ ... ] Todos aqueles que falam por falar, sua cura é uma refuta­ção do que é dito nos sons da voz e nas palavras" (5, 1009 a18, 20-22). Em seguida, após sua retomada distorcida no início do capítulo 6, a distinção entre "aqueles que buscam apenas a coação" (ten bian monon zetousin., 1011 aIS) e "aqueles que buscam a coação no dis­curso, mas que julgam ao mesmo tempo dever defender seu discurso (hama de kai hypekhein logon axiousi) " (22). Somente esses últimos são longamente evocados e aconselhados: "Eles devem atentar para o fato de que não é o que aparece que é, mas o que aparece para quem isso aparece, e quando, e na medida em que, do modo como isso apa­rece. Mas se eles defendem seu discurso sem defendê-lo assim (an d'hypekhosi men logon, me houto d'hypekhosi), chegarão rapidamen­te a defender os contrários" (21-25). Ora, na seqüência do desenvol­vimento em que Aristóteles continua a proferir, no lugar deles, o dis­curso mais irrefutável possível, eles são designados como se não fos­sem uma parte, mas a totalidade daqueles que, não falando sob o efei­to da aporia, discorrem pelo amor do discurso (tos me di aporian alia logou kharin legousin, 1011 b2-3).

Das plantas que falam 121

Page 62: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Ili "I

li!

11"

i

li!

Tudo se passa, portanto, como se Aristóteles forçasse novamente . sua taxionomia para nunca ter de se confrontar com a posição irre­dutível. Pois a determinação suplementar da defensabilidade permite a Aristóteles dar, dessa vez, não mais uma lição de fenomenologia, mas uma lição de dialética. Ao se comparar a parcnética aristotélica com as preocupações não menos categoriais de Sócrates expondo, com o homem-medida, como os partidários da relatividade do ver­dadeiro devem falar para não se contradizerem (Teeteto, especialmen­te 160 b-c), compreende-se que Aristóteles ainda visa, nessa passagem, aos sofistas de tipo platônico: àqueles que o termo refutação pode ca­racterizar adequadamente, refutação verdadeira ou aparente, que eles praticam e que se pode praticar contra eles. Aristóteles assegura, as­sim, seu retorno sob a proteção do princípio, já que eles aceitam a principal regra dialética de não se contradizer, mesmo se não se preo­cupam com o que é nem com a verdade do que dizem. Defender (hypekhein) seu discurso é necessário e suficiente para a refutação pragmática. A defensabilidade do discurso é, nesse ponto de vista, a Ersatz dessa defesa pelo pensamento, de que se viram afetados tanto os pré-socráticos, na medida em que são fenomenólogos, quanto os homens, na medida em que adotam condutas de sobrevivência. O hypekhein é um hypolambanein sem ontologia, que produz a coerên­cia em vez da verdade e, assim, uma lógica puramente formal. Essa organização das proposições entre si corresponde, no plano semânti­co, à possibilidade, ela mesma auto-regulada, de um sentido sem es­sência ou sem referência.

Na dupla seqüência:

I (hypolambanein) 11 (hypekhein)

semântica sentido-essência sentido

sem referência

sintaxe verdade como coerência formal

relação do ser (verdadeiro como

e do dizer não-falso)

a distinção entre os adversários, pelo grau de convicção que os ani­ma, faz com que se reencontre a diferença canônica entre os níveis ontológico e lógico do princípio.

122 o efeito sofístico

SIGONTA LEGEIN

Restam, enfim - além dos que sustentam seu discurso com um pensamento e que podemos, portanto, persuadir e/ou convencer de auto-contradição lógica; além dos que sustentam um discurso não­contraditório sobre a contradição, mas que podemos sempre conven­cer de contradição pragmática - aqueles que sÓ fazem falar, e falar por falar.

É para eles que foi inventada a refutação transcendental, pois, se eles falam por falar, é porque falam e, portanto, na medida em que se adota a equação que é o fundamento da refutação, porque signifi­cam algo para si mesmo e para outrem. A "coação" que se exerce contra eles deve ser essa coação refutativa, própria a colocá-los dian­te do fato consumado da petição de princípio que eles cometem à sua revelia: a decisão do sentido tomada por todo sujeito falante. De fato, repete Aristóteles, "sua cura" é "uma refutação".

Mas a refutação que se aplica especificamente a eles, acrescenta, é "uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras" (5, 1009 a20-22). Essa notação sucinta poderia de fato constituir o ápice do problema: "o logos nos sQns da voz e nas palavras" é ou não idên­tico ao lagos do legein ti, aquele cujo primeiro efeito é o de que as palavras tenham um sentido, isto é, um único sentido?

Tudo conspira, em primeiro lugar, para que uma resposta posi­tiva seja evidente. Já que se trata, com o lagos, da diferença específica do homem, é porque não se trata de ruído, som de sino ou de flauta, murmúrio do vento nas folhas, rugido de animais, gritos de crianças. No próprio caso da "voz" animal (phone), definida no Tratado da alma em comparação com a tosse, por exemplo, como "um certo ruído se­mântico" (11,8,420 a32), já se trata de significaçã041 . Com a pala­vra, que é uma "composição de sons vocais" (Po., 20, 1457 aIOs.; cf 14s., 23s.), trata-se, além disso, de "significação por convenção"; no Tratado da interpretação, de fato, a palavra e, em seguida, o próprio lagos são definidos como phone semantike kata syntheken (4, 16 b26 e 2, 16 a19), com a única diferença entre eles de que uma parte de logos, precisamente uma palavra, significa ainda, enquanto uma par­te de palavra não significa. Trata-se, mais ainda, literalmente de "sig­nificar algo" (semainein ti, b28): assim, para a palavra "homem", que

41 Cf PaI., 1,1253 a9·15.

Das plantas que falam 123

Page 63: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

serve como exemplo de part-e significante de lagos significante. Con­seqüentemente, o lagos que está nos sons da voz e das palavras é o lagos comum, e não há nada aí que permita evitar a radical simplicidade da refutação transcendental.

Mas se esse é, de fato, o caso, qual é, portanto, a função da se­guinte precisão: "lagos situado nos sons da voz e nas palavras"? A úni­ca resposta possível é oferecida pela taxionomia. Em vez de coação e lagos, lembremo-nos de que se tratava, do outro lado da barra, de per­suasão e de dianoia; pôde-se modificar o logos porque se podia refor­mar a dianoia que nele se exprimia. Agora, não mais dianoia, mas apenas logos; para retomar a alternativa, "não é em relação ao que eles pensam, mas ao que dizem que os afrontamos" (cf. 1009 a18). Trata-se de um lagos que é apenas lagos; como todo lagos, ele é (em) sua "materialidade"42 significante, mas só é algo aí, e nada mais do que isso; é, por falta de dianoia, apenas nessa materialidade que se pode alcançá-lo. Esse é o sentido mais próprio da reduplicação "falar por falar" (1009 a21 e 1011 b2s.), "restringir-se a dizer esses dizeres" (1010 a4).

Ora, quando Aristóteles volta a seus derradeiros adversários, em uma notação tão sucinta quanto a primeira, ele deve reconhecer que "aqueles que buscam apenas a coação no discurso" (en toi logoi ten bian monon zetountes, 1011 a15) - que se entenda: aqueles que bus­cam apenas a coação, e portanto a buscam apenas no discurso - "bus­cam o impossível". Tudo se passa portanto como se, nos meandros dessa pequena frase, encravada como a precedente no desenvolvimen­

, to das outras partes da taxionomia (logo antes, dessa vez, que a exi-gência de defensabilidade ofereça respeitabilidade dialética e que um deslizamento permita recuperar uma porção desses irredutíveis como se fosse seu conjunto), tudo se passa como se Aristóteles reconhecesse o fracasso inevitável da estratégia que ele instaurou, chegando a lan­çar sobre o outro a falha e a impotência que dela resultam.

A coação no discurso, nada menos do que a coação, é "impossí­vel". Por que tal fracasso? Certamente não se pode compreender a natureza da impossibilidade, lendo-se aqui, como Tricot, por exem­plo, o retorno da ladainha auto-contraditória: "eles têm a pretensão de que se lhes atribua o privilégio de se contradizerem a si mesmos, exigência que se contradiz a si mesma imediatamente" (1011 a16). Pois,

42 Cf GA, V, 7, 786 b21: "A voz é a matéria da linguagem".

124 o efeito sofístico

em vez de exigir um privilégio, os sofistas enquanto tais exigem que a , legislação seja - a mesma para todos - a do lagos puro, sem impo­sição de normas extrínsecas. A decisão do sentido, nosso tema, signi­fica que, nesse ponto da metafísica - como o próprio Aristóteles o

, revela -, o sentido aparece como uma norma extrínseca ao logos, como uma decisão que pode ser recusada. Existe uma maneira de con­ceber o lagos, há lagos, que existe - que só existe - nos sons da voz e nas palavras, e um Iogas como esse, com isso, não é regulado pela exigência aristotélica de significação. Se esse Iogas não tem sentido, no sentido aristotélico do termo, é porque ele não tem um único sen­tido, nem o mesmo sentido para todos, mesmo se o que se pronuncia e o que se ouve não deixe de se apresentar como sons da voz e como palavras: é o lagos em que se deixa ressoar o impensável, e que deve­ria ser inefável, "ao mesmo tempo" da contradição. "De fato, eles con­sideram (possível, normal, legítimo) dizer contrários, logo que os di­zem" (1011 a16, em nossa tradução; cf. ad loc.). Notar-se-á, de iní­cio, que, como previsto, para eles não há qualquer necessidade de pensar, de defender, a contradição: basta proferi-la para que ela exis­ta. É exatamente pelo fato de Heráclito não pensar no que dizia que ele mereceu ser, desde o início, o paradigma desses irredutíveis. Suas contradições são legítimas de facto, pelo único fato de eles as enun­ciarem: a contradição entre teoria e prática, logos e conduta, não de­veria ser imputada, no final das contas, a Aristóteles? Os sofistas po­dem dizer tudo o que dizem, porque seu discurso só se apóia em si mesmo, e não na natureza dos seres nem na sua própria intenção de significar. Aristóteles encontra aí o mais autêntico ponto de resistên­cia do discurso sofístico, já designado por Górgias no Tratado do não­ser: kai legei ho legon, "e aquele que fala fala"43.

Notar-se-á, em seguida, que se trata de contrários (enantia) e não de contraditórios; de termos, e não de proposições; de semântica, e não de sintaxe: modo de dizer, ainda uma vez, que se trata do logos na medida em que ele é composto de sons vocais que fazem sentido. Po­de-se então circunscrever, com precisão, o lugar de fracasso da refu­tação transcendental: recusa do sentido produzido na definição da palavra, mas reivindicação do ou dos sentidos produzidos pelos sons: livre jogo dos significantes contra univocidade da significação.

43 Sur Mélissus, Xénophane et Gorgias, 980 b4, G. 10 Cassin; cf Si Parmé­nide, op. cit., p. 98s., e, para o que antecede, p. 90s.

Das plantas que falam 125

Page 64: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Aqueles que querem apenas a coação atêm-se a esse logos e a refutação que eles exigem é impossível porque tal lagos não admite as equivalências necessárias ao funcionamento da refutação trans­cendental. Em outros termos, reencontra-se aqui a exclusão inicial, não menos transcendental do que a própria refutação: aqueles cujo Iogas está por inteiro nos sons da voz e nas palavras não significam algo, não falam, não são homens.

Não se deveria confundir esse livre jogo dos significantes, que Aristóteles reduz à insignificância, com ° discurso não-apofântico, ou seja, não suscetível de verdadeiro ou de falso, tal como a ordem ou a prece44. No entanto, lendo-se a Poética, a qual o Tratado da inter­pretação remete, todas essas "maneiras de falar" (precisamente skhe­mata tes lexeos, 19, 1456 b9) - até e inclusive a narração - têm em comum o fato de remeterem à lexis e não à dianoia. A lexis, que se traduz freqüentemente por "estilo", e mais adequadamente por "ex­pressão", é aí definida inicialmente como "a manifestação do senti­do por meio da colocação em palavras" (tou dia tes onomasias her­meneias, 6,1450 b13-15). Ela não é, portanto, pensável sem a signi­ficação, sem o pensamento que sustenta o lagos lexicalizado. Mas ela se distingue entretanto constantemente da dianoia, a tal ponto que essa distinção determina a própria estrutura da Retórica, por exem­plo, que examina separadamente, de início a dianoia, "o que se deve dizer", em seguida a lexis, "como se deve dizê-lo"45. De tal modo que Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot podem comentar da seguinte maneira a relação entre esses dois conceitos na Poética: "Após o pen­samento, como 'conteúdo' do lagos, a expressão, sua 'forma'. Certa­mente seria anacronismo projetar no par lexis-dianoia o par - estói­co, antes de ser saussuriano - significante-significado, mas é exata­mente disso que se trata grosso modo,,46. As duas maneiras de apre­ender a lexis na Poética - a partir de suas formas, que são as manei­ras de falar (capítulo 19), e a partir dos elementos que a compõem (capítulo 20) - não são, desde o momento em que nos situamos no ponto de vista do significante, tão independentes quanto parecem47

126

44 Int., 4, 17 a.

45 Retórica, IlI, 1, 1403 b16.

46 Op. cit., p. 311, nota 5.

47 Ibidem, p. 313, nota 5.

o efeito sofístico

A lexis excede, em ambos os casos, o Iogas semantikos, quer ela re­meta, como a algo além, ao trabalho do ator, ou quer seja constituí­da, como por algo aquém, por elementos não-significantes tais como o fonema, a sílaba, até mesmo essas "conjunções" e "articulações" que designamos como limites da refutação transcendental. Em ambos os casos, é essencialmente na condição de sonora que a lexis se dei­xa isolar.

Mas é nas Refutações sofísticas que Aristóteles se aproxima mais de uma consideração da lexis em estado puro, como produto de uma decomposição sofística do lagos, ou, para retomar os termos de Gama, como" lagos situado nos sons da voz e nas palavras" . Há, co­mo se sabe, dois "estilos", duas maneiras possíveis de refutar: ou nos mantemos "fora da expressão" (exo tes lexeos, SE, 4,165 b23), aten­do-nos então à significação, e especialmente à pluralidade dos senti­dos do ser; ou nos mantemos "ao longo da lexis" (para ten lexin, ibid., em que o acusativo indica movimento), acompanhando, em seu desenrolar, aquilo que será denominado, com Saussure, de "o cará­ter linear do significante"48.

O primeiro tipo de refutação equivale, como se viu, a uma per­suasão: consiste em estabelecer distinções no pensamento que permi­tam purificar a lexis dissipando as homonímias, falar como Aris­tóteles. Mas a homonímia concerne igualmente a certas refutações do segundo tipo: às que dizem respeito à homonímia stricto sensu, ou seja, ao equívoco semântico próprio a certas palavras (o termo fran­cês "apprendre", por exemplo, que ora significa ensinar, ora apren­der); às que dizem respeito à anfibolia ou equívoco sintático próprio a um Iogas inteiro ("desejar-me a captura inimiga" é desejar que eu seja preso ou que eu prenda?); finalmente, às que dizem respeito à morfologia da gramática (mais um sentido de skhema lexeos: por exemplo, uma afecção, uma paixão, como ver, é entretanto um ver­bo ativo)49. Os paralogismos considerados jogam com a lexis, mas o diagnóstico de homonímia está aí para ancorar essa lexis no semai-

48 Trata-se, após o caráter arbitrário do signo, do segundo princípio refe­rente à natureza do signo lingüístico, dado por Perdinand de Saussure em seu Cours de linguistique générale (publicado por C. Bailly e A. Séchehaye), Paris, Payor, 1966, p. 103.

49 Remetet-se-á às duas enumerações, concordantes mas não paralelas, de 4,165 b24·27, e 6,168 a23·30.

Das plantas que falam 127

Page 65: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nein, para encontrar a significação sob os significantes e a diferença das coisas sob a identidade da palavras 0: pois sem a possibilidade de confundir, sob uma mesma palavra (é um "animal"), referentes cujas definições diferem (um homem vivo, pura e simplesmente animal bípede, e um homem pintado, representação inanimada de um ani­mal bípede), não há homonímia. Poder-se-ia dizer, sistematizando ao extremo, que as homonímias do primeiro tipo são homonímias ra­cionais, que somente a ferramenta metafísica aristotélica permite desa­fiar logicamente, ao passo que as homonímias de segundo tipo são homonímias lingüísticas ou lógicas, que qualquer grego digno desse nome saberá desfazer.

Mas, tanto em um caso quanto no outro, ainda não nos confron­tamos com a lexis pura ou isolada, visto que a homonímia implica exatamente que haja referência à coisa, ou, em todo caso, à significa­ção. É por isso que apenas as refutações que se atêm à expressão sem lançar mão da homonímia têm uma chance de só se prenderem à ex­pressão. Há três espécies delas: por composição, por divisão, por acen­tuação (SE, 4,165 b26s. ou 6, 168 a26s.). Nesses três casos, de fato, não há dualidade de significação para uma mesma lexis, mas, radical­mente, dualidade de lexis (ibid., 20, 177 bl-3; cf 4, 165 b27s.); de fato, "ou" [ou], a conjunção coordenativa francesa, e "ou" [onde], ad­vérbio de lugar, não são uma única e mesma palavra, do mesmo mo­do que "eu o vejo com meus olhos, chocado" e "eu o vejo com meus olhos chocado" não são uma única e mesma frase. Como testemunha disso, por escrito, essas notações suplementares (parasema, ibid., 20, 177 b6) que constituem, de início, a acentuação, em seguida, a pon­tuação; mas, oralmente, a "pronúncia" (ta phteggomena, 7s.) é sem­pre suficiente, senão em francês, ao menos em grego, em que o acento marca uma inflexão real da voz, para fazer com que se reconheça de que palavra, de que frase se trata.

É evidente que as duas palavras, ou as duas frases, têm cada qual o seu sentidoS1 , e é exatamente por isso que a refutação não pode mais consistir em dissipar uma homonímia: só se escapa dela "dizendo o contrário do lagos concluído" (ibid., 20,177 a35), ou seja, restabele­cendo a palavra ou o lagos inicial, alterando, portanto, simplesmente

128

50 SE, 22,178 a24·28; cf. Gama 4,100618·22, e nota ad loc.

51 SE, 20,177 a345.; 21,178 a25.; cf 4,166 a25, 36.

o efeito sofístico

a inflexão ou a elocução. Dito de outro modo, apenas o significante pode servir de recurso contra o significante. Ao menos uma vez, nas

i Refutações sofísticas e em Aristóteles, não se trata de pensar, mas de : ouvir atentamente.

Aristóteles aproxima-se aqui, ao máximo, de um interesse dire­to e de uma percepção isolada concernindo a lexis: o mais próximo possível de atribuir à linguagem um valor sofístico. Ao mesmo tem­po, precisamente nessa última espécie de refutação, ele não supõe, em momento algum, que a lexis não signifique nem que uma lexis da­da não tenha apenas um sentido. Aristóteles só se detém na dimensão da lexis na medida em que ela não representa qualquer perigo para a sua teoria da significação. É por isso que a refutação impossível de Gama não poderia ser uma dessas refutações sem homonímia. Ao con­trário, se ela é impossível, é porque requer, para Aristóteles, que se dis­sipe uma homonímia, enquanto o sofista pretende se ater apenas à le­xis, proferida e ouvida, cão ou Cão, mas, em todo caso, "cão". En­contrar-se-á o irresistível paradigma dessa" refutação impossível" em um dos paralogismos por anfibolia que as Refutações sofísticas men­ôonam: sigonta legein, "falar em silêncio", quando o particípio no masculino singular se refere ao sujeito em elipse, ou "falar coisas mu­das", quando o particípio no neutro plural serve comd objeto direto. Pois se nos atemos ao lagos que está nos sons da voz e nas palavras, inclusive a entonação e a elocução, se nos recusamos, portanto, a re­correr ao sentido, a ambigüidade permanece, confundindo, contradito­riamente, discurso e silêncio em um mesmo sujeito, algo, de fato, co­rno urna planta que fala.

Aristóteles não isola, mais adiante, o lagos que está nos sons da voz e nas palavras do sentido que ele tem. Em termos contemporâ­neos, diríamos que ele não distingue a dimensão 'do significante, no sentido em que Lacan, por exemplo, o define: "Distinguir a dimen­são do significante só ganha relevo uma vez posto que o que você ouve/entende [Ce que vaus entendez], no sentido auditivo do termo, não tem qualquer relação com o que isso significa" (Encare, op. cit., p. 31). Essa distinção, enquanto tal, é até mesmo incompatível com o conceito aristotélico de logos. Mas, assim como a suspensão do semainein autoriza um sentido sem referência, a escuta suspensa à lexis sugere, para quem quiser ouvi-Io/entendê-Io, que "o significado é o efeito do significante" (ibidem, p. 34).

Das plantas que falam 129

Page 66: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

GAMA EM UM QUADRO

Eis, sob a forma de quadro, a taxionomia dos adversários do primeiro princípio da ciência do ser enquanto

ser e suas inconsistências ou suas distorções:

Petição do princípio Aristóteles = todos (os que buscam compreen­der um cnte qualquer) 3,1005 bll-18

Indemonstrabilidade

Evidente

Negação do princípio Alguns mal educados = todos (os que mais buscam e amam a verdade) 4, 1006 aS-lI;

Silêncio 4,1006 a14, 22-24; 1008 b8s.

S, 1009 b33-3,9c~ _____ _

I Aqueles que falam sob o efeito de uma aporia e que podem ser ~?didos (5, 1009 a16-20)

1.1 1.2 Heráclito: os físicos (3, 1005 b24s.; a23s.) "o mesmo é e não é" =

Anaxágoras, Demócrito

Protágoras: os so­fistas (4, 1007 b22s.; 5,1009 bIs.) "todos os fenômenos são verdadeiros" =

Empédocles, De­mócrito, Parmêni­des, Anaxágoras, Homero: os que mais buscam e amam a verdade

<'--Aqueles que heraclitizam Crátilo

/5.10:10 ",-10 15)

Eles defendem (hypolambanein) seu discurso com uma doxa, com uma dianoia:

pensamento = sensação = alteração (5,1009 b12s.) entes = sensíveis

(1010 a2s.)

11 Aqueles que falam pelo prazer de falar e que é preciso coagir (5,1009 aI6_-2_2 ___ )-,--_______ --I

11.1 II.2

Eles buscam apenas a

coação no discurso (6, 1011 a15s.)

Eles também estão na aparia (6,1011 a4s.)

Sofística filosófica

Refutação lógica por distinção dos sentidos do ser

Verdadeiro

Eles também aceitam defender (hypekhein) seu discurso (6, 1011 a21s.)

Eles são confundidos em 1011 b2s. ------7

Sofística dia/ética

Refutação pragmática

Defensável

Sofística sofística

Uma p/anta que fala (4,1006 a 14s., 1008 blls.)

Refutação / Refutação = Refutação transcen- do logos impossível dental que está (6, 1011 a15s.) (hypo- nos sons menein, da voz e 4,1006 nas pala-a26) vras (5,

1009 a20-22) ------7

Sensato / Sonoro I Inaudito

~ ....... 6.'.(~.1 ........................................... ... _ _ I •• , .. F .• 5.:'_

Page 67: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Insistiremos nas setas, que marcam os deslocamentos da taxio­nomia, ou seja, os esforços sucessivos de Aristóteles para recuperar o maior número possível de adversários, e fazer deles definitivamente aristotélicos; até a seta final, no outro sentido, em que a assimilação se inverte em exclusão radical, para fora da humanidade.

A TOPOLOGIA DO SENTIDO: DO SENTIDO SEM REFERÊNCIA (FICÇÃO) E DO SIGNIFICANTE SEM SENTIDO (HOMONÍMIA)

A regulação aristotélica da linguagem (a "decisão do sentido") perfaz a relegação da sofística. Ela faz de sua prática da linguagem não mais um arremedo nocivo da teoria das idéias - um indiscernível cão­lobo -, mas uma prática limite, e portanto limitada, delimitada, que, por sua própria marginalidade, auxilia o desdobramento ético·filo­sófico da norma, a ponto de poder trazer-lhe, como todo extremismo e toda exterioridade under control, um impulso crítico e inventiva.

Para visualizar claramente a ou, mais exatamente, as marginali­zações da discursividade sofística, deve-se partir da topologia do senti­do, criada no final de Gama unicamente pela exigência de significação:

sentido

essêncla ("homem"/

homem)

sentido sem referência (fjcção -

"bode-cervo") significante sem sentido

(homonímia -"o um-sentido")

No centro, ocupando todo o espaço, o lugar da equivalência ou da reciprocidade entre sentido e essência (significar algo = significar uma única coisa;;;; significar a essência do que a palavra nomeia). É o lugar da filosofia aristotélica em que coincidem homem e "homem"; é, sem dúvida, o lugar da própria filosofia, como "metafísica ociden­tal", lugar reconquistado pelos sofistas, com suas insuficiências, quan­do são convencidos de filosofia.

132 o efeito sofístico

Esse lugar comporta duas exterioridades, cada uma determina­da pelo seu tipo de falta quanto à equivalência e, correlativamente, pelo seu grau de afastamento em relação ao centro. Mesmo se tais exte­rioridades são, esquemática e topologicamente, necessárias para a pró­pria existência do lugar da filosofia, elas não têm O mesmo estatuto e não são facilmente articuláveis entre si. Dever-se-ia dizer que, dessas duas posições necessárias, uma é possível e a outra, não.

Delimitando o centro, e portanto, como todo limite, necessário para o território, o lugar, tornado precisamente possível por Aristóteles, em que "significar algo" não equivale a "significar a essência daquilo que a palavra nomeia". Lugar do sentido sem essência, que se pode­ria denominar atualmente - repetindo que toda precaução que se tome é pouca - sentido sem referência. Estamos no campo do significar algo pura e simplesmente, da suspensão criada pela exigência da significa­ção e pela radiealidade da refutação transcendental: o paradigma dis­so é o "bode-cervo", puro efeito da definição aristotélica do sentido. O princípio de não-contradição reina aí somente como princípio de identidade do sentido, de tal modo que se pode ainda contar para si mesmo e para os outros histórias de bode-cervo. Essas histórias po­dem, ou devem, ser coerentes, defensáveis, convincentes. Mas trata­se, nesse caso, de palavras, de ficções sem vínculo com o real; e a li­nha na qual é instalada essa sofística torna-se progressivamente o es­paço de uma retórica que escapa ao aristotelismo, ou, mais exatamen­te, que aristoteliza quanto a suas regras técnicas, mas não quanto à sua finalidade, desvinculada dos ofícios do real. É ela que desabrocha em literatura, e cuja pista se segue, sete séculos mais tarde, nas rela­ções entre primeira e segunda sofística, na aurora de gêneros novos, quando surge, em especial, o romance. O romance, fortuna do bode­cervo, akme do grande canteiro das alternativas sofística/ filosofia/ retórica/ literatura. Ressalte-se como a sofística deve oscilar incessan­temente ora para dentro (sofistas aristotélicos, mas Crátilo do silên­cio habitado resiste), ora para fora (emitir ruídos, uma outra maneira de calar-se).

Eu sugeriria designar esse fora, no lugar de sigonta legein, com um último pequeno agrupamento de sílabas mais próximo de nós, e que seria necessário escrever foneticamente: "l'un-sens" [um-sentido], esse significante fabricado ad hoc por Lacan para sussurrar os contrá­rios. Certamente não há outro meio de falar sobre isso cientificamen­te, nem mesmo de continuar a falar disso, senão tragando progressi~

Das plantas que falam 133

Page 68: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

vamente o fora pelo limite, em seguida pelo centro: fazer, por exem­plo, desse "insens" [insentido] que é o inconsciente que não conhece a contradição, uma hipótese, cada vez mais necessária e legítima, de início bode-cervo, depois até mesmo coisa52.

Movimento que Mallarmé realiza, em duas estrofes de um sone­to sem título:

Puras unhas no alto ar dedicando seus ônix, A Angústia, sol nadir, sustém, lampadifária, Tais sonhos vesperais queimados pela Fênix Que não recolhe, ao fim, de ânfora cinerária

Sobre aras, no salão vazio: nenhum ptyx, Falido bibelô de inanição sonora (Que o Mestre foi haurir outros prantos no Styx Com esse único ser de que o Nada se honora). ,.

Nenhum ptyx, de fato, em qualquer dicionário francês. É um ruído para nossos ouvidos. Mas he ptyx é uma palavra grega que sig­nifica "a dobra" [te p/i] e designa a dobra de um tecido, a parede do estômago, as pregas das entranhas, lâminas dos músculos e os vazios que eles desenham, o vale ou a anfractuosidade de uma montanha, as camadas e a profundidade do céu, e as folhas nas quais se escreve, enfim a cadência dos hinos e as inflexões do pensamento do poeta.

Impossível/ogos de planta: resta ainda tomar consciência do es­tatuto ambíguo dessa impossibilidade. A demonstração por refutação tem de fato, como escora, um impossível suscetível de uma dupla 10-

52 Cf. os meus Ensaios sofísticos, IV, 2, "Do sofisma em Freud".

" Citamos aqui a tradução de Augusto de Campos, in Mallarmé, São Pau-lo, Perspectiva/Edusp, 1974, p. 65. No original:

134

"Ses purs ongles tres baut dédiant leur onyx, L' Angoisse, ce minuit, soutient, lampadophore, Maint rêve vespéral brúlé par le Phénix Que ne recueille pas -de cinéraire amphore

Sur les crédences, au salon vide: nul ptyx, Aboli bibelot d'inanité sonore (Car le Maitre est allé puiser des pleurs au Styx Avec ce seul objet dont le Néant s'honore)". [N. da T.]

o efeito sofístico

calização. De um lado, desde que se admita a exigência transcendental (falar é dizer algo que tenha um sentido, um único e mesmo, para si e para outrem), é impossível que aqueles que não satisfaçam a tal exi­gência ainda sejam seres falantes e os sofistas não são, portanto, ho­mens: a demonstração projeta o impossível para fora dela e expulsa os recalcitrantes. De outro, a refutação da sofística - a que ela tem o direito de exigir, pelo menos como um doente pode exigir sua cura ao médico -, para que o princípio de não-contradição seja de fato de­monstrado para ela e não apenas colocado ou escolhido contra ela, requer "uma refutação do lagos que existe nos sons da voz e nas pala­vras" (r, 5,1009 a20-22); ora, reconhece Aristóteles, essa refutação é precisamente "impossível", já que se pode sempre "dizer" contrários e estimar que de facto são ditos, pura e simplesmente, cada vez que são ditos. Em suma, não é mais nem menos impossível dizer os contrá­rios tanto depois quanto antes da refutação. Antes: "é impossível, para quem quer que seja, defender que o mesmo é e não é, como alguns pensam que Heráclito diz; pois não é necessário que aquilo que alguém diz, ele tambén: o defenda ... senão ele teria simultaneamente as opi­niões contrárias" (3, 1005 b23-31), e sua dicrania * faria dele um mons­tro explosivo. Depois: "aqueles que buscam apenas a coação no discur­so, buscam o impossível, uma vez que estimam dizer os contrários quando os dizem" (6, 1011 aI5-16). O impossível é, depois como antes, ligado à suposição, à escolha, do primeiro princípio como tal, e é a todo momento que, no real, se instancia a factualidade "fática" de um discurso que lhe escapa. O impossível é, dessa vez, um impossível da demonstração, tomado no interior dela, em seu próprio fundamento.

Essa dupla localização da impossibilidade, no adversário e na demonstração, é determinante para essa segunda posição da sofística: a sofística é, simultaneamente, impossível e efetiva, como antero-pos­terior ao tempo universal da filosofia. Margem talvez seja ainda o nome, um dos nomes mais adequados, dessa posição. Mas é preciso compreender que apenas a descrição do gesto aristotélico como um "golpe" contra a sofística já é em si uma maneira de mudar de ponto de vista, talvez mesmo de época. Descrever implica certamente aqui o fato de que se está preso dentro, mas não implica que se deixe pren­der-se nesse lugar. É aí que o termo "estratégia" tem sua importân­

,'da. É estratégico descrever o golpe de Aristóteles em termos de estra-

1;' Do grego, dikranos, bifurcado, fendido. [N. da T.]

Das plantas que falam 135

Page 69: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tégia: Aristóteles desfere seu golpe contra, ele desenha, ele circunscre­ve um regime de discurso, por um lado, contra o qual seu golpe é montado, mas, por outro lado, um tipo de regime que consegue man­ter-se fora do golpe - mesmo se precisamente por causa disso esse re­

gime é marginalizado, anomalizado. Nesse ponto, duas reações me parecem possíveis, aliás não ex­

cludentes. Ou aceita-se a margem. E apenas isso deter,mina, por sua vez,

duas posiçães antitéticas: pois pode-se então, a escolher (segundo sua proairesis tou biou), colocar-se à margem, ou, ao contrário, denun­ciar a margem. Diversos nomes nos vêm, em ambos os casos, epô­nirnos de linhagens para o elogio bem como para a vindicta53

.

Ou então trabalha-se para redefinir, de maneira não-aristotélica, esse limite e eSse fora. E de saída recusa-se a assimilar, pura e simples­mente, margem (ou sofística) a não-filosofia, retórica, literatura (his­tórias de bode-cervo, segundo o regime minimal de um sentido sem referência). Recusa-se igualmente a assimilar margem (ou sofística) a significante (flatus voeis afixado à homonímia para melhor fazer rir ou funcionar em um divã). Desatando o que Aristóteles atou, busca­se, antes, a partir dos textos sofísticos, de que ação discursiva se trata quando, falando, não se trata, primeiramente, de significação. É, no fundo, o objeto mesmo de todo este livro.

"PODERÍAMOS CONTENTAR-NOS COM O SENTIDO": FREGE OU DA RELAÇÃO ENTRE AS DUAS POSIÇÕES

Na perspectiva que aqui se esboça, um dos pontos de articula­ção mais difíceis refere-se à relação entre essas duas posições de re­legação para fora do filosófico: a que é caracterizada por um uso ho· monímico da linguagem - significante sem sentido - e a que é ca­racterizada por um uso de ficção - sentido sem referência.

B Citemos, por exemplo, Alain Badiou, em um artigo recente ainda inédi­to, "La Fin de la Fin", acompanhando uma leitura muito generosa de I.a Déci­sion du sens: "E como há Protágoras e Górgias, deve haver Wittgensteins, Derri­das, Lyotards, Vattimos e Rortys" - Wittgcnstein constituindo certamente aqui um lugar-problema e, sem dúvida, o ponto central por excelência.

136 o efeito sofístico

Gostaria simplesmente de esboçar, apoiando-me em duas passa­gens de Frege, que justificam igualmente o precipitado em termos mo­dernos, a possibilidade interna de uma articulação como essa.

Gottlob Frege escreve54:

"A proposição 'Ulisses foi depositado no solo de Ítaca em um sono profundo' tem evidentemente um sentido, mas é duvidoso que o nome de Ulisses, que aí figura, tenha uma denotação; a partir disso é igualmente duvidoso que a pro­posição inteira possua uma. É certo, no entanto, que, se tomamos seriamente essa proposição como uma proposi­ção verdadeira ou falsa, atribuímos, ao fazê-lo, uma deno­tação ao nome de Ulisses, além do sentido. Pois o predicado é afirmado ou negado quanto à denotação desse nome. Se não aceitamos a denotação, tampouco podemos atribuir-lhe ou negar-lhe um predicado. Mas se quisermos nos ater aos pensamentos, seria supérfluo levar a análise até a denota­ção do nome; poderíamos contentar-nos com o sentido. [ ... J Mas por que queremos que todo nome próprio tenha uma denotação, além de um sentido? Por que o pensamento não nos basta? É na exata medida em que nos importa seu va­lor de verdade. E tal nem sempre é o caso. Se ouvimos uma epopéia, além das belas sonoridades da língua, somente o sentido das proposições e as representações ou sentimentos que esse sentido desperta mantêm a atenção presa. Queren­do buscar a verdade, abandonaríamos o prazer artístico pelo exame científico. Disso resulta que é de pouca importância saber se o nome "Ulisses", por exemplo, tem uma denota­ção, quando recebemos o poema como uma obra de arteS5 .

54 Écrits logiques et philosophiques, "Sens ec dénotation", trad. C. Imbert, Paris, Seuil, 1971, p. 108s. Bedeutung, traduzido aqui como "denotação", é o ter­mo que outras convenções de tradução traduzem como "referência". Sobre o sen­tido, a evolução e as traduções possíveis dessa noção, ver especialmente Philippe de Rouilhan, Frege. Les Paradoxes de la représentantion, Paris, Minuit, 1988, ca­pítulo 2, intitulado" La significarion (la Bedeutung)".

ss "Seria desejável ter uma expressão particular para designar os signos que têm somente um sentido. Se os chamarmos de imagens, as palavras do ator no palco seriam imagens e o próprio ator seria uma imagem" Inota de Frege ad loe. Grifos meusJ.

Das plantas que falam 137

Page 70: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

É portanto a busca e o desejo da verdade que nos levam a passar do sentido à denotação."

"Ulisses", que nos apareceu em outra circunstância como o nome próprio do Ser, é, na perspectiva do sentido sem referência, o nome épico do bode-cervo. Deixo de lado a divergência, profunda e reconhe­cida, entre o ponto de partida aristotélico ("lógica dos termos", como se diz) e o de Frege ("lógica das proposições")56, cujas conseqüências teremos de avaliar. Quero apenas ressaltar a nitidez exemplar da equi­valência entre sentido sem referência e discurso de fIcção - o "pra­zer artístico", a "obra de arte". Opondo-o ao discurso de tipo filosó­fico - esse "exame científico" determinado pela preocupação com a verdade -, Frege apresenta e mantém o lugar aberto pela decisão aristotélica do sentido: "Se ouvimos uma epopéia, além das belas so­noridades da língua, somente o sentido das proposições e as represen­tações ou sentimentos que esse sentido desperta mantêm a atenção presa". Ele deixa, assim, entrever a relação - sem dúvida privilegia­da - entre significantes ("sonoridades"), sentido sem referência ("so­mente o sentido") e efeito sobre o ouvinte (paixões retóricas). É pre­ciso, enfim, observar que a passagem do sentido à referência que se opera indevidamente no caso do discurso de ficção é atribuída à "busca e [ao] desejo da verdade": a pulsão filosofante tem dificuldade em se

, contentar com o sentido. E a logologia sofística, maneira hibrística de considerar como natural ou normal essa passagem do sentido em re­ferência, com o apoio das sonoridades e o efeito como índice, reedita classicamente sua imagem de filosofia exagerada até a catástrofe.

Evidentemente, esse texto clama igualmente sua diferença em relação a Aristóteles no que concerne ao estatuto da verdade. Em uma frase fregeana, o predicado é afirmado ou negado acerca da referên­cia, da denotação (é a conseqüência do "projeto tacitamente implica­do na fala e no pensamento"S7), jamais acerca do sentido, de tal modo que o valor de verdade prende-se à relação entre o sujeito como de­notado - a coisa, portanto - e o predicado atribuído a esse sujeito.

56 "Eis aí uma das diferenças mais significativas entre minha concepção e a de Boole - e, acrescentaria, a de Aristóteles: o fato de eu não partir de conceitos, mas de juízos", "Sur le but de l'idéographie", ibid., p. 74; ver a introdução de Clau­

de Imbert, op. cit., p. 18.

57 lbid., p. 108.

138 o efeito sofístico

Dito de outro modo, não há, contrariamente a Aristóteles, lugar para proposições verdadeiras remetidas a coisas que não existem, "signos que têm apenas um sentido". "Um bode-cervo não é uma vaca" não é uma proposição fregeana verdadeira. A menos que se introduza uma distinção, que não figura absolutamente aqui, entre o uso e a menção, uma distinção tal que se deva aproximar "o bode-cervo não é uma vaca", não de "Ulisses foi depositado no solo de Ítaca em um sono profundo", mas exclusivamente de, suponhamos, "'Ulisses' é o herói da Odisséia". Permanece, mesmo nesse caso, o problema suscitado pela proposição-chave, aristotelicamente decisiva para fazer face à sofística, e, na Metafísica, paradigma de proposição verdadeira: "o não-ente é não ente", ou "o não-ser não existe" (ver r, 1003 bl0 e 1011 b26). Aos olhos de Frege, Aristóteles concede muito à pulsão de verdade, não por conceber sentido sem referência, mas por aceitar o verdadei­ro sem referência.

Como fica claro na nota - propondo chamar de "imagens" os signos que têm apenas um sentido -, é todo o estatuto da mimesis que se encontra, no mesmo gesto, reconstruído. O problema aristotélico ao qual Frege pode nos tornar sensíveis é o do estatuto lógico do ve­rossímil: muito precisamente, o da relação entre o vero-semelhante [vrai-semblable] dos Tópicos (esse eikos que se traduz por "provável") e o vero-semelhante [vrai-semblable] da Poética. Conforme se acen­tue de um maneira ou de outra, trata-se de lógica ou de estética. En­tretanto, o que une, em Aristóteles, os dois usos do conceito é ° fato de que o real, as coisas tais como são e os eventos tais como ocorrem (ta gignomena, que, nesse caso, se poderia traduzir adequadamente como "a denotação"), é "menos filosófico", quer dizer, tem uma re­lação menor com a verdade e com a sua busca do que o verossímil. Assim - como nunca é demais afirmar - o verossímil está, na Poéti­ca58, apoiado no necessário ("a tarefa do poeta não é a de dizer o real, mas como o real, a saber, o possível segundo o verossímil ou o neces­sário [ ... ] é por isso que a poesia é mais filosófica e mais nobre do que a história" [ ... ] "verossimilmente ou necessariamente"). Frege pare­ce, por comparação, hiper-realista, já que "a busca e o desejo de ver­dade" fazem, ao contrário, passar do sentido à denotação, do fictício ao real, da poesia à história: sua verdade está sob o signo da referên­cia e do real, à montante sofístico do aristotelismo.

.589,1451 a36-bl1.

Das plantas que falam 139

Page 71: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Essa diferença quanto ao estatuto respectivo do real e da verda­de envolve evidentemente toda a percepção e todo o valor do discur­so de ficção, bem como sua relação com a mimesis. Voltaremos a esse ponto, em outros enfoques. Por ora, no entanto, ela me interessa me­nos do que a possibilidade aberta por Frege de uma comparação en­tre "Ulisses" ou "Ulisses foi depositado no solo de Ítaca em um sono profundo" e "a vontade do povo". Ele prossegue, algumas páginas adianteS9:

"Os lógicos receiam a ambigüidade das expressões na medida em que ela é fonte de erros lógicos. A meu ver, é igualmente oportuno recear os pseudo-nomes próprios que são desprovidos de denotação. A história das matemáticas guardou a lembrança de diversos erros devidos a esses fal­sos semelhantes. O abuso demagógico é próximo dessa ilu­são, talvez mais do que do uso falacioso de termos ambí­guos. Que se tome, corno exemplo, 'a vontade do povo'; mostrar-se-ia facilmente que essa expressão não tem, no mí­nimo, qualquer denotação geralmente aceita. Pode, portan­to, ser de interesse querer, pelo menos para a ciência, secar, de uma vez por todas, a fonte desses erros" .

Foi desde Aristóteles - e, mais precisamente, desde as Refuta­ções sofísticas - que os lógicos contraíram o bom hábito de recear a "ambigüidade das expressões na medida em que ela é fonte de erros lógicos". "As palavras e a quantidade dos enunciados são em núme­ro limitado, ao passo que as coisas são em número ilimitado. É por­tanto necessário que um mesmo enunciado e uma única palavra sig­nifiquem várias coisas"; o diagnóstico de Aristóteles fez da homonÍ­mia algo como o mal radical inerente à finitude da linguagem, desni­velada em relação à infinitude do real, e "os lógicos" seguem-lhe os passos. Frege diagnostica uma outra fonte, que se refere, dessa vez, a um excesso de produção de nomes ou de enunciados: não mais várias coisas diferentes que partilham um mesmo nome quando elas não têm a mesma definição nem a mesma essência, mas nomes soltos no ar, aos quais nenhuma coisa corresponde, "pseudo-nomes próprios que são desprovidos de denotação". Exemplo: "as séries infinitas diver-

59 Ibid., p. 117.

140 o efeito sofístico

genres", mas por que não também "Ulisses" ou a frase, a ser consi­derada por inteiro como um nome próprio, "Ulisses foi depositado etc."? E, acrescenta Frege, exatamente como Aristóteles acerca da homonímia: "A ilusão resulta de uma imperfeição da linguagem" (p. 116). O exemplo empregado por Frege em nossa passagem é especial­mente significativo pelo fato de que se pode escolher analisá-lo, com o autor, como sentido sem referência, ou, na perspectiva esboçada aqui mesmo para descrever a política dos sofistas, como uma homo­nímia: "a vontade do povo", paradigma de um "abuso demagógico" inteiramente revolucionário, alinha-se aos fraseados consensuais que fazem com que metafísicos e cozinheiras - como diria Francis Ponge - concordem. "Não ter qualquer denotação geralmente aceita ,,60_

eis, de fato, o que sugere uma ponte entre ter vários sentidos e não ter qualquer denotação, e que remete à referência a equação aristotélica na qual, em matéria de sentido, vários equivalem a nenhum.

De uma posição sofística à outra, no cerne da topologia do senti­do, a linguagem diz, segundo o ponto de vista, demais oule de menos.

60 Essas breves observações, de uma rigidez típica de um neófito, deveriam ser temperadas, especialmente, pela análise da noção de significação "habitual" (gewohnlich) (ver P. de Rouilhan, op. cit., p. 27 e seguintes).

Das plantas que falam 141

Page 72: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

IV. DE UMA SOFÍSTICA A OUTRA: BOAS E MÁS RETÓRICAS

A consideração do sentido sem referência abre um novo campo de investigação e permite repensar a tão controversa relação entre primeira e segunda sofísticas.

Em que aspectos a primeira e a segunda sofística são, ambas, sofísticas? A priori todas as dúvidas são permitidas, e a aproximação que salta sobre mais de seis séculos (como de 1400 ao ano 2000, mas, afinal de contas, o Renascimento fez bem pior, e a expressão "Renas­cimento grego" foi recentemente proposta por Bowersock) corre o risco de parecer, de início, sofística no sentido banal, quer dizer, pejorati­VO, do termo: uma simples questão de homonímia. De fato, os dois objetos, ao meDOS hoje em dia, sequer pertencem ao mesmo corpus. A primeira sofística está novamente a ponto de se tornar um objeto filosoficamente consistente. A segunda sofística, ao contrário, ainda não se constituiu como objeto de reflexão filosófica. Ela pertence a um outro corpus: o da retórica. E se já não se hesita mais em conceder­lhe, como outrora o fazia Wilamowitz, uma existência real, isolável, deve-se constatar que a identidade que lhe é atribuída é apenas histó­rica e/ou literária. Os trabalhos de Bowie, de Reardon, de Anderson, tão notáveis em sua categoria, permitem essencialmente, desse ponto de vista, ponderar de modo diferente a avaliação de Bowersock: "A segunda sofística tem mais importância na história romana do que na literatura grega" 1, Mas essa identidade histórica e literária, ou literá-

1 E.L. Bowie, "Greeks and their Past in the Second Sophistic", Past and Present 46, 1970, pp. 3A 1; B.P. Reardon, Courants littéraires grecs des lIe et III" siecles apres j.c., op. cit.; G. Anderson, The Second Sophistic, Cultural Phenomenon in the Roman Empire, LondreslNova York, Routledge, 1993, e já "The Second Sophistic: Some Problems of Perspective", em D.A. Russell, org., Antonine Li­terature, Oxford, Clarendon Press, pp. 91-110; G. W. Bowersock, Greek Sophists in the Roman Empire, Oxford, Clarendon Press, 1969.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 143

Page 73: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ria e histórica, ou, para Anderson, "cultural" (o que ainda é uma pon­deração, mais do que um deslocamento), não é, enquanto tal, filoso­ficamente analisada, jamais se lhe aplicam "para valer" as mesmas

questões que à primeira sofística. Para a segunda sofística, tudo ocorre como se estivéssemos em

uma etapa anterior da apreciação ou da "reabilitação", uma etapa em que a primeira sofística estagnou por muito tempo e certamente às vezes ainda estagna: pode-se comparar o valor literário, um jogo retórico de mais ou menos bom gosto, que se costumava atribuir ao Elogio de Helena, de Górgias, e o do Discurso troiano, de Díon Crisóstomo, ou ainda o valor político, mais ou menos demagógico e mercantil, que se atribui à pedagogia de Protágoras, com a paideia fastidiosa e a obse­quiosidade no Império de Élio Aristides. Mas nunca se interroga o pos­sível sentido filosófico dessas obras ou dessas práticas, que apresen­tam mais um interesse documentário do que um atrativo real. A imi­tação funciona aqui ainda, de modo muito platônico, em favor do modelo; a primeira vez, a primeira sofística, era, senão uma tragédia, pelo menos um abalo crítico cheio de ambição filosófica, visando -para retomar os termos de Rohde e de Boulanger, evidentemente es­pecialistas da segunda - a "submeter os mundos do conhecimento e da ação"2; a segunda vez, a segunda sofística, é apenas um conjunto de receitas, é uma farsa, e dessa vez mesmo no sentido culinário do termo·", tanto mais indigesta por ser, nos fatos, na realidade da épo­ca, triunfante e triunfalista. A segunda sofística, acreditando ter sua desforra, teria de fato permanecido no mesmo terreno, nas fronteiras no interior das quais a derrota reduzira seu modelo: a retórica, e mes­mo a má retórica. Essa assimilação funciona como tática de defesa eficaz à reflexão filosófica. Por meio disso, a filosofia não teve, durante muito tempo, qualquer dificuldade em excluir, simultaneamente, as

duas sofísticas do campo de sua história. Mas se partimos do estatuto sofístico da linguagem - a logo­

logia -, torna-se possível estabelecer, entre a primeira e a segunda sofísticas, uma relação que não seja a de homonímia ou de caricatu-

2. E. Rohde, Der griechische Roman und seine Vorldufer, Leipzig, 1876 (Hil­desheim, Akademik Verlag, 19643 ); A. Boulanger, Aelius Aristide et la sophistique dans la province d'Asie au lI' siúle de notre ere, Paris, De Boccard, 1923.

* Há aqui um jogo de palavras intraduzível: farce, em francês, significa tan­to "farsa" quanto "recheio", em culinária. [N. da T.}

144 o efeito sofístico

ra. É então o próprio sentido da relação da filosofia com a literatura via retórica que a apreensão global da primeira e da segunda sofísticas pode esclarecer.

o VALOR DA RETÓRICA: DE PLATÃO A PERELMAN

QUEM FALA DE RETÓRICA SOFíSTICA?

Bem no início deste livro, propus, para falar do Iogas sofístico, o termo "discursividade" ao invés de retórica - mesmo se não man­tive sempre tal precaução. De fato, falar de "retórica sofística" é, pri­meiramente, no sentido tanto cronológico quanto lógico do advérbio, ser platônico ou, pelo menos, pagar tributo ao platonismo. "Did Plato coin rhetorike?" - Platão forjou a palavra "retórica", como se cunha uma moeda? Schiappa tem, senão razão, pelo menos interessantes razões para responder que sim3. Górgias e Antifonte, se necessário, nos ensinariam o seguinte: não é porque não há testemunhas que algo deixou de ocorrer, não há prova por ausência. Mas a ausência aí está: não há aparição "pré-socrática" da palavra "retórica" no Thesauros da língua grega atualmente informatizado. Tampouco ocorre, nas duas colunas propostas pela "bíblia", incompleta mas bem elaborada, que representa o Diels-Kranz, que não remeta a um contexto doxográfi~o ou a um testemunho. Em contrapartida, encontra-se pelo menos uma vez o nome de agente rhetor, para designar aqueles que falam diante da assembléia: T rasímaco, que Denis de Halicarnasso cita para fazer dele uma das fontes do estilo misto, teria defendido em seu Peri politeias

3 "Did Plato coin rhetorike?" [referido no texto como I] é o título de um artigo muito sugestivo de Edward Schiappa, publicado no American }ournal of Philology, 111, 1990, pp. 457-70. Ver igualmente, do mesmo autor, "Rhetorike: what's in a name? Toward a revised history of early greek rhetorical theory" [re­ferido como 11], The Quaterly }ournal of Speech, fevereiro 1992, vol. 78, pp. 1-15. A discussão dos dados do T.L.G., em que se percebe o eco das resistências suscitadas por essa tese, constitui o apêndice B de seu livro Protagoras and Logos [referido como I1IJ, Columbia, University of South Carolina Press, 1991, pp. 207-13, que aliás não contém nada de muito novo. As dificuldades essenciais de que Schiappa deve dar conta são: o uso freqüente do termo, vizinho mas bem distinto, de rhetoreia, em Isócrates, e as duas ocorrências de rhetorike no panfleto de AI­cidamas, Contra os sofistas, que ele pretende datar como após 380.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 145

Page 74: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

que "aqueles que diferem uns dos outros, sejam eles oradores ou não (kai ton rhetoron kai ton allon)", não vêem que a contradição entre eles não é externa, mas já interna, que "seu próprio discurso contém o discurso do outro,,4. Em suma, é uma maneira de lembrar que O:

rhetar, assim como os "meteorologistas" ou os "filósofos" cujos com~ batesS o Elogio de Helena evoca, tem por atividade o logos: é de "disJ curso", de discursividade, e não de "retórica" , que se trata.

Por que falar então, ou melhor, como diria Nietzsche, quem fala de "retórica sofística"? Resposta: Platão, portanto, a tal pomo que seu Górgias tem como subtítulo Peri tes rhetorikes. Já se observou com bastante freqüência6 que tal palavra não aparece antes de Platão, mas nunca se tentou verdadeiramente examinar isso antes de Schiappa. É portanto bem verossímil que o Górgias, escrito por volta de 385, nos faça assistir à invenção da palavra, assim como daquelas, conhecidas e glosadas: eristike, antilogike, dialektike, talvez até mesmo soph,stike. Mas, no caso de rhetorike, isso se dá de tal forma que o leitor não pode imaginar um só instante que se trata de uma invenção platônica: "Uma parte do poder retórico do Górgias de Platão - observa Schiappa [11, p. 9] - consiste em persuadir o leitor de que o referente objetivo de rhetorike já existe há um certo tempo". Estamos no início do diálo­go. Cereíonte pergunta a Pólo "de qual arte Górgias tem o saber, para que possamos chamá-lo pelo nome apropriado" (448 c), e como Pólo passa ao elogio dessa arte em vez de dizer qual é ela, Sócrates toma a palavra, dirigindo-se diretamente a Górgias: "Dize-nos tu mesmo, Górgias, de que arte tens o saber, e de que nome, conseqüentemente, é preciso chamar-te" - "Da retórica, Sócrates." - "É preciso, então, chamar-te de orador.,,7 Eis a dupla artimanha de Platão: é a tekhne

4 Tô" 't"w" €'t"Épw" ÀÓro", €-v 't"w cnp€"tÉpw ÀÓrw e",ó"''t"a, Denis de Halicarnas­so, Sobre Demóstenes, 3 = 85 B 1 DK, 11, pp. 321-4 (p. 323, 1. 16s. para rhetor). Para a outra ocorrência de rhetar, ver Crítias, 88 B 22 (11, p. 385, 1.18 DK), mas trata-se, sem dúvida, de versos escritos por Eurípides.

5 Cf § 13: trata-se dos "discursos dos meteorologistas", dos "combates de discursos", dos "conflitos entre discursos filosóficos".

6 Werner Pilz já observava isso em 1934 (Der Rhetor im attischen Staat, Weida, 1934), também citado por Schiappa.

7 Eis a passagem, em grego: [ ... 1 au't"ÔÇ' luJ,.L\I Él1T€ 't(",a O'€ xp" xaÀ€L\I wç 't"(\l0«; e1TL~o\la 't€x"TlÇ' - Tlíç l:rrrroPlx~ç, W LWXpa't"€Ç' - 'PfrrOp<l ãpa xPTÍ O'€ xaÀ€t\l (449 a).

146 o efeito sofístico

que precede o técnico e não o inverso, e é o próprio Górgias que enuncia o nome dessa tekhne. A sofística é a retórica, e é Górgias que o terá dito. Refinamento da sutura: Sócrates utiliza o termo um pouco an­tes, como uma palavra cuja característica já disponível ele enfatiza, quando critica Pólo, "bem preparado para fazer discursos" (pareske­uasthai eis logous), por ser mais treinado "naquilo que se denomina retórica" (ten kaloumenen rhetoriken) do que no "diálogo" (diale­gesthai, 448 d).

Essa equação, sofística = retórica, apresenta um duplo interesse estratégico para o filósofo. O primeiro, explorado em todo o Górgias, consiste em excluir o sofista-orador da filosofia e de sua histórias. O sofista, assim como o orador, ou como orador que é, pode ter um valor educativo e cultural (trata-se de um Bildungsideal que tem seus aspec­tos admiráveis), mesmo que não seja um filósofo, nem mesmo um pen­sador crítico com relação à filosofia.

O segundo interesse é estratégico em relação àqueles que pode­riam se situar do ponto de vista da retórica e tentar tomar o seu par­tido: se há "retórica sofística", ela será pensada, apesar de tudo, com Córax, Tísias, e suas disputas de demarcação sicilianas, depois com Górgias e todos os demais, apenas segundo o estatuto epistemológico de "ainda não"9, cujo charme, como observa Schiappa, é o do flogís­,tico em relação ao oxigênio.

Aristóteles evidencia como os dois são ligados, e que a pedago­gia cultural dos sofistas-oradores ainda é muito verde, quando, no fi­nal das Refutações sofísticas, denuncia, em termos bem maoístas, a pragmateia de Górgias e o ensino dos professores que o precederam: "Como se, pretendendo transmitir a ciência de não ter dor nos pés, se ensinasse a alguém não a arte de fazer sapatos, nem mesmo onde en­contrar esse gênero de coisas, mas se limitasse a apresentar à pessoa vários gêneros de calçados: isso seria ajudá-la em suas necessidades

8 Esse julgamento aparece, sem desvio nem mudança, apesar de séculos de crítica, nas declarações de Gomperz, por exemplo: "O 'niilismo filosófico' [as as­pas marcam que a expressão não é adequada] de Górgias deve ser retirado da his­tória da filosofia, seus gracejos [Scherzrede, valendo por paignion] sobre a natu­reza têm seu lugar na história da retórica". Sophistik und Rhetorik, op. cit., p. 35.

9 Sobre esse ponto, são comparáveis a sutileza contundente de R. Barthes, "L'ancienne rhétorique, aide-mémoire" (reeditada por Seuil), e o clássico bem ele­mentar de G. Kennedy, The Art of persuasian in Greece (Princeton, Princeto..n University Press, 1963,6" edição, 1974).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 147

Page 75: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(pros ten khreian), mas não transmitir-lhe a arte" (183b-184a). Tão somente uma tekhne, guiada apenas pela necessidade, eis o que dife­rencia o sofista simultaneamente do filósofo e do orador pleno: é evi­dente que, também desde Platão, só o filósofo detém as chaves da retó­rica, enfim, do que se pode com ele chamar de a "autêntica" retórica.

A conseqüência mais significativa de tal invenção filosófica da retórica pode ser formulada sob forma de uma tese bem simples que eu sugiro provisoriamente: a retórica é a invenção da ontologia para domesticar - para espacializar - o tempo no discurso. Pela retórica e nela, o tempo toma como modelo o espaço, e fica reduzido a ele: um discurso é, de início, um organismo que se estende (há um "plano") e se articula (é preciso, diz Platão, saber "recortá-lo"); de um ponto de vista "restrito", ele é tecido de "tropos" e de "metáforas" (ouvir fa­lar o espaço). Em suma, trata-se de fazer passar do fio seqüencial e da captura do kairos, ponta do tempo, ao topos e aos topoi, lugares do bem falar 10 Assim, engolida toda filosofia, se há uma particularida­de sofística da retórica, ela implica assinalar algo como uma "retóri-

10 A transformação é sem dúvida análoga, talvez mesmo ligada e simultâ­nea, à que Aristóteles impõe a Demócrito, quando "retraduz" as determinações do átomo. A rese de Heinz Wismann, freqüentemente exposta em seus seminários, é a de que o atomismo já é, enquanto tal, uma tradução em termos físicos do logos sofístico - portanto, também uma crítica radical das físicas dos filósofos da na­tureza, como Tales. Aristóteles, sabendo-o ou não, retraduz essa rradução para torná-la compatível com seu sistema e com a "física", outra maneira de transfor­mar uma intenção crítica em simples "ainda não" teórico. Enfim, o fato de que Demócriro se serve do modelo da escrita como operador de tradução física do lagos pronunciado e ouvido remete certamente à passagem do tempo ao espaço neces­sário para a "fisicalização", mas o modelo escolhido certamente também é o me­nos espacial de todos os modelos espaciais, já que ele lida diretamente com o tem­po da oralidade inscrito no gesro de escrever, no seu próprio dyctys.

Indo no mesmo sentido, assinale-se a anedota que a doxografia, incluindo Roland Barthes, conserva na origem da retórica, quando ela atribui essa origem à sofística: "Retórica e propriedade. A retórica (como metalinguagem) nasceu de um processo de propriedade. Em torno de 485 a.c., dois tiranos sicilianos, Gelão e Hierão, realizaram deportações, transferências de população e expropriações, pa­ra povoar Siracusa e lotear mercenários; quando foram derrubados por um levan­te democrático e quando se quis voltar ao ante quo, houve numerosos processos, pois os direitos de propriedade foram obscurecidos [ ... }" ("L'ancienne rhétorique. Aide-mémoire", cit., p. 175). Relacionando tempo e espaço, a anedota faz da re­tórica como invenção sofística uma máquina de transformar o espaço para relan­çá-Io no tempo.

148 o efeito sofístico

ca do tempo", que seria para as retóricas do espaço o que a logologia é para a theoria.

"CONTRA PLATÃO",

POR ÉLlO ARISTIDES

Nas sumas especializadas, por mais eruditas que sejam1 ], mas também no que se apresenta atualmente como a renovação da retó­rica (a "nova retórica", e a ternura, se ouso dizer, platônica de Perel­man pela sofística), é difícil questionar a cena do GÓrgias. Assim co­mo no que concerne ao consenso, geralmente avalia-se maio impacto da negociação aristotélica entre Platão e a sofística. No entanto, isso é necessário, se queremos compreender como a sofística se utiliza da retórica ou a ela se alia para de novo escapar à captura da filosofia e inverter o julgamento: graças à retórica, através de Cícero e Quinti­liano, por um lado, e Filóstrato, por um outro, não é mais a sofística que tenta passar por filosofia, mas a filosofia que mimetiza e imita o orador-sofista, até mesmo o sofista-orador.

Platão está na origem da questão filosófica fundamental, sem dúvida a única questão propriamente filosófica, que é formulada acerca da retórica: a da ambigüidade, até mesmo da homonímia, da retóri­ca. Questão que ele mesmo instrui em uma tese de defesa pro et con­tra: contra, o Górgias; pro, o Fedro. De fato, a retórica que ele defen­de e a que ele ataca são inteiramente distintas: no Górgias, trata-se de uma retórica sofística, adulação que desliza sob a máscara da legisla­

·ção e sob a da justiça, trata-se da própria sofística; no Fedro, trata-se

11 Penso, por exemplo, nas três obras de Charles S. Baldwin: Anciem Rhetoric and Poetic interpreted from representative works (Nova York, 1924, repr. 1959, Gloucester Mass., Columbia University Press), Medieval Rhetoric and Poetic (to 1400) interpreted ... (Nova York, 1928, repr. 1959, Gloucester Mass., Columbia University Press) e Renaissance Literary Theory and Practice, Clacissism in the Rhetoric and Poetic of Italy, France and England, 1400-1600 (Nova York, Co­lumbia Universiry Press, 1939). Uma frase do editor e prefaciador do terceiro tomo, póstumo, resume, rude mas adequadamente, a posição de Baldwin: "Baldwin adere à retórica sã (the sound rhetoric), cujo objetivo é o de valorizar aquilo de que se fala, e repudia a retórica sofística, cujo objerivo é o de valorizar aquele que fala" (p. VIII). É verdade que felizmente a perspecriva está mudando, especialmente com as obras mais recentes de Samuel Ijsselling, Rhetoric and Philosophy in conflict. An historical survey (La Hague, Martinus Nijhoff, 1976) e de Brian Vickers, In Defence of Rhetoric, Oxford, Clarendon Press, 1988.

De uma sofística a outra: hoas e más retóricas 149

Page 76: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

it

de uma retórica filosófica, a do dialético que analisa e compõe as idéias, trata-se da retórica enquanto filosófica, trata-se da própria filosofia. De tal modo que, a partir de Platão, o diagnóstico completo se torna, segundo a severa equação dois igual a zero: não há uma, mas duas retóricas, quer dizer, não há retórica de modo algum, já que, ao invés da retórica encontra-se ou a sofística ou a filosofia. É necessário, por­tanto, dizer que se assiste, em Platão, simultaneamente à invenção da ,retórica e à sua eliminação.

Para melhor ler Platão contra ele mesmo, proponho apoiar-me em uma posição retórica dura, emblemática da segunda sofística: a de Élio Aristides, que já conhecemos por seus elogios e por sua rees­critura do mito de Protágoras. Grande comentador do Pedro e do Cór­gias, ele não cessa de afirmar e de reafirmar "Contra Platão" ao mes­mo tempo a defesa dos Quatro - Péricles, Címon, Miltíades e Temís­roeIes - e a da retórica 12.

Os longos discursos de Aristides permitem, com efeito, instruir de modo mais refinado a própria questão da ambigüidade da retóri­ca. Com ele, segundo creio, os termos do problema passam a ser os seguintes: há, como sugerido por uma boa parte da doxa platônica, duas retóricas (a do Pedro e a do Górgias), ou, antes, dois usos da retórica (e é, então, o Górgias que se opõe a si mesmo), ou enfim algo como uma "terceira" retórica, quer dizer, uma só e única retórica, cuja idéia Aristides propõe, aliás, construir, sobretudo a partir dos silên­cios de Platão? Exploremos, com ele, cada uma dessas hipóteses.

Duas retóricas, nenhuma retórica Inicialmente, a hipótese de duas retóricas que, ao se revelarem

sofística, por um lado, e filosofia, por outro, anulam o próprio con­ceito de retórica.

O Górgias é a máquina para tornar equivalentes retórica e so­fística, imediatamente indiscerníveis na própria pessoa de Górgias, o grande sofista, afirmando, portanto, no lugar de Platão, que é a retó­rica que ele professa. O sofista, mestre de retórica, dá, então, uma definição de sua arte, na qual todo o diálogo se apoiará, e que Sócrates resume em termos desde então célebres: "Se compreendo bem, dizes

12 Cito sempre Aristides segundo a edição Lenz-Behr: npõc; nÀ(l""t"w\la \.l1T€P j)'rr[OpL)(~ç', voi. I, fase. 1, pp. 144-289 (= Discurso lI) e npdç; nÀm:w\lc.t Urr€p 'tW\I 't€TIápw\l, vol. I, fase. 1 e 2, pp. 294-524 (= Discurso III).

150 o efeito sofístico

que a retórica é uma artífice de persuasão" (peithous demiourgos, 453 a). Pressionado por Sócrates, Górgias estende o campo dessa persua­são, primeiramente centrada no "justo e no injusto" (454 b), a todos os tipos de competência, aquiescendo assim à distinção entre "cren­ça", ou persuasão ligada à retórica, e "ciência". A pretensão ao uni­versal assinala uma relação com a doxa, e constitui o próprio da so­fística para a philosophia perennis13

13 Toca·se aí no problema da ambigüidade da retórica tal como foi coloca­do, em uma reflexão que, aliás, põe em jogo ao mesmo tempo Platão e Perelman, por Paul Ricoeur ("Rhétorique, Poétique, Herméneutique", em De la Métaphysi­que à la Rhétorique, editado por Michel Meyer, Bruxelas, Éditions de l'Université de Bruxelles, 1986, pp. 143-55). Após uma análise dos critérios da arte retórica (lugares do discurso, tipo, meta, método de argumentação), Ricoeur continua: "Essa descrição do lugar da retórica faz com que imediatamente apareça sua ambigüi. dade. A retórica nunca deixou de oscilar entre uma ameaça de fracasso e a reivin­dicação totalizadora em razão da qual ela ambiciona igualar-se à filosofia" (p. 146). O "fracasso", ou ainda a "perversão", da retórica é, como ele nos diz, o "des. lizamento da dialética à sofística", que faz passar da "idéia aceita" ao "precon­ceito" e da preocupação de "agradar" à de "seduzir": uma "violência do discur­so" que desemboca na politica. Ao contrário, o movimento ascendente, a "subli­mação", se opera por meio de uma dupla superação: a retórica começa anexando "toda a ordem humana", especialmente a interlocução e as paixões _ aquilo que Perelman tematiza como substituição do "racional" pelo "razoável"; simultanea­mente, ela "reivindica para seu magistério toda a filosofia", e especialmente as pri­meiras proposições, indemonstráveis por hipótese - e portanto apenas, dizem Aristóteles e Perelman, dialeticamente demonstráveis: é aí que Ricoeur situa a ambição de Perelman, para quem "retórica, argumentação e filosofia primeira se superpõem" .

Os termos da análise se distribuem diferentemente a partir do momento em que se considera o conceiro de sofística, em sua fundamentação platônico-aris­totélica. É necessário reconhecer então que as inclinações, ascendente e descen­dente, são uma só, e até mesmo que essa dupla inclinação é a definição mesma da sofística. Pois a hybris do sofista está no fato de que a sedução dóxica preten­da ao universal, de que a "perversão" seja "sublimação". Assim, Górgias pretende, na condição de orador, valer por si só por todos os médicos e todos os demiurgos do mundo: "Se você soubesse tudo, Sócrates, saberia que a retórica, unindo, por assim dizer, todas as potências, as mantém sob seu jugo. Vou dar um testemu­nho relevante disso: já fui diversas vezes, Com meu irmão e outros médicos, na casa de um certo paciente que recusava a ordem de tomar um remédio dada por seu médico, de ser operado ou cauterizado, e na situação em que o médico não podia persuadir, eu persuadi, sem qualquer outra arte além da retórica. Afirmo mesmo que, se um orador e um médico chegassem à cidade que você escolhesse e que fosse necessário debater na assembléia ou em qualquer outra reunião para

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 151

Page 77: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Quando Sócrates retrabalha a definição por sua conta, contra Pólo, essa mesma dupla caracaterística faz com que recuse à retórica o estatuto de tekhne (ela é apenas "empiria e rotina desgastada", 463 b), e permite que ele a defina como um "fantasma" (eidalan, 463 d), como uma "adulação" que "desliza sob a máscara" da arte correspon­dente e a "contrafaz" (464 c-d). Conhece-se a célebre analogia de analogias a que ele chega então: assim como a toalete desliza sob a ginástica e a culinária sob a medicina, do mesmo modo, no campo da alma, a sofística desliza sob a legislação e a retórica, sob a justiça (465 c). Mas, levando-se tudo em conta, e contra nosso propósito, não há portanto mais razão para identificar sofística e retórica do que para confundir toalete e culinária, ou legislação e justiça. A menos que se considerem duas séries de observações que tanto Sócrates quanto Élio

decidir qual dos dois seria preciso escolher como médico, afirmo que em nenhum lugar se verá o médico, mas que se escolherá o homem capaz de falar, se ele qui­ser. E se entrasse em competição com qualquer outro perito, o orador, mais do que qualquer outra pessoa, persuadiria de que fosse o escolhido" (Górgias, 456 a-c). Não é apenas Górgias, mas o próprio Estrangeiro, no Sofista, que relacio­na, à sua maneira, sublimação e perversão: no exato momento em que ele apon­ta a universalidade da sofística ("são eles os mais sábios de todos sobre tudo", 233 b; cf. 233 c, 233 d), descobre também que, exatamente por essa razão, só pode tratar-se de um saber dóxico, doxo-mimético ("ela é doxástica, a ciência de tudo que o sofista nos parece agora possuir, ele não possui a verdade", 233 c). Assim é precisamente essa conjunção entre universalidade e aparência dóxica que permite a Aristóteles caracterizar a sofística e tornar, por ricochete, manifes­ta a universalidade da ciência do ser enquanto ser que a sofística pretende imitar (Metafísica r 2, 1004 b17-26, "[ ... ] pois a sofística é uma sabeaoria apenas apa­rente [ ... 1"). Em suma, a generalização, ou a universalidade, da retórica não é um índice de sublimação mais do que de perversão, bem ao contrário. É, aliás, por isso que não poderia causar espanto o fato de que a sublimação, por sua vez, não acabe por suscitar as reticências de Ricoeur; as mesmas reticências, no final das contas, que a perversão, ou seja, um temor de ordem estritamente ética: "Pode-se temer que essa extrapolação para além das situações típicas [judiciário, delibe­rativo, epidítico1 seja equivalente a uma mudança radical de regime discursivo. Quanto à finalidade da persuasão, tampouco ela poderia ser sublimada a ponto de fundir-se com o desinteresse da discussão filosófica autêntica" (art. cit., p. 147). O receio de Ricoeur é o de que (já que, como repete Aristóteles, a sofística só di­fere da filosofia pela proairesis, a "escolha do modo de vida" - a "autenticida­de") a retórica de Perelman descambe para o sofístico e que a extensão faça mudar sua intenção. Mas então, tanto com Ricoeur quanto com Platão, dois equivalem a zero: a retórica ambígua, se ela não se confunde com a autenticidade da filoso­

fia, serve para realçar a sofística.

152 O efeito sofístico

Aristides não deixam de fazer. Como a legislação e a justiça são duas partes de um mesmo todo - a "política" (464 b) -, é verossímil que sofística e retórica também provenham de uma mesma arte, que tal­vez não tenha qualquer outro nome único e terminologicamente con­sagrado a não ser o nome demasiado vago de "cuidado do corpo", de que fazem parte ginástica e medicina. Admitindo-se, entretanto, que elas difiram em natureza, em todo caso são muito difíceis de distin­guir: "Como [sofística e retórica] são bem próximas, sofistas e ora­dores estão na mesma situação e giram em torno das mesmas coisas; e eles próprios não sabem para que podem servir, e os outros homens tampouco o sabem" (465 c). Por outro lado, lendo-se atentamente a analogia - o que Aristides não deixa de fazer com um ar amalucado, ele que consagra sua vida a escrever e a pronunciar discursos -, a re­tórica é menos bela do que a sofística (III, 600); ou, mais precisamen­te, a sofística contém a retórica assim como a universalidade estru­turante da legislação contém os casos, a reparação em cada ocorrên­cia, de que a justiça se incumbe. Sócrates reafirma isso contra o esno­bismo anti-sofístico de Cálicles: "São a mesma coisa, caríssimo, um sofista e um orador, ou são bem próximos, totalmente vizinhos, como eu disse a Pólo. Mas porque não sabes, tu acreditas que, de um lado, a retórica é uma coisa absolutamente bela, ao passo que desprezas a outra. Contudo, na verdade, a sofística supera em beleza a retórica, exatamente como a legislaç~o supera o judiciário e a ginástica, a me­dicina" (520 a-b).

Deduzir-se-á, portanto, do Górgias, e da própria analogia, que a retórica não é, no fundo, nada mais do que a realidade concreta e contingente, a atualidade, da sofística.

Vejamos como, no Fedro, retórica e filosofia se confundem. O ponto de partida do Fedro, em seu exame temático da retóri­

ca, não difere da retórica sofística do Górgias: uma "arte dos discur­sos", que declara que "sem mim, conhecer o que é não trará qualquer ganho para a arte de persuadir" (260 d). É, aliás, por isso que Sócrates duvida, uma vez mais, de que se trata de uma tekhne e não de uma "rotina desprovida de arte" (atekhnas trihe, 260 e, cf. Górgias, 463 b). Entretanto, dessa vez, ao invés de vilipendiar a adulação, Sócrates recomenda "não maltratar, mas ao contrário perdoar aqueles que, não sabendo dialetizar, tornam-se incapazes de definir o que pode ser a retórica" (269 b): a retórica que Tísias, Górgias, Pródicos, Hípias e Protágoras ensinam poderá parecer, com sua preocupação com o eikos

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 153

Page 78: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

r ,

II

(com o verossímil e com a imagem) no Ingar do alethes (do verdadei­ro), um atalho em direção ao persuasivo (271 c-272 e); na realidade, ela representa simplesmente um certo número de "conhecimentos ne­cessários" (269 b) prévios à retórica plena, assim como é necessário _ eu gloso - conhecer seu alfabeto para aprender a ler.

É por isso que, a fim de chegar a essa retórica plena, é preciso e é suficiente proceder, sobre essa base sofística, a uma série de ex­tensões, de transformações, que fazem com que, dessa vez, ela seja equivalente à filosofia. A primeira extensão passa, freqüentemente, despercebida: a retórica é uma técnica dos discursos não apenas pú­blicos mas também privados (261 a). Extensão que deve ser relacio­nada, como enfatiza Sócrates, ao fato de que a retórica "pode o má­ximo" quando "divergimos" (stasiotikos, 263 a; ou symphonoumen. planometha, 263 b), quer dizer, quando falamos não "sobre o ferro ou a prata", mas "sobre o justo e o bom" (ibid.): quando julgamos

valores14. A segunda extensão, mesmo se ela se assemelha à constatação

lógica como a primeira se assemelhava à constatação empírica, não deixa de constituir igualmente uma transformação considerável: sa~ ber manipular o eikos, a verossimilhança retórica, e mesmo a apate, essa" decepção", "ilusão", "engano" sofísticos, exige o conhecimen­to da '''verdade'' e dos "entes": "é preciso, se se deve enganar outrem sem ser enganado, conhecer a fundo com exatidão a semelhança e a dessemelhança dos entes" (262 a); ou ainda: "é, em toda a parte, aquele que conhece a verdade quem sabe a mais bela maneira de achar as semelhanças" (273 d).

É assim que Sócrates chega ao que verdadeiramente o apaixo­na. Seus trabalhos práticos às margens de Ilissos, sob o plátano, ex­posto ao calor, diante do auditório das cigarras, e, muito precisamen­te, a maneira pela qual "o discurso estava prestes a passar da censu­ra ao elogio" (265 c), ensinando-lhe o que é verdadeiramente tal "arte dos discursos de que Trasímaco e os outros se utilizaram para se tor­nar hábeis em falar, e tornar igualmente hábeis aqueles que consen­tissem em trazer-lhes presentes como se fossem reis" (266 c): a ver­dade da retórica paga, retórica~sofística, é a dialética, a arte "das di­visões e dos agrupamentos" entre idéias, que torna capaz, em um só

14 Essa extensão é muito corretamente apontada por Ricoeur como opera­da por Perelman (art. cit.).

154 o efeito sofístico

sintagma, como veremos, bem perelmaniano, de legein te kai phro­nein, de "falar e pensar" (266 bIS). Pois só a dialética consegue trans­formar em sistema os fragmentos, as receitas, os pedaços de discur­so que ensina a retórica cara a Fedro, ou ainda apenas o dialético se preocupa em "falar também com persuasão" de cada um dos ele­mentos da retórica sofística, e em "organizá-los em um todo sistemá­tico"16. Em suma, apenas a dialética é capaz de ser o sistema da sofística.

O final do diálogo retoma, portanto, uma definição lançada no início do exame, desde a primeira extensão: "'A arte retórica é uma espécie de psicagogia por meio de discursos" (261 b). O ensino da re­tórica, agora explicitamente sistematizado, deve passar por um conhe­cimento dos gêneros de almas, de suas maneiras de agir e de padecer, e por um conhecimento simétrico dos gêneros de discurso, para de­sembocar no conhecimento das relações causais entre gêneros de dis­curso e gêneros de alma, e permitir colocá-los em correspondência, em harmonia termo a termo, em vista de uma psicagogia eficaz adaptada à ocasião (270 e-272 b). Concluir-se-á, para recapitular, que a retóri­ca é uma tarefa sem dúvida infinita (é, aliás, por isso que se deve per­doar os sofistas que buscam atalhos), já que ela se aplica a todos e a tudo, que ela não existe sem o conhecimento da verdade e dos entes; enfim, que seu momento-chave é a tekhne dialektike. Tanto e de tal forma que um homem sensato, conclui Sócrates, jamais se esforçará a tal ponto "para falar e agir em relação com os homens, mas para po­der fazer discursos que têm o favor dos deuses, e agir tanto quanto pos­sível de forma a obter esse favor" (273 e). Tal é, portanto, a última e célebre ampliação/mutação: a retórica, em sua relação com o divino, é o nome do projeto pedagógico infinito da filosofia, até para o pró­prio filósofo. A retórica é a própria filosofia.

Se, então, jogamos pro et contra o Pedro e o Górgias, é de fato entre duas não-retóricas que se deve escolher: entre o vício, a sofística, e a virtude, a dialética.

1S Cf Górgias, 449 e e o comentário de Croiset em Budé, acerca de phro­nein: "Essa palavra que, tão logo pronunciada, parece logo esquecida" (ad loc.).

16 Tà 013 €xao-ra 1"OÚ'TWV 1Tl~avwç; À€r€lV 1"€ xal: 1"à oÀOV CTUVeo-rao-ral, 269 Cj cf já 264c. Para essa passagem difícil, sigo a compreensão e a tradução de Luc Brisson (Paris, Flammarion, 1989), bem mais consistente do que as de Léon Ro­bin (Paris, Belles Lettres, 1933).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 155

Page 79: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Dois usos da retórica O Fedro tem por subtítulo: "Sobre o belo, diálogo ético". Tal­

vez seja necessário, então, no final das contas, para encontrar a retó­rica, ler apenas o Górgias, "Sobre a retórica, diálogo demolidor".

De fato, encontra-se também no Górgias uma outra linha de força, que apresenta não exatamente duas retóricas, mas dois usos - um mau e o outro bom - de uma única técnica axiologicamente neutra ou indiferente. Tal é, pelo menos, o que descreve o próprio Górgias, ao recomendar "usar (khresthai) a dialética como qualquer outra arte de combate" (456 c), quer dizer, ele explica em seguida, "dando-se como fim a justiça" (epi to dikaios khresthai, 456 e, 457 c): "Deve-se usar a retórica também com justiça, como uma arte de combate. Se alguém, creio, que se tornou orador, comete injustiças graças a essa potência e a essa arte, não se deve desprezar nem expul­sar das cidades aquele que as ensinou a ele. Pois este último as trans­mitiu em vista de um uso justo, ao passo que o primeiro faz delas um uso contrário. É então aquele que as usou sem retidão que é justo desprezar, expulsar, condenar à morte, mas não aquele que as ensi­nou" (457 b-c). Esse julgamento do sofista é, aliás, partilhado por Sócrates, que conclui o mito dos Infernos, no final do diálogo, com uma tirada moral em que se encadeiam: que é preciso evitar cometer a injustiça ainda mais do que sofrê-la, que o segundo bem, após o de ser justo, é o de se tornar justo pagando por seu erro, enfim, que é preciso evitar a adulação e "servir-se da retórica como de qualquer outro meio de ação, sempre em vista do justo" (khresteon epi to dikaion aei, 527 c).

Os dois usos são assim, ao longo do diálogo, claramente distin­guidos por sua finalidade, e são eles que servem para estruturar a ana­logia: a arte visa "ao melhor" (to beltiston), ao passo que sua contra­fação visa "ao mais prazeroso" (to hediston, 464 c-465 a). A oposi­ção não deixa de ressurgir nos momentos cruciais, entre um uso ver­gonhoso, caracterizado pelo prazer e pelo gozo, e um belo uso, carac­terizado pela utilidade e pelo progresso das almas, por exemplo acer­ca da poesia, e especialmente da tragédia (502 b), como acerca da elo­qüência política (502 e-503 b). Deve-se, assim, constatar que, se a retórica enquanto tal é indiferentemente capaz do melhor e do pior, então, tanto para o sofista quanto para Sócrates, ela deve ser subme­tida a uma finalidade extrínseca, a uma ética decidida por uma ins­tância que se assemelha muito à filosofia.

156 o efeito sofístico

Em vista dessa análise, certas observações se impõem, sugeridas por Élio Aristides.

De início, perceber-se-á que se encontra, como que projetada no interior do Górgias, a dicotomia entre o Górgias e o Pedro17. Aristides mostra como ler, no Górgias, que pode então chamar de "tratado pa­radoxal" (11,442), simultaneamente o Górgias e o Fedro: os dois usos equivalem finalmente a determinar duas naturezas, segundo o esque­ma seguinte:

Górgias

retórica = sofística

mau uso bom uso

retórica = sofística retórica = filosofia

o Górg;as no Górgias o Fedro no Górgias

Fedro

retórica = filosofia

Com efeito, de duas coisas, uma. Ou só há efetivamente apenas uma retórica, da qual se pode fazer bom ou mau uso: nesse caso, deve­se somente fazer o elogio da retórica, exatamente como se faz, desde Isócrates e Aristóteles, o da medicina, até mesmo o da filosofia, que não são em nada desonradas pelo fato de que certos (supostos) médi­cos ou filósofos mataram seus pacientes ou caíram em poços, pois o erro não é da arte (11,247-253; I1I, 537 e.g.). Ou há duas retóricas, e Platão se enganou ao condená-las usando para ambas o mesmo nome, como se a má fosse a única, pois "não é belo nem conveniente cha­mar os vícios pelo doce nome das virtudes, nem diminuir as virtudes, associando a cada uma delas o vício correspondente" (II, 452).

Enfim, se a boa não pode ser encontrada, como sugere uma pas­sagem do Górgias, em que Sócrates, que vê adulação em toda parte, pretende jamais ter encontrado "tal retórica" (a que visa ao melhor, 503 b, comentado por Aristides em 1Il, 539; cf. 11, 344 e.g.), essa não é uma razão para não falar dela nem para supor que não exista. Exis­te, no final das contas, mesmo segundo o Pedro, um único orador verdadeiro, um único dialético, um único filósofo - para não falar de um único homem virtuoso?

O ponto crítico é, como se pode ver, que, se existe de fato uma e apenas uma retórica, não importando o uso que dela se faça, ela de-

17 O fato de haver no Górgias matéria para escrever o Fedro é o que pensa igualmente, do lado latino, Quintiliano (por exemplo, Instit. 11, XV, 26-31).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 157

~

Page 80: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I' i veria poder permanecer independente, enquanto tal, de qualquer jul­gamento ético ou filosófico. Sem isso, encontramo-la utópica ("tal re­tórica", a do Fedro no Górgias, e a do próprio Fedro) ou condenada (a do Górgias no GÓrgias). Eis o que continuamente testemunha o desenrolar próprio do diálogo, que chega à condenação da retórica. De fato, é necessário e suficiente que o adversário de Sócrates, Górgias ou Pólo, admita um julgamento de valor (sobre a relação entre retóri­ca e belo, bem, ou justo), para que a cada vez, evidentemente, a retó­rica se deixe capturar pela rede da filosofia. Pólo percebe isso em re­lação a Górgias, e se enfurece (461 b); Cá lides percebe isso em rela­ção a Górgias e Pólo (482 d-483 a), e contra-ataca; Sócrates, enfim, reivindica a precisão maiêutica do procedimento: "O que criticavas a Pólo de me conceder por vergonha (aiskhynei, que retoma eiskhynthe, 461 b e aiskhynetai, 482 e), era então verdade: cometer uma injustiça é mais feio e, nessa medida, pior do que sofrê-la; para se tornar corre­tamente um orador é necessário, portanto, ser justo e entender de jus­tiça - o que Pólo censurava em Górgias de ter admitido por vergo­nha (di'aiskhynen)" (508 c).

Se a retórica se condena, assim, a desertar, a inexistir em provei­to do melhor ou do pior, isso aconteceria - acreditando-se no Górgias _ pelo fato de ter vergonha de si mesma, pelo fato de que a neutrali­dade axiológica, pelo menos em matéria de Iogas, é insuportável. Igual­mente, dar-se os meios de se orgulhar da retórica é toda a tarefa de uma parte da latinidade, bem como da segunda sofística.

Uma terceira retórica: a retórica? Terceira e última hipótese: pode-se conceber uma única retóri­

ca, não circunscrita a seus usos, e portanto não suscetível de equiva­

ler a duas, quer dizer, a zero? Élio Aristides certamente não a encontra tematizada nos textos

platônicos, mas escolhe ler uma possibilidade desse gênero, em linha d'água, em uma passagem do Górgias: "Se os Quatro", diz Sócrates, "foram oradores, eles não usaram nem a retórica verdadeira, pois eles não teriam sido derrubados, nem a retórica que adula"18. Muito bem,

18 Ol)'te -rn Cx.ÀTj{hvn pryropU(n €xpWY'ro [ ... ] olhe -rn XOÀOOClXn, 517 a, citado por Aristides e~ I1I, 513: Os Quat~o são, como nos lem'bramos, Temístocles, Cí­mon, MiltÍades e Péricles, propostos por Cálicles e desqualificados por Sócrates para representar o papel do bom orador.

158 O efeito sofístico

comenta Aristides, "se você os priva com justiça das duas, então no­vamente existirá uma terceira retórica, distinta dessas duas. De modo que, com esse discurso, o que a retórica é deixa de ser duplo, mas Platão não mostrou, com isso, qual pode ser a terceira" (530). Ora, ele acaba de observar, de passagem, que "os filósofos tampouco pra­ticam a verdadeira nem a aduladora diante do povo" (526): nesse caso, é porque permanecem em silêncio. Terceira retórica, que per­turba a paisagem ética, e só aparece no silêncio da filosofia ou con­correndo com ele.

Aristides desloca, em seu percurso, a imagem platônica da má re­tórica: a má não é má, e "os Quatro" fazem como Sócrates ou como Platão, e até melhor do que eles; ele invalida também a repartição axiológica dos conceitos, como o prazeroso, o adulador, e o que visa ao útil, ao verdadeiro, ao bem; ele mostra que, se não há duas retóri­cas, nem mesmo dois usos da retórica, mas uma só retórica, então os defeitos para Platão equivalerão às qualidades. Em suma, ele não se contenta em jogar o Fedro contra o Górgias, mas joga, antes, o Fedro sobre o GÓrgias 19• A retórica torna-se de direito - já se compreen­deu isso com a reescritura do mito de Protágoras - a potência de uni­versalidade por excelência: retórica "basilical", reinante ou real, "im­pério retórico" , antecipando seu título perelmaniano.

Mesmo se tal universalidade comporta ainda e sempre um para­doxo. Como se, estruturalmente, a retórica não pudesse se impedir de imitar essa filosofia que a denigre, ela produz o limite, negado, recua­do, redefinido, de um mau uso ou de uma profanação dela mesma que faz contrafação: que faz "sofística". "No campo tortuoso da re­tórica, em que sempre se é o sofista de alguém"20, Aristides distingue, de fato, duas espécies de "maus" sofistas: de um lado, classicamente, os asianistas, que não passam de "efeminados", de "putas" (os "co­loristas") da eloqüência. Mas também, e sobretudo, o próprio Platão, ele que não cessa de pretender ser o que não é, um filósofo, e que re­cusa ser o que é, um orador; ele que acusa os outros de gostar de con­vencer ou de agradar, enquanto ele mesmo reterna à Sicília para se-

19 Aristides apóia-se também, contra o Górgias, nas Leis (11, 304 e.g.l, na Carta VII e em toda a vida - e a morte - tanto de Platão quanto de Sócrates (lI, 285, m, 272s5., IV).

20 Marc Fumaroli, L 'âge de l'éloquence: rhétorique et "res !iteraria" de la Renaissance au seui/ de l'époque classique, Paris, Droz, 1980, p. 94.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 159

Page 81: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

duzir os tiranos; ele que, por fim, grande promotor da verdade, não cessa de fazer Sócrates falar em ficções dialogadas21 . Assim, o fim do Contra Platão o vê - ele, "o pai e o professor dos oradores" (465) _ submetido por Aristides ao jugo da retórica, como um "escravo fu­gitivo" (463). Audácia, ironia e humor desse procedimento sofístico por excelência, de devolução ao emissor e de catástrofe em espelho, coroado por uma magnífica frase de orador: "(Platão) capturou a sombra da retórica e é dela que se ocupa, mas nem mesmo tocou na retórica, assim como os troianos de Estesícoro tomaram a sombra de Helena pela própria Helena. A diferença, no entanto, é a de que a sombra da retórica nem mesmo se lhe assemelha" (lI, 234).

COM ARISTÓTELES CONTRA ARISTÓTELES

O [oeus classicus referente à retórica de Aristóteles, desde Leon­hard Spengel22, é o de inscrever a Retórica na continuidade do Fedro. Aristóteles, segundo nos diziam, como aluno genialmente obediente, cumpre efetivamente o programa socrático, que fornece, aliás, de for­ma quase integral, o plano matricial da Retórica: estudo dos gêneros de discurso, estudo dos gêneros de almas, ações e paixões (ethos e pathas), conexões causais e adaptação palavra por palavra, levando em conta a ocasião. Ele conceberia, portanto, uma única retórica - a boa, a do Pedro -, cuja técnica ele ampliaria e refinaria, especialmente no plano da lógica, com os entimemas, e no da invenção, com a esco­lha das premissas por lugares. De tal modo que Cha'im Perelman, por sua vez, pode muito naturalmente pretender cumprir o programa do Pedro com a Retórica de Aristóteles: é assim que a própria obra de Aristóteles teria sido pensada23 .

21 Sobre a extensão do termo "sofista", cf. m, 676-681j sobre os asianistas, cf. XXXIV; sobre as críticas a Platão: a Sicília, ver 11, 288s., m, 366-369 e.g.j a escrita de ficção, ver m, 586, 622, 632 e.g.j sobre a inversão ou a reversibilidade

das acusações cf 11, 25s., m, 394, IV, 47 e.g.

22 Über die Rhetorik des Aristoteles, Munique, 1852. Sobre esse ponto, ver as observações preliminares do precioso livro de Antje Hellwig, Untersuchungen zur Theorie der Rhetorik hei Platon und Aristoteles, (Gottingen, Vander & Ru­precht, 1973, p. 19s.); e, como vestígio recente dessa problemática, a longa cita­ção do Fedro (271a-272b), na Introdução à tradução do livro 11 por Médéric Du­

four (Paris, 1960), p. 16s. (mas cf. Introdução, I, p. 13).

23 Esse projeto perelmaniano, de que voltaremos a falar, aparece de modo

160 o efeito sofístico

Mas creio que existe uma outra linha de força mais magistral­mente evidente na concepção aristotélica da retórica: trata-se, com a Retórica, tratado distinto, da retórica como disciplina senão autôno­ma, pelo menos distinta, legitimamente distinta. A retórica é, sem sombra de dúvida, uma tekhne, uma dynamis, e até mesmo uma episteme, já que é conhecimento causal, que não poderia de direito se confundir nem com a sofística nem com a filosofia. Essa autono­mia, pelo menos tentada, do retórico fora da norma ti vida de ética deve, em minha opinião, do mesmo modo que a autonomia do polí­tico e a ela ligada, ser atribuída à tendência sofística, e antiplatônica, de Aristóteles.

Darei, inicialmente, como prova disso a própria definição da retórica, na primeira linha do primeiro livro da Retórica: He rhetorike estin antistrophos tei dialektikei (1354 aI), "a retórica é o análogo da dialética", definição que já fez correr muita tinta24. Com efeito, ela só pode ser compreendida, parece-me, em relação ao Górgias e ao Fedro, como perturbação da paisagem platônica. A retórica é "antís­trofe", como no Górgias, quer dizer, ela entra em uma relação de analogia, ela constitui um dos termos de uma proporção. Mas a ana-10gia não é, certamente, a mesma: a retórica de Aristóteles não é, con­trafação da justiça, ° análogo, no campo da alma, da cozinha, essa contrafação da medicina, no campo do corpo. Como ele repete, ela é, antes, o análogo da dialética. Tem-se, portanto, algo como:

Platão Aristóteles

retórica cozinha retórica dialética

alma corpo demonstrativo persuasivo

bastante claro, por exemplo, na introdução ao Traité de l'argumentation. La nou­velle rhétorique (em colaboração com L. Olbrechts-Tyteca, Bruxelas, Édition de l'Université de Bruxelles, 1970, pp. 6-10.

24 O próprio Perelman comenta isso em L'Empire rhétorique. Rhétorique et argumentation (Paris, Vrin, 1977, p. 18s.), mas como se remetesse apenas ao tipo de auditório: "um só interlocutor" para a dialética, "uma multidão", e até mesmo uma multidão de ignorantes, para a retórica - daí sua tradução livre de antistrophos por "contraponto" fpendant]. A razão dessa compreensão, que se re­laciona à escolha do programa do Fedro, não deixará de aparecer a seguir.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 161

Page 82: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Em termos aristotélicos, não é difícil explicar por que a retórica é o análogo, no campo do persuasivo, da dialética no campo do de­monstrativo. A analogia entre as duas é constantemente indicada nos dois primeiros capítulos do livro I: ela se refere a seu caráter comum de universalidade (simultaneamente no sentido de competência parti­lhada, mais ou menos bem, por todos os homens, e de capacidade de tratar de todos os assuntos), ao fato de que suas premissas são prová­veis e apenas prováveis, e ao fato de que ambas têm capacidade de anular os contrários. No entanto, a terminologia aristotélica - ao menos na medida em que apela para a antistrophe, tocus classicus do Górgias - só pode ser entendida, e isso portanto soa deliberado, ten­do a terminologia platônica como fundo. O outro termo platônico é, evidentemente, o de "dialética". Eis a retórica aristotélica antístrofe da "dialética", ou seja, da retórica filosófica do Pedro. Não se deixa­rá de notar que a disciplina retórica é assim ligada a um dos golpes aristotélicos mais violentos em relação a Platão: o sentido quase ho­mônimo do conceito de dialética, produzido por um retorno reflexi­vo à linguagem comum.

É em um horizonte assim transformado que pode intervir a defi­nição operatória da retórica, a que determina seu ergon - sua ação, seu papel, sua eficácia: "É manifesto ... que sua função própria não é a de persuadir, mas a de ver os meios de persuadir que cada tema com­porta "25. Notável, de fato, é o passo para trás especulativo: a retóri­

canãotemdeper~~~s teJn_de_.Ye:r--,_4~_J~orj~~peLSlladir-

A conseqüência é clara: não haverá duas retóricas. Pode certamen­te haver um uso justo e um uso injusto da retórica: como para todos os bens, com exceção da arete, aquele que a utiliza justamente "aju­da" e aquele que a utiliza injustamente "prejudica" (1355 b2-7); e como para todas as artes, por exemplo a medicina, se o sucesso nunca está garantido, pode-se sempre, senão curar ou persuadir, pelo menos tratar ou empregar os meios de persuasão mais adequados (1355 bll-14). Mas dessa vez, conforme o desejo de Élio Aristides, os dois usos não se transformarão, como em Platão, em duas naturezas: qualquer que

@Ou "[à 1T€lO"aL ~prov airrTtç, &.n&. Tà 't,s€lV "[à l.mcXpxovTa m-D-avà 1T€pt €xaCITov, 1355 b las. Cf 135S b2Ss.: YEO"tw ,sE Í1 PTlTOplKrl,súvaj.llç 1T€PL €xaO"tov "[ou -D-€WPTtcral Tà €v,s€XÓj.l€VOV m-D-avóv, "consideremos então que a retórica é o poder de fazer, em cada caso, a teoria do que convém para persuadir".

162 o efeito sofístico

seja o uso que dela se faça, a retórica é e permanece globalmente, en­quanto tal, khresimos, "útil" (1355 blO). Seu poder, sua técnica e sua ciência constituem uma positividade, a montante de toda intenção boa.

Uma outra maneira de dizer isso dará a perceber a diferença de sua "antístrofe". Nenhum sofista pode ser dialético, pois a dialética tem uma intenção acoplada: na medida em que ela exerce uma "críti­ca" , sua função é a de discernir entre o demonstrativo verdadeiro e o demonstrativo aparente (quer dizer, o não-demonstrativo, cuja utili­zação diz respeito à erística, e que é analisado principalmente nas Re­futações sofísticas). Em compensação, um sofista pode ser orador, pois

;~ o aparentemente persuasivo, à diferença do aparentemente conclu­dente que é simplesmente não-concludente, permanece persuasivo en­quanto persuade, e não se requer nenhuma intenção boa para persua­dir26 O fato de que um sofista possa ser orador, assim como pode, além disso, ser matemático, não implica que haja duas retóricas nem que a retórica deva por isso ser filosoficamente desvalorizada.

Com Aristóteles, a retórica se situa, portanto, aquém da inten­ção. Pode, entretanto, haver algo como um abuso de retórica, uma ex­tensão ilegítima, para falar em termos kantianos: ela pode sair dos li­mites de sua competência, e nesse caso se acredita que se é orador, quando já não se é mais. Essa possibilidade se relaciona à natureza própria da retórica. Ela é, de fato, não apenas um "análogo" da dialé­tica, mas também um "rebento" (paraphyes ti, 1356 a25) provenien­te de dois ramos distintos: por um lado, dessa mesma dialética, já que uma parte das provas técnicas é constituída pelos entimemas ou su­mários de silogismos dialéticos; por outro lado, da política, porque as

26 Comento aqui o texto difícil que segue a definição operatória da retóri­ca: "É à mesma disciplina que cabe ver o persuasivo e o persuasivo aparente, as­sim como concernem à dialética o raciocínio e o raciocínio aparente, pois a sofís­tica não está no poder, mas na intenção; com a única diferença de que, do ponto de vista da retórica, pode-se ser orador quer por sua ciência quer por sua inten­ção, enquanto, do ponto de vista da dialética, se é sofista por intenção, e dialético não por sua intenção mas por seu poder" (1355 biS-2i). Para o sentido de "quer por sua ciência, quer por sua intenção" - que constitui, penso eu, uma última tentativa de enxerto ético (de "platonismo" ou de anti-sofística) -, como para uma interpretação de conjunto da passagem e uma visão mais global desse pro­blema na obra de Aristóteles, permito-me remeter a meu artigo" Logos et po­litique. Politique, rhétorique et sophistique chez Aristote", Aristote politique. Études sur la Politique d'Aristote, sob a direção de Pierre Aubenque, Paris, P.V.F., 1993, pp. 367-98.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 163

Page 83: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

outras provas técnicas referem-se ao ethos do orador e ao pathos dos ouvintes, porque ela se utiliza, portanto, dessa disciplina "ética" que "se pode adequadamente chamar de 'política'" (1356 a20-27). "É aliás por isso que - acrescenta então Aristóteles - a retórica desliza sob a máscara da política, e que se pode contrafazer a política, seja por in­cultura, seja por pretensão, seja ainda por outros motivos bem huma­nos" (1356 a27-30). "Deslizar sob" a forma ou a máscara (hypodyein), "contrafazer" (prospoein), incultura, pretensão, desejo de dinheiro: o vocabulário é bem o da adulação na analogia do Górgias (cf 464 c), característico da sofística. Comparando com o texto quase idêntico da Metafísica (r, 2, 1004 b17-26), em que se diz que os sofistas "desli­zam sob a mesma máscara que o filósofo", porque a sofística, que trata de tudo como a filosofia, é "uma sabedoria apenas aparente", cons­tata-se que a farsa retórica se deixa circunscrever, por Aristóteles, pela seguinte analogia:

retórica sofística

política filosofia

Portanto, o excesso de retórica não faz com que ela se confun­da, como seu mau uso em Platão, com a sofística, mas, antes, com a política; ela se torna, então, uma aparência de política, como a sofística é uma aparência de filosofia.

No entanto, quando esse excesso se produz, pode-se defender com razão que a retórica não é mais ela mesma: faz-se, diz Aristóteles, "sem perceber, desaparecer sua natureza própria", que é a de se referir a discursos, e se a transforma em "ciência relativa a certos objetos bem reais, e não apenas a discursos,,27. Em suma, a retórica tem por obje­to discursos, e a ciência que tem por objeto aquilo de que geralmente esses discursos falam é a política. Sai-se da retórica para entrar na! política quando se deixam os "lugares-comuns" para fazer, por exem­plo, narrativas geográficas e históricas, freqüentemente, no entanto, bem mais emocionantes de se ouvir (1360 a33-37), ou para tratar de "lugares próprios", até mesmo de "princípios", caso em que nos en­contramos, mais uma vez inadvertidamente, na ciência à qual perten-

27 ATÍC"€'taL nlv qJÚCHV ab'twv (trata-se, ao mesmo tempo, da retórica e da dialética) áqJavícraç; TW J.L€'tcx.j3a(V€LV ~TTlcrxoo'Çwv €lç drlo-tiuJ.aç; UnOlC€LufyWV 'tt vwv nparu..á-rwv, CxÀAd J.Lrl j.lÓVOV ÀÓ,wv, Retórica,!, 4, 1359 b14-16 (grifo meu).

164 o efeito sofístico

Cem esses princípios (1,2,1358 a21-28). Aristóteles Contra a sofística, por inteiro nesse diagnóstico de metabasis, e no sintagma "objetos bem reais" (hypokeimenon tinon pragmaton): a retórica se ocupa de logoi, tudo bem, mas então apenas de logo i, e não de pragmata. O fato de considerar os pragmata como hypokeimena, como coisas que "já es­tão aí", e não como possíveis efeitos de logo i, basta para tornar ilegí­timo seu estatuto político, e o impacto sofístico é barrado.

Mas Aristóteles de início barrou Platão: é de dentro de sua Com. petência, e não a partir de um fora ético-filosófico, que a retórica é normatizada. A qualidade da retórica, boa ou má, não depende de sua intenção nem de sua finalidade, mas da maneira boa ou má pela qual ela exerce sua técnica. É bom orador aquele que pratica a tekhne rhe­torike elaborada por Aristóteles, sem ultrapassar os limites de Sua com­petência. Eis aí uma mudança radical em relação a Platão.

CONTRA PERELMAN, COM PERELMAN

Escolher a retórica contra a filosofia

Se há efetivamente uma mutação de sentido entre o valor da re­tórica em Platão e o valor da retórica em Aristóteles, de tal forma que dessa vez não mais o substantivo mas o adjetivo, "boa" retórica, se torna homônimo, o que acontece no projeto perelmaniano de satisfa­zer ao Pedro graças à Retórica de Aristóteles?

O Império retórico inicia com uma profissão de fé que se tornou célebre:

"Subordinando a lógica filosófica à nova retórica, par­ticipo do debate secular que opôs a filosofia à retórica, e isso desde o grande poema de Parmênides.

Este, e a grande tradição da metafísica ocidental, ilus­trada pelos nomes de Platão, Descartes e Kant, sempre opôs a busca da verdade, objeto proclamado da filosofia, às téc­nicas dos retores e dos sofistas, contentando-se em fazer ad­mitir opiniões tão variadas quanto enganadoras." (p. 19)

Um aluno de Eugone Dupréel28 é de fato capaz, COm todo co­nhecimento de causa, após Isócrates, Cícero, Quintiliano ou Élio Aris-

2~ Eugene Dupréel é, com() se sabe, o autor de: Les Sophistes. Protagoras,

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 165

Page 84: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tides, de não apenas tomar o partido da retórica contra o da filosofia, da "vida ativa" contra a "vida contemplativa"29, mas, de maneira mais determinada, de tomar o partido das ~~técnicas dos retores e dos so­fistas", o partido da retórica-sofística, aquela que a tradição platôni­ca estigmatiza como "má" retórica, contra o da "busca da verdade", da retórica-dialética, da "boa" retórica.

Perelman, ou a sofística contra a filosofia? Poder-se-ia pensar encontrar uma confirmação do caráter pró-sofístico e antiplatônico da "nova" retórica instaurada por Perelman, em sua constante referên­cia a Aristóteles, notavelmente ausente, aliás, da enumeração ilustran­do "a grande tradição da metafísica ocidental". De fato, Perelman des­de cedo se mostra consciente de reescrever incessantemente Aristóteles: "[ ... ] ao longo do trabalho, apercebemo-nos de que os procedimentos que encontrávamos eram, em grande parte, os da Retórica de Aris­tóteles; de qualquer modo, as preocupações deste último se aproxi­mavam estranhamente das nossas. Tal foi, para nós, ao mesmo tem­po uma surpresa e uma revelação"30. Mas o que enfraquece totalmente essa hipótese, e constitui uma surpresa e uma revelação, dessa vez para o leitor de Perelman, é o fato de que a Retórica de Aristóteles com­preende, no uso que dela faz Perelman, indissoluvelmente a Retórica propriamente dita e os Tópicos31, ou seja, essa dialética que, como vi­mos, é "crítica", à diferença da tekhne rhetorike, e que um sofista não podia então praticar.

Gorgias, Prodicus, Hippias, op. cit., infinitamente mais sutil e menos impregnado de platonismo, inconsciente ou não, do que a maioria dos livros que, como o de W.K.C. Guthrie (Les Sophistes, op. cit.), retomaram o mesmo tema.

29 Sobre essa primeira oposição, que estrutura toda a Antigüidade, ver, por exemplo, "Rhétorique et philosophie" (Les Études philosophiques, 1969, reedi­tado em Rhétoriques, Bruxelas, 1989, pp. 209-20, especialmente p. 209s.).

30 "logique et rhetorique" (com LO.-T., Revue philosophique de la France et de l'Étranger, Paris, janeiro-março 1950), republicado em Rhétoriques, op. cit., p.7l.

31 Cf, por exemplo, "Une théorie philosophique de l'argumentation" (Ar­chiv für Rechts- und Sozialphilosophie, Wiesbaden, 1969, reeditado em Rhéto­riques, op. cit., p. 244): "Reencontramos assim, como parte da teoria, a dialética socrática, formalizada nos Tópicos de Aristóteles, que é a arte de questionar e de responder, de criticar e de refutar". Sobre esse ponto, nos reportaremos a L. eou­loubaritsis, "Dialectique, rhétorique et critique chez Aristote", em De la métaphy­sique à la rhétorique, op. cit., pp. 103-18.

166 o efeito sofístico

A ambigüidade de Perelman, e não mais da retórica, consistiria, portanto, em escolher a sofística contra Platão, mas em escolher Aris­tóteles contra a sofística?

Escolher o Fedro contra o Górgias Não acreditaremos nisso por muito tempo. Pois, afinal das con­

tas, Aristóteles antes serve de meio do que ajuda na determinação de um fim: é o organon de um grande projeto que se revela, ao longo do caminho, seguramente cada vez mais platônico, em todo caso mais platônico do que as declarações de intenção deixam supor.

Importa, de início, constatar que o próprio enquadramento não tem nada de aristotélico. Como vimos, para Aristóteles a retórica é uma disciplina distinta. Tal singularidade faz com que, em nenhum caso, ela possa ser confundida com o todo da filosofia; ao contrário, ela é pensada no interior de uma organização de conjunto, complexa, do saber humano, corno análoga à dialética, mas também como subor­dinada à política, assim como a estratégia, a economia, e as outras potências ou ciências práticas de que a política, arquitetônica no mais alto grau, pode se servir32. E a própria política não é senão, no fim das contas, uma disciplina dentre outras, simultaneamente distinta da poesia e da teoria. Para Platão, ao contrário, a retórica bem pensada (a "boa" retórica) e a filosofia bem pensada (a dialética) são quase equivalentes. Aliás, eis aí o enquadramento que um "império retórico" necessariamente se propõe.

Entretanto, um matiz nesse enquadramento, de Platão a Perel M

man, poderia, por sua natureza, dar crédito, mais urna vez, à opção sofística. De fato, onde Platão diz, com o Pedro, algo como: o (verda­deiro) retórico é o filosófico, Perelman escolhe dizer: o filosófico é o retórico. Ou ainda, ao invés de um "tudo é filosófico", que constitui­ria a opção propriamente platônica do Fedro, Perelman promove an­tes um "tudo é retórico", que representaria a opção mais específica de Górgias no interior do GÓrgias. Indubitavelmente é uma espécie de apropriação do retórico sobre o filosófico que se interpreta em uma primeira leitura, por exemplo a conclusão de "Retórica e filosofia": "Se a filosofia permite esclarecer e precisar as noções de base da retó­rica e da dialética, a perspectiva retórica permite .:ompreender melhor o próprio projeto filosófico, definindo-o em função de uma raciona-

32 Cf EN, I, 1, 1094 b2-5.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 167

Page 85: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

lidade que ultrapassa a idéia de verdade, sendo o apelo à razão com­preendido como um discurso dirigido a um auditório universal" (op. cit., p. 220). Pode-se ver aí que a tecnicidade aristotélica ("as noções de base da retórica e da dialética") serve a essa universalidade retóri­ca, a única capaz de estender, de maneira inteiramente habermasia­na, o racional filosófico a todo o campo do razoável.

Mas é precisamente nesse ponto, como já se pode perceber, que a primeira leitura se volta contra si mesma, e que somos forçados a trocar, mais uma vez, o horizonte sofístico pelo horizonte platônico. Forçados, antes, a reconhecer que, a sério, nunca deixamos o hori­zonte platônico, e que mesmo Perelman nunca deixou de militar pelo Fedro contra o GÓrgias. É o que prova, por exemplo, a discussão bastante esclarecedora com M. Bénézé, que segue "O ideal de racio­nalidade e a regra de justiça". À pergunta de Bénézé, descrevendo perfeitamente a posição de Górgias - aceitarias "resumir tudo o que ouvimos com a seguinte frase: que o acordo entre os que não pensam da mesma maneira só pode ser feito por meio da eloqüência, ou seja, por meio de uma persuasão conduzida e obtida por aquele que sabe falar"? - Perelman encontra as mesmas palavras de Sócrates (266 b) descrevendo a dialética pela qual é apaixonado, para retorquir: "E que sabe pensar,,33.

Então, o último e mais autêntico refúgio de sua opção retórica não pode mais consistir senão em privilegiar constantemente uma lei­tura dos diálogos em termos de "auditório": a oposição entre o Gór­gias e o Pedro torna-se redutível a uma diferença na qualidade daque­les que escutam. Disso é testemunha a referência constante à passa­gem-faro� do Pedro, 273 e, que ele parafraseia livremente, apesar de algumas aspas, como "retórica digna do filósofo", capaz de "conven­cer os próprios deuses" 34, face ao "auditório de ignorantes" caracte­rístico do GÓrgias. "O descrédito que Platão lança sobre a retórica, em seu Górgias, deve-se ao fato de que se trata de uma técnica do

3, "L'idéa[ de rationalité et [a regle de justice" (BulIetin de la Société (ran­çaise de philosophie, 1961, reeditado em Le champ de l'argumentation, Bruxelas, 1970, pp. 287-336). Ver igualmente a Introdução ao Traité de l'argumentation (op. cit., p. 9); "Logique formeHe et [ogique informelle" (De la métaphysique à la rhé­torique, op. cit., p. 19s.); "Une théorie philosophique de l'argumentation" (Rhé­toriques, op. cit., p. 244s.).

34 Cito aqui a continuação da discussão com Bénézé, op. cit., p. 307.

168 o efeito sofístico

verossímil para uso do vulgo. Sendo a preocupação do orador a de agir de um modo eficaz sobre um auditório de ignorantes, ele deveria ne­cessariamente adaptar seu discurso ao nível daqueles que o escutavam. As provas mais sólidas aos olhos dos homens competentes nem sem­pre eram aquelas que suscitavam a convicção, e compreende-se que Platão condene os subterfúgios dos oradores que ele julga indignos de um filósofo. Mas, no Fedro, Platão sonha com uma retórica que seja digna dele, com uma retórica cujos argumentos poderiam convencer os próprios deuses. Se toda retórica tende à ação eficaz sobre os espí­ritos, é a qualidade desses espíritos que distinguiria uma retórica des­prezível de uma retórica digna de elogios,,35. Tem-se aí, sendo o con­dicional corroborado por vários indicativos, o valor da retórica para Perelman: ela não depende mais, como para Platão, do objeto da per­suasão ("É verdade que, para Platão, a retórica que agradaria aos deuses seria fundada em um conhecimento objetivamente válido. Mas como reconhecer o caráter objetivo de um conhecimento, sua confor­midade aos fatos, a verdade de uma proposição que se enuncia?", continua Perelman), mas apenas dos sujeitos persuadidos, da qualidade do auditório a que o orador se dirige, uma vez que é do auditório que depende, por sua vez, a qualidade dos meios adaptados à persuasão. Em suma, o valor da eficácia se mede pelo valor do auditório. É, ali-

. ás, o que justifica a seus olhos o desprezo clássico acerca da retórica: ela se dirigiu sempre, desde Górgias e Aristóteles, passando por Quin­

'·.tiliano, a esse mesmo "auditório de ignorantes,,36. Técnica aristoté-

35 "De [a preuve en philosophie" (Mélanges G. Smets, 1952, reeditado em Rhétoriques, op. cit., pp. 313-23, aqui p. 313); grifo meu.

36 Esse julgamento, embora surpreendente, é um lugar-comum perelma­niano, fundado em uma das interpretações possíveis de Rhétorique, I, 2, 1357 al-4: "É a tarefa da retórica tratar daquilo sobre o que deliberamos sem que isso requeira conhecimentos técnicos, e diante de um auditório que não pode ter si­multaneamente em vista uma série de considerações nem concluir a partir de pre­missas muito distantes" (cru [ ... ] btà rroÀÀw\I O'Uvopà\l oooe ÀOYl'Ç€O'15"ClL rróppw15"€v) - a outra interpretação (que faço minha) refere-se à natureza da discursividade e da oralidade como tais, e não à mediocridade dessa "multidão" ateniense que, para Platão-Perelman, não "possui qualquer saber especializado e (é) incapaz de acompanhar um raciocínio um pouco mais elaborado" (L'Empire rhétorique, op. cit., p. 9). Cf "Philosophie, rhétorique, lieux communs", Bulletin de la Classe des Lettres et des Sciences Morales et Politiques de I'Académie Royale de Belgique, LVIII, 1972, publicado em inglês em The new Rhetoric and the Humanities, Dordrecht, Reidel, 1979, pp. 52-61, especialmente p. 57s.; ou ainda "Logiquc et

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 169

Page 86: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

lica, se quisermos, de adaptação conforme ao auditório, mas estra­nhamente coroada por uma revitalização do platonismo, que decide, fora do campo da retórica, sobre a qualidade dos espíritos.

iI:: Querer o bom auditório A questão do valor da retórica se desdobra então em questão do

valor do auditório: mas o que determina a qualidade de um auditó­rio? Para responder a essa pergunta, bem como para responder à da "comunidade". do "lugar-comum", o próprio Perelman hesita entre dois lugares, o da qualidade (tem qualidade aquilo que é o melhor, é comum o que é superior, preferível) e o da quantidade: tem quantida­de o que é comum, o que é universal. Ele escolhe, muito firmemente, a resposta pelo universal. Assim, em "Da prova em filosofia", Perelman chega à questão decisiva que será retomada por Apel e Habermas: "O que fazer quando, apresentando uma proposição que parece objetiva­mente válida, à qual deveriam aderir todos os seres sensatos", encon­tram-se um ou mais espíritos insubmissos que se obstinam em rejeitá­la? (art. cit., p. 321). Uma das soluções possíveis é evidentemente a de "excluir os recalcitrantes do conjunto dos seres sensatos", mas com um procedimento semelhante o auditório universal se torna um "au­ditório de elite", "a qualidade substituindo a quantidade" (p. 322). Ora, logo acrescenta Perelman, "pode-se caracterizar a reflexão filo­sófica pelo fato de nunca se satisfazer com acordos dessa natureza". Tal afirmação sugere duas observações. Primeiramente, temo que a filosofia não possa se privar de uma exclusão desse gênero, desde Aris­tóteles que relega, no livro Gama de sua Metafísica, para fora da hu­manidade, como "plantas" que falam, os sofistas que recusam reco­nhecer o princípio de contradição, até Apel e Habermas, que reiteram esse gesto contra o "cético conseqüente,,3? Em seguida, ela fornece, quanto ao próprio Perelman, a prova definitiva de que ele escolheu expressamente ser, a seus próprios olhos, na qualidade de promotor da nova retórica, não retórico, mas filósofo. Assim o "imperativo ca­tegórico da argumentação", que é sua descoberta e que ele toma como

rhétorique", com L. Olbrechts-Tyteca, Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, janeiro·março 1950, reeditado em Rhétoriques, op. cit., pp. 63-107,

especialmente p. 73.

37 Ver, sobre esse ponto, Ensaios sofísticos, IlI, 1 (São Paulo, Siciliano, 1990,

pp.209-20).

170 o efeito sofístico

seu, se enuncia: "O filósofo deve argumentar de modo que seu discurso possa obter a adesão do auditório universal"38.

O "auditório universal" é o avatar kantiano do "auditório dos deuses" extraído do Fedro 39: trata-se, não de um auditório empírico, efetivamente dado, mas de um auditório ideal, de um princípio regu­lador. Um tal auditório é não apenas, como os auditórios reais, uma "construção do orador"4o, mas, igualmente, sua encarnação bem como sua idéia variam "com os séculos, com as épocas, com os progressos da ciência"41. Sem ingenuidade, portanto, mas em total conformida­de com a ética, até mesmo em total conformismo moral. O texto mais esclarecedor sobre esse ponto é, sem dúvida, "L.Qgica_ en~tórica'?, tex­to apaixonadamente alerta, que defende, interpondo Proust e Paulhan, o efeito e a eficácia, a ponto de aconselhar, quando "a percepção do processo diminui sua eficácia", "servir-se da retórica para combater a idéia de que se trata de retórica" (art. cit., p. 97) - mas que, no en­tanto, eu encerraria em uma fórmula: o efeito é coberto de boas in­tenções. Perelman aí se mostra, inicialmente, a favor de Górgias e contra Sócrates a tal ponto que confia todo valor da boa retórica à seguinte analogia: "Diremos que o que a correção é para a gramática, a vali­dade é para a lógica, a eficácia o é para a retórica" (ibid., p. 98). En­tretanto, essa promoção retórica da retórica desemboca, sem nenhu­ma outra forma de processo, na mais platonizante das problemáticas: "Mas se apenas a eficácia é levada em conta, teremos um critério que nos permita distinguir o sucesso do charlatão e o do filósofo eminen­te?" (ibid.). Aí se encontra o auditório universal como pano de fundo

.38 "Philosophie, rhétorique, lieux communs", art. cit., p. 58 (grifo meu); cf "Raison éternelle, raison historique", em Justice ct Raison, Bruxelas, 1963.

39 O encadeamento é especialmente nítido em "Logigue farmeHe et logique informelle" (op. cit., p. 19s.): "Como a eficácia é função do auditório, a melhor argumentação é a que poderia convencer o auditório mais exigente, o mais críti­co, o mais bem informado, como o constituído pelos deuses ou pela razão divina. É assim que a argumentação filosófica se apresenta como um apelo à razão, que traduzo na linguagem da argumentação ou da nova retórica como um discurso que se dirige ao auditório universal".

40 Traité de l'argumentation. La nouvelle rhétorique (com L. Olbrechts· Tyteca), Bruxelas, Éditions de I'Université de Bruxelles, 1970, p. 650, e nota 2.

41 Cf., por exemplo, a continuação da discussão de "L'idéal de la rationalité et la regle de justice", op. cit., p. 335.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 171

Page 87: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

,

I

para nossa peça de três personagens. Pois "a garantia de nossos ra­ciocínios" equivale ao "discernimento de nossos ouvintes". Daí o in­teresse, "devido ao valor dos argumentos" (noção que se justapõe à de eficácia da retórica e até mesmo a substitui subitamente), em "di­rigi-los ao auditório universal", precisamente aquele "ao qual se visa nos mais elevados raciocínios da filosofia": "Dirigir-se a esse auditó­rio constitui, no caso de um espírito honesto, o esforço máximo de argu­mentação que lhe possa ser requisitado. Os argumentos que analisa1 remos serão, portanto, aqueles que os espíritos mais retos e, diríamos,' freqüentemente os mais racionalistas, não podem deixar de utilizar: quando se trata de certas matérias tais como a filosofia e as ciências: humanas" (ibid., p. 99; grifo meu). O imperativo retórico de se diri­gir ao auditório universal, somado à petição de princípio de que aí se trata da ficção de um espírito honesto, nos dois sentidos do genitivo,. está assim habilitado a distinguir entre boa e má eficácia. O auditório I universal é o operador da confusão definitiva entre retórica, filosofia e ética. Tal é, aliás, a conclusão escolhida para encerrar a compilação Rhétoriques, unindo o auditório universal "que (serve) de norma por intermédio do normal" a "nosso esforço e nossa boa vontade para criá­lo", a fim de tornar manifesto que a argumentação se vincula, assim, não apenas a "uma sociologia do conhecimento", mas que "ela se vincula também a uma ética ,,42.

Ricoeur se enganava ao inquietar-se por Perelman e pelo perigo enfrentado pelo "desinteresse da discussão filosófica autêntica,,43. Pois a nova retórica, mesmo se ela "compreende" a filosofia, se define por ser, ao contrário da sofística, modelada em boa proairesis, e recebe seus valores de uma ética preconcebida pela filosofia. A retórica é aí, no máximo, ventríloqua: digamos que, com o imperativo retórico do au­ditório universal, ela tenha engolido Platão.

Esse percurso nos confirma que uma resposta "não filosófica" à questão do valor da retórica só pode ser encontrada na manuten­ção estrita de uma problemática do efeito, e não com, mas contra, toda problemática da intençã044 • Por exemplo, esforçando-se em

42 "De la temporalité comme caractere de l'argumenration" (com L.O.-T., Archivio di Filosofia, 1958, republicado em Rhétoriques, pp. 437-67, aqui p. 465s.).

4.1 Ver supra, nota 13.

44 Aproximo-me aqui de certas conclusões do trabalho, tão inteligível e in-

172 o efeito sofístico

subsumir O Pedro sob o Górgias, sob o Górgias no Górgias, e não o inverso; desenvolvendo uma reflexão sobre o ergon que suspenda o telos. Pois só o efeito é index sui, não suscetível de pseudos, e permi­te à retórica expulsar a ética como um corpo estranho: é a intenção, jogando com o indiscernível, que opera a possível usurpação e obri­ga a se deixar atribuir a máscara do sofista tão logo não se reivindi­que, com grande alarde, o rosto do filósofo. A retórica como retóri­ca é, ao contrário, como Aristóteles nos sugere, compatível tanto com a sofística quanto com a filosofia. Mas, do ponto de vista platônico­perelmaniano de uma ética da intenção que sempre preexiste e per­dura, uma retórica assim indecidível não poderia ser senão sofística ou, em todo caso, má.

"A FILOSOFIA PODE SER SIMULADA, NÃO A ELOqÜÊNCIA" (QUINTILIANO), OU: O EFEITO CONTRA A INTENÇÃO

É com Quintiliano que uma tal retórica do efeito fala, a meu ver, mais claramente de si mesma. E já que, no efeito, parecer e ser são necessariamente indistintos, não há nada de surpreendente no fato de que a relação mimética entre sofística/retórica e filosofia encontre aí motivo para ser não simplesmente invertida, mas demitida em proveito de uma retórica inimitável.

Philosophia enim simulari potest, eloquentia non potest. Essa frase de Quintiliano (XII, 3, 12) conduz ao cerne da relação entre fi­losofia e retórica por meio de um terceiro-termo, simulari ("simular", "dissimular", "contrafazer", em suma: a imitação), em torno do qual tudo gira. Gostaria de apresentar aqui uma explicação dela ou, an­tes, uma glosa. "A filosofia pode ser simulada". Essa primeira parte da frase tem uma herança pesada. Ela afirma que se pode fingir ser filósofo quando não se é. Igualmente toda a filosofia grega, Platão e Aristóteles vindo substituir sob um outro modo a krisis parmenideana,

teligente, de Jacqueline Lichtenstein, La couleur éloquente (Paris, Flammarion, 1989), sobretudo pp. 83-100: "La rhétorique et la philosophie en guerre", que glo­sarei, a partir daqui, no que se refere a Quintiliano, com outras finalidades demons­trativas [edição brasileira: A cor eloqüente, São Paulo, Siciliano, 1994).

De uma sofística a Outra: boas e más retóricas 173

Page 88: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

consiste em separar entre os pretendentes, os rivais: aqueles que que­rem usurpar a função do filósofo (oradores, demagogos, erÍsticos, políticos, depois dialéticos), aqueles que, pior ainda, fazem-se simples­mente passar por ele, aos quais convencionou-se, desde Platão, atri­buir o nome genérico de sofistas, e que se trata de diferenciar, mes­mo que isso sempre deva ser refeito, por sua máscara e sua intençã045

.

Veremos, pela leitura do contexto imediato, que, em Quintiliano, tam­bém se trata de maus que querem se fazer passar por melhores do que são: e tratar-se"á, portanto, de máscara e de hipocrisia. "Não a elo­qüência": a segunda parte da frase obriga a uma completa reinter­pretação dessa problemática clássica. Pode haver falsa filosofia, pre­tensos filósofos, mas não pode haver falsa eloqüência, pseudo-orado­res. A filosofia era valorizada porque todos procuravam imitá-la; eis que a eloqüência é conotada de maneira ainda mais positiva, porque ninguém pode imitá-la. Na frase tomada em sua totalidade se encon­tra assim cifrada a relação entre tradição filosófica grega e tradição retórica latina, com os lugares respectivos da filosofia e da retórica em Atenas e em Roma. O segredo da vitória da retórica é o de rein-: terpretar, a seu favor, o leitmotiv crítico da filosofia contra seus alter;' ego, demolindo assim a problemática profundamente platônica da imitação: o que é passível de imitação é bom, mas o inimitável é ain-:

da melhor. Resta perguntar por que, enquanto a filosofia é imitável, a retó­

rica não o é. Encontrar-se-ão, em Quintiliano, duas séries de observa­ções complementares que permitem elaborar uma resposta. As primei­ras são essencialmente, seguindo Cícero, um retorno ao emissor: a retórica lança contra a filosofia as acusações que a filosofia lançava contra ela - é a filosofia que é mascarada e mal-intencionada. Em suma, tratar-se-ia de respostas que a retórica teria simplesmente rou­bado da filosofia e só haveria um movimento pendular com a substi­tuição do orador pelo filósofo, se a retórica, protestando que foi a fi­losofia que lhe roubou tudo de início, não tentasse assegurar definiti­vamente seu território e não encarcerasse a história, deslizando da posição de modelo à de proprietário. Uma segunda série de reflexões pode, então, deslocar mais profundamente a problemática: o orador não é julgado apenas por sua intenção, mas por seu ato. A intenção,

45 Sobre as genealogias platônico-aristotélicas da semelhança, ver infra, ca­pítulo IV, "Sofistas autênticos e doxosofistas, ou seja, filósofos" (pp. 190-2).

174 o efeito sofístico

que fundamenta toda acusação de hipocrisia, sempre se instala na di­ferença entre ser e aparecer, e permanece por natureza duvidosa, sus­peita. O efeito, ao contrário, sobretudo quando entendido como em Quintiliano, não somente em termos de eficácia sobre o ouvinte (há ou não persuasão), mas também em termos de efetividade para o ora­dor (o ato de bem falar), é sempre index sui. Considerar a efetividade e não mais a intenção - eis o que subverte a relação possível com a : simulação: o filósofo procura, o orador acha, e sem dúvida pode-se fingir procurar, mas não fingir achar.

A MÁSCARA DO DESPREZO

"Virá um último livro, no qual deveremos formar o próprio ora­dor" (I, Prólogo, 22). Nesse livro que, como é natural, associa o tema do trabalho necessário para se tornar orador ao paradoxo bem ci­ceroniano de um trabalho desmedido e no entanto exeqüível46, Quin­tiliano trata, inicialmente, dos mores, os do orador, como homem e como cidadão, e os da república, que o estudo do direito civil, dos costumes e das regras religiosas permite conhecer. Seria necessário que o orador, como Catão ou como Cícero, fosse igualmente jurista, co­nhecedor em primeira mão do direito escrito e do direito consuetudi­nário, e prudente, capaz de examinar os casos duvidosos segundo a regra da eqüidade. É para concluir nesse ponto, e de forma breve, que Quintiliano igualmente evita propor ao orador ater-se ao direito ou a algo como a filosofia:

"Mas se aconselho a cultivar o caráter moral47 e a estudar o direito, não se creia com isso que eu deva ser cen-

46 "O que não se aprende rápido não se aprende nunca" (Cícero, De Orato­re, m, 189. 123).

47 [ ..• ] de moribus excolendis studioque juris proecipimus. Adoto aqui a tra­dução de Henri Bornecque (Garnier-Flammarion, 1934), e não a de Jean Cousin (Les Belles Lettres, 1980), que propõe: "se aconselho a fazer um estudo aprofun­dado dos costumes e a estudar o direito". Em Instituição Oratória, Quintiliano utiliza evidenremente mores em roda a amplitude de seu sentido, desde os "cos­tumes" do orador, seu ethos, por exemplo no Prefácio (18, ou 22, que anuncia nosso livro XII, especialmente os capítulos 1 e 2), até os "costumes" da Repúbli­ca (aqui mesmo, III, 1), e pode-se dizer que essa variação, que vai da ética ao di­reito consuetudinário, caracteriza o pensamento romano. Se prefiro, para nossa passagem, a interpretação ética à interpreração jurídica, é porque só ela me pa-

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 175

Page 89: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

surado porque existiram muitas pessoas que, fatigadas pelo esforço necessário para alcançar a eloqüência, se refugiaram nesses asilos de indolência: dentre elas, umas dirigiram sua atenção ao estudo do edito do pretor ou das rubricas de direito civil, e preferiram tornar-se especialistas da fórmu­la ou, como diz Cícero, rábulas, escolhendo, sob pretexto de utilidade superior, aquilo que as atraía apenas pela faci­lidade. [12J As outras, mais arrogantes em sua preguiça, ten­do subitamente forjado um rosto e deixado crescer sua bar­ba, como se tivessem desdenhado os preceitos da arte ora­tória, freqüentaram um pouco as escolas dos filósofos, de forma que, em seguida, austeras em público, devassas na vida privada, outorgam-se autoridade, desprezando as ou­tras. A filosofia, de fato, pode ser simulada, não a eloqüên­

cia." (XII, 3, 11)

Quando se é por demais preguiçoso para se tornar orador, há duas maneiras de considerar muito verdes as uvas da retórica: a dos verda­deiros juristas e a dos falsos filósofos. É possível acantonar-se no di­reito, e acampar em suas sutilezas, camuflando a incapacidade sob a pretensão de uma utilidade superior (tamquam utiliora eligentes ea quorum solam facilitatem sequebantur). O que equivaleria, simples­mente, a parar no meio do caminho e inverter a hierarquia, uma vez que nem todos os juristas podem ser oradores ao passo que todos os oradores podem ser juristas: "Se é verdade que, sem esperança de ter êxito no foro, muitos se voltaram para o estudo do direito, com que facilidade um orador chega a saber o que aprendem homens que in­clusive confessam que não são capazes de ser oradores" (9).

Mas se pode acrescentar a hipocrisia à preguiça e à presunção: disfarça-se, então, a própria impotência retórica em vontade filosófi­ca, forjando-se, graças à falsa autoridade da barba, o rosto do desprezo (alii pigritiae adrogantioris, qui, subito fronte conficta immissaque barba, veluti despexissent oratoria praecepta [ ... J captarent aucto-

rece adequada para anunciar que o orador deve evitar ser confundido não ape· nas com um jurista (studioque juris), mas também com um filósofo (de moribus excolendis), criatura que é conhecida, como veremos, por suas pretensões morais. Além disso, as traduções que proponho são muito freqüentemente as de Cousin

modificadas.

176 o efeito sofístico

ritatem contemptu ceterorum). Basta pouco trabalho, não certamen­te para que se passe por orador, mas para simular a filosofia: onde se vê que é próprio da tradição filosófica desprezar a eloqüência a tal ponto que basta exibir seu desprezo pela eloqüência para parecer um verdadeiro filósofo.

Nossa frase, mesmo se ela só aparece em seu contexto como uma conclusão incidente, como um chiste, merece um exame mais prolonga­do. Insisto: na impossibilidade de podermos ser oradores, tornamo­nos não pseudo-oradores, e sim pseudo-filósofos. É preciso detalhar as suspeitas que uma tal colocação sugere. Antes de tudo, o desprezo da retórica que define a filosofia talvez nunca passe de impotência e despeito. À primeira vista, nada garante que haja uma diferença fun­damental entre filosofia e pseudo-filosofia: é manifesto, como veremos, quando Quintiliano se faz juiz de seu próprio tempo; poder-se-á mes­mo sustentar que todos os filósofos acabam por se dividir em duas clas­ses: os pseudo-filósofos e os autênticos oradores. Tal seria a conseqüên­cia extrema dessa diferença estrutural entre filosofia e eloqüência -admitir ou não admitir uma aparência -, que faz da retórica a ver­dade da filosofia.

ACUSAÇOES NO ESPELHO:

DA FILOSOFIA MASCARADA À FILOSOFIA LADRA

A genealogia platônico-aristotélica, certamente embrionária (seria necessário, especificamente, fazer justiça às torções isocrateanas48),

~ão tratarei aqui de Isócrates, que entretanto constitui, à sua maneira, uma das chaves da relação entre sofística, retórica e filosofia, sem dúvida tão mal· tratado quanto Cícero (ele que aliás, comentando o Fedro, o admira tanto - cf De Oratore, 11, 22, 94, ver igualmente 13, 57; Brutus, 8, 32; Oratar, 13,40), e por razões análogas: por um lado, ele tem a ousadia de pretender ser verdadeira· mente filósofo, tanto é que, por outto lado, ele ousa fazer um amálgama entre os sofistas, os oradores (ou, antes, os "retores", para distingui-los dos bons "orado­res" - de si mesmo -, como na terminologia ciceroniana) e os filósofos. Ver sobre esse ponto M. Dixsaur, "Isocrate contre des sophistes sans sophistique", em Le Plaisir de parler (op. cit., pp. 63-85): "A exclusão, naquilo que lhe concerne, não pode se transformar em inclusão em uma outra história, na história do, outro da filosofia: a da sofística. De ambos pontos de vista, Isócrates se enganou de pala· vra duas vezes: ao denominar "filosofia" o que ele fazia, e que não o era; ao deno­minar "sofistas" indistintamente sofistas e filósofos" (p. 69). De minha parte, di· ria que "orador" é o nome próprio daquele que escolhe confundir os sofistas, os filósofos e os oradores que dele diferem - em suma, todos aqueles que "não são

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 177

Page 90: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

!

~

fornece os materiais que permitem situar o primeiro tipo de reviravolta e de deslocamento efetuado por Quintiliano. Não basta dizer que a filosofia é que imita a retórica: visto que a retórica é inimitável, cons­tatar-se-á, antes, que a filosofia lhe rouba os objetos e os meios; e é o orador que é bem-intencionado, não apenas como homem, mas co­

mo romano. Por detrás dessa primeira linha de defesa, reconhece-se a trama

ciceroniana, expressamente evocada por Quintiliano49. Antes de Só­

crates _ Cícero reconstrói, fazendo Crasso falar - filosofia e retóri­ca, pensar com sabedoria e falar com elegância, arte de viver e arte de dizer, constituíam uma única sabedoria, sob o nome de "filosofia" (60). De Sócrates, o Sócrates do Górgias, data essa separação "ab­surda, inútil e condenável" (61) entre filosofia e retórica, que é, an­tes de tudo, uma separação do desprezo ("Os filósofos desprezaram a eloqüência; os oradores, a sabedoria", 72) e do plágio ("e não houve mais entre eles o menor contato, a não ser quando tiveram de fazer empréstimos recíprocos", ibid.). Agora que o orador, imerso no ne­gotium, foi inteiramente despojado pelo filósofo, é preciso que ele se reterritorialize, se restabeleça no "reino de seus ancestrais" (126): "Que seja nosso todo esse campo de sabedoria prática e teórica (pru­dentiae doctrinaeque) sobre o qual alguns, esbanjando ócio e apro­veitando-se de nossas ocupações, se abateram como sobre uma terra abandonada e sem dono" (122). De tal modo que a palma cabe ao "orador douto", que se pode escolher, como nos tempos anteriores a Sócrates, denominar "filósofo". "Mas se separarmos, os filósofos se­rão inferiores, porque o orador perfeito possui toda a ciência deles, ao passo que, nos conhecimentos dos filósofos, não é evidente que a

simplesmente sofistas, mas sofisticam a verdade" (ouk haplos sophisteuonton alla kata ton sophiszomenon ten aletheian), para retomar a expressão do gramático desconhecido dando o argumento do Contra os sofistas, manifesto de abertura da Escola de Isócrates. Mas eu acrescentaria que apenas um sofista - em todo caso, não certamente um filósofo - pode atribuir a si mesmo esse nome: Platão terá tido razão na cena primitiva do GÓrgias. Pode-se dizer o seguinte: "orador" é, após a expulsão da sofística pela filosofia, o nome pelo qual o sofista substitui o de filó­sofo para designar o bom sujeito, expulsando dessa vez a filosofia; "sofista" é, en­tão, o nome que ° orador dá aos outros oradores (onde reencontramos Fumaroli: "sempre se é o sofista de alguém")?

49 Quintiliano, I, Prefácio, 13 e XII, 2, 5. Cícero, De lnventione (I, 3-4) e sobretudo De Oratore (IH, XV, 56-XXXV, 143).

178 o efeito sofístico

eloqüência esteja contida: por mais que a desprezem, ela necessaria­;mente aparece como o coroamento de seus saberes" (143). O mode­lo do orador romano é explicitamente "pré-socrático": em ambos os lados do corte platônico, a própria ciência do bem pensar concerne à vida ativa; é por isso que os sofistas são, para Cícero, os primeiros mestres e os primeiros modelos dessa unidade perdida da sophia: Hípias de Élis, que fabricava tudo o que usava, Pródiclos de Ceos, Trasímaco de Calcedônia, Protágoras de Abdera, e sobretudo Górgias de Leôncio, "aquele que Platão quis escolher como advogado da elo­qüência quando o imolou à filosofia" (129). Mas, prossegue Cícero à maneira de Protágoras em seu diferendo com seu discípulo Euatlo, "ou Górgias nunca foi vencido por Sócrates, e o diálogo de Platão não é verdadeiro, ou, se ele foi vencido, é porque Sócrates com toda a cer­teza foi mais eloqüente e mais facundo [ ... ] mais abundante e melhor orador" (129). Para Cícero, como em seguida para Élio Aristides, o Górgias distorceu a história.

Tal é exatamente a temática explorada por Quintiliano: a filo­sofia é uma ladra e - insiste ele - o primeiro alvo desse roubo é a moral (cura morum, Prólogo, 13s.). "Em nossa época, na maior par­te dos casos, o nome de filósofo serviu como anteparo aos maiores vícios. De fato, ninguém se esforçava em adquirir uma reputação de filósofo pela prática da virtude e dos estudos, mas em disfarçar os mais corrompidos costumes sob a máscara da severidade e da originalida­de do comportamento" (I, Prólogo, p. 15). Notar-se-á, inicialmente, que esse diagnóstico que incide sobre o conjunto dos filósofos con­temporâneos não difere daquele que incidia, no nosso texto de refe­rência, sobre os pseudo-filósofos, "austeros em público, devassos na vida privada". Daí se deve concluir que a filosofia de hoje, em sua to­talidade, não apenas se apresenta mascarada, mas não passa simples­mente de uma máscara: a máscara da corrupção. Quanto aos filóso­fos morais, aqueles que, dentre os antigos, ensinaram e praticaram a honestidade (et honesta praecipisse [ ... ] et vixisse, 14), é preciso reco­nhecer que, sob o nome pretensioso de amigos da sabedoria, nunca passaram de ladrões que "ocuparam" a melhor parte da arte oratória:

. "E é necessário reivindicá-la como nossa, não para nos apropriarmos de suas descobertas, mas para mostrar que eles, sim, se apropriaram das dos outros"so.

50 Ibid., 17. Cf 11, 21, 13 e todo o desdobramento de XII, 2, 10-21.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 179

Page 91: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

II

!I

I I ,I ~!

I':

I,

I i'li I

Eis que passamos dos pretendentes platônicos aos proprietários romanos e, como que para retornar ao mito de origem da retórica com seus processos de expropriação sicilianos51, da rivalidade agonística às querelas de demarcação: a quem pertence o território da moral?

DA INTENÇÃO DO FILÓSOFO

à DO SÁBIO ROMANO

Se essa é mesmo a propriedade do orador, obviamente é ele que é, de fato, bem intencionado. Assim, nosso livro XII começa com a célebre retomada da definição de Catão: o orador é vir bonus dicendi peritus. Na grande tradição do Pedro, de ]sócrates e de Cícero, Quin­tiliano recolaca em cena a univocidade contra a homonímia: "não se pode falar bem sem ser bom" (11, 15,34). Ele demonstra, então, isso no texto em virtude do próprio princípio de não-contradição: "Não digo apenas que, para ser orador, é necessário ser homem de bem, mas que ninguém chegará a ser orador se não for homem de bem" , muito simplesmente "porque um mesmo homem não pode ser simultanea­mente bom e mau" (XII, 1, 3-4). Mas essa bondade não coloca sim­plesmente em jogo virtudes éticas e intelectuais, como a prudência e a inteligência, favorecidas pela liberdade de espírito, pela boa consciência ou pela temperança, e que são, por excelência, as virtudes de que os filósofos se apropriaram. Pois um vir bonus é, e deve ser, não um filó­sofo distanciado dos deveres do cidadão, mas "algo como um roma­no sábio" (Romanum quendam [ ... ] sapientem, XII, 2, 7), um "homem civil", que se engaja "não nas discussões fechadas, mas nas experiên­cias e nas práticas dos negócios". Em suma, com tal reivindicação do bem, trata-se não apenas de ética, mas também de moral.

Como a temática do roubo vinha pôr termo à da imitação, é dessa vez a cena da cidadania romana que vem excluir a intimidade da in­tenção pura característica - em todo caso, para um romano - da fi­

losofia grega.

o HOMEM BOM MENTE MELHOR

Mas há algo ainda mais desconcertante. De fato, essa demons­tração, que se fundamenta na univocidade de bonus, leva Quintiliano a um notável paradoxo, eco longínquo das virtuosas mentiras da Re­pública e das Leis: é o homem de bem que mente melhor.

51 Cf nota 10, p. 146.

180 o efeito sofístico

Retomemos passo a passo. Quintiliano, refletindo sobre o senti­do de bonus, se pergunta quem persuadirá melhor: o mau ou o bom. É evidentemente o bom, pois, se ele persuade o juiz da verdade e da ho­nestidade das coisas que apresenta, é também, muito simplesmente, porque "ele dirá (et dicet) mais freqüentemente coisas verdadeiras e honestas" (XII, 1, 11). Sabe-se desde Aristóteles que o ethos do orador é um dos fatores da persuasão: um homem bom dirá coisas verdadei­ras e, se elas são falsas, serão ainda verossimilmente verdadeiras; pois quando um homem bom, levado pelos deveres de suas atribuições, ex­puser coisas falsas como verdadeiras, "será escutado com mais confian­ça ainda" (12). Consideremos o que diferencia retoricamente os bons dos maus: "Os maus, devido a seu desprezo pela opinião e a sua igno­rância da retidão, esquecem por vezes até mesmo de dissimular: por isso propôem sem moderação, afirmam sem pudor" (12), de tal modo que, inversamente, não se lhes dá crédito quando dizem a verdade. Em suma, só se empresta aos ricos, e a auctoritas, mesmo aquela conferida pelo ethos, facilita a mentira. As aparentes contradições das análises de Quin­tiliano remetem simplesmente aqui à relação entre a regra e a exceção. A regra é que o bonus diga coisas em que acredita: é por isso que se acredita nele ("convencer-se-á ainda melhor os outros na medida em que se tiver convencido a si mesmo", 29), e é por isso que se acredita nele, mesmo quando mente. Inversamente, "o fingimento (simulatio), por mais precauções que se tomem, trai a si mesmo, e por maior que seja sua facilidade de falar, um orador acaba por tropeçar e engasgar quando as palavras estão em desacordo com o seu pensamento. Ora, necessariamente, um mau homem fala diferente do que pensa" (29-30). Quer ele não dissimule o suficiente, como ainda há pouco, porque ig­nora as conveniências, ou quer ele busque dissimular demasiadamente e não possa, então, dissimular seu embaraço, o mau sempre se deixará portanto desmascarar.

Notemos os dois pressupostos complementares de uma análise como essa: é necessário que "bom" e "mau" não sejam simples pre­dicados acidentais, mas digam a natureza, a essência constante do orador; também é preciso que essa natureza seja reconhecida, mani­festa, evidente, para que os juízes não se enganem quanto a ela. Os juízes devem poder tomar por verdadeiro o falso dito por um homem bom; não devem poder tomar por bom um homem mau. Tal é, no fundo, a exploração completa da temática do vir bonus dicendi peritus: é por ele ser bonus por essência, portanto sempre bem intencionado,

De uma sofística a outra: boas e más retóricas I8J

Page 92: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

que a habilidade de fala lhe permite, se necessário, furtar-se à verda­de. Toda a casuística esboçada no final do capítulo 1 (a communis utilitas pode exigir que o bonus defenda um culpado, diga uma men­tira) se justifica por essa constante boa vontade, essa honestidade de intenção (honesta voluntate, últimas palavras do capítulo), que cons­

titui o bonus.

A RETÓRICA

É O VERDADEIRO SABER DO FALSO

Essa reflexão sobre o caráter do orador se encerra com uma re­flexão sobre o método retórico, sua "razão de ação": um acusado inocente assemelha-se tão freqüentemente a um culpado que é preci­so saber defender um culpado para chegar a inocentar um inocente, pois "o que é verossímil e o que é verdadeiro são confirmados e refu­tados da mesma maneira" (45). Assim, o caráter do orador remete à natureza da retórica. Pode-se precisar as coisas da seguinte maneira: se a bondade do orador é a única garantia da eficácia da mentira, é também porque a natureza da retórica - o fato de ser uma arte -permite que ela seja o verdadeiro saber do falso. As análises do livro XII apóiam-se, assim, nas do livro I152. Trata-se, no capítulo lI, 17, de responder àqueles que postulam que a retórica não é uma arte, se­gundo a problemática instaurada no confronto entre o Górgias e o Pedro, e que argumentam, adotando dessa vez o vocabulário dos es­tóicos, que "ela dá seu consentimento a opiniões falsas". A resposta de Quintiliano é de uma clareza inigualável: "Estou disposto a admi­tir que a retórica apresente às vezes o falso em lugar do verdadeiro, mas nem por isso concordarei em afirmar que ela se funda também no falso, pois há uma grande diferença entre ter uma opinião e che­gar a inspirá-la nos outros" (lI, 17, 19). Dois exemplos de astúcias na ação (Aníbal faz com que acreditem na partida de seu exército, Teo· pompo escapa fazendo·se passar por sua mulher) mostram, pela dife­rença entre o ator e o espectador que sempre vê apenas aquilo que lhe mostram, a possibilidade de uma diferença análoga entre o orador e o ouvinte que geralmente só ouve aquilo que lhe dizem, ou entre o sa­ber do falso e seu uso: "[Teopompo 1 não tinha uma falsa idéia de sua

52 É o que testemunha, à sua maneira, o plano do livro lI, que se move entre a definição do orador como bonus e a da retórica como ars (lI, 15, 1 e lI, 17, 1,

por exemplo).

182 o efeito sofístico

identidade, mas a transmitiu aos guardas. Do mesmo modo o orador, quando emprega o falso em lugar do verdadeiro, sabe que é falso e se serve dele em lugar do verdadeiro; ele mesmo não tem, portanto, uma opinião falsa, mas engana o outro" (20).

Aprofundemos. O homem bom mente melhor: uma proposição como essa, que o ouvido filosófico entenderá muito naturalmente como sofística, entretanto é apenas a conseqüência direta da posição ocupa­da, não certamente pela retórica, mas pela filosofia, no Fedro. Se o ho­mem de bem mente melhor, é porque o orador (Sócrates pensava: o filósofo) é bem mais versado em imitação. Por detrás de Quintiliano, é Sócrates que se ouve, afirmando que "aquele que se propõe a enga­nar, sem ser ele mesmo vítima desse engano, deve saber exatamente como distinguir aquilo a que as realidades em questão se assemelham e aquilo de que elas diferem" (Pedro, 262 a), e que "em todos os lu­gares, aquele que conhece melhor as verdades é que melhor sabe des· cobrir as semelhanças" (273 d, já citado). Mas com Quintiliano, um saber como esse não faz com que a retórica caia no colo da filosofia. Dessa vez com estrépito, o movimento pendular prod~z não uma sim­ples troca de lugares, mesmo com radicalização da paisagem, mas um daqueles abalos que nada mais são do que efeitos de verdade: é por se definir como Sócrates no Pedro que o orador preenche todas as espe­ranças de GÓrgias.

A EFETIVIDADE DA RETÓRICA

Para concluir essa questão, Quintiliano considera adequado uti­lizar ainda um último modelo, que não é mais o da ação, Aníbal ou Teopompo, na sua estrutura de astúcia, mas o da obra de arte, na sua estrutura de ilusão. "E o pintor, quando, pelo poder de sua arte, con­segue nos fazer acreditar que certos objetos estão em relevo e outros em recuo não deixa ele próprio de saber que estão no mesmo plano" (11,17,21). Entretanto, trata-se ainda de uma certa maneira da ação do mestre da obra, da distância reflexiva que é a de todo "autor", si­multaneamente ator e fautor. Essa confluência entre os dois paradig­mas da praxis e da poiesis, essa insistência na praxis do artista, pode anunciar o argumento do segundo tipo, verdadeiramente imbatível, e próprio para tornar a eloqüência, diferentemente da filosofia, de fac­to inimitável.

Trata-se sempre de responder àqueles que pensam que a retóri­ca não é uma arte. Eles pretendem agora que a retórica não tem "fim",

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 183

Page 93: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I

ou, se o tiver, que não consegue alcançá-lo. A resposta de Quintiliano funciona em dois tempos: "aquele que fala tende certamente à vitó­ria, mas quando ele falou bem, mesmo se foi vencido, realizou o que está implicado em sua arte (id, quod arte continetur, effieit)" (11, 17, 23). A retórica tem, portanto, um fim, em dois sentidos bem distin-; tos. É evidente (quidem), e o tema percorre toda a Instituição Orató" ria, que o orador visa a "persuadir": como, desde Górgias e o Gór­gias, o piloto quer chegar ao porto, e o médico, curar seus doentes, o orador quer ganhar seus processos. Nesse sentido, a finalidade está evidentemente "no resultado", "no efeito" (in eventu, 23; in effectu, 25). Mas em outro sentido, que vem oportunamente substituir o pri­meiro em caso de fracasso, o orador visa a "falar bem": quando o navio é posto à deriva pela tempestade, quando o doente morre, o acusado é condenado, o fim pode ser ainda e sempre cumprido. Bas­ta que o piloto tenha mantido o leme a meio, que o médico tenha agido segundo as regras da arte, que o orador tenha falado bem. Pois o fim não reside então na eficácia sobre o real, no efeito sobre o ou- , vinte, mas pura e simplesmente na efetividade para o autor, no pró­prio "ato" (in actu posita, non in effectu, 25). Eis por que a retórica sempre tem necessariamente a felicidade de atingir seu fim: se, por, definição, o orador é vir bonus dicendi peritus, então semper bene dicet (23).

Essa resposta tem como deixar o adversário sem voz. A retóri­ca ganha, de fato, em todas as situações. A filosofia, imitável e imi­tada, suspeitava de sua boa intenção. Ela desloca o problema e repli­ca, de um lado, pela evidência do efeito; de outro, pela consciência do ato.

Evidência do efeito: o resultado do processo, a persuasão, o pra­zer do ouvinte, eis alguns fatos que, à diferença da intenção, boa ou má, não deixam objetivamente qualquer lugar para a dúvida quan­to à sua realidade. Pois mesmo se, para produzir o efeito, o orador mentiu, fato é que o efeito foi verdadeiramente produzido. É aqui que se torna necessário citar Jacqueline Lichtenstein: "O efeito de prazer [eu acrescentaria: e, certamente, a persuasão], como signo da elo­qüência, significa sempre aquilo em que" ele faz crer, ou seja, a elo­qüência". Mas os signos do saber filosófico não são suficientes para provar a existência daquilo de que tentam nos persuadir. Se é impos­sível arremedar uma eloqüência que sempre é julgada por sua eficá­cia, é inteiramente possível simular a filosofia. Como dirá Quintilia-

184 o efeito sofístico

no: "A filosofia, de fato, admite contrafações, não a eloqüência" (op. eit., p. 95).

Mas o próprio prazer - retoma o filósofo - é suspeito, os pro­cessos também são perdidos, e a persuasão pode simplesmente não ocorrer. A retórica replica a isso pela consciência do ato: "Pois cada um saberá se fala bem" (nam se quisque hene dicere intelliget, 26). E falar de ato aqui é justamente não se limitar à intenção. Sem dúvida cada um é juiz de seu próprio ato, como cada um é capaz de saber se é ou não bem intencionado. Mas as intençoes podem, por definição, ser impedidas, desviadas, permanecer em estado de virtualidade ou de potência. O ato, ao contrário, corno diria Aristóteles, energei: já é sem­pre um passar ao ato; em suma, ele é. Quando o orador "age", seu discurso, pronunciado e ouvido, qualquer que seja seu resultado, é por si só virtude. É a sabedoria estóica, de punho fechado, totalmente e' sempre em ato, que, reelaborando o modelo da filosofia prática aris­totélica, dá a Quintiliano condição para concorrer vitoriosamente com a filosofia platônica e sua imagem de retórica, sua má imagem da re­tórica. A retórica acumula assim a finalidade externa da poiesis e da tekhne com a finalidade interna da praxis, a heteronomia com a au­tonomia, a eficácia e a efetividade, que provêm, aos olhos de todos e no foro de cada um, da evidência.

Se o ato do orador basta por si só, sem dúvida é porque se trata de um orador consumado, como um sábio estóico: orador perfeito, no horizonte quase-transcendental das retóricas, entre outras, de Cícero e de Quintiliano. Mas compreende-se aqui que, no fundo, compara­do ao filósofo, todo orador é perfeito. O próprio nome de "filo-sofia" é, ao mesmo tempo, o cúmulo da pretensão e uma confissão de impo­tência: os ladrões que, após a clivagem socrática, se apropriaram da moral, "arrogaram-se um nome muito pretensioso (insolentissimum), pois se faziam chamar só a eles de 'amigos da sabedoria', um título que jamais ousaram reivindicar os mais eminentes chefes nem os ho­mens políticos mais ilustres na condução dos maiores negócios e na administração geral do Estado: de fato, eles preferiam adotar medidas excelentes a prometê-Ias" (I, Prólogo, 14). A filosofia, que sempre busca ou, em todo caso, finge buscar, nunca está de posse de si mesma, e aliás é por isso que é tão fácil imitá-la. A retórica, ao contrário, inimitavel­mente em ato, seria não filosofia, mas sabedoria. Com Cícero por detrás de Quintiliano, essa sabedoria retórica tem como primeiro modelo a sofística "pré-socrática". Simultaneamente, o orador faz o filósofo, o

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 185

Page 94: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

capturador capturado do Górgias, vestir o hábito do sofista platôni­co - Crasso, espantado por ver o filósofo, ao ridicularizar os oradores, se mostrar um orador tão bom, conclui sua leitura do diálogo com um suspiro de desprezo maldosamente platônico, que engloba o próprio Platão: "As querelas de palavras não atormentam atualmente esses pequenos gregos, mais ávidos de disputa do que de verdade (Graeculos homines contentionis cupidiores quam veritatis)" (De Orat., I, 47).

O retorno retórico da sofística se dá por razões latinas: a coisa pública a ser abarcada pelo orador-cidadão, e essa relação com O polí­tico é, com razão, reconhecida como um patrimônio da sofística grega. O discurso moral ostensivamente desenvolvido sabe como explorar todas as doutrinas: vir bonus. Com Quintiliano, às vezes retomando explicitamente a seqüência final do lagos de Protágoras, em que cada um, sob pena de ser doido, deve pelo menos dizer que é justo, a moral se mostra, em todo caso, necessária, antes de tudo, para o efeito de eloqüência - dicendi peritus, quod nominor bonus.

O ATO DE NASCIMENTO DA SEGUNDA SOFÍSTICA: FILÓSTRATO

NÃo FICOU NADA ALF,M DA SOFÍSTICA

Quintiliano instala a eloqüência (e, com ela, um modelo sofístico face ao Sócrates de Platão, e um uso do sofístico em geral) no lugar da filosofia e assegura a inversão: triunfo da retórica latina. Filóstrato, um pouco menos de dois séculos mais tarde e novamente em grego, situa dessa vez tanto a retórica quanto a filosofia sob a égide da sofística: tal gesto é constitutivo da "segunda sofística" e determina o momento em que a sofística ocupa sozinha toda a cena, a do passado, revisitado, bem como a do presente, escolhido, Filóstrato redesenha em algumas frases toda a estrutura, de tal forma que a sofística não mais se encontra no limite, ainda menos fora, de uma filosofia assim delimitada e doadora dos valores: com Filóstrato, a sofística constitui por si só um elemento sem fora, o universo, e um apogeu, a excelência - esboço ao mesmo tempo inocente e extravagante de uma estrutura ontoteológica da so­fística. Com a segunda sofística, não há nada além da sofística. É as­sim, ao que me parece, que se tornam realmente interessantes os julga­mentos referidos mais habitualmente à coisa e à época: os séculos II e III vêem o desabrochar de um "cultural phenomenon", marcado pela

186 o efeito sofístico

"affectation,,53, portanto -eu acrescentaria - de tal modo que a con­sideração do "autêntico" esteja de uma vez por todas deslocada. Verda< de ou truísmo que proponho entender da maneira seguinte: a mimesis· muda de sentido; não se trata mais de mimesis filosófica, isto é, de imi­tação da natureza, efetuada com a tekhne e a poiesis aristotélicas; tra- ' ta-se de mimesis sofística, isto é, de imitação da cultura, de imitação de., segunda ordem, de tal modo que rodo discurso seja um discurso de discurso, à maneira dos ídolos de ídolos platônicos e das interpretações de interpretações nietzschianas: com a primeira sofística, passa-se da natureza ao discurso -o ser é um efeito de dizer; com a segunda, passa­se do discurso ao palimpsesto e torna-se lícito dispensar a Poética.

As poucas frases de Filóstrato, que constituem ao mesmo tempo o batismo e o emblema da Segunda Sofística, funcionam como pró­logo em uma obra que geralmente é considerada bem entediante: as Vidas dos sofistas - uma compilação que, evidentemente, não pos­suiria o valor literário ou educativo de um Plutarco e que seria ne­cessário contentar-se em utilizar, assim como Diógenes Laércio e toda a chamada doxografia, como uma mina de informações e anedotas a ser explorada com desconfiança, até mesmo com desprezo, devido à ausência de consciência histórica e de sentido filosófico de seus auto­res54

. A última obra escrita sobre Filóstrato (e houve bem poucas), igualmente de Graham Anderson55, que conhece bem o período, for-

53 Tal é a conclusão da última obra publicada sobre a Segunda Sofística, aquela, já citada, de Graham Anderson, p. 243s. Notemos que ele tenta preser­var, pela escolha da palavra "afetação" - o que pode nos parecer estranho, da­das suas conotações -, uma espécie de neutralidade ética, um a-platonismo, ne­cessário à consideração do objeto: "Se consideramos a afetação como inteligente, elegante, eticamente neutra e baseada em um esforço sério de erudição, então estamos bem perto de simpatizar e de empatizar com os sofistas. Se fazemos a equi­valência entre afetação e desonestidade, então temos poucas chances de podermos nos familiarizar com um aspecto fundamental da história cultural imperial" (p. 244).

54 Ver em último lugar, para fazer um certo tipo de justiça a esses ptecon­ceitos, M. Frede, "Doxographie, historiographie philosophique et historiographie historique de la philosophie", Revue de Métaphysique et de Morale, Doxographie antique, n" 3,1992, pp. 311-25.

55 Philostratus. Biography and Belles Lettres in the third century A.D., Lon­dres etc, 1986 [indicado como 1986]. G. Anderson é igualmente o autor de traba­lhos sobre Luciano, sobre o romance grego e sobre a Segunda Sofística em geral (The Second Sophistic, já citado [indicado como 1993]).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 187

Page 95: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I

capturador capturado do Górgias, vestir o hábito do sofista platôni­co - Crasso, espantado por ver o filósofo, ao ridicularizar os oradores, se mostrar um orador tão bom, conclui sua leitura do diálogo com um suspiro de desprezo maldosamente platônico, que engloba o próprio Platão: "As querelas de palavras não atormentam atualmente esses pequenos gregos, mais ávidos de disputa do que de verdade (Groeculos homines contentionis cupidiores quam veritatis)" (De Orat., I, 47).

O retorno retórico da sofística se dá por razões latinas: a coisa pública a ser abarcada pelo orador-cidadão, e essa relação com o polí­tico é, com razão, reconhecida como um patrimônio da sofística grega. O discurso moral ostensivamente desenvolvido sabe como explorar todas as doutrinas: vir bonus. Com Quintiliano, às vezes retomando explicitamente a seqüência final do lagos de Protágoras, em que cada um, sob pena de ser doido, deve pelo menos dizer que é justo, a moral se mostra, em todo caso, necessária, antes de tudo, para o efeito de eloqüência - dicendi peritus, quod nominor bonus.

O ATO DE NASCIMENTO DA SEGUNDA SOFÍSTICA: FILÓSTRATO

NÃO FICOU NADA ALÉM DA SOFíSTICA

Quintiliano instala a eloqüência (e, com ela, um modelo sofístico face ao Sócrates de Platão, e um uso do sofístico em geral) no lugar da filosofia e assegura a inversão: triunfo da retórica latina. Filóstrato, um pouco menos de dois séculos mais tarde e novamente em grego, situa dessa vez tanto a retórica quanto a filosofia sob a égide da sofística: tal gesto é constitutivo da "segunda sofística" e determina o momento em que a sofística ocupa sozinha toda a cena, a do passado, revisitado, bem como a do presente, escolhido. Filóstrato redesenha em algumas frases toda a estrutura, de tal forma que a sofística não mais se encontra no limite, ainda menos fora, de uma filosofia assim delimitada e doadora dos valores: com Filóstrato, a sofística constitui por si só um elemento sem fora, o universo, e um apogeu, a excelência - esboço ao mesmo tempo inocente e extravagante de uma estrutura ontoteológica da so­fística. Com a segunda sofística, não há nada além da sofística. É as­sim, ao que me parece, que se tornam realmente interessantes os julga­mentos referidos mais habitualmente à coisa e à época: os séculos 11 e JJI vêem o desabrochar de um "cultural phenomenon", marcado pela

186 o efeito sofístico

"affectation"53, portanto - eu acrescentaria - de tal modo que a con­sideração do "autêntico" esteja de uma vez por todas deslocada. Verda-': de ou truÍsmo que proponho entender da maneira seguinte: a mimesis' muda de sentido; não se trata mais de mimesis filosófica, isto é, de imi­tação da natureza, efetuada com a tekhne e a poiesis aristotélicas; tra-!, ta-se de mimesis sofística, isto é, de imitação da cultura, de imitação de segunda ordem, de tal modo que todo discurso seja um discurso de discurso, à maneira dos ídolos de ídolos platônicos e das interpretações de interpretações nietzschianas: com a primeira sofística, passa-se da natureza ao discurso - o ser é um efeito de dizer; com a segunda, passa­se do discurso ao palimpsesto e torna-se lícito dispensar a Poética.

As poucas frases de Filóstrato, que constituem ao mesmo tempo o batismo e o emblema da Segunda Sofística, funcionam como pró­logo em uma obra que geralmente é considerada bem entediante: as Vidas dos sofistas - uma compilação que, evidentemente, não pos­suiria o valor literário ou educativo de um Plutarco e que seria ne­cessário contentar-se em utilizar, assim como Diógenes Laércio e toda a chamada doxografia, como uma mina de informações e anedotas a ser explorada com desconfiança, até mesmo com desprezo, devido à ausência de consciência histórica e de sentido filosófico de seus auto­res54. A última obra escrita sobre Filóstrato (e houve bem poucas), igualmente de Graham Anderson55, que conhece bem o período, for-

53 Tal é a conclusão da última obra publicada sobre a Segunda Sofística, aquela, já citada, de Graham Anderson, p. 243s. Notemos que ele tenta preser­var, pela escolha da palavra "afetação" - o que pode nos parecer estranho, da­das suas conotações -, uma espécie de neutralidade ética, um a-platonismo, ne­cessário à consideração do objeto: "Se consideramos a afetação como inteligente, elegante, eticamente neutra e baseada em um esforço sério de erudição, então estamos bem perto de simpatizar e de empatizar com os sofistas. Se fazemos a equi· valência entre afetação e desonestidade, então temos poucas chances de podermos nos familiarizar com um aspecto fundamental da história cultural imperial" (p. 244).

54 Ver em último lugar, para fazer um certo tipo de justiça a esses precon­ceitos, M. Frede, "Doxographie, historiographie philosophique et historiographie historique de la philosophie", Revue de Métaphysique et de Mora/e, Doxographie antique, n" 3,1992, pp. 311-25.

55 Philostratus. Biography and Belles Lettres in the third century A.D., Lon­dres etc, 1986 [indicado como 1986]. G. Anderson é igualmente o autor de traba­lhos sobre Luciano, sobre o romance grego e sobre a Segunda Sofística em geral (The Second Sophistic, já citado [indicado como 1993]).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 187

Page 96: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nece acerca disso um testemunho um pouco enfadonho, mas signifi­cativo. Filóstrato, certamente representativo dos "camaleões" me­diáticos de que ele fala (1993, p. 239 e.g.), é uma espécie de jornalista esnobe e cheio de pose (1986, pp. 38, 79,115). "Quanto mais se amplia nossa perspectiva, mais claro se torna que as do próprio biógrafo são, de fato, bem estreitas" (1986, p. 80): "Escrever a história do século 11 segundo Filóstrato equivaleria a escrever a do século XX segundo o relatório feito a Balliol dos discursos dos primeiros ministros prove­nientes de Balliol" (p. 84). Esse cúmulo de horror conceme a dois pontos essenciais: o equívoco sobre as origens do movimento, que é "suspeito e característico" (p. 284) - entendamos, pejorativamente, característico de interesses não-filosóficos (p. 115) e de reflexos sofís­ticos (p. 284) -, e a própria construção das Vidas, cujo esquema, minado por umgap temporal, é "absurdo" e injustificável ("sadly out of joint", p. 11). Em suma, é a própria operação de Filóstrato, relacio­nando a segunda sofística à primeira e fazendo da primeira uma rela­ção entre filosofia e retórica, que é verdadeiramente contingente e desprovida de sentido - "uma comparação duvidosa apoiada em uma história duvidosa" (p. 11)56

Retomemos, portanto, com um outro tipo de interesse e de di­vertimento. Assim como as primeiras frases do Elogio de Helena des­fraldam como bandeiras as palavras magníficas constitutivas da Gré­cia arcaica, igualmente a dedicatória filostratiana põe em cena os si­nais da cultura, paideia e mimesis, que fazem perdurar a identidade de Helena, ou, mais exatamente, que a fazem fantasmar na ausência de liberdade política. "Flavius Filostratus ao muito ilustre Antonius Gordianus, cônsul": eis-nos de saída, segundo a constatação de Ho­rácio que se tornou um lugar-comum, em situação de Grécia vencida vitoriosa de seu vencedor57, perfeitamente descrita por Bowersock em seu novo aspecto jet-set, exótico-mundial - "É um espetáculo ins-

56 Igualmente, Wilmer Cave Wright, na edição Loeb (Cambridge, 1968), já nos introduzia à corte de Julia Domna, em que os "matemáticos" e os "filósofos" de que fala Filóstrato são apenas "astrólogos" e "sofistas" (X); sendo dados "a maneira e o método exasperantes de Filóstrato" (XII), sua falta "do sentido das proporções", podemos nos espantar, não com o fato de que "suas críticas literárias sejam, na maior parte, sem nenhum valor, e que as citações que ele nos pede que admiremos sejam pueris" (XXI), mas que W.c. Wright considere bom editá-lo.

57 Ep., 2, 1.

188 o efeito sofístico

trutivo ver o sofista Filóstrato apresentar uma obra sobre os sofistas a um grego do leste, em breve tornado imperador, que pôde conhe­cer antes no salão romano de uma imperatriz síria, e que ele reencon­trou mais tarde como governador dos gregos de Acaia. Isso ilustra perfeitamente a significação histórica do que se denomina Segunda Sofística "58. Mais precisamente, trata-se no prólogo da maneira (na verdade, historicamente mais do que improvável) pela qual o genos do destinatário romano da dedicatória, futuro imperador, está liga­do à tekhne grega: "Tua família é ligada a essa arte" (479). É uma questão de "memória", de "conversas" e de "zelo", de "recintos sa­grados" e de "prodígios": em que se compreende que thauma não é, não é mais, o espanto que provoca o questionamento filosófico, é o gosto pelo maravilhoso que sustenta a atenção literária. Sobretudo, trata-se de agir como (como o sofista Crítias), e de fazer referência a, à referência das referências, Homero ("Sei que Crítias tampouco co­meçava por aí, e que apenas para Homero [ .. r, 479). Pois Homero é simultaneamente o pai da sofística (como lembra mais adiante Fi­lóstrato, Nicágoras denominava a tragédia de "mãe dos sofistas" [620], e Hipódromo replicava: "Homero é pai deles"; ele é mesmo - acrescentava - "sua phone" como Arquíloco é seu sopro), e o nome próprio da universalidade da cultura grega (nem todos vêm o mesmo céu, dizia Díon, mas mesmo os indianos conhecem Home­ro59 ). Anderson enfatiza isso do ponto de vista da personalidade: "Poder-se-ia considerar que uma função da identidade de um sofista é a de ser tudo o que pode haver de grego para todos os homens" (1993, p. 17). Preferiria dizer que a mimesis cultural tem um efeito Grécia: a segunda sofística performa o helenismo. Uma proposição como essa, que pode, por exemplo, também ser extraída do Elogio de Atenas, de Élio Aristides, permite marcar de modo um pouco di­ferente a relação e a evolução entre primeira e segunda sofísticas. O helenismo da primeira sofística, que se pode ler através do "bar­barizar" de Antifonte e de Eurípides bem como no "falar grego" do mito de Protágoras, está ligado à universalidade da lei e da institui­ção política, enquanto o da segunda está ligado, sem mediação e não por acaso, à da cultura; a semelhança evidente é que tanto uma quan-

58 Greek Sophists in the Roman Empire, op. cito [indicado como 1969], p. 8.

59 Díon, Discurso L VIII, Sobre Homero, 7-8 (Loeb, IV, p. 363 e ss.).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 189

Page 97: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

to outra, lei e cultura, só ganham sentido pela diferença com o uni­verso físico e o universo natural.

O peso da referência basta para induzir uma transformação do estatuto da obra: não são mais, de ínicio, as Musas que cantam ou que inspiram, que lapidam as palavras e sopram os acentos, como em Ho­mero, Píndaro, Hesíodo e seus pastores, e até nos entusiasmos platô­nicos; o autor é agora o responsável por tudo e sua "obra" é designa­da pelo nome de sua "preocupação", phrontisma. A segunda sofística está pronta para constituir, assim, um momento filosoficamente des­tacável da passagem entre o antigo entusiasmo e a moderna respon­sabilidade literária. A tal ponto que o trabalho de Filóstrato, com suas intenções e seus cálculos, se identifica com o pharmakon que a Hele­na da Odisséia -lembremo-nos - vertia para T elêmaco para que ele se deixasse levar pelo "prazer dos discursos": mas, dessa vez, o remé­dio visa a aliviar, não mais o luto épico, mas o fardo do político que pesa sobre os ombros do destinatário romano da dedicatória.

SOFISTAS AUTtNTICOS E DOXOSOFISTAS,

OU SEJA, FILÓSOFOS

Um tal pharmakon, para além da farmácia mágica do Elogio cantado por Górgias, vem se inscrever contra o Fedro60: o remédio do doxógrafo enfatiza, de início, o valor da escrita, droga egípcia não da rememoração, mas da própria memória. Especialmente o Rei de Pla­tão recriminava Theuth por facultar a seus alunos a doxa da sabedo­ria e não sua aletheia, e por fabricar assim "doxósofos ao invés de safas": por um movimento duas vezes contrário, a primeira frase da dedicatória basta para fazer com que os doxósofos-doxosofistas se­jam mais realmente sábios-sofistas do que os filósofos que permane­cem presos à filosofia. "Eu coloquei por escrito (anegrapsa) em dois livros em tua intenção aqueles que filosofaram com a reputação de praticar a sofística (tous philosophesantas en doxei tou sophisteusai) e aqueles que receberam o nome de sofistas no sentido próprio do termo (kai tous houto kyrios prosrhetenthas sophistas)": a sofística é o pró­prio, kyrios, e trata-se, para o filósofo, de entrar na doxa, na aura da sofística ou, se preferirmos, na glória. Essa taxionomia subversora, que inaugura o discurso (479), o conclui também (484), dessa vez proje­tada na autoridade do passado que lhe serve de modelo: "Sofistas foi

60 Elogio de Helena, 14; Fedro, 274 e-275 b.

190 o efeito sofístico

o nome que os Antigos (hoi palaioi) deram não apenas àqueles ora­dores que falavam excessivamente bem e se ilustravam61 , mas também àqueles filósofos que davam livre curso à sua expressão: é deles que preciso falar em primeiro lugar, posto que, sem serem sofistas mas parecendo sê-lo, ganharam o direito de ter esse nome". Portanto, ape­nas os melhores filósofos (tous xyn euroiai hermeneuontas, "aqueles que têm a hermenêutica fluente", para manter a metáfora da torrente ou do fluxo cuja importância ainda teremos de avaliar em sua totali­dade) podem aceder ao nome e ao estatuto de sofistas. Lembremo-nos de Gama 2 (1004 b27ss.): os sofistas assim como os dialéticos se mo­vem "no mesmo gênero" que a filosofia (eles tratam do ente que é co­mum a todos), mas "a sofística é uma filosofia apenas aparente, não real", "ela parece mas não é" (phainomene, ousa d'ou). Para Filóstrato, ao contrário, é dos filósofos que se deve dizer: ouk ontes sophistai, dokountes de, "eles não são sofistas, mas apenas ° parecem". A sofís­tica se torna assim, nas respostas palimpsêsticas da segunda sofística a Platão e Aristóteles, modelo e gênero epônimo da filosofia.

Essa dicotomia entre autênticos sofistas e filósofos, tão bons que são doxosofistas e ganham a eponímia, determina o plano das Vidas. A primeira seção do primeiro livro trata, de fato, desses últimos, que às vezes são denominados os "filósofos-sofistas"62. Trata-se de um resumo perspectiva, que sobrevoa quase-desconhecidos expedidos em poucas linhas - Eudoxo de Cnido (durante certo tempo aluno de Pla­tão, viveu provavelmente entre 408 e 352) e Leon de Bizâncio (parti­cipou da tomada de Bizâncio por Felipe da Macedônia), Dias de Éfeso (ligado à Academia e a Felipe) e Carnéades (apenas quatro linhas para o fundador da Nova Academia na Atenas do século 11), em seguida, um pouco antes de nossa era, Filóstrato, o egípcio, ligado a Cleópatra,

61 Tw", çrllT6pw", TOUÇ \.JJT€PCPw",ou"'Táç T€ )(<Xl ÀaJ,llTpoÚÇ'. Hyperphonountas não significa aqui, contrariamente ao sentido proposto por Bailly para a passagem, "falar alto demais" (cf em Luciano, Rhetorum Praeceptor, 13: "berrar"), mas dis­ringue aqueles que fazem ressoar mais alto do que todos e do que toda a phone que ilustra o logos sofístico.

62 É o nome que lhes dá, por exemplo, Aldo Brancacci, em sua notável mo~ nografia sobre Díon, em que comenta, dentre os testemunhos conservados, o de Filóstrato: Rhetorike philosophousa, "Dione Crisostomo nella cultura antica a bizantina", BibJiopolis, 1985. Remetemos também a seu artigo francês em Le plai­sir de parler: "Seconde sophistique, historiographie et philosophie (Philostrate, Eunape, Synésios)", op. cit., pp. 87-110.

De uma sofística a outra: boas e más retórícas 191

Page 98: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I ;

e Teomnesto de Náucratis, sobre o qual ainda se sabe menos -, para chegar por fim e demoradamente aos dois grandes dos séculos I e 11 de nossa era, precisamente aqueles para os quais a categoria parece ter sido delineada: Díon de Prusa e seu aluno, Favorino. Notar-se-á, entretanto, que os mesmo termos retornam para todos: eles estuda­ram filosofia, são "filósofos", mas são "inscritos na lista dos sofistas", são "julgados dignos" de figurar nela, são "recrutados", "nomeados", "proclamados" sofistas (enegraphe, proserrethe, enomisthe, egrapheto, prosrethenta, apenegken, ekerytten, 484-489), e ao filosofarem, fazem coisas sofísticas (sophistika sophistou, 487; 50phistikotatai, 488; 50-phisten [ ... ] 50phistei, 491), por dois tipos de razão muito freqüen­temente misturados: a influência política e a arte oratória. Uma arte oratória muito característica, não das querelas contemporâneas de Filóstrato entre asianismo e aticismo, por exemplo, mas, antes, uma arte tal que nela se encontram índices extremos da sofisticação como arte do tempo, arte da contradição e arte do som: improvisação, sen­tido da réplica e da disputa (490-491), paradoxos, minimalia e estilo oracular (487, 489); até o privilégio, tanto aticista com Díon quanto asionista com Favorino, do órgão e da voz sobre o sentido (487, 488, 491): assim como Trajano desfila com Díon em sua carruagem de triun­fo, sem "compreender o que ele diz", mas amando-o como a si mes­mo, a multidão romana que não sabe grego se dá o prazer de escutar o hermafrodita gaulês, "os sons da sua voz, a significância de seus olha­res e o ritmo de sua língua". De tal modo que Filóstrato pode concluir essa primeira parte como começou: "Eis tudo o que tenho a dizer so­bre aqueles que filosofam com a reputação de praticar a sofística (en doxei tou 50phisteusai). Eis agora aqueles que receberam o nome de sofistas no sentido próprio (kyrios prosrethentes 50phistai) " [492].

RHETORIKE PHILOSOPHOUSA E O ESTILO ORACULAR

Ora, com a descrição da sofística no sentido próprio, a filosofia se encontra, por uma segunda vez, subordinada.

De início por causa da redefinição da "antiga sofística" que abre o livro I: "Deve-se considerar a antiga sofística como uma retórica filosofante" (ten arkhaian sophistiken rhetoriken hegeisthai khre phi-1050phousan, 480). Filóstrato diz como Aristóteles: antiga sofística e filosofia têm o mesmo objeto; mas, acrescenta ele, sobre esse objeto a sofística "dialetiza" ou "disserta" (dialegetai), trata a coisa por intei­ro como ela o merece, ao passo que a filosofia usa de astúcia ("aqueles

192 o efeito sofístico

que filosofam mantêm-se em emboscada com suas questões, atraem para si pequenas partes de sua investigação", 480); em suma, ela faz meneios para finalmente "dizer que ela ainda não sabe" (oupo [ ... ] gignoskein) - essa descrição da cautela filosófica tateante e aporética, associada ao contra-emprego, em relação a Platão, de dialegetai, de­signa com propriedade a reversão. Como para Quintiliano, a sofística é em ato o que a filosofia é apenas em potência; é, aliás, por isso que apenas certos filósofos acabam por aceder ao nome e ao estatuto. Ao contrário, o sofista antigo hos eidos legei: por causa da ambigüidade do que se denomina de conjunção subjetiva, é necessário compreen­der, ao mesmo tempo ou conforme a escolha, que ele "fala" "saben­do" e "como se soubesse"63.

A comparação feita, então, por Filóstrato entre filosofia e "mân­tica humana", de um lado, antiga sofística e "arte profética" (thespioi­doi, 481) e "oracular" (khresteriodei), do outro, é notavelmente ins­trutiva. Os filósofos de Filóstrato fazem, de fato, como os egÍpicios, os caldeus e os indianos, eles "fazem hipóteses a partir das estrelas" (myriois asteron stokhazomenoi): tomam a natureza Como ponto de partida e dela extraem toda sua ciência - são astrólogos exóticos. Os sofistas, ao contrário, lidam com o sagrado helênico, eles fazem "como a Pítia": falam de início, dizem palavras cheias de nobreza e de con­fiança, e são nisso não humanos, mas demiurgos. Filóstrato acaba de citar os inícios habituais dos discursos sofísticos - "Sei", "Estou cons­ciente de", "Tenho observado há muito tempo" -, em que o orador se coloca, segundo as três modalidades da paidea, da experiência pes­soal e da observação científica, Como sujeito do saber - com, como último recurso, a dúvida inscrita na sabedoria trágica: "Para o homem, nada de certo". Ele acrescenta: "É um estilo (idea) desse gênero, pró­prio a seus exórdios, que faz reSSoar antecipadamente uma nobreza e uma resolução nos discursos, e uma clara apreensão do ser (eugeneian te [ ... ] kai phronema kai katalepsin saphe tou ontos)". Filóstrato res­salta assim que a "clara apreensão do ser" a que chegam os sofistas nada tem de "física", mas que não passa, e muito explicitamente, de

63 Quero significar com isso o início do Ménon, 70b, em que Sócrates com­para "a influência nefasta que se abateu sobre a sophia" em Atenas ao hábito que Górgias inculcou nos tessalianos de "responder com grande segurança a qualquer pergunta", hosper eikos tous eidotas: "como é natural para os sábios" I "como as pessoas que sabem o aparentam".

De uma sofística a outra: boas c más retóricas 193

Page 99: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

um efeito de estilo: o estilo sofístico tem, mais uma vez, a eficácia do discurso oracular ou sacramental. O elogio é recorrente ao longo das Vidas, desde Górgias declamando seu Discurso pítico de pé no pró­prio altar, antes que sua estátua de ouro fosse erguida no santuário (493), e sobretudo Ésquines, que instituiu o costume de falar "divina­mente", "improvisando como se impulsionado por um elã divino, à maneira daqueles que exalam os oráculos" (509), até Favorino, que "apresentava à maneira de um oráculo" toda sua vida em três para­doxos (489). Assim se introduz a réplica ao Pedro, quando Sócrates zomba dos políticos que se defendem de ser logógrafos e sofistas e se abrigam por trás das autoridades na arkhe de seus discursos: "Não vês (diz Sócrates a Fedro) que, no escrito de um homem político, figura em primeiro lugar o nome daquele que o aprova [ ... ] 'Pareceu bom' [Edoxe] - eis aproximadamente suas palavras - 'ao Conselho' ou 'ao povo', ou 'aos dois ao mesmo tempo', e ainda 'Por iniciativa de al­guém' - no entanto, nosso escritor muito solenemente conta sua his­tória e faz seu próprio elogio" (258 a). O sofista de Filóstrato só se apóia em sua própria autoridade, como o filósofo de Platão, e como ele relaciona-se ao ser, mas com a condição de inverter a ordem das razões: o orador-filósofo, para falar bem, deve previamente conhecer o ser (262 b e.g.) e ver as idéias; o sofista sustenta uma idea performan­te e é assim que ele capta o ser.

Acrescentemos que em khresteriodes, "oracular", como em khres­mos, "o oráculo", ouve-se o radical khres-, comum a khresis, "o uso", e a khremata, as "coisas" de que o homem de Protágoras é a medida. O oráculo, na condição de resposta formulada (é precisamente isso khresmos, diz-nos Chantraine), é útil e é preciso saber utilizá-lo: inter­pretá-lo. Ora, a interpretação não passa da colocação daquilo que ou­ço à minha medida, a metrética humana por excelência. O tema ora­cular privilegiado por Filóstrato retoma assim a logologia, em jogo por exemplo no menytikon do Tratado do não-ser, bem como o privilé­gio do uso. Ele obriga a destacar a problemática da interpretação, como seqüência lógica da performance discursiva: o sujeito falante, o autor _ o sofista - é demiurgo e seu mundo requer interpretação. Eu assi­nalaria aí uma espécie de visão perspectiva da segunda sofística sobre a sofística em geral: entramos, com a ficção, o estilo, a exegese e a crí­tica literária, na era da hermenêutica. A afecção da segunda sofística pelos oráculos e pelos sonhos, os interesses neuróticos de Élio Aristi­des e a profusão dos escritos sobre os sonhos (lembremo-nos da belís-

194 o efeito sofístico

sima etimologia dada por Artemidoro: fazer um sonho, oneiros - di­ferentemente do sonho, enypnion, que só revela o estado real do so­nhador - é on eirein, predizer o ser) não indicam simplesmente o refúgio na superstição do sincretismo ou do politeísmo ultrapassado por um deus único; está igualmente em jogo a sensibilidade ao per­formativo e à decifração não menos performativa da performance­no modelo do oráculo: quando dizer/ler é fazer.

Enfim, com sua separação do divino e do humano, Filóstrato se inscreve em uma história movimentada. Divino é, logo de início, o poder do lagos no Elogio de Helena: "As encantações que os deuses inspiram vêm através das palavras do discurso provocar o prazer, afas­tar a dor [ ... ] Descobriram-se artes duplas de magia e de feitiçaria, ca­pazes de ser erros da alma e ilusões da opinião" (10). Essa ambigüi­dade ou essa ambivalência, absolutamente análoga à das Musas he­siódicas, torna-se, como se sabe, o próprio da retórica má, sofística, do Górgias, e serve a contrario para definir um tipo inteiramente di­ferente de dignidade divina para ° filósofo, platônico, aristotélico, e até o sábio estóico. Aldo Brancacci tem razão em observar que a "po­sição corrente nos meios retóricos do século II" , não menos válida para a retórica latina, e perfeitamente emblematizada por Frontã064, inver­te a posição filosófica adotando sua separação dos fatores, mas não seus valores: a paideia dos retores é "humana" (anthropine tis), a dos filósofos é "divina" (theia); ora, somos homens; logo, é preciso prefe­rir a educação retórica. Filóstrato, com sua comparação, consegue, então, subverter simultaneamente a ordem filosófica e a ordem retó­rica. Contra a ordem filosófica: é o sofista que é divino, enquanto o filósofo é humano. Contra a ordem retórica: é divino que se deve ser ao invés de humano, pois o divino não é finalmente senão a seguran­ça do autor. Aí se verifica como a definição "retórica filosofante", dando um atributo à retórica e à filosofia o papel de adjetivo, conse­gue subordinar tanto a filosofia quanto a retórica à sofística.

A SEGUNDA SOFíSTICA:

A HISTÓRIA NO LUGAR DA FILOSOFIA

A definição da segunda sofística, em sua relação com a "antiga sofística" e em sua relação com a filosofia, não é menos perturbadora.

64 Frontão, Ad amicos, I, 2, p. 165 Van den Hout (= A 336), citado por Brancacci, "Historiographie et philosophie", art. cit., p. 92.

-------- " De uma sofística a outra: boas e más retóricas 195

Page 100: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Minha primeira observação é a de que seria aconselhável espan­tar-se. Sem exceção, todos os que tratam da segunda sofística tratam de esquecer o que diz Filóstrato. A segunda sofística de Anderson -lembramo-nos do subtítulo de seu livro - é "um fenômeno cultural no Império Romano". Já a segunda sofística de Filóstrato começa quatro séculos antes, com Ésquines, o rival de Demóstenes, apenas uma ou duas gerações mais tarde do que a primeira, fundada por Gór­gias. É por isso que ele decide batizá-la de "segunda" ao invés de "no­va"; "A que veio depois, que não chamaremos de nova, pois é antiga, mas antes de segunda [ .. .]"' (481). Pensa-se compreender a diferença entre Górgias e Díon Crisóstomo, entre Protágoras e Élio Aristides, mas por onde passa exatamente a diferença entre Górgias e Ésquines, portanto entre duas "antigas"?

A primeira diferença entre as duas sofísticas marcada por Filós­trato é simultaneamente de conteúdo e de forma: ela se refere aos te­mas que elas escolhem e à sua maneira de tratá-los. A antiga, insiste ele, trata daquilo de que trata a filosofia ("ela disserta sobre aquilo de que tratam os filósofos" [480], "tomando como temas questões que também são filosóficas" [kai ta philosophoumena hypotithemene, 481, ver nota ad loc.]): ela fala de moral (de coragem e de justiça), de re­ligião (dos heróis e dos deuses), de cosmologia (da idéia do mundo), e disserta sobre isso exaustiva e macro-logicamente. A segunda "descreve os tipos (hypotyposato) do pobre, do rico, do nobre, do tirano, e os casos que cabem assim sob um nome (tas es onoma hypotheseis) e que a história traz (eph' has he historia agei)" (481). Constata-se que as "hipóteses", dessa vez, nada mais têm a ver com a filosofia, mas, por outro lado, que elas são ligadas à história. O termo não mais possui, então, o sentido amplo de "tema", de "questão submetida a exame", mas um sentido retórico, originário do direito, muito mais preciso, de que, por exemplo, Quintiliano é testemunha, como admirável ponte de uma língua para outra65. À diferença da "tese", que é uma "ques­tão indefinida" (uma "proposição", diz Cícero, ou uma "questão uni­versal civil"), a "hipótese" é uma "questão definida", uma causa lati-

65 Ver Inst., UI, 5, 5-18. Poderíamos também nos referir, através da retórica latina, à tradução hermagoreana, em seguida à elaboração de Hermógenes em seu Peri staseon (372.11; 405.20 Rabe): sobre tudo isso, remeto a M. Patillon, La théorie du discours chez Hermogime te rhéteur, op. cit., especialmente pp. 59-

61 e 96s.

196 o efeito sofístico

na, que "implica fatos, pessoas, tempos etc"; em suma, uma causa com seu kairos: um "caso" em toda sua complexidade, especialmente jurí­dica, qualificado pela consideração dos "estados de causa". "Para esclarecer o que quero dizer com um exemplo, prossegue Quintiliano, uma questão indefinida será: 'Devemos nos casar?'. A questão defini­da: 'Catão deve se casar?', e é por isso que ela pode ser um tema de suasório" (8, ou ainda mais preciso: "O velho Catão deve esposar Márcia?", 13). Quintiliano insiste: a tese, e não a hipótese em sua sin­gularidade, como questão universal, é uma "questão que convém ao filósofo" (5) e que Cícero tem razão em "despachar" para a compe­

, tência daquele (14). Pode-se agora compreender, em seu mínimo detalhe termino­

lógico, a definição de Filóstrato: a segunda sofística "faz a hipotipo­se,,66, isto é, descreve em linhas gerais caracteres (os mesmos dos quais se alimentará nossa literatura clássica, em La Bruyere como em Molie­re) e tira daquilo que a história "traz" (agei) e "narra" "os casos que cabem assim sob um nome": Alexandre, sob o caso do conquistador, ou Demóstenes, sob o caso do demagogo, e igualmente Fedra como amante e Andrômaca como viúva. Trata-se aí de colocar em funcio­namento - e isso remete também à variedade cada vez mais codifica­da dos exercícios e dos gêneros que provocarão o triunfo do ensino dos sofistas nas escolas do Império - a amplitude do termo história, história-investigação (nossa ciência histórica) e história-narrativa, que faz com que se misture aquilo que nós, os modernos, não cessamos de

'; querer manter separado: as ciências humanas e a ficçã067. E onde se

fifi 'YTT€Wmí'ícrcct"o, a partir de -runw, "bater", está ligado a -ruTTOÇ', a "impres­são" deixada ao bater uma matriz, o "tipo" em todos os sentidos do termo. Sig­nifica "traçar as grandes linhas", por exemplo essas "Hipotiposes" pirrônicas de Sexto Empírico - Próclo pode assim fazer a hipotipose das "hipóteses" astronô­micas (Hypotyposis astronomicarum positionum, VII, 50). A hipotipose, no sen­tido retórico enfatizado por Quintiliano (lnstitutio, IX, 2, 40), é um esboço tão vivo "que acreditamos ver mais do que ouvir".

fi7 Convencer-nos-emos disso lendo o recenseamento feito por Ch. S. Bald­win dos temas de meletai atribuídos aos sofistas por Filóstrato, que ele separa em "temas históricos ou semi-históricos" e "temas de ficção", remetendo finalmente a dois tipos de relação singular-geral (" Os feridos da Sicília imploram para os ate­nienses que batem em retirada os matarem com suas próprias mãos"/ "O homem que se apaixona por uma estátua"), Medieval Rh~a_nd Poetic, Gloucester Mass., Petre Smith, 1959, p. lOs.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 197

Page 101: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

enraízam facilmente os julgamentos severos emitidos por nossos con­temporâneos sobre o próprio Filóstrato, autor das Vidas dos sofistas bem como da Vida de Apolônio de Tiana: não pratica ele "a atitude menos escrupulosa do mundo em relação à verdade histórica, a qual só serve - é ° que há de mais sofístico - de tema de base, matéria para uma elaboração literária por vezes altamente fantasiosa,,68?

Do mesmo modo que, para Filóstrato, a antiga sofística com­pletava a filosofia, assim também a segunda sofística completa a his­tória, fazendo passar, digamos, da investigação empírica ao tipo ideal. Chega-se assim a uma verdadeira analogia de proporção: primeira sofísticalfilosofia = segunda sofística/história, que eu radicalizarei em duas frases. Primeiramente: se a antiga sofística é uma rhetorike phi­losophousa, a segunda é uma historousa rhetorike, uma "retórica his­torizante". Com isso, a história se encontra no lugar da filosofia, subju­gada pela sofística via retôrica: historia est quae philosophia fuit. O que corresponde muito exatamente a uma segunda desqualificação da filosofia: rebaixada pela antiga sofística ao estatuto de epíteto da retó­rica, ela se encontra pura e simplesmente fora do campo da segunda.

Um tal deslocamento da filosofia é marcado pelo fato de que ela não é mais nomoteta. De fato, dir-se-á que a primeira sofística só foi denominada sophistike pela e para a filosofia, no processo de se dife­renciar de seu semelhante e de seu fora - e é nesse caso, sem dúvida alguma, Platão o nomoteta. Mas a segunda sofística se "autonomeia" e é Filóstrato o nomoteta. Filóstrato sustenta, em suma: eu e meus mestres, quer sejam antes filósofos, ou seja, pseudo-sofistas, como Díon e Favorino, ou verdadeiramente sofistas, filosoficamente (à maneira de Górgias) ou historicamente (à maneira de Ésquines e como o vene­rável Herodes Ático), somos todos "sofistas,,69.

68 Reardon, op. cit., p. 186.

69 É a partir daí, mas realizando um outro trabalho, que seria necessário acrescentar à série a consideração da "terceira sofística". Apoiar·nos-íamos, en­tão, nos estudos de Marc Fumaroli em L'Age de l'é/oquence (op. cit.), especial­mente na análise da obra do jesuíta Louis de Cressolles, publicado em 1620, cujo título usual é Theatrum veterum rhetorum, e o título completo: Theatrum vete­rum rhetorum, oratorum, declamatorum, quos in Graecia nominabant O"O<pLo-rdç (lntrod., p. 1 e pp. 320-40). Compreende-se que, dessa vez, a nomeação não é mais do âmbito da filosofia inimiga, como com a primeira, nem da própria sofística, como para a segunda, mas da crítica literária. É literariamente e não filosoficamente

198 o efeito sofístico

IMPROVISAÇÃO E RETÓRICA DO TEMPO

A diferença entre as duas sofísticas está presente na própria es­colha dos pais fundadores. De um lado, ,Górgias, o siciliano 70, sem­pre de passagem (em Atenas também evidentemente: ele aí estava, por exemplo, em 427), implicado como sabemos na sophia e na philo­sophia, em suas próprias obras e através dos diálogos platônicos -se Filóstrato afirma que ele fundou na Tessália a antiga sofística, como Ésquilo fundara a tragédia, é sem dúvida porque o Mênon o disse (70 a-c). De outro, Ésquines, o ateniense7!, filho de Atrômeto, do demo de Kothokidai, implicado antes de mais nada na política de seu tem­po, tomando o partido de Felipe contra o do Grande Rei, antigo mau ator e bebedor de vinho, discursando incansavelmente contra Timarco, contra Ctesifonte ou sobre as prevaricações da embaixada. Sua bio­grafia se confunde com a narrativa de suas querelas com Demóstenes - bebedor de água mas orador ainda mais leonino -, que acaba por vencê-lo, em 330, com seu Sobre a coroa. Vencido, em exílio longe da vida política ateniense, foi então e somente então, segundo Filóstrato, que Ésquines fundou a segunda, transformando Rodes em um phron­tisterion de sofistas. O Estrangeiro (a maiúscula aí está evidentemen­te em memória do personagem do Sofista) dá grande estilo à sophia; o exilado faz triunfar "historicamente" a eloqüência quando a políti­ca está em outras mãos - Demóstenes72 ou o Império romano.

Mas os fundadores têm pelo menos um ponto comum acerca do qual Filôstrato discorre longamente (482-484): eles improvisam. Filós­trato, passando em revista os inventores possíveis da eloqüência ex tempore, concluiu que Ésquines "deve ter feito o maior número de improvisações", mas que foi Górgias que "começou" (482). A impro­visação ocupa um lugar tão destacado nas Vidas que freqüentemente

que o Re·nascimento, o nascimento da modernidade, foi percebido como sofístico: é uma maneira de dizer que nos situamos sempre, no final das contas, no terreno delimitado pela filosofia platônico-aristotélica, de tal maneira que a escolha do terreno é o bastante para determinar, até nossos dias, o desfecho do duelo.

70 VS, 492-494.

71 VS,507.510.

72 Demóstenes acusa evidentemente Ésquines de não êtl....um-absoluto ou um ideal político, mas de se determinar unicamente em função da retórica: "Você quis exibir sua eloqüência e seus vocalises quando decidiu entrar nesse processo" (Sur Ia couronne, 280, e.g., trad. G. Mathieu, Paris, Les Belles Lettres, t. IV, 1947).

De uma sofística a outra: boas c más retóricas 199

Page 102: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

se pergunta se não é por si só um próprio, o próprio mesmo, da sofís­tica, cujas encenações mais mediáticas a sofística imperial, com um Polémone, por exemplo, asseguraria (537ss.). A improvisação é, de; fato, um elemento chave que permite retomar todo um conjunto de\ características do lagos sofístico.

Reunamos os elementos ainda dispersos, necessários para dar sentido a essa eloqüência tão bem nomeada ex tempore. Quando tra­tamos de Élio Aristides?3, esboçamos duas concepções do lagos: a ontológica, que tem como matriz metafórica o espaço (sendo essa ma­triz metafórica certamente a expressão do essencial, é preciso enten­der "matriz" mais literalmente do que "metáfora"), como paradigma, a interpretação heideggeriana do logos heraclitiano, concepção tal que os "fenômenos" aí sejam anta, que o tempo seja espacializado em presença, e a potência da palavra, em espaço de poupança. A logo­lógica, que tem como matriz metafórica o tempo; como paradigma ou como tematização, o Tratado do não-ser e o Elogio de Helena; como divisa, a frase de Élio Aristides: "os discursos caminham com o mes­mo andamento do tempo" , concepção tal que os "fenômenos" aí se­jam pragmata e khremata, que o tempo permaneça temporalizado em curso e em discurso, e que a potência do discurso se confunda com o tempo do gasto. Em seguida, a propósito do sintagma "retórica so­fística", esboçamos, no início desse capítulo, uma hipótese forte con­cernindo a retórica: que ela seja uma máquina platonicóide de espa­cializar o tempo. Nesse momento, pode-se distinguir, no interior mes­mo da retórica, "retóricas do espaço", de modelo espacial, platônico­aristotélico, de "retóricas do tempo", de modelo temporal, sofístico­barroco, e não nos espantaremos com o fato de que tal distinção espa­ço/tempo se superponha à que se faz freqüentemente entre "retóricas do enunciado" e "retóricas da enunciação".

O traço genérico das retóricas do tempo é que o discurso, em sua seqüência, não é projetado como uma totalidade fechada, um ho­lon orgânico a ser recortado segundo um "plano" e "articulações";

71 Élio Aristides seria, no entanto, a exceção que confirma a regra da im­provisação, ele que não queria ser um daqueles que "vomitam" seus discursos. Toda a estratégia de Filóstrato consiste, aliás, em mostrar que Aristides, mesmo se ele preferia "mastigar" a "comer", admirava por demais a improvisação para improvisar (583-585). Na minha perspectiva, o fato de que Aristides seja, com Górgias, um dos que teorizaram a relação entre tempo e discurso faz dele um "sofista".

200 o efeito sofístico

nem mesmo é um pan, mas, antes, um panta, uma pluralidade de emis­sões singulares necessariamente sucessivas: em que é evidente a rela­ção, estigmatizada no Teeteto de Platão bem como no livro Gama da Metafísica de Aristóteles, com o heraclitismo, senão com o atomis­mo, do panta rhei. A logologia (o ser é um efeito de dizer) é uma cro-

, nologia: o tempo é o princípio efetuante ou eficaz do discurso. Disso ; decorre uma série de características diferenciais que gostaria de ten­tar classificar.

1. O presente, e especialmente o presente da enunciação, por ela produzido, está incluído na cadeia e não poderia ser dela retirado: não há nem presença remanescente do presente nem lugar para uma metalinguagem. Daí as contradições, as inversões, em suma: a parado­xologia. Seu paradigma anedótico é o diferendo bastante conhecido Protágoras/Euatlo: "Conta-se que uma vez, quando exigia seus hono­rários a seu aluno Euatlo, este respondeu: 'Mas eu ainda não obtive nenhuma vitória! [oudepo ... nenikesa, perfeito]'. 'Bem, disse Protágo­ras, se eu ganhar [all'ego men an nikeso, futuro], porque sou eu quem terá ganhado [ego enikesa, aoristo], é preciso que você me pague [la­bein me dein, presente]; e se for você, porque foi você [ean de sy, hoti sy, verbos em elipsej',,74. Eis aí o modelo da eloqüência judiciária, que vimos em funcionamento nas Tetralogias de Antifonte: o que produz o fato ou a causa como ficção é a imersão do lagos no tempo, especial­mente no tempo da enunciação do discurso jurídico (primeira acusa­ção, em seguida primeira defesa, depois segunda acusação, em segui­da segunda defesa), de forma que qualquer argumento seja suscetível de se transformar em seu contrário no momento seguinte. De fato, é preciso compreender que não se trata, então, de provar que, dado um argumento, poder-se-á sempre produzir um argumento contrário, co­mo nos Dissoi LogoPS, mas que todo argumento se torna seu pró-

74 Diógenes Laércio, IX, 56 (= 80 A 1 D.K.), comentado especialmente por J-F. Lyotard em Le Différend, op. cit., pp. 19-22. Para o conjunto dos testemu­nhos conservados, ver A. Capizzi, op. cit., pp. 154-8 (Diógenes) e 164-168 (Quin­tiliano e, sobretudo, Apuleio e Áulio Célio). Diógenes acaba de dizer (52) que Protágoras é "o primeiro a ter distinguido mere kronou", as "pa~do tempo" (que são sempre compreendidas como "o tempo dos verbos"), "e a ter exposto a dinâmica do kairos".

75 90 D.K. (t. 11, pp. 405-16), que começa assim: "Discursos duplos são pro­feridos na Grécia por aqueles que filosofam sobre o bem e o mal. Uns dizem que o

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 201

Page 103: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

prio contrário desde o momento em que é enunciado, porque o foi (quanto mais ele for suspeito, mais será culpado; não: inocente. Quan­to menos testemunhas houver, mais inocente ele será; não: culpado), seguindo o modelo dos kataballontes, os "argumentos demolidores", os "argumentos-catástrofes" cuja invenção se atribui precisamente a Protágoras.

Esse movimento é interrompido na espacialização, com o hama do princípio de não-contradição: o "ao mesmo tempo" que produz a visão desenvolvida do tota simul e interrompe a seqüência por meio da co-presença dos presentes remanentes. Eis aí uma boa leitura do tra­balho de Gama, como que abrindo o espaço da escritura, da forma· lização, das "tábulas" de verdade, pela simples eficácia do syn: syllo­gismos, ou, transposto no mundo estóico, syn-emmenon.

2. O sentido, por sua vez, é criado ao longo da enunciação, não apenas, como acabamos de ver, no nível da argumentação, da dispo­sição das frases, mas no nível da sintaxe, da disposição das palavras. É a isso que nos tornou sensíveis o Tratado do não-ser de Górgias, e sua exploração do caráter escorregadio de qualquer proposição de identidade: "o não-ente é l ... ]" lele existe, portanto] "[ ... ] não-ente" [ei-Io que não existe]. E que é bloqueado pela espacialização da sin­taxe precisamente compreendida, instaurada após ° Sofista, nas Ca­tegorias e no Sobre a interpretação, em que sujeito e predicado são produzidos como lugares não-negociáveis.

A partir daí, refletir-se-ia eficazmente, ao que me parece, sobre a diferença entre as línguas: existem línguas temporais (o grego, tal­vez, que apresenta uma série flexível de unidades singulares) e línguas espaciais (o alemão, talvez, que, colocando o verbo no final, circuns­creve um holon)? E sobre a diferença entre os estilos: Aristóteles ger­manizando de uma vez por todas a língua de Platão, precedido pelos oradores áticos, que fabricam "períodos" em que a frase se dá por inteiro (sua grandeza, como a da cidade, é eusynopton, ela "se deixa abarcar com um só olhar" [Retórica, I1I, 9, 1409 b1]), em que o sen-

bem é uma coisa e o mal, uma outra; outros dizem que é a mesma coisa e que, para uns, seria bem, para outros, mal e para o mesmo homem ora bem, ora mal". O conjunto desse texto complexo e magnífico coloca problemas tão consideráveis em todos os planos (da "autenticidade" ao sentido, como o De M.X.C.) e tão pouco explorados por enquanto (a bibliografia de Classen, em Sophistik, op. cit., é elo­qüente acerca disso) que preferi deixar tal estudo à parte.

202 O efeito sofístico

tido se fecha e se auto-circunscreve - até que um Denis de Halicarnas­so a desperiodize, trabalhando-a por subida e por descida, para subs­tituí-la como que por um circunflexo do esti'lo.

3. No nível das próprias palavras, a atenção é focalizada nos sons e nos significantes; daí, de um lado, o privilégio da voz (bom­bos, phone), e da actio retórica, nas quais Filóstrato não cessa de in­sistir; de outro lado, o da homonímia, sustentada pelos sons, pelos silêncios, pelas inflexões, os acentos, as tonalidades, como vimos com as Refutações sofísticas de Aristóteles a Galeano. O que, acrescido à rapidez do instante, produz evidentemente ° chiste, ele também mui­to enfatizado por Filóstrato (no mesmo texto, em 483). A que repli­ca a estratégia espacial da discriminação e da fixação do sentido e, na falta de definição, quando a dialética deve ocupar o lugar da crí­tica, o retorno ao emissor que marca, pelo menos, o lugar daquele que responde.

Esse tipo de atenção engendra um certo tipo de figura. "Gor­gianizar": a palavra inventada por Filóstrato76 é bastante significati­va, tanto por seu poder fônico quanto por sua formação a partir de um nome próprio?7. Górgias, com suas figuras sonoras, confere à prosa metro, música. É por isso que Aristóteles o acusa de ter "um estilo poético" (poietike [ ... ]lexis) e de não ter ainda compreendido que "o estilo do logos é diferente do da poesia"78. A Souda diz que ele dá à retórica sua "frástica" e lhe atribui o uso de praticamente todas as figuras (tropas, metáforas, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos), mas as figuras propriamente gorgianescas são - ou, pelo menos, de­veriam ser, na perspectiva por demais sistemática que eu traço - aque­las, primeiramente sonoras ou audíveis, sobre as quais se encerra a enumeração: "e reduplicações (anadiplosesi) e retomadas (epanalep-

76 Ep. 73; VS: "Agaton [ ... ] gorgianiza freqüentemente em iambos" (493); e: quando Próclo de Náucratis se lançava em um exórdio, "era a um Hípias ou a um Górgias que ele se assemelhava" (hippiazonti te [ ... ] kai gorgiazqnti, 604); "gorgianizar" é igualmente, a se acreditar em Platão, o que fazem as cidades da Tessália (501).

77 Em eco na terceira sofistica: o "gongorismo". Encontra-se o adjetivo gor­gieios em Xenofonte (Smp, 2, 26) e Denis de Halicarnasso (Dem., 5).

78 Rh., I1I, 1, 1404 a24-29; cf 1406 b9, 1408 b20. Aristóteles especifica que "a forma do estilo (to skhema tes lexeos) não deve ser métrica (emmetron) nem arrítmica" (b21s.).

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 203

Page 104: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

sesi) e interpelações (apostrophais) e correspondências (parisosein)"; são, em todo caso, aquelas que Diodoro destaca quando ele descreve a surpresa dos atenienses filólogos escutando pela primeira vez Gór­gias e suas figuras "extraordinárias": "e antíteses (antithetois) e para­lelismos (isokolois) e correspondências (parisosin) e homeoteleutas (homoioteleutois),,79 É por isso que o Elogio de Helena só é com­preendido em grego: iteração de aliterações que, como dizia Ronsard acerca da fonte, "sussurrante se segue" - ho smikrotatoi soma ti kai aphanestatoi theiotata erga apotelei, sucessão de sons para descrever a natureza do Iogas e testemunhar sua dinastia [8 J.

Aos tropos gorgianescos se opõem nossos tropos espaciais. A metáfora e a metonímia são duas maneiras de fazer geometria pa­nóptica, estabelecendo uma analogia de proporção ("a noite é a ve­lhice do dia"), ou tomando a parte pelo todo (a vela pelo navio): tra­ta-se sempre de "ver o semelhante" para integrar a cena do mundo e produzir seu grapho regrado.

4. A eloqüência ex tempore, enfim, é a manifestação por exce­lência da retórica do tempo. Filóstrato busca, literalmente, em quem "as vagas dos discursos improvisados têm sua origem" (skhedion [ ... ] pegas logon [ ... ] rhyenai, 482): a metafórica do tempo é evidentemen­te uma metafórica do fluxo, da vaga. Tempo do discurso e tempo do devir: eis, já se disse, o ponto de vista adequado para compreender a exatidão da aproximação entre sofística e heraclitismo - "tudo flui", no mundo catarral bem como no dos falantes. Resta ainda com­preender a maneira pela qual o grego diz o ex tempore: skhedioi 10-goi, "os discursos improvisados", skhediazein, "improvisar". O ad­vérbio skhedon e o adjetivo skhedios indicam a proximidade, quer ela seja espacial (a de dois guerreiros em combate próximo) ou temporal (a aproximação da morte, assim como o caráter inesperado de um acontecimento); de tal modo que skhedia, por exemplo, é o termo uti-

79 Souda = 82 A2 D.K. (11, p. 272); Diodoro, Histoire, XII, 53 = 82 A4 D.K. (p. 273). Para perceber a especificidade, especialmente rítmica, da prosa de Górgias, basear-nos-emos no trabalho inigualável de E. Norden, Die Antike Kunstprosa von VI jahrundert v. Chr. bis in die Zeit der Renaissance, Leipzig, Teubner, 1898, pri­meira parre (pp. 15-79). Baldwin conclui seu exame das Vidas, ampliando ainda mais o espaço e o tempo: "As mesmas 'figuras gorgianas' são aprendidas por San­to Agostinho na África latina, por São Gregório de Nazianzo no Oriente grego e pelo pagão Libânio. A retórica greco-romana era tão invasora quanto a lei roma­na e quase tão imutável" (Medieval Rhetoric and Poetic, op. cit., 1959, p. 9).

204 O efeito sofístico

lizado por Zeus no livro V da Odisséia para designar a aproximação "bem atada" (epi skhedies polydesmou, 33, com laços tão numero­sos quanto aqueles que prendem o próprio Ulisses ao mastro quando ele passa pelas Sereias), nessa conjunção de ajuste espacial e de pre­cariedade, de imediatidade temporais, que cria a essência aproxima­tiva da "jangada" que Ulisses fabricará para escapar a seu amor por Calipso. Os discursos improvisados são as jangadas nas quais o ho­mem embarca no correr do tempo. "Foi Górgias" - continua então Filóstrato, que eu entregloso agora - "que inaugurou a improvisa­ção: caminhando à frente no teatro em Atenas, teve a audácia [ethar­resen, de tharsos, a "bravura" e a "intrepidez" do herói homérico, designa também a "imprudência" e a "impudência"; tanto mais por­que tudo acontece em plena publicidade, em plena visibilidade: no teatro] de dizer: 'Proponham!' [proballete, "lancem primeiro", como se dirá "atirem primeiro, senhores ingleses", é terminológico nos pro­cessos para dizer o lançar da acusação: com o pro-, tem-se o início, jamais o resultado], e ele foi o primeiro a assumir expressamente um risco semelhante [to kindynema touto [ ... ] anephthegxato: "ele arti­culou", pois os phthoggoi caracterizam a voz como conjunto de sons, de acentos, de articulações que são, para Aristóteles, próprios ao ho­mem; o que ele articulou foi o "perigo", ligado à incerteza do acaso e, precisamente, especifica Chantraine, ao "lance de dados"], mos­trando com isso, por um lado, que ele sabia tudo [endeiknymenos depou panta men eidenai: Górgias encarna a definição filostratiana da primeira sofística, que manifesta, à diferença da filosofia, sua onis­ciência, razão pela qual precisamente a filosofia sempre fez da sofística uma sabedoria apenas aparente], e, por outro lado, que ele falaria sobre tudo, deixando-se levar pela oportunidade [ephieis toi kairoi]". Ei-nos na base da construção, levados por Filóstrato ao surgimento do kairos.

KAIROS E TOPOS \

O kairos do kairos já é instrutivo. Górgias - supõe Filóstrato - estava saturado do "topo", como diríamos, de Pródico: a fábula do jovem Hércules preso entre o Vício e a Virtude no cruzamento dos caminhos, fábula que ele levava consigo de cidade em cidade com su­cesso e dinheiro, por mais "aventada" (heola, de heos, a "aurora", a "manhã", caracteriza o alimento da véspera, por exemplo, o pão dor­mido), por mais "repetida" que ela fosse (e Deus sabe que ela ainda °

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 205

Page 105: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I

~

terá sido por outros além de Pródico, até não mais poder80). "Deixar­se levar pelo kairos" envolve a narrativa da viagem de Pródicos: é a reação da sofística ao desgaste do moralism081

. Kairos, uma das palavras gregas mais intraduzÍveis, é certamen­

te, tendo por base, por um lado, ° corpus hipocrático, por outro, a poesia pindárica, um próprio da temporal idade sofística82

. Eu en­fatizaria, sem precaução, alguns de seus traços mais pertinentes do que outros para a retórica do tempo. Em primeiro lugar, por que o kairos é perigoso? É, como o instante zen do arco-e-flecha, o momento de abertura dos possíveis: o da "crise" para o médico, isto é, da decisão entre a cura ou a morte, o da seta lançada para o arqueiro pindárico ou trágico, entre o acerto e o erro. O kairos, diferentemente do sko-': pos (a "meta", que se considera no centro do alvo), denomina, para Onians, o ponto em que "uma arma poderia penetrar de maneira fa- ' tal" (p. 344): trata-se da seta como destinai, atingindo o coração. É o

80 Sobre esse aspecto, pode-se consultar especialmente F. Riedl, "Der So­phist Prodikus und die Wanderung seines Herakles am Scheidewege durch die romische und deutsche Literatur", Schulpr. Laibach, 1908, pp. 5-16; e, para a fortuna iconográfica, E. Panowsky, "Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren Kunst", Stud. Bibl. Warburg, 18, 1930, pp. 37-52; bem como C. Picard, "Représentations antiques de l'apologue dit de Prodicos", CRAI,

1951, pp. 310·22.

81 Resta saber o que se deve exatamente pensar sobre a fábula de Pródico, como sofística. O problema é colocado por C. Dumont, "Prodicos: de la méthode au systheme", em Positions de la sophistique, op. cit., pp. 221·32. Deve-se consi­derar a fábula, superpondo-a aos outros testemunhos, especialmente platônicos, essencialmente do ponto de vista da onomástica e da sinonímia - a bela dama, por exemplo, tem como nome Eudaimonia/Kakia, dependendo de quem a nomeia (Prodikus von Keos und die Anfdnge der Synonymik bei den Criechen é o título da dissertação de H. Mayer, Munique, 1911; Paderborn, 1913); deve-se tentar pensar a constituição consensual do gnômico e se perguntar que trabalhos preci­samente Hércules irá realizar, que dele farão, como Helena, Palamedes ou Prome­

teu, um herói "sofístico"?

82 Remeteremos à obra, já citada, de B. Gallet, Recherches sur kairos et l'ambiguité dans la poésie de Pindare, a que sempre me referirei, bem como ao trabalho de tese de Monique Trédé, Kairos: l'à-propos et l'occasion. (Le mot et la notion d'Homere à la (in du IVe siixle avant f.C), Paris, Klinsieck, 1992, que analisa especialmente, através de Alcidamas e lsócrates, "o kairos dos oradores" (pp. 247-82). Gallet tem a sagacidade de retomar o trabalho de R.B. Onians, The Origins of European Thought, op. cit., pp. 343-9, que coloca a relação XaLplSç /X(llpüÇ.

206 O efeito sofístico

nome da meta na medida em que depende inteiramente do instante, o , nome do lugar na medida em que é integralmente temporalizado: pode­se entender de que modo o termo latino tempus não quer apenas di­zer "tempo", mas igualmente "têmpora"; a consideração do kairos faz compreender que a "têmpora", o "tempo" e o "templo" são uma mesma família de palavras, do grego temno, "cortar,,83. Com kairos, trata-se ao mesmo tempo de corte e de abertura: muito exatamente do

i\ "defeito da couraça", como na llíada84 , da "sutura óssea", da "opor­!tunidade" na medida em que aí ressoam o "porto" e a "porta". , A hipótese notável de Onians, que Gallet retoma, esclarecendo­a e precisando-a consideravelmente por meio do estudo dos textos e dos desenhos, é a de que xcnpÓÇ' ("o ponto exato que atinge o alvo", diz Chantraine) e xaLPOC; ("a 'corda' que fixa a extremidade da urdidura ao tear", diz Chantraine, que não é hostil à aproximação) "se confun­dem originariamente" (Onians, p. 346). Para Onians, o kairos é o nome do espaçamento, do vazio, da abertura criada pelos cadilhos. Gallet mostra que não se trata propriamente dessa abertura, porém, mais exatamente, da "trança reguladora" que, como nosso pente, "separa os fios de urdidura mantendo-os paralelos para que não se embara­cem", ligando-os também ao mesmo tempo, e que regula assim, simul­taneamente, a ordem vertical e a ordem horizontal de inserção da tra­

'ma delimitando a zona de trabalho (p. 225.); a trança é, por vezes, . acompanhada de um dispositivo instalado no alto do tear e "que sus­tenta o topo de toda a obra" (p. 935.)85. É assim que o termo é em­pregado, por silepse, em Píndaro, no sentido próprio bem como no figurado, para designar o "procedimento do entrelaçamento dos te­mas" (p. 94, 357). Na articulação do kairos - e também aqui "arti-

83 Sobre as erimologias possíveis, ver M. Trédé, op. cit., capo 1. ~--

84 Por exemplo, Ilíada, IV, 185-187; ver o comentário de Callet, que retifi· ca acertadamente Wilson e Trédé, p. 51s. e todo o seu capírulo 11.

85 Galler destaca, depois verifica, admiravelmente, as quatro funções téc­nicas que produzem uma descendência semântica: como "fio condutor", o kairos é uma "tomada", uma "influência", um "controle"; como "fio regulador" da lar­gura do tear determinando a zona de tecelagem, é uma "regra", uma "boa or­dem", uma "justa medida", uma "brevidade" e uma "vantagem"; como "fio en· trelaçado", encontrando em ângulos retos cada um dos fiOS da cadeia, é uma "con­junção", uma "conjuntura", uma "ocasião", um "momenro propício"; como "fio separador" entre a trama dos fios pares e a dos fios ímpares, é uma "escolha", uma "separação", um "julgamento", uma "decisão" (p. 65s.)

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 207

Page 106: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

culação" deve ser compreendida em todos os sentidos do português: kairon ei phthegxaio, "se articulamos", "se enunciamos", "o kairos" [Píndaro, Píticas, 1,81;;;; estrofe 5,157] -, as palavras são, ao mes­mo tempo, lançadas e tecidas.

Esse breve exame permite situar a relação entre kairos e telos: o kairos é autotélico, contém em si seu próprio fim; é o momento em que a poiesis e a tekhne (caracterizada pela exterioridade entre o er­gon, a obra, e seu fim, e de tal modo também que mesmo o pior dos arquitetos, diferentemente da abelha, tem a idéia da casa que ele cons­trói), no ápice de sua inventividade, se aproximam da praxis, de uma interiorização divina da finalidade. Mas isso talvez ainda não seja

. / radical o bastante e se deva até mesmo dizer que o kairos é o poros, a "passagem", que permite prescindir do telos e da idéia de finalidade (daí a monotonia dos fins atribuídos a quem se deixa levar pelo kai­ros, e pelos sofistas em geral: o dinheiro, o sucesso, a vitória). Permite igualmente ressaltar o liame entre kairos e singularidade: com o kai­ros, mergulha-se em um caso, e só há mesmo casos. Contra isso, reto­mando as críticas platônicas (do "enxame de virtudes", a "uma bela marmita, uma bela mulher, uma bela lira"), Aristóteles exige o geral, e que se ensine a arte de fazer sapatos ao invés de apresentar vários pares deles86.

É precisamente nesses dois pontos que se distinguem mais clara­mente uma "retórica do kairos" e uma "retórica do topos". Como enfatiza Jacques Brunschwig, no prefácio de sua edição dos Tópicos, "o lugar é uma máquina de fazer premissas a partir de uma conclu­são dada" (op. cit., p. XXXIX, grifo meu): com o topos, tem-se o telas, e falta percorrer da melhor maneira possível o trajeto normatizado, ao passo que, com o ex tempore, tem-se a abertura autotélica do co­meço. Quanto ao singular, Brunschwig cita a a única definição aris­totélica do lugar, por sinal operatória: "o lugar é aquilo sob o qual cai uma multiplicidade de entimemas" (Retórica, 11, 26, 1403 a 17), mostrando assim que "um mesmo lugar deve poder tratar de uma multiplicidade de proposições diferentes e uma mesma proposição deve poder ser tratada por uma multiplicidade de lugares diferentes" (ibid., p. XL); só há caso se tomado na generalidade, em suma: "tópico". Após isso, como observam nos mesmos termos Barthes e Brunschwig, o lu­gar não é mais definível, a não ser por uma série de metáforas deli-

86 SE, 183 b-184 a.

208 o efeito sofístico

rando sobre o espaço: molde, matriz, filão, círculo, esfera, região, po­ço, arsenal, reservatório, sede, armazém, tesouro (sem esquecer a mais surpreendente, 'que retém um pouco do pombal do Teeteto, mas co­mo que superpondo aí o kairos: o "buraco para pombos" de Ross)87. Aí eclode o parentesco entre um Iogas que armazena o real e um to­pos que armazena os argumentos.

Essas duas concepções da retórica, remetendo a duas concepções do lagos e a dois tipos de apreensão do tempo, podem constituir o seguinte quadro:

Retóricas do espaço

espaço

poupança

plano

organismo, articulações

hierarquia dos syn

Lagos

(silogismo, sintaxe)

hama da não-contradição

enunciado

sentido

período

figuras visuais

(metáforas)

reserva dos topoi

Tempo tempo espacial

(movimento, grandeza)

físico, cósmico

(que se totaliza)

passado-presente-futuro

presença do presente

Retóricas do tempo

tempo

gasto

improvisação

curso

Inversão

paradoxologia

enunclação

significante, homonímia

chiste

figuras sonoras

(aliterações)

abertura do kairos

tempo temporal

lógico

~-

(que arrasta a jangada)

agora

performance

Uma última observação, para concluir, sobre as próprias Vidas. A diferença entre primeira sofística, filosofante, e segunda sofística,

!F Brunschwig, op. cit., nota 3, p. XXXIX; Barthes, op. cit., p. 206.

De uma sofística a outra: boas e más retóricas 209

Page 107: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

~ I,

i'

historizante, é como que subsumida na unidade genérica do discurso improvisado. Reencontra-se aqui a definição da excelência como ca­ráter fluente da expressão (tous xyn euroiai hermeneuontas, 484), que confere aos melhores filósofos o estatuto de sofistas. Desse ponto de vista, toda a operação de Filóstrato consiste em fluidificar as frontei· ras: entre o que pode aparecer, ao término do processo, como "gêne­ros", "características", "tendências" - filosofia, história, retórica, literatura, unificadas em sofística, isto é, em práticas discursivas. En­tre as épocas também: a essência mesma da paideia e da mimesis cul­tural, associada à paixão que Filóstrato tem por seus próprios gran­des homens e por sua própria modernidade, contribuem para desatar de maneira "káirica" e estética a cronologia88 . Penetra-se assim real­mente em um outro mundo em que a filosofia não é mais (ou não é mais a única, ou não é mais em primeiro lugar) doadora de referên­cias, de critérios, de nomes, de sentidos, de épocas, de temporalidade: o exame das sofísticas fornece o meio de questionar a diferença entre filosofia e literatura.

8~ A diferença entre as duas sofísticas é certamente operatória na composi­ção do tratado, já que a segunda seção do primeiro livro trata da primeira, de Górgias (capítulo 9) a Isócrates (capítulo 17), ao passo que sua terceira seção, e todo o terceiro livro, trata da segunda. Mas os sofistas da segunda sofística não cessam de imitar Górgias (Proclo de Náucratis, VS, 604; Escopeliano, 518; cf Norden, op. cit., especialmente pp. 379-86). Aliás, o lugar de Ésquines (capítulo 18) mostra bem a ambigüidade da classificação. Ele segue Isócrates: é cronologi­camente o último dos antigos; ele precede Nicete de Esmirna, que floresce no fi­nal do primeiro século de nossa era: é logicamente o primeiro desses "modernos" que vão até Cláudio Élio, no final do terceiro século. Avalia-se quão distorcida cronologicamente é a seqüência: ela assemelha-se mais a uma colagem, a um pre­cipitado entre o antigo e o moderno, que salra por cima de uns quatro séculos, sem deixar vestígios, e silencia aqueles que, aliás, contam-se entre os maiores. A tal ponto que, por vezes, se prefere crer, como Kayser, em sua introdução à edi­ção Teubner de Filóstrato, que uma parte do tratado estava perdida e que, origi­nalmente, tratava-se de Demétrios de Fáleron, de Hegésias ou de Frontão, sem falar do caso de Luciano. Mas Vidal-Naquet tem uma visão mais correta quan­do observa que "os intelectuais gregos dessa época, historiadores, sofistas, roman­cistas, reúnem diretamente, em uma colagem sing~lar, o passado político de Ate­nas ou de Esparta e seu presente estético. A época helenística é a vítima evidente desse perigoso salto" ("Flavius Arrien entre deux mondes", posfácio a Arrien, Histoire d'Alexandre, Paris, Minuit, 1984, p. 327). Sobre a construção das Vi­das, ver, por último, Anderson [19861, capítulo 5, e sobre a relação passado-pre­sente, Anderson [19931, capítulo 3.

210 o efeito sofístico

V. DESCOMPARTIMENTAR OS GÊNEROS

TUDO MAIS Ê LITERATURA

Atualmente, só se pode ser incompleto e alusivo; no melhor dos casos, programático. Com o triunfo da retórica sofística, entramos, de fato, em literatura. Como escrever fora dos dois grandes gêneros pa­tenteados - quando não se é nem poeta nem filósofo? Uma inven­tividade exuberante e lábil se desdobra em mais de dois séculos, nessa Antigüidade tardia e genial, em uma espécie de melting-pot nascido dos exercícios retóricos - do jazz e suas variações, como dizem nos­sos anglo-saxões - do qual se destacam, progressivamente e para uma visão retrospectiva, gêneros novos ou tão profundamente renovados que o próprio gênero de gênero se encontra com isso questionado: a biografia, a autobiografia, a hagiografia, a doxografia, a historiogra­fia, a crítica literária, o romance, enfim 1.

O que significa dizer que se entra em "literatura"? É s~ dúvida imprudente e anacrônico, mesmo se inevitável, utilizar um termo for­jado através da larinidade, mas cujo conceito só foi fixado como tal

1 A descrição mais completa desse florescimento, incluindo formas específi­cas da literatura cristã, encontra-se na suma de B.P. Reardon, Courants littéraires grecs des neme et I/Iemc siecles apres f.C., obra bastante notável, mesmo se a eru­dição e o bom senso nela são, por vezes, em minha opinião, prisioneiros da oposi­ção tradicional entre literatura e filosofia, a tal ponto que algumas das avaliações que resultam disso se acham finalmente tão prejudiciais à filosofia quanto à lite­ratura. Tal é o caso quanto a Aristides, por exemplo (p. 129: "O paralelismo homonoein - homou, que não é mais do que um sonoro jogo verbal, constitui a estrutura dessa frase. O resto é apenas verborréia. É o próprio espírito da maior parte da obra de Aristides".) Uma frase como: "Simplesmente, Luciano não era um pensador, e não há razão para aprofundar a questão" (p. 157) é igualmente sintomática.

Descompartimentar os gêneros 211

Page 108: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

na segunda metade do século xvm2. No entanto, Lacoue-Labarthe e Nancy observam precisamente que "quando é determinado e estabe­lecido, o conceito de literatura - não importando o que ele englobe em sua maior generalidade - tende a designar preferencialmente a 'própria literatura' no processo de se impor como o que ultrapassa (a verdade, a crítica ou a dissolução) aquilo que a poética antiga e a re­tórica tinham constituído como gêneros da coisa escrita ou falada": "é em conseqüência disso - especificam eles, então - que ele tende a designar fundamentalmente, embora com freqüência de modo obs­curo, o romance tal como O romantismo, em especial, o entende". É surpreendente ver como essa definição e esse diagnóstico baseados no romantismo alemão correspondem àqueles propostos por Roland Bar­thes, nesse caso exatamente a partir da Antigüidade. Em seu artigo sobre a antiga retórica, ele insiste no fato de que a retórica de Aristó­teles se define por oposição à poética, e que todos os autores que re­conhecerem essa oposição poderão ser classificados na retórica aris­totélica. "Esta cessará, diz ele, quando tal oposição for neutralizada, quando retórica e poética se fundirem, quando a retórica se tornar uma tekhne poética (de criação)". Ora, acrescenta ele, "tal fusão é capital, pois está na origem da própria idéia de literatura,,3.

Essa fusão em literatura, caracterizada por uma retórica "poé­tica", no sentido de "fautora", "produtora", é certamente o que se ope­ra com a segunda sofística. A segunda sofística é, de fato, constante­mente caracterizada por sua mimesis rhetorike - o que Bompaire ou Reardon propõem traduzir por "cultura literária". A mimesis rhetorike é a apropriação, por uma imitação que se desenvolve ao longo de todo o curso, nessas escolas em que o diretor era sofista, de todas as obras da Antigüidade clássica: a poesia, a filosofia, a história, a retórica pro­priamente dita e, com ela, a deliberação política são assim absorvidas, como espécies de um quase gênero universal constituído pela retórica geral colocada sob a égide sofística, por conta desse próprio movimento

21759: publicação dos Briefe die neueste Literatur betreffend, de Lessing, e 1800: De la littérature, por Madame de Stael. Ver R. Escarpit et alii, La Défini. tion du terme "littérature", Terceiro Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, Utrecht, 1961, citado por Ph. Lacoue-Labarthe e J.L. Nan­cy, em "Le dialogue des gemes", Poétique 21 (1975), Littérature et Philosophie mêlées, p. 149.

3 "Ancienne rhétorique. Aide mémoire", art. cit., pp. 178-9.

212 o efeito sofístico

que Filóstrato batiza de segunda sofística. E o próprio dessa retórica mimética é, de fato, produzir o novo, ser inventiva, criativa - sendo com certeza o mais violentamente novo dentre todos os novos "gê­neros" aquele que se tornará literatura por excelência: o romance.

Mas não devemos nos equivocar acerca do sentido dessa carac­terística. Embora eu atribua, assim como Bompaire, a maior impor­tância à mimesis rhetorike, no entanto o ponto de vista que adoto se opõe completamente ao dele. Em Lucien écrivain, que tem como sub­título "Imitação e criação", ele decide insistir, de todas as maneiras possíveis, na continuidade histórica e na compatibilidade lógica da­quilo que ele chama, com as categorias de Stemplinger, de "imitação filosófica" e de "imitação retórica"; "A imitação dos livros" - escreve, por exemplo - "não é senão um caso particular da imitação do mun­do,,4. Ora, tal apreciação conduz, a meu ver, a uma reabilitação da mimesis literária tão filosoficamente - e, aliás, literariamente - in­suficiente quanto as "reabilitações" da sofística que dela fazem um complemento da filosofiaS. Ela produz, de fato, um tipo de avaliação determinado por uma ética bem reconhecível, estranha, ou antes con­trária, à natureza do fenômeno considerado: "Vários excessos foram cometidos em seu nome la Mimese na história literária].l ... ] Mas, bem conduzida no detalhe" de sua técnica, ampla e elevada em seu espírito, a imitação não desonra a literatura antiga" (p. 91). Avaliações que valem tanto para a fo1rma quanto para o fundo, e até o mínimo deta­lhe: "Lembremos simplesmente que Aristóteles escarnece do reflexo de Górgias, vítima de uma andorinha, reflexo de um pedante amante

4 Lucien écrivain, Paris, De Boccard, 1958, p. 26. Ver E. Stemplinger, Das Plagiat in der griechischen Literatur, LeipziglBerlim, 1912. Se subscrevo, portan­to, a tese segundo a qual "na verdade a originalidade e a imitação só são incom­patíveis para um espírito moderno" (Bompaire, p. 75) - embora logo a seguir eu tenha vontade de acrescentar que esse "espírito moderno" não teria com­preendido nada acerca de grande parte do Renascimento, do classicismo e da pró­pria modernidade -, acredito, por outro lado, que não é "falso" mas verdadei­ro, e em todo caso mais operatório, "pensar que essas duas imitações de origem oposta, filosófica para uma, sofística para a outra l ... ] se oponham por isso" (é a nota 7, p. 26, para a frase citada sobre "a imitação dos livros" e "a imitação do mundo"). Digamos que a loucura de D. Quixote seja o emblema "romanesco" dessa oposição.

5 Como a de Kerferd, para quem a sofística é uma maneira de dizer um pou­co melhor o mundo dos fenômenos.

Descompartimentar os gêneros 213

Page 109: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

~ I 'I

I.

de mitologia" (p. 47). Ora, aproveitar-se disso, quando se recebe um excremento de andorinha, para exclamar: "Que vergonha, ó Filome­la!",,6, só é pomposo ou "trágico" em nome da cisão entre poética e retórica. Do ponto de vista da retórica geral, da sofística, da literatu­ra, a diferença entre "a noite é a velhice do dia" e a figura exagerada de Górgias (não menos "exagerada" do que o camarão de Ponge) é absolutamente pertinente. Ela pode até mesmo simbolizar a oposição· entre mimesis da natureza, de ordem um, e mimesis da cultura, de ordem dois. Por um lado, a arte imita a natureza e a aperfeiçoa: com a Poética de Aristóteles, torna-se possível descrever a carniça7

• Por outro, trata-se "apenas" de logos, de mimesis de mimesis impregna­da de referência, sob o modo mais irônico do palimpsesto. De novo: ontologia e fenomenologia contra logologia.

O fato de que, com isso, se entre em "literatura" é também o sinal de que, de uma vez por todas, a filosofia platónico-aristotélica ganhou _ daí o caráter natural, convencionado, e portanto incontornável, do julgamento de Bompaire. Não se pode evitar a constatação imperio-sa: mesmo se a retórica e a sofística triunfam na cena do mundo, se­nhoras do ouvido dos jovens, dos príncipes e das multidões, é a filo­sofia que terá determinado a escolha do terreno - de seu terreno como literatura, não como filosofia, e mais precisamente como não-filoso­fia. Em conseqüência do gesto metafísico de Aristóteles, excluindo "aquele que fala pelo prazer de falar" da comunidade dos seres racio­nais, a literatura é, enquanto tal, projetada em um outro lugar. A filo­sofia pode tratar dela como um objeto e ditar regras estéticas; ela é, l.'

sem dúvida, obrigada também a se lembrar, pelo menos de tempos em tempos, para além das riquezas, dos riscos e das transformações dos regimes discursivos tentados por Platão, que ela mesma é um discur-so e a refletir sobre os estilos que lhe convêm. Mas um "escritor", por sua vez, não tem - como tal e filosoficamente - o direito de se crer

* Filomela, irmã de Procne e filha de Pândion, foi transformada pelos deu­

ses em andorinha. [N. da T.]

6 Retórica, m, 3, 1406 bI5·19.

7 Poética, 4,1448 b6-19, com o comentário, sempre pertinente, de Lallot e Dupont-Roc: "Seria equivocado ver aqui a origem de uma estética do sublime, que daria conta da rransmutação da feiúra em beleza pela alquimia da arte. A pers­pectiva de Aristóteles não é esrética (no sentido moderno da palavra), mas antes intelectual, cognitiva" (op. cit., p. 164).

214 o efeito sofístico

filósofo. E isso - regularmente mas não sem contestação, reboliço e exceção (evidentemente Nietzsche) - até os dias de hoje. O que ele sugere aqui é que um dos motivos, se não o motivo, dessa criação de distância é o de acabar de vez com a sofística. Nesse caso, é preciso, pelo menos, rever as condições da produção histórica do "face-a-face entre a literatura e a filosofia" que preocupa ativamente nossos con­temporâneos, e re-situar nesse passado ao menos um dos momentos de sua "partilha oficial" - após terem sido, e antes de serem de novo, como diz Hugo, "misturadas"s.

DE PSEUDOS A PLASMA

A decisão do sentido é interpretada, por um lado, como margi­nalização definitiva do sofista; por outro, como espaço da literatura. Um tal frente-verso pode ser enunciado de outra maneira: da primei­ra à segunda sofística, passa-se da acusação de pseudos à reivindica­ção de plasma.

A primeira sofística perdeu a guerra filosófica. Como se sabe, foi em nome da verdade que ela foi de início e sempre condenada: a prin­cipal acusação formulad",por Platão bem como por Aristóteles pode ser inscrita no termo pseu~os. Pseudos objetivo, o "falso": o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fe-

8 "Littérature et philosophie mêlées" é o título de uma coletânea de Victor Hugo, de 1834; ele é retomado, não apenas no subtítulo do número 21, citado, da revista Poétique, como também no primeiro capítulo do livro de Pierre Ma­cherey, A quoi pense la littérature? (Paris, P.U.F., 1990), de onde extraio as cita­ções (p. 10 e 9). Esse trabalho apaixonante busca configurar uma "filosofia lite­rária", diferenciando-se por um lado de uma <, filosofia da literatura" e, por ou­tro, da tese de uma literatura como "verdade da filosofia" escrita em suas mar­gens (e atribuída um pouco precipitadamente a Jacques Derrida, p. 7s.). A ter­ceira parte analisa Sade, Flaubert e Foucault como esboçando "os princípios de uma retórica valendo por uma análise geral do pensamento" (p. 14): é evidente­mente aí que encontraríamos a problemática da logologia e da ficcionalização sofísticas. Assim, a obra Les Journées, de Sade, é lida como uma "mimese inver­tida", tendo como sintoma a "ordem de sucessão, que faz passar o dizer antes do fazer" - "Como se o referente não passasse da sombra de sua própria ima­gem, da qual tira o direito de aceder à existência efetiva, nas condições muito particulares de uma passagem ao ato que parece engendrar a realidade a partir de sua ficção" (p. 149).

Descompartimentar os gêneros 215

Page 110: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I I

nômenos, as aparências. Pseudos subjetivo, a "mentira": ° sofista diz o falso na intenção de enganar, utilizando, para obter um êxito ren­tável, todos os recursos do lagos, simultaneamente lingüísticos (ho­monímia dos termos), lógicos (raciocínio falso, sofisma), e racionais propriamente ditos (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, toli­ce do outro).

Gostaria de retomar a crítica que Aristóteles constantemente faz a Górgias de ser por demais poeta para ser bom orador. Não se trata apenas da mistura dos estilos (por demais xenicon, por demais "es­trangeiro" para ser claro), mas da relação com o poiein, com a de­miurgia discursiva. A poesia é, de fato, o primeiro ponto de fricção' ou de junção entre pseudos e plasma. Em outras palavras, ela é cons­tituída por uma tensão entre filosofia e sofística 9. Seu lado filosófico é sua ligação com a verdade, verdade certamente não-científica, mas' inspirada e garantida pelas Musas. Esse entusiasmo, por sua vez, nada c

tem de demiúrgico; ele é, como se vê no Íon, obediente e limitado. O poeta que, segundo Aristóteles, representa as ações deve dar a essên­cia ou o universal das coisas de que fala e fazê-las passar à memória! "tais como nelas mesmas a eternidade as altera". A poesia é assim,: diz Aristóteles no capítulo 9 de sua Poética, "mais filosófica do que' a história". Se citei Mallarmé, é porque a relação poética com a ver­dade não me parece ter realmente sido modificada pela modernidade, não importando sob qual forma, quer romântica quer surrealista. Mallarmé é filosoficamente poeta quando opõe, na Crise de vers, à reportagem universal (o organon degradado) uma ontologia reencon­trada por detrás das aparências fenomênicas: dizer "idéia mesma e suave, a ausente de todo buquê" é ser, loucamente, platônico. "Poe­sia e verdade sendo, como sabemos, sinônimos" - como afirmou constantemente René Char.

Mas a poesia também é sofística. O pastor hesiódico disse isso desde o início, no prólogo da Teogonia, fazendo falar as Musas: "Sa­bemos dizer mentiras bem parecidas com realidades" (pseudea [ ... j etymoisin homoia, v. 27), mesmo se sabemos também, quando que­remos, "entoar verdades" (alethea gerysasthai, v. 28). É o próprio problema suscitado pelo "verossímil" aristotélico. Homero, diz Aris-

<j Aí se evidencia a distância entre interpretação heideggeriana da !ogologia, sua relação privilegiada com a Dichtung, c interpretação sofística ou logológica da logologia.

216 o efeito sofístico

tóteles (Poética, 24, 1460 aI8-20), acima de tudo "ensinou os outros a dizer mentiras como se deve" (pseude legein hos dei). Não as men­tiras necessárias para que aqueles que o ouvem se tornem melhores, purgados. Mas as mentiras necessárias para que acreditem neles. Ho­mero é o mestre do "paralogismo": sabe apresentar um fato ou um acontecimento que sabemos ser verdadeiro, para que dele conclua­mos a existência de um primeiro que seria causa e que, no entanto, nunca ocorreu (to proton pseudos, a23), ajudado nisso por um estilo que desvia a atenção das suas belezas próprias e encobre o absurdo por sua clareza e sua simplicidade. Essa é a maneira, fantástica, que Lewis Carroll ou Borges preconizam e praticam: implicar um peque­no fato verdadeiro e ter um estilo limpidamente mimético para des­crever o impossível. Homero sofista - vários textos deveriam ser re­lidos nessa perspectiva. Em todo caso, um deles nos força a isso: o Discurso XI, de Dion Crisóstomo, De Traia. que ela não foi tomada, em que ele remonta para logicamente de fato em fato até essa certeza que lhe vem, aliás, de fonte segura - do próprio Menelau - de que era Páris o esposo legítimo. Homero é o maior mentiroso do mundo, diz Díon, simplesmente porque não sabe levar suas mentiras até o fim. Pode-se saber, apenas pela sua leitura, quando narra e quando inven­ta. Com isso, foi muito vof..qntariamente que os gregos se deixaram enganar pela Ilíada e pela Odl~séia, porque a história os adulava e lhes era útil. Bem entendido, a verdade histórica restabeleci da por Díon é a mais descabelada das ficções, favorável a esses troianos que são, no final das contas, os ancestrais dos romanos. Assim como sua conver­são à filosofia, é provavelmente uma jogada de sofista. Mas que tem o extremo interesse de mostrar como poesia e sofística são indiscerní­veis quando se fica na posição aristotélica, que consente no verossí­mil ad majorem veritatis gloriam.

A retórica sofística pratica a lógica do verossímil, de Antifonte a Ésquines, que, como bom fundador da segunda sofística, faz a de­limitação dessa lógica para imputá-la ao inimigo: "Todos aqueles que são cheios de jactância, quando dizem o falso, procuram falar sem precisão e sem clareza, por medo de serem refutados. Mas Demós­tenes, quando rejacta, primeiramente jura que é verdade sua menti­ra, chamando para si a ruína; em segundo lugar, ousa citar a data do que sabe que nunca acontecerá e mencionar os nomes de pessoas que ele jamais viu, roubando vossa escuta e imitando aqueles que dizem a verdade. Eis por que mais uma vez merece o ódio: ele é mau e des-

Descompartimentar os gêneros 217

Page 111: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

trói os signos por meios dos quais os bons são reconhecidos"lO. É a essa demiurgia que se aplica o termo plasma: plasma é o nome logo­lógico do pseudos.

Uma das primeiras aparições de plasso com esse sentido deve ser encontrada ainda no Elogio de Helena. Logo antes da passagem acer­ca do tempo, Górgias evoca as artes gêmeas, ou duplas, da feitiçaria e da magia (goeteia kai mageia, 10), em que uma é "erros da alma" (psykhes hamartemata), a outra "ilusões da opinião" (doxes apate­mata), e que foram geralmente identificadas: uma, como poesia; a outra, como retórica. Ele evoca, então, todos os que persuadiram e persuadem "modelando", "plasmando", plasantes, um pseude logon. O verbo utilizado, plasso, formado a partir de uma raiz que significa precisamente "estender uma camada fina, revestir" (daí "gesso" [em francês, plátre], "emplastro"), "fornece" - como diz, de modo ex­cessivamente soberano, Chantraine - "o vocabulário específico do trabalho da argila e da modelagem, donde os empregos relativos à cria­ção e à imaginação com todas as suas nuances: criação literária, cria­ção do homem por Deus, a mentira etc. " Ele serve, especialmente, para descrever a atividade de Prometeu, "que, segundo se diz, nos mode­lou, bem como aos outros seres vivos" 11 , e a de Hefaístos, que, exa­tamente para vingar Zeus da hybris e dos engodos prometéicos (ban­quete de tolos ou roubo do fogo), modela a terra encharcada de água à semelhança de uma virgem plena de respeito 12; mas no belo seio de Pandora, Hermes "prepara palavras enganadoras e astuciosas, com um caráter traiçoeiro,,13, para que a mulher - em outras palavras, o jar­ro de argila e seus "lábios" - deixe nos homens as preocupações fu­nestas e que assim a modelagem encontre, de uma vez por todas, o paradigma de sua duplicidade.

Um fragmento de Górgias pode ajudar a compreender o reinves­timento dessa duplicidade e a medir a distância que separa o pseudos inteiramente negativo que a filosofia imputa à sofística desse pseudos que é o produto da atividade plástica: a ficção. Jogar esse "jogo" tão demiúrgico quanto o da criança heraclitiana (o paignion que é o Elo-

218

10 Contre Ctésiphon, 99.

11 Por exemplo Filêmon, 89, 1, citado em L.S.j. ad loCo

12 Os trabalhos e os dias, 70s.: EX YCtl'l')Ç nÀáO"O"€ [ ... ] nap,'}€vl2 cú.50(ll '("x€Ào"V.

\3 tJI€Úóéa ,'}'CÚ,l.luÀfoUÇ' "t€ ÀÓyoUÇ' xal brexÀono"V ~,'}oç (78).

o efeito sofístico

gio para seu autor, § 21) não é nem insolência nem ingenuidade, ta­garelice ou imaturidade, mas sabedoria e justiça: "Aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido, mais sábio que aquele que não é iludido"14 (82 B 23 D.K.). "Aquele que ilude é mais justo", acrescenta ele, "porque realiza o que prometeu, e o que é iludido, mais sábio, pois ser facilmente arrebatado pelo pra­zer dos discursos é não ser privado de sensibilidade (anaistheton)". Esse fragmento nos é transmitido por Plutarco como aplicável à tragédia. Justiça, fundamento da cidade, sabedoria, fundamento da paideia, na relação de ambas com a tragédia. Imbricação entre literatura, peda­gogia e política: eis a que o plasma conduz. O efeito-mundo se pro­duz em dois níveis: o da fabricação do mundo humano do consenso que constitui a cidade, cultura por oposição à natureza; o da ficção literária, do patrimônio que constitui a identidade de um povo, cul­tura por oposição à incultura; com, certamente, para servir de ponte entre os dois, a paideia, instrução do filho do homem e educação do pequeno grego. É assim que a demiurgia do Iogas demarca simulta­neamente o espaço das duas sofísticas.

É preciso insistir pela última vez na mudança de horizonte que a consideração da sofística como crítica da ontologia produz. Compa­remos. Reardon é um dos raros, talvez mesmo o único, a levar em con­sideração ao mesmo tempo, em sua obra mais recente, The Form of Greek Romance15, a relação entre sofística e ficção, por um lado, primeira e segunda sofísticas, por outro. Quando ele comenta esse último fragmento de Górgias, assinala assim, além da "função social da literatura", a maneira pela qual "a questão da persuasão - per­suadir um auditório de que o que não é verdadeiro é verdadeiro -le­va claramente à ficção - dizer o que não é verdadeiro". A idéia de ficção, acrescenta ele, é "uma idéia sofisticada"; "A ficção se situa em algum lugar entre as idéias de verdadeiro e de falso, entre fato e não­fato". No entanto, a sofisticação não diz respeito "à natureza da fic­ção; ela remete ao fato de reconhecer a natureza da ficção". Vem em seguida, antes da menção às "civilizações primitivas", a comparação com a criança: "Uma criança fabrica histórias. Elas não são nem ver-

14 82 B 23 D.K. (Plutareo, De Glor. Ath. 5, p. 348 el' [ ... 1 ~ ,·lma-nío-aç ol)cmó"t€poÇ" "tou ,I.lrl àncxnícj(("V"toÇ" xal Ó àna"tTl,'}€lÇ" O"ocpw"t€poÇ" "tOu ,I.l11 c.ma~€"V"toç .

15 Princeton University Press, 1991, capo 3, especialmente pp. 55-9.

Descompartimentar os gêneros 219

Page 112: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I dadeiras nem, salvo em um sentido superficial, falsas [ ... ]. No início, 'verdadeiro' e 'não-verdadeiro' não são de modo algum categorias em seu espírito. Em um dado momento, entretanto, ela tomará consciên­cia de que a ficção, mesmo se ela puder não ser repreensível, não é fato. Ê o momento em que sobrevém a sofisticação" (p. 57). Ao ficciona­lizar, o sofista é assim aquele que nos faz sair do paraíso da infância, com o reconhecimento, a tomada de consciência, da diferença entre verdadeiro e falso.

Retomemos a mesma coisa do nosso ponto de vista. Com a so­fística, a apate, a ilusão, se encontra relacionada não somente à justi­ça e à sabedoria, mas, de modo ainda mais radical, à aisthesis, a essa "sensibilidade" mesma que caracteriza nossa relação com o mundo. Apate é o nome da relação entre aquele que fala e aquele que ouve, implicando o reconhecimento do pseudos como plasma: é, muito ra­dicalmente, o sentimento de logologia. Uma observação como essa só ganha sentido no confronto com o uso ontológico da linguagem, im­plicado desde Aristóteles no que será a tradição fenomenológica. O campo de trabalho filosófico que se abre, então, é de algum modo complementar à decisão do sentido: não mais como coagir a uma auto-regulação da linguagem, mas como garantir que são o mundo, o real, os fenômenos, eles e nada além deles - qualquer que seja sua complexidade ou a complexidade de sua simplicidade - que passam nas palavras. Deve-se dessa vez reler, na trilha de Gama e do Sobre a interpretação, o Tratado da alma, pois aí se encontra tematizada e ur­dida a passagem das coisas às palavras, dos fenômenos ao Iogas, a alma funcionando como - para dizê-lo em uma imagem - hífen ou sutura entre "fenômeno" e "logia". É aí que se elabora o liame "mo­derno" entre o que se sente (o "objeto" da percepção: esse "branco" que existe propriamente) e o que se diz (o "sujeito" de nossas frases, que não é sentido como tal: "Diares" é branco). Com, como questão fenomenológica, a impossibilidade da apate que caracteriza a ime· dia tida de da acolhida estética bem como da acolhida noética: peri ho me endekhetai apathenai (De Anima, 11, 418a12), peri tauta ouk estin apathenai (Metafísica, 0,10,1051 b31), "a esse respeito, é im­possível estar na ilusão"16.

16 Essa aproximação é efetuada por Heidegger em Sein und Zeit, trad. Boehm e de Waelhens, Paris, Gallimard, 1964, p. 51 (= p. 33 da edição alemã); cf C.A. 21, § 11-14, pp. 127-95. Comecei a tematizar essa problemática em

220 o efeito sofístico

Essa escapada em direção a um programa por vir anuncia, à mi­nha maneira, que a relação entre fenomenologia e ficção é toda a ques­tão do romance.

"VOCÊ É UM PROMETEU EM PALAVRAS"

O homem não é, portanto, apenas moldado ou dotado por Pro­meteu, ele mesmo é prometéico na medida em que modela seus dis­cursos e "ficcionaliza". Mais do que qualquer outro do mesmo perío­do, um breve texto de Luciano faz eco ao plassein do Elogio e à fonte hesiódica, tematizando e praticando a plástica dos gêneros.

O título dado à obra é, por si só, direto: Para aquele que diz: "Você é um Prometeu em palavras"17, Luciano responde, alegrando­se com a repreensão bem como com o elogio. Consente, de fato, em ser peloplathos 18 , literalmente "modelador de lama", moldando essa "lama das encruzilhadas" (ho pelos hoios ek triodou, 1) que difere muito pouco do "lodo" (borboros - o mesmo que "borborigmo"): é que, de fato, como ele nos diz, "nossas palavras são frágeis como seus potes", basta uma pequena pedra, e "tudo fica em pedaços" (2).

Mas ele pergunta igualmente,2ara se consolar, "quais excessivas sabedoria e precaução (prometheia)" são encontradas em seus escri­tos: Luciano como Prometeu, porque ele cria o novo (to kainourgon touto epainon: «elogiando esse lado inovador"), "sem imitar em nada qualquer arquétipo", como Prometeu, o "arquiteto", que, "quando, até então, não havia homens, os concebeu e os modelou (anaplassen),

"Enquête sur le logos dans le Traité de l'âme", a ser publicado em Études sur le De Anima d'Aristote, organizado por G. Romeyer-Dherby.

17 Utilizo a edição M.D. Mac Leod, Luciani Opera, Oxford, Clarendon Press, 1987, t. IV (livro 71), pp. 85-9; encontrar~se-á uma edição do texto, com tradução inglesa, por K. Kilburn, Lucian, Londres/Cambridge, Loeb, 1968, t. VIII, pp. 18-427, esperando a tradução francesa que começa nas edições Belles Lerrres. Isolo, evidentemente de maneira arbitrária, esse texto de toda uma série de ecos nas obras de Luciano, por exemplo Zeuxis, Prometeu, A dupla acusação, o Philo· pseudeis, O mestre de retórica etc.

18 Não se poderia esquecer que Peloplatão, "Platão lamacento", é o apeli­do do sofista Alexandre (Filóstrato, V.S., lI, 5, 570).

Descom partimentar os gêneros 221

Page 113: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

formando e estruturando animais capazes de se movimentar bem e de ser graciosos de ver" (3).

Com a pequena diferença que Luciano reivindica ao mesmo tem­po como uma qualidade para sua obra o ser "apógono" e descender "de um plasma mais antigo" (arkaioteron ti tou plasmatos, 3): pois é um misto inteiramente novo e que na verdade não pode ser furtado de ninguém, mas de dois gêneros antigos, diálogo e comédia, de que não se pode saber se acumula as belezas ou se vira um monstro (5)19. É como um camelo inteiramente negro no Egito, um homem bicolor, metade negro e metade branco (4); ou, antes, é um "hipocentauro" (5), um andrógino, um "hipocampo" (7). Muito precisamente: é um "bode-cervo" (tragelaphos, 7). E Luciano conclui, mencionando a "desilusão" (exapaton, 7) que o auditório experimenta, na posição de Zeus, talvez descobrindo apenas ossos sob a gordura.

Não podemos deixar de narrar Luciano, de nos atermos a suas expressões, sem saber bem como fazer. Pois a invenção que está em toda parte funciona não apenas como uma hibridação dos gêneros, mas como uma plástica da relação entre literatura e filosofia: o que ele de­nomina, de um lado, "comédia", e, de outro, "diálogo", com o aval do velho Platã020 Ora, esse tipo de mistura, ligado a uma combina­ção do diálogo com um outro elemento, está bem próximo do que fre­qüentemente se assinala como origem do romance. Antes de qualquer tese considerada ~'séria" sobre essa origem, teremos mais magnifi­camente Nietzsche como epígrafe: "O diálogo platônico foi como o esquife [ouço aí o skedia e o skediazein] sobre o qual a antiga poesia naufragada se salvou com todos os seus filhos. Apertados em um es­paço estreito, ansiosamente submetidos ao único piloto Sócrates, eles

19 O fato de que o plassein seja capaz de engendrar monstros já pode ser lido no célebre texto da República, IX, 588 c-e, em que o monstro três em um é o homem: "Modela (plasse), portanto, uma idéia de monstro complexa e policéfala", em seguida a de um leão, depois a de um homem, e "modela em torno delas (peri­plason) a imagem exterior de uma unidade, a de um homem", de modo que aque­le que não veja o interior creia ver um animal único: um homem ...

20 Para apreciar o "diálogo" em Luciano, sua relação com o modelo socráti­co, com Menipo, com o mimo, é necessário remeter a La Double accusation (33-34), bem como ao capítulo de Bompaire, "Le dialogue lucianesque. Contamination et transposition", Lucien écrivain, cit., pp. 549-85. Para comparar os diferentes modelos de diálogos, dever-se-ia retomar o livro de Tasso, Discours sur le dialo­gue, trad. F. Vuillemier, prefácio de N. Ordine, Paris, Les Belles Lettres, 1993.

222 O efeito sofístico

singraram daí em diante para um mundo novo que nunca se cansa da visão fantástica de sua tripulação. Platão realmente deixou para a pos­teridade o modelo de um novo gênero literário, o romance, que deve ser definido como uma fábula de Esopo elevada à mais alta potência, na qual a poesia ocupa, em relação à filosofia dialética, o lugar que, durante numerosos séculos, foi o da filosofia face à teologia: o lugar de serva. Tal foi a nova situação da poesia, situação a que Platão a reduziu, sob a pressão do demônio Sócrates21 ." A filosofia como "ve· getação proliferante" e Sócrates, em sua versão de sofista-argumen­tador, como "herói de Eurípides": Platão-Sócrates (eis aí, evidentemen­te, para Nietzsche, apenas um de seus papéis e uma das combinatórias possíveis), face à tragédia, do lado da sofística e do romance. Gosta· ria de acrescentar a Nietzsche, após a leitura de Luciano, que a rela­ção de Platão com o romance faz sentido apenas por meio de retoma· da e de ironia: quando, por exemplo, o diálogo é "imitado" por Lu· ciano-Prometeu.

PLASMA, MYTHOS, HISTORIA; ARGUMENTUM, FABULA, HISTORIA

Será fácil verificar a importânci", terminológica de plasma para toda a segunda sofística. É a palavra ~sual para designar "o roteiro inventado de uma declamação sem situação histórica específica", ou essa própria declamação22; aliás, kakoplaston ("mal amarrado" tal-

21 La Naissance de la tragédie, § 14; cito a tradução de Cornélius Heim, Geneve, Gonthier (Médiations), 1962, p. 92s. Cf. Claude Imbert, "Le roman grec: du potreptique à l'éducation sentimentale", em Le Monde du roman grec, Paris (Presses de l'Ecole Normale Supérieure), 1992, pp. 321-38, aqui p. 336 (retoma­do em Phénoménologie et langues formulaires, Paris, P.V.F., 1992, p. 356). As primeiras linhas dos Progymnasmata de Hermógenes nos mostram que os mitos ou fábulas são, como um todo, chamados de "esópicos" porque Ésopo utilizou os mitos em seus diálogos: a tese nietzschiana faz, portanto, do romance, no final das contas, um misto de mito c de diálogo.

22 Cito a definição dada no índice dos termos técnicos de D.A. Russell, em Greek Declamation, Cambridge etc., CU.P, 1983, p. 140. Os quatro exercícios preparatórios descritos por Hermógenes - a fábula, a narrativa, a descrição e a etopéia - consistem na produção de uma "ficção": assim, na etopéia, "produzi­mos a ficção [plattomethaJ do ethos do locutor" (Aftônio 34.9 = 44.27 Spenge!; ver Patillon, op. cit., p. 301s.).

Descompartimentar os gêneros 223

Page 114: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

vez), assim como asystatos ("incoerente", "inconsistente"), qualifica os temas dos meletai anacrônicos ou sem plausibilidade - por exem­plo, se se propõe algo como: "Cléon viaja para a Sicília para ajudar Nícias" , quando Cléon, no momento da expedição, já está morto há um certo tempo. Trata-se precisamente da qualidade desse acréscimo à história que Filóstrato considera o próprio da segunda sofística23

Para medir sua invasiva importância, ler-se-á "Sofistópolis, ou o mun­do de Aristeus", em que Russell extravasa com certa facilidade sua própria virtude plasmática de misturar e remodelar como real o mun­do dos plasmas bem formados no qual se considera que viva, em to­tal esquizofrenia, o sofista modelo no Império roman024.

Para conceitualizar um pouco mais, é preciso examinar as elabo­rações diferenciais da noção de plasma em sua relação com a historia. A mais explícita se encontra em Sexto Empírico, que reproduz e reela­bora toda uma tradição de teor igualmente latino, dela se aproprian­do para seus fins céticos. Plasma é uma espécie do gênero dos histo­roumena, que talvez possa ser traduzido por "objetos de história", e se opõe, no interior desse gênero, a duas outras espécies: o mythos e a própria historia. As diferenças se exprimem em termos de relação com o verdadeiro, o falso, o verossímil, ligando-se aos dois sentidos de historia: a investigação do científico e a história que se conta25.

23 Ver supra, capítulo IV, "A segunda sofística: a história no lugar da filo­sofia" .

24 Op. cit., capo 2, pp. 21-39.

25 A "história" é, em Sexto, objeto de uma das críticas mais radicais que conheceu desde sua desvalorização aristotélica na Poética. Essa crítica (Adversus Mathematicos, I, 248-269) se inscreve em uma crítica da gramática, que, por sua vez, se inscreve em uma crítica mais geral das ciências e do ensino. É preciso criti­car inicialmente a gramática porque ela é a primeira ciência, a que se ocupa de nós desde o berço e serve de ponto de partida a toda a escolaridade, mas igualmente porque ela apregoa a pretensão dogmática por excelência, "fazendo a promessa das Sereias" que não apenas encantam mas pretendem ensinar ta onta, "os entes" (41-43). Mostrar·se-á que ela é anhypostaton, ou seja, não apenas "sem funda­mento", mas "sem existência", "sem consistência" (80,90 e.g.). O mesmo ocorre em relação a cada uma de suas partes inter-relacionadas: a parte "técnica", a que se ocupa propriamente da língua (97-247), a parte "especial", que faz a exegese e a crítica das obras (270-320), e, entre ambas, a parte "histórica", que trata dos personagens, dos lugares, das ficções e dos mitos (248-269).

Os considerandos dessa última condenação tomam a forma seguinte: a his­tória é uma parte da gramática e a gramática é uma tekhne (Sexto discute aqui

224 O efeito sofístico

Para mostrar que esses objetos de que trata a história não de­pendem de qualquer competência técnica ou científica, Sexto apela para as divisões tradicionais da história, o que constitui, aliás, o principal interesse do capítulo aos olhos dos comenta dores. Ele parte da divi­são por objetos (personagens, lugares, ficções e mitos, 92), transfor­mada e ampliada por Asclepíades em função do verdadeiro e do falso (252-253): o factual (he praktike), personagens, lugares-tempos e ações, é "verdadeiro; o genealógico, ficções e mitos (he peri plasma ta kai mythos), é "falso"26; enfim são "como verdadeiros" a comédia e as

apenas com a linha dura dos gramáticos, 254); ou, Sexto o demonstra, a história é atekhnon; portanto ou a história não faz parte da gramática (possibilidade evocada em 254), ou a gramática não é uma tekhne, ela é "sem consistência igualmente no que concerne à parte histórica" (269, conclusão). A demonstração da não-tecnici· dade da história, por sua vez, se faz em três tempos que se destacam e se superpõem parcialmente. É, antes de mais nada, o método da história que não é técnico, ou, se preferirmos, não há método que permita distinguir o que é histórico do que não é, diferentemente do que é são em medicina ou harmonioso em música (255-256): a historicidade não é dedutível. A única prática possível em história é uma repeti­ção acidental do particular ou do parcial: "é preciso re{lleter a todos aqueles que fizeram a narrativa parcial dos eventos; ora, proceder à repetição de tudo o que for parcial, remetendo àqueles que se situam no parcial, não tem nada de técni­co". A isso corresponderá o terceiro tempo da crítica, o que concerne ao "julga· menta" do próprio historiador, sua faculd\de de discriminar (he krisis, precisa­mente em 266), que tampouco poderia concernir a uma competência técnica: o gramático não possui qualquer critério para diferenciar, dentre as versões disso· nantes, a narrativa verdadeira da narrativa falsa, nem para descobrir o fato sob a narrativa. O segundo tempo (257-265) é o que implica propriamente a considera­ção do "plasma": trata-se dos próprios objetos de que se ocupa a história, na me­dida em que eles tampouco concernem a uma faculdade ou a um saber técnico.

26 Adota-se freqüentemente a correção de Mette, em 252, para deslocar as ficções de Asclepíades para o lado da comédia e dos mimos (àÀll-a-~ oe <TIrV TT€pt llÀ<ÍO"J.1a'tcx) o'ta. ... ), !,TIas é ainda mais legítimo manter a discordância com que J.lú,'touç; e 1TÀácrJ.l.cx'tcx são retomados como um todo por Sexto, em 266, sob a ru­brica comum de tP€uO~ XCXt à"úncxpKTcx. Sobre Asclepíades, remetemos especial­mente a Otmar Schissel von Fleschenberg, "Die Enteilung der IrrOPIA bei Askle· piades Myrleanos", Hermes, 48, 1913, pp. 623-9.

Para o conjunto das referências e dos problemas sugeridos nessa passagem, pode-se recorrer a R. Müller, "De historiae vocabulo atque notione", Mnémosyne n.S. 54, 1926, pp. 234-57; F.S. Walbank, "History and tragedy", Historia, 9, 1960, pp. 216-34; e sobretudo a H. Barwick, "Der Gliederung der Narratio in der rherorischen Theorie und ihre Bedeutung für die Geschichte des Antiken Romans", Hermes,.63, 1928, pp. 261-87.

Descompartimentar os gêneros 225

Page 115: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

'li

pantomimas. Ele propõe, então, por sua própria iniciativa (263-264),. um remanejamento da classificação, superponível à pedagogia latina: "O que concerne à história (ton historoumenon) é, por uma parte, his­tória (historia), por outra, mito (mythos) e, por uma terceira, ficção (plasma)". A história, no sentido estrito que se tornará o nosso, parte da história no sentido amplo, narra "coisas verdadeiras e que aconte­ceram (alethon tinon [ ... ] kai gegonoton ekthesis), por exemplo, que Alexandre morreu na Babilônia, envenenado por conspiradores". O mito narra "coisas que não aconteceram e que são falsas (pragmaton. ageneton kai pseudon)" - aranhas e serpentes saindo vivas do san­gue dos Titãs, Pégaso saltando da Górgona degolada e outras meta­morfoses: a dos companheiros de Diomedes, em gaivotas; a de Ulis­ses, em cavalo; a de Hécuba, em cão. Já a ficção narra "coisas que não aconteceram, mas que são narradas como as que aconteceram (prag­maton me gegomenon men homoios de tois gegomenois legomenon)"; e dá, então, como exemplo, "os casos cômicos (hai komikai hypothe­seis) e as pantomimas" .

Notemos imediatamente a grande diferença entre a nova divisão de Sexto e aquela, anterior, de Asclepíades: o plasma não está mais do lado do falso, como em Asclepíades, mas do lado do verossímil, do "como verdadeiro". Assim, ele não está mais ligado ao mito, mas à comédia e às pantomimas. Observemos também que o exemplo do "como verdadeiro", aliás tanto em um caso como no outro, talvez seja uma reminiscência da passagem da Poética, tão enigmática e textual­mente mal estabelecida, em que Aristóteles observa que "a arte que apenas utiliza a linguagem em prosa ou versos e que, neste último caso, pode combinar diferentes metros ou utilizar apenas um, até o presen­te não foi nomeada. Pois não possuímos um termo comum para de­signar simultaneamente as pantomimas de Sófron e de Xenarco, e os Diálogos socráticos,,27. É precisamente acerca desse anonymos que combina as pantomimas e os diálogos de Platão que freqüentemente se indagará, seguindo nisso mais uma vez a pista nietzschiana, se ele não indica o lugar do romance28 .

27 1,1457 a29ss., trad. Lallot-Dupont Roc (cf sua nota ad loc.).

2S Ver novamente, em último lugar, Claude 1mbert, "Le roman grec: du protreptique à l'éducation sentimentale", art. cit., p. 323s. (retomado em Phéno­ménologie et langues formulaires, op. cit., p. 333).

226 o efeito sofístico

A formulação própria de Sexto e sua caracterização do plasma são superponíveis às distinções encontradas tanto em Cícero quanto em Quintiliano. Em Cícero, de fato, já existe um gênero de narração, o único estranho aos processos29, que tem como dupla finalidade "agradar" (delectationis causa) e "oferecer um exercício útil para aprender a falar e a escrever (non inutili cum exercitatione dicitur et scribitur) " . Ele comporta duas partes: uma se refere "aos fatos" (in negotiis); a outra, "às pessoas" (in personis); e a que consiste em ex­por os fatos comporta, de novo, três partes: fabula, historia, argumen­tum - a "fábula", a "história" e o "argumento", ou, talvez mais elo­qüente, algo como o "roteiro,,30. Definições e exemplos são os mais próximos possíveis daqueles encontrados em Sexto: "A fábula é o que contém coisas que não são nem verdadeiras nem verossímeis (nec verae nec veri similes): 'Dragões gigantescos alados reunidos pelo jugo'. A história é uma coisa que se produziu (gesta res), anterior à nossa geração; por exemplo: 'Apius declarou guerra aos cartaginen­ses'. O roteiro é uma coisa fictícia, mas que poderia ter sido feita (ficta res quae tamen fi'era potuit); assim, em Terêncio: 'De fato, tão logo saído da infância. [ ... ]"'31.

Quando Quintiliano deseja, por sua\ez, caracterizar os exercí­cios pelos quais o retor deve começar, ele tràta das outras espécies de narração diferentes da narração judiciária, em termos muito próxi­mos: "A narração, com a exceção daquela utilizada nos processos, se divide, como aprendemos, em três espécies: a fábula (fabulam), encon­trada nas tragédias e nos poemas, que está distanciada não apenas da verdade, mas até mesmo da forma da verdade (non a veritate modo sed etiam a forma veritatis remota); o argumento (argumentum), fal-

29 A narração em geral é definida como rerum gestarum aut ut gestarum exposition, "o relato dos fatos históricos ou como históricos" (grifo meu, eviden­temente). Os dois outros gêneros são: 1) a narração da "própria causa e de todo o sistema de defesa"; 2) a narração de uma "digressão" (pomo de acusação, com­paração, coisa agradável, amplificação).

30 Bornecque: "narrativa fabulosa, histórica, dramática". Mas "roteiro" é a interessame tradução que]. Cousin propõe para argumentum em Quintiliano, 11, IV, 2.

31 O exemplo de fabula é tirado de Pacuvius, Medéia, 397; o da historia vem de Ênio (Annalium frg., 223 Vahlen); o de argumentum, de Terêncio, An­driana,51.

Descompartimentar os gêneros 227

Page 116: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

50 mas semelhante ao verdadeiro, que as comédias configuram (quod falsum sed vero simile comoediae fingunt - ressaltemos a dupla tra­dução, de plasma por argumentum e de plassein por fingere); a histó­ria (historiam), que contém a exposição de uma coisa que se produ­ziu (in quq est gestae rei expositio). Deixamos para os gramáticos as narrações poéticas32; que se comece no retor pela narração histórica, tanto mais forte quanto for mais verdadeira (historica, tanto robustior

quanto verior) " . Pode-se fixar a tripartição no quadro seguinte, que, partindo do

grego de Sexto, inverterá a ordem cronológica:

ton historoumenon (Sexto)

narrationum in negotiis partes (Cícero)

historia (S.)

historia (C./Q.)

coisas verdadeiras

e que aconteceram

(genomena, gesta)

mythos (S.)

fabula (C./Q.)

coisas que não aconteceram e que

são falsas (S.) nem

verdadeiras nem

verossímeis (C.lQ.)

= tragédias, poemas,

parte histórica da

gramática (Q./S.)

plasma (S.)

argumentum (C./Q.)

coisas que não aconteceram, mas que

são ditas como as

que aconteceram

(homoios legomenon, S.)

coisas fictícias, mas

que poderiam ter sido

feitas (ficta ... fieri, c.)

coisas falsas mas

verossímeis

(falsum ... fingunt, Q.)

= comédias e pantomimas

(S.), comédias (Q.)

n O trabalho do gramático é descrito no livro I, VIII, 18-21: seu enarratio historiarum não deve nem mesmo conduzi-lo a uma crítica dos fabulae, que, por ausência de critérios, só poderia ser, finalmente, uma perda de tempo: "pois não se pode encontrar pessoas que nunca existiram ... Assim eu contaria dentre as qua­lidades de um mestre de gramática a de ter certas ignorâncias".

228 O efeito sofístico

o PLASMA:

UMA BOA NARRATIVA OU MÁ HIST6RIA?

As grandes transformações se medem aqui, como ocorre freqüen­temente, pela escala da Poética de Aristóteles.

Com a elaboração da noção de plasma, ausente da Poética que possuímos33, produz-se uma cisão entre poesia trágica e comédia. A tragédia é projetada do lado do mythos, que muda, se não de sentido, pelo menos de valor. De fato, na Poética, o "mito" designa o argu­mento ou o roteiro das comédias e das tragédias, ou, para retomar a tradução de Paul Ricoeur, a intriga34 Em função da problemática mimética, ele é imediata e constantemente, isto é, até o paradoxo, re­lacionado ao "verossímil" (eikos). A única diferença entre tragédia e comédia, desse ponto de vista35, é que a primeira se refere freqüen-

33 Encontra-se apenas, sem contar os usos correntes, o verbo plassein no li­vro III da Retórica (2, 1404 b19; 8, 1408 b22) para de~ar, de maneira quase terminológica, o estilo de uma prosa demasiadamente ornarnfntada ou demasia­damente métrica, opondo-se a um estilo "natural" e não permitindo persuadir­a ser aproximado, evidentemente, da crítica de Aristóteles ao estilo de GÓrgias.

34 Lallot e Dupont-Roc se atêm à tradução constante, que soa evidentemen­te bem aos nossos ouvidos, como "história", traduzindo historia por "crônica". Prefiro manter a equivalência "história"/ historia, autorizada pelo duplo jogo em francês assim como em grego (a confrontar, precisamente acerca desse ponto, com a nota 1, p. 69, do t. I de Temps et récit, Paris, Seuil, Points, 1983). Toda a pro­blemática que esboço aqui se situa no campo delimitado pelo livro incontornável que é Temps et récit (lembremos o título de cada volume: 1° "O enredo e a narra­tiva histórica"; 2° "A configuração na narrativa de ficção"; 3° "O tempo narra­do"). Se não efetuo nenhuma outra confrontação direta além desta nota, é por­que os mesmos objetos não são evidentemente tratados segundo a mesma finali­dade demonstrativa: não é o tempo humano que me interessa como denominador comum das práticas da narrativa, e (ou seria melhor dizer "porque") a perspec­tiva hermenêutica não opera, para mim, em última instância, um retorno à ontologia e, pelo mesmo motivo, à ética, via a Mimesis UI. Precisemos, com o auxílio de seu Prefácio, o sentido das intenções de Ricoeur: assim como se trata, no nível da me­táfora, de fazer do "ver como" um '''ser como' no nível ontológico mais radical" (p. 12), trata-se, no nível da ficção, de fazer valer "a função referencial do enre­do" (ibid.) e, indissoluvelmente, de "reconstruir o conjunto das operações por meio das quais uma obra se alça sobre o fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada por um autor a um leitor que a recebe e assim muda seu agir" (p. 106s.).

35 Desse ponto de vista apenas, pois sabe-se que a Poética examina, além disso, três critérios de diferenciação entre os diferentes gêneros de mimesis: os

Descompartimentar os gêneros 229

Page 117: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

temente a nomes "que existiram" (ton genomenon onomaton, 9, 14S1 b1S), ao passo que a segunda dá como "suporte" à sua narrativa (é a "hipótese" ou o caso: hypotitheasin, 1451 b13s.) nomes "tomados ao caso"; mas isso só fortalece ainda mais o liame entre tragédia e veros­similhança, pois, conforme diz Aristóteles, tomando-o como algo evi­dente, o que ocorreu é "manifestamente" possível- compreendamos: ao dizer o que ocorreu, o poeta satisfaz à exigência primeira de dizer "não o que ocorreu, mas o que poderia ocorrer na ordem do verossÍ­mil ou do necessário"]6 É, aliás, a razão pela qual a famosa Antéa de Agáton, sobre a qual só se sabe que "os fatos e os nomes (pragmata kai onomata) são igualmente fabricados", pode ser uma tragédia tão boa: como conclui Aristóteles, "mesmo supondo que ele componha um poema sobre eventos que realmente ocorreram (genomena), não deixa de ser poeta por causa disso; pois nada impede que certos acon­tecimentos reais sejam daqueles que poderiam ocorrer na ordem do ve­rossímil e do possível, mediante o que ele é o poeta disso,,3? No máxi­mo pode-se enfatizar que, nessa doutrina em que o verossímil e o con­vincente (pithanon) dominam com tanta força, subsiste uma espécie de ambigüidade no uso de mythos, que designa ora "as histórias tra­dicionais", o velho fundo mítico (ton paradedomenon mython, 1451 b23s.) em que bebem as tragédias, ora a "intriga" bem feita em que mesmo os acontecimentos, peripécias e efeitos teatrais, que se produ­zem "contra qualquer expectativa" (para ten doxan, 1452 a4), não são menos verossímeis: pois nas "intrigas mais belas" (kallious mythous, 1452 a10s.) - como já está implícito - "é verossímil que se produza o inverossímil" (eikos gar para to eikos ginesthai, 25,1461 b15).

Com a distinção entre plasma e mythos, ou argumentum e fabu­la, a tragédia, incluída na poesia para gramáticos, passa inteiramente

meios, os objetos, a maneira (capítulo 1). Comédia e tragédia, que alternam par­tes cantadas e partes ritmadas, diferem entretanto pelo ritmo e pelo metro (fim do capítulo 1); elas diferem de modo mais insistente quanto a seus objetos: phau­loi/spoudaioi (capítulo 5), homens menos bons/melhores que os de hoje (capítu­lo 2,1448 a16-18); elas têm, enfim, a mesma maneira de representar, colocando em cena personagens que fazem o drama (cap. 3).

36 Ou 'tO 'td rl VÓj..L€VCX ÀÉr€l v ... &1À' dtCX âv rivOl 'tO XCXt 'td ouvcx'td xcx'td 'to

€'LxOç fi 'to àVCXrxCXLOV, 1451 a36-38.

371451 b29-33, trad. Lallot-Dupont Roc; ver especialmente sua nota 4, p.

2265.

230 o efeito sofístico

para o lado do falso e do inverossímil: do "mítico", como para nós. A comédia, ao contrário, com as pantomimas que vão, sob o Impé­rio, destronar o trágico de toda sua indecência e sua causticidade po­lítica, se torna o exemplo privilegiado do fictício ou do falso verossí­mil, do dito "como" verdadeiro38

Com isso, já que a poesia se desdobra, a oposição maciça e ma­ciçamente aristotélica entre poesia e história se encontra fissurada. Relembremos o cânon: "A diferença entre o historiador e o poeta não está no fato de um se exprimir em verso e o outro em prosa (poder­se-ia colocar em verso a obra de Heródoto, não seria menos história em verso do que em prosa); mas a diferença é que um diz o que ocor­reu, o outro o que poderia ocorrer [ton men ta genomena legein, ton de hoia an genoito]; é por essa razão que a poesia,é mais filosófica e mais nobre [spoudaioteron, mais trágica portantof'do que a história:

,a poesia trata antes do geral e a história, do particular" (9, 1451 a39-,b7). Na nova tradição que se esboça, a poesia como trágica é absolu­tamente desqualificada: nem verdadeira nem verossímil, tão-somente boa para os gramáticos e não para os mestres de retórica. O plasma,

'em contrapartida, está em condições de se comparar à história. Mas não sem ambivalência. Pode-se dizer, ecoando Filóstrato, que o plasma perfaz a histó­

ria, fazendo-a efetivamente passar ao geral e elevando-a, com seu "co­mo se", ao nível de uma atividade prometéica: o verossímil é final­mente o verdadeiro acrescido da habilidade, esse deinotes que é a vir­tude mesma do orador e que se trata de exibir, por vezes ainda mais quando escondida39, na epideixis. Nesse sentido, o plasma é superior

38 Essa distância entre tragédia e comédia talvez já esteja inscrita na Poéti­ca: é de fato "de saída evidente" (ede f ... ] delon, 1451 bll - portanto mais e me­lhor do que para a tragédia) que a comédia se ocupa do geral, "do tipo de coisas que certo tipo de homens faz ou diz" (b8s.), dessas "hipóteses" cômicas que se confundem com os ideais-tipos (o rico, o pobre etc.) descritos por Filóstrato co­mo em continuidade com a história (V.S., 481, cf supra, capo IV, "A segunda so­fística: a história no lugar da filosofia).

39 Sobre a deinotes, ver Hermógenes, que se utiliza do preceito da dissimu/atio artis (que vai até Perelman, via o Paulhan de Fleurs de Tarbes) para desqualificar o estilo de Górgias ao mesmo tempo que o asianismo, De Ideis, 368-380 (cf Pa­tiUon, op. cit., pp. 270-8). Remeter-se~á, finalmente, a esse respeito à excelente análise de Laurent Pernot, op. cit., pp. 371-80.

Descompartimentar os gêneros 231

Page 118: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

! " ;,

à história assim como o era a poesia para Aristóteles, e pelo mesmo

tipo de razão. Só que a história, historiador após historiador, mudou de esta­

tuto. Ela se define atualmente pela equivalência ou a fusão entre ver­dadeiro e real, verdadeiro e efetivo (o "exato"). Toda filosofia e todo desvelamento tendo sido desqualificados pelo triunfo da retórica e da sofística, ela se encontra, no lugar da filosofia, como a única e a últi­ma mestra da verdade - tanto robustior quanto veriar. Lembremo­nos da analogia de proporção à qual Filóstrato nos conduziu: primei­ra sofística/filosofia = segunda sofística/história, ou historia est quae

philosophia fuit40 . O desprezo filosófico de Aristóteles pela história também se ex­

plicava na Poética como um julgamento anti-sofístico: ele só podia de facto colocar a história do lado da primeira sofística, já que ambas, tanto com Górgias quanto com seu aluno Tucídides, tratam de sin­gularidades e de logoi - acontecimentos reroricamente construídos, por oposição à filosofia e ao filosófico da poesia41

. Atualmente isso é substituído pelo desprezo do historiador pelo filósofo: é a filosofia, fi­gurando no pequeno equipamento do retor, que deve ser colocada do lado da segunda sofística e com ela condenada. De uma severidade a outra: nesse momento, o historiador está em condições de imputar à sofística, e com ela à filosofia, à retórica e ao romance, no mesmo saco, a acusação de pseudos: de "inexatidão,,42.

40 Supra, capo IV, "A segunda sofística: a história no lugar da filosofia" .

41 Sobre a relação entre singular sofístico e singular histórico, remeter-se-á ao livro de Emmanuel Terray, La Politique dans la caverne, Paris, Seuil, 1990, especialmente p. 51s. e capo 4. Esse livro, excelente em sua perspectivização, com a sofística, da medicina, da história e da tragédia euripideana, me parece, no en­tanto, não concludente e por vezes contraditório em suas teses gerais sobre a so­fística, ou seja, no caso, em suas interpretações de Platão. Ver também, para Tu· cídides e a sofística, as obras de J. de Romilly: Histoire et raison chez Thucydide, op. cit., e La Construction de la vérité chez Thucydide, Paris, Julliard, 1990.

42 Assim, o livro de A. Chassang, Histoire du roman et de ses rapports avec l'histoire dans I'Antiquité grecque et latine (Paris, Didier, segunda edição, 1862), é uma resposta à questão formulada por ocasião do concurso em 1859 pela Aca· demia: "Investigar quais puderam ter sido, na Antigüidade grega e latina, até o século V de nossa era, os diversos gêneros de narração fabulosa que hoje chama­mos de romance e se tal tipo de narrativa não foi por vezes, nos antigos, confun­dido com a história". Lê-se sem supresa, no final da Introdução, que: "O resul-

232 O efeito sofístico

OS DOIS SENTIDOS DA HISTÓRIA

Para compreender melhor esse duplo jogo com a (e da) história, que faz do plasma alternadamente uma boa narrativa e má história, é preciso partir do próprio nome, da maneira pela qual ele gera, em par­ticular, essa torção segundo a qual, em Sexto, historia, ao lado de mythos e de plasma, é uma espécie dos historoumena: para os latinos, devendo-se traduzir, como acabamos de constatar, ora como gênero, por "narração" e ora, como espécie, por "história",

A solapa cética de Sexto consiste em jogar com os dois sentidos ora para aumentar a distância, ora para fazê-los aqerir. É assim que .ele procede, por exemplo, para desqualificar os objetos da história como não concernindo a um saber técnico. Com efeito, se se trata de fatos da história verdadeira, então não é necessário ser gramático para narrá-los: uma narrativa dessas, que tem a exatidão da crônica e da geografia, é para Sextus tão desprovida de utilidade quanto de tecni­cidade (257-259). Mas se os fatos já são narrativas, por definição

. parceladas e parciais (259-262), infinitos e cambiantes como o sensível heraclitiano, não poderiam concernir a qualquer saber técnico; mais radicalmente ainda, e falso sequitur quodlibet, com um ponto de par­tida falso, tudo é possível. "Assim, então, sobre um tema que começa ,pelo falso, inesgotável em sua multiplicidade, e que se transforma ao sabor de cada um, não poderia haver teoria técnica" - Sexto estru­tura em abismo a crítica aristotélica do kath'hekaston como objeto da história: a história trata das versões infinitamente singulares do infi­nitamente singular. A história, portanto, que não tem os meios de decidir nem sobre a verdade-realidade do fato, nem sobre a verdade­adequação da narrativa ao fato, nem sobre a verdade-correção da historicização das narrativas, é o modelo mesmo do balão dogmático que Sexto infla, em seguida desinfla: um dos interesses manifestos de uma crítica como essa é que ela faz funcionar, na amplitude da pala­vra historein, aquilo mesmo que coage, do ponto de vista moderno, a empregos quase homônimos e a valorizações contraditórias.

Observando que histor, "aquele que sabe", se relaciona a oida ("sei por ter ouvido", "ouvi dizer", como um juiz ou um cúmplice),

tado desse trabalho será o de distinguir, mais uma vez, na história, o verdadeiro do falso, e de recolocar no campo da ficção narrativas que nunca deveriam ter entrado no da ciência" (p. 12).

Descompartimentar os gêneros 233

Page 119: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

mais do que a idein ("sei por ter visto", como uma testemuuha), Ge­rald A. Press43 mostra que, desde o início, o sentido pregnante, bem legível em uma das primeiras ocorrências de histor (Ilíada, XVIII, 499-501, o escudo de Aquiles, em que se vai epi histori para resolver a dis­puta sobre o preço do sangue), é o da competência para escolher en­tre narrativas que entram em competição: saber de crítica e de arbi­tragem, que ele denomina "saber de ordem dois". É apenas em um segundo tempo, em torno do século V, que o sentido se inflete para "um saber de ordem um": a investigação direta. Assim, as Histórias de Heródoto expõem simultaneamente tanto a investigação quanto seus resultados. Enfim, em um terceiro tempo, o produto domina a atividade, e a historia se torna um gênero literário: com O período ro­mano e o ensino dos gramáticos e dos retores, trata-se da history as story, da história-narrativa.

Do ponto de vista dos Antigos, pode-se admitir que o sentido matricial de sabor crítico permita ligar suas duas expansões, história­narrativa e história-investigação, especialmente investigação sobre o passado. Disso é testemunha, por exemplo, segundo Press, o epigrama sobre a Eneida de Virgílio, preservado por Augusto, apesar de seu autor: "César, você vela pela historia latina" (Vida de Virgílio, Probus, 22-28, citado por Press, p. 68). Mas, para os Modernos, as duas ex­pansões são incompatíveis: associamos narrativa a ficção e falsidade, enquanto associamos passado com ciência da história, que diz os fa­tos ("tal como realmente aconteceram" é uma expressão que perdura até Ranke), mesmo sendo quase-acontecimentos imersos em longas durações, e o verdadeiro. Toda a questão hoje é, finalmente, a de sa­ber se historia, histoirelhistoires em francês, face a historylstory, ou mesmo à tríade Historiei Geschichte/ Erzãhlung, é uma catastrófica homonímia, ou um pros hen que faz pensar.

Sem dúvida, não se trata mais atualmente de se restringir à dico­tomia: ou ciência ou narrativa. O paredro contemporâneo é, sem dú­vida, no caso, R,oland Barthes, em seu artigo de 1967, "O discurso da ~a", que declara: "O discurso histórico é um discurso performa­tivo falsificado" ou "O fato tem apenas uma existência lingüística"44.

43 The Development of the Idea of History in Antiquity, Kingston e Mon­treal, Mc Gill-Queen's University Press, 1982. Retomo aqui um certo número de suas análises sem conservar sua finalidade de conjunto.

44 Republicado em Essais critiques IV. Le bruissement de la langue, Paris,

234 o efeito sofístico

Pode-se dizer que essa afirmação "narrativista", de um nietzschianis­mo extremo, é a mesma que ponderam e retrabalham, manipulando­a em um sentido ou em um outro, cada um dos protagonistas de hoje, de Paul Ricoeur - resumido por Hayden White: a narração histórica "performa os acontecimentos tanto quanto ela os constata" - a Paul Veyne: "A história é um romance verdadeiro"45.

Mas o que me parece mais notável é que, logo que esvaziamos assim, com conhecimento de causa, a dicotomia, voltamos às questões da segunda sofística. Como diz por exemplo Jacques Ranciere, no fi­nal de Les Mots de l'histoire: "O problema não é o de saber se o his­toriador deve ou não fazer literatura, mas qual ele faz,,46. O debate entre narratividade da história e objeto da história, relançado a pro­pósito do revisionismo, força a distinguir entre, de um lado, a ênfase na narratividade e, de outro lado, a escolha do tipo de narratividade afim47 A atualidade da problemática resumida ou conceitualizada por Sexto se evidencia quando se investiga a simetria das críticas. De Paul Ricoeur a Hayden White, que ele introduziu na França: "A tropologia

Seuil, 1984, pp. 153-66, aqui p. 164s. Essa última frase serve de epígrafe à cole­tânea de Hayden White, The Content of the Form, Baltimore/Londres, Johns Hop­kins University Press, 1987.

45 H. White, "Metaphysics of narrativity", artigo dedicado a Temps et Récit (I e 11), em The Content of the Form, op. cit., pp. 169-84, especialmente p. 178; P. Veyne, Comment on écrit l'histoire?, Paris, Seuil, 1971, p. 10.

46 Paris, Seuil, 1992, p. 203.

47 É o que toda a obra de Hayden White tenta explorar desde Metahistory (Balrimore/Londres, Johns Hopkins University Press, 1973), em que desenvolve, com a ajuda das categorias de Northop Frye, igualmente retomadas por Reardon ou Anderson, os gêneros literários que operam através do assim chamado "realis­mo" dos historiadores do século XIX: o realismo de Michelet como romance, o de Ranke como comédia, de T ocqueville como tragédia, ou de Burckhardt como sátira - mostrando também, além disso, como a recusa do realismo colocada em primeiro plano pelas filosofias da história é igualmente subsumível, cada vez, a um tipo de estilo, assim como Hegel, Marx e a metonímia, Nietzsche e a metáfora, Croce e a ironia, diferem de seus "antípodas", os historiadores realistas, pelo tom ou pela "ênfase" mais do que pelo conteúdo.

A virulência de Carlo Ginzburg contra Hayden White é desconstruída por Ranciere quando ele mostra como o discurso revi sionista se abriga tanto, senão totalmente, na pulsão erudita quanto na performance relativista: "O cerne da for­mulação revisionista em geral resume-se a uma simples fórmula: nada disso acon­teceu senão o que foi dito" (op. cit., p. 78).

Descompartimentar os gêneros 235

Page 120: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tende a apagar a fronteira entre ficção e história"48 De Hayden White a Paul Ricoeur, comentando o papel da deep temporality como refe­rência segunda: "Seria a ironia suprema se, em seus esforços para sal­var a reflexão histórica da ironia, Ricoeur fosse forçado a apagar a distinção entre mito e história sem a qual torna-se difícil imaginar a própria noção de ficção ,,49.

COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA VERDADEIRA?

Qual retórica para qual história: em todo caso, é exatamente essa a questão que Luciano elabora, instalado com uma soberba ironia na quase-homonímia, quando propõe simultaneamente Como escrever a história e a História verdadeira.

Como Isócrates e pelas mesmas razões, Luciano certamente teve sucesso como autor literário, mas, apesar disso, até recentemente, ele foi, de modo geral, objeto de um profundo desprezo por parte dos pro­fissionais da história bem como da filosofia. Luciano é o nome pró­prio de um episódio do conflito entre história, filosofia, retórica e li­teratura. Eis o que diz acerca disso um de nossos mais inteligentes his­toriadores50: "Aquilo que a filosofia não quis a retórica tomou para si. Um fato deve nos fazer refletir: a única obra que chegou até nós que se pretende um ensaio sistemático sobre história é um tratado de Luciano, "Como escrever a história?", escrito pouco depois de 156 d.C.51. Não é mais do que um amontoado de regras e de máximas, que eram há muito tempo lugares-comuns da educação retórica, uma obra superficial, um trabalho rudimentar fundamentalmente despro­vido de valor. Seu único interesse para nós: quinhentos anos após Aristóteles, Luciano ainda avaliava a história pela poesia".

Certamente Luciano não tem, à primeira vista, nada de original: ele se situa sob a proteção do exemplum tucididiano para tentar con-

4g Temps et récit, op. cit., JII, p. 279.

49 "Metaphysics of narrativity", art. cit., p. 179.

50 Moses Finley, Mythe, mémoire, histoire. Les usages du passé, trad. fr., Paris, 1981, p. 11.

S1 Sobre a datação atual, ver H. Homeyer, Lukian, Wie man Geschichte schreiben soll, Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1965.

236 . O efeito sofístico

tradizer a por demais conhecida condenação aristotélica, como fazem, de fato, desde então e durante muito tempo, todos os historiadores e todos os que refletiram sobre a história. Ele mede então, uma pela outra, as duas maneiras gregas possíveis de dizer o acontecimento e de fazer assim passar à posteridade o que acontece: o hino do poeta (sem Homero, não há cólera de Aquiles, e sem Píndaro, não há ven­cedor em Olímpia) e a investigação do historiador.

A maneira de jogar Tucídides contra Aristóteles o leva de início a desdobrar o lugar-comum fundador da história objetiva: a história, diferentemente da poesia, trata dos fatos e não os fabrica. "A história não admite a mentira (pseudos), mesmo a mais leve, do mesmo modo que o canal nomeado traquéia-artéria pela faculdade não pode receber a bebida que nele é colocada" (7). E assim como a filosofia devia visar

,

à essência, a história deve ir ao essencial, jscolher os fatos, "ver a rosa em vez de considerar atentamente os espinhos situados no caule" (28). Narrador do que houve, imitador tão perfeito que se faz esquecer, o historiador - cujo julgamento deve ser um "espelho brilhante, sem má­cuIa e bem centralizado" (50) - se opõe totalmente ao poeta que, dife­rentemente de Tucídides, "tem o direito de derrubar, com um traço de pena, a fortaleza dos Epípolas"; em suma, quando os atenienses são vencidos em um combate naval, "não é ele que afunda as naus" (38).

Em uma dupla luta, subterrânea, contra o universal filosófico, e declarada, contra o prazer retórico, Luciano o historiador instaura a relação com uma verdade compreendida não como aletheia mas como akribeia, exatidão e conformidade aos fatos, e proscreve com­plementarmente a subjetividade forjada como efeito e invenção de autor, em proveito apenas da parresia, do falar livre (44): o historia­dor não é paietes dos fatos (poeta: aquele que os faz), mas menytes, aquele que os revela (38). Trata-se certamente de lugares-comuns, mas que, no final das contas, permanecerão solidamente como tais até, pelo menos, o final do século XIX. Além disso, é oportuno lembrar que menytikan é a palavra atribuída por Sexto a Górgias para defi­nir, em oposição à simples comemoração, a relação entre o discurso e o de fora 52. De tal modo que seria errado crer que, com esses luga­res-comuns, compreendemos tudo. Pois os fatos, conclui Luciano, são a matéria da história, assim como, para Fídias, o ouro, a prata, o mar­fim, servem para fabricar estátuas. Tucídides não é Homero (embora

52 Cf supra, capítulo I, "O discurso sofístico e seu efeito-mundo".

Descompartimentar os gêneros 237

Page 121: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Homero seja às vezes Tucídides, cf. 57), mas ele seria, portanto, Fí­dias. Se a análise aristotélica das quatro causas afIora, então restam três delas, e que só se referem ao historiador: sendo dada a causa material (os fatos), restam a final (a utilidade, a verdade), a eficiente (a tekhne do historiador: sua escolha dos fatos, sua elaboração da diegese, sua retórica sem retórica, que "deixa falar" os fatos), e a for­mal- sempre a mais difícil de identificar para nós, que estamos lon­ge de ser tão platônicos quanto Aristóteles: algo como sua idéia da história, seu projeto de historiador.

Constata-se que, nesse ponto, tudo se inverte muito facilmente: supondo que nada lhe aconteça, isto é, que ele não veja nada aconte­cer, o historiador ainda pode escrever, mas dessa vez em uma mise en abime irônica do próprio gesto do historiador, uma "história verda­deira". Na falta de causa material (nenhum fato), ele escreverá nada, ele escreverá. E reencontrará, reelaborando o velho paradoxo do men­tiroso, a relação com a verdade na própria reivindicação da ficção: "Como eu não tinha nada de verdadeiro para contar (pois nada me aconteceu que merecesse ser dito), voltei-me para a mentira, mas com sentimentos bem melhores do que os dos outros, pois há um ponto acer­ca do qual direi a verdade: eu minto" (H. V., 4). Como escrever a histó­ria deve ser lido com, na outra mão, A história verdadeira, Verae his­toriae, cujo título latino, que joga com a palavra história, nos faz por si só compreender que Luciano é efetivamente "a sophist's sophist", segundo as palavras de Graham Anderson53 . Com os mesmos meios paradoxais e chistosos que o humor judaico ("Você diz que vai à Cra­cóvia para que eu creia que você vá a Lemberg. Mas eu sei que você vai realmente à Cracóvia. Por que, então, mentir?,,54), a história ver­dadeira é um pseudos que se dá como pseudos: puro plasma. "Escre­vo, portanto, sobre coisas que não vi, que não me aconteceram e de que ninguém me falou, coisas que, além disso, não existem de modo algum e que nem mesmo podem começar a existir. Por isso é necessá­rio que aqueles que as leiam não lhes dêem o menor crédito" (4): nem autópsia, nem experiência, nem narrativa, de coisas nem reais, nem possíveis, nem verossímeis. Eis-nos levados, pois "cada elemento des-

53 Graham Anderson, "Lucian: a sophist's sophisr", Yale Classical Studies, 27 (1982), pp. 61-92. Ver também Lucian. Theme and variation in the Second Sophistic, Leiden, Brill, 1976.

S4 S. Freud, Le mot d'esprit et ses rapports avec l'inconscient, op. cit., p. 189.

238 o efeito sofístico

sas histórias cifra não sem paródia um ou outro dos antigos poetas, historiadores, filósofos" (2), ao mesmo tempo que faz alusão - se ouso dizer - aos romancistas do futuro - como Ulisses "que abriu o ca­minho a essas espécies de charlatanices" (3), mas também como Cira­no na lua e como Pinóquio na baleia -, ei-nos levados em uma nave­gação historikos, romanesca.

Insistir no discurso da história e em como escrevê-Ia já é jogar propositalmente com a amplitude do sentido de historia, investigação e narrativa, escrever a história e contar histórias. Assim como insistir na importância decisiva da escolha dos fatos (ver a própria rosa, sem nem se preocupar com os espinhos que cre~cem no caule, 28; "gerir a matéria", 50) é pôr O dedo na homonímia Fonstitutiva do factum: ele aconteceu e foi fabricado. Até chegar à req,mendação tão premente de ser um "espírito livre" (38), um "estrangeiro", "sem cidade", "au­tônomo" e "sem senhor" (41), que deixa transparecer sob a sólida im­parcialidade do historiador, para além mesmo do visitante sofístico, a errante e enigmática soberania do romancista. Esse tolo - esse so­fista - do Luciano consegue realizar a façanha de ser ao mesmo tem­po o campeão da história e o promotor daquilo que um Hayden White denomina de a meta-história?

A primeira sofística crítica da ontologia opunha ao dizer do ser seu estatuto de discurso, e suas próprias performances davam corpo ao político. É esse próprio deslocamento, da adequação à homonoia, que se repercute no deslocamento da oposição pertinente: a história no lugar da filosofia, face à segunda sofística. O pólo do verdadeiro não é mais representado pelos entes (anta), mas - e eis aí o efeito maciço da antiga sofística - por aquilo que advém, na medida em que se faz, em que se age, em que se produz, em que se utiliza: os gignome­na, os prattomena, os praxeis, os pragmata, os khremata. É assim que se passa, ao mesmo tempo, da sofística à literatura e da ontologia às ciências humanas.

ROMANCE E ELOGIO, OU DO ROMANCE COMO SOFÍSTICA

Com o deslocamento das oposições pertinentes, a demiurgia do lagos se estabiliza em ficção romanesca. Perry enfatiza isso vigorosa­mente, para responder à tese de Ludvikovsky segundo a qual "em sua

Descompartimentar os gêneros 239

Page 122: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

origem, o romance foi apenas uma doença da historiografia": o ro­mance só é pseudos do ponto de vista da historiografia; do ponto de vista do romance, ele é plasma55. É o que os primeiros romancistas dizem, à sua maneira, no momento de começar, como Caritão reto­mando o ritmo de Tucídides: "Eu, Caritão de Afrodísia, secretário do advogado Atenágoras, vou contar [ ... ]',56.

Não entrarei nas polêmicas que, através de Rohde, Perry, Rear­don, Hagg, Anderson57, visam atribuir ao romance uma origem cro-

55 Ben Edwin Perry, The Ancient Romances. A Literary-Historical Account af their Origins, Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1967, p. 39; ele cita, p. 37, o resumo francês de Jaroslav Ludvikovsky, Recky Roman Do­brodruzny (Les Romans d'aventure grecques), Praga, Filosofika Fakulta Univer­sity Karlova, 1925, p. 149.

56 Le Roman de Chairéas et Callirhoé, I, I, 1. Cf A.D. Papanikolaou, Cha­riton Studien, Gottingen, 1973, p. 16s. Ver também a aproximação operada por Reardon, F.G.R., p. 144s., entre duas indiscerníveis descrições de tempestade, uma de Aquiles Tácio (I1I, 2, 2) e a outra de Díon Cássio (68, 24).

57 A suma de Erwin Rhode, Der Griechische Roman und seine Vorlaufer, terceira ed., com um Anhang de W. Schmid, Leipzig, Breitkopf und Hartel, 1914, republicado Darmstadt, 1960, com um Vorwort de K. Kerényi, permanece uma fonte de informações e de intuições, mesmo se a cronologia por ele proposta te­nha sido definitivamente alterada, especialmente quanto a Caritão, para "avan­çar" pelo menos três séculos (ver, a esse respeito, Reardon, CL., pp. 334-9, F.G.R., pp. 9-11, e, por último, P. Grimal, "Essai sur la formation du genre romanesque dans l'Antiquité", em Le monde du roman grec, cit., pp. 13-9). Após Perry, as duas grandes visões de conjunto se devem a Thomas Hagg, Narrative Technik in the Ancient Greek Romances, Srudies of Chariton, Xenophon Ephesius, and Achille Tatius, Estocolmo (Acta Instituti Atheniensis Regni Sueciae, 8", VIII), e, principal­mente, The Novel in Antiquity, Oxford/Berkeley/Los Angeles, 1983 (Uppsala, 1980), e a Graham Anderson, Ancient Fiction. The Novel in the Graeco-Roman World, Torowa, Barnes and Noble Books, 1984. Por fim, B.P. Reardon, além de Courants /ittéraires grecs, já citado (1971, referido como CL.) e alguns artigos, dentre os quais "The Second Sophistic and the Novel" (publicado em Approa­ches to the Second Sophistic, op. cit., 1974, referido como S.N.), acaba de publi­car um bom panorama dos problemas e das soluções: The Form of Greek Romance, op. cito (1991), que passarei a citar como F.G.R. Ver, na França, na mesma épo­ca, Aiain Billault, La Création romanesque de la littérature grecque à l'époque im­périale (Paris, 1991). Para visões parciais, porém estimulantes, remeto a Mikhail Bakhtin, Esthétique et théorie du roman, trad. francesa por D. Olivier, Paris, Gal­limard, 1978 (especialmente os dois primeiros capítulos do terceiro estudo); Sha­di Bartsch, Decoding the Ancient Novel: the Reader and the Role of Description in Heliodorus and Achiles Tatius, Princeton, Princeton University Press, 1989; e

240 o efeito sofístico

nológica e origens temáticas e estilísticas, epopéia, fábula esôpica, di­álogo platônico, prosas de Isócrates ou de Xenofonte, história dos historiadores, biografias, pantomimas e comédias, elegias eróticas ale­xandrinas, narrativas populares egípcias, até mesmo textos sumeria­nos, meletai retóricos, e até mesmo pot-pourri de dialexeis, sygkriseis, ekphraseis, epideixeis: tudo o que pode ser parte integrante, de uma maneira ou de outra e mesmo como "restos,,58, desse pseudo-gênero que não existe oficialmente em nenhum dos tratados estilísticos ou retóricos da época em que ele floresce, nem mesmo no Pseudo-Longi­no, que não tem nome, e no máximo apenas uma descrição com dois adjetivos, encontrável na Souda, erotikos e ~orikos59. Diante desse tipo de panorama, tem-se a escolha entre du~s ~tratégias reativas que têm, no final das contas, a mesma significação; aquela, liberal, de An­derson: "Basta dizer que é difícil isolar uma pretensão referente às origens do romance, emitida no século passado, que não se provou ser essencialmente correta em um sentido significativo"; e a de Perry, de um anticientismo mais ácido, para a qual vai minha preferência: "Se­guindo o mesmo método e a mesma lógica que faz o romance derivar dos exercícios escolares, pode-se fazer derivar a palavra 'smile' da pa­lavra 'mile'; a primeira contém todos os elementos da segunda, mais o os', que se pode explicar pela 'evolução'''60.

Em minha opinião, as únicas constatações que devem ser retidas são do âmbito da evidência. Primeira evidência: o romance é prosa. Isso basta para opô-lo a um certo número de paredros, como a Odis-

Massimo Fusillo, Naissance du roman, trad. francesa por M. Abrioux, Paris, Seuil, 1991.

58 É um termo de Brunetiere, em L'Evolution des Genres, Paris, 1898, co­mentado por Perey, op. cit., p. 333 (nota 8).

59 A combinação se encontra em Souda, s.v. Kadmos Arkhelaou Milesios (ÀOOL'J epwt'txw'J ncx{l-wv [ ... ] xcxL 'Arnxàç; \<ITOp(CXC;), cf Rhode, p. 373, nota 1, e p. 376, nota 1. Combinação comentada por Claude Imbert em "Stoic Logic and Alexandrian Poetics", Doubt and Dogmatism, Studies in Hellenistic Epistemology, ed. M. Schofield, M. Burnyeat,]. Barnes, Oxford, Clarendon Press, 1980, pp. 182-216 (aqui, p. 207); e em Phenoménologies et langues formulaires, op. cit., p. 330 (= p. 322 em Le monde du roman grec, cit.), que remete, igualmente, a Fócio (é, em todo caso, a tonalidade das errâncias do romance de Antoine Diogene, Les Merveilles d'au-delà de Thu/é, cuja resenha se encontra no cod. 166 (Bibliotheca, editado e traduzido por R. Henri, Paris, Les Belles Lettres, t. 11, 1960).

60 Anderson, op. cit., p. 217; Perry, op. cit., p. 20.

Descompartimentar os gêneros 241

Page 123: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

séia, as tragédias mesmo "inventadas" à maneira da Antéa, ou a nova comédia. Isso também é suficiente para ancorá-lo, não em um "gêne­ro" literário, mas, como diz Reardon acerca de Caritão, "no terreno da historiografia, da filosofia e da retórica, pois até então é a esse gê­nero de coisas que a prosa serviu"61.

Segunda evidência, que permite precisar de imediato a relação com a prosa. O romance, na condição de plasma, aparece de saída como uma espécie de prosa diferente da filosofia, definida por sua meta de verdade-aletheia, e como uma outra espécie de prosa, ou de histo­ria, diferente da história definida por sua meta de verdade-akribeia.

É apenas a partir dessas duas evidências - trata-se de prosa, tra­ta -se de plasma - que se pode enfocar a relação com Platão, que re­torna tão insistentemente, mas também por razões tão contraditó­rias. O romance não é, para retomar Nietzsche, a "nova situação", socrática, "da poesia", tornada serva da filosofia dialética, muito sim­plesmente porque o romance se define por não ser poesia, mesmo se, sobretudo se, Górgias reinventa a nudez da prosa em uma poesia sem metro. Ele não é tampouco, como querem Gill e Reardon62, o filho do Timeu e do mito da Atlântida, que seria "o primeiro fragmento de narração deliberadamente ficcional na literatura grega"; pois a "cumplicidade" entre Platão e seu leitor não basta para apagar a di­ferença entre mito e plasma. E seria, no mínimo, necessário compre­ender "mimeticamente", isto é, ironicamente, a distância entre a su­bordinação, e verdadeiramente de fato a servidão, do mito ao diálo­go na perspectiva filosófica de aletheia, e a exibição de uma meta educativa, protética, que perdurará como uma das assim chamadas funções romanescas63.

Já que o romance é diferente da filosofia e diferente da história, resta sua relação com o retórico e o sofístico. Resta, de maneira mais

61 F.C.R., p. 52; ver igualmente todo o capítulo 4, "The manner and me­dium of romance", que explora as relações entre prosa e romance, mas talvez sem indicar com suficiente firmeza as ambigüidades e os deslocamentos, de tal modo que se estabelece ainda uma "lista [ ... ] de elementos" (p. 96).

62 Christopher Gill, "Plato's Atlantis Srory and the Birth of Fiction", Phi­losophy and Literature, 3 (1979), pp. 64-78, nesse caso p. 76; comentado por Reardon, F.G.R., pp. 66·9.

63 "Du protreptique à l'éducation sentimentale" é um título de Claude Im­bert. Voltarei a isso a propósito de Dafnis e C/oé.

242 o efeito sofístico

exata, o liame com aquilo que, na retórica, é o mais propriamente sofístico: não o conselho ou o pleito, que visam por natureza a fazer com que se tomem decisões precisas e pontuais, mas esse quase-genêro que não cessa de inflar no mundo greco-romano: o epidítico. Laurent Pernot mostra como o epidítico é um "conceito à deriva", entre em­prego técnico (elogio e censura) e sentido amplo (os "diferentes gêne­ros literários em que o lagos parece empregado como veículo de di­vertimento")6\ ele liga justamente a Segunda Sofística ao desenvol· vimento do elogio na "nova ordem retórica ~ndial", remetendo, não apenas como Anderson, à "preocupação em e\"altar a identidade, o passado, a língua da Grécia" , mas, no registro que nos interessa aqui, à "vontade de ampliar ainda mais o campo da prosa em relação ao da poesia" (p. 113). Para desembocar no plasma romanesco, é preci­so, na verdade, lutar contra as duas características determinantes do elogio que Pernot esboça, cada uma em seu lugar: a distância entre elogio e verdade ("O afastamento, tão freqüentemente constatado, entre os modelos de excelência e a realidade dos objetos põe em ques­tão a veracidade do elogio, sua capacidade e até mesmo sua vontade de dar conta do real: dificuldade que é também suscitada pela beleza do estilo, pelo asianismo, pelas figuras", p. 479), e o caráter perfor­mativo do elogio ("Mesmo se falássemos para não dizer nada, dizer não é nada", p. 660)65. É nesse sentido que elogio e romance reme· tem a uma prática sofística do discurso.

64 Pemot, op. cit., p. 11, que se refere aqui à tese de T.e. Burgess, Epideic­tie Literature, Chicago, 1902, University of Chicago Studies in Classical Philo\o­gy, 3, 1902, pp. 87-262 (ê preciso, de fato, destacar nesse título a escolha do ter­mo literature e não rhetoric; cf. Pemot, p. 41).

65 O trabalho de Laurent Pemot, por sua inteligência, sua precisão e sua exaustividade, torna-se, a partir de agora, referência. A única distância que eu devo tomar é a de uma tese, precisamente, sobre a relação entre retórica, filosofia e sofística (e porque acabara de ser publicado, quando eu terminei esta obra, tenho de fazê-lo nesta nota). Pemot, de fato, escreve: "falar de conflito entre a Segunda Sofística e a filosofia e proclamar a vitória da sofística como se fez outrora é fal­sear a perspectiva [ ... 1. Os filósofos prosperam e vigiam, como sempre o fizeram, a arte dos retores. Quanto aos sofistas, todos eles integraram a filosofia à sua cul· tura l ... ]. Na maioria dos casos, trata-se apenas de uma cultura ou de um verniz filosófico. Os sofistas não são grandes metafísicos, e pode-se afirmar que a filoso­fia trouxe mais contribuições para a retórica do que a retórica para a filosofia. T aI é, portanto, precisamente nosso propósito: trata-se de reconhecer que a sofística não, se desenvolveu de forma isolada e que ela foi constantemente confrontada com a

Descompartimentar os gêneros 243

1

Page 124: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Agora torna-se mais fácil colocar em seu lugar os grandes tra­ços tradicionalmente assinalados, na esteira de Rohde, do parentes­co entre Segunda Sofística e romance. Tanto Perry quanto Reardon oscilam entre tomar as coisas pelo lado de fora, como se se tratasse de dois conjuntos heterogêneos entrando às vezes em superposição, ou pelo lado de dentro, como se se tratasse do desenvolvimento de um mesmo movimento, de uma mesma força. Os índices principais de urna proximidade são, em primeiro lugar, a contemporaneidade. É claro que romances foram escritos tanto antes (Quéreas e Calírroe, no início do primeiro século) como depois da Segunda Sofística, mas também este movimento é igualmente, seguindo-se Filóstrato, ante­rior e posterior a ele mesmo. Fala-se às vezes de "romances pré-so­físticos" (na ordem: Ninas, Petrônio, Caritão) e de romances "so­físticos" (Apuleio, Xenofonte de Éfeso, Aquiles Tácio, Longo - He­liodoro é mais tardio); mas é finalmente para dizer que sofistas são os romances de posse deles mesmos, que se escrevem, não ingenua­mente, como romances66 . Acontece o mesmo com a identidade das pessoas (Élio Aristides, Filóstrato e Luciano escrevem sem dificulda­de em todos os gêneros); com a interpenetração dos próprios gêne­ros: como observa Reardon, "se acreditarmos em Filóstrato, Apolô­nio foi um sofista consumado,,67. Finalmente, os meletai sofísticos e o romance parecem conhecer a mesma voga, junto ao mesmo públi­co, em uma coexistência intrigante do culto e do popular: Reardon evoca o pop e os drugstore paperbacks, que ele caracteriza com o ter­mo de sofisticação (S.N., p. 28), ou o cheap (cheap effeet with eheap

reflexão filosófica" (p. 498); e cita Alain Michel: "A retórica não basta a si mes­ma; ela só tem sentido na medida em que [ ... ] nós a interpretamos, buscando sua significação filosófica". Para mim, é evidente que a sofística não se desenvolveu isoladamente: ela é, pelo menos também, um "efeito" da filosofia; é, aliás, por isso que a sofística, senão os sofistas, é uma grande metafísica; por isso também o fato de que a vontade de ler, sob a retórica, a contribuição ou o espírito da filosofia se insere - e só existe assim - na grande tradição do platonismo. Devido a isso, levan­tar-se-á sempre, junto com a questão da relação com a verdade, a questão da "moralidade" do elogio -e da retórica -, oscilando entre o não (os elogios para­doxais, p. 522 e.g.) e o sim (o elogio "reconciliado" com a filosofia, p. 594 e.g.).

66 Ver Perry, por exemplo, pp. 109-24; ou Reardon, F.C.R., capo 5, e, so­bre tudo isso, S.N.

67 Reardon, eL., p. 267, nota 98.

244 o efeito sofístico

style, F. G.R., p. 53), e Perry fala com uma outra ênfase de "forma por excelência aberta para uma sociedade aberta" (p. 47).

Mas é necessário recuar bem mais no parentesco: desde que se tomem como ponto de partida as características do lagos sofístico, compreende-se mais fácil e adequadamente a força da ligação entre sofística e romance. De certo modo, Perry ou Reardon dizem isso, mas sem saber muito bem que o dizem. Assim, quando Perry tenta definir o indefinível romance, ele propõe, em uma definição por demais sin­crética para não ser éontraditória, o seguinte elemento, para ele um entre outros, mas para mim essencial: o romance é feito, segundo ele, "for its own sake as a story,,68. Proponho traduzir essa expressão por logou kharin. E Reardon, exortando a si mesmo, acerca de Élio Aris­tides, a não adormecer cedo demais, formula, por sua vez, que "é di­fícil, mas não vão, desembaraçar-se da noção de que a literatura deva dizer algo"69 - semainein ti. Um pseudos que se sabe pseudos e se dá como tal em uma apate li~te consentida, um discurso que renuncia a qualquer adequação ontológica para seguir sua demiurgia própria, logou kharin e não semainein ti, eis a "ficção" romanesca. Um funcionamento do lagos como esse inviabiliza realmente qualquer interpretação em termos de fenomenologia e de mimesis aristotélicas, physeos ou praxeos70 .

A EKPHRASIS EM VEZ DA METÁFORA

Gostaria de colocar o fio do não-mimético, ou da mimesis da cultura, à prova do que pode aparecer como um detalhe de estilo. Retomemos aquilo que denominamos de o "fenomenológico". O es­tilo da apodeixis, transido pela metáfora do visível e da luz, é inteira­mente sustentado pela exigência de "clareza" (to saphes). Embora a

68 Perry, p. 45.

69 Reardon, CL., p. 131.

70 Compreende-se que a aproximação com o que Northop Frye nomeia de "literatura" serve de conclusão para Reardon, F.c.R. (especialmente pp. 175-7), a ser resumida em três frases "fryeanas": "Pure literature, like pUfe marhematics, contains its own mcaning", "Literature, in short, is a language", "Romance risl a dialecr of the language of literature".

Descompartimentar os gêneros 245

Page 125: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

clareza seja constantemente ligada ao próprio, inclusive ao sentido próprio, há entretanto uma figura que lhe convém: a metáfora, figura de clareza por excelência, já que é capaz de produzir um suplemento de conhecimento colocando diante dos olhos.

O fato de que a clareza seja requerida pela apodeixis, compreen­dida tanto como demonstração científica quanto como prova retóri­ca, é um lugar-comum do aristotelismo, clareza que, inicialmente, não se adequa facilmente à figura. Assim, os Segundos Analíticos colocam em série as definições claras e os raciocínios concludentes: "Assim como, nas demonstrações, é necessário que haja raciocínios conclu­dentes, do mesmo modo, nas definições, é necessário que haja clare­za" (13, 97 b31s.). Ora, chega-se à clareza partindo de singulares, reagrupando-os em espécies e depois em gêneros, encontrando portan­to o comum, para chegar a um universal que não seja nem homôni­mo nem metafórico, mas, como indicam, por sua vez, os Tópicos7

\

kyrios, "propriamente dito". Nomes próprios, definições claras, silo­gismos concludentes: o discurso que ajuda o fenômeno a se revelar deve ser transparente. A clareza é de fato o estilo do logos na condição de fenomenológico, na condição de desaparecer diante desse fenômeno que ele faz ver. A apodeixis recai também, como já vimos, sob a juris­dição da retórica, como prova maior e parte essencial de qualquer ex­posição. O ponto de partida ainda é o mesmo: "[ ... 1 a excelência do estilo é a clareza. Eis um índice disso: se o discurso não mostrar, ele não fará seu trabalho"n. Mas já na Retórica bem como na Poética, há um "e": o estilo deve ser claro "e não banal", "não insípido" (me

tapeine). Ora, o que salva um estilo da insipidez são os tropas e, den­tre todos, a metáfora. O estilista está, assim, preso em um double-bind: é preciso que ele seja claro - sem metáfora -, mas sem banalidade _ com metáfora. Como se a demonstração se dividisse entre a clare­za pura mas insípida do conhecimento científico, e a clareza ornada mas contraditória da poesia e da retórica.

Mas descobre-se rapidamente que a clareza também é um atri­buto da metáfora. Pois a metáfora não é precisamente a homonímia: ela não produz confusão, mas ainda conhecimento.

71 Especialmente IV, 3, 123 a33 55., ou VI, 2, 139 b32 55.

72 Retórica, IIl, 2,1404 bl-3, que remete ao início do capítulo 22 da

Poética.

246 o efeito sofístico

Antes de tudo, a contradição do estilo excelente só se reporta à metáfora: "O claro, e o agradável, e o estranho, a metáfora os possui no mais alto grau, e não é possível receber a metáfora das mãos de um outro" (Retórica, m, 1405 a8-10). São assim as virtudes contraditó­rias da metáfora, "clara e", que constituem sua originalidade decisi­va, a própria marca do "estilo" de cada um, na medida em que o es­tilo é o homem. Em outros termos, é na metáfora, como original, que se conciliam os componentes contraditórios da clareza e do ornamento. Para melhor explicitar essa clareza original da metáfora, convém re­tomar a definição canônica dada pela Poética: "A metáfora é a apli­cação de um nome impróprio (onomatos allotriou epiphora), por des­locamento quer do gênero à espécie, quer da espécie ao gênero, ou da espécie à espécie, ou ainda segundo uma rel~ção de analogia" 73. Des­se ponto de vista, que não é o das Refutaç~ sofísticas, a metáfora não tira proveito do significante, como faz a homonímia, para em­baralhar as definições; ao contrário, ela tem uma estrutura regrada que depende estritamente da própria classificação epistemológica ou cien­tífica, e implica o conhecimento prévio, compartilhado pelo locutor e pelos ouvintes, das taxionomias definicionais. É apenas tendo como pano de fundo uma tal localização que ela pode "deslocar", "fazer deslizar", para melhor dar a perceber o que há de semelhante ou de "comum", como no próprio procedimento analítico; ela se aproveita das semelhanças já estabelecidas - gênero/espécie, espécie/gênero, espécie/espécie - para exibir novas relações de similitude, mais difí­ceis de serem percebidas: essa é exatamente a virtude das analogias, que são, entre todas as metáforas, "as mais reputadas" (Retórica, 1411 aIs). É por isso que ela pode chegar a inventar nomes quando eles não existem, quer transportando em um espaço vazio, "anônimo", nomes que ela tira de gêneros comuns e de espécies semelhantes (ibid., 1405 a34-37; cf Poética, 21, 1057 a25-33: "semeando a chama divina", ou "escudo, taça sem vinho"), quer por uma 'criação poética, uma ver­dadeira nomotese. A conclusão da Poética sobre a metáfora reúne to­

dos esses traços: "O que é mais importante de tudo é saber fazer me­táforas; pois apenas isso não pode ser tomado de um outro e é o sig­no de uma natureza bem dotada. Fazer bem as metáforas é ver o se­melhante" (22, 1059 a5-9).

73 21,1057 b6-9, tradução Lallot-Duponr Roe.

Descompartimentar os gêneros 247

Page 126: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o fato de que a "clareza" da metáfora se relaciona ao suplemento de conhecimento que ela produz torna-se ainda mais manifesto con­siderando-se ta as teia, "os ditos engenhosos". A seu propósito se efe-

, tua, em primeiro lugar, uma das retomadas mais marcantes das pri­meiras linhas da Metafísica: "Todos os homens desejam naturalmen­te saber. Um sinal disso é o prazer suscitado pelas sensações. Elas agra­dam por si só, a despeito da necessidade, sobretudo as que nos vêm dos olhos"/ "Aprender com facilidade causa naturalmente prazer em todos os homens; ora, as palavras significam algo, de forma que to­das as palavras que produzem um ensinamento para nós são as mais

, agradáveis"74, O eco se confirma quando se constata que o dito en-genhoso é, por assim dizer, o nec plus ultra da metáfora: é uma metá­fora por analogia, que tem, além disso, a virtude de "colocar diante dos olhos". Ora, prossegue a Retórica, "é a metáfora que produz me­lhor esse ensinamento; pois, quando se diz que a velhice é um caniço de palha, isso produz um ensinamento e um conhecimento por meio do gênero; pois ambos estão murchos" (1410 b14-16). E em todo o corpus, para nós tão pouco evidente, dessas metáforas por analogia que são os ditos engenhosos conservados por Aristóteles, é recorrente como um leitmotiv que elas são também pro ommaton, ou seja, como às vezes se traduz, que elas "criam um quadro".

Aristóteles precisa, no capítulo seguinte, o sentido dessa expres­,são: "Digo que as palavras colocam diante dos olhos as coisas cada vez que elas as significam em ato" (asa energounta semainei, 1411 b24s.). Os exemplos mais extremos são tirados de Homero, que diz em ato não apenas os seres animados, mas anima o próprio inanima­do: '''as vagas abauladas, cobertas de espuma, umas à frente, outras atrás' - essas palavras transformam tudo em movimento e em vida, e o movimento é o ato" (1412 a9s.). Já que a energeia, o "ato", é, como nos ensinam a Metafísica e a Física, o que há de mais ente para Aris­tóteles, ao mesmo tempo ser do ente e ente por excelência, o próprio Deus, é preciso convir que a metáfora, em sua melhor forma, faz ver as coisas em seu máximo de ser, faz com que se assemelhem ao que são. A metáfora pertence, assim, duplamente ao próprio estilo da feno­menologia: porque ela faz ver "como", em semelhanças mais longín­quas e mais imperceptíveis do que pode apreender a filosofia aquar-

74 Metafísica, a, 1, 980 al e Retórica, m, 10, 1410 bl0-12.

248 o efeito sofístico

telada na evidência da manifestação (1412 a11s.), e porque, fazendo isso, não menos que a filosofia e sem dúvida mais facilmente do que ela, faz ver as coisas em seu ser. Em suma, a metáfora produz mais senti9-Q, mais_senso comum e -tnais ciência. -~

.- Assim, é preciso não interpretar erroneamente a estranha obje­ção que Aristóteles, nesse mesmo livro IH da Retórica, faz ao estilo de Górgias: é, com efeito, na "frieza" das metáforas que reside seu prin­cipal defeito; "frio", psykhros, diz-se dos cadáveres: o estilo de Górgias é um estilo sem vida, a morte do estilo. É precisamente a "clareza" das metáforas que Górgias prejudica: "falta-lhes clareza quando elas vêm de muito longe" (asapheis de, an porrothen, 1406 b8s.); "coisas fres­cas e sangrentas", ou "semeaste na vergonha, colheste na infelicida­de" - eis o que é, como já vimos a propóillQ de filomela, dito "por demais poeticamente". Esse excesso metafórico equivale ao acúmulo de metáforas que a Poética designa pelo nome de "enigma": compor exclusivamente com metáforas permite dizer "coisas reais através de associações impossíveis", por exemplo, "vi um homem colar bronze sobre um homem por meio do fogo" para falar da colocação de uma ventosa 75. Assim, Górgias, o estrangeiro, vai procurar longe demais o que deveria trazer para bem perto e, praticando a metáfora pela metáfora, os tropos pelos tropos, e então finalmente o significante pelo significante, faz desaparecer, junto com a clareza, a percepção do pró­prio e do comum. Poder-se-ia retomar aqui a análise de Jacques Der­rida, em "La mythologie blanche": a metáfora "põe em risco a pleni­tude semântica à qual ela deveria pertencer. Mediante o momento de voltas e reviravoltas durante o qual o sentido pode parecer aventurar­se sozinho, desligado da própria coisa a que entretanto ele visa, da verdade que o adequa a seu referente, a metáfora abre assim a errância do semântico" 76, mas para marcar que é a sofística que constitui e que realiza, aos olhos da própria filosofia, esse risco da filosofia.

A clareza do estilo fenomenológico, que permite que se diga aquilo que se vê, acresce-se da clareza da metáfora, que torna visível o invi­sível. A isso se opõe o estilo logo lógico, no qual sempre se exagera. Com a primeira sofística, o acúmulo dos tropos remete ao uso das sonoridades; com a segunda, se desenvolve e se cristaliza uma espécie

75 Poética, 22, 1058 a25-30, e Retórica, m, 2, 1405 a34-1405 b5.

76 Marges de la philoso!Jhie, Paris, Minuir, 1975, p. 267.

Descompartimenrar os gêneros 249

Page 127: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

de figura, que me parece poder ser analisada como a antimetáfora por excelência: a ekphrasis.

Como a epideixis, o próprio termo ekphrasis conota uma exaus­tão, a insolência de um "até o extremo": é uma colocação em frases que esgota seu objeto e designa rerminologicamente as descrições, mi­nuciosas e completas, de coisas ou de pessoas (uma cidade, um atle­ta), figurando freqüentemente, por causa disso, como fragmentos nos elogios77, mas sobretudo, desde seu modelo e de modo paradigmáti­co, nas descrições de obras de arte.

A primeira - e, sem dúvida, a mais célebre - ekphrasis conhe­cida é, de fato, a que Homero faz, no final do canto XVIII da Ilíada, do escudo de Aquiles forjado por Hefesto. A arma foi fabricada a pe­dido de Tétis, não para permitir que seu filho resistisse à morte, mas para que "todos ficassem maravilhados" (466s.) quando o destino o alcançasse. É uma obra cosmo-política em que estão representados, não apenas Terra, Céu e Mar bordejados pelo rio Oceano, mas duas cidades nas minúcias de suas vidas: uma, em paz e a outra, em guer­ra. O poeta cego não omite nada do que o deus aí coloca, não omite absolutamente nada, e produz a primeira síntese do mundo dos mor­tais que seus poemas dizem78 .

Não apenas essa ekphrasis primeira é a descrição de um objeto fictício, como também ela é seguida por uma segunda ekphrasis, cujo modelo é, dessa vez, como em um remake, a primeira ekphrasis ela mesma: trata-se do escudo de Hércules, atribuído a Hesíodo. Esse palimpsesto não se conforma, então, a um fenômeno, a um escudo real, nem, menos ainda, à própria natureza e às cidades, mas apenas a um logos. Nesse objeto impregnado de cultura, perde-se, com a referên­cia natural, aquilo que Aristóteles teria denominado de vida da nar­rativa. Como observa Paul Mazon, com os julgamentos de valor es­perados: "Em tudo isso, nenhum gesto, portanto, que seja verdadei­ramente 'visto', que dê a sensação da vida. Tampouco nenhuma pala­vra na boca dos personagens que produza um som franco e claro: to-

77 Cf Pernot, op. cit., pp. 670-4.

iS Ver as observ~ções de J. Paim, em "Bemerkungen zur Ekphrasc in der griechischen Literarur", Kungliga-Humanistika Vetenskaps-Samfundet in Uppsa­la, Arshock 1965-1966, pp. 108-211, e as de J. Pigeaud, em "Le bouclier d' Achil­le", Revue des études grecques, 101, 1988, pp. 54-63.

250 o efeito sofístico

dos falam uma linguagem de pura convenção"79, Inclusive as próprias metáforas, que são mortas, já que, ao invés de as vagas se precipita­rem como guerreiros, são dessa vez os guerreiros que rolam como pedras (374-379). O ut pictura poesis da metáfora "como um quadro" toma assim um sentido completamente diferente: não se trata mais de imitar a pintura na medida em que ela procura colocar o objeto dian­te dos olhos - pintar o objeto -, mas de imitar a pintura como arte mim ética - pintar a pintura. Imitar a imitação, produzir um conhe­cimento, não do objeto, mas da ficção do objeto, da objetivação: a ekphrasis logológica é literatura 80.

OS EIKONES DE FILÓSTRATO: DA PALAVRA À PALAVRA

Com a Segunda Sofística, de fato, não somente as ekphraseis constituem parte integrante, codificada, do curso retórico, como tam­bém elas se multiplicam e se autonomizam a ponto de constituírem um gênero por si só: os Eikones, ou Imagines, de dois dos Filóstratos, as Descrições de Calístrates, sem falar dos Eikones, seguidos de um Hy­per ton eikonon, de Luciano, mais complexos, já que, como sempre, com ironia e à margem do gênero.

Com os xenia, por exemplo - essas críticas das naturezas-mor­tas que um anfitrião manda como presente a seus convidados, em que são representadas as iguarias que puderam degustar em sua casa -, é a três graus de distância, portanto, ao infinito, que é rechaçado o fe­nômeno, que se torna pretexto para a representação literária de uma

i9 Hesíodo, Paris, Les BeBes Lettres, 1967, nota p. 128. Mas Mazon ter­mina de modo mais ambíguo: "Em nove versos, tudo terminou: as marionetes foram para trás da cortina. Há aí uma desenvoltura que não deixa de ter sua gra­ça. Faltavam ao autor do Bouclier talento e originalidade: talvez não lhe faltasse humor".

80 É a isso que Bompaire é sensível, dessa vez sem ambigüidade, quando destaca a retomada, por Luciano, da ekphrasis do escudo de Aquiles em Icaro­menipo (16): "Para Luciano, o mundo é como a imagem de um baixo relevo la­vrado e, mais ainda, imortalizado por um poeta: não se pode sonhar uma inver­são mais total e significativa das relações de realidade" (op. cit., p. 708; mas ver, em contrapartida, todo o último capítulo: "L'ecphrasis ou la synthêse de I'arr et de la littérature").

Descompartimentar os gêneros 251

Page 128: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

lil!

II

lil,

II Illi ,. ii

III !, I·

11!

representação pictural81 . O fenômeno nunca mais é dado à imedia­tidade da percepção; é, quando muito, reencontrado ou suposto ao final de um procedimento de ficção. Ao invés de o discurso se conformar a ele, é a partir dele que se deduzirá, finalmente, que ele foi, de fato, conforme ao discurso - hermenêutica do menytikon.

O conjunto dos Eikones de Filóstrato82 mereceria de fato ser solidamente reinterpretado desse ponto de vista. É por isso que a re­cente introdução, atribuível a François Lissarrague, que vem se acres­centar ao Prefácio de Pierre Hadot para apresentar a reedição da Ga­leria de quadros, me parece do maior interesse - não menos, aliás, que a tensão que reina entre essas duas maneiras de apresentação. Lissarrague faz, de início, muito simplesmente notar que a maior par­te dos estudos a ela dedicados através dos séculos (e é preciso incluir um Goethe dentre os comenta dores) gira em torno do caráter real ou fictício dessa galeria de quadros, em Nápoles, sob esse pórtico de quatro ou cinco andares, com vista para o mar Tirreno, "descrito" por Filós­trato em seu prólogo. De Caylus (1764) a Lehmann-Hartleben (1941), a polêmica foi intensa, estilhaçando em dissoi logoi as aproximações arqueológicas, pois quer isso se "assemelhe" ou não se "assemelhe" aos vestígios - e, aliás, de que época? -, pode-se concluir em um sentido ou no outro: a doxografia tornou a questão familiar para nós, não se deve tratar uma obra como um documentoS3. Para impedir tal

81 Ver M.E. Blanchard, "Problemes du texte et du tableau: les limites de l'imitation à l'époque hellénistique et sous l'Empire", em Le Plaisir de parler, op. cit., pp. 131-54, nesse caso, p. 133-41.

82 Não falo mais aqui a não ser dos Eikones, de Flavius Filóstrato, autor principalmente das Vidas dos sofistas e da Vida de Apolônio de Tiana, e não da série dos Eikones escritos por Filóstrato o Jovem, rivalizando com seu ancestral. Encontra-se uma cômoda edição dos dois juntos, bem como das Descrições, de Calímaco, em Loeb (Londres e Cambridge Mass., 1931), com uma tradução in­glesa, de Arthur Fairbanks, mas as remissões são feitos à edição Kayser (Leipzig, Teubner, 1870-1871). A edição de referência para nossos Eikones é agora a de E. Kalinka e O. Schonberger, Philostratos, Die Bilder, com tradução alemã e co­mentário, Munique (Tusculum-Bücherei, 1968). Enfim, a editora Les BeBes Let­tres acaba de republicar a tradução francesa de Auguste Bougot (Une galerie anti­que de soixante-quatre tableaux, Paris, 1881), revista e comentada por F. Lissar­rague, com o título de La Galerie de tableaux, Paris, 1991.

83 Ver a Introdução, pp. 2-7, a cujas notas remeto para as referências (p.

119s.).

252 o efeito sofístico

perigo, é preciso "voltar à situàção enunciativa e ao funcionamento retórico do texto" (Introdução, p. 5). Certo, mas com a condição de entender isso radicalmente. Não basta lembrar que se trata de uma "conferência mundana" de Filóstrato, repetindo aquela visita priva­da de que ele fala em seu prólogo, em que ele "interpretou os quadros" (hermeneuein tas graphas, 295 K 35), detendo-se diante de cada um para agradar o filho de seu anfitrião e seus amigos; pois não basta concluir daí que, com isso, "nessa segunda instância de enunciação, os quadros não estão mais presentes diante de nossos olhos". Eu di­ria, de modo muito mais radical, que pouco importa qual instância de enunciação seja explicitamente primeira ou'hipoteticamente segunda. De fato, os quadros nunca estão diante de nossos olhos nem diante dos olhos de qualquer tipo de auditório: diz-se que eles estão diante dos olhos; ou ainda: eles são colocados diante dos olhos. Mas, nesse caso, para retomar as palavras de Himérios, são os ouvidos que nos servem de 01hos84.

Com efeito, o que é "interpretar" um quadro? Filóstrato logo esclarece: é "fazer uma epideixis" (kai epideixin auta poiesometha, 295, 36-296,1). Ora, toda epideixis consiste em suscitar as "narrativas apro­priadas", em instaurar, por vezes com uma só palavra, o tecido das referências literárias. Isso é evidente desde as primeiras palavras do primeiro quadro - o Escamandro: "Você reconhece, meu filho, que * isso é de Homero (tauta Hamerou anta) [ ... ]? Reunamos o que pen­sar: você deve desviar os olhos dele, de modo a ver apenas aquilo de

'~. que o quadro parte85". "A imagem ausente", observa muito adequa­damente Lissarrague, "está situada entre dois textos, o poema de re­ferência e o discurso de Filóstrato" (p. 6). A imagem não tem de fato outra existência se não a de ser um geometral de textos, em que os textos vêm, entrecruzando-se uns com os outros, completar-se, dis­tender-se, perfazer-se, no interior de um espaço que não tem outra dimensão senão o tempo da cultura, e que apenas a "descrição" de

,Filóstrato figura em toda a sua unidade. Em suma, não há quadro sem ! ekphrasis, assim como não há sonho sem narrativa de sonho_ É por

84 Himérios, Discurso X, "Que os ouvidos vos sirvam de olhos", citado, por exemplo, por Baldwin, op. cit., 11, p. 18.

8S LUJ.1I3cj) ... wJ.1€'V ot'V o -rL 'VO€l, crU óe àTfó~À€\I)(rv cxl.rrw'V, ooo'V Ex€l 'VCX 'LÓ€l v &q>' :;'V ~ TjJ<X<P~ (I, 1, 1,296.5-9).

Descompartimentar os gêneros 253

Page 129: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

isso que, acreditando-se em Filóstrato, a ekphrasis é mesmo uma epi­deixis: é finalmente, sob o elogio do objeto, um elogio do lagos. Con­cluamos, quanto à existência da galeria napolitana, a pertinência abso­luta da edição de Blaise de Vigenêre: a partir de 1614, sua tradução foi acompanhada de gravuras de Antoine Carao, "que tentam recons­tituir, no estilo maneirista da escola de Fontainebleau, as Imagens tais como Filóstrato as descreve" (p. 6). Os quadros das ekphraseis são antifenômenos, não imitações da natureza, mas produções rei ventadas a partir da cultura: efeitos que só tiram sua enargeia, sua "vivacida­de", dos poderes do lagos.

É a partir dessa perspectiva que gostaria de retomar algumas confusões, que se devem, no fundo, à impertinência de certos alinha­mentos em série.

Em seu Prefácio, Pierre Hada! nota desde o início a pregnância de duas palavras - sophisma e apate -, que a versão publicada, aliás, traduz pelo mesmo termo: "artifício". Sophisma porque, como o Nar­ciso paradigmático da descrição 23, somos envolvidos "pelo artifício, pelo sophisma, da fonte e do quadro" (p. VIII), incapazes de distin­guir a realidade da ilusão86. Com efeito, que combinatória maxima­lista, em relação a Platão, é essa descrição da graphe de uma graphe: "A fonte pinta Narciso", começa Filóstrato, "e a pintura pinta simul­taneamente a fonte e Narciso"- e Filóstrato descreve a imagem que a pintura pinta da imagem de Narciso! Apate porque, assim como o próprio Filóstrato, diante dos Caçadores, acredita ver não persona­gens pintados, mas seres reais movimentando-se e amando; assim co­mo (mas ao inverso) esses pseudo-seres reais vêem seu companheiro, tal qual uma figura pintada, fixada em seu lançar de dardo vencedor do animal; finalmente, assim como a criança para quem Filóstrato des­creve o quadro permanece também prisioneira do "artifício do pintor e do torpor que ele engendra"87, por nossa vez, não sabemos nos de­fender melhor do artifício do narrador. "O discurso de Filóstrato", diz

86 O grego de Filóstrato diz ainda mais do que a tradução de Hadot: "tu não descobres o artifício dessa fonte" se diz "não refutas o sofisma", ou't€ 'tà Tftc; 1Tl)fiíç EÀ€-rx€LÇ crÓ<pLcrj.L<X, I, 23, 3 (327,4).

87 I, 28, 2 (333, 24s.), em seguida 7 (336, 7), depois 2 (333, 29) para a cita­ção: Tftc; cmáTT)Ç' xal 'tou €v au-rií ÜlTVOU. Encontra-se igualmente exapatesen na frase citada do Narciso.

254 O efeito sofístico

com muita pertinência Hadot, "acrescenta à ilusão de ver um quadro, a própria ilusão da supressão da ilusão, a impressão de participar de um evento que se desenrola efetivamente" (p. VIIIs.). Sophisma, apa­te: estamos mesmo em terreno sofístico.

Ora, justamente, essa percepção da sofisticação de Filóstrato deveria tornar mais do que difícil sua inscrição na "tradição estética" que passa por Aristóteles, Marco Aurélio e Platina, e que se baseia, muito provavelmente, em uma série de equívocos relacionados à no­ção de phantasia. Aproxima-se, com freqüência, como Hadot preci­samente, a ekphrasis dos figos rachados "que se entreabrem e dão passagem a uma espécie de mel" (1,31,1,339.1) à descrição que se encontra em Marco Aurélio: "Ou ainda os figos: quando estão bem maduros, eles se fendem" (Pensamentos, III, 2). Hadot desvela a "ra­zão filosófica" disso: "É, se se pode dizer, a arte da Natureza que dá sua beleza aos mais humildes e até mesmo mais assustadores objetos naturais [ ... ]. De fato, é o que está vivo, o que é natural, que é belo: 'Um homem feio, se ele está vivo, dirá Platina, não é mais belo que um homem, sem dúvida belo, mas representado em uma estátua?' [ ... ]. Finalmente, Filóstrato também se situa nessa tradição estética. Sem dúvida, o discurso do sofista parece querer, antes de tudo, valorizar a arte do pintor [ ... ]. Mas, como para Aristóteles, Marco Aurélio ou Platina, também para Filóstrato, essa arte do pintor finalmente se aproxima da arte da Natureza" (p. XIs.). Um alinhamento como esse tem como efeito - e é isso que me parece injustificável- apagar re­pentinamente toda a dimensão retórico-sofística da ekphrasis: é es­quecer que a natureza, assim como o quadro, como a arte do próprio pintor, não passa aqui de um efeito da descrição e todos os três retor­nam à arte do discurso de que Filóstrato é tanto melhor artífice na medida mesma em que não se percebe mais isso. De novo, a mimesis de natureza não se alinha à mimesis de cultura.

Entre duas traduções, é preciso aqui escolher, e o grego impõe a segunda: "Não amar a pintura é desprezar a própria realidade88, é desprezar esse gênero de mérito que encontramos nos poetas, pois a pintura~ como a poesia, se compraz em nos representar os traços e as

gg A tradução Bougot revista diz, para essa primeira frase do Prólogo (1, 294, 1-5): "desprezar a verdade"; a tradução mantida por Hadot (p. XIII) prefere: "des­prezar a realidade". É ela que reproduzo nessa primeira frase. Eis o grego: "Oo-rLC; .J.1.n Ctemá'{€'taL nl'V '{wTpacpLa'V b&X€L nl'V Ctldi~€La'V, MLX€L xaL <TcxpLa'V, bnÓ<nl

Descompartimentar os gêneros 255

Page 130: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ações dos heróis; é também não ter qualquer estima pela ciência das proporções, por meio da qual a arte se associa ao uso mesmo da ra­zão"/ "Não amar a pintura é causar dano à verdade, causar dano tam­bém a todo esse saber encontrado nos poetas (pois igual é a contri­buição tanto de uns quanto de outros no que concerne aos atos e ao aspecto dos heróis), é também não louvar a comensurabilidade por meio da qual a arte se prende ao discurso". Catherine Ruiz comenta acertadamente: "Ao passo que a primeira tradução desse prólogo es­tabelece um paralelo entre as artes narrativas da palavra e da pintura em relação ao real, a fim de valorizar a pintura, é a pintura que, como arte narrativa, se associa à fala [ ... ] na segunda versão". A arte do pin­tor é "comensurável" ao discurso e, com o discurso, não há mais ves­tígio de "representação". Só o lagos fornece a "medida" da tekhne: é assim que ele vence tanto a pintura quanto a natureza.

o PRÓLOGO DE DAFNIS E CLOÉ

A fortuna da ekphrasis está relacionada à do romance: pode-se dizer que o estilo da ficção é obnubilado pela ekphrasis, exatamente como o estilo da fenomenologia o é pela metáfora.

Não apenas os romances estão cheios de ekphraseis, mas, de mo­do mais determinante, é freqüentemente uma ekphrasis que estrutu­ra, no todo ou em parte, o próprio romance. Assim, nas Aventuras de Leucipo e C/itofonte, de Aquiles Tácio, nas primeiras linhas do livro primeiro, o narrador, que acaba de escapar de uma tempestade, olha os ex-voto e se detém diante de um quadro suspenso, o rapto de Eu­ropa, que contém a matriz da narrativa das Aventuras de Leucipo e Clitofonte, narrativa durante a qual ("a rase is a rose is a rase:") se vê o principal protagonista oferecer o quadr089.

~ç' nOL rrrciç i'í)(€L - <popci rcip '(0"1"] áJ.1<pOl v ~ç 'tci 'twv 'Í"]pwwv €pra xal €'(b1"] -

'guJ.1J.1€'tpCav 't€ OU)( braL V€l, bl' 11V xaL Àórou 'Í"] 'tÉxv1"] ex-JT't€'taL. Sigo, para essas observações sobre as traduções do prólogo, uma análise

proposta por Catherine Ruiz, em sua tese sobre "Le sophiste, le rhéteur, le criti­que et le peintre: pour une archéologie rhétoricienne des modeles littéraircs" (com a orientação de Louis Marin e Yves Hersant, datilografada, p. 399).

g9 1, 1,2-13. Duas outras descrições de quadros, sustentadas por signos, oráculos, sonhos, escandem os episódios do romance: o suplício e o salvamento

256 o efeito sofístico

Mas são as Pastorais de Longo sobre Dafnis e C/oé que forne­cem tradicionalmente o paradigma da ekphrasis. O prólogo é a des­crição de um quadro e toda a narrativa em quatro livros é apenas a explicitação desse quadro: assim diz-se freqüentemente que todo o romance não é mais do que uma vasta ekphrasis90• Sem dúvida seria mais exato e mais lógico, ou seja, mais adequado à profunda sofisti­cação da pastoral, chegar a afirmar que ela é a ekphrasis de uma ekphrasis. Pois aquilo a parti_L de que a escola se modela certamente é uma pintura, mas essa pintura, como leremos, não é feita com li­nhas e em cores, mas com palavras.

A melhor interpretação desse prólogo foi recentemente dada por Claude Imbert. Em seu comentário, ela adota uma perspectiva estóica que impressiona por sua coerência. Tal coerência está, entretanto, nos antípodas de uma coerência sofística que me parece, no entanto, tam­bém dever ser lida, de outro modo ou primeiramente, no mesmo en­cadeamento das frases. Como se trata muito explicitamente de "feno­menologia", compreendida como tipo de entrelaçamento entre real e discurso e, pelo mesmo motivo, de "ontologia", é oportuno, como experiência crucial, desenvolver, por uma última vez, a ordem dos argumentos.

Eis o texto do prólogo, não no brilho da tradução de Jacques Amyot e revista por Paul-Louis Courier, mas em prosa corrida, mais próxima da de Georges Dalmeyda91:

de Andrômeda, ao lado dos de Prometeu (I1I, 6, 3-7, 7), em seguida o rapto e a violação de Filome1a, com a língua cortada (V, 3, 4-8).

';lU É o que defendem, por exemplo, a partir de dois pontos de vista absolu­tamente diferentes, Michael C. Mittelstadt, "Longus: Daphnis and Chloé and Roman Narrative Painting", Latomus, 26, pp. 752-61, e Froma Zeitlin, "The poetic of Eros: nature, art and imitation in Longus' Daphnis and Chloé", in Before Se­xuality, ed. D. Halperin,]. Winckler, F. Zeitlin, Princeton, Princeton University Press, 1990. Cf Claude 1mbert, "La logique sto"icienne et la construction du ré­cit", Phénoménologie et Zangues formulaires, op. cit., p. 99: "Antes de ser ele mes­mo uma ekphrasis, a qual constitui o próprio corpo da pastoral, o prólogo reflete, em uma fábula preliminar, a composição romanesca". Citarei doravante esse li­vro (capítulos III e Xl usando a sigla P.L.F. Gostaria de acrescentar que, sem o se­minário que Claude Imbert ministrou durante vários anos seguidos na E.H.E.S.S., jamais teria compreendido o interesse do romance grego.

91 Les Pastorales de Longus ou Daphnis et Chloé, trad. de]. Amyot, revis­ta, corrigida, completada por P.-L. Courier, Paris, Alphonse Lemerre, 1878; Lon-

Descompartimentar os gêneros 257

Page 131: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"Na ilha de Lesbos, caçando em um bosque dedicado às Ninfas, vi o mais belo objeto de contemplação (theama eidon kalliston) que já vi em minha vida: uma imagem pin­tada, uma história de amor (eikona grapten, historian ero­tos). Também era belo (kalon men kai) esse bosque com árvores frondosas, com flores e riachos; uma única fonte alimentava tudo, flores e árvores. Mas a pintura tinha mais encanto (all'he graphe terpnotera), plena de uma arte ex­traordinária e de uma aventura de amor. Assim muitas pes­soas, mesmo estrangeiros, vinham, atraídos pelo rumor, adorar as ninfas, mas também contemplar a imagem (tes de eikonos thatai). Nesta, mulheres dando à luz, outras enfai­xando recém-nascidos, crianças expostas, animais que ali­mentam, pastores que recolhem, jovens que trocam juras, um ataque de piratas, uma invasão de inimigos. Vendo mui­tas outras coisas, todas cheias de amor, e maravilhando-me com elas, tomou-me o desejo de replicar ao quadro (anti­grapsai tei graphei). Tendo acabado por encontrar um exe­geta da imagem, compus quatro livros, uma oferenda para o Amor, as Ninfas e Pan, um bem para encantar (ktema de terpnon) todos os homens, que curará o doente, consolará o aflito, fará recordar-se aquele que amou e preparar-se aquele que não amou (ton erasthenta anamnesei, ton ouk erasthenta propaideusei). Pois ninguém jamais escapou ou escapará do amor, enquanto a beleza existir e os olhos en­xergarem. Permita -nos o deus, nós mesmos sensatos, escre­ver os amores dos outros." (1-4).

A linha geral da interpretação de Claude Imbert, já explícita no título do capítulo ("A lógica estóica e a construção da narrativa"), consiste em ler esse texto como a ilustração da relação entre represen­tação estóica e linguagem: "O prólogo de Dafnis e Cio é se oferece [ ... ] como um documento inigualável, porque ilustra, tal como um artifí- ' cio experimental e à maneira de um paradigma, uma operação supos­tamente dissimulada no foro interior: a transcrição analítica e discur­siva de um processo representativo" (P.L.F., p. 97). Representação:

gus. Pastorales (Daphnis et Chloé), texto estabelecido e traduzido por G. Dalmey­da, Paris, Les BeBes Lettres, 1934.

258 o efeito sofístico

f

!significa dizer que a natureza está na origem do processo. Trata-se, si­i multaneamente, de conhecê-la, de conhecer como se a conhece, e de : aprender a se conformar a ela: o romance é epistemológico e pro­tréptico. A descrição inaugural, em que o autor já começa a se ausen­tar, indica também um método fenomenológico: Longo, diz Sêneca, "deixou a palavra às próprias coisas,,92. A ekphrasis é, ao mesmo tem­po, moral: "A imagem dá, simultaneamente, uma visão de conjunto das coisas humanas e o princípio real que as organiza" (p. 341, cf. 93); o teológico fala no físico, incita a reconhecer o todo (tota simul), a nele

, se sentir em casa (oikeiosis), e a ele consentir (fata volentem ducunt, nolentem trahunt). A moral da história, como se diz, é que "Eros [con­

\ siga] que os protagonistas queiràm o que a natureza pede" - "Então Cloé compreendeu ... " (p. 349).

O fato de que se trata, com os Alexandrinos, no Pseudo-Longi­no, no interior da teoria das artes plásticas depositada nas retóricas latinas, em Filóstrato e mais geralmente na Segunda Sofística, de uma doutrina estóica em vez de uma doutrina aristotélica da fantasia, como de uma vulgata de fato que informa as frases, é certamente verdadei­ro e notavelmente importante. Trata-se, com efeito, de uma "alterna­tiva [ ... ] à hipótese da imitação, sendo ela no sentido que lhe dava Aris­tóteles no capítulo IV da Poética" (p. 91); alternativa cuja criatividade pode ser medida pela seguinte frase da Vida de Apolônio de Tiana: "A phantasia é uma operária mais sábia do que a imitação. A imitação só pode, de fato, criar o que viu, mas a representação, igualmente o que ela não viu. Ela o apresentará sob modo de hipótese e por um movimento de anáfora a partir daquilo que é',93. É certamente funda­mental deslocar a série estética que iria, como há pouco em Hadot, sem ruptura de continuidade, de Aristóteles a Filóstrato via estóicos.

92 De Tranquillitate animi, Prólogo, 14, citado p. 112. Não resumo as te­ses de Claude Imbert, mas simplifico sem matizes e forço o traço, seguindo ape­nas meu "contra-fio".

93 VI, 19, na tradução de Claude Imbert, P.L.F., p. 91s. J. Pigeaud, que co­menta a phantasia no capítulo XV de Pseudo-Longino como "revezamento" da metáfora, compreende: ímo{)-{p'ETaL ràp amo 1TpOç; nTv Cx'Va<popclv 't"ou Moç, "pois a phantasia colocará (o que ela não viu) para inferir na direção do ser" (Du Subli­me, Paris, Rivages, 1991, p. 28s. e nota 40, pp. 136-41). Para o rexro original, cf. E. Birmelin, "Die kunstheoretischen Gedanken in Philostrats Apollonius", Phi­lologus 88,1933, pp. 149-80, e B. Schweitzer, "Mimesis und Phantasia", Philolo­gus 89, 1934, pp. 286-300, especialmente nota 18 (citados por Pigeaud, ibid.).

Descompartimentar os gêneros 259

Page 132: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Isso não impede, no entanto, o estatuto da referência filosófica, im­plícita ou explícita, de ser muito complexo, pelo menos no interior da Segunda Sofística94. Como diz Blanchard, a propósito do Filóstrato dos Quadros, "é possível que a segunda sofística recite aqui as lições da semiótica estóica" (art. cit., p. 136). Se tal fórmula me agrada, é porque leva a uma percepção do ecletismo, análoga em sua ordem à escrita palimpsêstica: o estoicismo tomado de passagem, quando for cômodo, a ser consumido não sem ironia, e o ecletismo como plágio.

Mas voltemos à leitura estóica do prólogo em termos de proces­:so representativo. A ela eu oporia palavra por palavra, isto é, reinter­'pretando os mesmos elementos, uma leitura sofística de tal forma que 'a natureza, as próprias coisas, sejam apenas efeitos das palavras.

"Vi a coisa mais bela que já vi em minha vida: uma imagem pin­tada, uma história de amor. Também era belo esse bosque [ ... ] Mas a pintura tinha mais encanto". O prólogo estipula e destaca, antes de mais nada, o seguinte: que a natureza nessa narrativa é menos bela do que a pintura. Somente a pintura, e em seguida a narrativa que é sua exegese, têm o forte poder de "encantar" (terpnotera, terpnon), de arrebatar como a música de Orfeu - elas, mas não o "bosque", com "árvores", "flores" e "riachos", aliás muito mais nomeados do que descritos. Do mesmo modo, é apenas a imagem que se "contempla" ·(theatai, theama), não a paisagem.

Ora, esse quadro que a ekphrasis descreve já é uma narrativa: "uma imagem pintada, uma história de amor". A violência do assín­deto corresponde perfeitamente a uma tradução integral, mas não é a imagem que passa por inteiro no discurso, é, ao contrário, o discurso, uma "história" de amor, que foi figurado: já se trata de palavras que são pintadas. Inversamente ao ut pictura poesis constitutivo da imita­

,ção fenomenológica, não é a poesia que põe diante dos olhos, é a pin­tura que faz ouvir. Contemplar é dar ouvidos.

Ora, essa narrativa que constitui portanto a pintura é, nela mes­ma, estritamente anti ou a-fenomenológica. Não faz ver nada como e desafia qualquer sintaxe; nenhuma semelhança, nem direta nem me­tafórica, pode ser elaborada. Tudo o que se vê é o que o discurso diz, em uma para taxe desvairada de infinitivos "de narração": sujeitos

94 Trata-se, por exemplo, também de phantasia aristotélica na Vida de Apolônio. Cf. lI, 22 e o comentário, embrionário, de Anderson às duas passa­gens, The Second Sophistic, op. cit., pp. 151-3.

260 o efeito sofístico

agindo, atores portanto e não substâncias-substratos, e cada sujeito, sem modificação e sem predicado, incumbido de seu ato - as mulhe­res, de parir; os pastores, de recolher; os jovens, de prometer, os ini­migos, de invadir ... Frases estóicas, certamente, mas antes como es­quiva do que como promoção da fenomenologia - em todo caso, como esquiva da fenomenologia aristotélica, que constitui, até hoje, a essência da fenomenologia.

Ora, trata-se de "replicar" a essa narrativa pintada. A expressão grega, antigrapsai tei graphei, é muito mais rigorosa: é preciso escre­ver" contra" e "de novo" , rivalizar e recopiar esse primeiro escrito que

:é a pintura, representando simul~aneamente o advogado de defesa e o escrivão. Esse "reescrito", essa "'~plica", é a interpretação da pintu­

,ra em quatro livros. Ao ut poesis pictura que é a graphe, a pintura, sucede o ut pictura poesis que é a antigraphe, a própria pastoral: só ~se poderia, portanto, tratar de um ut poesis poesis, nome campestre da logologia.

O discurso assim composto não é um instrumento de conheci­mento, um organon, mas um remédio, um pharmakon, e constitui um fim em si mesmo como arrebatamento e não como ciência ("um bem para encantar todos os homens", com essa retomada que o torna o substituto do ktema tucididiano). Ele não apenas "cura" e "consola", mas efetua ao mesmo tempo, jogando com o tempo, uma anamnese e ~uma propedêutica do amor (ton erasthenta anamnesei, ton ouk eras­thenta propaideusei): reconheço aí, logo após a referência homérica, em todo caso antes das referências estóica e cética, a farmácia de Gór­:gias, no Elogio de Helena, e a de Protágoras, no Teeteto.

O estatuto da natureza cristaliza a diferença de interpretação. Em um caso, é um "reino" ("homens, animais e jardins confundidos, tem­po da reprodução e da vida") que se deve compreender, como Cloé, para ser feliz (p. 349): a fenomenologia desemboca na ética, ela eleva conformidade e conformismo à estatura de moral. Em outro, é uma série de descrições de lugares convencionados, locus amoenus do pró­logo ou paradeisos da grande ekphrasis do livro IV ("Tudo era desta­cado e distinto, e cada tronco era espaçado, mas no ar os galhos se reencontravam e entrecruzavam suas folhagens: também a natureza assemelhava-se aí seguramente à arte,,95): realmente "lugares" no du-

9S IV, 2, 5: edokei mentoj kai he touton lJhysis einai tekhne. Cf F. Zeitlin, art. cit., pp. 444-7.

Descompartimentar os gêneros 261

Page 133: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

pIo sentido da palavra, para fazer melhor o Trianon, as ruínas barro­cas ou os jardins ingleses, e para pôr em circulação esse objeto cultu­ral que é Dafnis e C/oé.

Nesse prólogo, nesse romance, com a ekphrasis, não se trata mais de ter olhos para ver e viver o fenômeno, mas olhos para escrever e para ler: olhos para ouvir, já que se tem ouvidos para ver.

262 o efeito sofístico

VI. CONCLUSÕES

"A ontologia e a fenomenologia [ ... ] caracterizam a própria fi­losofia segundo seu objetole seu método", escreve Heidegger no § 7 de Ser e tempo, no momento de elaborar o "conceito provisório de fenomenologia". É essa det~rminação da filosofia, e do mundo, que o conceito operatório de sofística obriga a retomar, convidando a con­siderar como um constituído/constituinte da filosofia "normal", em sua grande tradição, um rosto da Antigüidade que essa própria tradi­ção nos torna estranho e hostil 1.

O ponto de desestabilização é claramente constituído pela rela­ção com a linguagem. Nietzsche o repete após Novalis: "Aquele que considera a linguagem interessante em si mesma é diferente daquele que nela reconhece apenas um meio de pensamentos interessantes,,2. Mas considerar a linguagem "interessante em si mesma", todos os poetas e todos os filósofos (até Heidegger e Quine, indistintamente) também o fazem. A questão é a de saber como a linguagem é interes­sante, ou de qual "em si mesma", de qual autonomia, se trata. Para designar sua maneira, escolhi o termo "logologia", modelado a par­tir de "ontologia". É, de modo não conjuntural, um discurso segun­do ou crítico. A cena originária Górgias/Parmênides mostra a alavan­ca: trata-se de fazer ouvir a enunciação sob o enunciado, de remeter, portanto, a objetividade da coisa, mesmo que seja o próprio ser, à

1 Assinalemos apenas um título, talvez um sintoma de uma mudança de percepção: na rubrica "pré-socráticos", I Presofisti e l'orizzonte della filosofia, a cura di 5tefano Maso, Turim, Paravia, 1993.

2 Cito os "Fragmentos sobre a linguagem", na tradução proposta por Jean­Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, na revista Poétique, 5, 1971, pp. 132-5, no caso p. 134 (é uma nota de trabalho para Homere et la philologie classique, datando de 1868-1869).

Conclusões 263

Page 134: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

performance do discurso - maneira, no final das contas, radical de compreender "o homem-medida".

"A pretensão mais ilimitada de tudo poder, como rerores ou co­mo estilistas, atravessa toda a Antigüidade, de uma maneira para nós inconcebível", escreve ainda Nietzsche em seu "Curso sobre a histó­ria da eloqüência grega,,3 Duplamente verdadeiro: de fato foi cons­tantemente necessário tratar da retórica nesse trabalho, e esse "incon­cebível" está explicitamente ligado às exclusivas contra o regime so­fístico de discurso. Encontra-se aí, de modo não fortuito, a tradição do grande desprezo no interior mesmo das artes da palavra: prefere­se, com Kant, dividindo as belas-artes, a poesia ("a arte de conduzir um livre jogo da imaginação como uma atividade do entendimento"), que dá mais do que promete, à eloqüência ("a arte de efetuar uma tarefa que concerne ao entendimento como se se tratasse de um livre jogo da imaginação"), que dá menos; e, no interior da eloqüência, prefere­se a arte de falar bem à arte de persuadir, que é uma "arte de enga­nar,,4. A logologia constitui, assim, algo como a ontologia da retóri­ca e a apate, na qual Kant só vê a arte de enganar, é o sentimento, o afeto que a assinala.

"Uma coisa é se exprimir sobre o ente por meio da narrativa e da narração, outra coisa é apreender o ente em seu ser", prossegue Heidegger, para desculpar antecipadamente o aspecto pesado e a au­sência de graça de suas próprias análises: "Que se comparem, por-

3 Kroner, p. 201s., ibid., p. 130.

4 Crítica do Juízo, § 51, § 53 e nota ("Devo confessar. .. ", diz Kant). Seria preciso estudar a complexidade e as dificuldades do vocabulário kantiano: Be­redsamkeit/ Rhetorik/ Beredtheit/ Wohlredenheitl Eloquenz/ ars oratoria. 8ered­samkeit ("eloqüência") se opõe a Dichtkunst ("poesia") e compreende, como Rhetorik, por um lado Wohlredenheit (que compreende, por sua vez, Eloquenz e Styl), e, por outro, die Kunst zu überreden, ou Beredheit, ou Rednerkunst (ars oratoria). Observemos, sobretudo, que essa divisão das belas-artes, de que a arte da palavra constitui apenas uma parte, ao lado da arte figurativa e da arte do jogo das sensações, é estabelecida - é bem verdade que "a título de ensaio" e por comodidade -, segundo uma analogia com a linguagem (Sprechen), ela mes­ma decomposta em palavra, gesto e tom, cuja ligação constitui "a perfeita co­municação" no discurso. Creio que não seria equivocado encontrar a retórica em funcionamento no e sob esse modelo e ler aí uma das peças que a "língua mali­ciosa" de Novalis prega nos "homens sérios" que só podem conceber um único tipo de seriedade.

264 O efeito sofístico

tanto, as passagens ontológicas do Parmênides de Platão ou o quar­to capítulo do livro VII da Metafísica de Aristóteles às partes narrati­vas de T ucídides e ver-se-á a que ponto era inusitada a linguagem que os filósofos gregos impuseram a seus contemporâneos" (ibid., p. 57). É totalmente evidente. No entanto, a distinção subjacente a essa ob­servação, entre a filosofia e os outros tipos de texto (a historia: nar­rativa e história), ou entre uso filosófico e uso literário da língua, é também, e de modo interrelacionado, questionada pela sofística.Tudo se refere aí ao fato de se colocar em série a primeira e a segunda so­físticas. Trata-se da possibilidade de escapar a uma regulação aris­totélica da linguagem e da arte, mesmo se só o pudéssemos fazer errando sem pudor os alvos ~arcados do verdadeiro, do bem, do belo talvez, la~çando mão de ~9'l:0s os casos~limite, homonímia, ~ign~fi­cante, paltmpsesto, para Ílhalmente conSiderar como nosso pnmelro mundo não mais a natureza mas a cultura, um mundo produzido. Em um fragmento póstumo de 1888, Nietzsche escreve ainda o seguinte: "Parmênides disse: 'Não se pensa o que não é' - estamos na outra '. extremidade e dizemos: 'O que pode ser pensado deve ser certamen-, te uma ficção"'S. Eu resumiria tudo da seguinte maneira: a desmis­tificação da doação ontológica produz uma descompartimentação dos gêneros do logos.

É por isso que a peroração será escrita por um sofista tardio. Do palimpsesto, ele conhece apenas as receitas, sabe apropriar-se das ci­tações de segunda mão sem marcar nem seus limites nem suas fon­tes, mas falta-lhe a destreza para costurar os pedaços, talvez porque a qualidade de seu público permaneça imprecisa e sua própria exis­tência, sujeita a caução. De tal forma que se pode dizer que esse blo­co de manteiga é lançado por cima da cabeça na infinidade do num­ser. E pode-se distinguir: tem o que não pode sê porque é contraditó­rio, o bloco de manteiga é uma telha. E o que não é sem aparecer como contraditório: o bloco de manteiga não tá nessa mesa (quando ele está aí). Curioso é qu'isso tá expresso por uma frase assim: o blo­co de manteiga é uma telha, isso pertence ao num-ser e entretanto isso é em uma certa medida, já que se pode exprimi-lo. Assim de uma certa maneira o num-ser é e, de outra, o ser não é. - E aí, disse Narcense

5 Citado por Alain Badiou, "Casser en deu x l'histoire du monde", Les Con­férences du perroquet, 37, dezembro 1992, p. 18.

Conclusões 265

Page 135: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

bocejando, você num vai me falar de deus? - Num sou homem de confundir touca de renda com chapéu de feltro mole, né não? - res­pondeu Saturnin6 "

6 Acrescento essa nota para revelar que esse fragmento foi tirado do romance de Raymond Queneau, Le Chiendent (Paris, 1933; Gallimard, Folia, p. 3755.).

* Procuramos manter, na tradução, as oscilações de registro de linguagem contidas nessa passagem; como se trata, em alguns trechos, da transcrição de uma fala popular parisiense, julgamos conveniente acrescentar aqui o texto original: "De telle sorte gu'an peut dire que cette motte de beurre est plongêe jusque par­dessus la tête dans l'infinité du nonnête. Ec l'on peut distinguer: y a ce qui ne peut être pasgue e'esc contradictoire, la morte de beurre esC une tuile. Ec ce qui n'est pas sans apparaítre comme contradictoire; la motte de beurre n'est pas sur cette table (tandis qu'elle y est). C'qui est curieux c'est que c'est exprimé par une phrase comme ça: la morte de beurre est une tuile, ça appartient au nonnête et pourtant ça est dans une certaine mesure, puisqu'on peut l'exprimer. Ainsi d'une certaine façon, le nonnête est, et, d'une autre, l'être n'est pas. - Dites donc, fit Narcense en baillant, vous n'allez pas me parler de dieusse? - J'suis pas homme à prendre un bonnet de dentelle pour un feutre mou, spa? répondit Saturnin." [N. da T.J

266 o efeito sofístico

/

DOCUMENTOS

Page 136: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Nestes Documentos proponho a tradução de alguns textos absolutamente necessários ao meu propósito, seja porque as traduções em vigor deixam muito a desejar, seja porque, em particular no que tange à Segunda Sofística, esses textos são simplesmente inacessíveis em francês (e também em português).

Com freqüência, conservei o grego nas notas aferentes ao texto, que po~ dem ser notas de estabelecimento, glosas ou comentários; mas cada vez que a legibilidade pareceu-me aceitável, não sem um certo arbítrio de minha parte, pro­curei transliterar.

o TRATADO DO NÃO-SER M.X. G ./Sexto

Górgias

-----./

Possuímos, e isto é muito raro, duas versões, aparentemente com­pletas e grosso modo convergentes, do Tratado de Górgias "Sobre o não-ser ou sobre a natureza".

A mais conhecida, porque também filologicamente menos pro­blemática, foi transmitida por Sexto Empírico, sete séculos depois de Górgias (Contra os professores VII, 65-87 = Contra os dogmáticos I = Contra os lógicos I). Trata-se da única editada nos Pré-socráticos de Diels-Kranz, na condição de fragmento de Górgias (82 B 3, 11, pp. 279-83), a única traduzida em francês por J.-P. Dumont (Os sofistas, pp. 71-6), retraduzida por J.-L. Poirier (Os pré-socráticos, pp. 1022-6). É a que os filósofos e os historiadores da filosofia, com mais fre­qüência, comentam (por exemplo, Heidegger no início de Logik, G .A. 21, pp. 19-25). Ela incita a perceber a sofística como um avatar do ceticismo ("o ceticismo alcançou maior profundidade graças a Gór­gias", nos diz Hegel, Lições sobre a história da filosofia, 2, p. 266, mas os anglo-saxões de hoje inverterão o julgamento) e permite, no mes­mo lance, refutá-la como e com ele (Kant, Hegel, Heidegger, mas tam­bém, recentemente, Apel e Habermas). Com efeito, Sexto encerra Gór­gias sob a insígnia daqueles que suprimem o critério de verdade, ao lado de Xenófanes (o Xenófanes que reencontramos na outra versão), de Xeníades, afirmando que "tudo é falso", de Protágoras, afirman­do que "tudo é verdadeiro", ao menos todos os fenômenos, e que o homem é "medida", ou de Eutidemo e Dionisidoro (os sophistic bro­thers colocados em cena no Eutidemo de Platão): como eles, Sexto apresenta motivos de supressão lógica ao invés de física. Mas a tri­partição do Tratado de Górgias (nada é; se é, não é possível que seja apreendido pelo homem; se é e se pode ser apreendido, não pode ser explicado a outrem), mesmo se a estrutura de recuo também consti-

Górgias, O tratado do não-ser, M.X.G./Sexto 269

Page 137: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tui um tropo cético, não é decerto sobreposta à tripartição dos argu­mentos propriamente céticos sobre o critério, desenvolvidos nas Hipo­tiposes pirrônicas (lI, 4-7, 18-80: o que é critério, por qual meio, e conforme o quê?). Ela conserva, de preferência, o rastro de um ques­tionamento mais original e originário: o da relação de Górgias com Parmênides, entre sofística e ontologia eleata, da qual a sucessão Xe­nófanes, Melisso, Górgias, da versão pseudo-aristotélica, fornece um testemunho mais claro.

A elaboração cética deixa, finalmente, sobre esse texto, vestígios doxográficos em três níveis: a problemática geral (supressão do crité­rio), um certo número de formalizações lógicas (a formalidade das disjunções e conjunções exaustivas - nem ou ... nem e, nem um ... nem outro ... nem os dois de uma só vez -, ou das quantificações e dos re­cíprocos); enfim, o polvilhar de um vocabulário de escola (cético, mas também, como a formalização sugere, amplamente estóico).

O De Melisso, Xenófanes e Górgias, que oferece a outra versão da obra de Górgias, é um pequeno tratado composto de três unida­des distintas, cuja atribuição a Aristóteles determinou, tradicional­mente, sua publicação no final do corpus. Hesitou-se sobre a identi­ficação dos filósofos tratados nas duas primeiras seções (Xenófanes em vez de Melisso, e Zenão em vez de Xenófanes, tendo em conta o manuscrito R, até para Kant e Hegel), mas jamais, em vista da con­cordância com Sexto Empírico, sobre a do terceiro, ou seja, GÓrgias. Em contraposição, a atribuição e a datação do tratado continua sen­do objeto de conjecturas numerosas e divergentes: pertencia a Aris­tóteles (é o que os manuscritos geralmente dizem), a Teofrasto (se­gunda mão do manuscrito R), a um peripatético do séc. III a.e. (o Diels dos Doxographi Grceci, Gigon, Kerferd), ou do le d.e., mais tardio e, portanto, mais eclético (o Diels de Aristotelis qui fertur de M.X. G. libellus, AP A W 1900, que serve de edição de base - Gom­perz, Robin), a um cético (Gercke); é hoje a obra de um megárico (Untersteiner), de um representante do reflorescimento do eleatismo (Wiesner), ou de um aristotelismo que pirroniza (Mansfeld). Os fa­tos constatados são exíguos, que cada um se incline para o lado da sua concepção da doxografia: sem argumentos estilísticos determi­nantes, mas com meios teóricos sobretudo aristotélicos (distinção dos sentidos do ser, distinção entre negação e privação), e uma forma muito elaborada, característica, com efeito, de uma escolaridade tar­

dia de inspiração cética.

270 Documentos

Por minha parte, insistirei na relação entre o discurso do do­i xógrafo anônimo e o objeto sofístico. A princípio, tudo se passa como se uma intenção teórica ligasse as três unidades entre si: Melisso, Xe­

. nófanes e Górgias propõem, cada um, em uma ordem que não é jus­tamente a da cronologia, mas a das condições teóricas da sofística, uma transformação da doutrina de Parmênides, colocada em questão, a cada vez, pela crítica do doxógrafo que não se contenta, portanto, em "anotar as opiniões". Melisso-s~bstitui à esfera do ser e à sua auto­limitação centrípeta um "algo" (ti) ilimitado, sujeito de toda seqüên­cia de predicados; depois, ao "deus" de Xenófanes, que vem, por sua vez, ocupar o lugar do sujeito de "é", são atribuídos predicados an­tinômicos ("nem limitado nem ilimitado", "nem imóvel nem em mo­vimento"), o que o torna mais próximo de um "nada" do que de um ,algo; a perspectiva está, então, toda traçada para que o "nada é" de :Górgias substitua o "é" de Parmênides, e para que se desenvolva uma teoria do ser como efeito do discurso ontológico. A construção anô­

:nima revela, assim, que o fim do eleatismo, em todo o sentido do ter­!:mo, é a sofística.

Além disso, se as críticas do doxógrafo colocam indiscutivelmente em questão um procedimento formal de tipo cético, que desenvolve todos os sentidos de um dado enunciado e todas as conseqüências pos­síveis de cada um desses sentidos, para chegar à isostenia das conclu­sões ("nada impede que ... "), elas retiram sua força demonstrativa pri· meira de uma 'tomada ao pé da letra' dos enunciados a criticar. O mé­todo do doxógrafo a respeito de Melisso, de Xenófanes e, também, da primeira tese de Górgias, imita o procedimento paradigmático de Górgias contra Parmênides; o doxógrafo faz a Górgias o que o pró­prio Górgias, sempre descrito pelo doxógrafo, faz a Parmênides: Par­mênides, admitindo que o "não é" é impraticável, produz o não-ser tanto quanto o ser e tal como o ser; e Górgias, deduzindo de Parmêni­des a identidade do não-ente ("o não-ente é ente tanto quanto o ente é ente), admite, de preferência, que tudo é. É sempre como efeito de uma retomada do adversário, "de acordo com o que ele mesmo diz", que o Anônimo inaugura a reversão da opinião que ele mesmo expõe: trata-se de tocar o ponto de apoio de cada tese, que se torna ponto de desequilíbrio, e de propor assim, como que do interior, uma refuta­ção. A repetição doxográfica em questão no M.X.G. encontra assim seu sentido e seu modelo na repetição catastrófica que Górgias inflige a Parmênides.

Górgias, O tratado do não-ser, M.X.C./Sexto 271

Page 138: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Esta versão tão trabalhada apresenta dificuldades filológicas consideráveis que suscitaram inúmeras correções ou normatizações, quando de suas edições sucessivas. E também inúmeras disputas, das quais a tradução que ora proponho guarda alguns vestígios.

'i- ,i- ,:.

DE MELISSO, XEN6FANES E G6RGIAS (979 a12-980 b22)

Pseudo-Aristóteles

Reproduzo aqui, sem outras retratações ou remorsos além da­queles indicados em notas!, a tradução proposta em Si Parménide (Lille, Paris, P.U.L.-M.S.H., 1980). Tenho perfeita consciência da im­portância, no seio da comunidade erudita da qual nós todos deseja­mos, ao menos também, tomar parte, de certas críticas, que se ende­reçam freqüentemente à "Escola de Lille", ou seja, aos métodos de Jean Bollack que, ao lado de Heinz Wismann, dirigiu este trabalho de dou­torado: todas essas críticas acentuam, para resumir, minha adesão a "princípios editoriais ultra-conservadores" que levam a "preservar lições manifestamente corrompidas", perfazendo textos "que não es­tão escritos em grego"2, Mas eu gostaria de lhes opor, em todo caso, no que concerne a este texto, dois tipos de argumentos.

1 Não assinalo os aperfeiçoamentos de tradução que não correspondam a uma modificação de opção editorial.

1 Jonathan Barnes, The Classical Review, New Series, vol. XXXIII, 1, 1983, pp. 66-7. Ver também G.B. Kerferd, Archiv für Geschichte der Philosophie, 1984, 66 (1), pp. 89-91, A. Mourelatos, "Gorgias on the function of language", em Gorgias e la sofistica, Siculorum Gymnasium, N.S. a.XXXVIII, 1-2, pp. 607-38 (nota 3), retomada e argumentada na Philosophical Topics, XV, 2, Fali 1987, pp. 135-70, e, recentemente, j. Mansfeld, "De Melisso Xenophane Gorgia. Pyrrhonizing Aristotelianism", Rheinisches Museum für Philologie, N.F. 131, 3-4,1988, pp. 239-75 (nota 1), citado por C.j.Classen, "L'esposizione dei sofisti e della sofistica in Sesto Empirico", E/enchos, XIII-1992, fasc. 1-2 (nota 34, p. 72).

É com ainda mais fervor que agradeço a jonathan Barnes: de bom grado ele releu, minuciosamente, esta nova versão, e enviou-me uma série de observações e sugestões que tentei, tanto quanto minhas próprias idiossincrasias permitiram, le-

272 Documentos

° primeiro é o da forma: vocês não fazem melhor. Tomemos o exemplo mais recente, o de laap Mansfeld, que ob­

serva, rapidamente, a respeito da minha edição: "O texto grego está baseado em princípios editoriais da escola de Lille (prefere sempre os manuscritos, por mais corrompidos que êstejam); é ainda mais difícil encontrar um sentido na tradução francesa do que no grego não corri­gido". Comparemos, com cuidado, uma passagem importante, talvez a mais importante, do Sobre Górgias, a única, aliás, da qual Mans­feld apresenta uma tradução seguida, e sobre a qual apoiamos, am­bos, uma parte do nosso comentário: trata-se da demonstração "pró­pria", em sentido não referencial, que Górgias faz de sua primeira tese - "não é". Eis a tradução de Mansfeld, que prefiro manter em inglês (979 a23-33, p. 257):

[ ... ] his first, particular proof, in which he says that neither to be is [or: can be] nor not to be.

For if 'not-being' is not-being, what-is-not is no less than what-is, for what-is-not is what-is-not, and what-is, what-is.

[ ... ] But if 'not-being' is in the similar way, 'being', he says

(the opposite), is noto For if 'not-being' is, it is fitting that 'being' is noto So for this reason Nothing can be, unless being and not being are the same.

However, if they are the same, then for this reason, toa, Nothing can be. For what-is-not, is not, and what-is as well, in as much as it is the same as what-is-not.

Eis aqui a minha, que detalharei em parágrafos análogos:

[ ... ] uma primeira demonstração, bem a seu modo, onde ele diz que não é possível nem ser nem não ser.

Pois se o não ser é não ser, o não-ente seria não me­nos que o ente: com efeito, o não-ente é não-ente assim como o ente, ente, de modo que são, não mais do que não são, as coisas efetivas.

var em consideração. Ele é o responsável por tantos aperfeiçoamentos, enquanto eu, pela perseverança.

Pseudo-Aristóteles, De Melisso, Xenófanes e Górgias 273

Page 139: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Mas, se no entanto, o não ser é não ser, o ser, diz ele, seu oposto, não é. Com efeito, se o não ser é, é conveniente que o ser não seja. De modo que nesse caso, diz ele, nada seria, desde que não seja a mesma coisa ser e não ser.

Mas se é a mesma coisa, nesse caso também nada se­ria: com efeito, o não-ente não é, tal como o ente, se pelo menos ele é a mesma coisa que o não-ente.

Eis, enfim, o grego. No caso, nossas divergências quanto ao es­tabelecimento do texto são fáceis de circunscrever: Mansfeld que, diz ele, "traduz o que creio ser o texto correto", suprime uma frase ([ ... ]) no final do seu segundo parágrafo, e duas palavras no início do terceiro ({ ... }) - o que assinalam os itálicos no grego. Ele propõe, enfim, uma outra acentuação, no início deste terceiro parágrafo, fazendo, assim, passar de um advérbio (iS).LWÇ', "no entanto" [Ioc. adv. *]) a um outro (OJ.lOlWC;, "in the similar way", que transcrevo também em grifo).

[ ... ] €\I TI ÀÉ'yEl O"tl OUK €cr'tL OlhE El \leXl OlhE J.l-rlEl \leu.

E'l J.lEv reip io J.l-rllt.\lCXl €crrl J.1-rllt.\lCXl, OOOEv â\l trrrO\l "to J.lT1 Ô\I "tou ()\I"toç Elr]. T6 "tE l'elP J.iT1 Ô\I €crn J.l-rl Ô\I Kal ," )~ u .<>::' -ÀÀ ,. fi L'" ,~ "tO 0\1 0\1, W(TTE Ouu€\I Lia 0\1 €l \lCXl OuX €l \lal "tCX TTDa

X Lia"ta. E'L &l. OJ.lWC; [OLlOlWc:]"tà J.l-rl et\lal €(TTL, "to El\lCXl, eprpl

\I, OUX €(TTl,"tO à\l"tlX€lU€\lO\l. E'll'elp"tà J.1-rl et\lCXl E(TTl,"tO lt.\lCXl J.lT1lt.\lCXllfpocnÍX€l~Q(TT€ OUx â\l 01J"twç;, eprpl\l, oooe\l "y""," ",.. a\l ELll, El J.l1l "tCXU"tO\l E(TTL\I El\lal "tE XCXl J.lr] €L\lCXL.

E'L Se "tcxu"t6, XCX[: olJ"tWC; OUX â\l El r] oooÉ'V' "t6 "tE l'elP ,,,'v "'~)~ ,,"''v J...L1l 0\1 OUK E(TTl Kal "tO 0\1, ETTElTTEp l'E "tau"to "tt,p J...L1l OV'tL.

Quatro diferenças maiores entre nossas duas traduções envolvem, de uma só vez, divergências de interpretação e estas famosas diver­gências de método:

- Mansfeld traduz os infinitivos einai e me einai tanto por in­finitivos ("neither to be is nor not to be", na apresentação) quanto por particípios ("if not-being is not-being", no corpo da prova). Isto cons­titui, por si só, quanro a mim, uma primeira dificuldade, porque não

.. Como locução adverbial: "neste meio tempo", "no entretanto". [N. da T.]

274 Documentos

se pode mais notar como a demonstração se articula nem com a sua apresentação nem com o poema de Parmênides que ela repete (ver supra, meu comentário, a partir da p. 18).

- Ele adota, ao mesmo tempo, toia uma série de convenções tipográficas perfeitamente idiossincráticas, o que, decididamente, não me parece ser um bom procedimento de tradução. Ele toma os parti­cípios gregos (o particípio inglês já foi utilizado) por perífrases "what­is" e "what-is-not", com inabituais hífens, sem dúvida para assinalar a consistência ontológica. Ele presta conta do artigo diante do infi­nitivo grego, acrescentando aspas que enquadram o particípio ("if 'not being' is not being"): esta idiossincrasia chega ao contra-senso, por­que o artigo grego serve para marcar a substantivação do infinitivo em posição de sujeito, enquanto que as aspas, mesmo as aspas sim­ples, determinam, preferivelmente, a citação; em grego, a diferença se passa, aqui, entre sujeito e predicado, não entre menção e uso, ou enunciação e significação.

- A seguir, ele adota is, nos itálicos, para assinalar o sofisma, o momento no qual a proposição de identidade se faz sub-repticiamente proposição de existência ("quando a cópula ou a identidade se expande em existência", "quando o sentido predicativo adquire uma dimen­são existencial" , p. 257); mas esta pedagogia indigesta imposta ao leitor termina, inevitavelmente, determinando decisões que não são mais as de sua alçada, formando nós de resistência, ao invés de deixar o sen­tido circular: assim, por que manter, no § 3, "if 'not-being' is in the similar way, 'being' [ ... ] is not", colocando em itálico a repetição da frase seguinte, "For if 'not-being' is, it is fitting that 'being' is not"? Na lógica de Mansfeld, a acentuação em homoios, "in the similar way", se apresenta aqui para sublinhar a identidade (p. 256, e notas 65, 69, 73); ora, a identidade afIora numa frase tanto quanto noutra em exis­tência porque deduzimos deste "é" do não-ser o "não é" do ser, e que então nada é, no sentido de nada existe.

- Enfim, Mansfeld suprime a conclusão do segundo parágrafo: "50 that things are nowise more than they are not" (979 a27s.). Não que os manuscritos, neste caso, sejam difíceis de ler ou mesmo di­vergentes, mas, decididamente, porque esta cláusula, "como Kerferd provou, constitui, em sua presente posição, um non sequitur flagran­te e inadmissível, a menos que se emende, de modo drástico, o texto das linhas precedentes" (p. 258). Mas antes de estudar a prova de Kerferd, devemos insistir sobre a conclusão de Mansfeld, em toda a

Pseudo-Aristóteles, De Melisso, Xenófanes e Górgias 275

Page 140: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

sua circularidade menos hermenêutica do que pseudo-científica. Co­mo confirma a ausência de paralelo em Sexto, a cláusula em OUbE" .u.êú.Àov só pode ser, em sua opinião, uma interpolação tardia do Anô­nimo, tomando provavelmente o lugar de "um mais original wOLe

OOO€\I TW\I õ,,-rwv lL "(Xl ,,3: "Qualquer que seja a solução, o que fica claro é que o Anônimo ou interpolou uma fórmula de tipo pirrônico, ou reformulou a tese de Górgias de uma maneira pirrônica". Desta evi­dência será certamente possível deduzir ou reforçar o que era preciso, para Mansfeld, demonstrar, a saber: que o De M.X.G é um caso do "Pyrrhonizing Aristotelianism". Coloquemos as coisas nos seus de­vidos lugares: a conclusão como tal nada tem de escandaloso, nem nada, aliás, de absolutamente novo; o que me parece, no entanto, emi­nentemente discutível é o próprio procedimento metodológico, e o in­tervencionismo textual que ele legaliza.

Vejamos agora a "prova" de Kerferd4• Segundo ele, o argumento transmitido produz uma conclusão radicalmente oposta à conclusão procurada: "Se o Não-Ente é não menos que o Ente, a conclusão deve ser a de que o Não-Ente e o Ente, todos os dois, existem. Não estare­mos então no caso em que as coisas existem não mais do que não existem" (p. 8). Ora, "existem limites à confusão mental que temos o direito de atribuir mesmo a um sofista". Então, é preciso corrigir.

Eis aqui porque esta prova não me parece uma prova. Se se tra­ta, como assinalam os infinitivos (€l "J.1€v ràp TO J.1t1lLVal ECjn J.1Tl e'lval), da impossibilidade de se operar a krisis parmenidiana entre "é" e "não é", que se retira do fato de que as duas vias ocultam os seus sujeitos, o não-ente tanto quanto o ente, então se compreende porque os dois verbos, sendo indiscerníveis, e as duas vias, igualmente, prati­cáveis, as "coisas" merecerão tanto um verbo quanto o outro, e serão

3 Pode-se com muita evidência provar, e Mansfeld utiliza concessivamente a observação, que ouden mallon é encontrado em autores "anteriores a Pirro". Para dizer a verdade, o paralelo significativo se faz com os atomistas, em particular com Demócrito, 68 B 156 D.K. (cf. Si Parménide, op. cit., pp. 91-103).

4 "Gorgias on nature or that which is not", Phronesis 1, 1955-56, pp. 3-25. Notar-se-á que Kerferd não retira, de sua "prova", a conclusão de Mansfeld, e não suprime a última parte da frase. Ele optou pela emenda "drástica", refazendo o início do parágrafo, e a sustenta, em parte, em função de uma lição que, aliás, em sua opinião, não faz sentido, do manuscrito R, geralmente e justamente, conside­rado como pior que o outro, o L.

276 Documentos

tanto quanto não serão. A possibilidade de interpretar sem corrigir depende de se levar em consider~ a diferença entre infinitivos e particípios, por um lado, e a prvsênça e ausência de artigo, por outro lado. Não há confusão mental no que diz respeito ao sofista, mas fal­ta por desatenção e pecado de orgulho por parte dos intérpretes que o compreendem mais rapidamente do que ele, "Górgias", compreen­deu a si próprio.

- Assinalo, para registro, o último ajuste de OJ.1OÇ' em OJ.lOLwç, visando detalhar o texto para adaptá-lo mais literalmente à sua refu­tação pelo Anônimo, que repousa, com efeito, na distinção entre iden­tidade e existência. Parece-me metodologicamente mais interessante abrir a oportunidade de compreender como o Anônimo opera ao refor­mular o texto de Górgias, fazendo a Górgias o que Górgias faz a Par­mênides. Como a escolha desta acentuação não produz um texto "mais legível", é a escolha tradicional que, neste caso, deveria se impor.

"A constitutio do texto grego é ocasionalmente problemática, mas esses problemas podem ser resolvidos assim que a estrutura do conjunto da argumentação for reconhecida" (p. 258): infelizmente não é difícil, com o consórcio da sabedoria das nações, transformar o círculo hermenêutico em freio heurístico.

Donde meu segundo argumento, que é uma simples generaliza-ção.

É bom lembrar, com Mourelatos, que um dos escribas sentiu-se suficientemente desesperado a ponto de anotar na margem do texto: "O original comporta vários erros. Que não me censurem: assim como vejo, escrevo". Isto não permite esquecer o risco que aguarda todo editor/intérprete desses textos singularmente difíceis e corrom­pidos, risco ao menos simétrico àquele em que eu mesma incorrerei (incorreria), orientando-me mal a respeito da interpretação das difi­culdades acidentais: o de produzir um remake dóxico inevitavelmen­te simplificado, em harmonia com os paralelos e as expectativas. Por ter visto faltar, a tal ponto, conivência com o texto e medida na banalização, terá faltado, de minha parte, medida, em outro sentido. Por muito apostar na singularidade dos textos e das frases, produz­se algo "no greek"; ocupando, excessivamente, o papel do médico, ou melhor, do cirurgião ortopedista e estético, não se imagina tratar­se, em retórica como em filosofia, de invenção; medida por medida. Adoraria ter modificado na tradução que ora proponho tudo aquilo que um helenista, tão sábio quanto aberto (definição que está longe

Pseudo-Aristóteles, De Me/isso, Xenófanes e Górgias 277

Page 141: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

de convir a todos os filólogos), teria julgado não apenas difícil, mas também impossível.

* * 'lo

DE GÓRGIAS

[1] Nada, diz ele, é; aliás, se é, é incognoscível; aliás, se é e se é cognoscível, não pode ser mostrado a outros.

[2] Que não-é: compondo os dizeres de outros autores - de to­dos aqueles que, (15) falando dos entes, opõem, como parece, teses contrárias, demonstrando ora que os entes são um e não-múltiplos quanto múltiplos e não-um, e ora que eles são não-engendrados quanto engendrados -, é a conclusão a que ele chega, reunindo o que dizem numa parte e noutra. É necessário, com efeito, diz ele, que, se algo é, não seja nem um nem coisas múltiplas, não mais não-engendradas (20) do que engendradas; logo, nada seria; pois se fosse alguma coisa, se­ria um ou outro destes atributos. Que não seja nem um nem coisas múl­tiplas, nem não-engendradas nem engendradas, ele tenta mostrar, em parte, como Melisso e, em parte, como Zenão, após uma primeira de­monstração bem a seu estilo, na qual diz que não é possível nem ser nem não ser.

[3] (25) Pois se o não ser é não ser, o não-ente seria não menos que o ente: com efeito, o não-ente é não-ente assim como o ente, ente, de modo que são, não mais do que não são, as coisas efetivas.

Mas, se no entanto, o não ser é, o ser, diz ele, seu oposto, não é. Com efeito, se o não ser é, é conveniente que (30) o ser não seja. De modo que, nesse caso, diz ele, nada seria, desde que não seja a mesma coisa ser e não ser. Mas se é a mesma coisa, nesse caso também nada seria: com efeito, o não-ente não é, tal como o ente, se pelo menos ele é a mesma coisa que o não-ente. Eis então o seu próprio discurso.

[4] Mas, de onde quer que se parta, não se segue do que ele disse que nada seja. (35) Pois qualquer que seja a sua demonstração, ele dialetiza assim: ou bem o não-ente é, ou bem ele seria simplesmente e é também, enquanto idêntico, não-entes. Ora, não ocorre aqui nem

5"H TO J.l.rl 6\1 €crn, 11 Cx1TÀWC; €mEl'V E'(ll xal €c,..n\l o,llOto\l J.l.rl O'V. O Anô-

278 Documentos

aparência nem necessidade; mas é como se se tratasse de dois entes, dos quais um é e o outro parece6: o primeiro é, mas quanto ao outro, não é verdade dizer que ele seja, (979 b) ele que é primeiramente não­ente. Por que, então, não é nem ser nem não ser? Ele que é, além dis­so, os dois não é nem um nem outro. Pois ele diz que o não ser seria não menos que o ser, uma vez que o não ser também é de algum modo - ninguém dirá que o não ser absolutamente não é. Mas, mesmo se (5) O não-ente é não-ente, o não-ente então nem mesmo seria de modo idêntico ao não-ente, pois um é não-ente, enquanto que o outro tam­bém é, além disso.

[5] Mesmo se é simplesmente verdade - como seria supreendente que o não-ente seja -, mas se é no entanto assim, por que concluir que todas as coisas não são mais do que são?? Pois, ao menos assim, é jus­tamente o contrário que parece se produzir: (10) com efeito, se o não­ente é ente e se o ente é ente, todas as coisas são; pois entes e não-en­tesS são; com efeito, não é necessário que, se o não-ente é, o ente, por conseguinte, não seja. Mesmo se agora alguém consentisse, e que de uma parte o não-ente seja, de outra o ente não seja, de igual modo não menos "seria"; com efeito, os não-entes seriam segundo o seu próprio discurso. (15) Se, além disso, o ser e o não ser são a mesma coisa, não é de preferência assim que alguma Coisa não seria mais do que seria. Com efeito, assim como Górgias diz que, se o não-ente e o ente são a mesma coisa, o ente não é, e o não-ente também, de modo que nada é, e com uma reversão se pode, de modo semelhante, dizer que tudo é: com efeito, o não-ente é, assim como o ente, de modo que tudo é.

nimo resume a dialética de Górgias, segundo creio, da seguinte maneira: ele diz ora que "o não-ente é", no sentido de existir (hap/os), ora que o não-ente é, ou seja, existe, mas que, ao mesmo tempo, ele é não-ente, ou seja, não existe. O tex­to transmitido é, quem sabe desta vez, "no greek", mas nenhuma correção pro­posta até hoje é satisfatória. A dificuldade essencial pode ser, parece-me, locali· zada no homoion, que se refere à característica não-ente do não-ente na propo­sição de identidade: eu proponho homoios, como em 979 bS. Do contrário, po· deríamos retificar aderindo ao sentido simples: ou bem o não-ente existe, ou bem ele é não-ente.

6 Traduzo TOU <ó€> 8o)(ou'V-r0Ç', admitindo a lógica do manuscrito L (na ló­gica de R, ver Si Parménide, ad loc.).

7 Traduzo o texto, mais simples, de R: nó-rEpo'V [ ... ] e'i'VaL 11 €'i:'VaL.

8 Traduzi o texto de R: )(aL reip -rei O\lTa )(al -rã: J.l.rl o'VTa.

Pseudo-Aristóteles, De Melisso, Xenófanes e Górgias 279

Page 142: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

[61 (20) Depois deste discurso, ele diz que, se no entanto é, é ou bem não-engendrado ou bem em devir. E se por um lado é não-en­gendrado, então, isso, ele sustenta em virtude dos axiomas de Me­lisso sobre o ilimitado. Ora, o ilimitado não poderia jamais ser; com efeito, não poderia ser nem nele mesmo nem num outro; pois assim ele seria dois ou mais, o que é um e isto no que ele é; ora, não sendo em parte alguma, nada seria, segundo o discurso de Zenão sobre o espaço.

Então, por essas razões, por um lado não é não·engendrado. Mas não é tampouco engendrado. De fato, nada pode vir nem do que é nem do que não é. Se, com efeito, o ente se transformasse, não seria mais o ente, exatamente como se o não-ente se tornasse, pois não mais seria não-ente. Além disso, tampouco pode haver proveniência a partir do que é, se, tde fatot 9, o não-ente não é - (30), razão pela qual tam­pouco pode haver proveniência a partir do não-ente. Se então é ne­cessário, se realmente é alguma coisa, que seja ou não-engendrado10

ou engendrado, e se é, no entanto, <impossível>, impossível que algu­ma cOisa seja.

[7] (35) Além disso, se ao menos é, é, diz ele, um ou mais. Mas se não é nem um nem muitos, então nada seria. <Se é um,

Melisso afirma que não é; a pluralidade, que é urna soma de unida­des, também não é>. De modo que, se não é nem um nem múltiplo, (980 a) nada é.

[8] Não pode também ser movido, diz ele. Com efeito, é por nada que seria movido, visto que ou bem não é mais ou bem é tal como éll :

senão, de um lado, não seria ente, e, de outro, não sendo teria, no en-

9 Para seguir R, quase claro, é preciso, primeiramente, fazer uma correção por inversão (ver nota 8 em Si Parménide, ad Ioc). Admito que o men solitarium de L é difícil (donde meu Iocus desperatus), mas continuo considerando L mais apropriado ao detalhe do argumento.

10 Traduzo o ií'tOl de Bekker, em vez do artigo isolado dos manuscritos.

11 Ou bem fazemos uma série de pequenas correções, com Foss, que tor­nam a impossibilidade do movimento indiscerníve\ da impossibilidade da trans­formação (6); ou bem tentamos salvar a idéia de que se trata, dessa vez, da im­possibilidade de receber um impulso externo (ou,s€v(: "por alguma coisa"), e de­cidimos fazer a elipse, certamente difícil, de um particípio depois de oux â:v €-tL (15" de preferência à wcraú'twç exov. Eu o mantenho apenas por falta de uma me­

lhor solução.

280 Documentos

\ \

tanto, se tornado. De novo, se se move e se muda de lugar12, não sen­do contínuo, o ente se divide, e não é algo no ponto de sua divisão; (5) de modo que, em todo lugar em movimento, em todo lugar dividido; ora, se é assim, em todo lugar não é. Com efeito, ele diz que fica pri­vado do ente justamente onde é dividido, referindo-se ao ser dividido no lugar do vazio, como está escrito nos discursos ditos de Leucipo.

[91 Se então nada é, as demonstrações dizem tudo sem exceção13.

Pois é preciso que o representado seja (10) e que o não-ente, se pelo menos não é, tampouco seja representado.

Mas se é assim, ninguém diz que uma falsidade nada seria 14, diria mesmo que as carruagens lutam em pleno mar, pois todas essas coi­sas seriam, porque o que é visto e ouvido é pela única razão de ser a cada vez representado.

Mas se não é então por esta razão, (15) na medida em que o que vemos não é nada além disso, nesta mesma medida o que vemos, ou concebemos, é além disso. E, com efeito, do mesmo modo que lá mui­tos poderiam ver essas coisas de lá, aqui, poderíamos também ser muitos a conceber estas coisas daqui. Assim, o "além disso" não passa de tais coisas; mas quais são as verdadeiras, isso não se revela. De modo que, mesmo se são, as coisas efetivas lS seriam, decerto, incog­noscÍvelS para nós.

[10J (20) Mesmo se eram cognoscíveis, diz ele, como alguém po­deria torná-las manifestas a outrem? Com efeito, aquilo que alguém viu, diz ele, como enunciaria isto em um dizer? Ou ainda, (980 b)

12 O €v de L talvez seja muito difícil ("se se move e se desloca enquanto um" J. O €'L de R, que então adoto ("se se move e se muda de lugar"), não responde a outro interesse, senão o de tornar o texto simples.

U É isto, que range e significa, ou a invenção de um texto.

14 Creio que é possível compreender o texto, embora seja, sem dúvida, mais fácil reescrevê-lo, com pequenos contornos, no afã de reencontrar o sofisma pa­tenteado: nada é falso, diz ele.

1.5 As correções se encadeiam, frase após frase desde o parágrafo preceden­te, para produzir diversos textos a uma só vez esperados (modelados sob o para­digma de Sexto) e fortuitos. É verdade que, no caso, minha tradução não é com­preensível sem o comentário (Si Parménide, ad Ioc.), e não vejo como melhorá-la sem renunciar a traduzir algo como sendo o texto do Anônimo.

Pseudo-Aristóteles, De Melisso, Xenófanes e Górgias 281

Page 143: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

como isto se tornaria justamente manifesto a quem ouve, sem ver? Com efeito, assim como a vista não chega a conhecer os sons da voz, tampouco a audição ouve as cores, mas sons; e aquele que diz, diz, mas não urna cor, nem uma coisa. Assim, aquilo do que ninguém tem idéia, como perguntaria a um outro por meio de um dizer, ou ainda (5) como poderia ter idéia por meio de um qualquer signo da coisa que é outra - senão, se é uma cor, vendo-a, e se é um ruído, ouvin­do-o? Pois, para começar, ele não diz uma cor16, mas um dizer. De modo que não ocorre nem o conceber nem o ver17 da cor, assim como do ruído, há apenas o escutar.

[11] Além disso, mesmo se é possível conhecer e dizer o que se conhece18, como diabos aquele que ouve terá a mesma coisa na idéia? (10) Pois a mesma coisa não tem o poder de estar ao mesmo tempo em vários e que estão separados: dois seria, então, um.

Além disso, diz ele, mesmo se uma coisa, sempre sendo a mes­ma, estivesse em vários, nada impede que ela não lhes pareça seme­lhante, para eles que não são, em todos os aspectos, semelhantes; e se ela estivesse em um mesmo, na medida em que um tal um exista19, eles seriam um e não dois.

Nem a si próprio (15) parecem surgir percepções semelhantes àquelas que temos em um mesmo tempo, mas outras, pela audição e pela visão e, diferentemente, o instante presente do instante passado. De modo que ainda menos se perceberia exatamente a mesma coisa que um outro. Assim, se há algo cognoscível2o, ninguém poderia mos­trá -lo a outrem, porque as coisas não são dizeres, e ninguém tem na idéia a mesma coisa que um outr021 .

16 Corrijo o Sé por y€.

17 O texto de L, que traduzo, faz sentido quando distingue o momento da sensação (ennoein) do da transmissão (dianoiesthai). O texto de R é, evidentemen­te, mais simples: "Também não é possível pensar uma cor, só se pode vê-la; nem pensar um som, só se pode ouvi-lo".

18 Traduzo aqui a emenda de H. Diels: YLjVWox€LV L€ )((xl a lJ.v YLjVWoxll

ÀÉY€Lv.

19 Traduzo LOlOlrro ao invés do ''WLOÚLOU dos manuscritos. Nenhuma emen­da é satisfatória, inclusive a minha.

20 Traduzo a emenda de Cook Wilson: o\hwç; otv EL eCTLl Lt jVwcrróv.

21 Admitamos a supressão de Foss: OUO€lÇ" féL€POV] €LéP'f Lalnov eVVO€L

282 Documentos

-~

[12] (20) Todas estas aporias22 pertencem a autores mais anti­gos, de tal modo que, no exame que delas fazemos, é também a isto que é preciso se aplicar.

* ,;. ,;.

ADVERSUS MATHEMATICOS (VII, 65-87)

Sexto Empírico

Salvo indicação contrária, traduzo aqui o texto editado por Untersteiner (Sofisti, lI, pp. 36-56).

,;. ,~ *

(65) Górgias de Leontinos militava nas fileiras daqueles que abo­liram o critério, mas ele não procedia da mesma forma que os pro­tagóricos. Em seu escrito, Sobre o não-ser ou sobre a natureza, ele coloca em questão três preceitos que se seguem: um, o primeiro, que nada é; o segundo, que mesmo se é, não pode ser apreendido pelo homem; o terceiro, que mesmo se pode ser apreendido, não pode, portanto, ser formulado e explicado a seu próximo.

(66) Que, por um lado, nada é, ele o deduz da seguinte forma: se "é,,23, ou bem é o ente ou o não~ente, ou bem são o ente e o não-

("ninguém apreende uma coisa outra, no lugar de um outro, como sendo a mes­ma" era a minha interpretação da repetição).

22 Traduzo aqui a emenda de Mullach, aTtacrat bE atrtm.

23 E'L ràp EC,.n. Em concordância com Untersteiner, não adoto o acréscimo de Bekker (eCTLt Lt), porque se trata, como no De M.X.G., da tese de Parmênides (lI,I.lev OTtwç; eCTLLv, 28 B 2, 9, D.K.), transformada por Górgias em hipótese. Para que "fosse", seria preciso que o verbo tivesse um sujeito, mas todos os sujeitos possíveis se revelam "não ser": "não há, então, algo a ser" (OU)( lJ.pa eCTLt LL). Tal é, precisamente, o sentido de oUbev 'éCTLt v: não se trata da meonrologia de uma afir­mação niilista ("é o nada que é"), mas de um discurso segundo, determinando a crítica de todas as afirmações possíveis da ontologia (após a negação efetiva de tudo o que pode ocupar o lugar de sujeito, fica o "nada é").

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos 283

1

Page 144: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ente24. Ora, não é nem o ente, como ele estabelecerá, nem o não-ente, como ele sustentará, nem ° ente e o não-ente, como aqui ainda ele ensinará. Não há, portanto, qualquer coisa para ser.

(67) E, certo, ° não-ente não é. Pois, se ° não-ente é, então, será e ao mesmo tempo não será; com efeito, à medida em que, de uma par­te, é pensado como não sendo, não será; mas, à medida em que é não­ente, em sentido inverso, será: ora, é perfeitamente absurdo que uma coisa seja e ao mesmo tempo não seja. O não-ente, portanto, não é.

Outro argumento: se ° não-ente é, o ente não será; eles são, com efeito, contrários entre si, e se ao não-ente pertence o ser, ao ente per­tencerá o não ser; ora, não é, decerto, verdade que ° ente não seja25 :

o não ente, portanto, também não será.

(68) Além disso, o ente também não é26 . Pois se ° ente é, é ou bem eterno, ou bem engendrado, ou bem eterno e engendrado ao mes-

24"HTOL TO 6'V ~o-rl'V 11 TO JJ.Tl O'V, 11 XClL TO 6'V ~o-rL XClL TO JJ.Tl 6'V: é preciso construir, em função das duas ocorrências de "é", não três sujeitos, como ocorre nas traduções francesas, mas dois: "o ente ou o não-ente, com exclusão de um pelo outro", e "o ente e o não-ente, simultaneamente". O que, evidentemente, não inviabiliza, na demonstração, a consideração sucessiva de três candidatos ao "é": o ente apenas, o não-ente apenas e "o ente que é, ao mesmo tempo, não-ente" (TO 6'V XClL JJ.Tl O'V com, excluindo o acréscimo de Bekker mantido por Untersteiner, um só artigo em fator comum para este "ente-e·não-ente" que, numa formalização,

seria escrito ent~e parênteses).

25 OUXL SE Te: TO O'V ~o-rL'V: "não é verdade" que o ente não seja, no sentido de "não se pode dizer que", "ir is not the case". Esta fórmula é o que temos, na falta de uma solução melhor, para manifestar o reforço, e não a anulação, que este tipo de dupla negação produz no grego. Devido à ordem das palavras e à sucessão da negações, apenas as expressões parafrásticas poderiam tornar perceptíveis as nuanças das seguintes formulações: TO )J.€'V )J.Tl O'V OUX ~o-rl'V (§ 67), "o ente não é";oux apa ~O"TL TO J.1Tl O'V (§ 67), "não se pode, então, dizer que o não-ente seja"; ObXL 6e Te: TO O'V OUX '€o-rl'V (§ 67), "não é, certamente, verdade que o ente não seja"; e, por exemplo, oux apa OUSE T€VllTÓ'V €o-rL TO O'V (§ 71), "também não se pode dizer que o ente é engendrado".

26 "Além disso, o ente também não é" deve ser reunido a "E, certo, o não­ente não é (início do § 67): tal como o não-ente, o ente não pode servir como su­jeito de "é", na medida em que, desta vez, não se chega a se lhe atribuir nenhum dos dois predicativos contrários, necessários, no entanto, a toda consistência do ser. Esta proposição pode subsistir junto com a recusa de ferir a doxa ontológica,

284 -Documentos

mo tempo. Ora, não é nem eterno, nem engendrado, nem os dois a uma só vez, como iremos mostrar. O ente, portanto, não é.

Com efeito, se o ente é eterno (pois é por aqui que se deve come­sar), não tem começo. (69) Pois o que está em devi r, sem exceção, tem um começo, enquanto que o que é eterno, tido como não engendra­do, não teve um começo, e, não tendo tido um começo, é ilimitado. :Ora, se é ilimitado, não está em parte alguma; com efeito, se está em 'alguma parte, isto no qual está é um outro, diferente dele, de tal for­r'ma que, o ente, encerrado por alguma coisa, não será mais ilimitado; !pois aquilo que encerra é maior do que o que é encerrado; ora, nada é maior do que o ilimitado, de tal forma que o ilimitado não está em parte alguma. (70) Além disso, não pode estar encerrado nele mesmo, pois aquilo no interior do qual está e aquilo que está em seu interior

Y serão uma mesma coisa, e o ente se tornaria dois, lugar e corpo, pois aquilo no interior do qual está é um lugar, e o que está em seu inte­rior é um corpo; o que é um absurd027. Em conseqüência, o ente tam­bém não está no interior dele mesmo. De modo que, se o ente é eter­no, é ilimitado; se é ilimitado, não está em parte alguma; se não está em parte alguma, não é. Então, se o ente é eterno, não é, nem mesmo para começar, ente. (71) Além disso, o ente também não pode ser engendrado. Com efeito, se foi engendrado, foi ou bem a partir de um ente ou bem a partir de' um não-ente. Ora, não foi engendrado nem a partir do ente (pois se é ente, não foi engendrado, pois já é), nem a partir do não-ente, porque o não-ente não pode engendrar algo, pois O que engendra algo tem, forçosamente, necessidade de participar da realidade. O ente, portanto, também não é engendrado. (72) Do mes­mo modo, ele também não é os dois a uma só vez, eterno e ao mesmo

'tempo engendrado; pois são termos excludentes um do outro, e se o :ente é eterno, não foi engendrado, e se foi engendrado, não é eterno.

aludida no parágrafo precedente na forma da negação reforçada: "ora, certamen· te não é verdade que o ente não seja": não é verdade que ele não seja, mas ele não é, como fica provado pela demonstração que se tira proveito do princípio de não­contradição.

27 Absurdo diz-se ã-rolTo'V, literalmente "sem-lugar" (formado a partir de-ró lTOÇ', "lugar"): os atributos do ente e a ordem demonstrativa, discursos e meta·dis­cursos, formam homologias (cf § 68, lxpXTÉOV, "é deste ponto - daqui - que devemos começar", ou, § 70, oUSe Tij'V lxPXTl'V ÕV €c,-n 'V, "e não é, nem para come­çar, ente", e, § 68 e.g., e oUx EXe:t Tt'Và àpx1Í'V, "não tem começo").

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos 285

Page 145: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

l

Em conseqüência, se o ente não é nem eterno nem engendrado nem os dois a uma só vez, o ente, sem dúvida, não é.

(73) Outro argumento: se é, é ou bem um ou bem muitos; ora, : não é nem um nem muitos, como ele vai estabelecer; o ente, portanto, , não é. Com efeito, se é um, ou é quantidade ou é continuidade ou é

grandeza ou é corpo; mas, o que quer que possa ser de tudo isso, nã'o é um: tomado como quantidade, será dividido, e se é contínuo, será fracionado; de igual modo, pensado como grandeza, não será indivi­sível, e se tomado como corpo, será triplo, pois terá altura, largura e profundidade. Ora, é no mínimo absurdo dizer que o ente não é nada disso. O ente não é, portanto, um. (74) Além disso, também não é muitos. Com efeito, se não é um, também não é muitos; porque a pluralidade é uma reunião de unidades: eis porque, suprimindo o um, também suprime-se, simultaneamente, a pluralidade.

Assim, que o ente não é e que o não-ente não é, eis o que se con­clui com evidência.

(75) Que ambos, o ente e o não-ente, também não são, infere-se facilmente. Com efeito, se se supõe que o não-ente é e que o ente é, o não-ente será idêntico ao ente, ao menos quanto ao ser; e, por esta razão, nenhum dos dois será; pois, que o não-ente não seja, há con­cordância; ora, mostrou-se que o ente é idêntico a ele: ele também, por conseguinte, não será. (76) De qualquer modo, se se supõe que o ente é igual ao não-ente, ambos não podem ser. Pois, se ambos são, não são o mesmo, e, se são o mesmo, ambos não são.

De onde se segue que: nada é. Pois, se não é nem o ente, nem o não-ente, nem ambos a uma vez, e que, fora destes, nada é concebi­do, nada é.

(77) Mas que, mesmo se algo é, é, para o homem, incognoscível e inconcebível, é preciso, para se prosseguir, mostrar.

Com efeito, se as coisas pensadas28, diz Górgias, não são entes, o ente não é pensado. E é lógico; pois, se cabe às coisas pensadas se-

28 Traduzo o mesmo particípio substanrivado 'tà <ppoVOÚJ.lEVU, a princípio, por "as coisas pensadas" e, a seguir, por "os pensamentos", no afã de revelar que ele equivale tanto a -rOLe; ÀEU)(QLe;, que só podemos traduzir por "as coisas bran­cas", quanto a -rã I5v'tu, "os entes"; de igual modo, traduzo o verbo, a princípio, por "ser dos pensamentos" e, a seguir, por "ser pensado". O que está, a cada vez, em questão, e da mesma forma, é o tipo de realidade próprio à representação.

286 Documentos

~

rem brancas, então, também caberia às coisas brancas serem pensa­mentos; se cabe às coisas pensadas não serem entes, então, necessaria­mente, caberia aos entes não serem pensados. (78) Eis porque é váli­do e consistente afirmar que "se os pensamentos não são entes, o ente não é pensado". Quanto aos pensamentos, visto que a premissa os supõem, não são entes, como estabeleceremos. O ente não é, portan­to, pensado.

E29 que os pensamentos não são entes, é evidente. (79) Com efei­~ to, se os pensamentos são entes, todos os pensamentos são, e isto de . qualquer maneira que neles se pense. O que está longe de ser eviden­(te. E, se assim ocorre, é pernicios030. Pois não é porque se pensa num ': homem que voa ou em carruagens que correm no mar, que logo um 'homem voa ou carruagens correm no mar. De tal modo que os pen­samentos não são entes.

(80) Além disso, se os pensamentos são entes, os não-entes não serão pensados. Pois, aos contrários cabem atributos contrários; ora, o contrário do ente é o não-ente; e eis porque, se cabe ao ente ser pensado, caberá ao não-ente não ser pensado. Ora, isso é absurdo, visto que a Cila *, a Quimera 'i- * e muitos não-entes são pensados. O ente não é, portanto, pensado. (81) Tal como as coisas vistas são ditas visíveis porque são vistas, e as coisas audíveis, audíveis porque são ouvidas, e que não

y rejeitamos as coisas visíveis porque não as ouvimos, nem eliminamos as coisas audíveis porque não as vemos ~~~~oria, cQnLef~i!º, .. ~~ye ser julgada pelo s~Lc!9guelhe é..<,sJ)ecífi<:.Q,SE.ª-º.JLQr UIlLºJ1P:9), as­s"lr~~:-;s ~ois~sadas, mes~~-~e não são vistas pela visão nem ouvi­das pela audição, também serão, pelo único fato de serem apreendidas

29 Diferentemente de Untersteiner, não conservo o acréscimo de Bekker: o de um JJ.:r)v depois do )«XL inicial.

30 Bekker, sempre atento, suprimiu esta frase: E'L 6É €O""tL, cpauÀov. Prefiro mantê-la, não a tomando em sentido lógico ("é um raciocínio falso"), mas, de acordo com a conotação mais freqüente do adjetivo ("vil", "mau"), em sentido mo­ral: supondo que o raciocínio seja válido, sua conclusão não apenas choca o sen­so-comum (ela está "longe de ser evidente", à1T€J.l.<puLvov, que retoma O"UJ.l.<puvÉe;, "é evidente"), mas é perigosa, uma vez que os pensamentos mais alucinados se­riam realidade apenas porque são pensamentos.

* Monstro marinho que vivia no golfo da Sicília. [N. da T.]

"" Monstro fabuloso, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dra­gão. [N. da T.]

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos 287

Page 146: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

a partir do critério que lhes é próprio. (82) Se, com efeito, alguém pen­sa que carruagens correm sobre o mar, mesmo se não as vê, é, mesmo assim, levado a crer que carruagens estão correndo sobre o mar. Ora, isto é absurdo. O ente não é, portanto, pensado e apreendido.

(83) Por outro lado, mesmo se é apreendido, é incomunicável a outrem. De fato, se os entes são visíveis, audíveis e, de maneira geral, sensíveis3!, eles que, precisamente, subsistem do lado de fora, mas32

que, dentre estes, os visíveis sejam apreendidos pela visão, os audí­veis pela audição, e não contrariamente, então, como podem ser re-

31 E'l rdp -rei o'V't(l oPCXTeX ecrn XCtl rocoucrrà xal XOL 'VwÇ' clLcr{}-rrrá. Obser­vemos a trama de contra-sensos constituídos tanto na tradução de Dumant, quan­to na de Poirier: "Pois se existem seres exteriores a nós, objetos da visão, da au­dição ou do sentido comum" (Dumont, p. 74), retificado em: "Pois se existem seres visíveis, audíveis e universalmente sensíveis" (Poirier, Les Présocratiques, p. 1026). O que ocorre é que, por um lado, a frase não pode, nem sintaticamen­te nem logicamente, dizer respeito à existência dos entes (pois pertence a forma 'S é P', como testemunha o lugar e a acentuação de estij a concessão sobre a exis­tência já ficou para trás com a frase que a precede, no início do parágrafo: "se é apreendido, é incomunicável a outrem".) E que, por outro lado, a existência de um sentido comum, mesmo no sentido aristotélico do termo, é aberrante; o Gór­gias de Sexto se situa aqui, de fato, exatamente no nível do que o De Anima de­signa como os sensíveis próprios - visível, como objeto próprio da visão; audí­vel, como objeto próprio da audição, sem recíproco, passagem ou inversão (xcxl oux €\lcxÀÀá'g), e, visto que ele chega a argumentar sobre a irredutibilidade abso­luta destes próprios, não pode querer inventar nem um sexto sentido que valha por todos, nem um cadinho comum de sentidos, de onde se poderia inferir as ca­racterísticas de um objeto comum a mais de um sentido (sua grandeza, seu mo­vimento, para retomar Aristóteles). Toda a questão do De Anima, se toma­mos o tempo, considerável, necessário a uma leitura em detalhe, consiste, creio eu, precisamente com a invenção do sentido comum, em construir a passagem do sensível próprio ao objeto ou à substância, e do enunciado perceptivo ("exis­te branco", "este branco") à frase lógica ("o filho de Díares é branco"), logo do fenômeno ao discurso: ora, isto é, precisamente, o contrário do que Górgias pro­cura provar aqui, e que deve, pelas necessidades da incomunicabilidade, manter a separação, por um lado, entre os domínios próprios de cada sentido, por outro lado, entre entes sensíveis e discursos. Enfim, renuncio a explorar a idéia, no con­texto do Tratado, de um ser "universalmente" sensível.

32 O O€ do bom manuscrito N ("t€: LEs), que traduzo, insiste no cerne do raciocínio, que se atém a singularidade inviolável de cada categotia de sensíveis e de cada sentido.

288 Documentos

velados a outrem? (84) Pois o meio através do qual revelamos é o dis­curso, mas discursos não são as coisas que subsistem e que são. En­tão, não são os entes que revelamos ao próximo, mas o discurso, que difere das substâncias. Com efeito, assim corno o visível não se tor­naria audível, e vice-versa, assim, visto que o ente subsiste no lado de fora, não se tornaria - o nosso - discurso. (85) Ora, não sendo33 discurso, não se mostraria a outrem.

Quanto ao discurso, afirma, ele se constitui a partir dos objetos que nos chegam do de fora, isto é, das coisas sensíveis. Pois é do en­

'f contro com o sabor que se forma, em nós, o discurso que emitimos sobre esta qualidade, e da incidência da cor, o discurso sobre a cor.

Assim sendo, o discurso não é "comemorativo" do de fora, é o de fora que se torna revelador do discurs034.

.13 Bekker propõe o particípio neutro (ã\l) em vez do masculino (w\I)j pou­cos o editam, embora todos o traduzam. De fato, o masculino só poderia admi­tir como sujeito o discurso, e deveríamos então compreender: "o discurso não sen­do"; isto poderia, talvez, encadear-se com o que vem logo a seguir: o discurso não é um ente que existe no exterior, embora se constitua a partir dos entes que estão "fora". Logo, seria preciso interpretar óT)Àw,'}€(T] remetendo à revelação sen­sível, e não à revelação discursiva, isto é, à significação. Enfim, estaríamos dan­do outra nuança às partículas de ligação. Eis, então, qual seria o sentido: "Por outro lado, visto que o discurso não existe, não pode ser revelado a outrem. De fato, o discurso, certamente, [ ... ]". O inconveniente desta interpretação, fiel aos manuscritos, deve-se à suposição de que os entes são, ao menos deiticamentc, reveláveis a Outrem.

Ger. supra, pp. 55-61. Não há conseqüência, mas ruptura, ou, ao menos, passagem a um outro argumento, do que ficou, arbitrariamente, constituído no § 85. Para compreender o que se passa, é preciso recolocar o argumento em seu contexto que, de fato, apresenta a mesma estrutura de distanciamento concessivo, característica do tratado como um todo. Proponho, para essa difícil passagem, re­tomar o conjunto da seguinte forma:

I. Nada é. 11. Mesmo se é, não pode ser apreendido. 1Il. Mesmo se pode ser apreendido, não pode ser comunicado. III. 1. A princípio, porque os entes e o discurso não possuem o mesmo tipo

de consistência e, portanto, não pode haver nem confusão nem passagem de um a outro. Os entes, que são sensíveis subsistentes no "de fora" ("objetos", "substân­cias", duas maneiras complementares de traduzir hypokeimena, 84, cf hypokeitai, 83), são apreensÍveis apenas pela sensação imediata que deles temos; o visível, em função da visão; o audível, pela audição. Nosso discurso não é da mesma nature­za do que a dos entes, e que não há nem relação entre entes e discursos nem entre

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos 289

Page 147: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(86) Além disso, não é possível dizer que é da maneira que as coisas visíveis e audíveis subsistem, que subsiste o discurso, de sorte que as coisas que subsistem e que são possam ser reveladas em fun­ção de um discurso, que subsiste e que é. Pois, diz ele, se o discurso é, de igual modo, subsistente, mas que se distinga das demais coisas que_ subsistem, então, os corpos visíveis são os que mais diferem dos dis­cursos; pois o visível é apreendido por um órgão, e o discurso por uma outra espécie de órgão. O discurso não chega, portanto, a designar a massa restante das coisas que subsistem, da mesma forma que estas não deixam transparecer, mutuamente, suas naturezas.

(87) Tais são, portamo, as aporias desenvolvidas por Górgias: o critério da verdade se dilui, tanto quanto permanece em seu poder. Pois do que não é, do que não pode ser conhecido, e do que não é de natu­

,reza a ser transmitido a outrem, não poderia haver critério.

um sentido e outro. Como é por meio do discurso que comunicamos, não comu­nicamos nada mais do que o discurso (83, 84, 1" frase de 85).

111. 2. Uma vez supondo que haja uma passagem entre entes e discursos, então ela não opera no sentido necessário à comunicação: podemos passar do "de fora" ao discurso, mas, jamais, do discurso ao "de fora".

1I1. 2.1. Podemos passar do "de fora" ao discurso: a sensação de sabor ou de cor, ou seja, o encontro acidental, de um sabor e de uma cor, produz um dis­curso relativo à este sabor ou a esta cor; o "de fora" provoca uma emissão de dis­

curso (2" e 3" frases de 85). UI. 2. 2. Não podemos passar, no entanto, do discurso ao "de fora": o dis­

curso nada informa sobre o "de fora", a palavra não pode ser associada a uma

coisa (Y frase, 1" parte). Observação 1: de m. 2. 1. a III. 2. 2., é plausível pensar que passamos do

ponto de vista da emissão para o ponto de vista da recepção, ou seja, daquele que fala àquele que escuta, mesmo quando se trata de uma só pessoa. O mesmo movi­mento tem lugar no De M.X.G., no início de [lO] ("Aquilo que alguém viu, como enunciaria em um dizer? Ou ainda, como isto se tornaria manifesto a quem ouve, sem ver?"), e, talvez, no início de [11] quanto emissor e auditor podem ser uma mesma pessoa, sem que haja, no entanto, adequação entre o que é percebido-con­

cebido quando essa pessoa emite e escuta. Observação 2: com m. 2. 2., constata-se, logo em seguida, que não se trata

em 1I1. 2. 1. de um behaviorismo em que, a partir da conexão estímulo-resposta, se possa deduzir, com reciprocidade, a conexão resposta-estímulo (como se se pudesse tomar a retótica como behaviorismo generalizado). Trata-se, de preferên­cia, de uma psicologia autista do lagos, como descrição diminuta de uma origem.

m. 2. 3. Em contraposição, podemos dizer que o "de fora" torna-se (gignetai)

290 Documentos

revelador do discurso: ocorre, do ponto de vista do auditor, não uma passagem da palavra ouvida à coisa suposta, codificada ou referida (compreendo o que me dizem), mas inferência do "de fora", formado ou transformado pelo discurso, ago­ra ouvido e pleno de sentido (então era isso!).

Observação 1: não se deve minimizar o peso de ginetai, que contrasta com egginetai hemin (dizendo como o "de fora", na medida em que nos sobrevém, dá

~<,:,nascimento ao discurso). O "de fora" é o que se apresenta, mas o "de fora" é ao ,\ ! mesmo tempo, em sua própria proveniência, o produto do discurso. O argumen­

to coloca-se tanto do lado da galinha quanto do ovo. Observação 2: ei de touto, "se é desta forma", indica o a perspectiva de m.

2. 1., e que tal situação não determina qualquer ganho para o partidário da comu­nicabilidade: é possível passar do "de fora" ao discurso, mas isso não implica, no entanto, em passar do discurso ao "de fora"; pelo contrário, só se passa ainda uma vez, mesmo se em outra perspectiva, do "de fora" ao discurso.

m. 3. Enfim, supondo que os entes e o discurso possuam o mesmo tipo de consistência (que sejam todos hypakeimena, ou seja, anta), o discurso, enquanto hypokeimenon, não é suscetível, no entanto, de revelar os outros hypokeimena que dele se diferenciam, assim como, dentre estes, qualquer um é incapaz de revelar outra coisa além dele mesmo (86). Ser um objeto não implica ser, ou manifestar, um outro objeto além dele mesmo.

Observação 1: reencontramos a argumentação do início, com a irredutibi­lidade dos sentidos e dos sensíveis entre si, mas ela funciona, desta vez, não como uma analogia (o discurso e os objetos dos sentidos em geral são tão diferentes entre si quanto os objetos dos diferentes sentidos, 84), mas, se ouso dizer, por direito (o discurso, enquanto objeto, difere de qualquer outro objeto). Se se acrescenta que ocorre, então, dissimetria de tratamento entre visível e audível (o discurso é, a princípio, tomado não como um objeto subsistente, tal como "os visíveis e os au­díveis", mas, em seguida, pode-se ler que "os corpos visíveis" são os que mais se diferenciam dos discursos, pois são provenientes de um outro órgão), estamos, de novo, em pleno dever de supor que, de um parágrafo a outro, a maneira de abor­dar o lagos mudou. Nos § 83 e 84, como no início do § 85, trata-se do discurso na medida em que é "nosso" (ho hemeteros, fim 84, cf menyomen, 84 (bis), "nós revelamos"), em oposição ao que subsiste no lado de fora, ou seja, enquanto nós o emitimos, do nosso íntimo; no § 86, trata-se do discurso na medida em que se comporta, por sua vez, como um objeto do "de fora", do discurso que a audição permite ouvir. Com a hipótese do distanciamento, passamos do ponto de vista do emissor ao do auditor. Essa mudança de rumo ocorreu em III. 2. 2-3.

Sexto Empírico, Adversus Mathematicos 291

Page 148: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ELOGIO DE HELENA

Górgias

O Elogio de Helena é um texto, tal como ela, amado por orado­res e poetas, mas odiado pelo gentio respeitável; tratado com ligeire­za tanto por filólogos, como testemunham de maneira exemplar as selvagens intervenções de Otto Immisch (Gorgire Helena, Berlim e Leipzig, 1927) e seus remanejamentos fantasiosos em parágrafos cha­ves, quanto por filósofos, que o liam a seus modos, em posse de Platão, não como um jogo criador de mundo, mas como o gracejo cínico de um charlatão pretensioso.

Trata-se do fragmento 82 B 11 de Diels-Kranz (lI, 288-94), edi­tado, com modificações, por Untersteiner (lI, pp. 88-112), e traduzi­do em francês na Revue de poésie, sob a direção de M. Deguy, e, pos­teriormente, por Dumont (pp. 83-90), depois por Poirier (pp. 1031-5) 1. Procurei apoiar-me no trabalho de edição que parece ser, quan­to a mim, o mais cientificamente articulado (determinação exata das lacunas, probabilidades respectivas de faltas, avaliação comparada dos manuscritos e reflexão sobre o stemma) e o mais consciente quan­to aos riscos, o de Francesco Donadi (Encomio di Elena, Bolletino dell'Istituto di Filologia Greca, supplemento 7, Università di Padova, "L'Erma" di Bretschneider, Roma, 1982), mesmo não estando, como assinalo em nota, de acordo com suas conjecturas que, no entanto, possuem o mérito explícito de revelar, fiel a seu tempo, sua evidente inautenticidade de cimento bruto costurando os pedaços da obra.

>" ,~ ,~

(1) Ordem, para a cidade, é a excelência dos seus homens; para o corpo, a beleza; para a alma, a sabedoria; para as coisas que fazemos,

I Estamos aguardando a edição, na Belles Lettres, de Marie-Pierre Noel, a quem agradeço intensamente por ter-me permitido ° acesso a seu trabalho.

Górgias, Elogio de Helena 293

Page 149: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o valor; para o discurso, a verdade. O contrário, em cada caso, é a desordem. Homem, mulher, discurso, obra, cidade, coisa2

, é preciso, ao que é digno de louvor, honrar com um elogio; ao que é indigno, imputar uma reprovação, pois, reprovar o louvável ou louvar o que é digno de reprovação constitui um igual erro e uma igual ignorância.

(2) Cabe, ao mesmo homem, dizer com retidão o que é preciso, e contradizer [ ... ] aqueles que reprovam Helena, mulher que reúne, em uma só voz e em uma só alma, a crença dos que ouvem os poetas3 e o ruído de um nome que abriga a memória de infortúnios. Quanto a mim, espero, dando lógica ao discurso, fazer cessar a acusação que pesa contra esta mulher sobre a qual se ouve tanto disparate, demonstrar que aqueles que a reprovam, enganam-se; mostrar a verdade e dar fim

à 19norânCla. (3) Que, por natureza e por nascimento, a mulher a que se refe­

re este discurso conta, entre os primeiros dentre os primeiros homens e mulheres; eis o que não carece de evidência, e a ninguém. Pois, com toda evidência, ela teve por mãe Leda e, de uma parte, por pai natu­ral, um Deus; de outra, por pai declarado, um mortal: Tíndaro e Zeus, dos quais um, porque o era, foi reconhecido, e outro, porque o dizia, foi destituído; em todo caso, um era o mais poderoso dos homens, o outro o mestre de tud04. (4) De um tal nascimento, ela obteve a bele-

2 Não levar-se-á em contra as precedentes traduções francesas que tomam TTpãTJ.UX (o produto do TTp<XTI€LV, não o ato, mas a coisa que fazemos, o resultado do ato e, finalmente, a coisa, pura e simples, de que o homem se ocupa nesse mundo que é o seu), na primeira frase, por "ação", depois, aqui, por "assuntos privados" ou "particulares", traduzido, desta vez, por "ação", lPTOV, para designar, por oposição ao discurso, a concretude do fato e da obra (do trabalho). Untersteiner adotou uma tradição manuscrita, menos confiável, que não comporta o Xa.l dian­

te de TTpãrj..LCl.

3 Não retenho a sugestão de Immish e de Donadi (n 'te 'twv TTOLTftWV < ... > <n'te 'twv> axoooávtwv TTLo-rU;: "os <cantos> dos poetas, a crença dos ouvintes").

4 Helena, a ambivalente, tem dois nascimentos: ela possui, em termos con­temporâneos, um genitor, Zeus, e um pai, Tíndaro. Mas o genitor é também reco­nhecido como pai, mas as pretensões do pai são inteiramente refutadas: a doxa se conforma, assim, com o einai, mas o aparecer (to phanai), como o pseudos dos censores, é contradito (elegxai, elegxthe). Na medida em que o jogo das partículas, "um" ou "outro" (ho men ... ho de ... ) designando tanto um quanto outro, susten­ta a confusão, permite a Helena triunfar por sobre todas as perspectivas, como fi·

294 Documentos

- ---....,

za própria dos deuses, que ela possuía sem reservas. Ela produzia em um tão grande número um tão grande número de desejos de amor, e, com seu único corpo, reunia vários corpos de homens que tinham uma grande idéia de sua grandeza6, dentre os quais uns gozavam de uma abundância de riquezas, outros do renome de uma antiga linhagem, da boa constituição do próprio vigor, ou da força de uma sabedoria que se adquire; e todos vieram, impulsionados pelo amor vitorioso e pela glória invencível. (5) Quem, desde então, por que e como, saciou seu amor conquistando Helena, eu não direi; pois dizer aos que sabem o que sabem não carece de credibilidade, mas sim de encanto. O tem­po de então será, por meu discurso, agora transposto, e logo chegarei ao começo do discurso que se segue, e, então, farei a exposição das causas em função das quais é verossímil que se tenha produzido a via­gem de Helena a Tróia.

(6) Pois, ou bem é em função das intenções do acaso, das vonta­des dos deuses e dos decretos da necessidade que ela fez o que fez, ou bem por ter sido raptada com violência, ou bem por ter sido persua­dida pelos discursos?

Iha de um rei dos homens e como filha do rei dos deuses. Traduzi o texto editado por Donadi (lição de 5, 'Ç: 'tou j..L€v T€'\IOj..LÉvou 0€ou, 'tou 5E À€rOj..LÉvou). A lição de A seria: "seu pai foi um deus, que a engendrou, mas ele passou por um mortal". Aqui, mais uma vez, erraríamos se nos fiássemos à tradução de Poirier.

:; A aliteração grega permite compreender, e, sem dúvida, com maior ino­cência: "beleza que ela possuía, tendo-a recebido, sem ocultá~la", ÀClj3000a. Xa.l ou Àa.,}oooa..

6 Pouco convencida aqui por Donadi, retenho, como de costume, a lição de A, j..Lérex (e não j..L€Tála.) <ppovoúv"'[wv. A expressão significa, a uma só vez, "ter o coração destemido" - herói como leão - e "estar pleno de presunção", e, com o complemento €TTl j..L€Tc1ÀOLÇ', "conceber grandes pensamentos sobre grandes coi­sas", "ter grandes motivos de orgulho".

7 Uma menção marginal (em La, Ald, Y) acrescenta "ou bem por ter sido tomada pelo amor", que o editores inserem, geralmente, anunciando a "quarta causa" desenvolvida no § 15 (Immisch mantém-se ainda mais próximo do "desen­volvimenro": "ou bem enamorada pela visão"). Apenas Untersteiner acredita que se trata, com a primeira possibilidade {ele escolheu a lição de~: TúXT]Ç' j30UÀlÍJ..La.'tL ){(Xl 0ewv X€ÀMj..La.n xa.L' Avá)'XT]Ç' t/JT)<pCO"j..La.'tt, per decisione deU'Evento o per ordine degli Dei o per decreto della Necessita), de uma parte do primeiro argu­mento (os deuses), e de outra parte do quarro (o acaso no sentido do acontecimento,

Górgias, Elogio de Helena 295

Page 150: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Se é o primeiro caso, aquele que está em questão merece ser ques­tionado, pois o desejo de um deus, a previdência humana não tem o poder de obstruir: é natural que o mais forte não seja obstruído pelo mais fraco, que o mais fraco seja comandado e conduzido pelo mais forte, que o mais forte seja o condutor e o mais fraco o conduzido. Ora, um deus é mais potente do que um homem em força, em sabê':-­daria e em todo o resto. Então, se é preciso fazer a causa remontar ao acaso e ao deus, é preciso, também, libertar Helena de sua desonra.

(7) Mas, se foi pela força que ela foi raptada, forçada contra todo direito e ultrajada contra toda justiça, é evidente que o raptor, tendo cometido o ultraje, é culpado de injustiça e que aquela que foi rapta­da, tendo sofrido o ultraje, foi vítima de um erro. Aquele que, bárba­ro, empreendeu um empreendimento bárbaro, tanto em função do discurso quanto do direito e da prática, merece, então, que o acaso lhe traga, pelo discurso, uma incriminação; pelo direito, uma atimia; pela prática, uma punição. Aquela que foi forçada, privada de sua pátria, separada dos seus, como não seria verossímil que ela desse ensejo à piedade, e não a ditos injuriosos? Pois ele cometeu horrores, enquan­to ela os sofreu: então, é justo que ela inspire a piedade, enquanto ele, a aversão.

(8) Mas se aquele que a persuadiu, que construiu uma ilusão em sua alma, foi o discurso, também não será difícil defendê-la contra esta acusação, e destruir a inculpação da seguinte forma: o discurso é um grande soberano que, por meio do menor e do mais inaparente dos

a necessidade). Quanto a mim, a quarta parte parece indicar o início de um novo tempo na argumentação. Com efeito, os três momentos, aqui <lpenas anunciados, têm em comum o fato de apresentarem uma Helena vítima, impotente, passiva, quer sob efeito do golpe da vontade dos deuses, quer sob efeito da violência de um homem ou da tirania do discurso, golpes cada vez mais irresistíveis. O quarto motivo, para dizer sem volteios, é o de uma Helena culpada, mulher que escolheu, de coração, partir em fuga com o homem que lhe agradava. f: esta adúltera que Górgias, cada vez mais convicto, chega, por certo, a inocentar: ela será, ainda uma

vez, apenas a vítima, a vítima dos seus próprios olhos. Atendo-me, sobretudo, à estrutura de enunciação em contraste do início do

§ 15 (on J.1€\l [ ... ] nl\l cS€) c a retomada da primeira pessoa (bl€~€tJ.1l), proponho não reter ou inventar qualquer acréscimo, e de encontrar, aqui, apenas o anúncio de uma primeira parte do discurso: Helena não cometeu falta alguma (obx nsLXIlO"€V, 15), enquanto que, na segunda parte, ela é culpada, mas passível de defesa. Basta, parece-me, que a peroração do § 20 reúna, finalmente, os quatro motivos.

296 Documentos

corpos, realiza os atos mais divinos8, pois ele tem o poder de dar fim . ao medo, afastar a dor, produzir a alegria, aumentar a piedade. Eu vou mostrar que é bem assim que ocorre. (9) E é preciso que eu o revele, àqueles que me escutam, apelando também para a opinião comum9•

Considero e defino toda a poesia como um discurso sob medida. So­brevêm, naqueles que a escutam, o tremor que habita o medo, a pie­dade que abunda em lágrimas, o luto que se compraz na dor, e a alma experimenta, diante das alegrias e dos reveses que advêm de ações e de corpos estranhos, por intermédio dos discursos, uma paixão que lhe é própria. Passemos, assim, de um a outro por meio do meu dis­curso 1 o. (10) As encantações que os deuses inspiram vêm, através das palavras do discurso, provocar o prazer, afastar a dor, pois a força de um sortilégio, na medida em que penetra a opinião da alma, a atrai, a persuade e a transforma como que por magia. Foram descobertas as artes duplas 1!, o sortilégio e a magia capazes de determinar os erros da alma e as ilusões da opinião. (11) Tantos existem que persuadiram

8 Contrariamente ao que as traduções francesas permitem notar (Dumont: "Discurso é um grande tirano que, por meio de microscópicos elementos materiais perceptíveis, leva a cabo as ações divinas" (sic), e mesmo Poirier: "Este elemento material de uma extrema pequenez e totalmente invisível conduz as obras divinas a sua plenitude")., o discurso não é o instrumento dos deuses. O discurso é, de pre­ferência, um deus, na equação que se forma entre sua pouca materialidade (os sons são tão inapreensíveis quanto os átomos) e seu imenso poder.

9 ~€l b€ )CaL oo'Sn b€lsat 'tole; CxxoOOvcrL. A expressão aliterativa comporta dois dativos, e não é p~ssível tomar o segundo como se fosse um genitivo (o reve­lar "à opinião dos auditores", Dumom, Poirier e.g.). Donadi, que segue Diana, propõe tomar o primeiro como um dativo instrumental: "o revelar àqueles que me escutam por meio de suas próprias experiências", ou, como creio, sobretudo por conta das intervenções em primeira pessoa que se seguem imediatamente, fazendo eco com a opinião comum que Górgias exprime e constitui com o mesmo gesto.

10 Parece-me que a expressão, assim colocada (npàç' tJ.ÀÀov ar?!. ttÀÀOU), é suscetível de equivocidade: não é apenas a anunciação de que Górgias passa ago­ra a um outro argumento, nem mesmo a de que desliza de um argumento a outro c a de que seria preciso segui-lo (cf Mourelatos, p. 163 e n. 65), mas a de que coloca em prática esta ação que ele acaba de definir, e que permite passar alguma coisa de um outro ao outro, isto é, a criação de um próprio a partir de um estrangeiro.

II .6.tO"O'al T€XVCXl, como os célebres btcrcrOl ÀÓrOl, pàrece-me designar não "duas artes" cujos comenta dores costumam, aliás, se perguntar quais são (poesia e prosa, arte oratória e farmácia, nos revela Dumont), mas "artes duplas" capa­zes de dizer c de fazer crer tanto numa coisa quanto em seu contrário, o verdadei-

Górgias, Elogio de Helena 297

Page 151: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

e persuadem, tantas pessoas e de tantas coisas, produzindo um discurso falso. Pois se todos, de tudo guardassem a memória do que se passou e pudessem prever presente e futuro12, o discurso, permanecendo o mes­mo, não iludiria de um mesmo modo13. Mas, em realidade, não há meio de lembrar do passado, nem de examinar com cuidado o presen­te, nem de ser o oráculo do futuro. De modo que, na maior parte dos casos, a maior parte dos homens fornece à alma a opinião como con­selheira. Ora, a opinião, que é vacilante e sem resistência, coroa aque­les que dela fazem uso de uma felicidade vacilante e sem resistência.

(12)14 Então, qual causa impede que, de igual modo, também Helena, que não era jovem, fosse, como um lugar para a violência, pe-

ro e o falso, ou o enganoso (tjJruóTí ),,6'(0\1) que constitui o objeto de uma modela­gem, de uma ficção (1TÀácravret;, 11; sobre esse termo, ver pp. 493 e 55.). Cf. ÚLcrad àcndlO'cxv"t€Ç, no Epitáfio (B 6D.K., 11, p. 286, 1), em uma frase cuja interpreta­ção não é muiro mais garantida.

12 Sustento aqui, como Pietro Bembo, a dissimetria entre o passado, por um lado, objeto da memória, e presente e futuro, por outro lado CtW\I 'T€ napó\I'twv t'wv 'te J.l.€ÀÀÓ\I'tW\l), que será preciso prever, isto sem crer na necessidade de acres­centar, como se faz desde Blass no afã de harmonizar com a frase seguinte, um 'te antes de ncxpoLXoJ.!€vwV, ou na necessidade de inventar um €vVOLCXV após ncxpáv'twv ("memória do passado, consciência do presente, presciência do porvir").

13 Adoto, com Donadi e tal como Untersteiner, a restauração de Blass: oux &.\1 OJ.l.OLwç O).lOLOÇ' W\I (lição de X) o M'(OÇ' Íl<ná>tcx' \lUV 6e [ ... 1. Na frase que se segue, €urrópwç; ~X€L, é, então, um impessoal: "não há meio nem de [ ... 1 nem de". A outra possibilidade, proposta por Diels, é a de ler: oLx &.\1 0J.l.0(wç; OJ.!OLOÇ' ~v (lição de A), oíç; 'tã \lUV '(€ [ ... 1 €l.mópwç; €x€L, para ser literal: "o discurso não se­ria semelhantemente semelhante; mas, para as pessoas que não podem (em elipse, mas o que fazer do Lã?) lembrar do passado ... , ele (o discurso) se faz com abun­dância" ("é pleno de recursos"). A lição dos manuscritos (ã 'Tã, Xl; 11 'tã, A; ~ 'tei, X2), não faz pender a balança, e a análise é ainda mais difícil no segundo caso.

14 As duas primeiras frases deste parágrafo encontram-se em estado deplo­rável. O texto de Diels, repleto de cruzes, não é uma recuperação e não pode ser reconstruído (mesmo quando Poirier acredita tê-lo traduzido). Para a primeira frase, resolvi-me pela opção, relativamente mais econômica, de Donadi, que en­contra uma glosa ou um resíduo na seqüência Ü).l\lOÇ' t0,-&€V de AX, embora con­serve, como um neologismo gorgiano, ~LCXCJ"tlÍplO\I, "lugar onde a violência é prati­cada", a partir de 6LxCXCJTIÍPlOV, "o tribunal", "lugar onde a justiça é praticada", como no <Ppo\l'tl<rnÍPLOV das Nuvens de Aristófanes ("o pensatório", 94 e.g.). O outro tipo de opção possível é a de Untersteiner, que conserva, corrigindo para obter o infinitivo necessário após XWÀÚ€L, Ü).lvo<u>ç; <€L<J)Ü1l€lV, mas suprimin­do ~LCXníPLO\l (ou ~Lao-níPLov) para que o €L recaia sobre Ílpná<J1lll (A~, contra o

298 Documentos

, y

la violência raptada? [ ... ] Pois o discurso que persuade cria uma ne-: cessidade na alma que ele persuade, de ser, a uma só vez, persuadida pelas coisas que são ditas e condescendente face às coisas que são fei­tas. Aquele que persuade, na medida em que constrange, comete en­

. tão uma injustiça, mas quanto à persuadida, na medida em que foi constrangida pelo discurso, é sem razão que dela se ouvem impreca­ções. (13) Que a persuasão, que adentra o discurso, imprime também na alma as marcas do que bem quiser, é necessário tornar-se conscien­te, a princípio, com O discurso daqueles que falam do céu, daqueles que, opinião contra opinião, eliminando uma, desenvolvendo outra, fazem com que coisas incríveis e invisíveis brilhem aos olhos da opi­

, nião; em segundo lugar, com os combates constrangedores por meio de discursos, quando um único discurso encanta e persuade uma mas-sa considerável, e quando é a arte que engendra a sua redação e não a verdade que determina o seu pronunciamento; terceiro, com os con­flitos entre discursos filosóficos, onde também se mostra a rapidez do

. juízo, capaz de modificar, com facilidade, a confiança depositada na ~ (opinião. (14) Pois existe uma mesma relaçãol5 entre poder do discur-

1 ,:so e disposição da alma, dispositivol 6 das drogas e natureza dos cor­

!pos: assim como tal droga faz sair do corpo um tal humor, e que umas

infinitivo completivo apn(X(J{}~\lat, já contido em La, Ald, mantido por Donadi): "quale ragione impedisce que [ ... ] a Helena possano essere giunte [ ... ] incanta­gioni [ ... ]". Por minha parte, compreendo que Helena está submetida, como os auditores e, em particular, os juízes que a opinião influencia, ao rapto não físico (não mais a criança por quem Teseu se apaixona, cf. Isócrates, Hei. 18, ou Lu­ciano, Charidemu5, 627), mas lógico, o da sedução discursiva. A frase seguinte, que no momento renuncio a reconstituí-la, parece explicar a precedente em fun­ção do poder da persuasão face à necessidade (nõ '(eip TI)ç; n€L -a-õuç; eçn\l b U VOlX; XCXL'tOL €L twárxT} o €L&.JÇ; €'Ç€L ;l€\I otv, "t"ijv 6e M\lCXJ.!€L, nlv aL"t"ijv ~€t t, em Donadi). Marie-Pierre Noel, na tradução provisória que ela me confiou com tanta presteza, propõe o seguinte: "Pois o que é próprio à persuasão é a posses­são, e o discurso realiza atos equivalentes à necessidade divina [ ... ] e ele possui o mesmo poder".

1S Sempre fundadora da retórica, essa analogia utiliza, evidentemente, o mesmo termo, À6'(0Ç', para se referir a um modo definitivamente grego de se dizer, a uma só vez, a "relação" e o "discurso".

16 "Disposição", "dispositivo", traduzem o mesmo termo, 'tá'ÇLÇ;, que nos remete à maneira como as coisas se "posicionam em um determinado lugar", co­mo um exército que toma posição para a batalha.

Górgias, Elogio de Helena 299

Page 152: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

fazem cessar a doença, outras a vida, assim também, dentre os discur­sos, alguns afligem, outros encantam, fazem medo, inflamam os ou­vintes, e alguns, por efeito de alguma má persuasão, drogam a alma

.e a enfeitiçam. (15) Se, por um lado, um discurso a persuadiu, ela não 'foi, então, injusta, mas infortunada, eis o que é dito.

Vou, por outro lado, desenvolver a quarta causa da acusação neste quarto momento do meu discurs017. Porque se foi o amor que tudo isso fez, é sem dificuldade que ela escapará à responsabilidade de ser a causa da dita falta. Pois o que vemos possui uma natureza que não é a que nós queremos, mas a que o acaso dá a cada um. Ora, por intermédio da vista, a alma é marcada até em seu modo de ser. (16) Pois, logo que vemos os corpos inimigos e a formação inimiga, em bronze e ferro, protegida ou em campanha, disposta com seus ar­mamentos diante dos inimigos, assim que a vista apreende tal espetá­cul018 , ela entra em desordem e desorganiza a alma, de modo que, com freqüência, na presença de um perigo por vir, alguns fogem acometi­dos pelo pavor. Porque a verdade do sofrimento instala-se através do pânico que a visão transmite; esta mesma visão que, sobrevindo, pro­duz satisfação quando da visão do belo discernido conforme a lei, e quando da visão do bem produzido conforme a justiçal9. (17) Cer­tas pessoas, logo que vêem coisas terríveis, perdem, neste mesmo ins­tante, o senso do presente, tanto o pavor apaga e afasta o pensamen-

17 A'l Tla é a causa, o ponto capital da acusação, a responsabilidade; ÀÓroç; é o discurso tanto quanto o argumento. Por intermédio de perífrases, tento manter, aqui e na frase seguinte, uma invariante na tradução. Sobre esse "quarto" momen­to da argumentação, cf. supra, § 6, nota 7, p. 295-6.

18 O conjunto desse parágrafo não é fácil. Creio que é possível manter pa· ra esse início de frase, contra correções muito diversas, o texto do ou dos princi­pais manuscritos; aUTlXCl ràp OTa\l lToÀ€).lta crW).laTa xat lTOÀ€).llO\l €lTtlTOÀ€J.llOlÇ' hrrÀlcr€l XOO).lOÇ' xaÀxou xal crtólÍPüu, TOU óe lTpo~À1ÚJ.aTa, €L lt€ácr€Tat [ ... ]; po­demos, com efeito, supor uma elipse do verbo ser na primeira proposição, ou uma

ruptura de construção retomando iha\l [ ... ] €l. Conservo também xl\lbú\loU TOU ).l€ÀÀO\lTOÇ" Õ\lTOÇ", como um genitivo absoluto que tem por sujeito ou bem Xl \lbú\lou TOU ).l€ÀÀO\lTOÇ' - "um perigo, aquele que virá, estando presente" - ou bem Xl \lt5ú\lOU apenas - "o perigo sendo apenas o perigo que virá".

19 Esta frase também foi, de diversos modos, contorcida, tal como nos dá

prova, por exemplo, o texto de Diels, mantido nas traduções francesas (Íl cruvft1te:ta TOU \IÓ).lou [ ... ] €ÇWlXLcrltTt [ ... ] b-).l€À1;craL [ ... ] 5tà TIl\l vlXTTV). Untersteiner e Donadi limitam·se, em oposição a esta seqüência, a corrigir o primeiro genitivo que pode,

300 Documentos

to. Muitos caem, então, em sofrimentos vãos, em doenças terríveis, em loucuras incuráveis, de tanto que a visão inscreve no pensamento as imagens das coisas vistas. E deixo aqui de lado muitos horrores, mas os que deixo em muito valem os que menciono. (18) Os pintores, quan­do levam perfeitamente a cabo, partindo de muitas cores e volumes, um corpo e um contorno únicos, encantam a visão. Esculpir homens, moldar deuses, é fornecer aos olhos uma doença plena de prazer20;

tanto certas coisas fazem, por natureza, com que a vista se aflija, e outras, com que ela deseje. Muitas coisas em muitas pessoas, para muitos objetos e corpos, produzem o amor e o desejo. (19) Então, se os olhos de Helena encontrando prazer no corpo de Alexandre comu. nicaram à sua alma o ardor e a avidez do amor, que há nisso de es­pantoso? Se o amor é um deus21 , como aquele que lhe é inferior con­seguiria afastar o divino poder dos deuses e dele se defender? E se é uma enfermidade humana e uma ignorânCia da alma, não se deve de­saprová-lo como uma falta, e sim julgar que se trata de um infortú­nio. Pois aconteceu como aconteceu por conta dos fios do acaso, e não das intenções do discernimento; em virtude das necessidades do amor, e não dos cuidados da arte.

(20) Qual necessidade, então, de estimar como justa a reprimenda a Helena: quando foi ou tomada pelo amor, ou persuadida pelo dis­curso, Ou raptada pela força, ou constrangida pela necessidade divina que ela fez o que fez; em todos os casos, ela escapa à acusação.

(21) Fiz desaparecer, com este discurso, a má reputação de uma mulher, mantive-me nos limites da lei que havia fixado no início desM te discurso, tentei dissipar a injustiça da reprimenda e a ignorância da opinião, pretendi redigir o discurso para que fosse, de Helena, um elo­gio; para mim, um divertimento*.

com efeito, ser ditográfico, respectivamente em ÀÓrou e em lTÓ\lou. Adoto aqui o texto de Donadi.

20 Traduzo, como Untersteiner e Donadi, embora sem certeza alguma, a cor. reção de Dobree, VooO\l, mais próxima do 000\1 dos manuscritos do que a corre­ção em lt€cx\l, mantida por Diels.

21 Resolvi pontuar como Untersteiner, o que permite evitar qualquer acrés­cimo ao texto transmitido.

>} llalYVwv, divertimento, brinquedo. [N. da T.]

Górgias, Elogio de Helena 301

Page 153: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

/-~----

SOBRE A VERDADE

Antifonte

Novos fragmentos, que completam os primeiros Papyri Oxyrinchi apresentados por GrenfelI e Hunt no início do século, foram publica­dos em 1984 por Maria-Serena Funghi. Fernanda Decleva-Caizzi e Guido Bastianini acabam de reeditar, de novo, o conjunto dos papyri. Traduzo então, salvo as exceções que assinalo, o texto, mais comple­to (POxy 1364 + 3647, de uma parte, 1797, de outra) e amplamente restabelecido, proposto no Corpus dei P apiri Filosofici Greci e Latini, I, 1, Florença, 1989 (cf. pp. 176-222). A última tradução francesa, a de jean-Louis Poirier (Os pré-socráticos), edição estabelecida por lP. Dumont, Paris, 1988, pp. 1106-9, levou em consideração, diferente­mente de Diels e tal como Mario Untersteiner (Sofisti. Testimonian­ze e fragmentai, Florença, 19621, vaI. VII, fase. N, pp. 72-106), o frag­mento 1797 (= XV, 120), mas, tal como este último, não considerou o fragmento 3647, assim como as modificações complementares do fragmento 1364.

A despeito da ausência do texto grego editado, no qual as letras restituídas foram cuidadosamente diferenciadas das letras legíveis, adivinháveis ou corrigidas nos papyri, o leitor deve estar ciente de que se trata de um texto incompleto, onde a reconstituição operada pe·· lo paleógrafo assemelha-se à do paleontólogo, que reconstitui um es­queleto a partir de alguns ossos. Além disso, se respeito a nova or­dem dos fragmentos e, muito geralmente, o conjunto das escolhas paleográficas propostas pelos novos editores (algumas de suas resti­tuições supõem e reforçam, concomitantemente, a tese de uma iden­tidade entre o orador e o sofista, na qual acredito piamente), será possível observar que nem sempre compartilho, qualquer que seja a precisão de seus trabalhos e a inteligência de suas percepções sobre Antifonte, de todas as suas opções interpretativas ou filosóficas: a tradução que ora proponho não é, de forma alguma, uma tradução

Anrifonte, Sobre a verdade i 303~

Page 154: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

de suas traduções. Trata -se de uma tradução possível de um texro também possível, escrito por um autor cuja identidade ainda está em debate.

POxy 1364 + 36471

Fr. A (= fr. 87 B D.K. e Untersteiner)

Co/. I. [Nesta coluna, são legíveis apenas o começo das linhas 5 a 17, assim como algumas letras, no início e no fim do fragmento; po· demos reconstituir algumas palavras, mas não traduzi-las.]

Co/. lI. [ ... ] nós as conhecemos e nós as veneramos.2 Mas estas [as leis?] daqueles que permanecem distantes, nós não as conhecemos e não as veneramos. No que, de fato, tornamo-nos bárbaros3 uns em relação aos outros, enquanto que, por natureza, em todo caso, todos,

1 Pa, em meu comentário.

2 Como podemos notar com freqüência, o verbo O'É~€l\l, "venerar", nos re­mete à esfera do sagrado, e em Tucídides, por exemplo (11, 53, 4), aos deuses e às leis (cf. Decleva-Caizzj 1989, ad loe.). Aqui falta o complemento: acrescenta­se então -coUç VÓ)J.oUC;, "as leis", admitindo que Antifonte assim designa o conjun­to, escrito e não-escrito, das leis positivas, dos costumes e das crenças religiosas

de um grupo. Antes da descoberta do fragmento 3647, que vem completar as lacunas do

fragmento 1364, a restituição admirida, da qual se questiona o caráter fortuito, era a seguinte: "[ ... ] aqueles que descendem de ilustres ancestrais, nós os glorifica­mos e nós os veneramos; mas aqueles que não descendem de uma ilustre família, nós não os glorificamos nem os veneramos" (trad. Poirier). É muito interessante compreender o que uma tal restituição, como sempre e a uma só vez, implica e en­gendra como interpretação, por exemplo, em Bignone (1938): se o papiro afirma que é bárbaro não respeitar os humildes, é porque Antifonte é um ardente demo­crata, igualitário, populista, e é porque existe, ao menos, dois Antifontes, o ora­dor oligarca e o sofista.

3 Bejkxpf3cxpw)J.e{}-cx foi compreendido, pelo menos, de dois modos diversos. Ou bem: "nós nos transformamos em bárbaros", uns em relação aos outros, quando nos separamos em grupos étnicos e quando desprezamos nossa igualda­de natural (M.S. Funghi por exemplo); ou bem: "nós adotamos um comporta­mento bárbaro", não mais reconhecendo as leis dos outros, o que não implica, no entanto, uma igualdade natural efetiva (Decleva-Caizzi). A escolha está ligada, segundo Decleva-Caizzi, à análise da última parte da frase, elTel <pooel Te lTcí.v-ccx

304 Documentos

-...

em tudo, da mesma maneira, consideramo-nos, naturalmente, feitos para sermos bárbaros e gregos. É possível constatar que as coisas que fazem parte daquilo que é, por natureza, são necessárias a todos os homens, e acessíveis a todos com a ajuda das mesmas faculdades, e \ que, em tudo isso, nenhum de nós se acha marcado nem como bárba­ro nem como grego. Nós todos respiramos, com efeito, no ar, através da boca e das narinas; e com o espírito rimos nos regozijando [Col. IIl.] ou choramos sentindo a tristeza; e pela audição, acolhemos os sons, e pela luz do sol, vemos com a visão; e com a mãos, trabalhamos, e com os pés, caminhamos.

Cal. IV. [Pode-se reconstituir algumas palavras nas linhas 5·9. Alguma coisa como: "cada grupo em conformidade com o que lhe convém chegou a um acordo, e eles estabeleceram as leis"]

Fr. B (= fr. A - D.K. e Untersteiner)

Col. I. A justiça consiste, então, em não transgredir as prescri­ções da cidade na qual se é cidadão. Isso dito, um homem utilizaria a justiça em seu maior proveito se, na presença de testemunhas, respei­tasse as leis, mas, uma vez só e sem testemunhas, se respeitasse as pres­crições da natureza4; pois as prescrições das leis são impostas, enquanto

lTÚV-CEC; o)J.oúuc; lTe<pú)w)J.ev XCXL I3ápfktPOl XCXL E.ÀÀllvec; eivCXl: os gregos e os bár­baros são, por natureza, decididamente, iguais (assim traduz Poirier: "visto que, por natureza, somos em tudo semelhantes, tanto os gregos quanto os bárbaros; "gregos" e "bárbaros" são, então, epítetos do sujeito "todos", omitido nesta tra­dução), ou bem todo homem é em potência tão grego quanto bárbaro, "igual­mente adaptado, por natureza, a ser tanto um quanto outro" (Grenfell-Hunt, Decleva)? Esta última construção, que repousa sobre o valor do infinitivo após lTE<pÚXCX)J.€'J e que faz de "bárbaros" e "gregos" atributos, é, certamente, melhor do que a outra. Creio que se pode, no entanto, encontrar uma igualdade natural ainda mais forte do que a do primeiro caso, justamente porque ela é indiferente às distinções que, como grego/bárbaro, não dizem respeito à natureza e que só remetem à relação com a lei.

4 "As prescrições da natureza" traduz -cà TI;ç- <pÚ<Jewc;, com o artigo no neu­tro plural, sem substantivo e seguido do genitivo. Duas construções são possíveis: ou bem a expressão vaga, referida a ela mesma, significando "o (que procede da, que pertence à) natureza" (Decleva-Caizzi, por exemplo, traduz por "as disposições da natureza "), ou bem, de forma sintaticamente mais forte, com elipse do único neu­tro plural que precede -ceX vó)J.tJ.1CX, "as prescrições". Neste caso, não podemos propor a equivalência entre os VÓ)J.l)J.CX e os VÓ)J.OUC;: então, é preciso compreender que exis-

Antifonte, Sobre a verdade 305

Page 155: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

as da natureza são necessárias; e as da lei são o resultado de um acor­do, não se produzindo naturalmente, enquanto que as da natureza se produzem naturalmente, não sendo o resultado de um acordo. [Cal. II.] Então se se transgride as prescrições (de sua cidade), ao se esca­par daqueles que admitiram um acordo, fica-se livre de vergonha e de castigo; mas se não se escapa, não. Enquanto que, se se violenta além' do possível uma das prescrições conaturais à natureza, mesmo quan­do isto tivesse escapado (À,,1'tn) a todos os homens, o mal não seria em nada menor; e mesmo se t~dos o tivessem visto, em nada maior; pois não é pela opinião que se sofre um mal, mas em função da ver­dade (Ól'àÀ!Í1'tElav).

Um tal exame se justifica em função das seguintes razões: a maior parte das coisas justas, segundo a lei, estão em posição de guerra con­tra a natureza; com efeito, estabeleceu-se por lei para os olhos o que eles devem [Cal. 1I!.]e o que não devem ver; para as orelhas, o que devem e não devem ouvir; para a língua, o que deve e não deve dizer; para as mãos, o que devem e não devem fazer; para o pés, para onde

; devem e não devem ir; e para o espírito, o que deve e o que não deve­ria desejar. De fato, nada daquilo de que as leis desviam os homens é menos caro ou menos próximoS à natureza do que aquilo em direção

tem as prescrições da cidade, dentre as quais, primeiramente, as leis, e as prescri­ções da natureza. O domínio do "prescritivo" se amplia. Esta interpretação, que logo torna menos ingênua a oposição entre natureza e lei, é a que escolhi.

5 Traduzo desta forma, não sem ressalvas, a restituição de Decleva-Caizzi, ~TIO"', que inverte o sentido da tradução dos editores precedentes, ou J.L€-v. O tex­to tradicional ("elas não são, em nada, mais agradáveis ou mais próximas à natu­reza, estas ações que são pelas leis interditas aos homens, do que aquelas para as quais elas remetem", traduzido por Poirier), diz, de fato, como já nos permitia ob­servar, por exemplo, Gemet, o contrário do que se esperava: a lei, se está realmente "em guerra" contra a natureza, deveria nos afastar do que a natureza preza. Não sem ressalvas, pois a própria Decleva-Caizzi acentua, além do número talvez ex­cessivo de letras para a lacuna, a raridade da construção que ela propõe (o ad­vérbio, "menos", conferindo um valor enfático negativo aos comparativos -li­teralmente: "menos mais agradável" - apesar do importante paralelo com Pla­tão, Lg., IX, 854 d-e). Fica a possibilidade de compreender, com Trevor Saunders, por exemplo (1972), que a lei e a natureza constituem duas ordens heterogêneas que não se contrariam regularmente. Podemos, sem contrariar esta possibilidade, elaborar certas interpretações admissíveis para as frases que se seguem. Não de­vemos, no entanto, esquecer que temos sempre o direito de supor um erro mate­rial, que teria invertido os verbos.

306 Documentos

ao qual tais leis os fazem pender. Com efeito, viver faz parte da natu­reza, tal como morrer, e viver é, para os homens, contabilizado no númer06 das vantagens; morrer, no número do que não é vantajoso. Ora, as vantagens, uma vez situadas sob a influência das leis, funcio­nam como entraves à natureza; uma vez situadas sob a influência da natureza, são livres7• O que faz sofrer, para ser exato, não tira então maior proveito da natureza do que o que agrada; pois as vantagens segundo a verdade ("li> àÀT)1'TÉl) não devem causar dano, mas ajudar. Então as vantagens segundo a natureza [as linhas 25-32 não podem ser reconstituídas]

[ ... ] e todos aqueles que [Cal. V.] se defendem quando sofrem e não começam a agir por eles mesmos, e todos aqueles que, mesmo quando seus pais são maus, são respeitosos no que lhes diz respeito, e que oferecem a outros a oportunidade de jurar sem que eles mesmos tenham de prestar juramento; e uma vez dados estes exemplos, poder­se-ia encontrar muitos casos de guerra contra a natureza: eles deter­minam que se sofra mais quando se pode sofrer menos, que se tenha

6 Cada frase, até a lacuna, parece-me agora, de uma só vez, capaz de sus­citar muitas interpretações divergentes e de nos remeter à dificuldade, das partí­culas de ligação, de articulação com a precedente. A dificuldade nevrálgica desta frase se mantém em função do sentido de àTIó, "no número de" (Morrison, 1963) ou "que deriva", "advém de" (Decleva; cf "viver se liga ao que é útil", Poirier; cf Furley, 1981); poder-se-ia, até mesmo, pensar em "à distância de", como ainda há pouco na composição Ct1TOTprnoOOl, I1I, 22. Compreende-se, enfim, que existe o natural ("por natureza", "próximo da" e "caro à" natureza) não vantajoso, ou seja, o que não é vantajoso para os homens: morrer, por exemplo. Além disso, nada impede às leis de se situarem ora no lado do útil para os homens (interdição de morrer, ou seja, de matar ou de se matar), ora no lado contrário (a prescrição de morrer pela pátria).

7 "Situadas sob a influência das leis": o urró que traduzo é, desta vez, uma correção de Grenfell e Hunt, sempre adotado ao invés do curó do papiro. Como se articulam o útil ('tà ~uJ.L<pÉpO'\rra, que traduzo aqui por "as vantagens") para os homens, o útil imposto pela lei, o útil imposto pela natureza, ° livre (qual é de fato aqui o sentido de "livre" que, em todo caso, deve se compatibilizar com "neces­sário", I, 26s.?) e o agradável? Pode-se, sem grande esmero, compreender que, para os homens, o útil bem apreendido é o útil imposto pela natureza, e que é, si­multaneamente, agradável, e não, certamente, o útil aflitivo imposto pela lei. Ter­se-ia, assim, uma hierarquia das vantagens, e o sofrimento, que é com freqüência a marca da utilidade legal (a obrigatoriedade, o castigo), não poderia, em nenhum caso, ser tomado como índice de uma utilidade "verdadeira", ou seja, inevitável, isto é, natural.

Antifonte, Sobre a verdade 307

Page 156: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

menos prazer quando se pode obter mais, e que se sofra arduamente quando poder-se-ia não sofrer. Se, em conseqüência, para aqueles que assim procedem, das leis proviesse algum socorro, enquanto que, para aqueles que assim não procedem e se posicionam contra, proviesse um enfraquecimento, [Colo VI.] não seria inútil o elo" entre as lei", De fato, tudo indica que, para aqueles que assim procedem, o justo oriundo da lei não é capaz de proporcionar socorro; a princípio, ele se remete àquele que sofre para sofrer* 'I- e àquele que age para agir: ele não impediu, no momento preciso, aquele que sofre de sofrer nem aquele que age de agir e, quando apela para o castigo, não está mais do lado daquele que sofreu do que daquele que agiu; com efeito, é preciso que a vítima persuada aqueles que vão castigar de que ela efe­tivamente sofreu, a menos que possa conquistar justiça, ludibriando; mas para as mesmas coisas, compreende-se que aquele que agiu pode também negá-las [Colo VII., começando com uma lacuna de quatro linhas]. A defesa pertence a quem se defende tanto quanto a acusação a quem acusa; a persuasão é um efeito antagônico para quem sofreu e para quem agiu [as linhas 14 a 34 não podem ser reconstituídas, tal como os pequenos fragmentos C-N].

POxy 17978

Fr. A

Cal. 1. [As três primeiras linhas são difíceis de reconstituir] [ ... ] considerar-se-á que testemunhar uns sobre os outros, dizendo a ver­dade, é justo e não menos útil aos modos de vida dos homens. Contu­do, aquele que assim age não será justo, se todavia é justo não ser in­justo com ninguém quando não se sofre injustiça; com efeito, aquele que testemunha, necessariamente, mesmo quando o faz, dizendo a verdade (àÀrp'Tiíl, é de certo modo injusto no que diz respeito ao ou­tro e, em seguida, sofre injustiça, pois é desde então implicado no ódio do outro. Na medida em que, por causa de testemunhos contra ele, por causa de uma testemunha com quem não se foi de modo algum

* TT€L<O'JUX (D.K. Colo VI), o laço, a ligação, a amarra. [N. da T·l

*" Estou utilizando a palavra "sofrer" no sentido de "ser atingido" ou "so­frer uma ação", TTáO)(oVTTUlT€LV. [N. da T.]

S Pb em meu comentário.

308 Documentos

injusto, aquele contra quem se testemunha é pego e perde seus bens ou sua vida, nesta mesma medida, é-se injusto no que tange àquele contra quem se testemunha, e se sofre injustiça por parte dele porque se é por ele odiado [Col. II.], por se ter testemunhado dizendo a ver' dade; sofre-se injustiça não apenas por causa de seu ódio, mas sim­plesmente porque é preciso se precaver, por toda a vida, daquele con­tra quem se testemunha; pois vos cabe, em todo caso, um inimigo capaz de dizer e de fazer, contra vós, malvadezas desde que assim o possa fazer.

Com certeza, não parece ser aqui ° caso de pequenas injustiças, nem as que se sofre nem as que se comete; com efeito, não é possível que tais coisas sejam justas, e que, ao mesmo tempo, seja justo não cometer nem sofrer qualquer injustiça; mas é necessário que um dos dois seja justo, ou que os dois sejam injustos.

Mas tudo indica que estabelecer um processo, julgar, determinar uma arbitragem, qualquer que seja o propósito, não é justo; pois o que ajuda a alguns, prejudica a outros; ora, nesse caso, aqueles que são ajudados não sofrem injustiça, mas aqueles a quem se prejudica a so­frem [restam algumas letras no meio das duas últimas linhas].

Fr. B

[ ... ] as leis [ ... ]

Antifonte, Sobre a verdade 309

/

Page 157: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

PRIMEIRA TETRALOGIA

Antifonte

Antifonte, o orador, a quem a tradição quis diferenciar de Anti­fonte, o sofista, foi editado muito cedo (desde o século XVI), e muito cuidados;mente (para Teubner, por Blass no fim do século XIX, de­pois por Thalheim no início do XX). O conjunto dos discursos foi estabelecido e traduzido em francês por Louis Gernet em 1923 (Paris, Les Belles Lettres), seguindo a hipótese de que o sofista e o orador deveriam ser discriminados, ainda que, como veremos, as Tetralogias lhe tenham, no entanto, parecido muito mais "sofísticas" do que os outros três discursos conservados (" Acusação de envenenamento contra uma sogra" (I], "Sobre a morte de Herodes" [V], "Sobre o coreuta" [VI]), cuja atribuição ao "Antifonte real", o célebre orador oligarca a quem Tucídides se refere com respeito (VIII, 68), sempre esteve aci­ma de qualquer dúvida. Salvo indicação contrária, sigo a edição mais recente, elaborada por Fernanda Decleva-Caizzi (Antiphontis Tetra­lagire, Istituto Editoriale Cisalpino, Milão, Varese, 1969), que nos apresenta poucas modificações em relação ao admirável aparato de Thalheim, mas que propõe justamente menos emendas; acompanha­da de uma tradução em italiano, de uma introdução e de um comen­tário, ela é sensível à possibilidade de identidade entre os dois Antifon­tes e às relações que podem sustentar suas obras.

As Tetralagias de Antifonte deveriam ser lidas por todos os jo· vens advogados. Uma tetralogia é uma seqüência de quatro discursos, acusação, defesa, segundo requisitório, levando em conta a defesa, segunda defesa levando em conta o primeiro e o segundo requisitó­rios: essa seqüência, como um jogador com a mão quente, faz com que não haja faros, mas apenas pontos de vista recobrindo os fatos, ape­nas construções, interpretações, argumentos provocadores ou cons­trutores de fatos.

Antifonre, Primeira tetra/ogia 311

Page 158: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o direito ateniense é, no mínimo, compatível com esta prática 1,

mas há concordância em dizer que as célebres Tetralogias de Antifonte constituem exercícios de escola. De fato, elas são ao todo três, de tal forma que cada uma é capaz de sugerir um cenário-tipo, correspon­dendo à competência de um dos três tribunais. Na primeira, trata-se de uma morte com premeditação (phonos ekousios), sustentada diante do Areópago: um homem e o servidor que o acompanha são mortos numa noite ao saírem de um jantar; o acusado estava em contenda com a vítima e corria o risco de perder sua vida e sua fortuna. Na segun­da, trata-se de um homicida involuntário (phonos akousios), de com­petência do Paládio: um rapaz, ao se exercitar no ginásio lançando o dardo, matou um outro que se deslocava naquele mesmo instante. A terceira advoga a legítima defesa (phonos dikaios ou kata tous no­maus), e diz respeito ao Delfinio':'; no curso de uma rixa, o acusado atingiu um adversário, e o golpe determinou a morte deste.

De uma Tetra/ogia a outra, elabora-se sem dúvida alguma a no­ção de responsabilidade jurídica: trata-se de determinar, no primeiro caso, quem é o culpado; no segundo, quem é o responsável (o lançador, o morto, o pedótriba 'Hi-?), e no terceiro, ao menos em parte, qual foi a intenção (quem foi o agressor? a morte foi um acidente? a vítima foi devidamente socorrida?). Trata-se aqui, sobretudo, de uma grade de estados de causa que darão ensejo a elaborações retóricas ulteriores, tanto gregas quanto latinas2; no primeiro caso, trata-se de estabele­cer a existência do fato: o acusado é ou não o assassino? (stokhastike stasis, an sit?, "estado de conjectura"); no segundo, trata-se de esta­belecer a definição do fato (foi um acidente?, horike stasis, an sit?, "estado de definição"); no terceiro, trata-se de estabelecer a qualida-

I Decleva-Caizzi (op. cit., p. 11) cita justamente duas passagens dos discur­sos efetivamente proferidos que aludem a uma segunda acusação (VI, Sobre o coreuta, 14, Gernet p. 147) ou à possibilidade de deixar o país após a primeira defesa (V, Sobre a morte de Herodes, 13, Gernet, p. 112; é o que se passa na ter­ceira Tetra/ogia, onde o último discurso é pronunciado por um amigo do acusado que escolheu o exílio). Ver aqui mesmo, 81.

'; ll€À<pt"VLO"V, tribunal de efetos, ou seja, de juízes de instância criminal. [N. da T.I

** De paidotrihes, mestre de ginástica. IN. da T.]

2 Cf, por exemplo, Octave Navarre, Essai sur la rhétorique grecque avant Aristote, Paris, 1900, p. 270.

312 Documentos

"

de do fato (é permitido, legal, útil?, stasis dikaiologike, quale sit?, "estado de qualidade"). Mas, em todos os casos, os fatos não são ja­mais inteiramente dados: eles estão sendo construídos pelos juízes a partir da "difração" do pro e do contra.

A questão, tradicionalmente elaborada, consiste em apreciar a fiabilidade jurídica destas Tetralogias, o que nos permite julgar a res­peito da autoria e da sua identidade: um bom orador que conhece as leis ou um mestre sofista que alega não importa o quê3 ? A ciência de Dittenberger, de Glotz, de Gernet4 sobre o direito ateniense do Vto sé­culo parece bem mais precisa, em cada item, que a do autor grego (ver aqui mesmo a discussão em 0(6). A resposta que Fernanda Decleva­Caizzi elabora contra eles é, sobre todos os aspectos, notável. Ela des­taca que os problemas tratados nas Tetralogias ainda não alcançaram uma solução unânime: o período é de oscilação entre duas ordens ju­rídicas diferentes, ou seja, entre Sófocles e Platão, quando se pode decidir invocar o jus sacrum ou o jus civile (op. cit., pp. 31-44). Nesse momento, as leis são, exatamente na mesma proporção que os fatos, a princípio e antes de tudo, argumentos, plasticidades; trata-se de pro­duzir, em todos os sentidos do termo, adaptando essas leis ao kairos.

':. ::. ::.

Aa

ARGUMENTO

Em toda parte, Antifonte dá mostra da capacidade que lhe é pró­pria, mas sobretudo nestas tetralogias, nas quais combate contra si próprio. Ele exercita -se proferindo dois discursos para a acusação e também dois para a defesa, com igual brio tanto num caso quanto noutro.

J Mas, se é o caso de um sofista que alega não importa o quê, nâo devemos confundi-lo, no entanto, com o autor do Sobre a verdade, este sim não é um ora­dor, nem bom nem mau.

4 W. Dittenberger, "Antiphons Tetralogien und das attische Criminalrecht", Hermes XXXI, 1896, pp. 271-7; XXXII, 1897, pp. 1-41 (ver também "Zu An­tiphons Tetralogien", Hermes, XL, 1905, pp. 405-70); Glotz, La so/idarité de la famille dans la Gn?ce ancienne, Paris, 1905, do qual citamos sempre a expressão: um "desperdício" [gâchisl (p. 507; Gerner, p. 1; Decleva, p. 24); L Gernet, op. cit., e Droit et société dans la Grece ancienne, Paris (Publ. do Inst. de Direito Ro­mano da Universidade de Paris, t. XIII), 1955.

Antifonte, Primeira tetralogia 313

Page 159: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

o discurso que aqui temos assemelha-se ao de LÍsias contra Mi­cinas5, e trata do seguinte caso: um homem, atingido por um golpe fatal ao sair de um jantar, foi encontrado junto com o seu servidor. Após sua morte, um membro de sua família acusa um inimigo da vÍ­tima de ter cometido o assassinato; este último nega tal fato.

O estado de causa é, neste caso, uma conjectura imperfeita6, vis­to que ligada unicamente à pessoa do acusado.

O discurso é assim dividido: no exórdio, não apresenta qualquer exposição, pois a técnica de conjunto ainda não estava concluída. Ele inicia os debates servindo-se, como de um primeiro motivo da culpa­bilidade, da refutação direta dos motivos, por meio dos quais se de­monstra que nenhum daqueles sobre os quais paira a desconfiança é o assassino7. Logo a seguir, ele troca de posição, revelando que hou­ve um homicídio com premeditação, e nos faz, finalmente, penetrar na decisão do assassínio. E satisfaz a requisição de provas através do testemunho do escravo. Por fim, digressão e epílogo. '

5 Discurso perdido, cf fr. 63-66 Thalheim.

6 L'toxáO'j.lCX; Í1 O'"táO'u; cneÀTtç;. Como o conjunto do vocabulário utilizado pelo redator da síntese, o sentido de cada um desses termos está perfeitamente codificado na retórica tardia, em especial por Hermógenes (Stat., p. 35R para stasis, p. 36R e 62R para stokhasmas, pp. 29-30R e 54R para as diferentes concepções de stakhasmos ateies). Cf. Decleva-Caizzi, ad lac., e, para Hermógenes, Michel Patillon, La Théorie du discours chez Hermagene le rhéteur. Essai sur la structure de la rhétorique ancienne, op. cit., primeira parte.

7 Apxój.le"oç; oe 'tw" àrwvwv 'ITpWTfl expTÍO'o:ro àVCtLpÉO'€L CÚ TLW", 5L 'G)v à'ITÉoeL'gev O'tL [ ... ]. Como Gemet e contra a correção de Maetzner (Ot'ttç;, editado por Dec1eva), mantenho o Ot 'G)v dos manuscritos. No entanto, clt 'ttw" não me pa­rece significar "as explicações dos adversários" (Gemet); ahCa significa, a uma só vez, "a acusação" - o motivo ou a causa central da acusação - e "a causa ", o motivo do assassínio. Além disso, ao invés de lhe atribuir uma função adverbial pouco ou de forma alguma aplicável ao dativo (Gemet: "ele começa sem interrup­ção refutando"; Dec1eva: "scarta dapprima"), analiso TIçx.ST'l1 (s.c. ahCa) como um atributo de àvmpÉcr€l: Antifonte faz uso (Exp1ÍO"a'to), como' primeira j'nstância da acusação, da destruição direta (pois é o sentido de àvmpÉO'Lç', em oposição à OtalpÉ O'tç;, a destruição que provém das distinções, cf e.g. SE, 33, 183 alO) dos motivos do assassínio, o que levaria à suspeita de outros motivos (o roubo, a embriaguez, a disputa, cf 4) e não a se suspeitar do acusado. É preciso compreender que, des­de o início das hostilidades discursivas (àpxój.l€VOÇ oe 'tWv à)'w"wv), Antifonte teve a habilidade de se antecipar sobre as outras acusações possíveis, de destruí-las e de revelar, "graças a elas" (8t'G)'V), a inocência de todos os suspeitos, menos o seu.

314 Documentos

ACUSAÇÃO DE HOMICÍDIO, SEM INDICAÇÃO DE NOMES

(1) Quando um caso é tramado por qualquer um, as provas pa­ra desmascará-lo não são difíceis de encontrar8. Mas, se os autores são suficientemente dotados, se são experientes nessas questões, se estão na idade em que o julgamento é imbatível, eles são difíceis de reconhecer e designar. (2) A magnitude do risco os faz refletir por muito tempo sobre a viabilidade de seus projetos, e eles nada reali­zam sem antes se resguardarem de toda suspeita. Vós*, portanto, de­veis precaver-vos, e logo que percebeis a menor verossimilhança9

, vós deveis vos fiar10 nelas com muita atenção. Nós, que temos de vingar

8 Ou xaÀ€1TeX eÀerxecr{l-at. Elengkhos significa, por um lado ou a princípio (em Homero, Hesíodo, Píndaro), "a maneira com que se envergonha alguém", portanto a "reprovação", a "desventura", a "desonra"; por outro lado, o "argu­mento", a "prova", na medida em que permite "examinar contraditoriamente" uma questão (por exemplo, a maneira de "conduzir um contra-interrogatório", em 07), "refutar" uma demonstração, "convencer", "desmascarar" um inculpa­do (elegkhein, exelelegkein, 9). Tentei aqui manter, sempre que possível, a tradu­ção por "desmascarar" (cf. ~4, 810).

* O autor da acusação se dirige aqui aos juízes. Por essa razão, mantive o pronome na segunda pessoa do plural. [N. da T.]

9 'Onouv €txóç;. Procurei sempre manter a mesma tradução para eikas, mar­cando a oposição com o conhecimento e a certeza (ver aqui mesmo, por exemplo, em 3: O't:XqlwÇ' o'(&xj.l€v, "nós certamente sabemos", O'a<pÉO'"ta'ta [ ... ] )'l )'VWOXOj.l€V, "o certíssimo [ ... J a partir do que conhecemos"), com o mostrar e a demonstração (aqui ainda em 3: 811ÀOUV, "mostrar"; )'8), em sua oposição à realidade (eikotos/ antas, ~10; )'8; 8J O; / ergoi, 88), em sua relação de similitude com a verdade (~8) e no cálculo das probabilidades (verossímil, ainda mais verossímil, tanto mais ve­rossímil quanto menos verossímil e inversamente, cf. a6; ~3, 6-8; 84) ligado à ava­liação das suspeitas (hyposia, aS; ~3, 6; )'7), dos riscos e dos benefícios (kindynos/ asphaleia, aS, ~9, )'5-7) que constituem, em cada discurso, e a uma só vez, a verve da prova e a essência do ponto de vista. Enfim, as "verossimilhanças" se diferen­ciam dos "testemunhos", constituindo os dois grandes meios de suscitar a convic­ção (cf. a9; )'9). Relacionar com apithanan, "não-convincente" (argumento de ~), e epidoxos, "plausível" (aS; 09).

10 nlO'"teÚ€L v. A pistis é, simultaneamente, a "confiança" atribuída - a "fé" - e o que viabiliza a confiança - a "honestidade", o "crédito", a "fiabilidade" (de onde igualmente se extrai o sentido de "provas", técnicas ou extra-técnicas, codificadas na retórica aristotélica). Traduzi por "fé", "fiabilidade", "fiável" e

Antifonte, Primeira tetralogia 315

Page 160: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

um assassínio, não perseguimos o inocente deixando escapar o culpa­do 11, (3) pois certamente sabemos que toda a cidade estará maculada pelo assassino enquanto a persecução não for contra ele lançada, e que então a impiedade é nossa, tanto quanto é sobre nós, se perseguimos injustamente, que recai a responsabilidade do vosso erro. Visto que toda mácula recai sobre nós, iremos tentar o mais efetivamente que pudermos, a partir do que conhecemos, vos mostrar que aquele que matou é o nosso homem.

(4) [ ... ] Quem coloca sua vida em grande perigo, não deixaria escapar um butim bem ao alcance das mãos e conquistado pelo seu próprio esforço: ora, eles foram encontrados com suas roupas. E o assassino também não se encontrava em estado de embriaguez, pois seus companheiros de bebedeira o teriam reconhecido. Também não foi após uma disputa, pois não iriam injuriar-se em uma hora indevida da noite em um local deserto. Também não seria visando um outro que alguém o teria atingido, pois não se teria matado, junto com ele, o seu servidor. (5)Toda suspeita dissipada, é a própria morte que re­vela que foi morto com premeditação. Quem então é, com maior pro­babilidade, o agressor, senão aquele que já sofreu grandes danos e que deve, decerto, sofrer danos ainda maiores? Pois é o caso do acusado: há muito tempo inimigo da vítima, ele infligiu-lhe inúmeros e graves processos, sem ganhar nenhum; (6) e foi, no entanto, incriminado em um número de processos ainda maior e mais graves, sem jamais ser inocentado, perdendo assim uma boa parte de suas riquezas. Recente­mente, foi acusado pela vítima de roubo de objetos sagrados no valor de dois talentos 12: consciente de seu erro, advertido pela própria ex­periência sobre o poder da vítima, e repleto de lembranças dos seus

"não-fiável", ou crível e não-crível" (pistoslapistos) em todas as ocorrências. (Cf· apistoteron, "mais in-crível", 88).

11 "Inocente" e "culpado" são as traduções costumeiras para m'ttOV e &.vcxfno'V (cf r11; 811), que falham na conservação da relação com aitia (cf p. 53, n. 1), mas o outros modelos de oposição possíveis me pareceram, por fim, impraticáveis ("autor", "responsável", "em causa" ... ).

12 Dittenberger, confundindo a xÀorrij \epw'V xpTJj .. u:hw'V aqui em questão, crime punido com um reembolso decuplicado, com a 'LepoouÀLcx, "pilhagem de um templo", crime cuja punição é a morte, procurava demonstrar, tirando proveito do castigo previsto (~8, r8, 89), o desconhecimento que tinha Antifonte do direito ateniense (em seu artigo de 1897, pp. 10-20).

316 Documentos

precedentes fracassos, premeditou, com toda verossimilhança, o pro­jeto, e, verossimilmente, para proterger-se da hostilidade da vítima, ele a matou. (7) O desejo de vingança o fez esquecer os riscos, e o medo dos danos futuros, colocando-o fora de si, com ardor o incitou a exe­cutar o crime. Ele pretendeu, cometendo esse ato, não apenas matar o homem sem que ninguém se apercebesse13, mas também escapar do processo de roubo, pois assim ninguém iria ao seu encalço, e a acusa­ção não se sustentaria. (8) Mesmo se fosse condenado, pensava que sofrer a punição após ter-se vingado seria mais proveitoso do que su­cumbir covardemente à acusação sem reagir; e, certamente, sabia-se condenado, pois pensou que estaria em maior segurança com o pro­cesso de hoje.

(9) Eis o que o levou a este ato ímpio. Se muitos testemunhos estivessem presentes, nós teríamos citado muitos testemunhos. Mas, como apenas o servidor estava presente, aqueles que o ouviram é que vão testemunhar. Socorrido ainda respirando e interrogado por nós, declarou que ele e a vítima14 haviam reconhecido apenas o acusado entre os que lá estavam. Então, uma vez inteiramente desmascarado pelas verossimilhanças e pelos testemunhos oculares, é sem justiça e sem qualquer proveito que vós o liberaríeis. (10) Pois aqueles que pre­meditam seus crimes não seriam jamais desmascarados, se nem as tes­temunhas oculares nem as verossimilhanças os revelassem; e, decer­to, não será proveitoso que este ser, maculado e impuro, penetre nos templos dos deuses e macule a pureza destes, ou mesmo que se sente à mesa daqueles que nada fizeram e os contamine: pois, a partir dis­to, tudo se torna estéril, e o que se tenta redunda em fracasso. (11)

13 ATp-eLv Cmmctetvaç-, lit. "escapar tendo matado": trata-se do termo, em com­posição com aletheia, que designa no papiro o fato de que se possa escapar à lei, diferentemente do que ocorre na natureza. Cf. ~3, r6 ver também 8, XpulT'tó.ue'Va, "às esconsas", em oposição à "diante de testemunhas".

14 Sigo aqui a análise de Fernanda Decleva-Caizú, que faz de cxlnoúç; o su­jeito de rvWVCXL: as testemunhas oculares (.uúpwpÉç; [ ... ] et [ ... ] lTapETÉ'Vo'V'tO; 'tw'V lTCXpCXrevo.uÉvw'V, 9 e 10) são, portanto, o mestre morto que o escravo moribun­do faz falar e o próprio escravo, quase morto, que os "testemunhos" (.uúpwpec;), dentre os quais o acusador, ouviram. Também conservo, diferentemente de Gernet, o 'tw'V lTcxpóv'twv dos manuscritos, em oposição à correção de Bekker em lTCXLÓ'V'tW'V: Eles só reconheceram o acusado, "dentre os que lá estavam", e não "dentre aqueles que os (cxu'toúC;) agrediram".

Antifonte, Primeira tetra/agia 317

i I.

Page 161: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Assim, considerando que cabe a vós a aplicação da pena, fazendo pe­sar sobre sua própria cabeça as suas próprias impiedades, vós deveis situar, ele, em sua infelicidade, e a cidade, em sua pureza.

A~ DEFESA PARA O MESMO CASO

ARGUMENTO O defensor reconhece sua inimizade de longa data com o mor­

to, mas nega o assassínio e evoca a inimizade como prova de que não matou 15. Pois, visto que sou um inimigo, diz ele, sabia que em todos os casos a acusação se voltaria contra mim; eis porque não sou o as­sassino. Ele rejeita, igualmente, o testemunho do serviçal como algo suscitado por uma manipulação dos mestres. Ele alega não estar dis­suadido de que os malfeitores tenham começado pela supressão da vítima, sem poder, logo em seguida, desprovê-la de suas roupas.

(1) Não creio incorrer em engano ao considerar que sou o mais infortunado de todos os homens. Os outros, que a má fortuna atinge, quando uma tempestade os atormenta, tranqüilizam-se assim que re­torna a bonança; quando estão doentes, salvam-se recuperando a saúde; e, se qualquer outra infelicidade os aflige, a chegada do que a isto se opõe joga a favor deles. (2) Mas, quanto a mim, tal homem construiu durante toda a sua vida a ruína da minha casa, e uma vez morto, mes­mo se sou absolvido, lança-me16 aflições e inquietações até à sacieda­de. Tão pesado é o meu infortúnio, que não me basta apelar para a piedade e a justiça, no afã de não ser inculpado. Se não descubro o assassino para desmascará-lo, este mesmo que os vingadores do mor­to são incapazes de descobrir, será, então, sobre mim que recairá a sus­peita do assassínio, e serei eu quem perecerei impiedosamente.

(3) Quanto a mim, como sou astuto, sou, dizem eles, absoluta­mente difícil de desmascarar, mas, como sou tolo, meus próprios atos farão crer que é minha obra. De fato, se devido à minha grande peri-

15 Não mantenho o acréscimo de ]ernstedt, <ahrij\l> diante de Til" ÉX{}pcx\l.

16 Conservo o €J.1~é~ÀT]XE\I de A, citado por L.S.]., contra as correções de Sauppe ou de Decleva.

318 Documentos

"

culosidade torna-se verossímil a vossos olhos que sou suspeito, é ain­da com mais verossimilhança que antes de agir teria previsto a suspeita que hoje pesa sobre mim, e se soubesse que algum outro premeditava o crime, teria me contraposto, ao invés de aquiesceI, agindo sob os auspícios de suspeitas voluntariamente incorridas e de véspera. E es­taria perdido, se fosse visto por todos praticando tal ato, e, se esca­passe, teria a certeza de que a suspeita recairia sobre mim. (4) Lamen­tavelmente, sofro por ser constrangido não só a me defender, como a apresentar provas perante todos os assassinos. 'É preciso, no entanto, tentar; nada tem o ar mais amargo do que a necessidade. Não posso refutar17 de nenhum outro modo, a não ser partindo de onde parte o acusador para afirmar, desobrigando os outros, que a própria morte revela-me como assassino. Pois se, uma vez que estes se afiguram fora de causa, o crime parece pertencer a mim; então, se eles são suspeitos, é verossímil18 que eu me sinta expurgado.

(5) Não é inverossímil, como eles defendem; pelo contrário é verossímil que, vagando a esta hora indevida da noite, alguém o te­nha assassinado por suas roupas. Que não as tenham tirado não é, de forma alguma, um indício19. Se não começaram por furtá-lo e se o abandonaram porque tinham medo dos passantes que chegavam, eles foram razoáveis, e não loucos, colocando a salvação na frente do lu-

17' E/..é-(gEl\l; decidi insistir não quanto ao fato de que se trata de "desmas­carar" os verdadeiros culpados (cf nota em aI), mas quanto ao tipo de "prova" de que dispõe a defesa para se constituir: nada mais do que a reorientação das provas que já havia servido à acusação, o que constitui, propriamente, uma "refutação". A refutação que Aristóteles, por exemplo, propõe como objeto de estudo para a dialética, toma, com efeito, como ponto de partida, as premissas do adversário para se chegar a uma conclusão oposta.

18 Retenho aqui o €LXó't"WC;; de A, contra o ÓLxaCwç de N, que faz ainda menos sentido ("pois é justo que eu me sinta inocentado"), visto que a demonstração, que antecede e que se segue, se sustenta, essencialmente, no grau relativo de verossimi­lhança (3, 5). Mais importante do que esta escolha, certamente arbitrária, é o fato de que, de um manuscrito a outro, os advérbios "verossimilmente" e "justamente" possam desempenhar a mesma função em uma argumentação consistente.

19 I:T)J.1ECO\l, "indício" de uma probabilidade (cf VI, 31-32). A diferença com 't"EX).UÍPLO\l, a "marca", como um indício encontrado, necessário, que temos o di· reito de supor irrefutável e que, portanto, pode servir como premissa num silogismo (cf o argumento ~), que será ainda codificado por Aristóteles (A.Pr., 11, 27, 70 a ss.; Retórica, I, 2,1357 a33-b25; cf SE, 5,167 b9).

Antifonte, Primeira tetra/ogia 319

Page 162: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

tem uma injustiça, ele mesmo e aqueles que lhe prestam ajuda, pro­curando, tão-só, obter vantagens de mim por ocasião de vossas acusa­ções, vós, meus acusadores24. Mas deixo tudo isso de lado, mais por equanimidade do que por justiça; e vos peço, juízes soberanos das maiores causas2S, que tenhais piedade do meu infortúnio e que sejais dele os médicos, que não ofereçais vossa ajuda a seus ataques e que não me vejais com indiferença, em detrimento da justiça e dos deu­ses, perecer sob efeito dos seus golpes.

Ar SEGUNDO REQUISITÓRIO

ARGUMENTO

Aqui são desfeitos os argumentos do acusado: o testemunho do serviçal merece crédito, e não é inacreditável que, embora rico e des­frutando de boa reputação, o acusado tenha cometido o crime, pois, por causa da vítima, corria o risco de perder o seu patrimônio. O acu­sador inverte as premissas no afã de desfazê-las26; "que eu seja in­fortunado", dito pelo outro, é revertido em: "este homem ultrajou'l- o infortúnio" .

(1) Este homem ultrajou o infortúnio, projetando-o sobre o seu delito, na tentativa de ocultar a sua própria infâmia. Ele não é digno da vossa piedade, pois mergulhou a vítima numa infelicidade que ela, decerto, não queria, enquanto ele, assim querendo, se expôs aos peri­gos. Que ele tenha assassinado o homem, nós o demonstramos no

24 Passagem da terceira pessoa à apóstrofe direta, em segunda pessoa.

2S Podemos deduzir que se trata aqui do Aerópago e não dos Eliastos (cf Maetzner, citado por Decleva, ad loc.)

26 Tdç lTpc}"nXCJêtÇ" [ ... ] ÀÚE:l xa'tct lTêpt'tPOrrtÍ'V. Todos estes termos estão co­dificados na retórica aristotélica e/ou cética: lyein se refere a maneira com que se "desfaz" ou se "resolve" um raciocínio aparente, as "prótases" são as premissas de um argumento (e, particularmente, de um synemmenon em "se ... então"), en­fim, a peritrope é a inversão, a reversão do argumento do adversário contra ele mesmo, o que caracteriza a refutação cética por excelência.

~'No sentido de difamar, injuriar, insultar, ofender os preceitos ou as regras. No original adikeitai - adikeo, em francês "faire du tort à". [N. da T.]

322 Documentos

'"

discurso precedente; que ele não tenha se defendido corretamente, é o que tentaremos, agora, replicar.27

(2) Vamos supor que, ao ver ao longe as pessoas se aproximan­do, os assassinos, abandonando as vítimas, tenham deixado o local, escondendo-se antes de saqueá-las; então, os passantes deram com ele28

(e mesmo encontrando o mestre já morto, ao menos se depararam com o serviçal ainda consciente, pois socorreram-no ainda respirando29 e em condições de testemunhar), com toda limpidez interrogaram-no e nos apontaram os malfeitores - ou este aqui não seria acusado. Va­mos supor que outros, surpreendidos pelas vítimas cometendo um outro delito do mesmo gênero, as tenham assassinado no afã de não serem reconhecidos; então, teriam anunciado o delito junto com o nosso caso, e a suspeita recairia sobre os delinqüentes. (3) Quanto àqueles que corriam menos risco do que aqueles que mais temiam, não sei como teriam, mais do que ele, premeditado: para uns, o pânico e a injustiça bastariam para fazer cessar os seus desejos30; para outros, o

27 O conjunto do vocabulário, que à primeira vista diz respeito à linguagem ordinária, é mais do que nunca tecnicamente conotado. Trata-se, com op{l-wC;, da "correção", também no sentido de "validade" dos raciocínios da, defesa, e, com €ÀÉrxo'V''teÇ", da "prova", na medida em que constitui uma "resposta imediata" em forma de "refutação" (cf n. 2, p. 58).

28 Mantenho aqui o singular dos manuscritos, cxu'tw, em oposição ao plural proposto por Reiske, por acreditar que é o encontro co~ o servidor que está, de fato, em questão.

29 Este relativo (<Sç; ~J.1lT'Vouç; àp{l-êLÇ" €j.lap"tÚpel) retoma a9; Decleva deci­diu, após Seume, optar pela athetesis [rejeição de uma lição viciosa].

30 Traduzo o texto dos manuscritos, compreensível à condição de não se pro­curar, com "uns" e "outros", uma antítese entre o acusado e aqueles que, odiando menos do que ele, tinham mais (ou menos, segundo o ponto de vista adotado) ra­zões para matar. Com "toUç; j.lÉ'v { ... ] 'tOlÇ" 6€, trata-se, segundo penso, e nos dois casos, daqueles que não mataram, em oposição não aos pares simétricos ("aqueles que temem ainda mais) mas a au't0, "de preferência a ele", que focaliza o plural, man­tendo o acusado, o único culpado, no singular (e que nem Gemet nem Decleva tra­duzem, a menos que eles o tomem como complemento debt"e!30úÀêOOcx'V, "premedi­tado o homicídio" para o qual esperar-se-ia, de preferência, um "tou'tw, e que se en­contra em outras partes absolutamente construído). As motivações que poderiam evitar o assassinato são, com efeito, de duas ordens: intrínsecas (phobos e adikia, medo eventualmente sagrado e respeito à justiça) ou extrínsecas (kindynos e aiskhene, sentimento do perigo e vergonha diante da idéia de ser descoberto). Com as corre­ções diferentes, seguindo ou Bekker (lTpoj.lrt1}Caç; em vez de lTpo{I-uj.lCac;, Gernet) ou

Antifonte, Primeira fetra/ogia 323

Page 163: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

risco e a vergonha, mais fortes do que o dissentimento, permitiriam, mesmo se estivessem dispostos a passar à ação, acalmar a animosida­

de de seus espíritos. (4) Além disso, é incorreto dizer que o testemunho do escravo

não é confiável. No que diz respeito a tais testemunhos, com efeito os escravos não são submetidos à inquirição, mas à liberdade. Quando, ao contrário, eles negam um pequeno furto ou quando tornam-se cúm­plices de seus mestres, é só então que estimamos necessário torturá­

los para que digam a verdade. (5) E não é, certamente, mais verossímil que ele estivesse ausen­

te, ao invés de presente, no local do crime. Pois, se lá não estivesse, correria, exatamente, o mesmo risco do que se lá estivesse, pois, se se capturasse um deles, este o denunciaria como instigador; além disso, o crime seria menos praticável, pois nenhum dos que lá estavam de­positava tamanho entusiasmo na ação.

(6) Que ele tenha sustentado o risco do processo não por um menor, mas por um risco maior do que o de hoje, eis o que vou pro­var. Vamos supor que condenação e absolvição tivessem, para ele, nas duas inquirições, a mesma possibilidade. Não haveria qualquer chance do processo não ser levado a termo, ao menos enquanto a vítima vi­vesse, pois não se deixaria persuadir por ele. Ele esperava, no entan­to, ficar fora de alvo com esta ação, pois acreditava que ninguém per­ceberia que ele era o assassino. (7) Estimando que a suspeita contra ele era muito evidente e que vós o presumiríeis não culpado, ele fez uma estimativa incorreta. Pois a suspeita não bastaria31 para desviar de sua empreitada um homem que enfrentava os maiores riscos: nin­guém, nesse caso, teria planejado o crime, pois todos aqueles que cor­riam menos riscos, temendo mais do que o risco a suspeita, teriam pensado32 ainda menos do que ele em um tal crime.

Reiske (oux diante de \xuve1Í, Dedeva), os editores precedentes decidiram desig­nar, com o primeiro plural, apenas o nosso acusado ("o temor e o sentimento da culpabilidade [delesl seria o suficiente para lhes fazer esquecer toda prudência": Gemet; "a injustiça sofrida e o temor daquela [injustiça] que era preciso ainda sofrer [suscitado em: o sentimento de culpabilidade pelo roubo de objetos sagrados] não bastavam, em alguns, para eliminar o desejo de cometer o assassínio": Decleva).

3\ Mantenho, como Decleva, o ou dos manuscritos, contra a correção de

Reiske em et. 32 Preservo aqui, ainda tal como Decleva, o írrEl'tO dos manuscritos, junto

324 Documentos

(8) As contribuições e as coregias indicam, suficientemente, sua fortuna, mas não que ele não tenha assassinado, pelo contrário; pois, temendo ser privado de uma tal fortuna, é com toda a verossimilhan­ça que, impiedosamente, assassinou o homem. Quando ele alega que os assassinos não são os que, verossimilmente, mataram, mas os que, de fato, mataram, sua afirmação está correta no que tange aos assassi­nos, à condição de que fique evidente para nós a identidade destes as­sassinos; mas, na medida em que não apontamos os assassinos, aque­le que as verossimilhanças desmascaram, o acusado e ninguém além dele, deve ser o assassino. Pois não é diante de testemunho, mas às es­condidas, que se comete este gênero de coisas.

(9) Convencido, com tanta evidência, com base em sua própria defesa, ele nada vos pede além de revirar sobre vós mesmos sua pró­pria ignomínia. Nós, nós nada pedimos, mas nós vos dizemos que, se este homem não for agora desmascarado, nem com base em verossi­milhanças nem com base nos testemunhos, é porque não podemos mais desmascarar um acusado. (10) Se for por vós injustamente solto, não será contra nós que o morto se voltará, mas será sobre vossas consciên­cias que ele se retornará. Pois, quando claro é o vosso conhecimento da morte, quando com evidência os traços da suspeita remetem ao acusado, quando fiável é o testemunho do servidor, como seria justo que vós o liberteis? (11) Com conhecimento de causa, socorreis, nes­se caso, o morto, punis o assassino, purificais a cidade. Pois agireis três vezes bem; diminuireis o número daqueles que nutrem projetos crimi­nosos, aumentareis o número daqueles que respeitam a piedade e vos libertareis da ignomínia da qual este que aqui está é a causa.

Ab SEGUNDO DISCURSO DA DEFESA

ARGUMENTO

[Eis-me aqui, diz ele, eu e o meu infortúnio. Ele fala gesticulan­do, deixando claro que se trata dele mesmo. É ele, diz ele, eu que me abandono a meu infortúnio e à nocividade deles.]33 Como prova de

com a construção de Reiske que propõe a retomada em elipse de um €m~uÀeOOcn, comandando o dativo au'tQ.

33 Blass, geralmente seguido pelos demais, supõe que se trata aqui da in-

Antifonte, Primeira tetrafogia 325

Page 164: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

não ter cometido o assassínio, o acusado alega que não foi a parte alguma naquela noite, e entrega à inquirição, para tratar desta ques­tão, todos os seus escravos.

(1) Eis-me aqui,34 coloco-me voluntariamente nas mãos do in,_ fortúnio, que, como dizem, ponho em causa injustamente, que volun­tariamente me entrego, e à ira de meus inimigos, pleno de receio diante da amplitude de suas calúnias, mas confiante em vosso julgamento e na verdade dos atos dos quais sou o autor. Como privam-me de lamen­tar, diante de vós, meus atuais infortúnios, não sei em que outro abri­go encontrar refúgio. (2) Pois lançam sobre mim as mais novas calú­nias - as mais novas, para não dizer as mais danosas. Fazendo-se passar por acusadores e vindicadores do morto, erguendo-se como defensores contra toda verdadeira suspeita - pois não sabem indicar o homicida -, pretendem que seja eu o assassino; mas assim realizam o contrário do que prescrevem a si próprios, e é evidente que, em vez de punir o assassino, eles tentam me fazer perecer injustamente. (3) Nada me resta além de defender-me contra o testemunho do servi­dor; pois não tenho nem de revelar nem de desmascarar os assassinos: acusado, defendo-me. Existe, no entanto, muito afazer, se quero de­monstrar, de todos as maneiras, que eles tramam contra mim, enquan­to eu me limpo de toda suspeita.

(4) O infortúnio de que se servem para me caluniar, eu peço que se transforme em boa sorte. Pois vos creio mais dignos de me bendi­zer, absolvendo-me, do que vos condoer, prendendo-me.

Segundo afirmam, é bem mais verossímil que não importa qual passante, encontrando as vítimas, se indague claramente a respeito dos assassinos e vá logo alertar a casa, ao invés de abandoná-las, seguin­do adiante em seu caminho. (5) Creio, quanto a mim, que não há homem suficientemente audaz e corajoso que, encontrando a tal hora adiantada da noite cadáveres ainda recentes, não dê logo as costas e se afaste, em vez de indagar-se sobre os assassinos, colocando em ris­co sua própria vida. Mas, se os passantes fizeram, de preferência, o

tegração de escólios (ver o primeiro parágrafo do discurso anunciado). Notemos, o entanto, que o argumento de"( já integrava esse gênero de estilo indireto livre.

34 O acusado poderia decidir-se pelo exílio, entre as duas defesas, cf. nota 1, p. 50.

326 Documentos

que era verossímil, então, não é mais verossímil que aqueles que o assassinaram por causa das roupas tenham podido escapar35 : e assim me acho limpo de toda suspeita.

(6) Anunciou-se ou não que outros infratores agiram no mesmo período, quem o sabe? Ninguém cuidou de averiguar. Mas, se o anún­cio passou despercebido, podemos, ainda assim, crer que foi assassi­nado pelos infratores em questão.

(7) Quanto ao testemunho do servidor, como se pode estimar que é mais confiável do que o testemunho de homens livres? Pois, se uns são privados de seus direitos e submetidos a multas, se é manifesto que os seus testemunhos não são verídicos, o outro, que não se submeteu nem à refutação nem à inquirição, não se poderá puni-Io36. Mas en­tão, qual refutação terá vez? Já que ele, em todo cas037, irá testemu­nhar sem risco, não há nada de chocante no fato de ele ter sido sub­metido à persuasão por parte daqueles que são, acima de tudo, meus inimigos, e tenha, assim, proferido acusações mentirosas contra mim.

35 Toú-rw'V O€ .uãno'V &. €'DwÇ' ~'V opaC1cÍ\I-rw'V, o't .u€'V Em -rOLÇ' 't.ua-rLOtç; OLa.<p~E(pa'V-rEÇ' au-rouç' OUX â'V ~'tL Étx6-rwç' lxcp(o'V-ro [ ... ] Corrige-se, habitual­mente, ou bem o primeiro membro da frase, ou bem o segundo. 'O primeiro: se­gundo Radermacher, Decleva suprime o .uãno\l diante de &. €lXDÇ (Gemet se con­tenta em modificar a ordem, tal como Blass, empregando o advérbio com €lXQç; e não com OpaC1cÍ\I-rW'V); o segundo: Gemet, por exemplo, corrige lxcp(o'V-ro (A2N) por a4JaL\I-ro ("o texto e o sentido da passagem são incertos"). Trata-se, evidentemen­te, de uma resposta a "(2 (respondendo a ~5, o qual responde à primeira hipótese de (4). Proponho ler, sem a correção, da seguinte maneira: se os transeuntes que sustentam a acusação tivessem agido tal como supõe a acusação, ou seja, se tives­sem parado para interrogar as vítimas e descobrir a identidade dos assassinos -"se fizeram, de preferência, o que era verossímil" que fizessem, segundo a acusa­ção (mas, claro, não segundo a lógica da defesa, que pensa que qualquer um daria as costas) -, então, contrariamente ao que conclui a acusação, os verdadeiros cul­pados, isto é, seguindo sempre a mesma hipótese, os ladrões de roupas, estariam, hoje, sendo julgados. O que não é o caso. Mas isso não prova que os assassinos não são ladrões, prova, apenas, que o cenário é inconsistente: não é verossímil, se levamos em consideração o cenário constituído, que os passantes tenham interro­gado e que os ladrões não tenham sido presos.

36 Conservo o Ou de A (-r( ou, de N), em oposição à emenda em TIOU de Reiske.

37 Conservo aqui, ainda contra Decleva-Caizzi, a seqüência dos manuscri­tos Cxxl\lM'Vwç; 'tE (que orienta a frase seguinte kfW -rE) ou-rQç; yE (o escravo, em to­do caso, diferentemente dos homens livres).

Antifonte, Primeira tetra/agia 327

Page 165: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Serei, então, submetido a atos ímpios se, com base num testemunho não confiável, for por vós condenado à morte.

(8) Que eu não tenha estado no local do crime é mais inacre­ditável, afirmam eles, do que o contrário. Mas, quanto a mim, não será em função de verossimilhanças, mas de fatos, que vou revelar que eu lá não estava. Os servidores e os serventes que possuo, eu os entrego à inquirição; e se houver indícios de que naquela noite não dormi em casa ou que saí para ir a algum lugar, reconheço que sou o assassino. Pois não é difícil lembrar daquela noite: foi nas Dipólias" que o ho­mem foi morto.

(9) Quanto à fortuna em função da qual afirmam que, por medo de perdê-la, eu teria, verossimilmente, cometido o crime, é absoluta­mente o contrário O que ocorre. O nov038 serve aos que não têm sor­te: é possível que suas dificuldades mudem com as transformações; mas para os afortunados, é plausível que eles não reclamem e guardem a atual bonança; pois se as coisas se modificam, de afortunados que eram, se tornarão infortunados.

(10) Pretendendo, por meio de verossimilhanças, desmascarar­me; afirmam que sou, não verossimilmente, mas realmente, o assassi­no. Demonstrou-se claramente que as verossimilhanças são outras39,

e a meu favor. De fato, aquele que contra mim testemunha, foi refu­tado como sendo não-confiável; não há contra-interrogatório possí­vel4o; as provas demonstrativas são minhas, e revelou-se que não fa-

". Ll.trrÓÀLCt;' "tâ, festa ateniense em honra a Zeus Polieus (guardião da cida­

dei. IN. da T.I

38 N€WT€p('Ç€lV, "revolucionar": trata-se de uma conjectura que encontra­mos em Aldine (cf Tucídides I, 58; IV, 51, e o fr. 37 D.K. de Crítias, citados por Declcva, p. 208). Os manuscritos trazem halp('Çelv, "associar-se", mantido por Radermacher, cujo sentido se compreende na frase, mas não no argumento.

39 Tcl 8€ eh::Ó'm ãÀÀa llPOC; €.IlOU J-lêiÀÀov cmo8É8eLXTaL 1Sv"ta. 'Não com­preendo a construção de Gernet: "literalmente: 'as verossimilhanças, além disso"'. O texto proposto por Sauppe, adotado por Decleva: €txo"ta - àÀÀá ! ... I ("as ve­rossimilhanças - mas demonstrou-se \ ... 1") aparenta falsa desenvoltura. Propo­nho atribuir todo o sentido a lJ.ÀÀa: as verossimilhanças são (lê-se em OVTa o 1Sv"twc; de "não verossímil mas realmente", que precede) outras e não as que lhe parecem; elas jamais se apresentam, enquanto verossímeis, sem risco de se sobreporem à verdade e ao real.

40 O escravo, expirando, foi refutado (eÀT\À€jXETm) como testemunho, pois

328 Documentos

"

voreciam ao que ele alegava; enfim, os vestígios do assassínio não le­vam a mim, mas àqueles que foram por eles mesmos inocentados. Uma vez que todos os argumentos da acusação foram refutados como não­confiáveis, não será em função da minha liberação que se tornará inviável encontrar os meios de inculpar os malfeitores; será, ao con­trário, se eu estiver persuadido de que não há para aqueles que perse­guimos nenhuma defesa suficiente.41

(11) Enquanto perseguem-me com tanta injustiça, estes mesmos, que procuram me liquidar de modo ímpio, afirmam que são puros, mas de mim, que vos persuado a serem piosos, dizem que os meus atos são ímpios. Quanto a mim, que estou livre de todos as acusações, em meu nome vos conjuro a respeitar a integridade daqueles que não comete­ram injustiça, e, em nome do morto, trazendo a vingança à vossa me­mória, eu vos exorto a não deixar escapar o culpado, prendendo um inocente; pois se eu morro, ninguém mais irá procurar o culpado. (12) Assim, no cumprimento destes deveres, piosamente e justamente, li­bertais-me, e não esperais pelo lamento de vossa falta, pois o lamen­to, nesse caso, não servirá de remédio.

não podia resistir às pressões de seus mestres, e ele é irrefutável, porque com ele não podemos construir uma refutação (€ÃelxOÇ'), levando a uma falsificação, pois está morto (cf (7).

41 Perfeita inversão de a 1 O e 19.

Antifonte, Primeira tetralogia 329

Page 166: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

11

MITO E DISCURSO DE PROT AGORAS (Protágoras, 320 b-328 d)

Platão

Procuro seguir, salvo indicação contrária, a edição de Burnet (platonis Opera, Oxford, Clarendon Press, 1903)

* * *

Sócrates: [ ... ] Se você está em condição de n051 mostrar, com mais evidência, que [320 c] a virtude pode ser ensinada, não nos prive, mostre-nos.

Protágoras: Mas, Sócrates, não o privarei disso. Pergunto ape­nas se lhes mostrarei como um velho aos jovens, relatando um mito, ou procedendo etapa por etapa com um discurso?

[5] Vários dos ouvintes disseram-lhe para proceder tal como qui-sesse.

- Parece-me, então - diz ele -, que há mais encanto em rela­tar-lhes um mito.

Naquele tempo, existiam os deuses, mas não havia as raças mor­tais [320 d]. Quando, para o nascimento dessas raças, chegou o tem­po marcado pelo destino, os deuses as modelaram dentro da terra, misturando a terra, o fogo, e tudo o que se mistura ao fogo e à terra. No momento de lançá-las à luz do dia, encarregaram Prometeu e [5] Epimeteu de dispor e repartir2, entre elas, os poderes tal como convi-

1 Epideixai, e não apodeixai: trata-se do verbo que em Platão caracteriza a discursividade sofística. Protágoras, capaz de proferir o discurso longo tão bem quanto a brachylogia (329 b), é apresentado como alguém que se sente mais à vontade praticando o primeiro tipo (cf 334 c-335 a). Sua "pretensão" toma aqui duas formas longas: o "mito" e o discurso que "procede etapa por etapa" (die­xelto, 320 c4), e no qual, concluirá Protágoras, Sócrates é o melhor de sua gera­ção (361 d-e).

2 Neimai, aoristo de nemein, "repartir". O radical nem- refere-se à atribui­ção regular, em particular de um pasto: assim, nemein significa, a uma só vez, "le-

Platão, Protágoras 331

Page 167: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nha. Epimeteu pede, então, a Prometeu, o fa vor de realizar sozinho a repartição: "Quando eu tiver repartido - diz ele -, você virá inspe­cionar". Ele assim o persuade e faz a repartição.

Repartindo, ele conferiu a alguns a força sem a velocidade, [320 e] e colocou a velocidade à disposição dos mais fracos; ele armou ou­tros, e arranjou3, para aqueles que dotava de uma natureza desarma­da, algum outro poder de sobrevida. Se revestia alguns com a peque­nez, ele lhes atribuía asas para fugir, ou uma habitação subterrânea. Se lhes aumentava o tamanho, [321 a] colocava-os, em função disto, em segurança. E foi assim balanceando, de igual maneira, a reparti­ção para o restante dos mortais. Ele tudo arrumava, tomando suas precauções para que nenhuma raça se extinguisse, e depois de tê-las capacitado de forma a evitar uma destruição mútua, articulou-se para torná-las resistentes às intempéries de Zeus: ele as revestiu com uma abundante cobertura [5] de pêlos e de espessas peles, fortes o bastan­te para protegê-los do mau tempo, também capazes de evitar queima­duras, e podendo fornecer, à hora de dormir, um agasalho pessoal que brota naturalmente em cada um; [321 b] e calçou seus pés, tanto com cascos quanto com peles espessas e não irrigadas. Em seguida, forne-

var ao pasto" (donde "nômade") e "repartir" (donde nemesis, "vingança"), o que nos remete à concepção da humanidade como uma raça animal entre outras (cf já em 320 a, onde Sócrates diz que Péricles "deixou seus filhos soltos ao sabor das aventuras", para que eles encontrassem por acaso a virtude). No mito, o termo designa a repartição efetuada por Epimeteu (5 ocorrências de nemein, "repartir", entre 320 d-321 a, e nome, a "repartição", em 321 (4), e logo a seguir a reparti­ção efetuada por Hermes em nome de Zeus (322 (6). Encontra-se; um pouco mais adiante, o verbo com o mesmo radical nomizo, "ter em uso", "ter o costume", "pensar": os homens que, graças a Prometeu, conquistaram sua parte no lote di­vino, tiveram, na mesma oportunidade como quinhão específico, de "levar em conta" os deuses (322 a4). Enfim, distinguimos pela acentuação entre nomós, "porção de território", "pasto", e nómos, "o que é atribuído numa divisão", o "uso", o "costume", a "lei"; esse último termo surge também, no fim do mito, para designar a "lei" de Zeus, ou seja, a lei de repartição de aidos e dike (322 d4). Cf notas em 322 a3 (sobre moira) e em 322 d2 (sobre metekhein).

3 Emekhanato, repetido em 321 a2 e 4.; cf. 321 d2, amekhanon ("não há meios de", "não é possível se arranjar"). A mekhane (máquina, maquinaria, ma­quinação) nos remete ao artifício, ao meio, ao truque, qualquer que seja, que se manipula para se alcançar um determinado fim, do ponto de apoio às artimanhas de Ulisses. É um termo que caracteriza os agenciamentos sofísticos, em particular para Platão (Lg., 908d e.g.).

332 Documentos

ceu a cada qual uma alimentação diferente: para uns, a erva da terra; para outros, os frutos das árvores, ou ainda as raízes; houve aqueles a quem deu como alimento a carne de outros animais: [5] atribuiu-lhes também a capacidade de se reproduzirem pouco, enquanto suas pre­sas se reproduziam abundantemente, assegurando a sobrevivência da espécie. Assim fazendo, Epimeteu, que não era um grande sábio4, não se deu conta de que havia dispensado todos os poderes em benefício daqueles que não falam5; faltava ainda [321 c] a raça humana, que não dispunha de nada, e ele estava bem confuso, sem saber como com ela proceder. 6

Em meio a tal embaraço, chega Prometeu, no intuito de inspecio· nar a repartição, e observa, então, todas as raças harmoniosamente

4 Epimeteu é "aquele que pensa após", ao contrário de Prometeu, "o que prevê"; tratam-se de palavras formadas a partir do verbo manthanein, "aprender", que, com o seu simétrico didaskein, constituem, no que concerne à virtude, tudo o que está em questão. A sabedoria imperfeita de Epimeteu é, como no caso de Helena ou de Antifonte, um efeito de eponímia. Vale a pena notar que, após Louis Bodin (Lire le Protagoras, Paris, Les Belles Lettres, 1975, pp. 80-2), Sócrates é comparado e se compara a Prometeu (316 c5 e 361 d3-4) -Protágoras achando­se, então, em posição de comparação não com Epimeteu, mas com Zeus.

5 Ta alaga designa aqueles que estão privados de lagos, os "animais". Em resposta à importância da temática discursiva, resolvi traduzir literalmente. O lagos, como arte de articular os sons da voz e as palavras do discurso é, a princí­pio, no mito, uma das conseqüências do dom fornecido por Prometeu aos ho­mens, e o que os diferencia das outras espécies (322 a6; ver também 324 bl: hosper therion alogistos; e 326 b2 no que concerne à relação com a música). En­fim, e sobretudo, ele distribui, como objeto de um ensinamento perpétuo e disse­minado, o modelo do aprendizado da virtude política, fornecendo a chave do dis­curso contínuo.

6 'HTIÓpSL o 'tt XPtlcrCU 'to. Epimeteu, sem ser um grande sábio portanto, se encontrava diante da "aporia", ou seja, "no impasse" (poreuomai, "passar", "ca­minhar para") e "sem recursos" (hoi poroi, "os recursos"). Este "embaraço", vi­vido por Epimeteu (repetido em c3) e partilhado, a princípio, com Prometeu (c7), contrasta com a "eu poria ", a abundância de recursos, colocada à disposição do homem pelo roubo de Prometeu (euporia tou biou, 321 e3-322 aI). Sobre o pró­prio Prometeu e sua metis de sophistes, devemos nos reportar a M. Detienne e J.P. Vernant, Les Ruses de l'intelligence. La metis des Grecs, op. cito (em particular pp. 62-6). Notemos, enfim, que o ponto de partida da atuação de Protágoras é uma "aporia" de Sócrates, da qual Protágoras lhe mostra a saída.

O verbo aporein é aqui construído com um completivo, ho ti khresaito: Epimeteu estava confuso, querendo saber "o que deveria fazer", "como agiria",

Platão, Protágoras 333

Page 168: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

providas com tudo, [5] salvo o homem, nu, sem nada nos pés, sem nada para cobri-lo, e sem armas. Ora, o dia fixado em que o homem deve­ria deixar a terra, lançando-se à luz do dia, já havia chegado. Bem conturbado, no afã de encontrar um meio qualquer de salvar o homem, Prometeu [321 d] rouba a sabedoria artística7 de Hefesto e Atenas juntamente com o fogo, pois sem fogo não é possível se articular nem para adquirir nem para utilizar tal sabedoria, e assim, com isso, pre­senteou o homem. O homem detinha, em função disso, a sabedoria que diz respeito à vida, mas [5] não possuía a sabedoria política: esta estava com Zeus. E Prometeu não tinha mais tempo para voltar à acrópole onde Zeus habita, sem contar com o fato de que os guardiões

"como a utilizaria". O verbo kraomai, formado a partir do mesmo radical de kheir, "mão", é reencontrado em 321 d3 (sem o fogo, o homem não pode "utilizar" a sabedoria artesanal), depois em 326 b7 (a educação deve tornar as crianças "úteis" à cidade). Tal verbo pertence à terminologia característica da sofística, e tentei aqui manter uma tradução por palavras da família de "uso".

7 Trlv €\I'tEX\lO\l croq>LU\I: trata-se daquilo que Atenas, deusa da sabedoria, e Hefesto, o deus ferreiro que detém a proficiência nas técnicas, possuem em comum: algo como a sabedoria relativa "ao domínio da" arte (en-, cf. o en tekhnei einai de Sócrates, em 319 c7-8). Vale observar que os dois termos, sophia e tekhne, es­tão recobertos um pelo outro: a sophia não designa, a princípio, a abstração da ciência, mas a habilidade, a competência; e a tekhne não designa, simplesmente, a técnica manual, mas o savoir-faire. Este conjunto é igualmente chamado de sophia peri ton bion, "a sabedoria da vida", (321 d3-4), e he demiourge tekhne, "o savoir­faire criador" (322 b3, ver nota ad loc.). O laço entre sophia e tekhne, concreti­zado pelo sintagma original, é essencial para toda a seqüência da argumentação. Com a política, ou seja, a única atividade que não cai no rol da entekhnon sophia, é preciso também jogar com o duplo registro: a uma só vez sophia (ten de politi­ken [sophian[, 321 d4-5) e tekhne (politiken gar tekhnen, 322 b5, cf. 319 a4). Ela não é como as outras tehknai, pois todos, e não apenas alguns "técnicos", a pos­suem, mas ela é, no entanto, como as outras tekhnai, pois é ensinada tal como as outras, ou seja, por impregnação e aprendizagem. Com este único sintagma, Pro­tágoras segue, hic et nunc, em sentido contrário ao da grande oposição entre tekhne e sophia, que constitui o ponto de partida de Sócrates, rascunhando o retrato de Atenas (e os atenienses são sophous, 319 b4), cidade em que a tekhne (apenas os homens de habilidades técnicas são reconhecidos como competentes, porque aprenderam) difere, radicalmente, da política e da sabedoria (todos são competentes, e os sophotatoi não conseguem ensinar suas próprias virtudes a seus próprios fi­lhos); em 319 b-320 b Sócrates conclui que a virtude não pode ser ensinada. Ten­tei sustentar, não sem arbítrio, mas para que se pudesse perceber as ocorrências em seus próprias desdobramentos, a tradução de tekhne por "arte", e a de sophia por "sabedoria".

334 Documentos

"

de Zeus eram implacáveis. Ele então penetra, sem que ninguém se aperceba, no ateliê comum a Atenas e Hefesto, onde [321 e] estes praticavam suas bem-amadas artes, rouba a arte do fogo, a de Hefesto, e a outra, a de Atenas, e as fornece aos homens: vem daí que o ho­mem [322] se acha bem preparado para a vida, e que Prometeu, em função da falta de Epimeteu foi, em seguida, conforme se diz, perse­guido por roubo.

Como o homem tinha a sua parte no lote divinos, ele foi, a prin­cípio, por causa de sua conaturalidade com o deus, a única criatura viva habituada a lidar com os deuses9, e [5] começou a construir alta­res e estátuaslO para estes; depois, bem rapidamente, articulou os sons da voz e inventou as habitações, as vestimentas, os calçados, os aga­salhos, a alimentação que se tira da terra. Assim preparados, [322 b] os homens tiveram, a princípio, um habitat disperso: não havia cida­de; eles também pereciam com os ataques de animais ferozes, pois eram, por todos os meios, mais fracos, e os ofícios das artesll lhes presta­vam socorro suficiente quanto à nutrição, mas se encontravam em desvantagem na guerra contra as feras. [5] Isso porque ainda não ha­viam adquirido a arte política, da qual faz parte a arte da guerra. Ten­tavam, então, reunir-se e se salvar fundando cidades; mas quando reu­niam-se, eram injustos uns com os outros, pois não possuíam a arte política; assim, de novo dispersados, eles morriam. [322 c] Então Zeus, temendo que nossa raça se extinguisse por inteiro, enviou Hermes para levar aos homens o respeito e a justiça, para que assim houvesse as estruturas das cidades e os laços de amizade que tudo mantêm reu-

8 geLaç J.1€TÉIJ'Xe J.WLpaC;;: a moira é a parte (meros) que cabe e que o desti­no (a moira) determina. Esta família de termos é comparável a uma outra manei­ra, costumeira ou legal, de se dizer a repartição [partilha], construída à partir do radical men- (ver notas em 320 dS, e em 322 d2 para metekhein).

9 Deuschle suprime essa parte da frase, repetitiva e na qual o uso do singu­lar, "o deus", pode facilmente indicar uma glosa ulterior.

10 Agalmata, do "monumento" à "imagem" piedosa.

(il 'H bTJj..LlOUPTlX1l 't€xvrl. O demiourgos é aquele que trabalha para o de­mos, para o (bem) público: o "artista", o "homem de habilidade técnica", o "ho­mem de arte", o "profissional", em oposição ao idiotes (cf. 322 c7, 322 dS e 327 c7, e cf nota para 327 aI), mas é também, como no Timeu por exemplo, o "de­miurgo", o "criador do mundo". Trata-se aqui das "artes e ofícios", da "técnica" na medida em que é inventiva, criadora; em uma palavra: prometéica.

Platão, Protágoras 335

Page 169: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nido 12 Hermes logo pergunta a Zeus de que modo distribuir o res­peito e a justiça entre os homens: [5] "É como são repartidas as artes que devo também reparti-los? A artes são assim repartidas: um único a possuir a arte da medicina basta a muitos profanos; de igual modo ocorre para os demais homens de ofício. É dessa mesma forma que devo distribuir respeito e justiça [322 d] entre os homens, ou será pre­ciso repartir entre todos?" - Entre todos, disse Zeus, e que todos os tenham em comum13; pois as cidades não existiriam se um pequeno número14 dentre eles os tivessem em comum, como ocorre nas outras artes; e promulgue, precisamente em meu nome, uma lei de distribui­ção segundo a qual quem não [5] tiver em comum o respeito e a jus­tiça será condenado à morte como uma doença da cidade".

É assim, Sócrates, e por estas razões, que os atenienses, tal como os outros15, a cada vez que a questão incide sobre a excelência16 em

12 "Estruturas", para o intraduzível kosmos. Pode-se, certamente, hesitar na análise do grupo de palavras: '(V'€'i:EV TTÓÀEWV XÓOJLOL "tE xat bE(jj.l.OL q>LÀ(aÇ"

ouvarwro(; será que é preciso compreender poleon com eien ("para que perten­ça às cidades") ou com kosmoi, em paralelo com desmoi philias ("para que ocor­ram as ordenações constitutivas das cidades")?

1J náv"t€Ç" j.l.€"tê,Xóv"twv: a declinação no genitivo de pertencimento realça o sentido do verbo met-ekhein, "ter junto", "possuir em comum", que não traduzo por "participar", pois não se encontra, aqui, nem meros-moira, nem nomos-me­nein. Ver nota em 320 d5. Cf 324 d8, 325 a3.

14 Oligoi: a escolha entre "todos" e "alguns" é tão repleta de conotação política que não podemos deixar de ouvir, a respeito do modo de repartição, a diferença entre "oligarquia" e "democracia".

15 Sóctates falava, unicamente, dos atenienses (319 b), e sobre o fato de que eles darem ouvidos a qualquer um em questões políticas podia caracterizar suas escolhas pela democracia-demagógica. Protágoras generaliza ("Os atenienses, en­tre outros") e nos força a compreender que não se trata, a princípio, de uma esco­lha de regime, oligárquico ou democrático, mas do apelo ao político de um modo geral, isto é, do apelo a uma condição de possibilidade do político. Cf 324 c2-4 e 326 d8 e1.

@Arete: a mesma palavra, construída a partir do superlativo de agathos, "bom", designa todas as modalidades de excelência, as do corpo (a "coragem") e as da alma (a "virtude") - a amplitude do sentido nos é dada no exemplo mani­festo de Aristóteles, quando ele define a "virtude do olho", que é ser bem consti­tuído enquanto olho e de permitir que se veja bem (EN, 11, 6,1106 a16-18). Tra­ta-se, aqui, de permitir a comparação da "competência" no domínio das tekhnai, arquitetura ou flauta, e o "valor" em política (323 aI e.g.), a "virtude" do homem

336 Documentos

.",

arquitetura ou em qualquer outro ofício, crêem1? que compete a um pequeno número contribuir no conselho, e se [322 e] alguém de fora deste pequeno número oferece o seu conselho, eles não o suportam, como você [323] diz. Isso é bem normaJ18, como eu digo. Mas, quan-

(325 a2) e a "virtude" pura e simples (328 b1 e.g.), sobre o pano de fundo da questão socrática: "A virtude pode ser ensinada?". Nenhuma tradução ("excelên­cia", "valor", "mérito", "virtude") é adequada, pois nenhuma faz sentido em to­das as ocorrências; optei por manter, o maior tempo possível, a tradução por "excelência", isso no afã de sublinhar a relação, indispensável à argumentação, entre as artes e a política. Traduzo por "virtude" quando arete não está mais qualifi­cada, permitindo retornar à problemática moral de Sócrates (327 e). Enfim, o fato de se encontrar um grau de comparação (arete-aristos) não é menos fundamental para a conclusão de Protágoras: todos têm a virtude, mas alguns a possuem "dife­rentemente", porque são "mais excelentes" que outros (ver 328 a8-b2; cf já em 324 d-6, a relação entre "bom" e "melhor", retomada por Sócrates 320 b2-3).

17 É preciso distinguir entre oimai, que indica um pressentimento, uma im­pressão, uma suspeita (uma etimologia difícil, mas com freqüência evocada pela proximidade do presságio e do pássaro) e hegeomai, que marca, ao contrário, um pensamento coeso e decidido (hegeomai quer dizer, a princípio, "guiar", "abrir a via "). Sobre a relação entre os dois termos, alternadamente em Sócrates e em Platão, sobretudo em 323 c-324 c, cf Bodin, pp. 95-6. Para que possamos distinguir, tra­duzi, constantemente, o primeiro por "crer" e o segundo por "estimar".

18 Eikotos, repetido em 323 a2, 323 c2, 324 c5; em eik05, "imagem", nos remete ao "verossímil", ao "provável", ao "normal", determinado aqui em sua oposição não à "verdade", como, por exemplo, no caso de Antifonte, mas ao "as­sombro" (thaumaston, que encontramos em 3-7 e 328 (5); oposição apresentada desde a réplica de Sócrates à afirmação de que o dia passado junto a Protágoras determina, para o seu discípulo, um progresso na direção do melhor: "Caro Pro­tágoras, o que você afirma não é em nada surpreendente, diria mesmo que ocorre o contrário" -ooo€v ltauJ..Lao-rov ÀÉrELÇ", à)")'à €'LxOÇ" (318 b2). Protágoras parte de duas constatações de Sócrates: 1) em Atenas, apenas os expertos têm o direito de manifestar opinião em matéria de tekhnai, mas, quando tratam de uma maté­ria política, escutam a opinião de todos; 2) os pais virtuosos não conseguem gerar filhos virtuosos. Para Sócrates, essas duas constatações são incompatíveis com a tese de que a virtude pode ser ensinada. Protágoras revela que é preciso reinterpretar os fatos, e que, precisamente no âmbito de sua tese, esses fatos não são "surpreen­dentes", mas "normais" ("como você diz", "como eu digo"). É nesse ponto que se reencontra a dupla significação de eikos, uma positiva e outra negativa: os mes­mos fatos são suscetíveis a duas interpretações contraditórias; uma, imediatamente verossímil e apenas aparente, é a de Sócrates (a virtude então não pode ser ensina­da); outra, a de Protágoras (a virtude pode ser ensinada), trata das mesmas apa­rências, sobre as quais o mito fornece um primeiro tratamento justificativo, abrindo um quadro teórico mais amplo: que o fato de todos possuírem virtude não impe-

Platão, Protágoras 337

,.

Page 170: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

do se dirigem a um conselho de excelência política, que deve passar inteiramente pelo sentido da justiça e do bom sensol9, é bem normal que admitam qualquer um, na certeza de que convém a todos ter em comum essa excelência, sem a qual, de fato, não haveria cidade. Eis aí, Sócrates, qual é a causa.

[5] Para que você não tenha a impressão de estar sendo ludibria­do2o, pensando que, realmente, todos os homens estimam que todo homem tem em comum o respeito e as outras formas de excelência política, leve ainda em consideração a prova que aqui se segue. Para

de que ela seja ensinada, como nos presta testemunho a prática racionalizada do castigo (que se demonstrou em 323 c-324 d, e que, por sua vez, conclui por ei­kotos); que os melhores pais não tenham os melhores filhos, isso não o constran­ge de modo algum, visto que é a cidade, como um todo, que ensina a virtude, e que, então, a menos que um professor particular e extraordinário como Protágoras se apresente, é, unicamente, o dom natural que fará a diferença (demonstração feita a partir de 324 d, marcada pelos "surpresas" de 326 e e 328 c). Cf. sobre esta questão o comentário de Louis Bodin, Lire Protagoras, op. cito em particular pp. 33·5,73,94.

19 .ó.LXULOOÚVTj XUl O'W<ppOO'ÚVTj: não mais aMos kai dike, mas, e não sem quiasmo, qualquer coisa como a interiorização de aidos e dike em cada um. A dikaiosyne é, de uma só vez, a percepção e a aplicação da dike; a sophrosyne é a qualidade do que é "são" de corpo e de espírito, donde a sabedoria no sentido de "bom senso", "prudência", "temperança", "moderação", "justa-medida". Na seqüência, sophrosyne será substituída por uma expressão mais vaga, "o resto da excelência política" (323 a6-7 e b2), e reaparecerá, com seu sentido mais agudo de "justa medida" e de "sanidade", fazendo referência à qualidade daquele que não passa por ter uma virtude, que, de fato, não possui (323 b4). Mas, precisa­mente neste caso, o seotido de sophrosyne desdobra-se: a peripécia teatral coo­siste em que, ao contrário do que se passa em todas as outras excelências, em ma­téria de dikaiosyne aquele que não emite a pretensão de possuí-Ia, mesmo quan­do, de fato, não a possui, é que deve ser considerado "louco", e não como estan­do "em seu bom senso". Cf. também a seqüência de 32S aI. Sócrates logo ela­bora (a partir de 329 c) argumentos a partir dessas seqüências e de suas varia­ções, opostas às pretensões de unidade (cf. 324 e3-32S a1), para retomar o pro­blema: a virtude é uma ou múltipla? Ver, sobretudo para a diferença entre sophia­sophrosyne, e uma vez que os dois termos só admitem, segundo ele, um único contrário (aphrosyne, que não encontramos na passagem que ora analisamos), toda a sua argumentação em 332-333.

20 Apatasthai, "decepcionar" no sentido de "enganar", "iludir": termo ca­racterístico da sofística, com uso depreciativo em Platão; mas um bom termo para Górgias, pois aquele que se deixa iludir é "mais justo e mais sábio" do que aquele que recusa a ilusão (82 B 23 D.K., trata-se de trecho de "De pseudo à plasma"). É

338 Documentos

as outras excelências, como você diz, se alguém pretende ser bom em flauta, ou não importa em qual outra arte, sem, de fato, sê-lo, ou bem ,faz rir [323 b] ou bem causa irritação, e os seus próximos logo tratam de notificá-I021 de sua loucura. Mas, em matéria de justiça e nas de­mais formas de excelência política, se alguém, reconhecidamente in­justo, declara em público a verdade a seu próprio respeito, [5] o que se estimava como bom-senso (dizer a verdade), estima-se aqui como loucura, e logo se declara que todos devem afirmar22 que são justos, quer o sejam ou não, ou ainda que aquele que não simula23 a justi· ça24 é louco. Na convicção de que, necessariamente, [323 c] não há quem não tenha em comum, de uma maneira ou de outra2S , a justiça, sem a qual não contaria no número dos homens.

Que, por um lado, os atenienses acolhem, com freqüência, todo homem como conselheiro no que tange a esta tal excelência, pois esti­mam que todos a possuem em comum, [5] eis o que afirmo. Que, por outro lado, eles estimam que ela não existe· por natureza ou por efeito do acaso, mas que pode ser ensinada e que surge como o resultado de uma aplicação, eis o que, a seguir, vou tentar demonstrar.

De fato, em todas as deficiências que os homens estimam atri­buir-se, uns em relação aos outros, [323 d] à natureza ou ao acaso,

preciso observar que Protágoras usa o termo, ao se referir a Sócrates, na medida em que tenta revelar que, em matéria de justiça, aquele que ilude é mais sophron do que o que diz a verdade, e que sábios são aqueles que se projetam no exercício da ilusão.

21 Nouthetousin: literalmente "colocar na mente", "tomar consciência"; a "nouthética" é a prática moral da "advertência", da "exortação", da "admoesta­ção". Cf. 323 dI, 323 e3, 324 a2, 325 ç6, 326 a!.

22 Traduzo phanai por "afirmar" para distingui-lo de legein ("dizer", aqui mesmo talethe legein, "dizer a verdade"). Phanai acentua a dimensão da enuncia­ção ("proferir") e a independência da linguagem face à verdade do "enunciado" (" pretender").

23 Prospoioumenon: é o termo que marca, tanto em Platão quanto em Aris­tóteles, a maneira do sofista, como um ator que coloca uma máscara sobre a face [no grego, hypokrites; "hipócrita" em portuguêsJ, de simular o filósofo.

24 Conservo dikaiosynen, que Burnet suprime, seguindo Cobet: não há nada além da justiça a simular, porque a sophrosyne é difícil de discernir (ver nota em 323 aI).

25 Pos: seja porque ele a tem, seja porque pretende tê-la.

Platão, Protágoras 339

Page 171: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

II , I I

ninguém se irrita, nem adverte, nem ensina, nem castiga aqueles que as têm, afim de que não sejam assim, mas os cobrem de piedade; aqueles que são feios, por exemplo, ou pequenos, ou fracos, quem seria insano o suficiente para tentar, a respeito deles, uma destas ações? É que, [5], creio eu, é bem sabido que esse gênero de qualidade, com seus con­trários, vem ao homem em função da natureza e do acaso. Ao contrá­rio, todos os benefícios que estimamos advir aos homens como resul­tado de uma aplicação, de um exercício e de um ensinamento, [323 e] se alguém não os possui, e sim os vícios contrários, eis o que consti­tui, provavelmente, o objeto das zangas, dos castigos, das advertên­cias. No campo desses vícios, encontramos a injustiça, a impiedade [324] e, em uma palavra, tudo que é contrário à excelência política; aqui, cada qual se encoleriza contra qualquer outro, e o adverte, com toda evidência, com a idéia de que se trata de uma aquisição provenien­te da aplicação e do estudo. Pois, se você quer refletir, Sócrates, sobre o que pode, na ocasião c~rta, a ação de castigar aqueles que agem injus­tamente, [5] isso em si lhe ensinará que os homens estimam que é possível se preparar para a virtude. Com efeito, ninguém castiga um injusto levando tão-só em consideração o seu ato injusto, e apenas por causa desse ato, a não ser que [324 b] pretenda vingar-se26, de maneira irracional, como uma besta selvagem; mas, se tentamos castigar com razão, não nos vingamos da injustiça enquanto acontecimento passado (não saberíamos fazer, do que já ocorreu, uma não-ocorrência), mas visando o futuro, para que nem o culpado [5] nem os que o viram ser castigado cometam, posteriormente, injustiças; e quando temos esse pensamento em mente, tomamos a virtude como objeto de educação: pois é, decerto, para desestimular que punimos. Tal é a opinião que compartilham todos aqueles que [324 c] efetuam uma vingança, tanto de ordem privada quanto pública. Os homens vingam e punem aqueles que eles acreditam agir com injustiça, e os atenienses, seus concidadãos, não menos que os outros. De tal forma que, seguindo este raciocínio, também os atenienses pertencem ao grupo daqueles que estimam que a virtude [5] é coisa que se ensina, e para a qual nos preparamos. Que, por um lado, é normal que seus concidadãos aceitem a opinião do

26 "Vingar-se" traduz timorein, a partir de time, o "valor" ("honradez e es­tima"), que diz respeito ao pagamento exigido em troca, em oposição a "punir", kolazein, que significa a princípio "truncar", "mutilar", a partir de kolos, o boi "sem chifres" ou a lança "sem ponta".

340 Documentos

ferreiro ou do sapateiro em matéria política, ao mesmo tempo em que estimam que a excelência pode ser ensinada e preparada, eu o demons­trei, Sócrates, suficientemente, segundo me [324 d] parece.

Resta a dificuldade que lhe causa embaraço a respeito dos ho­mens de bem: por que então os homens de bem ensinam a seus pró­prios filhos tudo o que depende do ensinamento de um mestre e [5] os tornam sábios, mas quando se trata da excelência que os faz notá­veis eles não os tornam de modo algum melhores? Sobre esta questão, Sócrates, não é mais um mito o que vou proferir, mas um discurs027.

Continue a refletir: se a cidade deve existir, há ou não há algo de único que todos os cidadãos necessariamente possuem em comum? [324 e] Pois é aqui ou em nenhuma outra parte que se resolve este embaraço onde você continua submerso. De fato, se existe, então este algo único não é a arte do carpinteiro nem a do ferreiro nem a do oleiro, [325] mas o senso da justiça, o bom senso, o fato de ser pio, e, para concluir, resolvo chamar este um, nele mesmo, de a excelência do homem. Se é isso o que todos devem possuir em comum, se é em fun­ção disso que todo homem deve [5] agir, não importando o que quei­ra aprender ou fazer a mais, e sem isso, não; ou ainda, se aquele que não possui tal excelência deve ser instruído e castigado - quer seja criança, homem ou mulher - até que a punição o torne melhor; e se aquele que não dá ouvidos nem à punição nem ao aprendizado deve ser, como se se tratasse de um incurável [325 b], expulso das cidades ou condenado à morte; se as coisas se passam assim, se tal é a nature­za do que procuramos, e que, não obstante, os homens de mérito en­sinam a Seus filhos tudo menos isso, observe como é assombroso o

27 O mito e a explicação que Protágoras acaba de elaborar, com a demons­tração (apodeixai, 323 c8) relativa à pedagogia da punição, serviram para resol­ver a primeira aparia assinalada por Sócrates: se todos são competentes em maté­ria de excelência política, como admitir que é possível ensiná-la? A segunda aparia - se pais excelentes não tornam seus filhos excelentes, como admitir, igualmen­te, que ela pode ser ensinada? - constitui, agora, o objeto de um discurso contí­nuo (o Iogas, a princípio descartado em 320 c3). Procuro aqui seguir o fio da ar­gumentação, pois ela é, com freqüência, mal compreendida: se os melhores pais não têm os melhores filhos, isto não se deve ao fato de a virtude não poder ser ensinada, mas sim ao fato de que, na cidade, todos, e não apenas os pais, ensinam a virtude; de tal modo que, no fim das contas, a natureza do rehento (euphyestatos, 327 b8) é que faz a diferença - a menos que ele tenha recebido lições particul~­res, ministradas por um Protágoras (328 b).

Platão, Protágoras 341

Page 172: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

comportamento desses homens de valor. Pois estimam, eis o que de­monstramos, que é possível ensinar a virtude, [5] tanto no domínio privado quanto no público; mas, uma vez podendo ensiná-la e cultivá­la, ensinam a seus filhos todo o resto, que se pode ignorar sem que isso determine a pena de morte; mas justo o que determina a pena de morte ou o exílio de seus próprios filhos - quando o ensinamento e [325 c] a cultura não os conduzem para a excelência - e, além da morte, o confisco dos bens e a ruína de toda a sua casa, estas coisas, de fato, eles não ensinam e não consagram a ela toda a sua dedicação! Deve­mos verdadeiramente crer nisso, caro Sócrates!

[5] Pois eles começam quando as crianças são ainda pequenas, e continuam durante toda a vida a ensinar e a advertir. E logo que sur­ge um em condições de compreender o que se diz, a ama, a mãe, o pedagogo e o próprio pai se esforçam, por todos os meios, para que a criança seja a melhor; eles ensinam e mostram, na ocasião de cada gesto e de cada palavra, que isto é justo, aquilo injusto, belo, feio, pio, ímpio - e faça isso, não faça aquilo. Melhor ainda se a criança é persuadi­da voluntariamente; senão, como um galho torto e recurvado, eles a corrigem com ameaças e golpes. Depois, quando a enviam aos mes­tres, pedem a estes que dediquem maior atenção à boa conduta do que às letras e à cítara; os mestres, de sua parte, levam em consideração o pedido, e logo que os estudantes conhecem o alfabeto e se tornam capazes de compreender as palavras escritas, tal como há pouco com­preendiam a linguagem falada, eles os fazem ler em seus bancos os poemas dos bons poetas e os forçam a decorá-los, [326] pois nestes encontram muitas advertências, muitas digressões, glorificações e elo­gios sobre a bondade dos homens de outrora, para que, assim, a crian­ça zelosa imite e aspire a ser como eles. Por sua vez, os professores de cítara, de forma semelhante mas com outros meios, [5] cuidam do senso de equilíbrio e o fazem de modo a que os jovens não ajam mal; de­pois, quando os jovens já sabem tocar, eles lhes ensinam os poemas de outros bons poetas, os líricos, que são interpretados ao som da cítara, e, assim, forçam os ritmos e as harmonias a habitar a alma das crianças, para que sejam mais sociáveis, e que, mais ritmadas e mais harmoniosas, possam tornar-se úteis tanto para o exercício da fala quanto para a ação, [5] pois toda vida humana tem necessidade de ser ritmada e harmoniosa. Além disso, eles os enviam ao professor de gi­nástica para que seus corpos, em melhor estado, se prestem ao servi­ço de um espírito em condições de se tornar útil, [326 c] e que não se-

342 Documentos

"

jam forçados a se tornarem covardes por causa da miséria dos seus cor­pos, nem para o combate nem para outra forma qualquer de ação. É desta forma que fazem aqueles que possuem mais recursos28, e aque­les que possuem mais recursos são os mais ricos: [5] seus filhos, que são os que mais cedo começaram a freqüentar os mestres, são os que mais tarde os deixam.

Quando eles deixam os mestres, a cidade, por sua vez, os força a aprender as leis e a viver em conformidade com elas, como se se tra­tasse de um paradigma, [326 d] isso para que não saiam agindo ao sabor de aventuras, cheios de si; a cidade atua, tão simplesmente, como os professores de escrita, que traçam as letras com o estilete para as crianças que ainda não são capazes de escrever, assim lhes fornecen­do, já preparada, a tábua, e, desta forma, forçando-as a escrever se­guindo [5] o riscado das letras: a cidade risca o esboço das leis - es­tas conquistas dos bons legisladores de outrora - e força a coman­dar e a ser comandado levando em consideração a adequação às leis. Quem se conduz à distância das leis, ela, a cidade, pune, e o nome para esta punição, entre vocês e, muito freqüentemente, no exterior, na medida em que a justiça retifica, é "correção"29. Então, uma vez que dedicamos tanta atenção à virtude, e tanto no domínio privado quan­to no público, você se espanta, caro Sócrates, a ponto de perguntar-se atônito se a virtude pode ser ensinada! Mas não há qualquer neces­sidade de espantar-se: pasme-se, ao contrário, [5] se ela jamais puder ser ensinada!

Por que, então, os filhos de pais valorosos se tornam, com fre­qüência, gente de pouco valor30? Compreenda isso de uma vez. Com efeito, não há do que abismar-se, se disse a verdade quando afirmei,

28 Não mantenho, diferentemente de Burnet, a adição de um segundo ma­

lista, proposta por Sauppe.

29 Euthynai, "correção", se diz, particularmente em Atenas, da prestação de contas a que os magistrados, ao fim de suas magistraturas, eram obrigados. O termo, utilizado a propósito do "galho torto", (325 d7) como a criança que deve ser punida, tem o mesmo destino em nossos dias: da prestação de contas fis­cal à casa de correção [em francês, "du redressement fiscal à la maison de redres­sement"' (N. da T.)].

30 A dificuldade de apreender o par agathos/phaulos deve-se ao seu duplo pertencimento, essencial para a argumentação de Protágoras, ao domínio da com­petência técnica ("bom/ruim", no que diz respeito, por exemplo, ao flautista, em

Platão, Protágoras 343

Page 173: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Ir

há pouco, que, no que tange [327] à excelência, ninguém pode ser profano3l se a cidade existe. Pois, se o que digo assim ocorre (e ocor­re certamente assim), considere, por exemplo, qualquer outra ocupa­ção ou ciência: suponha que seja impossível haver cidade [5] se não somos, cada um na medida dos seus próprios meios, todos flautistas; que em particular ou em público, cada um ensine flauta ao outro e avance sobre aquele que não se desenvolve bem no instrumento, que não se guarde para si, com egoísmo, um tal saber, da mesma forma que, em nossos dias, ninguém guarda [327 b] nem ninguém oculta o que é justo e o que está em conformidade com as leis, diversamente do que ocorre com os segredos da arte (pois cada um tira proveito, creio eu, do senso da justiça e da excelência do outro; eis porque dize­mos e ensinamos, de bom grado, um ao outro, o que é justo e confor­me às leis). Se então depositamos no ensinamento da arte da flauta a mesma verve e r5] a mesma falta de inveja, você acreditaria, por um só instante, caro Sócrates - dizia Protágoras -, que são os filhos dos bons flautistas, em preferência aos dos maus, que se tornarão bons flautistas? Não creio, mas o filho do primeiro pai, se se revela o mais naturalmente dotad032 para a flauta, é quem [327 c] vai crescer em

327 b6-7) e da excelência ético-política ("virtuoso/mau"), que funciona também socialmente ("homem de valor/homem sem valor"). Ver nota em 328 b3.

~l Idioteuein. É aqui, nesse ponto, que se pode medir o alcance de sentido de idios, com o qual Protágoras joga desde a descrição do miro: a uma só vez, no registro da tekhne, "ignorante", "profano", "inexperto", em oposição ao homem periro que é o sophos (ver nota em 321 d 1) - e a lei de repartição, estabelecida em nome de Zeus, estipula que as coisas não se dão do mesmo modo em excelên­cia política e em medicina, por exemplo, onde existem muitos "idiotas" para um só médico (322 (7) -; e no registro da política, com a oposição "privado"/"pú­blico" (idiai/demosiai, 325 c1, 325 b5, 326 e3-4, 327 a6), onde o homem em sua casa, na medida em que não participa da vida da cidade, é "idiota". Aqui, onde se trata tanto virtude quanto da arte de tocar flauta (327 c4), os dois sentidos termi­

nam por coincidir.

32 EixpuÉCitcx'tot:; TeVÓJ..l€VOÇ': a tradução torna-se glosa para conservar reu­nido o devir (pressupondo uma evolução que pode ser a da aprendizagem) e os dons naturais - tornar-se o que se é. Esta compatibilidade carrega a solução da aporia: em uma cultura difusa e universal é a natureza que faz a diferença (e me­nos do que um suplemento de cultura), ver nota em 324 d7. Notemos que toda a interpretação dos versos de Simônides, formulada por Sócrates, que trata desta pon­deração natureza/cultura, ser/devi r (a partir de 340 b), está, desde então, no direi­to de parecer ironicamente contorcida.

344 Documentos

"

celebridade, enquanto que o filho de um outro, se não possui dom natural, não gozará de qualquer glória. E, com freqüência, o filho de um bom flautista se tornará mau flautista, e, com freqüência o filho de um mau flautista, bom. Mas, em todo caso, eles seriam todos flau­tistas competentes, em comparação aos profanos e às pessoas que nada entendem de flauta.

[5] De igual modo, você acredita, agora, que o homem que lhe parece o mais injusto, dentre todos os que foram criados nas leis e entre os homens, é, no entanto, justo e hábil se o comparamos [327 d] a homens que não têm nem educação, nem tribunais, nem leis, nem outra qualquer coação que os force a se ocuparem, constantemente, da ex­celência - seriam selvagens como aqueles que o poeta Ferécrates re­presentou, no ano passad033, nas Leneanas. Certamente, [5] se você se encontrasse entre tais homens, como os misantropos em meio ao coro, certamente se felicitaria ao deparar-se com um Euríbato ou com um Frinondas34, e se lamentaria, com saudade, [327 e] da maldade dos homens daqui! Agora, você age com desdém, caro Sócrates, por­que todos, cada qual na medida dos seus próprios meios, são profes­sores de excelência, embora ninguém, a seus olhos, se encontre em con­dições de ensiná-la. Ou ainda, é como se você procurasse por alguém capaz de ensinar [328] a falar o grego, pois também não lhe pareceria que só existe um mestre35, tal como, penso eu, se você procurasse quem ensinou aos filhos dos artistas a arte que aprenderam, justamente, de seus pais, na medida em que o pai e os amigos do pai [5J que prati­cam a mesma arte são capazes de lhes ensinar, pois se você procuras­se quem, além deles, poderia tê-la ensinado a eles, não seria fácil, creio eu, caro Sócrates, fazer aparecer o professor desses discípulos, mas seria fácil, ao contrário, se eles não tivessem qualquer experiência: as coi­sas se passam desse modo no aprendizado da virtude, tal como nas outras artes.

.l~ 421-420, que serve como elemento de datação para () diálogo, ainda que, como acontece freqüentemente, pouco compatível com outros elementos que tam­bém nos permitem datar o diálogo (ver, por exemplo, Croiset, nota 1, p. 22s.).

,4 Que são para a vilania o que é Harpagon para a avareza I Harpagon: per­sonagem central da comédia O Avarento de Molicre (N. da T.)I.

35 000' â:v eíç <pcxveLTj: o acento, mal estabelecido nas traduções habituais, recai sobre o "um"; que não se possa designar um único mestre implica não na sua inexistência, mas na existência de muitos.

Platão, Protágoras .145

Page 174: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Por tão pouco que qualquer um se diferencie de nós [328 b], no que tange ao nosso progresso em direção à virtude, devemos nos re­gozijar. Quanto a mim, creio que sou um destes; posso, com uma di­ferença sobre os outros homens, ser útil a36 alguém para que se torne bom sobre todos os aspectos37, e isso de maneira a merecer os hono­rários que me cabem, mais ainda, ao ponto de merecer o reconheci­mento do [5] próprio discípulo. Eis porque estabeleci, como se segue, a prática dos meus honorários: quando alguém recebe o meu ensi­namento, se assim o quiser, paga-me o preço cobrado; [328 c] senão, ele vai ao templo e deposita justo o que declara, sobre o voto do jura­mento, ser o valor de minhas lições.

Eis como anuncio a você, diz ele, caro Sócrates, com um mito tanto quanto com um discurso, que a virtude pode ser ensinada e que é bem isso o que os atenienses estimam; que, além disso, nada há de espantoso no fato de que filhos ruins provenham de bons pais, nem que bons provenham de ruins, porque assim ocorre tanto com os fi­lhos de Policleto, que têm a idade de Parolos e de Xantipo aqui pre­sentes e que nada são face ao pai, quanto com outros filhos de outros artistas. Mas não é válido assim os condenar: sobre eles ainda há es­peranças, pois são jovens."

36 Honesai (de honinemi, "ser útil, proveitoso, avantajoso") é uma corre­ção de Dobree, sempre editada, para o noesai dos manuscritos, que, não obstan­te, pode fazer sentido ("creio pensar diferentemente dos outros homens"), embo­ra não permita a construção com o acusativo tina que o segue.

37 É a tradução que proponho lbien sous tout rapport] para o célebre sin­tagma kalon kagathos, "belo e bom", que designa o homem completo.

346 Documentos

CONTRA PLATÃO, PARA DEFENDER A RETÓRICA (394-428)

Élio Aristides

Os Discursos platônicos compreendem, tradicionalmente, além do Contra Platão, para defender a retórica (11 Behr = 45 Dindorf, es­crito por volta de 145-147), a Carta a Capiton (IV Behr = 47 Dindorf, escrito por volta de 147), que constitui uma curta resposta a certas objeções de falta de respeito a Platão, feitas neste primeiro discurso; Contra Platão, para defender os Quatro (III Behr = 46 Dindorf, escri­to entre 161 e 165), que responde à acusação sustentada por Sócrates contra Miltíades, Temístocles, Péricles e Címon (Grg., 503 c, 515 d), comparando para eles a vida e a morte de Sócrates e do próprio Platão. Pode-se reunir a esse corpus os Discursos XXVIII (Sobre uma obser­vação de passagem, escrito também por volta de 145-147), XIX (So­bre a interdição da comédia, entre 157 e 165), XXXIII (Àqueles que o criticam por não declamar, por volta de 166) e XXXIV (Contra aqueles que profanam os mistérios [da retórica), em 170), todos con­tendo importantes observações sobre a prática de Aristides e sobre a retórica em geral.

Procuro seguir, salvo indicação contrária, o texto grego estabe­lecido por Carolus Allison Behr, em P. /Elius Aristides. Opera quae exstant omnia, vaI. I, fasc. 2, pp. 269-89 (Leiden, Brill, 1978). É a esta edição Lenz-Behr (1976·1980) que são conduzidas, aqui, todas as re­missões. O texto de 1978 é sensivelmente idêntico ao de 1973 (ao aparato crítico é próximo), que serviu à primeira tradução inglesa proposta por Behr (Aristides in four volumes, I, pp. 518·57, Loeb Classical Library, das quais apenas o primeiro volume foi publicado; tradução citada B1). Encontramos uma tradução modificada, a partir de um texto pouco alterado mas com notas mais abundantes, em A.A. The Complete Works (Leiden, Bril!, 1986), I, pp. 141-50 (tradução citada B2).

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 347

Page 175: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Para o estudo da tradição manuscrita, remeto o leitor à introdu­ção de Behr, no início do primeiro fascículo do primeiro volume des­ta mesma edição Lenz-Behr (Brill, 1976, pp. IX-CXVI).

::. ::. *

(394) Se é preciso, por nossa vez, contar um mito, eu bem re­ceio que um cômico, troçando-se de nós, nos peça para restituir o bem mais precioso das mulheres da vida. Mas o mito que vou contar não tem fim tão simplesmente em si mesmo: nele também se encontra uma certeza que virá das próprias coisas. Assim, vou verdadeiramente apre­sentar a resposta de Anfion, mas lembremo-nos, ao mesmo tempo, que é Zetos quem fala 1: a menos que, à moda de Eurípides, apenas

1 Mesmo se ° mito, que nos será rccontado, for uma retomada do mito de Protágoras (Platão, Prt., a partir de 320 c), o conjunto do discurso Para defender a retórica é um palimpsesto de vários diálogos simultâneos, lançados uns contra os outros, e, em particular, do Górgias, a que pretende se contrapor. O Górgias se faz presente não apenas no desdobramento dos grandes grupos argumentativos, mas também em uma infinidade de pequenas referências. Assim, a alusão ao con­to das "mulheres da vida", que constituiria o mito, retoma, entre outras, uma expressão de Sócrates ao defender seu relato do juízo final (527 a).

De igual modo, a alusão a Anfion e a Zeto nos reenvia, além da peça de Eurípides da qual praticamente nada chegou aos nossos dias, aos argumentos onde encontramos, a princípio, Cálicles (citação em 484 e-486 a), logo após, Sócrates (506 b). Mas, desta vez, o mecanismo de alusão é mais difícil de decifrar, ao pon­to mesmo de determinar uma correção no texto dos manuscritos.

Trata-se dos gêmeos que Antíope teve com Zeus (e não dos irmãos de An­'tíope, como afirma M. Canto, ad loc, nota 101) e da grande cena agonística onde eles tiveram de confrontar os seus modos respectivos de vida: Zeto se dedica à luta, à agricultura e à criação, enquanto que Anfion apenas cultiva a lira. Cálicles se fez Zeto para contestar, com toda benevolência, Sócrates-Anfion, aconselhando­o a se tornar, enfim, adulto, a parar de filosofar com e como os adolescentes, a tomar parte na vida pública e a discursar de um modo "livre, grande, eficaz"; para que assim se torne capaz, por exemplo, de não se deixar incriminar pür um acusa­dor vil e perverso, capaz de lhe imputar uma condenação à morte. Sócrates, quan­do Cálicles interrompeu a conversa, lamenta não ter podido manter com ele um diálogo "longo o suficiente para tornar clara a investida de Anfion contra a de Zeto". Sabemos, no entanto, que ele continua à sua maneira - que não é de modo algum "retórica", mas filosófica -, demonstrando que não tem dúvidas, ele, SÓ­crares, na medida em que está sempre visando, com seus discursos, o melhor, e não o mais agradável aos ouvidos: "o único ateniense a assumir a verdadeira arte po­lítica, a praticar a política" (521 d-e).

Aristides propõe-se, com o mito, a "apresentar, seriamente, a réplica de

348 Documentos

um componha os dois discursos, é, decerto, necessário reparti-los en­tre eles.

(395) Os homens e ou outros animais tinham há pouco surgido, e a terra estava repleta de confusão e tumulto. Eles não sabiam o que fazer de si próprios, porque nada havia que os conduzisse à união, e

Anfion", ou seja, a de sustentar o papel que Sócrates lamenta não ter podido en­dossar por falta de interlocutor. O texto, corrigido por Reiske e adotado por Behr, segue assim: XCIi: <npàÇ'> -rôv ZTr'tov àVCI).lvrpttW).l€'V ELlTElV, "and we may remem­ber to answer Zethus": é preciso, enquanto Anfion, "responder a Zeto", portan­to fazer a apologia da música, ou da vita contemplativa do filósofo, face à mão calejada da vita actíva. Eis o que se tenta propor através do mito.

Fica claro, no entanto, assim que lemos o mito, que tal não é o caso; e por conta de uma discussão. A princípio, Élio Aristides redige o "Contra Platão, para defender a retórica" na intenção de defender a retórica, se preciso com indignação, contra a acusação de adulação que Sócrates não pára de elaborar no GÓrgias. Para dizer de outro modo, Aristides protege, como Cálicles, a retórica que Sócrates ataca, essa retórica que produz laços entre os homens no espaço público, e que, assim fazendo, constitui a polis e a política. De um lado, portanto, Aristides não é outro senão um Cálicles-Zero melhorado. No mesmo instante, ele se torna capaz de ser, no lugar de Sócrates, um Anfion também melhorado: é ele que vai defender o de­senvolvimento tranqüilo de todas as músicas sob o abrigo do incomparável escudo do logos; poderíamos mesmo dizer que a retórica é a própria música. E assim como a retórica se constitui como arte pública e privada, arte de combate e de paz (401 e 402), Aristides propõe ser, a uma só vez, Cálicles e Sócrates, Zeto e Anfion.

É bem isto o que encontramos no texto, se não o corrigimos: "E (}Cal) vou apresentar, verdadeiramente, a resposta de Anfion, e (}Cal) lembremo-nos de que é Zeto quem fala" (-ràv ZTt&ov é o sujeito de e'vrr€Lv). Sócrates, face à recusa de Cálicles de prosseguir com a conversa, citava Epicarmo e dizia "encontrar-se dian­te da obrigação de sustentar, sozinho, os discursos de dois homens" (505 e). Este é agora o papel de Aristides, mas com mais transparência, porque capaz de ser, tal como Sócrates, os dois protagonistas de uma só vez, ele continua, mesmo as­sim, indicando quando se trata dele e quando se trata do outro, ou qual desvio a palavra do outro sofrerá ao passar por sua boca.

Em uma passagem análoga do Contra Platão, para defender os Quatro (I1I, 515), Aristides atribui a Cálicles o direito de apresentar a investida de Anfion. Desta vez o sentido de jogo de papéis fica explícito: pois provém de, e revela a inconstân­cia da própria posição platônica da qual, seguindo a orientação do Górgias, os quatro grandes oradores políticos - Temístocles, Címon, Miltíades e Péricles­tanto são (503) quanto não são (517 a) lisonjeadores. É porque Platão troca de opinião que os personagens, colocados em cena, podem, tão facilmente, cruzar suas respectivas funções.

Nesta perspecitva, a alusão a Eurípides parece representar o interesse de se instituir um nível suplementar; Aristides não é apenas um dos dois gêmeos, como

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 349

Page 176: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

os grandes conduziam os pequenos. Também não sabiam como afron­tar outros animais, porque eram inferiores a todos e em tudo, tanto numa relação quanto noutra: menos rápido que todos os pássaros (o que as gruas, como afirmou Homero, infligiam aos Pigmeus2, ocorria com a totalidade dos homens de então, presa de todos os intrépidos pássaros), menos fortes - muito menos - do que os leões, os javalis e muitos outros. Assim, eles morriam em silêncio. (396) De fato, por causa da estrutura de seus corpos, ficavam abaixo, em inferioridade, dos rebanhos, e mesmo atrás dos caramujos, porque nenhum deles tinha a capacidade de ser auto-suficiente.

A raça caminhava assim para o seu fim e pouco a pouco desapa­recia, quando Prometeu resolve dela se ocupar, e, sempre um pouco filantropo, parte em embaixada ao socorro dos homens sem que os homens o enviem, pois ainda não sabiam enviar um embaixador por sua própria conta. Zeus, excessivamente impressionado pela correção do que dizia Prometeu, e não sem ter ele mesmo refletido sobre a maté­ria, ordena a um de seus filhos, Hermes, de se dirigir aos homens, le-

Cálicles no diálogo; também não é apenas como o Sócrates de Platão, bom ora­dor ou bom dialético, capaz de ser os dois em benefício de sua própria causa. Ele é também, tal como Eurípides, o autor, o criador que unifica, no real, as duas fic­ções antagônicas; tal como Eurípides, ou tal como Platão. Porque um dos trunfos mais característicos da retórica de Aristides consiste em nos permitir tomar Platão também como um autor. Ele posiciona e reposiciona a pretensão à verdade do discurso platônico, observando, simplesmente, que Platão, que se faz passar por Sócrates, escreve "ficções" com seus diálogos: "Quem não sabe que Sócrates, Cá­licles, Górgias, Pólos, que tudo isto é Platão, passando de um discurso a outro a seu bel prazer?" (I1I, 632). Aristide, consciente de sua própria autoridade, jamais obnubila o autor do enunciado sob o sujeito da enunciação, a escrita sob a verda­de em andamento.

2 Trata-se de uma alusão aos primeiros versos do canto III da Ilíada, des­crevendo os clamores das tropas troianas face ao silêncio das fileiras aqueanas: "[ ... ] Eis os troianos que avançam, aos gritos, com chamados semelhantes a::lS dos pás­saros. Acreditaríamos ouvir o grito que se ergue no céu, quando as gruas, fugindo do inverno e da chuva incessante, alçam vôo, aos gritos estridentes, por cima do curso do oceano. Vão levar aos Pigmeus o extermínio e a desgraça, e lhes ofere­cer, na aurora, um combate funesto" (ver trad. Mazon, Paris, Les Belles Lettres, 1961, p. 69). O combate das gruas e dos Pigmeus foi evocado por Aristóteles, Histórias dos animais, VIII, 12, 597 a6 s (para outros paralelos, ver a nota desta passagem, 4, p. 179, da tradução de P. Louis, Les BeBes Lettres, 1969, p. 179). Face ao tumulto animal ou bárbaro, os homens de então, como os Pigmeus e os Aqueus, "morrem em silêncio".

350 Documentos

"

vando-lhes a retórica. (397) Era para todos sem exceção e outorgan­do a cada um que Prometeu, anteriormente, havia moldado os órgãos dos sentidos e os membros do corpo: desta vez, ele ordenou a Hermes de não efetuar uma distribuição como a dos lugares no teatro, tal que todos pudessem ter lado a lad03 sua parte de retórica, como ocorre com os olhos, as mãos e os pés, mas de escolher os melhores, os mais nobres, os de natureza mais robusta, e lhes conceder, em mãos, o dom, para que assim tivessem como salvar a si próprios e aos outros.

(398) É provindo dos deuses que a retórica adveio aos homens: desde então, os homens puderam escapar4 à rudeza de suas vidas com

3 Hermes deve distribuir a retórica de um modo desigual, repartindo-as en­tre os melhores e não entre todos. Aristides, evitando toda alusão à repartição igua­litária de aidos e dike, que ocorre no primeiro mito, escolheu dois contra-exem­plos bem diferentes. O primeiro é o da fabricação do homem pelo Prometeu de­miurgo, quando cada criatura é provida, igualmente, dos órgãos de sentido e das partes do corpo; trata-se de um exemplo de igualdade na distribuição, de justa repartição. O segundo é um exemplo de justiça corretiva, de distribuição que res­tabelece a igualdade: o theorikon, ou fundo de espetáculos, de fato permite ao Estado fornecer ao cidadão pobre os dois óbolos necessários à compra de um lu­gar no teatro.

O sentido de ecpe'{Tiç, encontrado nos dois contra-exemplos (OUx OOTWÇ" [ ... ] Wcmep [ ... ]tva [ ... ] '€tpe'{Tíc; J..L€1:É',XOL€\I, Wcmep [ ... ]), não é fácil de determinar. 'Ecpe'{lf; indica a ordem de uma sucessão imediata, num certo lugar, e, às vezes, no tempo. Behr traduz por "ali in tum", que corre o risco de ser ambíguo: não se poderia admitir que os cidadãos pobres só fossem ao teatro "cada um de uma vez", nem certamente que se tivesse, "cada um de uma vez", "olhos, mãos e pés". Parece­me, então, que é preciso preferir o sentido espacial de "em ordem", "em fila", "lado a lado" (o advérbio é empregado em geometria, por exemplo, para designar os ângulos adjacentes) - portanto, "todos juntos", em preferência a "cada um por sua vez" -, determinando que todos poderiam ter tido, sem ruptura de continui­dade, sua parte no bolo retórico, mas que tal não foi a opção de Prometeu. O que confirma uma comparação paralela em I1I, 360, em que Aristides se certifica de que não saberíamos denegrir os Quatro "por não terem ensinado, a todos os ate­nienses, a política, e por não terem tornado, a todos sem exceção, lado a lado (ecpe'{Tiç), melhores, tribo por tribo e homem por homem, distribuindo a ciência tal como se faz com os fundos do theorikon", já que se sabe que nenhum mestre é inteiramente mestre de seu discípulo.

4 Traduzo, como o faz Behr, apesar do texto que edita, TjbuVJÍ'1'h'p"av J..LEv (El p.C., R2, Ph M3, e, no aumento próximo, El a.c., D) [ ... ] rnaooavro b€, de pre­ferência à métrica de €x {}ewv J..LÉ'v (O, RI). O triunfo contra as feras e a paz en­tre os homens marcam as duas conseqüências complementares do surgimento da retórica.

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 351

.1

Page 177: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

as feras, e deixando de ser todos, por toda parte, inimigos uns dos outros, eles descobriram o princípio da comunidade. Descendo das montanhas, eles se agruparam e se repartiram no mundo habitável, a princípio em campos abertos, após, desde que o discurso se tornou vitorioso, construíram uma cidade, e as distinções pararam de depen­der do acaso para corresponder à organização das comunidades; eles criaram leis como guias de suas cidades, instituíram os magistrados e uma constituição;5 eles enviaram aos deuses oferendas, confeccionan­do, como primeiras oblações, aquelas compostas de discursos, nas quais o discurso nos persuadé de que ainda hoje é o que mais agrada aos deuses: pois é por essa via que ,a princípio, cabe aos homens aprender

S Pode-se hesitar no que tange à construção de xaL apxov"t'aç: ou atributo de '\IÓj.lOUC;, como Trr€vój.laç ("they established laws as the governors and rulers", Sehr), ou complemento de hÓj.lL(1(lV, como noÀL"t'€(av. A ordem das palavras pa­rece favorecer esta segunda análise. Permanece, no entanto, a dificuldade de se manifestar em português a relação entre VÓj.lOUC;, "as leis", e €vój.ltcJa'\l, "eles ins­tituíram", "eles julgaram bom de", em comum etimologia com V€j.lW, "efetuar uma atribuição regular de". A tradução de Behr, "they developed a belief in political science", não é de se desprezar.

6 A expressão pronta o ÀÓroç citp€L é freqüentemente traduzida, como aqui por Behr, por "a razão prova que".

De modo geral, uma das grandes divergências entre a tradução de Behr, sem dúvida em muitos pontos excelente, e a minha, reside, precisamente, na tradução de logos. Todos sabemos que a amplitude grega do termo é intraduzível. Mas, parece-me "lógico" que não se deve retirar de Aristides os meios de sua defesa da retórica, e assim preferir, com o máximo de constância possível, o termo "discur­so" ao invés de "razão". Desta foram, é a vitória do "discurso" e da discursividade, e não a de uma "razão" pura, que, no mito, permite aos homens se organizar em cidades (398; notar-se-á a tradução de Sehr: "when reason prevailed", e o remor­so lacônico de sua nota 277, em S2: "Or 'speech'''). Há casos em que a opção por razão provoca, mais do que um simples contra-senso, um não-senso (403-409, e o adereço: OL ÀÓYOL, "reason", 408; para um jogo análogo singular/plural, cf 204).

Mas aqui a expressão é tão corrente, tão pouco marcada, que logo seríamos tentados a traduzir por "é em si evidente", ou "tudo nos prova". Apenas se trata, no âmago mito, da retórica, d0m dos deuses que nos fornece o conhecimento di­vino, e que nos permite oferecer-lhes, como premissa de todos os sacrifícios, "as palavras" de nossas orações ('ràç O:TIO TWV ÀÓrwv). Trata-se aqui, com maior am­plitude, do mito que nos "conta" (x:aL j.llt\1-0V À€Y€LV, 394) Aristides, no contexto do "discurso" que elabora para defender a retórica. Eis porque preferi pecar por insistência: "o discurso nos persuade".

Um problema análogo apresenta-se, ao tradutor meticuloso, em 411, quan­do a locução T~ ÀÓT~, que traduzi por "para dizer", significa "por hipótese".

352 Documentos

"

a conhecer os deuses. (399) É assim que o homem foi solidamente provido de grandeza, de fraco e enfermo que era no começo, e, a prin­cípio desprezado como uma criatura de nada, situa-se desde então como mestre do que há sobre a terra para fazer o que bem quiser, tomando o discurso por escudo para toda a sua proteção.

(400) Para nós o mito termina aqui, dotado de uma cabeça? que não encerra, creio, nenhuma desonra. Mas não é de outro modo um mito, nem um sonho: é uma visão do reaiS, e, as coisas assim o reve-

7 Mesmo um mito, não é preciso deixá-lo "vagabundear sem cabeça", ou seja, sem motivo, dizia Sócrates a Cálicles para dissuadi-lo de interromper, nesse ponto, a conversação (Grg., 505 d. Ver também Lg., VI, 752 a; Ti., 69 b; Hb., 66 d. A metáfora orgânica das partes do discurso é explicitada no Fdr., 264 c). Mas aqui o mito, em si próprio, já possui uma "cabeça", um fim, uma moral: discur­so-escudo. De fato, a interpretação está presente, no cerne do discurso, na forma da reconstrução do mito, graças à distância, ao duplo jogo, que cria o palimpsesto entre o mito originário e a sua reconstrução.

Toda a seqüência, a partir de 401, constitui a explicação da atualidade per­pétua da potência retórica.

~ A belíssima oposição OVapfuTIap, "sonho"/ "visão do real" já foi atestada na Odisséia, XIX, 547 e XX, 90, a propósito de dois sonhos de Penélope: a car­nagem dos gansos-pretendentes pela águia Ulisses, quando a própria águia do sonho revela o sentido, e a quase-alucinação da presença de Ulisses, ao lado dela no leito. Chantraine, por exemplo (Dict. et .. ; s.v. uTIap), nada descobre, nesta passagem, além de uma oposição entre sonhos - "sonho enganoso" e "sonho verídico". Mas, quando Penélope, em lágrimas, exclama na tradução Sérard­"Quanta alegria em meu coração! Pois creio tê-lo em carne, não em sonho" (oux: €<páj.l€\l ovap 'Éj.lj.l€Val, àÀÀ' uTIap +)OT]) -, devemos, certamente, admitir que se trata de uma oposição mais definitiva entre sonho, por vezes verídico ou proféti­co, e realidade.

É assim que podemos compreender, em particular, o uso que dela faz Platão no Político, e da qual Élius Aristides parece fazer aqui eco. O longo mito dos ci­clos, composto e em partes, termina com a descrição dos homens em plena aporia, socorridos por Prometeu (277 b-d). Mas, mesmo após ter elaborado divisões na arte do zelo e de ter distinguido rei de tirano, o retrato do rei não estava termina­do; o "peso (no) maravilhoso", em questão no mito, é muito denso para que se consiga determinar, totalmente, o seu fim, e para que se consiga transcrevê-lo de um modo diverso ao de um Iogas inexperto (277 b-c). Também o estrangeiro pro­põe servir-se de um paradigma para completar a imagem: "Falta do que cada um de nós pensa saber absolutamente tudo, como num sonho, e tudo ignorar, no en­tanto, do que ocorre uma vez desperto" (6Lov opa'\l €LbWÇ anav"t'a návT at mÍÀLv liXrn€p ÜTIap à:'(VO€L'\I, 277 d). É assim que, após ter explicado o que é um paradigma, o Estrangeiro tenta, com o modelo do tear, saber, desta vez como experto, em que

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 353

Page 178: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Iam, é o discurso das próprias coisas. (401) Certamente, a potência da retórica não fez surgir, na origem, apenas estas determinações e ins­tituições, mas, ainda hoje, a retórica assegura a coesão e a organiza­ção das cidades há muito habitadas, através de uma pesquisa inces­sante do que se adapta a seus atuais ornamentos9. De fato, como já o disse, a legislação está fora de questão desde que as leis estão feitas, e a justiça não está mais implicada após o voto. Mas ela, tal como uma sentinela que jamais dorme, não relaxa a guarda: a princípio estava associada a essas duas artes e servia de guia e de mestre, doravante ela acompanha sozinha todos os assuntos, propõe, atua como embaixa­dor, e não pára de tornar o presente coerente. E mesmo quando todas as injustiças e todas as faltas se afastassem dos homens, ela não teria perdido, portanto, sua utilidade, nesse caso mesmo em que não have­ria mais necessidade de leis nem de tribunais. (402) Pelo contrário, enquanto temos assuntos a tratar10 entre nós e com o outro, há ainda trabalho para a retórica.

consiste o zelo com as coisas da cidade, para, diz ele, "que nos advenha a vigília (ou o real), em vez do sonho" (278 e, C(va unap c(V'[õ O\l€ípa-coç ÍlJ..1.lv ,í"(V€"C"al).

Aristides pode ser econômico com o paradigma. Isso porque, como ele aca­ba de acentuar, o mito já encontrou o seu fim: o lagos, que explicitava o mito no Protágoras (324 d), já está presente, como reconstrução do mito, incorporado a seus mitemas. Eis porque o mito "não é uma outra forma de mito", mas já cons­titui, de preferência, o lagos das coisas mesmas das quais ele trata, ou seja, a par­tir dos dois sentidos do genitivo: o objetivo, porque o mito nos fornece a "defini­ção" da cidade e do político; e o subjetivo, porque, através do mito, é o próprio real que se exprime; o mito dá a palavra ao político. Eis porque se trata não de um sonho, mas, como através de um paradigma e do lagos demonstrativo, de uma "vigília", de uma "visão do real", da "presença do próprio real", em toda a graça eficaz da retórica realizada.

9 "Assegurar a organização": xooJ.1él'; "a seus atuais ornamentos": -coue; napó\I-caç' [ ... ] XÓO"}.lOUÇ'. Sabemos, suficientemente, que kosmos é intraduzível.

10 "Ter assuntos a tratar" traduz xpÍÍO",'tm, que ressoa, em sentido inverso, na direção de uma situação anterior à retórica: oün ràp au-co( cnplO"L\I etxov o Tt xplÍO"w\I-cm (395) "os homens não sabiam o que fazer de si próprios", "não sabi­am mais ao que podiam servir".

As duas modalidades de uso do homem pelo homem, que tornam a retórica útil, são interpretadas por Behr, sem dúvida justamente, como remetendo ao pri­vado ("privately", uma reciprocidade entre si: xa-frõau-coÚÇ' àÀÀTÍÀ.OLc;) e ao públi­co ("publicly", uma relação com o outro: -COle; ãÀÀOlC;).

Para passar dos homens em dificuldades, indivíduos errantes submetidos à lei da selva, ao comércio privado e público, foi preciso "recolocar em mãos lim-

354 Documentos

(403) Com a vantagem que a discursividade oferece, não estamos apenas em primeiro lugar adiante dos outros animais, mas, nem entre os outros animais nem entre os animais de uma mesma raça, existe diferença tão marcante no que tange a qualquer característica própria do que a que ocorre entre os homens no que tange ao discurso!!. (404) De fato, não há entre os homens nenhuma outra potência 12 que co-

pas" (e-rX€Lp(craL, 397) o dom retórico, para que o homem, tornando-se assim "mestre e possuidor da natureza'" pudesse "dela se servir", "dela fazer o que bem quiser" (Cyrt !3oúÀ€-cat xp~at, 399). O campo da retórica encontra-se, desta for­ma, definido de modo tão vasto que, à diferença da legislação e da justiça, não poderia tornar-se jamais "inútil" (CíXPT)O"tO\l, 401; Aristides já havia tratado do tema em 226, passagem para a qual ele acaba de nos remeter). Eis porque, contra­riamente a Platão, é preciso pensar mais em termos. de inclusão do que em termos de analogia: a legislação e a justiça nascem da retórica, e não o inverso; elas cons­tituem, de fato, partes da retórica (205-226).

Todos esses termos, que talvez possuam a mesma raiz (X€LP, "a mão"), de­senham uma configuração mais ampla da sofística: a importância do "uso", em todos os sentidos do termo, sobre a qual Platão não pára de atrair pejorativamen­te a atenção. Não se esquecerá, em particular, que xpTÍJ.!aTa designa aquilo de que o homem se diz medida na frase de Protágoras.

Enfim, é preciso observar como o emprego do uso, feito por Aristides, con­segue abalar as equações estabelecidas por Sócrates no GÓrgias. Em 465 c, Sócrates formulou a equação completa: sofística/legislação = estética/ginástica (=) retórica/ justiça = culinária/medicina. Ele ainda acrescenta que sofistas e oradores, na me­dida em que tratam da mesma questão, são, com freqüência, confundidos, e que "eles não sabem o que fazer de si próprios, tanto quanto os outros homens não sabem o que fazer deles mesmos" (oux ExOOOl \I o TL XPTpovraL Oü-C€ amoL €cxU-COLÇ' oUr€ oL CíÀÀOL ãv-frpu>not -COÚ-COLÇ'): para Sócrates, sofista e oradores são bons para nada, tal como o são atualmente, para Élio Aristides, os homens de antes da retó­rica. Com efeito, o mito de Protágoras seve para provar que o único uso possível de si e dos outros é político.

11 "Discursividade"é um termo que procura prestar conta do sintagma: Tfí -C0l) Àórou q>OO€L, "a natureza do discurso".

Esta frase é difícil de construir por causa de suas rupturas e repetições. Behr propõe suprimir o segundooOO€ -cwv CíÀÀW\I 'ÇWwv ("nem ente os outros animais"), e decidiu-se, logo a seguir, por oooe (ruv O}l~úÀW\I), ao invés de ouM, utilizado nos melhores manuscritos (T, Q, V, A): "no animais of like class differ as much in particular characteristics [ ... ]". Parece-me possível manter o texto normalmente transmitido, e fazer do ÓLa<pÉp€l um impessoal, retomado, em elipse, sobre um mo­do pessoal no segundo membro da comparação. O sentido difere pouco.

12 Decidi traduzir MVaJ..Llç' por "potência", ao invés de "faculdade" - de­cisão ligada à tradução de Àóroc; por "discurso", ao invés de "razão" -, com ain-

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 355

Page 179: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nheça tais distanciamentos ou uma tal complexidade. Aquele que ga­nha em riquezas ganha sem dúvida de uma pessoa ou de duas, mas se três ou quatro se agrupam reunindo suas riquezas, ele não será mais rico do que elas; mesmo se for mais rico do que quatro, não será mais no caso de duas vezes quatro. E se multiplicamos ainda o número, não será mais rico do que todos aqueles reunidos em uma cidade; se mais rico do que todos os seus concidadãos, não será mais do que todos aqueles de sua vizinhança; e se mais do que esses, decerto não mais do que todos da cidade e da vizinhança reunidos: em todo caso creio que não será mais rico do que toda a Grécia tomada em con­junto, e não haverá absolutamente meios para que seja mais rico do que todo o continente. (405) Pelo contrário, aquele que vence com o discurso passa de igual modo adiante de cada um separadamente e de todos reunidos; a superioridade de que dispõe permanece constan­temente igual, e ele não a perde. Pois não é possível fazer uma coleta como se se tratasse de dinheiro, nem de liquidar um déficit com um empréstimo.

(406) Aquele que é superior em força, supondo que seja supe­rior a todo indivíduo isolado, Arquíloco13 e o provérbio se acordam afirmando que será contido por dois. Mesmo se superasse todos os dois, é fácil encontrar quantos seriam, sem contestação, mais fortes do que ele. "Há um valor coletivo dos homens", dizia Homero l 4, designan­do com isso aquele que provém da força. (407) Porém rodos os ho-

da mais segurança, pois o discurso é aqui comparado à riqueza, à força, à beleza. Trata-se outrossim do termo utilizado no Protágoras para designar o objeto da repartição, conduzida por Epimeteu e Prometeu, que teve lugar entre as raças, indo da velocidade à fecundidade - passando pela qualidade dos pêlos (320 d-321 c). Desde o Elogio de Helena de Górgias, trata-se, com o discurso, de uma "grande potência" (óuvá<1TT)l; ,l.Lqcxr;;, 82 B 11(8) D.K.). As características paradoxais dessa potência são aqui as seguintes: que aquele que a possui vale por todos os outros reunidos (404-408), que o tempo e o uso que dela se faz, longe de desgastá-la, a faz crescer (408-411). Tais características só fazem perpetuar e aumentar a desi­gualdade patente no início da repartição: à diferença do "bom senso" cartesiano, quiçá mesmo da razão, o logos "diverge" (TtCXPCXJJ...áTtOl)(1LV), de um homem a ou­tro, como dois segmentos que partem em direções opostas, ainda mais quando se sabe que, a uma só vez, "provê" e "subsiste" (estes são os dois sentidos de ÕLCXpXOÕCJ'L v), fornecendo a todos o que é necessário e resistindo a todas as provas.

1.3 FI. 144 Bergk.

14 ilíada, XIII, 237.

356 Documentos

"

mens reunidos não produziriam um discurso melhor que o de um único homem que os superasse um por um: o julgamento não depende de um valor coletivo, pelo contrário, um só pode tanto quanto muitos, pois cada um conserva o que lhe cabe de inferioridade, como ocorre em matéria de beleza. Com efeito, enquanto a Superioridade não aban­dona nosso homem, comunidade e pluralidade não têm qualquer peso, mesmo se dispuséssemos do exército de Dario. Aqui sobretudo vemos como o parentesco do discurso com o belo é grande, e que os discur­sos são na alma o que é beleza no corpo.

(408) Contudo, sobre esta questão, teríamos de dizer que o tem­po refuta, facilmente, a beleza: de fato, sem dificuldade se lhe apre­goa o nome de "primavera"15. Ao contrário, o discurso progride com o tempo, e nada revela, tão bem como o tempo, quais são os melhores, assim como, dizia Sófocles, apenas o tempo permite notar se um ho­mem é justo 16. Deixo de somar a tais constatações o fato de que os discursos tenham, por natureza, de acertar o alvo não apenas com o tempo, mas também em primeira mão, e que já em sua "primavera" ele se torne imortal. (409) Aquele que possui riquezas, quando quer beneficiar com estas a quem ele julga merecer, o faz subtraindo do que possui, de tal modo que diminui o que resta, na medida em que abandona uma parte. Mantendo-se constantemente fiel a um tal de­sejo de glória, bem rápido terá necessidade de que o ajudem. Mas a posse e a potência dos discursos não se consomem com o uso: ao con­trário, se se ousa dizer, sua natureza é a de aumentar, ao mais alto ponto, em função do próprio uso. (410) A prova disso é que obte­mos as riquezas do que está embaixo, nas minas, nas escavações, por meio de trabalhos rudes, enquanto que os discursos nos surgem por

l.,\UQpcx significa "período", "estação", "hora", e em particular o período favorável, "a primavera", "a primavera da vida", "a flor da juventude".

16 Cft À6yOL "[w Xp6vw O1..Ij.lllpo!kdvOUCJ"Lv: "os discursos progridem com o tempo". Behr tradu~ "reas~n increases with time". npo~cx(vw significa "cami­nhar à frente", "adiantar-se", e "caminhar adiante", "passar"; tal verbo é, cons­tantemente, empregado para designar "a progressão do tempo", o "progresso". LUj.lllpojXx[VW é raro, e acredito que é preciso compreendê-lo, prefixo por prefixo, como "caminhar com o mesmo passo" do tempo, "progredir com" ele, e, portan­to, "beneficiar-se". O discurso não diz respeito ao agregado sincrônico, ao espa­ço, mas à revelação diacrônica, ao auto-desdobramento que se adapta ao tempo.

A citação de Sófocles foi retirada do Édipo rei, v. 614.

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 357

Page 180: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

meio de trabalhos que nada destroem, e ainda nos geram benefícios. Eles então, com toda verossimilhança, são os únicos a participar da natureza divina.

(411) Se se afastassem dos homens as doenças, poder-se-ia afir­mar que não haveria mais necessidade da medicina, tal como não há necessidade de um timoneiro quando não se navega. Mas, para a re­tórica, se todos os delitos privados e mesmo se todas as guerras se afastassem dos homens, seus negócios, ainda assim, não seriam difí­ceis, nem a sua potência ficaria abatida como se dela tivessem arran­cado a raiz. Pois são, com vantagem, as assembléias e os encantos da paz que requerem a ordem que a retórica confere, assim como, por Zeus, as honras oferecidas aos deuses e aos heróis, e todos os elogios justamente devidos ao valor dos homens. A retórica atrela-se a tudo isso, ordena-o, e parece a todos, igualmente, convir.

(412) Se, além disso, a retórica tem algo em comum com uma das outras artes, uma das outras potências, por Heracles, não se sa­beria dizer a que ponto o que dela sobrevindo pode ser reveladoro Se, por exemplo, um médico se associa à retórica, só então conhecerá, perfeitamente, o encanto da própria medicina. Pois, se reúne o poder de persuadir aos meios adequados que pertencem à sua arte, o que o impede de oferecer, na maior parte dos casos, uma pré-medicação retórica antes de se servir dos instrumentos medicinais, utilizando, com se diz, a mais sábia das drogas?17

17 Este parágrafo, que constitui o início de um novo tratamento sobre a re­tórica, considerada não mais em si mesma, mas como auxílio, como "a mais" (aqui à medicina, depois à estratégia, 413-416, logo após à navegação, 417), é impor­tante por inúmeras razões.

A princípio, a comparação retórica-medicina e a assimilação logos-phar­makon ("droga", ou seja, remédio/veneno, como se sabe) constituem um lugar comum por excelência. Behr cita, para explicar o "tis" !"as someone said"] e glo­sar a expressão superlativa - "a mais sábia das drogas" -, o próprio Aristides (aqui, 184; I, 330; XXXIV, 26), Ésquilo (Prom., 378), Eurípides (fr. 1079N.), fr. Anon. 317N., Menandro (Sent., 313, 315, 622, 674 Kock), Platão (Crit., 106 b), Isócrates (VIII, 39), Sêneca (Ep. 75), Plínio (N.H., XXVI, 7.12), Tertuliano (Pali., 6), Plutarco (Mor., 1032 b), Horácio (Ep., I, 1. 34-35). Por minha parte, adora­ria atrair a atenção para os primeiros textos, que fornecem a matriz e o sentido ambivalente da comparação: Homero, e a droga egípcia de Helena que nos libe­ra ao prazer do discurso (Odisséia, IV, 239), e, sobretudo, Górgias (Elogio de Helena, 82 B 11 (14) D.K.), passagem que Aristides recria um pouco mais adian­te, em 184-186. A retórica não é mais, como no Górgias (465 eIs.), o equivalen-

358 Documentos

(413) E se a retórica reúne-se à arte de comandar, sua natureza é, muito mais, a de resguardar o que diz respeito ao comando1S. É, exatamente, o que, em todo lugar, Homero torna manifestol9:

te para a alma do que é a culinária para o corpo, mas sim o equivalente da pró­pria medicina (249).

Mais ainda, deve-se levar em consideração o texto preciso que se encontra presente, e transformado, por trás de nossas linhas: o do Górgias de Platão (com­parar com Prt., 167 a), no qual Górgias revela a Sócrates "a inteira potência da retórica" (455 d), que, "por assim dizer, sustém e compreende (ouÀÀa~cíooa, "reu­nir", 465 aI, aqui retomado em lTpOOlcXl3ot, "reunir a mais", "associar-se"), sob sua própria potência, todas as demais". Eis então seu testemunho: eu acompanhava, freqüentemente, meu irmão ou outros médicos à casa de doentes que se recusa­vam a ingerir uma poção; "o médico não lograva persuadi-los, então era eu quem os persuadia, apenas com a arte retórica"; porque o orador sabe, mais do que o médico, convencer de que é ele o médico (456 b-d).

Ora, encontra-se aqui o outro centro de Ínteresse do parágrafo, pois pode­se notar, com clareza, como o argumento, imputado a Górgias por Platão, foi trans­formado e mesmo aperfeiçoado por Aristides no afã de opor resistência às obje­ções socráticas. Agora, não são mais dois personagens, um que sabe e o outro que sabe tão-só produzir a crença de que sabe, mas um só, capaz, a uma só vez, de saber, de ser e de tornar o outro sensível ao que ele sabe. Como Aristides saberá dizer mais adiante (434), a retórica, que não é "adulação", não'é também parergon, "acessório" ou "suplemento", ou seja, trata-se do "pão e da carne", não da en­trada ou dos doces (427): com efeito, é retórica que "torna manifesto" (é assim que compreendo €x<paLV€L, a retórica "serve como reveladora"), que permite "co­nhecer" (e'(cr€Lat) o charme próprio e a essência particular de todas as outras artes. Ela exalta a virtude de cada arte ("o quanto não será superior a cada arte?", TIOOW

lTp<XpÉpm, 416): ela lhes "dá lastro" (PorrtlV TOOaÚTr]V napÉxeT<XL, 417). ' Eis porque o lagos não é mais o que viabiliza o pharmakon, o engolir a pí­

lula, mas o próprio pharmakon, uma das pílulas eficazes e em uso na própria medicina. O orador-médico é capaz de curar também com a linguagem, "pre­venção" e "pré-medicação" (TIpo{}epct1T€Ú€t v), podendo, em muitos casos, evitar as drogas pesadas, medicina leve, ou melhor, "sábia", com muito futuro, e da qual se tem conhecimento, pelos Discursos sagrados, do uso que dela fez Aristides em seu próprio benefício.

18 A comparação entre estratégia, arte de comandar e retórica aparece não apenas no Protágoras, mas também em todo o Górgias, desde a preferência afir­mada por Sócrates pelo "perito": "Quando se trata de construir barreiras, de re­formar portos e arsenais, levar-se-á em consideração a opinião dos arquitetos; quando se trata de eleger estrategos, de dispor um exército em ordem de batalha ou de recuperar uma posição perdida, levar-se-á em conta a opinião dos estrate­gos, e não a de oradores" (455 b-c). Górgias responde que Temístocles e Péricles - que não eram arquitetos, mas, de preferência, estrategos e, em todo caso, ora-

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 359

Page 181: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

"Assim falando, ele excitava o ardor e a bravura em cada um"

e:

"Assim ele falou, e com mais vigor eles ergueram-se contra os Dânaos"

e:

"Para eles, o combate logo tornou-se mais doce do que navegar de volta para a pátria querida em suas côncavas naves".

(414) Tais são as virtudes que ele sempre atribui aos discursos. E disso se assegura, com toda evidência, quase como se um arauto o proclamasse, quando mostra Agamêrnnon, por um lado, diante das formações

"onde fremem escudos, capacetes e lanças"

dores - construíram longos muros de defesa, organizaram portos e arsenais. A discussão com Cálicles, que transcorrerá logo a seguir, versa sobre os Quatro (Te­místocles, Címan, Miltíades e Péricles), a partir de 503 c (cf. 525 b), e sabe-se que Aristides compôs um longo e célebre discurso Contra Platão, para defender os Quatro (111 Behr = XLVI Dindorf).

Mas aqui o argumento não é o de um acúmulo, da superioridade estraté­gica do estratego-orador - como o médico ou o timoneiro que sabe falar - so­bre o simples especialista. De fato, a retórica "salva" ((j~'{€L\I) a estratégia. Con­fundida com a exortação ao combate e com a opinião (conselho), é sob a sua égide que a arte da guerra pôde se desenvolver. Ou ainda, o estratego é apenas o "escudeiro" do orador, e a retórica é, como Aristides já havia revelado, com­prometendo, inclusive, o Político, a "arte basílica [real]" (cf 392; ver também 422,438).

19 As citações homéricas que aqui se seguem são retiradas da Ilíada, V, 470; XV, 726; 11, 453s.; VII, 62 (que se confunde, parece-me, com IV, 282); IV, 289; 11,372-374. A persuasão, tanto humana quanto divina, produz efeito tanto sobre os troianos quanto sobre os adios. A frase entre parênteses foi, sem dúvida e com razão, tomada como uma glosa por todos os editores. Enfim, os dois oradores que estão em questão em 415 são, evidentemente, Nestor e Ulisses.

360 Documentos

"

erguidas pelos Ajazes * , rezando para que todos, sem exceção, tenham

coragem, e para

"que uma tal coragem esteja em todos os corações"

(ele o descreve rogando para que Tróia seja tomada); mas, por outro lado, quando Nestor lhe ofereceu os melhores conselhos para o seu exército, suplicando para obter apenas dez conselheiros que fossem de tão boa opinião:

"Pois se houvesse dez acáios a manter assim comigo

o conselho, a cidade do velho rei Príamo em breve cairia,

por nossas mãos tomada e saqueada".

Ele assim toma a retórica como superior em poder à estratégia, em proporção inversa à inferioridade numérica entre dez homens e dez vezes dez mil. (415) Isso com toda verossimilhauça, pois não houve necessidade de procurar ao longe para encontrar a prova: quando os

acáios precipitaram-se para erguer o acampamento, quando já haviam alçado as rampas dos navios e cobriam com seus gritos o ruído do mar, se nossos dois oradores não os tivessem detido, de que serviria a táti­

ca, de que serviriam os escudos, as lanças, os navios20, o volume das riquezas e dos equipamentos? Mas, em verdade, ela, a estratégia, ti­nha o ar de um escudeiro face a um hoplita, toda a preparação con­frontada à retórica que a tudo isso comanda.

O timoneiro, por sua vez, quando se atrela a uma parte dessa potência, quando sabe provocar o medo a cada vez que é oportuno

ou, inversamente, quando determina a confiança, em quanto não su­pera o próprio exercício da arte de navegar!21

* Ajazes ou Ajaces [no texto, A'LCl-rW\I], nome de dois heróis gregos da guer­ra de Tróia: Ajax, filho de Oileu, rei dos lóerios; e Ajax, filho de Telamon, rei de Salamina. [N. da T.]

20 Presto conta, com essa última vírgula, do xa[ - omitido por Dindorf e suprimido por Behr - da maior parte dos manuscritos. Esta supressão faz, sim­plesmente e de maneira plausível, dos "navios", do mesmo modo que das "rique­zas" e dos "equipamentos", o complemento de "o volume".

21 O timoneiro do Górgias (511 c0512 b), que cobra duas dracmas para nos conduzir a um porto seguro, dispõe do bom costume de provocar menos confu~

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 361

Page 182: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(417) Assim, então, ela (a retórica) é em si constantemente22

admirável e, ao mesmo tempo, fornece lastro a tudo o que a ela se reú­ne. De minha parte, afirmo que em um encontro entre a beleza e a re­tórica, a decisão far-se-á através da retórica23, e que ninguém obterá, ao ver um homem dotado de beleza, tanto prazer quanto a escutá-lo falar. Ainda sobre esta questão Homero parece testemunhar:

"Nós não estávamos tão maravilhados com a visão da

aparência de Ulisses,,24

quanto com a densidade de seus pensamentos e palavras, com suas inflexões de extrema nobreza, disse Homero, comparando a eloqüên­cia de Ulisses ao trovão de Zeus. (418) Quanto a isso, ele ainda nos presta testemunho em uma passagem que acabamos de citar:

são do que o orador, pois compreende, eis o que pretende Sócrates, que não sabe a qual dos passageiros prestou realmente serviço, salvando-o: ele não os desem~ barcou melhores (~eÀ'rCouç;) do que quando os embarcou, nem em corpo nem em alma" (511 e8-512 aI). :t, justamente, esse "melhoramento" (àJ.Le('Vw'V, 167 a3; ~eÀ"t-(w, 167 b4) que Protágoras, pela boca de Sócrates, na Apologia do Teeteto, pretende, com seus discursos, levar a seus ouvintes, fazendo-os mudar de "dispo­sição", de "estado". O timoneiro de Aristides, que sabe falar, sabe também pro­vocar em seus passageiros o estado que convém, o temor ou a coragem adaptados ao kairos da travessia. Com este último exemplo, surge outro conceito-chave da sofística, o de "momento oportuno", de "ocasião", de discurso que convém a um determinado momento (cf. por exemplo a descrição do orador em 383; o termo é também utilizado em 422, que traduzo por "a hora" das armas. Ver A. Tordesil­las, "L'instance temporelle dans l'argumentation de la premiere e de la seconde so­phistique: la notion de Kairos", em Le plaisir de parier, op. cit., pp. 31-61).

22 Behr suprime mvtaxou, no entanto, bem atestado, pois detectou uma glosa no que vem logo a seguir. Mas o advérbio, ao que me parece, também pode aco­lher o sentido de'lsta: é "absolutamente" e "constantemente" que, considerada em si mesma, a retórica suscita deslumbramento e admiração (sobre esse sentido

de nCl'V'TClXOU, ver L.S.]., S.v. II e cf. Platão, R., 503 a5 e.g.).

23 LuveÀ{t-óvtCl possui o duplo sentido de "encontrar-se", "conjugar-se" em um mesmo indivíduo, e "entrar em competição". Pode-se hesitar quanto ao senti­do do dativo: em um tal "encontro", a decisão será "em favor da retórica". Este é o sentido escolhido por Behr; ou então a decisão se fará "em função da retórica": por exemplo, em função do testemunho de Homero e da "afirmação" de Aristides.

24 [Hada, III, 224. Antenor compara as palavras de Ulisses aos flocos de ne­

ve no inverno.

362 Documentos

"

"Tal homem é mais fraco na aparência mas o deus concedeu à sua forma uma coroa de

[palavras" 25

pois não é sem motivo nem sem pesquisar que ele diz "coroa", e sim para indicar que a retórica não cobre apenas as faltas, mas que, ainda e sobretudo, torna vencedor, pois a coroa é precisamente o símbolo da vitória. (419) Se, então, ele coloca um homem feio, capaz de de­senvolver um belo discurso, diante do mais belo homem, mas incapaz de falar, é verossímil e coerente que ele afirme que aquele que é, a uma só vez, belo e orador suscita ainda mais admiração para os seus discursos.

(420) Píndaro vai mais adiante, ao ponto de dizer26 que no ca­samento de Zeus, quando Zeus perguntou aos próprios deuses se ti­nham necessidade de algo, eles lhe fizeram súplicas à fabricação de deuses capazes de desenvolver em palavras e em música a ordenação desses feitos gloriosos e de todos os seus preparativos.

(421) E não são apenas os poetas, mas todos os homens, que, quanto a isso, estão de acordo. O resto, para falar de um modo geral, apresenta ou bem um atrativo para a alma27 ou bem utilidade; mas

2S Odisséia, VIII, 169s. A citação já havia servido em 96, quando o comen­tário privilegiava não a "coroa", mas "o deus". Trata-se então de responder­com a ajuda dos poetas, de Sócrates, e de um certo Platão - à acusação do Górgias, que recusa à retórica até mesmo o estatuto de tekhne e a torna uma contrafação vergonhosa: ou seja - retorque Aristides -, a retórica não é o efeito de uma arte, nem da experiência nem da aprendizagem, ela nos vem dos ,deuses - Hermes (cf. além do mito, 49, 57, ou 423) -, ela é um dom da natureza (33-34). Em outra ocorrência desta mesma citação, em XXVIII, 40, um Aristides, de quem reprova­mos a vaidade, conclui que o próprio Ulisses sabe muito bem se vangloriar. As três paráfrases são irrepreensíveis; donde se conclui que mesmos versos constituem to­do um arsenal, uma riqueza à disposição de quem sabe utilizá-los.

26 Fr. 20 Turyn = 31 Schroeder.

27 "Um atrativo para a alma": o termo assim traduzido é 4JUxaywy(a, "psy­chagogia". Trata-se, obviamente quanto à terminologia, na oposição com xpeLa, da diferença entre o prazer e a necessidade, a sedução exercida pela retórica e a satisfação das necessidades - "pleasure ar use", traduz Behr. Em Aristides, a "psychagogia" chega a se opor à seriedade professoral, que não é uma elaboração teatral (cf. XIX, 21, e para a "sedução" trágica, ver Aristóteles, Po., 6,1450 a33).

Mas não é o possível deixar de ouvir, neste termo, o eco do Fedro (261 a, 271 c), onde a psychagogia define o papel da boa retórica. Conforme a estratégia

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 363

Page 183: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

apenas o nosso objeto completa, totalmente, os dois fins e apresenta, com os serviços que presta, um admirável encanto. Assim, quando os homens partem em guerra uns contra os outros, eles recebem embai­xadores enviados por esses assassinos que matam os seus, e eles têm coragem de enviá-los, pois fazem exceção à raça dos oradores e têm muita consideração pela natureza do discurso, com a idéia de que, na origem, a retórica surgiu para a salvaguarda do gênero humano e para a utilidade comum28 (422) A ação das armas de nada serve em tem­pos de paz, mas o poder dos discursos não perde o valor em tempos de guerra: ele é útil aos concidadãos e inspira o respeito ao inimigo, e, com freqüência, quando não é possível evitar as armas, ela as supera. (423) Eis também porque, parece-me, os poetas chamam apenas a Hermes, mestre desta sabedoria e dono de um tal encanto, pelo nome

constante de Aristides, que em particular estrutura a Defesa dos Quatro, o Fedro é que está se opondo ao Górgias, permitindo, logo a seguir, que o Górgias se opo­nha a si mesmo. Com efeito, no Górgias o apelo ao prazer serve para distinguir a retórica, ou a culinária, da justiça, ou da medicina, que são úteis. Nomear "psy­chagogia" esta "adulação" consiste, logo de início, em valorizar o atrativo retó­rico. No mais, reagrupar apenas na retórica, isto é, em uma só retórica, o útil e o agradável, "os serviços" e "o charme" (-rW" Gxp€À€U:;)"!nlv XáPL ,,), termos que não param de produzir divisões no Górgias (cf 502 b6s. e.g.), equivale a recusar a existência de uma boa e de uma má retórica, a retórica filosófica do Fedro e a re­tórica sofística do Górgias, essas duas retóricas que o próprio Górgias evoca, de passagem, referindo-se à boa como incapaz de ser encontrada. Assim, a retórica se encontra duplamente absolvida: o prazer da pretensa má retórica é um bom prazer; a boa e a pseudo-má constituem, em uma só ato, o apanágio do gênero humano.

28 Esta passagem, como nos presta testemunho a divergência entre as lições e as correções feitas nos próprios manuscritos, está corrompida. Behr propõe su­primir o que compreende como duas glosas, e, por esta razão, reconstrói a frase com um só particípio: CtnOTT€}lTTOUO"L", €"{}U}lOÚ}l€"Ol ["[o "[w" PTl"[wpw" q:luÀo"

U1r€'faLpoÚj.l.€VOL] TIlv "[ou Ã.61'ou q:lú<n" [dlboÚj.l.€"Ol], O"[L [ ••• ]: send back ambassa­dors [ ... ], considering that the nature of reason [ ... ]. Parece-me, no entanto, pos­sível manter uma maior continuidade em um texto amplamente atestado. Por isso remeto o primeiro particípio ao verbo que o precede, e o completo, como Reiske (xcd) ou como Kei! ("[€), com uma partícula de coordenação entre as duas outras seqüências de particípios. O sentido não é, particularmente, equivocado com a sua glosa; acho mesmo interessante que àtboÚ}l€VOL, que nos remete à àt&;:it;, ou seja, a um dos dois dons suplementares de Zeus no mito original do Protágoras, seja aqui aplicado à "natureza do discurso", ou seja, a esta retórica que é o substituto da natureza do discurso na versão de Aristides.

364 Documentos

'\

que se aplica, em comum, aos deuses. Eles atribuem o nome de "ben­feitores,,29 a todos os deuses tomados em conjunto, mas também ape­nas a ele (Hermes); chamam-no "o sem maldade" e "o servidor", pois o dom que dele provém é destituído de mal e fornece, a cada vez, aos homens todos os bens, em guerra, em paz, na terra, no mar, nas do­res, nas alegrias, em todo lugar. Parece-me que também existe, se se deve crer em Platão, uma raça de demônios que leva as mensagens dos homens aos deuses e dos deuses aos homens; de tal modo que poder­se-ia dizer, com certeza, que a retórica é um elo que religa o todo, e que ela constitui esta raça 30.

(425) Porém o mais importante a dizer sobre esta potência, é que nada é, ao mesmo tempo, tão comum à multidão e, não obstante, tão a ponto de escapar à condição e à natureza desta multidão. A retórica se encontra, por assim dizer, sempre presente no homem, mas em sua forma completa só é possível encontrá-la com a mais extrema dificul­dade. Pois, assim como os leões e todos os animais valorosos são na­turalmente mais raros do que os outros, nos humanos nada é mais raro do que um orador digno deste nome. (426) Consideramo-nos felizes se, tal como o pássaro indiano dos egípcios, nasce um ou dois a cada revolução do sol. Mas a maior parte, só tendo encontrado partes da arte oratória, tem necessidade de um Homero para exortá-los com versos onde declara: ele, que "conduz a carruagem"; ou ainda: "vassalo de Posêidon" (trata-se do início e do fim de um verso). Tão distantes os verdadeiros oradores estão, em natureza, de um Míteco ou de um Teári031 .

29 Odisséia, VIII, 325; cf 49. O epíteto seguinte, axaxiÍ"[u, é, a uma só vez, o de Hermes (Ilíada, XVI, 185; Odisséia, XXIV, 10; Hesíodo, fr. 23) e o de Pro­meteu (Hesíodo, Teogonia, 614). O sentido do terceiro, €PLOÚVLOÇ, é incerto­talvez devêssemos aproximá-lo de O"L"T).Llt, "servir" (cf Ilíada, XX, 72; XXIV, 360,457,679 etc.).

30 Behr edita uma correção de A (que figura também em seu apógrafo u): <xu-rà> "[GUTO, "in this respect". Mas podemos, creio eu, contruir reunidos os dois ")(u~" (xui: o'Úvóe<r}lo" [ ... ] )«Xi: -rou"[o), com "[ou"[o retomando o tipo de elo que constitui o genos dos anjos, descrito por Platão no Banquete (202 e ss.), e sem o que a alusão permaneceria incompreensivelmente em suspenso.

31 As citações são retiradas da Ilíada, VI, 19, e da Odisséia, IV, 386. Míteco é o autor de um livro de culinária siciliana, e Teárion, o padeiro que

Sócrates compara aos Quatro de Cálicles (Grg., 518 b): Péricles, Címon, Miltía­des e Temístocles são tão pouco oradores quanto esses aqui instrutores de ginás-

Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica 365

Page 184: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(427) Então, todo os demais gêneros de discurso, para não pas­sar por cima desta questão, são, em relação aos discursos da retórica, exatamente como as iguarias face ao pão e à carne. De tal modo que os mais renomados em cada gênero são os que mais utilizaram a re­tórica, e, dentre esses, o que mais próximo chegou da retórica. (428.f.­Homero, e essas passagens de Homero, Sófocles, e essas passagens de Sófocles. Mas Platão, o que ele nos diz? Pois, longe de ignorá-lo, es­tamos prontos a situá-lo no posto mais honrado do coro".

tica. A réplica prossegue com a comparação em 427, quando o bom regime, sim­ples e atlético (cf. e.g. R., m, 404 d), é o da retórica, em oposição às doçuras e pieguices do gênero literário.

* €v uf XCl!J..llTttf 'tou xopou. [N. da T.]

366 Documentos

OUSO (trechos escolhidos)

Reuni aqui alguns textos suscetíveis de esclarecer a função so­fística do conceito de uso e dos termos da família de khraomai.

':. * *

ANTIFONTE 87 B 54 D.K. (Estobeu, Florilégio, IlI, XVI, 30)

De Antifonte. Há uma história 1 em que um homem, vendo um outro adquirir2 muito dinheiro, decidiu pedir-lhe um empréstimo com juros. O outro não quis, pois era do gênero dos que desconfiam e não ajudam a ninguém: preferiu pegar3 o dinheiro e colocá-lo de lad04 em algum lugar. Mas foi visto ao fazê-lo, e logo lho tomaram. Quando voltou, mais tarde, não encontrou as riquezas (-rel xp-fu.t.a-rcx), logo ele que as havia guardado como reserva. Atormentado com a sua má sor-

1 Logos, que se diz também, terminologicamente, de uma fábula, como as de Ésopo.

2 Anairoumenon, médio de anaireo, que significa "soerguer", "retirar", "destruir": é preciso compreender que "acumular", como se traduz, comumen­te, já significa tirar de circulação e fazer desaparecer. Ao que responderá o hy­pheileto que se segue, de hyph-aireo, "retirar por baixo", e, na forma médio-pas­siva, "apropriar-se, furtar" ("tomaram-lhe").

3 Pheron, de phero, "levar", ao que responderá prosepheren, de prosphe­ro, "levar em excesso", "restituir"; com a mesma formação de symphora, "o que é levado conjuntamente", "o acontecimento", "a desgraça".

4 Apetheto, médio de apotithemi, "colocar de lado", ao que responde ho katathemenos, médio de katathitemi, "depositar", "colocar em reserva", e mes­mo "enterrar", como se enterra um tesouro, retomado logo após com katatheme­non lithon, "guardar uma pedra em reserva", "enterrar uma pedra".

o uso 367

j

J cj • 1 1

Page 185: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

te, e, em particular, por não ter emprestado (€l<XPTjO"€) a quem lhe pedias o dinheiro, que então teria sido salvo, rendendo-lhe um outro tanto, encontrou o homem que tinha outrora pedido o empréstimo e lamentou-se de sua desdita: ele havia de fato se enganado e se arre­pendia por não ter consentido e por ter sido a tal ponto incompla­cente, porque o dinheiro estava totalmente perdido. O outro o exor­tou a não se preocupar, mas a considerar que o dinheiro era ainda dele e que não estava perdido, bastando guardar uma pedra como reserva no mesmo lugar: "De qualquer modo, quando o dinheiro lhe pertencia, dele você também não se servia (ou.s, [ ... ] EXPw), assim, não vá agora considerar que está privado de algo". Pois aquilo de que não nos servimos e de que não nos serviremos (ÜTW ráp TLÇ' J.l.Tj ExPTtcrcno J.l.l)c5€ XPTtcr€'t'al), que pertença ou não a nós, ~não é nem melhor nem pior. Se o deus não quer conceder bens a um homem, colocando à sua disposição riquezas em abundância, ele o faz pobre em bom sen­so, e retirando um ou outro, é dos dois em conjunto que ele o priva

6.

87 B 53 D.K. (Estobeu, Florilégio, IlI, X, 39)

De Antifonte. Aqueles que trabalham, economizam, resistem, acumulam, são capazes de um prazer que podemos considerar como tal. Mas se retiram e utilizam (XpW}.1€VOl), sofrem como se retirásse­

mos um pedaço de sua carne.

SObx €xPT}Cf€ -r0 O€O'J.l€v!f: trata-se de "ceder o uso de algo a quem preci­sa", mas cada um dos termos recebe normalmente um sentido mais específico de acordo com o objeto: "precisar" logo "pedir" (dinheiro, por exemplo), "ceder"

logo "emprestar" (L.S.J., S.v. xpá.w B).

6 Esta última frase não me parece fácil de compreender. Riqueza e inteligên­cia constituiriam a completude dos bens. Riqueza de bens, acompanhada de po­breza de inteligência constituiriam um bem incompleto; tanto mais incompleto quando se percebe que, ao se excluir um dos dois (heteron), suprime-se os dois (amphoteron): eliminando a riqueza, privamo-nos de bom senso (o bom senso gostaria que o desaparecimento do tesouro não causasse nem perdas nem ganhos, visto que não vale mais do que uma pedra), ao passo que, eliminando o bom sen­so, privamo-nos da riqueza (pois é por falta de bom senso que não nos servimos

dos nossos bens).

368 Documentos

'\

B 53 a D.K. (Estobeu, Florilégio, IlI, XVI, 20)

De Antifonte. Existem pessoas que não vivem a vida presente, mas que se preparam com todo cuidado para uma outra vida, não para a vida presente; todavia, o tempo deixado de lado passa.

o uso 369

Page 186: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

GÓRGIAS (492 e3-494 b6)

Platão

Salvo indicação contrária, traduzo o texto editado por J. Bumet (Platonis Opera, IlI, Oxford Classical Texts, 1903, 198921' ed.). As notas de M. Canto (Gamier-Flammarion, 1987) demarcam, ampla­mente, o comentário de Dodds (P/ato Gorgias, Oxford, Oxford Uni­versity Press, 1959), que é o mais rico, mas não sem introduzir um grande número de confusões e falsas referências. Dodds, lrwin e Can­to, para citar apenas os comentários mais recentes, têm em comum o fato de não tomarem nem a sofística nem a retórica fora do enqua­dramento platônico, o que reduz, sensivelmente, as suas percepções da operação platônica propriamente dita (ver sobre esta questão, para Dodds e Irwin, Brian Vickers, In Defense of Rhetoric, Oxford, 1988, Prefácio, p. VIII, e capo 2).

* * * Sócrates: Não é correto dizer que são felizes aqueles que não têm

necessidade de nada. Cálicles: Não, senão os mais felizes seriam as pedras e os mortos. Sócrates: No entanto, a maneira como você fala da vida é ne­

fasta! E também não ficaria atônito se Eurípides tivesse dito a verda­de quando afirmou: "Quem sabe se viver não é morrer, e morrer, vi­ver?" [493] E nós, em realidade, talvez estejamos mortos. Eis o que, por minha partel, já ouvi algum sábio dizer: atualmente estamos mortos, o corpo é um túmul02, e a paragem da alma onde estão os

1 Não retenho o gar (mantido apenas por F, Jâmblico e Estobeu) depois do ede dos manuscritos B, T e P.

2 Soma, o "corpo", é sema, o "signo", a "marca" (com este sentido primei­ro, no Crátilo, 400 b-c), e, portanto, o "túmulo": esse futuro lugar comum já nos remete, sem dúvida, ao pitagorismo (cf. Filolau, 44 B 14 D.K., cuja autenticidade

Platão, Górgias 371

Page 187: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

nossOS desejos é de tal modo feita que nela tudo se deixa persuadir e retornar de ponta-cabeça. Esta paragem, um sutil contador de mi­tos, um siciliano, talvez, ou um italiota, fez derivar seu nome do que é tão facilmente persuadido e persuasivo - pithanon te kai peistikon _: ele a nomeou phitos, "tonel,,3. Aqueles que são pobres em pensa­mentos - anoetous -, [b 1 ele afirma que carecem de hermetismo -amyetous4; e este lugar da alma dos não-herméticosS, onde estão os desejos, parte sem limites e sem tampa, ele diz que é como um tonel furado, fazendo a comparação com a impossibilidade de se o encher. Ao contrário de você, Cálicles, ele representa6 os não-herméticos

é matéria sujeita à controvérsia), os órficos se contentam, sempre de acordo com o Crátilo, em compreender soma a partir de soizein, "guardar", no sentido de

"prisão" .

3 O jogo de palavras faz derivar de pithanos e de peistikon, todos dois pro­venientes de peithein, "persuadir", tema mesmo deste diálogo sobre a retórica, um nome de fantasia para a alma enquanto lugar dos desejos: pithos, com a mesma sonoridade, mas não com a mesma etimologia. O termo designa um grande jarro de terra, como aquele que Pandora abre a tampa, liberando, dessa forma, os ma~ lefícios (Hesíodo, Trabalhos, 94 s), ou um tonel como aquele, perfurado, das Da­naides (Xenofonte, Oikonomikos, VII, 40, e.g.). Resolvi tomar o primeiro adjeti~ vo na forma passiva ("persuadido", mas ele igualmente significa "plausível", cf· discussão de Dodds, ad Ioc.), e o adjetivo verbal, como, habitualmente, na forma ativa: a alma desejante é, enquanto tal, capaz, a uma só vez, de se deixar persua~ dir e de persuadir.

4 Para compreender o interesse pela homofonia entre a~noetous (privado de bom senso e de razão) e a~myetous, é preciso tomar amyetous ao pé da letra: o adjetivo designa aqueles que-não foram "iniciados nos mistérios", na medida em que não foram introduzidos no segredo hermético; de fato, myo significa, a prin­cípio, "fechar" (os olhos, os lábios), assim como o "myste" [místico] é aquele que fecha os olhos ou mantém os lábios cerrados (ver Chantraine, S.v. j.Lúw). Aquele que deixa as epithymai persuadi~lo, por falta de naus, carece, literalmente, de "con~ tenção", como no caso de um tonel furado. Por "hermético" tenta-se traduzir os dois sentidos de clausura. Compara~se esses "não~iniciados" àqueles do Teeteto (155 e), ligados às doutrinas do fluxo e da sensação.

5 Prefiro a lógica da lição amyeton (melhor atestada: B T) à da lição anoe~

ton (Y FI· 6 TobvavtCov ón bUtOÇ' CJo(, 6J KaÀ.À()(À€u;, €VÓ€L)(Vu'tcn. O texto não apre~

senta qualquer dificuldade, desde que não se considere a estranha tradução de M. Canto: "Você vê, é tudo o contrário do que você diz, Cálicles. Além disso, um sábio observou [ ... ] (a nota 137, ad Ioc., proveniente, sem dúvida, de uma

372 Documentos

\

como os mais infelizes de todo o Hades (ele quer dizer: o que não se vê - to aeides7 ), e os faz verter água em um tonel furado por meio de um recipiente não menos furado. Com uma peneira, quer dizer com a alma, conforme diz aquele que sobre isso me falou [c]; e ele comparou a uma peneira a alma dos homens que não pensam, por­que perfurada, incapaz de proteger por falta de confiançaS e por es­quecimento.

Tudo isso é em certo sentido deveras extravagante, mas revela bem em todo caso isso de que, por tê-lo assim representado a você, pretendo persuadi-lo, se disso sou capaz, no afã de fazê-lo mudar e

confusão induzida pelo comentário de Dodds). Segundo o grego, é, evidentemente, o mesmo homem quem elaborou os trocadilhos, representado o suplício dos ho~ mens desejantes (cf R., lI, 363 d) e comparado suas almas, incapazes de plenitu­de e satisfação, com os crivos, as joeiras ou as peneiras. Pode-se observar apenas que esse mitólogo, "sutil" como todo poeta ou não-filósofo (fon, 534 b; Hípias Maior, 288 d; R. VI, 495 d), é italiano ou siciliano, como muitos oradores-sofis­tas e, em particular, como Górgias: ele apresenta a versão persuasiva ou exage­rada (barroca, asianista, ou, para nós, marselhesa) - adaptada à retórica irôni­ca do diálogo sobre a retórica - da teoria platônica do desejo; a sobreposição da representação mítica (À.€r€L, WÇ' €<Pll o 11'pOÇ' €J.l€ À€rWV, "ele diz segundo me revela aquele que me disse") é, de igual modo, e como, por exemplo, nos prólo­gos dos diálogos (cf. Parmênides, t26 b~c e.g.), um indicador da ficção do papel de enunciador, que tem por finalidade dar sentido ao enunciado único, como se fosse o do próprio Sócrates, mas fora de contexto. O que confirma a repetição de 00't0Ç' [ ... ] hÓ€LXvu'tat (b4, "ele os representa") por €rW [ ... ] CJOt hÓ€L 'gáJ.l€VOÇ' (c4, "eu, l ... J tendo representado a você", e a de 'tLÇ' j.Lu,'}oÀorwv [ ... ] lxvlÍp (493 aS: "um contador de mito") por j.Lu,'}oÀorw (493 d3, "eu conto um mito").

7 Mesma eponímia no Fédon, 8'1 c, evocada e recusada em favor de uma outra f'conhecer todas" as belas coisas), no Crátilo, 404 b. A progressão aqui sublinha­da é a do segredo, da invisibilidade ("herméticos" iniciados e encerrados, coberto e colocado sob coberrura, mundo invisível) que é também, contra o espaço públi~ co recomendado por Cálicles, o mundo do filósofo, do mundo daquele que se in~ teressa, diferentemente dos não~iniciados, pela invisibilidade da "idéia".

8 'Ama-rlva 'tE xaL À~. Deduzir-se~á que os contrários, pistis tanto quan~ to aletheia, constiruem as qualidades da alma que sabem conter, guardar. Não se deverá esquecer que, no entanto, pistis é da mesma família que peithomai, esta famosa persuasão que determina os furos; e que é, mais ainda que pithanon e peisthikon, totalmente arbitrária, com pistis ("fé-credibilidade) e apistia (infiabi­lidade~incredibilidade), decidir entre a ação e a paixão. Em todo caso, na evasiva do diálogo, Sócrates continua querendo "persuadir" Cálicles (493 c5, dt), e "trans~ formar" sua alma (metathesthai, 493 c5, cf. dt e 3, retoma metapiptein, 493 ;4).

Platão, Górgias 373

Page 188: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

escolher, em vez de uma vida sem plenitude e moderação, uma vida que se baste e se satisfaça com o que está sempre presente.

Pois bem, terei, ainda que pouco, o persuadido, a ponto de o fazer mudar e assim pensar que os homens moderados são mais felizes [d] do que os sem limites? Ou será que, embora eu conte centenas de outros mitos do mesmo gênero, você não mudará de modo algum?

Cálicles: Isto é o mais certo: eu não mudarei, Sócrates! Sócrates: Vamos lá! Vou citar outra comparação oriunda da

mesma escola que a primeira. Veja bem: quando você fala de uma e de outra vida, a do homem sensato e a do homem intemperante" é como se você falasse de dois homens que possuem muitos tonéis; os tonéis de um deles estão em bom estado e plenos de vinho, [e] de mel, de leite, de toda sorte de líquidos, todos raros e difíceis de encontrar, obtidos com muito sacrifício e dificuldade. Aquele, portanto, que os encheu, não teria mais de canalizá-los nem com o que se preocupar: desfrutaria, assim, de tranqüilidade. O outro pode, também, tal como o primeiro, embora não sem dificuldade, obter esses líquidos, mas seus recipientes estão furados e podres: ele seria forçado, dia e noite, a enchê-los sem parar, [494] sob pena de sofrer até às últimas conse­qüências. Se tal é o modo de vida de cada um, você ainda diria que o homem intemperante possui uma vida mais feliz que a do homem da ordem? Dizendo tudo isto, consigo um pouco persuadi-lo de que uma vida de ordem é melhor do que uma vida intemperante? Ou não o

persuado? Cálides: Você não me persuade, Sócrates. Aquele que encheu os

tonéis não tem mais nenhum prazer; é exatamente o que queria dizer há pouco com "viver como uma pedra": quando está cheio [b) não se tem nem mais alegria nem tristeza. Ao contrário, viver no prazer con­siste nisso: transbordar, transbordar ainda9, o quanto mais possível.

9 Epirrhein, que sempre se traduz por "verter", tem, com muito mais evi­dência do que rhein, um sentido habitualmente intransitivo: "fluir por cima") "transbordar", ou "fluir logo após", "se suceder". Trata-se do verbo utilizado por Heráclito no fragmento 12, onde as almas que exalam o úmido se aproxi­mam das águas dos rios que fluem ainda e ainda mais. Caso se lembre que a alma intemperante é, em si mesma, um tonel perfurado (493 b) e uma peneira (c), com­preende-se que o prazer reivindicado por Cálicles possa consistir tanto em fluir quanto em verter. Eis o motivo de Sócrates se sentir autorizado a tirar as conse­qüências fisiológicas que se impõem: na frase que se segue, todos os termos ser­vem para designar, no corpus médico, por exemplo, a secreção e a excreção.

374 Documentos

Sócrates: Mas, forçosamente, se se entorna muito, muito se per­de e grandes são os orifícios para as excreções.

Cálides: Sem dúvida alguma! Sócrates: Então você quer se referir à vida de um pluviano* das

torrentes10, não à de um morto nem à de uma pedra!

". Pluviano (Pluvianus), aves caradriifomes, de que se conhecem várias es­pécies, P. aegypticus, representativa do gênero, freqüente nas margens dos rios e

lagos. [N. da T.]

10 Por que um kharadrios? O escoliasta pensa que o "pluviano" é um pás­saro que regurgita a água que acaba de engolir, costuma-se representá-lo como um glutão; tirando o máximo proveito dessa passagem, M. Canto traduz como ado­raríamos comentar: "um pluviano que come e excreta ao mesmo tempo" - mas nenhuma história natural, antiga ou moderna, nos fornece a menor confirmação. Também gostaria de sugerir, reencontrando a observação de T. Irwin, que se deve levar em consideração a própria palavra; o nome do kharadrios vem de kharadra, que designa o leito cavado por um riacho na montanha (também se diz que é um pássaro que constrói seus ninhos nas ravinas), e, por extensão, uma fossa para o escoamento/transbordanlento de águas: a palavra kharadrios possui, no que diz respeito ao som e à eponímia, algo torrencial; é o pássaro que transvasa.

Platão, Córgias 375

Page 189: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

METAFÍSICA (livro Gama, IV, 1003 a21-1012 b31)

Aristóteles

CAPÍTULO 1

Há uma ciência que elabora a teoria do ente enquanto ente, [1003 a] e do que lhe pertence em si mesmo.

Ora, esta ciência não é idêntica a nenhuma das ciências ditas parciais: pois nenhuma dentre elas trata, em sua totalidade, do ente enquanto ente, mas após ter isolado uma parte do ente, é, no que concerne ao ente, do acidente que elas elaboram a teoria, tal como fazem as ciências matemáticas.

Mas como, por outro lado, procuramos os princípios e as cau­sas mais elevadas, é evidente que é de uma certa natureza que eles devem ser princípios e causas, na medida em que tal natureza se reporta a si própria. Se, então, aqueles que buscavam os elementos dos entes, bus­cavam também esses princípios, é necessário que esses elementos se­jam elementos do ente não por acidente, ~as enquanto entes.

De tal modo que cabe a nós apreender as primeiras causas do ente enquanto ente.

CAPÍTULO 2

o ente se diz de múltiplos modos, mas relativamente a uma uni­dade, a uma certa natureza única, ou seja, de um modo não homôni­mo: exatamente como tudo que é dito "saudável" se diz relativamen­te à saúde: porque a conserva, porque a fornece, porque é dela o sig­no, ou porque a recebe; e o que é dito "medicai", se diz relativamente à [1003 b 1 medicina, pois isto é dito medicinal, porque tem a medici­na; isso, por ser naturalmente apto à medicina; aquilo, por ser obra da medicina; e assim podemos encontrar muitas Outras maneiras de

Aristóteles, Metafísica 377

Page 190: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

dizer, semelhantes a estas. Assim, também o ente se diz de múltiplos modos, mas relativamente a um princípio único: com efeito, estes são ditos entes enquanto essências; esses, porque são afecções da essência; aqueles, porque constituem um caminho para a essência, ou destrui­ções, privações, qualidades, produções, gerações, seja da essência, seja das coisas que são ditas relativamente à essência; ou ainda negações de uma dessas coisas ou da própria essência: e eis porque dizemos que o não-ente é não-ente.

Ora, exatamente como de tudo o que é dito "saudável" há uma ciência única, o mesmo ocorre, também, com as demais ciências. Pois a uma ciência não cabe apenas teorizar, sendo uma, sobre o que é dito pertencer a uma unidade, mas também sobre o que é dito estar em relação com uma natureza única. pois dizemos que isto também, de uma certa maneira, pertence a uma unidade. É, portanto, evidente que, também no que tange aos entes, cabe a uma só ciência elaborar a sua teoria enquanto entes.

Ora, em todos os casos, a ciência é, eminentemente, ciência do que é primeiro, daquilo de que depende o resto e por meio do que nós o dizemos. Se, então, tal é a essência, será preciso que das essências o filósofo apreenda os princípios e as causas.

Por outro lado, de todo gênero há apreensão e ciência, únicas porque o gênero é único, como, por exemplo, na ciência das letras, que é única, e que deve elaborar a teoria de todos os sons articulados. Eis porque pertence a uma única ciência, no que tange ao gênero, elabo­rar a teoria de todas as espécies possíveis do ente, e também das espé­cies das espécies. Assim, vamos supor que o ente e o um sejam uma mesma coisa e uma só natureza, na medida em que se implicam mu­tuamente como o princípio e a causa, e não porque seriam designa­dos por um único termo (mas, mesmo se fossem compreendidos de modo idêntico, não haveria qualquer diferença; ao contrário, a tarefa seria ainda mais fácil) - é, com efeito, a mesma coisa "homem um", "homem ente" e "homem"; "o homem é e homem e homem um": este redobramento da expressão não indica nada de diferente; e é evidente que não há distinção nem no que tange à geração nem no que tange à corrupção, e exatamente o mesmo ocorre no que diz respeito ao um; de tal modo que, visivelmente, o que se reúne a ele significa a mesma coisa, pois o um não é outra coisa senão o ente, que viria se somar ao um; além disso, não é por acidente que a essência de cada coisa cons-

378 Documentos

titui uma unidade e que, de igual modo, ela é o que é. Assim, há tan­tas espécies do um quanto há espécies do ente; e cabe a uma ciência única, em seu gênero, considerar o "o que é", ou seja, o mesmo, o semelhante e as outras coisas afins. E quase todos os contrários se reduzem a este princípio (mas [1004 a] nós já os consideramos, no Tra­tado dos contrários).

E existem tantas partes da filosofia quanto, precisamente, forem as essências; de modo que, necessariamente, há, entre estas partes, uma filosofia primeira e uma que se segue a esta; com efeito, o ente e o um contêm, imediatamente, gêneros. Eis porque as ciências os acompa­nharão, pois o filósofo é como aquele que nomeamos de matemáti­co: esta ciência também contém partes, e há uma primeira ciência, uma segunda ciência, e outras seguidamente, nas matemáticas.

E visto que cabe a uma ciência única considerar os opostos, e que, por outro lado, ao um se opõe o plural (além disso, cabe a uma ciên­cia única considerar a negação e a privação, pois, noS dois casos, é considerado o um do qual se faz a negação ou a privação, quer se tra­te da negação pura e simples - quando falta o predicado - ou da privação segundo um gênero; neste último caso, para o um em ques­tão, é a diferença específica que se reúne ao que ocorre na negação, pois a negação indica a ausência do predicado em apreço, ao passo que, na privação, intervém uma certa natureza subjacente, da qual a privação é afirmada), ao um se opõe, portanto, o plural, de modo que os termos que se opõem àqueles que foram mencionados - o outro, o não-semelhante, o desigual e todo os outros que podemos dizer ou bem com a ajuda desses termos ou bem com a ajuda do plural e do um -, cabe à ciência supracitada conhecê-los; entre os opostos, mes­mo a contrariedade é algo que nos remete ao um: com efeito, a con­trariedade é uma diferença, e a diferença uma alteridade.

Em conseqüência, visto que o um se diz de modo múltiplo, estes termos também serão ditos de modo múltiplo, e, no entanto, cabe a uma única ciência conhecer a todos. Pois não é porque se diz de modo múltiplo que temos uma outra ciência; mas se os modos de dizer não são remetidos nem a uma unidade nem são tomados relativamente a uma unidade, é só então que temos outra ciência. Visto que todos es­tes termos são tomados em relação ao primeiro (por exemplo, tudo o que se diz um, se diz relativamente ao primeiro um), é preciso afirmar que assim também ocorre com o mesmo, o outro e os contrários; em

Aristóteles, Metafísica 379

Page 191: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

conseqüência, tendo dividido cada termo em tantos modos quanto é possível dizê-lo, é, assim, em relação ao termo primeiro que é preciso explicar como, em cada predicação, o predicado se diz relativamente ao termo que se predica. Com efeito, uns serão ditos de tal modo por­que o têm, outros porque o fazem, outros segundo outros modos si­milares. Vê-se, então, como se disse nas Aparias, que cabe a uma ciên­cia única a possibilidade de dizer tanto essas coisas quanto a essência (este foi um dos pontos discutidos nas objeçães), e que cabe ao filóso­

fo elaborar a teoria de tudo. [1004 bJ Com efeito, se não cabe ao filósofo, a quem caberá saber se Só­

crates é a mesma coisa que Sócrates sentado, se há um contrário para cada termo, ou o que se entende por contrário, ou de quantos modos ele se diz? E, de modo semelhante, também para a outras coisas desse mesmo gênero. Então, visto que é do um enquanto um e do ente en­quanto ente, e não enquanto números, linhas ou fogo, que essas coi­sas, tomadas em si mesmas, são afecções, é evidente que cabe a essa ciência saber o que são essas coisas e quais são os seus acidentes. E aqueles que limitam suas perspectivas a estes acidentes, se enganam quanto ao objetivo, não na medida em que não filosofariam, mas por­que a essência, sobre a qual nada compreendem, é anterior. Visto que, como também existem afecções próprias ao número enquanto núme­ro, tais como o impar, o par, a comensurabilidade, a igualdade, o ex­cesso, a falta, e que isso pertence ao número, quer o tomemos em si mesmos, quer em suas relações (e outros, de igual modo, são próprios ao sólido, ao imóvel e ao que é movido, ao fato de terem ou não peso), do mesmo modo, há afecções próprias ao ente enquanto ente, e é jus­tamente sobre essas questões que cabe ao filósofo examinar a verda­de. Eis aqui um indicativo: os dialéticos e os sofistas se revestem com a mesma forma do filósofo; mas a sofística é uma sabedoria apenas aparente e os dialéticos, sobre todas as coisas, sem exceção, fazem dialética; ora, o ente é comum a tudo, e os dialéticos sobre todas as coisas fazem dialética, evidentemente porque é bem este o domínio da filosofia. Pois sofística e dialética giram em torno do mesmo gênero que a filosofia, mas esta difere da dialética pela orientação de sua ca­pacidade, e da sofística pela escolha do modo de vida; a dialética co­loca em questão justamente o que a filosofia conhece, a sofística pa­

rece mas não é. Além disso, a segunda série de contrários é a privação, e todas

se reduzem ao ente e ao não-ente, ao um e ao múltiplo, por exemplo:

380 Documentos

o repouso envia ao um, o movimento ao múltiplo. Por outro lado, quase todo mundo admite que os entes e a essência são constituídos de con­trários; todos ao menos dizem que os princípios são contrários: o ímpar e o par, para uns; para outros, o quente e o frio; para outros, o limite e o ilimitado; para outros, o amor e o ódio. Todos os outros contrá­rios parecem também se reduzir ao um e ao múltiplo (admitindo que se tenha feito esta redução), e, por outra parte, é sem qualquer exce­ção [1005 a] que os princípios que encontramos nos outros pensado­res se prestam, por assim dizer, a estes gêneros. Fica assim claro que, também por estas razões, cabe a uma ciência única elaborar a teoria do ente enquanto ente. Pois todas as coisas são contrárias ou feitas de contrários, e o um e o múltiplo são os princípios dos contrários. Eles são objetos de uma ciência única, quer se digam pertencentes a uma unidade ou, como é provavelmente verdade, quer não se digam como tal. E se, por um lado, o um se diz de modo múltiplo, é relativamente à sua primeira acepção que se dirão os outros, tal como, por exem­plo, os seus contrários; por essa razão (mesmo que o ente - ou o um - não seja universal, isto é, o mesmo em todos os casos, mas, dito de outro modo, separado - o que, de fato, sem dúvida, não é: ao con­trário, é ora em relação a uma unidade, ora em relação ao que o se­gue), e precisamente por esta razão, não cabe ao geômetra considerar o que é o contrário, o perfeito, o um, o ente, o mesmo ou o outro, a não ser por hipótese. Portanto, é evidente que cabe a uma única ciên­cia elaborar a teoria do ente enquanto ente e do que lhe pertence en­quanto ente, assim como é evidente que cabe à mesma ciência elabo­rar a teoria não apenas das essências, mas do que pertence às essên­cias, do que diz respeito aos atributos que dissemos e do que diz res­peito ao anterior e ao posterior, ao gênero e à espécie, ao todo e à parte, e às outras correlações deste tipo.

CAPíTULO 3

É preciso dizer se cabe a uma ciência única ou a duas ciências diversas elaborar a teoria do que se chama, em matemática, de axio­mas, e da essência. Ora, é óbvio que o exame dos axiomas também compete à ciência única, que é, de fato, a do filósofo. Com efeito, os axiomas pertencem, sem exceção, a todos os entes, e não a um gênero particular, separado dos outros e com características próprias. E to-

Aristóteles, Metafísica 381

Page 192: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

dos os entes se servem destes axiomas, pois dizem respeito ao ente enquanto ente, e cada gênero é um ente; mas só se servem dos axio­mas na medida em que lhes interessa, ou seja, até onde se estende o gênero sobre o qual fazem incidir as suas demonstrações; em conse­qüência, visto que é manifesto que os axiomas pertencem a todas as coisas enquanto entes (pois isso é tudo o que elas têm em comum), elaborar a sua teoria cabe também àquele que quer conhecer o ente enquanto ente. Eis porque ninguém que se dirija a um domínio parti­cular tenta enunciar a menor coisa sobre eles, se são verdadeiros ou não, nem o geômetra nem o aritmético, à diferença do que se passa com alguns físicos, que o fazem não sem aparentar razão: com efeito, apenas os físicos acreditavam ter por alvo a natureza em sua totali­dade, e, portanto, o ente. Mas, como ainda existem alguns que se po­sicionam acima dos físicos (pois a natureza é apenas um gênero do ente), é a quem elabora uma teoria universal, e a quem elabora uma teoria da essência primeira, que caberá, de igual modo, a investigação sobre os axiomas. Pois a física é também uma [1005 b] sabedoria, mas não primeira. E todas as tentativas de certos homens que se referem à verdade, querendo saber como ela nos é dada, é, de fato, por falta de formação em análise que são feitas; com efeito, é preciso, nessa ques­tão, já dispor de uma saber, e não se colocar à procura quando se pretende tratar do assunto. Pois é manifesto que cabe ao filósofo, ou seja, àquele que de acordo com a sua natureza reflete sobre toda es­sência, examinar também o que diz respeito aos princípios dos ra­ciocínios; e cabe àquele que em cada gênero excele dizer os princípios mais estáveis de sua atividade, de sorte que o melhor conhecedor dos entes enquanto entes dirá, também, os princípios mais estáveis de to­das as coisas. Este é o filósofo.

Além disso, o princípio mais estável de todos é aquele a respeito do qual não há erro possível; com efeito, é necessário que um tal prin­cípio seja, ao mesmo tempo, o mais conhecido (pois todos se enganam sobre o que não conhecem) e independente de qualquer outro. Com efeito, o princípio que deve, necessariamente, ter em posse aquele que procura compreender um ente qualquer, não pode depender de nenhum outro princípio; e o que é necessário conhecer, para quem conhece o que quer que seja, é necessário que o conheça desde o início. Que, portanto, um princípio deste gênero é, dentre todos, o mais estável, eis o que é evidente. Mas qual é esse princípio, nós agora podemos di-

382 Documentos

zê-Io: é impossível que o mesmo, simultaneamente, pertença e não per­tença ao mesmo e segundo o mesmo (e todas as outras determinações que poderíamos acrescentar, devemos considerar que são acrescenta­das para responder às dificuldades do discurso); este é o mais estável, sem exceção, de todos os princípios: ele é, com efeito, determinado como nós o dissemos. Pois é impossível, a quem quer que seja, sus­tentar que O mesmo é e não é, como alguns acreditam que Heráclito tenha dito. Pois não é necessário que aquilo que alguém diz, seja tam· bém, por esse alguém, sustentado. Se, então, não se admite que os contrários pertençam, simultaneamente, ao mesmo (consideremos que as determinações habituais sejam também acrescentadas a este enun­ciado) e se a opinião que sustenta a contradição é, de fato, uma opi­nião contrária a uma mesma opinião, é evidente que é impossível que o mesmo homem sustente, simultaneamente, que o mesmo é e não é; pois assim ele, que está absolutamente errado quanto a esta ques­tão, teria, simultaneamente, opiniões contrárias. Eis porque todos, elaborando demonstrações, retornam a esta última opinião: pois ela é, por natureza, um princípio, e mesmo o princípio de todos os ou­tros axiomas.

CAPÍTULO 4

Mas existem aqueles que, como dissemos, afirmam a possibili­dade do mesmo ser e não ser a uma só vez, [1006 a] e que afirmam poder sustentar esta posição. Desta proposta se servem, igualmente, muitos daqueles que tratam da natureza. Quanto a nós, acabamos de estabelecer a impossibilidade de ser e não ser simultaneamente, e, por esta via, mostramos que este é o princípio mais estável de todos. Ora, alguns julgam adequado que se demonstre uma tal impossibilidade, mas isto ocorre por falta de formação: pois é um signo confesso de falta de formação não distinguir entre o que é preciso e O que não é preciso demonstrar. Com efeito, por um lado, é impossível haver demonstra­ção para todas as coisas (pois teríamos uma regressão ao infinito, e assim não haveria demonstração); por outro lado, se há coisas de que não se deve procurar demonstração, qual princípio julgam ter, prefe­rivelmente, esta característica, eles não poderiam dizer.

Pode-se, no entanto, demonstrar por refutação que, mesmo nes­se caso, há impossibilidade, desde que o nosso adversário diga algu-

Aristóteles, Metafísica 383

Page 193: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ma coisa; mas se ele nada diz, é ridículo formular uma resposta para aquele que não sustenta discurso sobre coisa alguma, na medida em que, com isto, não sustenta discurso algum; pois um tal homem, en­quanto tal, é, de imediato, semelhante a uma planta. E digo que de­monstrar por refutação e demonstrar diferem, porque aquele que ela­bora uma demonstração, visivelmente reivindica o que está em ques­tão no início; enquanto que, se um outro fosse responsável por uma reivindicação desse mesmo gênero, haveria refutação e não demons­tração. Ora, o ponto de partida, em todos os casos desse gênero, não é o de exigir que se diga que algo é ou não é (pois logo se teria pensa­do na petição de princípio), mas que, pelo menos, se signifique algo para si e para outrem; pois isto é necessário, contanto que se diga al­guma coisa. Pois, para quem não significa, não haveria discurso, nem dirigindo-se a si mesmo nem dirigindo-se a outrem. E se alguém acei­ta significar, haverá demonstração; dede que, com efeito, haja algu­ma coisa de determinado. Mas o responsável não é aquele que de­monstra, mas o que sustenta a investida: pois destruindo o discurso, ele sustenta um discurso.

{Além disso, aquele que admite isso, já admitiu, por isso mesmo, que alguma coisa é verdadeira independentemente de uma demons­tração, de modo que nem tudo será assim e não assim]. Para come­çar, é evidente que esta coisa é verdadeira, ou seja, que a palavra sig­nifica o fato de ser ou de não ser isto, de modo que nem tudo será assim ou não assim.

Além disso, se "homem" significa uma só coisa, digamos que este seja "animal bípede". Por "significar uma só coisa" entendo o seguinte: se isto é um homem, então, contanto que alguma coisa seja um ho­mem, é isto que é ser para um homem. E nada muda se afirmamos que, no momento em que são determinados, "homem" tem outros signifi­cados, pois poderíamos [1006 b] aplicar uma palavra diferente para cada enunciado (para precisar o que pretendo dizer, admitamos que "homem" não signifique mais uma só coisa, mas muitas; para uma den­tre estas o único enunciado é "animal bípede", mas há também mui­tos outros enunciados determinados quanto ao número, pois podemos atribuir uma palavra apropriada para cada um dos enunciados). Mas se assim não se faz e afirma -se que significa uma infinidade de coisas, é evidente que não haverá discurso; pois não significar uma coisa úni­ca equivale a nada significar, e se as palavras não significam, elimina­se a possibilidade de se dialogar uns com os outros, e, em verdade,

3R4 Documentos

\

consigo mesmo: pois nada podemos pensar quando não pensamos em algo de único, e se pudermos pensar, é porque teremos atribuído um termo único a este algo.

Admitamos, como ficou dito no começo, que uma palavra sig­nifica alguma coisa, e mesmo que significa uma só coisa. Nesse caso, não se pode admitir que "ser para um homem" significa o mesmo que "não ser para um homem", se "homem" significa não apenas por atri­buição a uma só coisa, mas uma só coisa; pois isto, significar por atri­buição uma só coisa, nós não consideramos como sendo o mesmo que significar uma só coisa, porque então "cultivado", "branco" e "ho­mem" significariam uma só coisa, de modo que todas as coisas seriam uma; com efeito, elas seriam sinônimas. E não seria possível ser e não ser a mesma coisa, a não ser por homonímia, como se aquele que nós chamamos de homem, outros chamassem de não-homem; mas a difi­culdade não consiste em admitir que o mesmo, simultaneamente, seja e não seja homem no que concerne ao nome, mas no que diz respeito à coisa. Ora, se "homem" e "não-homem" não diferem na significa­ção, evidentemente "não ser para um homem" não difere de "ser para um homem", de modo que ser para um homem será ser para um não­homem: pois será uma só coisa (com efeito, é isto o que significa "ser uma só coisa" - como casaco e sobretudo -, pois a definição dos dois termos é uma só). E, inversamente, se deve ser uma só coisa, "ser para um homem" e "ser para um não-homem" significam uma só coisa; mas mostrou-se que significam coisas diversas. Portanto, se de alguma coisa se pode dizer, com verdade, que é um homem, terá de ser um animal bípede (pois tal é a significação de "homem"); e, se isso é neces­sário, não se pode, portanto, admitir que o sujeito em questão não seja um animal bípede (pois "ser necessário" significa: é impossível que não seja homem). Não se pode admitir, portanto, que seja, simultanea­mente, verdade dizer que o mesmo é um homem e não é um homem.

A mesma argumentação vale também para "não ser um [1007 a] homem". Com efeito, "ser para um homem" e "ser para um não-ho­mem" significam coisas diversas, e "ser branco" também significa algo diferente de "ser homem"; pois o outro termo <"ser para um não­homem"> a isto se opõe ainda mais, de modo que significa algo bem diferente. E se vamos afirmar que "branco" também significa a mes­ma e única coisa que "homem", de novo diremos o que já foi dito: que todas as coisas, e não apenas os opostos, são uma só.

Aristóteles, Metafísica 385

Page 194: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Mas se assim não se admite, segue-se o que sustentávamos, con­tanto que se responda à questão colocada. Se, ao contrário, quando o questionamos a respeito de um termo simples, o que responde acres­centa ainda as negações, neste caso ele não responde ao que foi per­guntado. Pois nada impede que o mesmo não seja homem, não seja branco e não seja uma infinidade de outras coisas; no entanto, quan­do se pergunta se é verdade ou não dizer que isto é um homem, é pre­ciso responder em função do termo que significa uma única coisa, sem acrescentar que é também branco e grande; e, de fato, é impossível enumerar os acidentes, pois são em número infinito; que se enumere todos ou nenhum. Assim, paralelamente, se o mesmo fosse, por mi­lhares de vezes, homem e não-homem, a quem pergunta se é um ho­mem, não se deve responder acrescentando que é, simultaneamente, também um não-homem, a menos que se acrescente, também nesta resposta, todos os outros acidentes, tudo o que ele é e não é. E se as­sim se faz, não se dialoga.

De modo geral, aqueles que assim falam destroem a essência, ou seja, que alguma coisa seja o que é. Pois devem, necessariamente, afir­mar que tudo ocorre conjuntamente, e que ser, para um homem ou para um animal, isto mesmo que cada um é, não é. Com efeito, se deve existir alguma coisa como ser para um homem o que ele é, então isto não será ser para um não-homem ou não ser para um homem (pois se trata aqui, evidentemente, de negações). Pois único era o que se signi­ficou, e era a essência de alguma coisa. Ora, significar a essência equi­vale a dizer que o ser, para esta qualquer coisa, não difere da sua es­sência. Mas se ser para um homem o que ele é, deve significar, para essa qualquer coisa, ser para um não-homem o que ele é ou não ser para o homem o que ele é, então, ser, para esta qualquer coisa, será diferente de sua essência; de modo que eles deverão, necessariamente, dizer que um tal discurso não se refere a coisa alguma, e que tudo se­rá por acidente. Pois é em função disso que se pode distinguir entre essência e acidente: o branco é acidente para o homem porque o ho­mem é branco, sem ser o que é o branco.

Mas se tudo é dito segundo o acidente, t o universal t não será, em hipótese alguma, primeiro, na medida em que o acidente sempre significa que a predicação se faz em relação a um sujeito. Seria, en­tão, necessário prosseguir [1007 b] ad infinitum. Mas isso é impossí­vel: pois não se reúne mais de dois termos. Com efeito, o acidente não é acidente para um acidente, salvo quando os dois acidentes são, con-

386 Documentos

I "

juntamente, acidentes de um mesmo; quero com isso dizer, por exem­plo, que o branco é instruído e que o instruído é branco na medida em que ambos são acidentes de homem. Mas não é desta forma que Sócrates é instruído, no sentido em que os dois predicados são, am­bos, acidentes para um terceiro termo. Pois, então, os acidentes são ditos tanto no primeiro sentido quanto no segundo; e todos os acidentes que são ditos no mesmo sentido de "branco é acidente de Sócrates", não poderão ser, infinitamente, religados ao termo primeiro, como por exemplo: um outro termo acidente de branco, ele mesmo acidente de Sócrates. Com efeito, uma unidade não pode surgir de termos toma­dos conjuntamente. Para dizer a verdade, mesmo para branco um outro termo não será acidente, o instruído, por exemplo: pois este não é, de forma alguma, mais acidente daquele do que aquele deste. E, simulta­neamente, definiu-se que se certos acidentes o são neste sentido, ou­tros O são como no sentido de instruído para Sócrates: no que concerne a todos aqueles que o são neste segundo sentido, não há acidente que seja acidente de um acidente; diferentemente de todos aqueles que são acidentes no primeiro sentido; de modo que nem todos os termos se­rão ditos segundo o acidente. Haverá, portanto, um termo para sig­nificar também a essência. E se for o caso, mostrou-se que é impossí­vel que termos contraditórios sejam predicados ao mesmo tempo.

Mais ainda, se os termos contraditórios são todos, simultanea­mente, verdadeiros em relação ao mesmo sujeito, é evidente que to­das as coisas, sem exceção, serão uma só. Com efeito, a mesma coisa será uma trirreme, um muro e um homem, se é possível afirmar ou negar, de todo sujeito, um predicado qualquer; como são, precisa­mente, constrangidos a admitir os que endossam o discurso de Protá­goras. Se, de fato, parece a alguém que o homem não é trirreme, é manifesto que ele não é trirreme; de tal modo que ele o será também, se ao menos a contraditória é verdadeira. E, assim, chegamos ao "to­das as coisas reunidas" de Anaxágoras: de modo que nada que seja um subsiste verdadeiramente. Todos parecem, destarte, referir-se ao indeterminado; e acreditando referir-se ao ente, é do não-ente que falam. Pois o ente em potência, e não em ato, é o indeterminado. Em todo caso, eles devem, ao menos, declarar de todo sujeito tanto a sua afirmação quanto a sua negação. Com efeito, isso é um absurdo, pois se a cada sujeito deve pertencer a negação de si próprio, a negação de algo de outro que não lhe pertence, também não deve lhe pertencer.

Aristóteles, Metafísica 387

1

Page 195: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Quero com isso dizer que, por exemplo, se é verdade dizer, a respeito de homem, que é não-homem, evidentemente é também verdade di­zer que é não-trirreme. Então: se, com efeito, tem-se a sua afirmação, necessariamente tem -se tam bém a sua negação; ora, se a afirmação da trirreme não é atribuída a algo, a negação da trirreme o será, pelo menos, mais do que a negação de homem. Se, [1008 a] portanto, a ne­gação do homem é atribuída a algo, a da trirreme também o será: se esta última é atribuída a algo, então a sua afirmação também o será.

Eis O que ocorre a quem endossa esse discurso, e também que não é necessário afirmar ou negar. Se é verdade dizer" homem e não-ho­mem", evidentemente também teremos: "nem homem nem não-ho­mem". Pois dos dois termos tem-se, certamente, duas negações; mas uma vez admitindo que o primeiro enunciado, constituído dos dois termos, seja único, o segundo, que lhe é oposto, seria também único.

Além disso, ou bem é assim para todos os casos: e tem-se, a uma só vez, branco e não-branco, ente e não-ente, e do mesmo modo para as outras afirmações e negações; ou bem não é assim, e é apenas para algumas afirmações e negações, e não para outras. Se não é p.ara to­das, as outras fariam, entre elas, um acordo. Mas se é para todas, uma nova alternativa se impõe: ou bem de todos os sujeitos que se pode afirmar, pode-se também negar; e de todos que se pode negar, pode­se também afirmar; ou bem dos que se pode afirmar, pode-se tam­bém negar, mas não se pode afirmar de todos os que se pode negar. Neste caso, sustentar-se-ia algo como o não-ente. E se o fato de não ser é algo estável e conhecido, mais conhecido ainda será o enuncia­do positivo que lhe é oposto. Mas se de tudo o que se pode negar, pode-se, de igual modo, afirmar, ou bem se diz a verdade quando se elabora enunciados separados, por exemplo, "branco" e a seguir "não branco", ou bem não se diz a verdade. A princípio, se quando os enunciamos separadamente não se diz a verdade, então não os dize­mos, e nada é. Mas sobre os não-entes, como emitiriam um som ou dariam um passo? Além disso, tudo seria um, como foi dito mais aci­ma, e a mesma coisa seria homem, deus, trirreme e seus contrários. E se o mesmo ocorre em cada sujeito, eles em nada diferem uns dos outros: pois se diferem, essa diferença será algo de verdadeiro e de próprio. Mas, de igual modo, se é possível dizer a verdade quando os enunciamos separadamente, segue-se, além do que acabamos de dizer, que todos diriam a verdade e todos diriam o falso, e nós mes­mos concordamos que dizemos o falso. Ao mesmo tempo, é manifes-

388 Documentos

to que um tal face-a-face gira em torno de nada: pois ele nada diz. Com efeito, ele não diz "assim" nem "não assim", mas de uma só vez "assim e não assim". E, de fato, em sentido inverso, nega todas as duas: ""nem assim nem não assim": pois, do contrário, logo se teria algo de determinado.

Além disso, se quando a afirmação é verdadeira, a negação é falsa; e quando esta última é verdadeira, a afirmação é falsa, não se poderia, simultaneamente, afirmar e negar, com verdade, [1008 b] a mesma coisa. Mas talvez fosse possível dizer que foi isso o que se pos­tulou no início.

E mais: aquele que sustenta que as coisas se passam ou que não se passam de tal modo, declara, de fato, o falso; enquanto que aquele que sustenta, ao mesmo tempo, as duas possibilidades, diz a verdade? Pois se o último diz a verdade, então, o que está sendo dito com "tal é a natureza dos entes"? Mas, se não diz a verdade, e se, ao contrário, aquele que sustenta a primeira posição diz, preferivelmente, a verda­de, então, os entes terão um tal modo de ser, e isto será algo de ver­dadeiro que não será, ao mesmo tempo, não verdadeiro. Mas, se to­

dos, com a mesma intenção, dizem o falso e dizem também a verda­de, não será possível a este tipo de homem nem se pronunciar nem elaborar enunciados; pois diz, ao mesmo tempo, isto e não-isto. E se nada sustenta, e crê de igual modo que não crê, em que difere dos se­res puramente naturais?

Assim, pois, fica no mais alto grau evidente que, daqueles que sustentam este discurso e também outros, nenhum se encontra em tal posição: com efeito, por que vai um homem até Mégara em vez de repousar, acreditando que para lá se dirige? Por que, numa manhã bem cedo, tampouco caminha na direção de um poço ou de um precipício, se se depara com um em seu percurso? Ele desconfia, isso é visível, co­mo alguém que não acredita que é igualmente bom e não bom lá. En­tão, evidentemente, ele decide que uma opção é melhor; a outra é não melhor. E, assim sendo, é necessário que ele admita que este é homem, aquele não-homem; isto doce, aquilo não doce. Com efeito, ele não visa e não admite tudo por igual, quando, convencido de que é me­lhor beber a água e ir ver um homem, logo trata de fazer isso mesmo. No entanto, isso devia parecer-lhe indiferente, se o mesmo fosse, igual­mente, homem e não-homem. Mas, como dissemos, não há quem não evite certas coisas e outras não. De modo que, segundo parece, todos

Aristóteles, Metafísica 389

~ I .~

Page 196: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

se asseguram de que as coisas se dão de um só modo, senão acerca de tudo, pelo menos acerca do que é melhor e pior.

E se sobre isso não constituem um saber, mas uma opinião, de­veriam, ainda mais, cuidar da verdade, tal como se deve cuidar da saúde, ainda mais, quando se está doente do que quando se desfruta de boa saúde; de fato, aquele que tem uma opinião, comparado àque­le que possui um saber, não desfruta de saúde perfeita no que se refe­re à verdade.

Além disso, que tudo seja, contanto que se queira, assim e não assim; em todo caso, a natureza dos entes admite o mais e o menos: pois não diríamos, da mesma maneira, que tanto é par o dois quanto o três, tampouco que se enganam, da mesma maneira, aquele que acre­dita que quatro é cinco e aquele que acredita que é mil. Por conseguin­te, se não estão igualmente enganados, é óbvio que um dos dois se en­gana menos, e, portanto, está mais próximo da verdade. Assim, se o mais é o mais próximo, deve haver algo de verdadeiro em "o mais ver­dadeiro é o mais próximo". E ainda que assim não ocorra, sempre ha­verá [1009 a] algo mais estável e mais verdadeiro; que nos libertaria desse discurso, embriagado de si, que impede toda determinação ela­borada pelo pensamento.

CAPÍTULO 5

A mesma opinião encontra-se outrossim na origem do discurso de Protágoras, e é necessário que todos os dois, em conjunto, da mes­ma maneira, sejam ou não sejam. Com efeito, se tudo o que constitui objeto de opinião é verdadeiro, tal como tudo o que aparece, é neces­sário que tudo seja, simultaneamente, verdadeiro e falso: pois muitos sustentam o contrário, e decretam que aqueles que não têm a mesma opinião estão, completamente, errados; assim, é necessário que o mes­mo seja e não seja. E se este é o caso, por reciprocidade é necessário que todos os objetos da opinião sejam verdadeiros: pois, aqueles que erram e aqueles que estão com a verdade têm, uns em relação aos outros, opiniões opostas; se, então, as coisas se passam desse modo para os entes, todos estarão com a verdade. Assim, é o mesmo pensa­mento que se encontra, manifestamente, na origem dos dois discursos.

Mas não se discute, do mesmo modo, com todos: é preciso, para uns, a persuasão; para outros, o constrangimento. Por um lado, com

390 Documentos

efeito, para todos aqueles que suste~tam esta posição, na medida em que se encontram em aporia, é fácil obter a cura de seus erros: pois não é a respeito do que dizem, mas sobre o que pensam que se deve afrontá-los. Mas, para todos os que discursam por amor ao discur­so, a cura provém de uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras.

É a partir das observações de coisas sensíveis que, estes mesmos que se encontram totalmente em aporia chegam à opinião que está aqui em questão; a princípio, crendo que os contraditórios e os con­trários são simultaneamente atribuídos, pois vêem os contrários pro­cederem do mesmo: se, então, o não-ente não pode vir a ser, a coisa que possui tais atributos contrários já os tinha, decerto, desde o início; é o que diz Anaxágoras: tudo se acha misturado em tudo; e também Demócrito, pois para ele o vazio e o pleno se encontram, do mesmo modo, em todas as partes, e, dentre estes, um é o ente; outro, o não­ente. Então, daqueles que aqui encontram elementos para sustentar suas opiniões, diremos que, de um certo modo, falam corretamente, mas que, de um outro modo, erram. Com efeito, o ente se diz de duas ma­neiras, de tal modo que há uma maneira em que é possível que algo provenha do não-ente; de outra maneira, não. E que o mesmo, simulta­neamente, é ente e não-ente, mas não segundo o mesmo sentido de ente: pois em potência é possível que o mesmo seja, simultaneamente, os con­trários, mas não em ato. Além disso, nós lhes pediremos que admitam que, entre os entes, há, também, uma outra essência, a qual não perten­ce nem movimento, nem corrupção, nem devir de espécie alguma.

Mas é, igualmente, a partir de coisas sensíveis que alguns [1009 b] chegam à verdade que permeia o que aparece.

Com efeito, eles acreditam que não convém ao verdadeiro ter por critério a maioria ou a minoria (pois a mesma coisa parece ser, quan­do experimentada, doce, para uns; amarga, para outros. De modo que se todos estivessem doentes ou se todos pensassem de modo insensa­to, e apenas dois ou três gozassem de boa saúde ou de bom senso, seriam estes últimos que pareceriam doentes e insensatos, e não os primeiros); além disso, eis no que crêem, a muitos dos seres vivos as coisas parecem o contrário do que parecem a nós, e mesmo quando cada indivíduo se refere apenas a si próprio, não são as mesmas coi­sas que sempre se dão à sensação. Mas quais dentre estas são verda-

Aristóteles, Metafísica 391

1

Page 197: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

deiras ou falsas, não se evidencia. Pois estas não são, de modo algum, mais verdadeiras que aquelas, mas igualmente verdadeiras. Eis porque Demócrito afirma que ou bem nada é verdadeiro, ou bem nada se manifesta a nós. E, de modo geral, pois sustentam que a sensação é o pensamento - a sensação que é, sobretudo, alteração -, eles podem afirmar que o que aparece, enquanto sensação, é, necessariamente, verdadeiro. De fato, é por isso que Empédocles, Demócrito e, por as­sim dizer, todos os outros se acham comprometidos com tais opiniões. Dessa forma, Empédocles afirma que, mudando de estado, muda-se de pensamento: "Nos homens, a inteligência cresce em função do que se apresenta". Em outro lugar afirma: "Tão variada se faz a sua natu­reza, tão variado será o pensamento em função do que o pensar se apresenta a eles." Do mesmo modo, também Parmênides afirma: "Co­mo, com efeito, a cada vez ele torna sua a mistura dos membros va­riados e curvos, assim o espírito se apresenta no homem; pois é a mes­ma coisa, precisamente, o que faz, em todos e em cada um, o homem pensar: a natureza dos seus membros, pois o que predomina é o que pensa." Enumera-se, igualmente, uma sentença de Anaxágoras, trans­mitida por um de seus companheiros, segundo a qual os entes são, para eles, tal como eles os apreendem. Diz-se, outrossim, que Homero pa­rece compartilhar desta opinião, pois ele apresentou Heitor, fora de si sob efeito de um golpe, estendido no chão, com seus pensamentos alterados; o que nos permite supor que, mesmo aqueles que pensam de modo insensato, têm pensamentos, mas não os mesmos. Então, se há pensamento nos dois casos, os entes são, simultaneamente, assim e não assim. Donde provém as mais duras conseqüências. Pois se aque­les que mantém os olhos fixados na possibilidade do verdadeiro - e esses, que acabamos de mencionar, são o que mais amam e pesquisam a verdade -, têm opiniões semelhantes e fazem declarações sobre a verdade, como seria possível, ao que começa a filosofar, evitar o de­sanimo? Pois seria como perseguir pássaros em vôo, ao invés de pro­curar a verdade.

O que causa tal opinião reside no fato de eles visarem a [1010 a] verdade no que diz respeito aos entes, embora sustentassem que os entes são apenas os sensíveis. Ora, nestes entes é que se encontra, ampla­mente, a natureza do indeterminado, ou seja, do ente no sentido em que ainda há pouco falávamos. Eis porque falam com verossimilhan­ça, mas sem nada dizer de verdadeiro (é mais conveniente falar assim do que da maneira como Epicarmo se dirigia a Xenófanes). Além dis-

392 Documentos

---1

so, vendo essa natureza inteiramente em movimento - e nada que seja dito, com verdade, sobre o que se modifica, ao menos no que tange ao que se altera em todos os aspectos e de todas as maneiras - não se pode, segundo eles, dizer a verdade. É sobre esta maneira de tomar as coisas que floresceu a mais extrema opinião, defendida por aqueles so­bre os quais falávamos: a opinião daqueles que declaram heraclitizar, e tal como deve ter pensado Crátilo, que, para arrematar, acreditava que não era preciso nada dizer, bastando movimentar o dedo. Ele re­criminava Heráclito por dizer que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio; nem mesmo uma vez, acreditava ele.

Mas nós, também a respeito desse discurso, diremos que o que se modifica, no momento em que se modifica, fornece uma autêntica razão para não se crer que, de fato, seja. No entanto, isto é, pelo me­nos, discutível. Com efeito, o que se perde, guarda algo do que se per­deu, tal como é necessário que o que vem a ser já seja; e, de um modo geral, se ocorre destruição, algo do ente subsistirá; e, se algo vem a ser, aquilo do qual teve proveniência e aquilo em função do que há en­gendramento serão necessariamente, e esse processo não pode se pro­longar ad infinitum.

Mas, deixando esta questão de lado, diremos que modificar-se segundo a quantidade não é a mesma coisa que modificar-se segun­do a qualidade. Não há permanência segundo a quantidade, certo, mas é em função da forma que conhecemos, sem exceção, todas as COIsas.

Além disso, temos o direito de dirigir, àqueles que defendem esta posição, a seguinte reprimenda: vendo se comportar assim, mesmo no que tange apenas às coisas sensíveis, apenas um pequeno número dentre elas, declaram a mesma coisa à propósito do universo inteiro; pois a região do sensível que nos circunda é a única a estar, sem cessar, sub­metida à destruição e ao vir-a-ser, mas ela não passa de uma Ínfima parte, por assim dizer, do todo, de modo que teriam sido mais justos se deixassem essa minoria em proveito do resto, ao invés de condenar todo o resto em função desta minoria. Além disso, é evidente que po­deríamos dizer, contra eles, exatamente o que já dissemos; com efei­to, é preciso mostrar-lhes, e disso lhes persuadir, que existe uma na­tureza sem movimento.

Em todo caso, para aqueles que afirmam, ao mesmo tempo, "é" e "não é", impõe-se, como conseqüência, dizer que tudo está, de pre-

Aristóteles, Metafísica 393

i 1

Page 198: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ferência, em repouso, ao invés de em movimento; com efeito, não há nada no que algo se transforme, pois tudo, sem exceção, pertence a tudo.

Além disso, no que diz respeito à verdade, no afã de recusar a alegação de que é verdadeiro tudo [1010 b] o que parece, a princípio nós recusamos, também, que seja falsa a sensação que diz respeito ao que lhe é próprio, mas acrescentamos que o que aparece como repre­sentação não é idêntico à sensação.

Assim, ficamos surpresos com o fato de eles estarem confusos, querendo saber se as grandezas e as cores são tais como aparecem, em tamanho e em tonalidade, àqueles que estão distantes ou àqueles que estão próximos, àqueles que estão em bom estado de saúde ou àque­les que estão doentes; e, para saber qual dos dois é pesado, o que apa­rece como tal aos fracos ou aos fortes; e, se é verdadeiro, o que apare­ce como tal aos que dormem ou àqueles que estão despertos. Pois é evidente que eles não levam essas perguntas a sério; de fato, ninguém que, estando na Líbia e se convença uma noite que está em Atenas, se põe a caminho do Odeon.

Além disso, quanto ao que vai se produzir, como Platão também o declara, a opinião do médico e a.do ignorante não são, decerto, igual­mente decisivas, por exemplo, no que concerne àquele que vai ou não gozar de boa saúde.

E, por outro lado, entre as próprias sensações, a sensação do que é estrangeiro e a do que é próprio; ou ainda, a sensação do que é pró­ximo e a do que é relativo ao próprio sentido, não são igualmente decisivas: sobre a cor, é a visão, não ° gosto; sobre o sabor, é o gosto, e não a visão. Nenhuma dentre estas, no mesmo instante, para o mes­mo objeto, nos permite afirmar que ocorre, simultaneamente, assim e não assim. Mas mesmo em um outro momento, não é, em todo caso, no que diz respeito à afecção que uma sensação diverge de outra, mas quanto ao fato da afecção ser um acidente; quero dizer, por exemplo, que o mesmo vinho poderia parecer - que ele tenha se transformado ou que o corpo tenha se modificado - tanto doce quanto não doce: mas, certamente, jamais o doce, tal como é quando de fato o é, se modifica; ao contrário, a sensação sempre diz a verdade a esse respei­to, e o doce que será é, necessariamente, tal como o doce que, de fato, é. Eis aqui o que ruína todos os discursos sem exceção: tal como não há essência de nada, nada ocorre por necessidade; o necessário não

394 Documentos

.-1 ,

pode ser assim e de um outro modo, de sorte que se algo é por neces­sidade, ele não será assim e não assim.

E, generalizando ainda mais, se é verdade que apenas o sensível é, nada seria sem que existissem os seres animados; pois não haveria, com efeito, sensação. Neste caso, é, sem dúvida, verdade que nem os sensíveis nem as impressões percebidas seriam (pois trata-se aqui da afecção daquele que sente); mas que os substratos, mesmo quando não há sensação, não sejam - uma vez que são eles que determinam a sensação - é impossível. Com efeito, a sensação não é, certamente, sensação de si mesma; algo além da sensação também existe e é, ne­cessariamente, anterior à sensação: pois o que move é, por natureza, anterior ao que é movido; e estes termos, [1011 a] certamente, podem ser ditos relativamente um ao outro, pois isto não elimina nada.

CAPÍTULO 6

Mas existem aqueles que estão em aporia; e dentre estes, aque­les que foram persuadidos por essas teses e aqueles outros que apenas dizem os seus discursos: pois eles procuram quem é o critério do que está em bom estado de saúde, e, em geral, quem será, corretamente, o critério de cada coisa. Se confundir com objeções equivale a se con­fundir no que tange a saber se estamos, agora, adormecidos ou acor­dados; e as aporias desse tipo têm, todas, a mesma capacidade: de todas as coisas, com efeito, essas pessoas reivindicam uma razão, pois pro­curam um princípio e a possibilidade de apreendê-lo através da de­monstração; e, no entanto, que não sejam, com segurança, persuadi­dos, eles deixam transparecer com suas ações. Mas, como dissemos, tal é o seu mal: eles procuram a razão do que não tem razão; com efeito, o princípio de uma demonstração não é uma demonstração. Assim, tais pessoas seriam facilmente persuadidas, pois não é difícil ter disto uma apreensão.

Quanto àqueles que apenas procuram o constrangimento com os discursos, procuram, de fato, o impossível. Com efeito, eles estimam ter o direito de dizer contraditórios tão logo os digam.

Mas, se nem tudo é relativo, e se certas coisas são em si e por si, nem tudo o que aparece pode ser verdadeiro. Com efeito, o que apa­rece, aparece a alguém; de modo que aquele que diz que tudo o que

Aristóteles, Metafísica 395

1 1

Page 199: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

aparece é, sem exceção, verdadeiro, torna todos os entes, sem exce­ção, relativos a alguma coisa. Eis também porque os que procuram o constrangimento nos discursos, mas que estimam, ao mesmo tempo, que devem defender seus discursos, precisam acautelar-se de que o que é não é o que aparece, mas o que aparece a quem aparece, quando aparece, na medida em que aparece e do modo como aparece. Mas se eles sustentam seu discurso sem sustentá-lo assim, não tardarão a di­zer os contrários. Pois o mesmo pode parecer, com efeito, mel para a visão, mas não para o gosto, e, visto que temos dois olhos, é possível que às duas visões, se não são semelhantes, não apareçam as mesmas coisas. Contra aqueles que, em função das razões que já se falou, afir­mam que o que aparece é verdadeiro e que, deste fato, tudo é igual­mente falso e verdadeiro (com efeito, as mesmas coisas não aparecem a todos, e, ao mesmo, não aparecem sempre as mesmas coisas, mas, muitas vezes, os contrários surgem ao mesmo tempo: pois o tato diz dois, quando os dedos se cruzam, enquanto que a visão diz um), res­ponder-se-á: mas não é alguma coisa que aparece a um mesmo órgão do sentido, nem segundo a mesma determinação desse sentido, nem do mesmo modo, nem ao mesmo tempo, de modo que esse algo fos­se, de fato, verdadeiro. Eis porque [1011 b] é necessário, àqueles que discursam não sob o efeito da aporia, mas por amor ao discurso, di­zer que esta coisa não é verdadeira; mas verdadeira apenas para aquele ali. E como já se disse, é necessário que tornem tudo, sem exceção, relativo a alguma coisa, a saber: à opinião e à sensação, de modo que nada foi nem será sem que, primeiramente, alguém a tenha tido como opinião. Mas se, efetivamente, alguma coisa foi ou vai ser, é manifes­to que nem tudo poderia ser relativo à opinião.

Além disso, uma vez dado um termo único, ele é relativo a um termo único ou a um termo determinado; e se uma mesma coisa é, a uma só vez, metade e igual, não é, em todo caso, em relação ao dobro que ela é igual. Além do mais, se relativamente ao que tem uma opi­nião, homem e objeto da opinião são a mesma coisa, homem não será o que tem a opinião, mas o que é objeto da opinião. E se cada coisa deve ser relativa ao que tem uma opinião, o que tem uma opinião será, no que concerne à espécie, um número ilimitado de coisas.

Assim, a opinião mais estável dentre todas é a de que os enun­ciados opostos não são, simultaneamente, verdadeiros: eis o que ficou, suficientemente, explicitado; e também o que ocorre aos que dizem esses enunciados e por que os dizem. Ora, visto que é impossível que

396 Documentos

.~

os dois membros da contradição sejam, simultaneamente, reconheci­dos como verdadeiros no que tange a um mesmo, fica claro que tam­bém não se pode admitir que os contrários pertençam, simultanea­mente, ao mesmo; com efeito, um dos dois contrários é, no mínimo, uma privação; e a privação é uma negação aplicada a uma essência: ela nega a partir de um gênero determinado; se, portanto, é impossí­vel afirmar e negar, simultaneamente, com verdade, é também impos­sível que os contrários sejam predicados simultaneamente, salvo se forem, cada qual, predicados em um sentido, ou um em certo sentido e o outro absolutamente.

CAPÍTULO 7

Mas certamente não se pode tampouco admitir que existe um intermediário da contradição; ao contrário, é necessário ou afirmar ou negar, de um sujeito que é um, um predicado que é um, não impor­tando qual seja.

Isto é, a princípio, claro para quem definiu o que são o verda­deiro e o falso. Com efeito, dizer "o ente não é" ou "o não-ente é" é falso; ao contrário, dizer "o ente é", o "não-ente não é", é verdadei­ro. E eis porque aquele que diz "é" ou "não é" dirá o verdadeiro ou o falso, desde que não se diga "não é ou é" nem apenas do ente, nem apenas do não-ente.

E mais: ou bem haverá um intermediário da contradição, como o cinza entre o branco e o preto; ou bem será, como entre homem e cavalo, o que não é nem um nem outro. Se se estivesse neste segundo caso, não haveria modificação, pois é do não bom ao bom que há modificação, ou do bom ao não bom: mas, em realidade, observa-se constantemente a modificação, e não há, com certeza, modificação que não se dê na direção dos opostos ou do seu intermediário. Mas se o intermediário fosse também o intermediário da contradição, ha­veria uma geração na direção do branco que não se faria a partir [1012 a] do não branco: mas, de fato, isso é o que não se pode notar.

Além disso, tudo o que se pensa, de modo discursivo ou não, o pensamento ou bem o afirma ou bem o nega; isso se manifesta, por definição, cada vez que se diz a verdade ou a falsidade: se o pensamen­to elabora tal ligação, afirmando ou negando, diz a verdade; quando faz de outro modo, diz o falso.

Aristóteles, Metafísica 397

1

Page 200: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

E mais: a todos os contraditórios deve reunir-se um intermediá­rio, se não se fala apenas por falar, de tal modo que não se dirá nem a verdade nem a não verdade. Reunir-se-á um intermediário ao ente e ao não-ente, de tal modo que reunir-se-á uma modificação à geração e à corrupção. Além disso, em todos os gêneros onde a negação traz consigo o seu contrário, haverá também um intermediário: por exem­plo, no caso dos números haverá um número nem ímpar nem não impar. Mas isto é impossível, e fica assim evidente em função da pró­pria definição. Além disso, regressar-se-á ao infinito, e o número dos entes não será apenas aumentado de uma metade, mas de muito mais. Pois será, de novo, possível negar esse intermediário no que tange à sua afirmação e à sua negação, e o termo p~oduzido será algo, pois sua essência é distinta da do intermediário que o precedeu.

E mais: quando, à questão que visa saber se é branco, responde­se "não", negou-se apenas o fato de que isto seja branco: assim, a negação consiste em não ser isto.

Alguns chegam a esta opinião da mesma maneira que outros se afastam da opinião corrente: quando não podem resolver os argumen­tos erísticos, cedendo à argumentação, eles consentem e;n: declarar verdadeiro o que resulta da argumentação. Uns, então, lÍalam sob o

I

efeito de uma tal causa; outros, porque buscam uma razã'o para todas as coisas. Ora, contra todos estes, o ponto de partida se encontra em uma definição; e a definição provém da necessidade de que eles atri­buam significado a alguma coisa: pois o enunciado, do qual a palavra é o signo, torna-se uma definição. E a sentença de Heráclito, dizendo que tudo é e não é, parece tornar verdadeira, sem exceção, todas as coisas, enquanto que a de Anaxágoras parece ser um intermediário da contradição, o que faz com que tudo seja falso: com efeito, quanto ocorre mistura, o produto não é bom nem não bom, de modo que nenhuma verdade se pode enunciar.

CAPÍTULO 8

Após estas definições, é óbvio que os termos que são ditos em um único sentido não podem, também, ser atribuídos a todas as coi­sas, tal como alguns costumam dizer, afirmando, uns, que nada é ver­dadeiro (pois, dizem eles, nada impede que tudo, sem exceção, seja como: "a diagonal é comensurável"); outros, que tudo é verdadeiro.

398 Documentos

Com efeito, o que dizem é quase idêntico ao que diz Heráclito. Pois aquele que diz que tudo é verdadeiro e que tudo é falso diz também, separadamente, cada um desses enunciados; de modo que, se pelo [1012 b] menos são impossíveis as coisas que Heráclito afirma, as coisas que eles dizem também são impossíveis. Além disso, ocorre, visivel­mente, contradições que não podem ser verdadeiras ao mesmo tem­po, tampouco todas falsas; ainda que isso possa parecer mais apreen­sível, conforme o que já se disse.

Mas contra todas as argumentações, sem exceção, deste gêne­ro, deve-se convir, como se disse nas argumentações acima expostas, não que algo seja ou não seja, mas que signifique alguma coisa, de modo que é a partir de uma definição que nós devemos dialogar, ten­do admitido que "falso" ou "verdadeiro" significam alguma coisa. Ora, se não há outra alternativa além de afirmar o verdadeiro e ne­gar o falso, é impossível que tudo seja falso, pois é necessário que um dos dois termos da contradição seja verdadeiro. Além disso, se, com relação a cada coisa, é necessário ou afirmá-la ou negá-la, é impos­sível que os dois membros da contradição sejam falsos; apenas um dos dois é falso.

A todas as argumentações deste gênero, ocorre, certamente, tam­bém o que se repete: que elas destroem a si mesmas. Com efeito, um, dizendo que tudo é verdadeiro, admite como verdadeira também a proposição contrária a esta, e, portanto, que a sua proposição não é verdadeira (pois a proposição contrária nega a verdade desta primei­ra); outro, dizendo que tudo é falso, assevera a falsidade do que ele próprio declara. Mas, se postulam uma exceção, o primeiro para a pro­posição contrária, dizendo que só esta não é verdadeira; o segundo, na medida em que ressalva a sua própria proposição como não sendo falsa, isso não lhes impede de postular proposições verdadeiras e fal­sas em número infinito, pois aquele que diz que a proposição verda­deira é verdadeira, diz a verdade, e isto se estende ao infinito.

E é evidente que aqueles que dizem que tudo está em repouso não dizem a verdade, tampouco dizem a verdade aqueles que alegam que tudo está em movimento. Se, com efeito, por um lado, tudo está em repouso, serão sempre as mesmas coisas que serão verdadeiras e fal­sas; ora, é óbvio que ocorre transformação: pois aquele que fala há pouco não era e de novo não será. Se, por outro lado, tudo está em movimento, nada será verdadeiro: tudo, portanto, será falso; mas já se demonstrou que isto é impossível.

Aristóteles, Metafísica 399

iI

1 \~

Page 201: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Além disso, ° ente muda necessariamente, pois a modificação se faz de uma qualquer coisa a uma qualquer coisa. Mas, certo, não é verdade que tudo esteja, por vezes, em repouso ou em movimento, e nada permaneça constante: de fato, existe alguma coisa que sempre move o que está em movimento; e o primeiro motor é, em si mesmo,

imóvel.

(

400 Documentos

<

VIDAS DOS SOFISTAS (1,479-484)

Filóstrato

Este texto, publicado entre 232 e 238 d.C., constitui o ato de nascimento da "segunda sofística". Seu autor, Flavius Filóstrato, é, por si próprio, por sua vida, sua personalidade, sua obra, um emble­ma da segunda sofística. Para começar, ele pertence a uma família de sofistas profissionais, de pai a filho, sobrinho, genro, ou neto, adoti­vo ou não, de tal modo que a atribuição das obras conservadas não deixa de apresentar certas dificuldades. A Souda (s.v. <l>lÀ6cn:pCX1:oc;, 421-423), distingue três Filóstrato e se refere, a princípio, ao nosso, cronologicamente, o segundo: Filóstrato, filho de Filóstrato, por sua vez filho de Verus, diz o Ateniense (nascido por volta de 170 e morto em torno de 244-249). Nascido em Lemnos, estuda em Atenas com célebres mestres como Antipater - que ele descreverá -, viaja e en­sina em Éfeso, Pérgamo, Antioquia e, de novo, em Atenas - entre aticismo e asianismo. Ele serve ao "filohelenismo" imperial, chegan­do mesmo a exercer um posto senatorial. Sua obra desdobra-se em gêneros novos ou renovados: romance, biografia, cartas, descrições~ discursos. Filóstrato certamente redigiu a Vida de Apolônio de Tiana, sem dúvida para atender a uma solicitação de Julia Domna, mulher de Sétimo Severo e mãe de Caracala, do "círculo" ao qual ele perten­cia em Antioquia 1, e publicado por volta de 220, após o suicídio da

1 Sobre a verdadeira composição desse kyklos que, apesar da magreza dos testemunhos (duas referências em Filóstrato, V.A., I, 3 e V.S., 622, a propósito de Philiscusj e uma referência em Díon, 75, 15,6-7, cf. 77. 18,3), acreditou-se na possibilidade de se fazer a comparação com as cortes italianas do Renascimento, crendo apenas nas audaciosas conjecturas de Victor Duruy (História de Roma, VI, 1879, pp. 91 e ss.), com uma Julia Domna que, para M. Platnauer, reunia, a uma só vez, Catarina de Médicis, Cristina da Suécia e Messalina (The Life and Reign of the Emperor Lucius Septimus Severus, 1918, pp. 144 e 55.), vale se reportar a G.W. Bower50ck, Greek Sophists in the Roman Empire, op. cit., pp. 101·9.

filóstrato, Vidas dos sofistas 401

/'

i i I

!I

i ~

~ I :1

Page 202: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

imperatriz síria, mas antes das Vidas, onde se faz referência a este caso (570); ele é também o autor do Heróico, onde aparecem os fan­tasmas da guerra de Tróia, e da primeira série de Quadros2

.

Traduzo a dedicatória e o início do livro I, que serve como agen­ciamento teórico, antes que tenham início as vidas propriamente di­tas, com Eudóxio de Cnido. Procuro seguir, salvo indicação contrá­ria, o texto grego estabelecido por Kayser, Teubner, Leipzig, 1871, revisado porW. Cave Wright, Loeb, Londres, Cambridge Mass., 1961 (com uma tradução inglesa), e cito a paginação Olearius.

,~ * *

(479) Flavius Philostratus, ao muito ilustre Antonius Gordianus, Cônsul 3

Em tua'* intenção registrei por escrito em dois livros aqueles que filosofaram com a reputação de praticar a sofística4 e aqueles que re-

2 Sobre a identidade de Filóstrato e a atribuição das obrFéOrfservadas sob este nome, o trabalho de base foi realizado por F. Solmsen, s.V. Philostratos, Pau­ly-Wissowa, XX, 1, pp. 125-78. Uma atualização recente encontra-se em G. An­derson, Philostratus, Biography and Belles Lettres in the 3rd Century A.D., Lon­dres etc., 1986, apêndice 1, pp. 291-6. Devemos reunir, à lista do três Filóstrato da Souda, ao menos um quarto, que deverá Ser apontado como o autor da segun­da série de Quadros (Eikones). Mas Simone Follet distingue seis Filóstrato (cita­da de novo por J. Sirinelli, op. cit., nota 1, p. 366).

3 Trata-se, com toda verossimilhança, do futuro Gordiano I, cônsul, depois procônsul da África entre 229 e 238, esta última data é, a uma só vez, a do seu reinado e do seu suicídio, com a idade de oitenta anos. Sobre a outra possibilida­de - que se trata de Gordiano II -, e sua ínfima plausibilidade, ver Bowersock (op. cit., pp. 6-8), que resume os problemas e a situação da crítica. Em todo caso, a dificuldade central reside em saber como a linhagem dos gordianos pode se ligar a Herodes Ático (sobre a hipótese, que não me parece satisfazer o que se diz no texto _ o problema não se encontra em anapheronti, mas em genos - de uma vinculação não genealógica, mas acadêmica, ver o apêndice 2 do Philostratus de Anderson, pp. 297 e ss., e o artigo de Nutton, onde se faz referência a "Herodes

and Gordian", Latomus, 29,1970, p. 25).

* Mantive o pronome em segunda pessoa, procurando, com isso, fazer alu­são ao tom formal de uma dedicatória remetida a um cônsul. [N. da T.]

4 Sophisteuo, diferentemente de sophizo, é formado a partir do radical 50-

phis- (e não soph-), e revela, com um sentido decerto pejorativo para Demóstenes

402 Documentos

1

ceberam O nome de sofistas no sentido próprio do termo: sei que tua família é ligada a essa arte pois tua linhagem remonta a Herodes, o sofistaS; também recordo-me, com freqüência, da conversa sobre os sofistas que mantivemos um dia na Antioquia, no templo do dafnea­n06. Não acrescentei, Zeus me guarde disso, para cada um Q nome de seus ancestrais, salvo quando eram ilustres. Sei que Crítias, o sofista, também não procedia assim e que apenas de Homero fez menção ao pai, pois tratava-se de revelar a maravilha de Homero ter tido por pai um rio7. De qualquer modo, não se sabe grande coisa sobre um ou outro quando se conhece tudo sobre seu pai e sua mãe, mas se ignora suas qualidades e vícios, suas vitórias e fracassos, e se as conquistou por efeito do acaso ou da reflexão. Essa pérola das minhas preocupa­ções, ó ilustríssimo procônsul, também tornará mais leve os fardos do

ou para Aristóteles, a maneira de fazer dos sofistas, para designar, logo a seguir, a prática da profissão, com sua tendência à conferência, em Plutarco ou Pilodemo (cf L.S.]., s.v.).

5 Trata-se de Herodes Ático, sem dúvida o mais célebre, o mais nobre e o mais rico dos sofistas do século lI. Nós o conhecemos, em parte, graças ao pró­prio Pilóstrato, que a ele se refere diretamente, e extensamente, no início do 1. 11 (546-566), não deixando de lhe fazer alusão em outros momentos - "Herodes! Nós outros sofistas não somos mais do que pequenas frações de vós!", teria, por exemplo, exclamado Alexandre Peloplatão, ao ouvi-lo representar o tema "Os feridos de Sicília imploram aos atenienses, que partem em retirada, que os matem." (574). O lugar ocupado por Herodes parece ser a tal ponto det,erminante na esco­lha das personalidades da Segunda Sófística eleitas por Filóstrato, que Anderson propõe designá-los de "Herodes e seu círculo", e, assim, redefine o sofista filos­trateano como "um virtuose da retórica com uma ligação demonstrável a Hera­des" (Philostratus, p. 83, paráfrase de Bowersock, p. 13: "um virtuose da retórica com grande reputação pública"). Sobre o próprio Herodes Ático, vale se reponar a P. Graindoir (Um milionário antigo: Herodes Atticus e sua família, Cairo, 1930) e, agora, a W. Ameling (Herodes Atticus, Hildesheim etc., 2 vol., 1983).

6 O templo de Apolo na Antioquia foi descrito por Filóstrato na Vida de Apolônio de Tiana (I, 16), onde se vê Apolônio reagir contra a falta de seriedade quanto ao que se diz ("Apolo transforma em árvore aqueles que não têm palavra, para que, uma vez como ciprestes, tenham ao menos uma voz" - vingança meta­mórfica das plantas que falam).

7 O rio Meles, perto de Esmirna (cf Plutarco, Vida de Homero, 1,41). Fi­!óstrato instaura, assim, o cuidado com o maravilhoso (thauma) e com a ilustre (endokimon) na cena da mimesis ("Eu faço como Crítias"): dois procedimentos característicos da segunda sofística.

Filóstrato, Vidas dos sofistas 403

,

J

Page 203: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

teu espírito, tal como as drogas egípcias8 do caldeirão de Helena. Sau­dações, condutor de Musas.

(480) Deve-se considerar a antiga sofística como uma retórica filosofante. Ela disserta9 sobre aquilo de que tratam os que filosofam, mas enquanto estes últimos, construindo armadilhas com suas ques­tões e avançando passo a passo em diminutas questões de suas pes­quisas, afirmam que ainda não conhecem, o sofista antigo fala como se soubesse. Em todo caso, ele introduz seus discursos por um "Eu sei", "Eu tenho consciência", "Eu tenho observado há muito tempo", ou: "Nada de certo para o homem". Um igual estilo nos exórdios, realça a nobreza e a resolução do discurso, e uma clara apreensão do ser. (481) A filosofia está em harmonia com a mântica humana que os egípcios, os caldeus e, antes deles, os hindus, constituíram, elaborando hipóte­ses sobre o ser a partir de miríades de estrelas, mas a sofística está em harmonia com a arte dos profetas e dos oráculos. Pois também se pode ouvir o pítico proclamar: "Eu conheço o número e a extensão das areias do mar,,10; "Zeus, que enxerga ao longe, ofereceu uma fortificação em madeira à raça do Tritão" 11 , ou: "Nero, Oreste, Alcme~trici­das!12", e outras coisas análogas, tal como um sofista. '

8 Odisséia, IV, 220. Cf. V.A., VII, 22 (p. 1277) [refere-se a "O ato de nasci­mento da segunda sofística"].

9 'ó'lClÀ€r€LaL, como oberva Aldo Brancacci ("Seconde sophistique, histo­riographie et philosophie", em Le plaisir de parler, op. cit., p. 90, nota 4), tem o sentido técnico de "tratar de uma questão", "dissertar", bem longe da simples dis­cussão (a despeito da tradução w.c. Wright, "it discuss"), e, sobretudo, da con· versação dialética à moda de Sócrates.

10 Heródoto, 1,147: trata-se da primeira frase da resposta de Apolo à Creso, procurando atestar a confiabilidade dos oráculos, antes de lhes perguntar se era necessário fazer a guerra contra os Persas. A pítia teria respondido à questão: "O que estou fazendo?", a prosaica verdade: "cozer uma tartaruga com uma ovelha", mas sua primeira frase revela a nobreza e a magnitude de seu estilo. Para Apolônio de Tiana, encontra-se, aqui, o modelo do ornamento, como na arte grega, permi­tindo compreender que a nudez do gimnosofista, como a veste em farrapos do cínico, são, finalmente, apenas ornamentos (Vida de Apolônio de Tiana, VI, 11, Pléiade, p. 1227).

11 "Filha do Tritão" é o epíteto de Atena, cuja cidade, Atenas, é protegida pelas fortificações em madeira, que são as embarcações.

12 Suétone, Nero, 39, Cf Vida de Apolônio, IV, 38 (Pléiade, p. 1168).

404 Documentos

A sofística antiga, tomando como tema questões que são tam­bém filosóficas 13, abordou amplamente, e em toda extensão, tais ques­tões: pois dissertava sobre a coragem, sobre a justiça, sobre os heróis e os deuses, e sobre a maneira como foi moldada a forma do mundo. Aquela que veio depois, que não será chamada de nova, pois é antiga, mas, de preferência, de segunda sofística, descreve tipos como o po­bre, o rico, o nobre, o tirano e os casos que se agrupam em uma pa­lavra e que a história apresenta. Górgias de Leontinos, na Tessália, deu origem à antiga; Ésquines, filho de Atrometos, uma vez afastado da vida pública e fixando-se na Cária e em Rodes, deu origem à segun­da. Aqueles que o seguiram, trataram os seus temas segundo as re­gras da arte, e aqueles que seguiram Górgias, fizeram tal como bem lhes pareceu 14

13 Kal: 'tà <PLÀOOO<pOU).!€VU u-rrO'tL 1}€).!€Vll. O verbo hypotithemi na voz mé­dia tem o sentido de "propor-se como tarefa, como objeto de discussão, como tema de argumentação"; é, particularmente, o sentido do termo no Parmênides de Platão, 137 b, quando Parmênides declara: "Gostaria [ ... 1 que eu começasse por mim e por minha hipótese (T\íç E).!auTou í..rrro1}€O"ewç), propondo, por tema, o um em si mesmo (1T€PL 'tou 'evOç ul.nou i.mo&€).!€voç), na medida em que é um ou não, e o que pode disto resultar" IL.S.J., ad loc., m, 2[. Não posso compreen­der o )(u( como W. Cave Wright, como um "mesmo", nem atribuir valor con­cessivo ao particípio ("even when ir propounded philosophical themes"), visto que é uma característica geral da primeira sofística "dissertar sobre o que os fi­lósofos filosofam" (ÚluMr€LaL ).!€V ràp uTrep GJ\I o'l <pLÀOOO<pU\I't€Ç, 480); ouço aqui um "também". Além disso, o termo UTro1}€O"tç vem bem a propósito da se­gunda sofística: eu o traduzi, desta vez, por "caso", em vez de "tema" l ver L.S.)., ad. fac., 11, 1-2] (UTr€'tUTrWaUTO [ ... ] 'tàç EÇ O\lo).!u UTr01}€O"€lÇ: ela "descreve [ ... 1 os casos reunidos assim sob um nome"), seguindo, assim, o sentido retórico mais preciso, consignado por Quintiliano. Voltei ao sentido de "tema", no fim do pa· rágrafo, para fazer jus às lmo{}€O"€lç de que tratam tanto os que seguem Ésquines, quanto os que seguem GÓrgias. Estas traduções determinam a relação entre pri­meira sofística e filosofia, segunda sofística e história, voltar·se-á ao comentário geral, pp. 458-62.

14 Ku'tà 'tO oo'ga\l, que responde à xa"TcX 't€;x\lll\l, "segundo as regras da arte", é ambíguo; a expressão significa: "conforme ao que [Ihesl parece [bom[, como eles julgavam bom de assim fazer"; mas também: "segundo o que parece, conforman­do-se à opinião", em função do sistema de oposição, apresentado no Górgias, em que a retórica não chega sequer a ascender ao estatuto de tekhne [462 b[, e só mantém, como lisonjaria, relação com a doxa, o aparente. Todavia, em sua Vi· das, Filóstrato descreve o estilo de Górgias em termos "técnicos", e se refere a Górgias como o pai da tekhne dos sofistas homotekhnoi (492 s).

Filóstrato, Vidas dos sofistas 405

1

Page 204: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(482) A afluência dos discursos improvisados15 tem sua raiz, di­zem alguns, primeiramente em Péricles, donde a grande reputação de Péricles como orador*; outros falam de Píton de Bizâncio, do: qual Demóstenes dizia ser o único ateniense capaz de se erguer contra sua insolência e suas saraivadas de eloqüência 16; outros ainda alegam que a improvisação é uma descoberta de Ésquines, que, após a sua traves­sia de Rodes a Cária, encantou Mausolo com um discurso improvi­sado. Creio, por minha parte, que Ésquines deve ter realizado o maior número de improvisações, em visitas oficiais ou no cumprimento de suas missões, em suas defesas nos tribunais ou em suas pelejas diante do povo, mesmo que ele só tenha deixado discursos inteiramente re­digidos, para que não ficassem muito diferentes dos discursos prepa­rados de Demóstenes. Mas é a Górgias que remonta a origem da im­provisação: adentrando o palco do teatro em Atenas, ele teve a audá­cia de dizer: "Proponham!"; foi o primeiro a ter ousado alto e forte um tal risco, revelando, com isso, que tudo sabia e que falaria sobre tudo, sempre agindo de acordo com a oportunidade. Esta idéia deve ter-lhe ocorrido pela seguinte razão: Pródico de Ceos havia rpdigido um discurso que não carecia de atrativos; a virtude e o vício ,:,isitavam Héracles sob o aspecto de duas mulheres: uma, adornada com char­me e resplendor; a outra, tal como se encontrava; elas ofereceram a Héracles, ainda muito jovem, uma, a ociosidade e a preguiça, a ou­tra, o suor e o trabalho; esse discurso foi ainda completado por um longo epílogo, (483) e Pródico, em turnê, cobrava por suas sessões, encantando as cidades à maneira de Orfeu e Tamiras 17. Ele conquis-

15 LX€bLwv ÀÓrwv, "discursos improvisados", segue, em grego, a metá­fora das vagas e da fonte: com efeito, o adjetivo OXéÓLOÇ' ("que está próximo", "que diz respeito ao combate com contato"; a seguir, "próximo, imediato, rápi­do", donde "corrente, ordinário", e, tardiamente, "improvisado", segundo a se­qüência exposta no Chantraine) pertence à mesma familia de ox€bLa, a "janga­da", que designa, desde a Odisséia, "uma espécie de embarcação improvisada"; que ainda se encontre a idéia do "tudo contra", expressa pelo advérbio CJX€&Sv em sentido espacial (a reunião) ou temporal (a invenção imediata, a eloqüência ex tempore), fica por conta da possibilidade de se "embarcar" em um discurso improvisado.

* [ ... ] TTÍv rÀw-n-av, "falante", traduzido por "langue" (língua). [N. da T.}

16 São os próprios termos do Sobre a coroa, 136; Píton de Bizâncio, encar­regado por Filipe de uma embaixada a Atenas, teria sido, certamente, defendido por Ésquines. Cf. Vida de Apolônio, VII, 37, p. 1290)

406 Documentos j

tou uma grande reputação em Tebas, uma maior ainda na Lacede­mônia, ou seja, a de alguém que havia encontrado uma nova maneira de ensinar essas coisas para grande proveito dos jovens. Mas Górgias, ridicularizando Pródico por sustentar um discurso vazio e repetitivo, se abandonava à inspiração do momento. Ele não deixou, decerto, de provocar a inveja; havia em Atenas um certo Cairefon (não aquele que a comédia chamava "amarelo como vime", pois suas preocupações o fizeram sofrer de anemia: aquele de quem falo era muito insolente e fazia brincadeiras obscenas); este Cairefon, para criticar os esforços de Górgias, perguntou-lhe: "Por que então, Górgias, estas favas so­pram o ar no meu ventre e não sopram o fogo?"; e coube a Górgias responder, sem se perturbar com a questão: "Isto cabe a você pesquisar, mas o que sei há muito tempo é que a terra faz brotar férulas'~ para as pessoas como você!,,18.

Os atenienses, observando a terrível habilidade que caracteriza­va os sofistas, interditaram-lhes o acesso aos tribunais, porque faziam

17 A fábula de Pródico, de que trata, de novo, brevemente, Filóstrato em 496 (ver também V.A., onde a fábula é recontada por Tespesion, o gimnosofista egíp­cio; e a carta 73 Kayser [= 13 Olearius, Loeb, p. 543j talvez apócrifa [Bowersock, p. 104s.}, ajúJia Domna), nos é recontada, em toda a sua extensão, por Xenofonte (Memorabilia,lI, 1,21-34 = 84 B 2 D.K.), e não deixará, como o mito de Protágoras, de ser citada e reescrita, de Plutarco (De Fortuna Romanorum, 317 c-e) a Mon­taigne e daí em diante. Vale observar que o kairos é projetado para fazer face à cena do vício e da virtude. No Protágoras, é o próprio Protágoras que é compara­do a Orfeu, enquanto que a voz baixa de Pródico produz uma reverberação gra­ve, que impede a compreensão (315 a-316 a). Tamiras ou Tamires é um cantor trácio (llíada, 11, 595; Eurípides, Rhesus, 925), que, diferentemente de Orfeu, com quem é, freqüentemente, associado, canta sem a cítara (Platão, Ion, 533 c; Rep., X, 620 a, Leis, VIII, 829 e), e a quem as Musas, enciumadas, teriam roubado a visão. Enfim, Filóstrato utiliza a mesma comparação, ainda no início da carta 73, a propósito dos sofistas que viajam e fazem turnês, quando enfeitiçam cidades pequenas e grandes "à moda de Orfeu e Tamiras", e afirma que esta é a razão pe­la qual Platão, "longe de enxergá-los como mau augúrio" (baskaino quer dizer, a uma só vez, olhar com olhos ciumentos e lançar um feitiço), ou de experimentar a "inveja" (pthonos), estava, de preferência, "repleto de emulação" (philotimia, é o amor pela honra na medida em que inspira uma sã rivalidade), já que ele era ca­paz de fazer "tão bem e mesmo melhor".

* No sentido de palmatória, a férula do pedagogo. [N. da T.]

1~ Sobre este Cairefon, ver Eupolis, Os ba;uladores, fr. 165 Kock, os escó­lios do verso 408 das Vespas e 496 das Nuvens de Aristófanes, assim como Ate-

Filóstrato, Vidas dos sofistas 407

Page 205: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

triunfar o argumento injusto sobre o justo, deformando a linha mes­tra; eis porque Ésquines e Demóstenes tratavam, um ao outro, de 50-

fistas 19, não como uma reprovação, mas porque isso os desacredita­va aos olhos dos juízes - embora no domínio privado pensassem merecer a admiração dos outros justamente por isso. E Demóstenes, levando em conta Ésquines20, vangloriava-se, diante dos seus próxi-

neu, IV, 64. A mesma questão se reencontra em Ateneu, 408; pergunta-se se "fo­go" designa, metaforicamente, o espírito, o fogo da inteligência, ou o fogo do al­tar da família, em que o vento provocado pelas favas poderia servir de fole (um dos usos de physao). A resposta de Górgias seria um dito espirituoso que traba­lharia com o sentido de "nárthex": a vara oca lroseau creux], como aquela onde Prometeu depositou o fogo que havia roubado, designa, de uma só vez, os estojos que podem conter os livros e as varas que servem para castigar os maus alunos.

19 Ésquines, por um lado, não pára de tratar Demóstenes·de "sofista" (Contra Timarco, 125, 175), manipulando a apate (117). Ele chega a descrever sua ativi­dade servindo-se dos termos utilizados por Platão no Sofista ("caçador de jovens ricos", 170), não sem deixar de compará-lo, por sua ação a favor de Timarco e suas relações com todos os jovens que ele inicia nos meandros da profiss~117, 173, 175), a Sócrates sofista, condenado à morte por ter sido mestre d, Crítias, que era um dos "Trinta" (173). Demóstenes, por outro lado, que não para de in­juriar Ésquines ("sicofanta ", "macaco auto-trágico", "adivinho de campanha"­alusão feita a um dos papéis que ele teria, de fato hesitando, encarnado quando fora ator -, "moeda falsa de orador", Sobre a coroa [Oração da coroa], 241), trata-o também de "sofista" (227: sophizetai, com o mesmo verbo que Filóstrato emprega, em 479, agora para designar "aqueles que filosofaram com a reputação de praticar a sofística", cf supra, capítulo IV: "Sofistas autênticos e doxosofistas, quer dizer, filósofos", pp. 190-2); em 276, ele oferece, a seu modo, seguindo o mo­delo de "aquele que o diz, o é", a chave dessa reciprocidade: "No mais, como se tivesse sempre, ele mesmo IÉsquines], dito, uniformemente e com toda considera­ção, ele vos aconselha a vigiar-me e a observar-me, com medo de que eu vos en­gane e que vos decepcione [exapateso], e ele me chama de habilidoso, feiticeiro, sofista Ideinon, kai goeta kai sophistenl, e por aí em diante, como se bastasse ser o primeiro a dizer, a propósito de um outro, o que se aplica a si mesmo, para que as coisas assim se passem, e que os ouvintes não precisem mais examinar como é, nele mesmo, aquele que assim o diz" (276). Não há, talvez, inimizade política capaz de dar lugar a discursos públicos mais longos e belos ("É uma fera", dizia Ésqui­nes de Demóstenes, ao exilar-se em Rodes); mas apenas Filóstrato está estrategica­mente situado para nos fazer crer que o nome de "sofista" era tomado, verdadei­ramente, por cada um "em particular", como saudação e não como uma acusa­ção suplementar.

20 Contra Timarco, 175. Ésquines descreve Demóstenes retornando do tri­bunal; ele se vangloria diante dos jovens que compõem o seu círculo de estudan-

408 Documentos

mos, de dirigir o voto dos juízes a seu bel prazer; (484) quanto a És­quines, creio eu, ele não teria, uma vez entre os cidadãos de Rodes, oferecido o primeiro lugar a essas matérias, que estes ainda não co­nheciam, se já não tivesse a elas se dedicado em Atenas.

Sofista foi o nome que os antigos deram não apenas àqueles ora­dores que falavam excessivamente bem e resplandeciam em glória, mas também àqueles filósofos que davam livre curso à sua expressão: é deles que preciso falar em primeiro lugar, visto que, sem serem so­fistas, mas parecendo sê-los, ganharam o direito a esse nome.

tes e admiradores (en tei diatribei), e lhes conta "como ele soube apropriar-se da causa dos juízes": "Ergui o pavor acima dos auditores, de tal modo que o acusa­do acusava, o acusador era julgado e os juízes esqueciam do que deviam julgar para ouvir aquilo sobre o que não eram chamados a se pronunciar". Duplo golpe de sofista, ensinando <-l seus disôpulos a reversão dos argumentos e a escamoteação.

Filóstrato, Vidas dos sofistas 409

Page 206: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

)

COMO ESCREVER A HISTÓRIA (extratos)

Luciano

/

Salvo indicação contrária, sigo a edição mais recente, a de H. Homeyer, Lukian, Wie man Geschichte screiben sall (Wilhelm Fink Verlag, Munique, 1965, com tradução, e para a qual remeto o leitor no que tange ao comentário textual, em particular no que diz respei­to às fontes e às repetições), filologicamente mais substancial do que a de E.H. Warmington (The Loeb Classical Library, Londres, Cam­bridge Mass., 1959, com tradução inglesa de K. Kilburn).

O problema da datação é bem sintomático. Trata-se, no início do texto, que, de fato, não traduzi, da epidemia de um novo gênero provocado pela guerra contra os partas, comandados por Vologeso lI!. Desde que esses grandes acontecimentos ocorreram, "a guerra contra 0$ bárbaros, o desastre da Armênia, a série de vitórias" [2}, a peste consiste em que "todo mundo começou a escrever a história" (Obli€LÇ Oo-rlÇ obX \<J"topíav crunpOOp€l). É possível datar a derrota que destruiu a legião romana na qual Severianus, que a comandava, encontrou a morte: foi em 162. A concordância é menor quando se trata do estatuto do texto de Luciano, ou seja, da relação dos seus enunciados com os fatos. Na breve apresentação de Warmington­Kilburn se conclui que: "A obra foi escrita antes do fim da guerra -Luciano espera a celebração do triunfo (cap. 31)". Eis o que se lê no capítulo 31: "Ouvi dizer que alguém havia escrito até mesmo a his­tória do futuro: a captura de Vologeso, o massacre de Osroes, como ele seria lançado aos leões e, sobretudo, o triunfo esperado por três vezes ao invés de uma". Em sentido inverso, dando crédito ao tom crítico e cômico da obra, Homeyer faz, em função disso mesmo, alu­são a uma das razões que lhe permitiu propor uma datação posterior ao fim da guerra, entre 166 e 168 - ao que me parece, com muito acerto.

Luciano, Como escrever a história 411

Page 207: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Faço, em itálico, um curto resumo das principais passagens não traduzidas. Tive que fazer aqui uma escolha lamentavelmente arbi­trária, orientada pelo cuidado em compreender, a princípio, a rela­ção entre história, retórica e verdade, e traduzi apenas 15 dos 63 pa­rágrafos que compõem o tratado. Mas é, evidentemente, o conj unto da obra que deveria tornar-se acessível ao leitor.

Em anexo, acrescento à tradução destes extratos o início da His­tória verdadeira, texto mais conhecido e muitas vezes traduzido, e que só encontra nesta confrontação seu sentido de contraponto e de con­trafação.

'.' '.'

A guerra contra os partas faz com que todo mundo se revele, com vitalidade, um historiador; como andar, olhar ou comer, escrever a história parece infinitamente fácil e acessível, bastando expt}mir o que acontece (€pJ.lllV€OOal TO ~TI€À{tov SÚvllTal, 5). Luciano/{iara não ser o único afônico em uma ocasião tão polifônica, resolveu dar a sua contribuição, oferecendo alguns conselhos: o que escolher e o que evitar, de qual contaminação se purificar? (l-6)

(7) [ ... ] A princípio, examinemos a importância da seguinte fal­ta. A maior parte dentre eles [estes que pretendem escrever a história] não se preocupa em contar o que ocorreu, eles estão muito ocupados em louvar os chefes e os generais, conduzindo os seus aos píncaros e lançando ao chão, sem nenhuma medida, os inimigos: eles ignoram que não é um istmo estreito que separa, como uma fronteira ou um muro, a história do elogio, e que há uma grande muralha no meio; como dizem os músicos, eles se distanciam em duas oitavas: o en­comiasta se preocupa com uma única coisa: louvar tanto quanto pu­der e agradar àquele que ele louva, e, se por acaso, atinge seu fim, dizendo o falso, pouco lhe importa. Mas a história não admite a pre­sença de uma falsidade, por mais leve que seja, que o canal que cha­mamos de traquéia-artéria, por causa da função que exerce, não pode receber a bebida que nele é colocada.

(8) Além disso, nossos historiadores parecem ignorar que a poe­sia e os poemas têm os seus engajamentos e regras próprias, e que a história tem os seus. Naqueles, a liberdade escapa de todo controle, e há apenas uma lei: parecer bom ao poeta. Entusiasta e possuído pelas Musas, se pretende atrelar à carruagem cavalos alados, se faz flutuar

412 Documentc)s

outros sobre a água ou correr por cima dos jarros de asfódelos, não se o recrimina. Quando o Zeus dos poetas suspende com uma só cor­da e ergue, conjuntamente, terra e mar, não se chega sequer a temer que a corda se rompa e que tudo com a queda seja esmagado. E se pretendem fazer o elogio de Agamêmnon, não há ninguém para im­pedir que ele tenha uma cabeça e olhos como os de Zeus, um peito como o de seu irmão Posêidon, a altura de Ares: em uma palavra, o filho de Atreu e Aérope deve ser uma síntese de todos os deuses, pois nem Zeus nem Posêidon nem Ares, cada um em si, basta para mani­festar plenamente a beleza de Agamêmnon. Mas a história, se ela in­troduz este gênero de lisonja, em que se tornaria senão numa espécie de poesia em prosa, privada do grande estilo da poesia, exibindo um resto de fascínio, sem métrica, e fazendo-se, em função disto mesmo, ainda mais notar. É portanto grave - ou melhor, é uma falta gra­víssima -, não saber separar o que diz respeito à história do que con­cerne à poesia, e introduzir na história os ornamentos da outra (mito, elogio e as hipérboles que se encontram na poesia), como se alguém tivesse revestido um desses fortes e bem delineados atletas com um vestido purpúreo e com todo o adorno de uma cortesã, aplicando base e tintura em seu rosto. Por Héracles, como esse alguém o teria torna­do ridículo, cobrindo-o de vergonha com tais adornos!

(9) Não digo que não se deve, por vezes, louvar através da his­tória. Mas é preciso louvar no momento que assim convém, e aplicar ao objeto uma justa medida, para não exasperar os futuros leitores: de um modo geral, é preciso pautar-se tendo em vista a posteridade, como vou mostrar a seguir.

Quanto àqueles que acreditam na possibilidade de dividir a his­tória em duas, distinguindo o agradável e o útil, e que por este moti­vo adotam o elogio na história enquanto agradável e próprio a satis­fazer seu leitor, é fácil ver o quanto faltam com a verdade! A princí­pio, eles utilizam uma distinção de falsificador; pois a história exerce uma única tarefa e um só objetivo: o útil, que é uma conseqüência do verdadeiro e apenas dele. O agradável, tanto melhor se ele também se encontra acompanhando, como a beleza para o atleta; mas em caso contrário, nada impedirá Nicostrato, filho de Isidoto, de raça nobre e mais bravo que qualquer dos seus adversários, de suceder Héracles, mesmo se ele é o mais horrível de ser visto, e se o seu adversário é o belo Alceu de Mileto, que Nicostrato, como se diz, amava. A história então, se ela faz tráfico, tal como não deve, do agradável, arrolará

Luciano, Como escrever a história 413

Page 208: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

que os persegue, salvo se deixa de contar que houve as rezas necessá­rias. Pois se ele pudesse, submetendo-os ao silêncio ou dizendo o con­trário, redesenhar os fatos, seria fácil a Tucídides, com um traço de sua pena, derrubar a fortaleza dos Epípolas, afundar a trirreme de Hermócrates, transpassar o maldito Gilipo quando este constrói mu­ros e fossos no meio das estradas, e enviar, enfim, os siracusanos a suas formações, enquanto a frota ateniense percorre a Sicília e a Itália con­forme as primeiras expectativas de Alcibíades. Mas o que está feito, creio, nem Cloro", a fiandeira, pode desfazer em sentido inverso, nem Átropos, a inflexível, pode dobrar o curso. (39) O historiador tem apenas uma tarefa: dizer como tal coisa se produziu. Mas é isso o que não poderia ter feito durante o tempo em que, enquanto médico, Ar­taxerxes lhe provocava medo, ou enquanto esperava receber uma ves­timenta de púrpura, um colar de ouro--~desses cavalos de Níseon como prêmio pelos elogios que estão em seus escritos. Um Xenofonte não o faria, o justo historiador, nem um Tucídides: ele pensará que o interesse público é bem mais importante que um ódio privado, colo­cará a verdade bem acima da inimizade, e não poupará, em nome da amizade, aquele que se engana.

Eis aqui, como disse, a única propriedade da história; é preciso sacrificar-se apenas à verdade, se se quer escrever a história, e não se ocupar com absolutamente mais nada; logo, o único parâmetro e me­dida justa é ter em vista não o auditório de hoje, mas aqueles que mais tarde freqüentarão a obra.

(40) Mas, ao se tornar o servidor do presente, não sem razão será incluído no número dos lisonjeadores, aqueles de quem, outrora e des­de a origem, a história se afastou, tanto quanto a ginástica da ma­quiagem. É preciso lembrar da palavra de Alexandre: "Eu bem gosta­ria, dizia, de reviver por um momento, após minha morte, para saber qual leitura os homens de então farão desses acontecimentos; se ago­ra eles os louvam e lhes fazem boa acolhida, não se impressione: pois acreditam que isto não passa de uma magra isca que cada qual utiliza para atrair nossa estima" . Homero quase sempre escreveu sobre Aquiles em um estilo que se aproxima do mito; no entanto, alguns convidam,

>', Uma das três Parcas, deusas que fiavam e cortavam os fios da vida das pessoas. Eram chamadas Parcae entre os romanos e Moirai entre os gregos. Cloto era quem fiava, Láquesis decidia qual a extensão de cada fio e Átropos cortava o

fio. IN. da T.j

416 Documentos

doravante, a depositar-lhe crença, e produzem como única prova de sua veracidade um grande testemunho: ele não escreveu enquanto Aqui­les vivia, mas não encontram motivos para que ele tenha mentido.

(41) Que assim seja, portanto, o meu historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da lisura e da verdade, chamando, como diz o cômico, um figo, de figo; um pote, de pote, não admitindo ou pou­pando nem por raiva nem por amizadel, sem piedade, sem acanha­mento, sem timidez, um juiz com eqüidade, cuidadoso no que tange a todos, visto que não tem de atribuir mais que o devido, a uma ou a outra parte; em seus livros, que seja um estrangeiro, um homem sem cidade, autônomo, sem mestre, sem ter de calcular o que pensará um e outro, mas dizendo tal como ocorreu.

(42) Tucídides instituiu, sobretudo como se se tratasse de uma lei, essa matéria: ele elaborou a separação entre virtude e vício em história, observando a extrema admiração suscitada por Heródoto, cujos livros se tornaram famosos sob o nome das Musas. Ele afirma, com efeito, que o que compõe são tesouros2 que durarão para sem­pre, e não uma obra de circunstância, visando a conquista de um prê­mio, e que não faz boa acolhida ao que diz respeito ao mito, mas lega à posteridade a verdade do que, de fato, ocor~eu. Ele também intro­duz o útil- e o que se pode admitir, quando se enxerga com corre­ção - como finalidade da história: se outra vez se encontra diante das mesmas situações, que se tenha, diz ele, considerando a história já escrita, do que fazer bom uso com o que se encontra no caminho3.

(43) Tal é o espírito com o que meu historiador deve apresen­tar-se. Quanto à sua linguagem e à sua força de expressão, que ele não comece sua obra apurando, com desvelo, esta impetuosidade, este grilhão, o encadeamento dos períodos e a sinuosidade dos raciocínio dialéticos, tudo o que caracteriza a habilidade retórica, mas que dela se sirva com mais parcimônia. Que seu espírito tenha coerência e den­sidade, seu estilo clareza e virtude política, para expor o assunto do modo mais significativo.

I Não retenho o 'tL, acrescentado por Fritzsche.

2 Mantenho o plural, XTIÍJ.1.a'tCl, dos manuscritos, mesmo se se trata, aqui, de uma citação inexata de Tucídides.

3 TOle; €v TTOO( (cf Luciano, Nigr. 7), encontrado apenas em um único ma­nuscrito tardio; o outros trazem 'tole; €v TTóÀ€(n(v): "bem fazer uso do que ocorre no interior das cidades".

Luciano, Como escrever a história 417

Page 209: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

(44) Pois, assim como assinalamos como objetivos para o espí­rito do historiador a lisura e a verdade, para a sua linguagem há ape­nas um objetivo primeiro: expor com clareza e trazer à luz, com O

máximo de evidência, a coisa da qual se trata, e sem utilizar uma lin­guagem misteriosa ou afetada, muito comum ou vulgar; que possa ser compreendida pela maioria e apreciada pelas pessoas bem educadas. As figuras, então, fornecem os ornamentos sem a sobrecarregar, e, sobretudo, sem evocar o ar pretensioso, pois, caso contrário, os dis­curSOS produzidos se assemelhariam a molhos muito temperados.

[ ... ] (47) Os fatos em si n:i~os não devem ser reunidos ao acaso: o

historiador deve interrogar-se0.muitas vezes, a respeito dos fatos, sem minimizar o trabalho nem o sacrifício, e, tanto quanto possível, estar presente e ser o testemunho ocular, ou, senão, fiar-se naqueles que elaboram a descrição mais imparcial, diante da qual se pode supor que eles fazem o menor número possível de omissões ou acréscimos aos acontecimentos, quer por estima ou por aversão; e, neste caso, então, que saiba elaborar conjecturas e compor a exposição mais confiável. (48) E quando reuniu a totalidade ou maioria dos elementos, que os teça, a princípio, num apontamento, que disto constitua um material ainda destituído de beleza e de articulação. Depois, colocando-os em ordem, que neles faça surgir a beleza, que lhes dê a cor do estilo, que deles tire proveito4, que os faça ritmados.

(49) Logo, que se assemelhe ao Zeus de Homero, que considere ora o território dos trácios, que vivem a cavalo, ora o dos misianos; que, com efeito, considere ora a sua própria perspectiva, e que nos mostre como as coisas lhe parecem em sua amplitude, ora a perspec­tiva dos persas, depois dos dois lados de uma só vez, sobretudo quan­do ocorre um batalha. E na linha de combate propriamente dita, que ele não veja as coisas de um só lado, nem na direção de um único ca­valeiro ou membro de infantaria, a menos que seja um Brásidas que se lance adiante, ou um Demóstenes que dissipe o ataque; mas, a prin­cípio, na direção dos generais (e se eles exortam as tropas, ele deve tê­los ouvido), e a maneira como manobram, com que espírito e com qual intenção. Quando a confusão se instaura, que ele possua uma visão de conjunto, e que, então, saiba pesar o que se passa como que com

4 Traduzo aqui o XPT\J..LCl'tL1:€-tW dos manuscritos, e não o O)(T)}.LCt'tL1:€-t"w de Solanus: "que ele o coloque em forma".

418 Documentos

uma balança, que ele persiga com os que perseguem e que fuja com os fugitivos. (50) E que em tudo isto reine a medida: sem conduzir ao desgosto nem a perda do sentido da beleza, sem a exuberância da ju­ventude, que ele saiba, de preferência, praticar com destreza o dis­tanciamento. E, após um tempo de permanência aqui, que ele se des­loque para um outro local, se a necessidade assim o pressionar. Que se apresse em todos os sentidos, e que seja, sempre que possível, con­temporâneo a tudo, que migre da Armênia à Média, e daí, com um só golpe de asas, para o mar Negro, depois à Itália, afim de não deixar escapar nenhum momento crítico.

(51) Sobretudo, que ele tenha um espírito semelhante a um es­pelho sem mácula, brilhante, bem centralizado, e que mostre as for­mas dos fatos exatamente tal como as recebeu, sem as distorcer, des­colorir ou deformar. Pois os historiadores não escrevem como os ora­dores\ mas as coisas que serão ditas são, e falarão por elas mesmas, pois já foram realizadas, basta colocá-las em ordem e dizê-las. De tal modo que não se deve procurar o que dizer, mas como dizer. Logo, é preciso considerar que aquele que escreve a história deve assemelhar­se a Fídias, a Praxíteles, a Alcâmenes ou a qualquer outro escultor: eles não fabricam o ouro, a prata, o marfim, ou qualquer que seja a maté­ria prima, mas a encontram pronta, fornecida pelos eleatas, atenienses ou argeus; cabe a eles apenas moldar: talhar o marfim, polir, fazer aderir, fornecer um ritmo, incrustar de ouro. E, para eles, é nisto que consiste a arte: gerir, como é preciso, a matéria.

Tal é, de igual modo, a tarefa do historiador: prestar conta dos fatos e os mostrar sempre que possível em ato. E quando um ouvinte pensa ver, em seguida, o que foi dito e por isso o saúda, é só então, com certeza, que sua tarefa está concluída, e que a obra desse Fídias da história recebeu o elogio que lhe convém.

Seguem os conselhos da técnica retórica para redigir esta totali­dade orgânica específica em sua coerência própria, que é uma histó­ria, e que se distingue dos gêneros canônicos desde Aristóteles. Um prefácio, que pode ser virtual, em duas partes e não em três (nada de captatio), depois o corpo da história que constitui o relato, e as pre-

5 O dativo dos manuscritos, conservado por Homeyer, obriga a pensar no sujeito plural em elipse ("os historiadores"). Mas o nominativo de Aldine, adota­do por Fritzsche, não é muito mais fácil. Solanus supõe uma lacuna.

Luciano, Como escrever a história 419

á

Page 210: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

cauções a se tomar no que concerne às partes, propriamente ditas, da eloqüência (medida nas descrições, discursos adaptados, censuras e louvores prudentes e oportunos, distância em relação ao mito), na qual jamais se deve deixar-se levar pelo mau gosto de manifestar o poder das palavras nelas mesmas, tendo, por modelo, evidentemente, Tu­cídides; por vezes, também, Homero. Descrever o que ocorre para a eternidade e não para o presente, tal é "a regra e a linha de uma his­tória justa. (51-63)

)

420 Documentos

HISTÓRIA VERDADEIRA (1-4)

Luciano

Mantenho o título utilizado pela tradição, mas trata-se, nos me­lhores manuscritos, de AÂHTQN ll.IHrHMATQN, ou seja, de uma "Sele­ta de relatos verdadeiros". Retomo, por vezes, a tradução de Pierre Grimal, Romances gregos e latinos (Paris, Gallimard, Pléiade, 1958), baseada na edição e na tradução inglesa de A.M. Harmon (Cambridgel Mass., Londres, Loeb, 1913, I), mas modificando-a consideravelmente no afã de tornar perceptíveis as conotações filosóficas - essencialmen­te ligadas a Platão ("psicagogia", "teoria", problemática da relação entre persuasão e verdade) - e históricas, ligadas sobretudo a Tucídi­des (autópsia e testemunho: a tarefa do historiador, descrita em Co­mo escrever a história). Decerto crípticas ou enigmáticas, não sem pa­ródia, como alega o próprio, elas são abundantes já nesta declaração de intenção, que constitui O início do texto.

Para as fontes de Luciano, é preciso se reportar a A. Stengel, De Luciani veris historiis, Diss. Rostock, Berlin, 1911, e, no que tange a Antonio Diógenes (conhecido por Fócio, Biblioteca, cod. 16, t. 11, pp. 140-9 da edição e da tradução Renê Henry, lançada pela Belles Let­tres, em 1991), a K. Reyhl, Antonios Diogenes, Untersuchungen zu den Roman-Fragmenten der "Wunder jenseits von Thulé" und zu den "Wahren Gechichten" des Lukian, Diss, Tübingen, 1969. Para um cômputo recente da questão, ver G. Anderson, Studies in Lucian's comic fiction (Leiden, Brill, 1976, pp. 1-11).

Assinalamos a republicação recente (Actes Sud, 1988) da tradu­ção de Perrot d'Ablancourt, de 1654 - "não se trata, propriamente, de tradução, mas vale mais do que a tradução, e os antigos não tra­duziam de outro modo", afirma na Epístola dedicatória (consultar­se-á, a este respeito, o documento de trabalho constituído por R. Gui­se, com M. Ducos e M.-C. Cousinar, Memórias dos Anais do Leste, n. 57, Nancy, 1977).

Luciano, História verdadeira 421

Page 211: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

,~ * *

(1) Assim como os atletas e os homens que se preocupam com seus treinamentos não têm como única preocupação a forma perfeita e os exercícios, mas cuidam de relaxar seus esforços no momento oportuno (e chegam mesmo a considerar que nisto reside a parte mais importante de seus treinamentos), de igual modo sou de opinião que aqueles que se ocupam, seriamente, dos discursos devem, após terem se dedicado longamente a sérias leituras, relaxar seus espíritos, colo­cando-os à disposição para iniciar o trabalho futuro. (2) E suas re­creações não poderiam ser mais apropriadas do que se as consagras­sem a leituras, que não apenas permitam uma pura e simples condu­ção da alma sob efeito do humor e do prazer, mas que forneçam, ao mesmo tempo, uma reflexão teórica que não seja indigna das Musas; algo que ajude na opinião que eles farão, suponho eu, do presente li­vro. Não é apenas o exotismo do assunto nem o caráter prazeroso da intenção do autor que os atrairá, nem o fato de agruparmos menti­ras disparatadas de maneira plausível e plenas de verdade, mas por­que cada elemento dessas histórias oculta, não sem paródia, um ou outro dos antigos poetas, historiadores, filósofos que compuseram livros repletos de maravilhas e mitos. Poderia muito bem citar os no­mes, se não se devesse reconhecê-los, por eles mesmos, sem ambigüi­dade, enquanto se lê: (3) por exemplo, Ctésias de Cnido, filho de Ctesiochos, que tanto escreveu sobre a Índia e sobre o que lá se en­contra, embora jamais a tenha visto com o seus próprios olhos e nun­ca dela tenha ouvido falar por alguém que dissesse a verdade. Jam­boulos também escreveu muitos paradoxos sobre o Grande Mar: todo mundo sabe que ele fabrica uma mentira, mas a trama do relato que ele compõe não é, no entanto, desprovida de atrativos. Muitos ou­tros, com a mesma intenção, escreveram a história de suas pretensas errâncias e viagens, descrevendo a altura dos animais, a crueldade dos homens e a singularidade de seus costumes. O fundador e o profes­sor, para eles, dessa espécie de charlatanice que se mantém ao pé do altar, é o Ulisses de Homero, que conta a Alcino e a seus amigos his­tórias de ventos aprisionados, de ciclopes, de canibais e de selvagens, assim como de animais com muitas cabeças e de m-etamorfoses pro­vocadas por filtros e sofridas por seus companheiros, e todos os pro­dígios desta espécie com os quais presenteia os bravos feácios. (4) Freqüentando todos estes autores, não os pude censurar por terem

422 Documentos

mentido, pois percebia que isso já havia se tornado um hábito entre os homens que professam a filosofia; mas o que me surpreendeu, no que diz respeito a eles, é o fato de poderem pensar em escrever coisas que não são verdadeiras, sem que disto ninguém se aperceba. Eis por­que, também movido pela vaidade de deixar algo à posteridade, afim de não ser o único a não partilhar da liberdade de relatar mitos, e como não tinha nada de verdadeiro para contar (pois nada me acon­teceu que merecesse ser dito), voltei-me para a mentira, mas com sentimentos bem melhores do que o dos outros, pois há um ponto acerca do qual direi a verdade: que minto. Penso, assim, poder esca­par à acusação dos outros, assumindo que nada digo de verdadeiro. Escrevo, portanto, sobre coisas que não vi, que não me aconteceram e de que ninguém me falou; de coisas que, além disso, não existem de modo algum e que nem mesmo podem começar a existir. Eis por­que é preciso que, aqueles que as lêem, nelas não depositem o menor crédito.

(5) Era uma vez [ ... ].

Luciano, História verdadeira 423

i I

Page 212: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Uma boa bibliografia da primeira sofística é encontrada em CLASSEN, C.]. Sophistik, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976, pp. 641 ~710, con­cluída em "Bibliographie zur Sophistik", Elenchos, VI, 1985, fase. 1, pp. 76-140; e em UNTERSTEINER, M. completada por seu tradutor TORDÉSILLAS, A., Les 50-phistes, Paris, Vrin, 1993, t. 11, pp. 269-314. Com relação a segunda sofística, preciosas indicações são encontradas em REARDON, B.r., Courants littéraires grecs, Paris, Les Belles Lettres, 1971, pp. 427~51 e índice bibliográfico, p. 4195.; em ROCCA-SERRA, G., "Bibliographie de la seconde sophistique", Positions de la 50-

phistique, B. Cassio (org.), Paris, Vrin, 1986, pp. 301-14, e, conforme uma pers­pectiva específica em cada caso, em PERNOT, L., La Rhétorique de ré/oge dans /e monde gréco-romain, Paris, Institut d'Études augustiniennes, 1993,3 vol., t. 11, pp. 797-838 e em BILLAULT, A., La création romanesque dans la /ittérature grecque à l'époque impériale, Paris, P.U.F, 1991, pp. 309-18. A bibliografia mais recente sobre o conjunto da segunda sofística, bastante seletiva, é a de ANDERSON, G., The second sophistic, Londres, Nova York, Roudedge, pp. 288-96.

O essencial da bibliografia aqui utilizada (fontes gregas e latinas, obras so­bre a Antigüidade, perspectivas modernas) é dado à medida em que aparece nas notas ou apresentações de documentos (para uma descrição completa das fon­tes, bem como para uma bibliografia ordenada e ampla, remeto o leitor ao fim de minha tese Sophistique e critique de l'ontologie, defendida em Paris-Sorbonne, Paris IV, em abril de 1994). Mas podem ser encontrados a seguir:

I. As principais edições, compilações de textos ou de traduções, coleções e instrumentos de trabalho, por vezes citados de modo abreviado (autor ou sigla) e que não aparecem necessariamente no índice;

11. Uma seleção de algumas obras particularmente úteis para o conhecimento da primeira e segunda sofística.

Indicações bibliográficas 425

J

1

Page 213: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I.

VON ARNIN, H. Stoicorum Veterum Fragmenta, collegit H. von ARNIN, 3 vaI., Leip­

zig, 1903-1905; vol. 4, índice de M. Adler, Leipzig, 1924 [S. V.F] BARATIN, M. e DESBORDES, F. L'Analyse linguistique dans l'Antiquité classique, 1,

Les théories, Paris, 1981 (único volume publicado).

BLASS, F. Antiphontis orationes et fragmenta adiunctis Gorgiae Antisthenis Alâ­damantis declamationibus, Leipzig, Bibl. Teubn, 1881.

_____ ' Commentaria in Aristotelem graeca, Berlim, 1882-1909,23 vaI. [C.

A.C]. BONIU, H. lndex AristoteHcus, Graz, 1955 (= Berlim, 1870).

CHANTRAINE, P. et alli. Dictionnaire étymologique de la langue grecque, 4 vol., Paris, 1968-1980.

DENNISTON, J.O. The greek particles, Oxford, 1954.

DlELS, H. e her. VON KRANZ, w. Die Fragmente der Vorsokratiker. Griechisch und deutsch, 2 vol., Berlim, 1951; voI. 3, índice, 1952 [D.K.].

DUMONT, J.-P. Les sophistes: fragments et témoignages, Paris, 1969.

_____ . Les présocratiques, com a colaboração de D. DELATTRE e de J.-L.

POIRIER, Paris, 1988.

GRIMAL, P. Romans grecs et latins, Paris, 1958.

]ACOBY, F. Die Fragmente der Griechischen Historiker, BerlimlLeyde, 1923-1958 (nova ed. Leyde, 1954) [F. Cr. Hist.].

KÜHNER, R. e GERTH, B. Ausfüriiche Grammatik der griechischen Sprache, Zweiter Teil: Satzlehre, 2 vaI. Hanover, 1955 (Darmstadt, 1966).

LAUSBERG, H. Handbuch der Literarischen Rhetorik. Eine Grundiegung der Lite­raturwissenschaft, 2 vol., Munique, 1960.

LIDDELL, H.G., SCOTI, R. e ]ONES, H.S. A Greek-English Lexicon, Oxford, 1968 [L.S.C.].

LONG, A.A. e SEDLEY, D.N. The hellenistic philasophers, 2 vol., Cambridge, 1987.

NAUCK, A. Tragicorum Graecorum Fragmenta, Leipzig, 2"ed. rev., 1889 (reimpr. Hildesheim, 1964, com Suplemento por SNELL, B.).

RADERMACHER, L. Artium Seriptores (Reste der voraristoteiischen Rhetorik) (Oster­reichische Akademie der Wissenschaften, phil.-hist. Klasse, Sitzungsberichte, 227,3), Viena, 1951.

SPENGEL, L. Rhetores Graeci, 3 vol., Leipzig, Bibl. Teubn., 1853-1856 (lO vaI. re­visto por C. Hammer, 1894).

SPRAGUE, R. KENT. The older sophists: a complete translation by severai hands of the fragments in Die Fragmente der Vorsokratiker. .. , with a new edition af Antiphon and Euthydemus, Columbia, 1972.

UNTERSTEINER, M. Safisti. Testimonianze e frammenti, I-IV, com a colaboração de A. BATIEGAZORE para o vol. IV, Florença, 1949-1962.

WALZ, c. Rhetares Graeci, 9 voI. Stuttgart!Tubingen, 1832-1836.

426 o efeito sofístico

11.

ANDERSON, G. The Second Sophistic: a cultural phenomenan in the roman empire, LondreslNova York, 1993.

____ o Philostratus: biography and belles lettres in the yd century A.D., Londres etc., 1986.

AX, w. Laut, Stimme und Sprache. Studien zu drei Grundbegriffen der antiken Sprachtheorie (::. Hypomnemata 84), Gottingen, 1986.

BOMPAIRE, J., Lucien éerivain: imitation et création, Paris, 1958.

BOULANGER, A. Aelius Aristide et la sophistique dansla province d'Asie au IF sii~cle de notre ire, Paris, 1923 (reimpr. 1968).

BOWERSOCK, G.W. (org.) Appraaches to the Second Sophistic. Trabalhos apre­sentados no 105° Encontro Anual da Associação de Filologia Americana (1973), University Park, Pennsylvania, 1974.

____ o Greek Sophists in the Roman Empire, Oxford, 1969.

BRANCACCI, G. Rhetorike philosophousa, Dione Crisostomo nella cultura antica a bizantina, Nápoles, 1985.

CASSIN, B. (org.) Positions de la sophistique, Paris, 1986.

____ o (org.) Le piaisir de parler: études de sophistique camparée, Paris, 1986.

DETIFNNE, M. e VERNANT, ].-P. Les ruses de l'intelligence. La metis des grecs, Pa-ris, 1974.

DUPRÉEL, E. Les sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias, Neuchâtel, 1948, reimpr., 1980.

GOMPERZ, H. Sophistik und Rhetorik. Das Bildungsideal des eõ ÀÉyet \I in seinem Verhaltnis zur Philosophie des V. Jahrhunderts, Leipzig/Berlim, 1912, repr.

HEGEL. Leçons sur /'histoire de la phiiosophie, trad. fr. de P. Garniron, vol.I, t. 2,

Paris, 1971.

IMBERT, CI. Phénoménologies et Iangues formulaires, Paris, 1992.

KENNEDY, G.A. The art of persuasion in Greece (A history of Rhetoric, 1), Prince­ton, 1963.

KERFERD, G.B. The sophistic movement, Cambridge etc., 1981.

NORDEN, E. Die Antike Kunstprosa von VI. Jahrundert v. Chr. bis in die Zeit der Renaissance, Leipzig, 1898.

PATILLON, M. La théorie du discours chez Hermogene ie rhéteur: essai sur ia struc­ture de la rhétorique ancienne, Paris, 1988.

PERNOT, L. La Rhétorique de ['éloge dans le monde gréco-romain, 2 voI., Paris, 1993.

PERRY, B.E. The anciem romances: a iiterary-historical account af their origins, Berkeley/Los Angeles, 1967.

REARDON, B.P. The form of greek romance. Princeton, 1991.

_____ . Courantslittéraires grecs des IF e [fIe siecles apres ].-c., Paris, 1971.

Indicações bibliográficas 427

Page 214: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ROHDE. Der Griechische Roman und seine Verldufer, Leipzig, 1876, Y cd. (An­hang de W. Schmid, Leipzig, 1914, repr. Darmstadt, 1960 (Vorwort de K.

Kerényi). ROMEYER OHERBEY, G. Les sophistes, Paris, Y ed. atualizada, 1993.

RUSSELL, O.A. (org.) Greek declamation, Cambridge, 1983.

UNTERSTEINER, M. Les sophistes, trad. fr. de A. Tordesillas, 2 vaL, Paris, 1993.

VICKERS, B. In defense of Rhetoric, Oxford, 1988.

VIDAL-NAQUET, P. "Flavius Arrien entre deux mondes", posfácio a L 'histoire d'A/e­xandre, trad. de P. Savinel, Paris, 1984.

428 o efeito sofístico

SUMÁRIO DA EDIÇÃO FRANCESA

APRESENTAÇÃO. A sofística, fato de história, efeito de estrutura

Efeito do objeto e efeito de objeto: o artefato platônico

Constituição-exclusão: da primeira à segunda sofísticas

Ética, estética e regulação da linguagem Uma história sofística da filosofia

Primeira parte

DA ONTOLOGIA À LOGOLOGIA

I. A ontologia como obra-prima sofística: Sobre o não-ser ou sobre a natureza

Górgias crítico de Parmênides: empirismo ou retórica?

Tratado contra poema Que não é: crítica da krisis

Parmênides, o Górgias de Sexto e o do Anônimo. A leitura do De M.X.G. O ente, como Ulisses. A ontologia comO sofisma.

As regulaçães filosóficas da linguagem Se é, é incognoscível: a impossibilidade do pseudos. Filosofar com O pseudos. Ti peri tinos e ti kata tinos. Como Aristóteles devolveu a Górgias o que Górgias fez a Parmênides.

É incomunicável: behaviorismo ou logologia? A autonomia da linguagem. A interpretação behaviorista.

11. Retórica e logologia: o Elogio de Helena

O grande dinasta O discurso sofístico e seu efeito-mundo: "O discurso não comemora o de fora, é o de fora que se faz revelador do discurso" .

Sumário da edição francesa 429

Page 215: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Helena ou a lógica do dizer eficaz A dup!icidade de Helena. Helena e o pharmakon. As duas Helenas de Eurípides, ou o eidos como onoma.

Podemos ser pré-socráticos de outra forma? Observações sobre a interpretação heideggeriana da sofística

Dois tipos de pré-socráticos. Sofística, ceticismo e inautenticidade. A aletheia restrita de Protágoras. Lagos ou palavrório. A idéia de logologia.

DOCUMENTOS Górgias, O tratado do não-ser, M.X.G./Sexto. De Melisso, Xenófanes e Górgias (Ps.-Aristóteles, 979 a12-980 b22). Sexto Empírico (Adversus Mathematicos, VII, 65-87). O Elogio de

Helena.

Segunda parte

DO FÍSICO AO POLÍTICO

U ma lógica política r. Antifonte, ou como a natureza tornou-se o escape da cidade

A construção da identidade de Antifonte

Há política: "cidadanizar" Justiça e uso da justiça: com ou sem testemunhas? A natureza como secreto do privado. Aquilo de que não se escapa e aquilo sobre o que entramos em acordo. Verdade e verossimilhança

nas Tetralogias. "Barbarizar": diferença de natureza ou de cultura?

Idiossincrasia dos costumes ou universal da legalidade: os Persas ou os Gregos? Concepção grega contra concepção bárbara do helenismo: a lei ou a raça? A sentença do tribunal

contra a economia perpétua.

Abster-se da lei A típica de Antifonte

11. O liame retórico O paradoxo do consenso Ortodoxia e criação de valores: o elogio

Apodeixis, epideixis, gênero epidítico. Ainda Helena. Quem

430 o efeito sofístico

fala é Atenas. Consenso e homonímia: do metafísico à cozinheira.

Ética ou retórica: o mito de Protágoras O mito e seu remake. Os mitemas do discurso ordinário: o logos e sua repartição.

Lagos, khrêmata, temporalidade

m. O uno e o múltiplo no consenso A cidade como performance: produzir a homonoia pelo lagos integrando a stast"s Platão: o corpo social ou o sentido da hierarquia Aristóteles: o piquenique ou a astúcia da democracia

"A cidade é uma pluralidade de cidadãos". A "amizade política".

Ontologia e política: a Grécia de Arendt e a de Heidegger Filosofia e pensamento político. Gregos e Romanos. Gregos e Gregos. Uma pólis sofística. Do transcendental em política: Sófocles ou Péricles?

DOCUMENTOS Antifonte, Sobre a verdade. Primeira Tetra/ogia. Mito e discurso de Protágoras, (Platão, Protágoras, 320 b-328 d). Élio Aristides, Contra Platão, para defender a retórica (394-428). O "uso" (trechos escolhidos)

Terceira parte

DA FILOSOFIA À LITERATURA

As duas posições da sofística Do sentido sem referência (ficção), e do significante sem sentido (homonímia). "Poderíamos contentar-nos com o sentido": Frege ou da relação entre as duas posições

I. Homonímia e significante As Refutações sofísticas: falácias e homonímia

O mal radical da linguagem (simbólica e semântica). Homonímia e semelhança. Como oS pseudo-silogismos são

Sumário da edição francesa 431

Page 216: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

fatos de homonímia. Kant e o sophisma figurz dictionis. Como a identidade do significante resiste à homonímia.

Galeno: a redução à homonímia pela escrita A ambigüidade em potência. a significante estóico e sua captura.

Sofisma e chiste em Freud Asteion, Witz, sofística. a sofisma, sem-sentido no sentido ou sentido no sem-sentido? A ambivalência crítica. a sofisma como intermediário da verdade.

Lacau e a sofística: Ainda ainda Helena a preço do pharmakon e a tolice do discurso m'êrre. a ser é um fato de dito. a sofisma do gozo. a significado é o efeito do significante, e o significante se escreve. Para o prazer / em pura

perda.

n. Retórica e ficção

432

O valor da retórica: de Platão a Perelman Quem fala de retórica sofística? "Contra Platão", por Élio Aristides. Duas retóricas, nenhuma retórica. Dois usos da retórica. Uma terceira retórica: a retórica? Com Aristóteles contra Aristóteles. Contra Perelman, com Perelman. Escolher a retórica contra a filosofia. Escolher o Fedro contra o GÓrgias. Querer o bom auditório.

"A filosofia pode ser simulada, não a eloqüência" (Quiutiliano), ou: o efeito contra a intenção

A máscara do desprezo. Acusações no espelho: da filosofia mascarada à filosofia ladra. Da intenção do filósofo à do sábio romano. a homem bom mente melhor. A retórica é o verdadeiro saber do falso. A efetividade da retórica.

O ato de nascimento da segunda sofística: Filóstrato Não ficou nada além da sofística. Sofistas autênticos e doxo­sofistas, ou seja, filósofos. Rhetorike philosophousa e o estilo oracular. A segunda sofística: A história no lugar da filosofia. Improvisação e retórica do tempo. Kairos e topos.

Lógicas da ficção Tudo mais é literatura. De pseudos a plasma. "Você é um Prometeu em palavras". Plasma, mythos, historia; argumentum, fabula, historia. a plasma: uma boa narrativa ou má história? as dois sentidos da história. Como se escreve a história verdadeira? Romance e elogio, ou do romance como sofística. A ekphrasis no lugar da metáfora. as Eikones de Filóstrato: da palavra à palavra. O prólogo de Dafnis e Cloé.

o efeito sofístico

CONCLUSÕES

DOCUMENTOS

Galeno, Dos sofismas ligados à expressão. Filóstrato, Vidas dos sofistas (1,480-484). Luciano, Como escrever a história (trechos). História verdadeira (1-4).

Notas Agradecimentos Elementos bibliográficos Índice dos autores modernos e contemporâneos Índice dos autores antigos Índice e glossário dos principais termos gregos utilizados

Sumário da edição francesa 433

Page 217: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Adorno, Theodor W., 29-30 Agatão,203 Alcidamas, 145, 206 Allen, Thomas V., 25 Alliez, Éric, 7-8 Ameling, W., 403 Amyot, Jacques, 257 Anaxágoras, 113, 116, 118, 130,

387,391-2,398 Anaximandro, 117 Anderson, Graham, 143, 187, 189,

196,210,235,238,240-1,243, 260,402-3,421

Antifonte, 8,65-7,69,70-3,75, 145,189,201,217,303-4,311-4,316,333,337,367-9

Antístenes, 39-40, 43-4, 51, 98-9 Anraine Diogene, 241 Apel, Karl-Otto, 87, 96, 103, 170,

269 Apolônio de Tiana, 244, 403-4 Apuleio, 201, 244 Aquiles Tácio, 234, 237, 244, 250-1,

256,416-17,240 Arendt, Hannah, 73-4 Aristófanes, 85, 298, 407 Aristóteles, 97, 14-6, 33, 40, 43-45,

55,66-7,72-4,77,95,97,99-118,120-133,135-6,138-141, 147-8,151-2,157,160-1,163-7, 169-170,173,181,188,194, 196,203-4,206-7,209-10,212-7, 220, 226, 229-30, 232, 236-8, 248-50,252,256,260,265,270,

Índice onomástico

272,288,319,336,339,350, 363,377,403,419

Arquíloco, 189, 356 Artemidoro, 195 Asclepíades, 225-6 Ateneu, 407 Aubenque, Pierre, 37, 39, 44, 47,

97-8,105,163 Áulio Gélio, 201 Badiou, Alain, 136, 265 Bakhtin, Mikhail, 240 Baldwin, Charles 5.,149,197,204,

253 Barnes, Jonharhan, 240-1, 272 Barthes, Roland, 148,212,234 Bartsch, Shadi, 240 Barwick, H., 225 Bastianini, Guido, 303 Bataille, George, 67 Behr, Carolus Allison, 69,150,347-

52,354-5,357-8,360-5 Bekker, 280, 283-4, 287, 289, 317,

323 Bembo, Pietro, 298 Bénézé, M., 168 Benjamin, Walter, 23, 85 Benveniste, Émile, 33, 80-1 Bérard, V., 353 Bignone, E., 72, 304 BiIlault, Alain, 240 Birmelin, E., 259 Blanchard, M.E., 252, 260 Blass, F., 298, 311, 325, 327 Bloomgield, Leonard, 54

435

Page 218: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Bodin, Louis, 333, 337~8 Bollack, Jean, 272 Bompaire, J., 212-4, 222, 251 Boole, George, 78, 138 Borges, Jorge Luis, 217 Bornecque, Henri, 175,227 Boulanger, A., 144 Bowersock, G.W., 143, 188, 401~3,

407 Bowie, E.L., 143 Brague, Rémi, 46 Brancacci, Aldo, 191, 195, 404 Brisson, Luc, 155 Brõcker, Walter, 14 Brunetiere, Ferdinand, 241 Brunschwig, Jacques, 105, 208~9 Burckhardt, Jacob., 66 Burgess, T.e, 243 Bumet,]., 331, 339, 343, 371 Burnyeat, M., 241 Bury, R.G., 59-60 Calístrates, 251 Calogero, Guido, 13, 57 Canto, M., 348, 371~2, 375 Capizzi, A., 201 Carnéades, 191 Carroll, Lewis, 217 Cassin, Barbara, 98, 113, 320 Catão O Velho (Catan I' Ancien),

175,180,197 Chantraine, A., 31, 194,205,207,

218,353,372,406 Char, René, 216 Chassang, A., 232 Cícero, 149, 165, 174-80, 185, 196-

7,227-8 Classen, c.]., 272, 202 Cláudio Élio, 210 Cordero, Nestor~Louis, 23 Couloubaritsis, L., 166 Courcelle, Pierre, 29 Courier, Paul~Louis, 257 Cousin, Jean, 175 Crátilo, 99, 111, 113, 116, 120,

130, 133, 393 Cressolles, Louis de, 198, 403

436

Crítias, 65,146,189,329,403,408 Croce, Benedetto, 235 Croiset, Alfred, 155,345 Dalmeyda, Georges, 257~8 Decleva~Caizzi, Fernanda, 303~6,

311-4,317 Deguy, Michel, 293 Deleuze, Gilles, 9, 85 Demócrito, 29,113,116,130,148,

276,391-2 Demóstenes, 146, 196-7, 199, 217,

402,406,408,415,418 Derrida, Jacques, 80,215,248 Descartes, René, 87,165 Detienne, M., 333 Diels, H., 25, 145, 269-70, 282,

293,298,300-1,303 Dies, A., 35 Diodoro, 204 Diógenes Laércio, 187, 201 Díon Cássio, 240 Dittenberger W., 313, 316 Dixsaut, Monique, 35, 177 Dodds, E.R., 371-3 Donadi, Francesco, 293~5, 297-301 Dubuffet, Jean, 7 Dufour, Médéric, 89, 100 Dumont, J.-P., 206, 269, 288, 293,

297,303 Dupont~Roc, Roselyne, 95, 126,

214,229 Dupréel, Eugene, 165 Duruy, Victor, 401 Élio Aristides, 9, 69, 144, 149, 150,

152,157-8,162,165,179,189, 200,244-5,347,349,355

Empédocles, 113, 116, 130, 392 Escarpit, R., 212 Ésopo, 223, 367 Ésquilo, 120, 199, 358 Estobeu, 70, 367-70 Eupolis, 407 Eurípides, 8, 72, 74, 146, 189, 223,

348-50,358,371,407 Fairbanks, Arthur, 252 Favorino, 192, 194, 198

O efeito sofístico

Filodemo, 403 Filolau,371 Filóstrato o Jovem, 251~2 Filóstrato, F1avius, 9, 65, 149, 186~

200,203~5,210,213,221,224,

231-2,244,251-5,259-60,401-5,407-8

Finley, Moses, 236 Flaubert, Gustave, 215 Flavius Arrien, 210 Fócio, 241, 421 Follet, Simone, 402 Foss, 280, 828 Foucault, Michel, 215 Fcede, E., 187 Frege, Friedrich Ludwig Gottlob, 51,

78,110,137-41 Frere, J., 23, 37 Freud, Sigmund, 8, 17,238 Frontão, 195, 210 Frye, Northrop, 235, 245 Fumaroli, Marc, 159, 178, 198 Funghi, Maria~Serena, 303~4 Furley, D.]., 307 Fusillo, Massimo, 241 Gallet, B., 206-7 Gernet, Louis, 306, 311~4, 317, 321,

323-4,327-8 Gill, Christopher, 242 Ginzburg, Carlo, 235 Glotz, G., 72, 313 Goethe, Johann Wo1fgang von, 252 Gomperz, Henrich, 13, 16, 147,270 Górgias, 8, 13~23, 31~2, 34-9, 41,

44,47-8,50-8,60-3,67,69,77, 98,125,136,144-7,150-3,156, 158,167-9,171,179-80,184-85, 191,193,195,197,200-1,203-5,207,210,213-4,216,218-9, 229,231-2,237,242,249,251, 262-3,269-71,273,276-7,279, 283,286,288,290,296-7,338, 350,356,358-9,373,405-8

Grenfell, B.P., 303, 305, 307 Grimal, Pierre, 240, 421 Grote, George, 65

Índice onomástico

Guthrie, W.K.e, 24, 166 Habermas, Jürgen, 97, 170,269 Hadot, Pierre, 252, 254-5, 259 Hagg, Thomas, 240 Halperin, D., 257 Harmon, A.M., 421 Havelock, Eric A., 27 Hegel, G.W., 14,32,235,269,270 Heidegger, Martin, 16, 73, 80-4, 86,

97,100,104,117,220,263-4, 269

Heliodoro, 244 Hellwig, Antje, 160 Henry, René, 421 Heráclito, 14, 100, 112~3, 115~8,

125, 130, 135,374,383,393, 398-9

Hermógenes, 66,196,223,231,314 Herodes Ático, 198, 311, 402~3 Heródoto, 231, 234, 404, 417 Hersant, Yves, 256 Hesíodo, 26,120, 190, 250~1, 315,

365,372 Himérios, 253 H'pias, 72,153,179,203 Hoffmann, Ernest, 47 Homero, 14, 24~6, 113, 116, 130,

189-90,216-7,237-8,248,251, 254,315,350,356,358-9,362, 365-6,392,403,416,418,420, 422

Homeyer, H., 236, 411, 419 Horácio, 188,358 Horkheimer, M., 29, 30 Hugo, Victor, 215 Hunt, A.S., 303, 305, 307 Ijsselling, Samuel, 149 Imbert, Claude, 110, 137-8,223,

226,241-2,257-9 Immisch, Orto, 293, 295 Irwin, Terence, 45,106,271,371,

375 Isócrates, 53, 74, 145, 157, 165,

177-8,180,236,241,299,358 Kalinka, E., 252

437

Page 219: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

I

Kant, Emmanuel, 70, 72, 74,165, 264,269-70

Kayser, CL., 210, 252, 321, 402 Kennedy, G., 147 Kerényi, K., 240 Kerferd, G.B., 13-5, 51, 57, 213,

270,272,275-6 Kilburn, K., 221, 411 Kranz, W., 14,25,145,269,293

Lacan, Jacques, 8, 77 Lacoue-Labarthe, Philippe, 212, 263

Lalande, André, 8 Lallot, Jean, 95, 126, 214, 226, 229-

30,247 Leibniz, Gottfried WilheIm, 105,

108,119 Lenz, F.W., 150, 347-8 Lessing, Gotthold Ephraim, 212 Leucipo, 281 Lichtenstein, Jacqueline, 173, 184 Lindon, J., 9, 10 Locke, Joho, 52 Loenen, H.M.M., 57 Longo, 244, 256-7 Loraux, Nicole, 8 Luciano, 9, 191,210-1,221-3,236-

9,244,251,299,411-2,414,

417 Lyotard, jean-François, 63, 136,201 Mac Leod, M.D., 221 Macherey, Pierre, 215 Mallarmé, Stéphane, 134,216 Mansfeld, Jaap, 270, 272-6 Marco Aurélio, 255 Mario, Louis, 256 Marx, Kar!, 235 Maso, Srefano, 263 Mazon, Paul, 250-1, 350 Mazzara, Giuseppe, 13 Melisso, 270-1, 278, 280 Menandro,358 Meyer, Michel, 151 Michel, Alain, 244 Michelet, Jules, 235 Mittelstadt, M.C, 257 Montaigne, Michel Eyquem de, 407

438

Monteneri, L., 49 Mourelatos, A.P.D., 24, 26-8, 48-

55,57,59-62,272,277,297

Müller, R., 225 Nancy, Jean-Luc, 212, 263, 421 Narcy, Michel, 39, 113 Navarre, Octave, 312 Newiger, Hans ]oachin, 13, 57-8 Nicete de Esmirna, 210 Nietzsche) Friedrich, 14,67,146,

215,222-3,235,242,263-5 Noel, Marie-Pierre, 293, 299 Norden, E., 204, 210 Novalis, Friedrich (dito Barão von

Hardenberg),263-4 Nussbaum, M. Craven, 106 O'Brien, D., 23, 37, 46 Olbrechrs-Tyteca, L., 161, 170-1 Onians, R.B., 28, 206-7 Pacuvius, 227 Paim, J., 250 Panowski, Erwin, 206 Papanikolaou, A.D., 240 Parmênides, 8, 13-4, 16-22,24-7,

29,30,32,34-9,41,45,47-9, 52,77,98,113,123-4,165,263, 265,270-1,275,277,283,392,

405 Patillon, Michel, 196,223,231,314

Paulhan, J., 171, 231 Peirce, Charles Sanders, 78 Perelman, Chain, 55,145,149,151-

2,154,160-1,165-72,231 Pernot, Laurent, 231, 243, 250 Perrot D'Ablancourt, 421 Perry, Ben Edwin, 239-41, 244-5

Petrônio, 244 Picard, Charles, 206 Pigeaud, J., 250, 259 Pilz, Werner, 146 Pindaro, 190,207-8,237,315,363

Pirro,276 Platão, 14-7, 36, 39-45, 53, 55-6,

69_70,73,90,98-9,118,145-6, 148_50,152,157,159-62,164-5, 167_9,172-4,179,186,190-1,

o efeito sofístico

193-4,198,201-2,214-5,222-3, 226,232,242,254,265,269, 293,306,313,331-2,337-9, 347-50,353,355,358-9,366, 371,394,405,421

Platnauer, M., 401 Plínio o Velho, 358 Plotino, 255 Plutarco, 187,219,358,403,407 Poirier, ]ean-Louis, 269, 288, 293,

295,297-8,303-7 Ponge, Francis, 141,214 Press, Gerald A., 234 Probus, 234 Proclo, 39-42, 44-5, 98 Prodo de Náucratis, 210 Prodicos, 206 Protágoras, 9, 14, 15, 40, 65-9,

78,111,113,115-9,136,144, 150,153,159,179,186,189, 194,196,201-2,261,269,331, 333-4,336-9,341,343-4,348, 354-6,359,362,364,387,390, 407

Proust, Marcel, 171 Pseudo-Aristóteles, 272 Pseudo-Longino, 241, 259 Pseudo-Plutarco, 66 Pucci, P., 30 Queneau, Raymond, 266 Quine, W., 263 Quintiliano, 149, 157, 165, 169,

173-5, 177-86, 193, 196-7,201, 227,405

Ranciere, ]acques, 235 Ranke, Leopold von, 234-5 Reardon, B.P., 212, 219 Reinhardt, K., 13 Reyhl, K., 421 Ricoeur, Paul, 172,229,235 Riedl, F., 206 Robin, L., 155,270 Rohde, E., 144, 240, 244 Romano, F., 49 Romeyer-Dherby, G., 221 Romilly, J. de, 232

Índice onomástico

Ronsard, Pierre de, 204 Rorty, R., 97, 136 Ross, D., 108,209 Rouilhan, Ph. de, 13 7, 141 Rousseau, ]ean-Jacques, 70 Ruiz, c., 256 Russell, Bertrand, 50, 78 Russell, D.A., 143, 223-4 Sade, Donatien Alphonse François

(dito Marquês de), 70, 215 Santo Agostinho, 204 São Gregório de Nazianzo, 204 Saussure, Ferdinand de, 127 Schiappa, E., 145-6 Schissel von Fleschenberg, O., 225 Schmid, W., 240 Schofield, M., 106, 241 Schonberger, O., 252 Schweitzer, B., 259 Sêneca, 259, 358 Sexto Empírico, 224, 269, 270 Sirinelli, J., 402 Skinner, Burrhus Frederic, 54 Sófocles, 55, 357, 366 Solmsen, F., 402 Spengel, L., 160,223 Staet, Germaine Necker (dita

Madame de), 212 Stemplinger, E., 213 Stengel, A., 421 Stevenson, CL., 54 Tales, 118, 148 T erêncio, 227 Terray, E., 232 Tertuliano, 358 Thalheím, T., 311, 314 T eofrasto, 270 T ocqueville, Charles Alexis Clérel

de, 235 T rédé, M_, 206-7 Tricot, ].,104,124 Tucídides, 232, 237 Ullmann, S., 52 Untersteiner, M., 14,270,283,293,

303-5 Vattimo, G., 136

439

Page 220: CASSIN, Barbara. O efeito sofístico

Vernant, Jean-Paul, 333 Veyne, P., 235 Vickers, B., 149, 371 Vidal-Naquet, P., 210 Vigenere, B. de, 254 Virgílio, 234 Vuillemier, F., 222 Walbank, F.B., 225 Warmington, E.H., 411 Weber, Max, 7 White, H., 235, 239 Wiesner, J., 270

440

Wilamowitz-Moellendorff, U. von,

143 Wilson, c., 207, 282 Winckler, J., 257 Wisrnann, H., 148,272 Wittgenstein, Ludwig, 35, 52,136 Wright, W.c., 188,402,404-5 Xenófanes, 18,269,270-2,392 Xenofonte, 72, 203, 241, 372, 407,

416 Xenofonte de Éfeso, 244 Zeitlin, F., 257, 261

o efeito sofístico

SOBRE A AUTORA

Pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, Barbara Cassin tem formação em filologia e filosofia, com especialização na Grécia antiga. Recentemente foi a responsável pela coordenação do Vocahulaire européen des philosophies, também conhecido como Dicionário dos intraduzíveis (Seuil!

Le Robert, 2004) .. No Brasil, publicou Ensaios sofísticos (Siciliano, 1990); Gregos, bárbaros,

estrangeiros: a cidade e seus outros (com Nicole Loraux e Catherine Peschan­ski; Editora 34, 1993) e Aristóteles e o lógos: contos da fenomenologia comum (Loyola, 1999). É autora também de Si Parménide (P.U.L.lM.S.H., 1980); La Décision du sens (em colaboração com Michel Narcy; Vrin, 1989); Parménide: "Sur la nature ou sur l'étant". Le grec, langue de l'être? (edição bilíngüe; Seuil, 1998); Ce que les philosophes disent de leur langue (P.U.F., 1999); Voir Hélene en toute femme. D'Homere à Lacan (ilustrações de M. Matieu; Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2000) e Sous X (com M. Matieu; Actes-Sud, 2003), entre ou­

tros livros.