Cassirer a Filosofia Das Formas Simbolicas

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    06. Cassirer: a filosofia das formas simblicas 1

    Vladimir Fernandes

    Ponto de partida: a revoluo copernicana de Kant

    Para se compreender os problemas tratados na Filosofia das formas simblicas de Ernst Cassirerdeve-se iniciar pela chamada revoluo copernicana realizada por Immanuel Kant. Por revoluocopernicana deve-se entender a transformao realizada por Kant na epistemologia, semelhante transformao realizada por Nicolau Coprnico na concepo do universo. A teoria proposta por Coprnico nosculo XVI provoca uma verdadeira revoluo no modelo tradicional geocntrico aceito at ento. Na teoriaheliocntrica de Coprnico, a Terra perde seu lugar privilegiado na hierarquia do sistema e o Sol passa aocupar o seu lugar. Kant autodenominou o que realizou um tipo de revoluo copernicana no campoepistemolgico. O problema sobre a origem do conhecimento era respondido at o sculo XVIII por duasprincipais teorias: a do racionalismo e a do empirismo. Os racionalistas, de um modo geral, priorizam a razono processo do conhecimento e aceitam a existncia de idias inatas, independentes da experincia. J osempiristas, de um modo geral, enfatizam o papel da experincia sensvel para aquisio do conhecimento. Oconhecimento depende e resulta da soma e associao das sensaes exteriores na percepo, ou seja, osujeito na aquisio do conhecimento tem uma relao passiva com o mundo. Porm, segundo Kant, asinvestigaes sobre o conhecimento no devem partir dos objetos do conhecimento, mas sim da prpria razoque produz o conhecimento. Assim como Coprnico colocou o Sol no centro do sistema, Kant coloca a razo nocentro das investigaes, para que primeiramente fosse examinado como se processa e se fundamenta oconhecimento e o que possvel conhecer.

    Kant ir concluir nos seus estudos que no so os sujeitos que se conformam aos objetos, mas sim queso os objetos que se conformam s faculdades do sujeito. Para ele, a razo uma estrutura a priori, isto ,anterior experincia e independente dela. J os seus contedos so empricos, isto , dependem daexperincia. Nossa percepo do mundo ocorre no espao tempo, e estas so categorias a priori. Essas duas

    formas existem em nossa conscincia antes de qualquer experincia. O mundo percebido segundo ascaractersticas da razo humana. Por isso sabemos como o mundo se mostra para ns (fenmenos), mas nosomos capazes de conhecer a coisa em si (noumeno). Portanto, conhecimento para Kant o conhecimento dosfenmenos. E s na cincia (mecnica newtoniana) possvel conhecimento universal e necessrio. Para Kant aobjetividade da cincia encontra-se na possibilidade de fundar leis. E as leis cientficas so possveis graass relaes causais que h entre os fenmenos.

    A ampliao da revoluo copernicana

    No segundo volume de sua Filosofia das Formas Simblicas, Cassirer afirma ter realizado em suafilosofia uma ampliao da inverso kantiana. A filosofia das formas simblicas adota esta idia crtica

    fundamental, este princpio em que se apia a inverso copernicana de Kant, a fim de ampli -lo (1925a,p.51).2Cassirer concorda com a revoluo copernicana de Kant, mas v nela um limite: restringir a esfera doconhecimento ao fsico-matemtico.

    Se para Kant a cincia era concebida como um conhecimento universal e necessrio, a esfera daobjetividade por excelncia, em Cassirer a cincia passa a ser compreendida como um conhecimentosimblico, uma construo simblica em meio a outras. Nessa perspectiva, perde seu carter universal enecessrio e se coloca no mesmo patamar de outros conhecimentos simblicos, de outras formas simblicas.

    A epistemologia kantiana diferente da cassireriana porque a situao da cincia tambm diferente. Enquanto em Kant sua epistemologia tem sua reflexo orientada na mecnica newtoniana,

    1 Este texto um resumo do captulo 1 da dissertao de Mestrado em Filosofia

    Ernst Cassirer: o mito poltico como tcnicade poder no nazismodefendida na PUC SP em 2000, sob orientao do Prof. Dr. Mrio Ariel Gonzles Porta.2

    Na verdade, segundo Gonzlez Porta, o que a Filosofia das Formas Simblicas de Cassirer realiza no propriamente uma

    ampliao de Kant, mas sim ambos esto diante de problemas diferentes colocados pela cincia e suas respostas tambm

    apontam solues distintas.

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    considerada como modelo de cincia, em Cassirer sua epistemologia tem sua reflexo orientada na teoria doeletromagnetismo de Maxwell. Foi a impossibilidade de dar uma interpretao mecnica s teorias deMaxwell, na segunda metade do sculo XIX, que marca o fim da hegemonia da mecnica como teoriacientfica. Com a superao do mecanicismo supera-se a condio de intuitividade das teorias cientficas, ouseja, as teorias cientficas no tm mais uma correspondncia imediata com a realidade sensvel. Por exemplo,conceitos como tomo, massa, fora etc., no existem de fato na realidade, mas so construes conceituaisque visam interpretar o real. Para Cassirer, isso significa que objetividade no pode mais ser identificada com

    o conceito de substncia, com um ser sensvel existente, mas sim como uma forma de construir, deinterpretar o mundo simbolicamente, ou seja, como uma funo simblica.Assim, se a cincia uma construo simblica, tal caracterstica no exclusiva da cincia, mas

    tambm de outras esferas da produo cultural. Dessa forma, enquanto que Kant s admite a cincia comoforma de conhecimento objetivo, Cassirer amplia essa caracterstica para outras formas. Considerando que arealidade uma construo simblica e que existem vrias formas de construir simbolicamente a realidade,da se segue que existem vrias formas de objetividade. O giro copernicano de Kant no exigenecessariamente o pluralismo que defende Cassirer, mas o faz certamente possvel. Se em Kant o problemafundamental era garantir a validade universal, em Cassirer passa a ser garantir a autonomia universal. 3 Assim,a tese geral de Cassirer que: 1) existem vrias formas de objetivao da realidade, o que ele chama deformas simblicas, e 2) todas elas tm o mesmo grau de validade. O problema da primeira tese definir o

    que uma forma simblica e quais so elas. O da segunda tese, aparentemente fcil de expor pelas premissas,mas difcil de fundamentar, explicar como todas as formas simblicas possuem o mesmo grau de validade.

    Dessa forma, diante de uma situao diferente da cincia contempornea a Cassirer, ele buscartambm dar uma resposta diferente ao problema epistemolgico. Cassirer ir conceber o conhecimentocientfico como conhecimento simblico. Analisemos ento quais so os pressupostos dessa concepo.

    As formas simblicas

    Retomando o que foi afirmado, Cassirer defende a tese que no s o conhecimento cientfico umconhecimento simblico, mas todo conhecimento e toda relao do homem com o mundo se d no mbito dasdiversas formas simblicas. E o que Cassirer entende como uma forma simblica? Um dos problemas quesurgem ao estudar Cassirer buscar uma definio precisa do que ele entende por formas simblicas e quaisso estas. No seu trabalho Essncia e efeito do conceito de smbolo, resultado das conferncias realizadasem 1921, encontra-se sua definio mais explcita:

    por "forma simblica" h de entender-se aqui toda a energia do esprito em cuja virtude um contedo espiritual de significado vinculado a um signo sensvel concreto e lhe atribudo interiormente. Neste sentido, a linguagem, o mundo mtico-religioso e aarte se nos apresentam como outras tantas formas simblicas particulares. (1956, p.163)

    Para Cassirer, energia espiritual (Energie des Geistes) deve ser compreendida como aquilo que osujeito efetua espontaneamente, ou seja, o sujeito no recebe passivamente as sensaes exteriores, mas simas enlaa com signos sensveis significativos. Da que toda relao do homem com a realidade no imediata,mas mediata atravs das vrias construes simblicas. A produo do simblico, no somente a linguagem, espontnea, todavia tambm condio imprescindvel para captao do sensvel. Segundo Cassirer, essessignos ou imagens no devem ser vistos como um obstculo, mas sim como a condio que possibilita a relaodo homem com o mundo, do espiritual com o sensvel. Atravs de signos e imagens pode-se fixardeterminados pontos do fluxo temporal das experincias. (1956, p.164)

    O ser humano no tem um papel passivo de apenas receber as impresses sensveis se conformando aelas, mas antes so estas que so conformadas pelas faculdades humanas. Atravs da capacidade de produzirimagens e signos o homem consegue determinar e fixar o particular na sua conscincia, em meio sucesso defenmenos que se seguem no tempo. Os contedos sensveis no so apenas recebidos pela conscincia, mas

    antes so engendrados e transformados em contedos simblicos. (1956, p.165)

    3Cf. Gonzlez Porta. Curso de Histria da Filosofia II.- PUC.SP. 1

    osem. 1998.

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    Segundo Cassirer, o material sensvel o ponto de partida comum das distintas formas simblicas apartir do qual vo transformar a mera expresso sensvel num contedo significativo dotado de sentidosimblico. Cada forma simblica configura os contedos sensveis na sua forma particular e especfica. Ao sedesignar um algo exterior por meio de um signo sonoro se diferencia e se fixa um sentido determinado a umobjeto especfico. O signo sonoro no apenas uma expresso da diversidade do exterior, mas sim a prpriacondio de possibilidade da organizao interna das representaes. Cassirer afirma explicitamente comoformas simblicas o mito, a linguagem, a religio, a arte e a cincia.4

    Signo e smbolo

    Assim, conforme o que foi exposto, ficam estabelecidos os seguintes pontos: 1) no se tem acessoimediato realidade; 2) a realidade construda simbolicamente por diferentes perspectivas, diferentesformas simblicas; 3) signos e smbolos so produzidos espontaneamente pelo sujeito na sua captao dosensvel. E o que vem a ser um signo e um smbolo? Cassirer tambm pouco tematizou a esse respeito, maspode se dizer que, embora os dois sejam produtos da atividade do sujeito, pertencem a esferas diferentes.Para Cassirer, um signo uma entidade sensvel dotada de significado e que permite um acessointersubjetivo, como, por exemplo, as palavras. Entidade sensvel, porque possui uma existncia emprica,enquanto signo sonoro ou escrito. dotada de significado pois representa algo e permite um acesso

    intersubjetivo, enquanto conveno comum daquilo que representa, como, por exemplo, a palavra livro. J umsmbolo consiste num dado sensvel que possui significado, seja ele signo ou no. Segundo Cassirer, todo dadosensvel carregado de sentido pela percepo que impregnada simbolicamente. Ou seja, toda percepo domundo simblica, isto , no existe um dado sensvel puro ao qual seja atribudo sentido posterior, mas simdados sensveis j concebidos com sentido, como smbolos.5

    A tese principal de Cassirer que toda relao do homem com o mundo mediada por um sistema designos. Esses sistemas de signos no so necessariamente lingsticos, podem ser artsticos, matemticos etc.Mas a linguagem, enquanto sistema de signos, participa tambm de vrias formas simblicas, como mito,religio, cincia. Dessa tese da mediao sgnica entre o sujeito e o objeto desprendem-se vrias outras.6Embora o sujeito produza o mundo atravs da sua espontaneidade, necessrio um sistema de signos parafixar os significados. O idealismo de Cassirer funda a espontaneidade na dependncia do signo. O signo quem possibilita a intuitividade, que permite fixar os significados em meio ao fluxo temporal dos eventos.Assim, o sujeito depende dos signos para significar, para objetivar o mundo. Ordenar o mundo significaatribuir-lhe sentido atravs dos signos. Da que para pensar o mundo necessrio um sistema de signos, como,por exemplo, os da linguagem. O pensamento ento depende da linguagem e, logo, segundo Cassirer, paradiferentes estruturas de linguagem correspondem diferentes estruturas de pensamento. Embora a linguageme o pensamento no sejam a mesma coisa, eles caminham juntos. A linguagem estrutura o que percebemos e oque pensamos. A capacidade de ver coisas diferentes depende da capacidade de fazer distines lingsticas.Aquilo que no se pode nomear como se no existisse. Por exemplo, os habitantes dos plos distinguem muitomais gradaes do branco do que os de outras regies. Para Cassirer, o signo a prpria condio depossibilidade da organizao interna das representaes.

    Cassirer, no seu Ensaio sobre o Homem, busca fundamentar sua tese do homem como animalsymbolicum, argumentando que s o ser humano que atinge o estgio de uma linguagem proposicional,enquanto mesmo os animais mais evoludos atingem apenas uma linguagem emocionale uma inteligncia prtica,susceptveis de aprender a identificar sinais por reflexos condicionados, o que os coloca muito distante deuma linguagem simblica.7

    Para Cassirer, s o homem desenvolve por si mesmo uma linguagem e uma inteligncia simblica. Dessaforma, a questo sobre o que o homem e qual sua diferena mais primria e especfica em relao aos outrosseres ganha novo enfoque. No Ensaio sobre o homem, Cassirer defende que mais adequado definir o homemcomo animal symbolicumdo que como um animal rationale, pois esta ltima definio contempla apenas umafaceta do homem, uma capacidade que no se faz presente em todas as suas produes, j que no se pode

    4 O problema de incluir outras formas simblicas nessa lista demandaria uma longa abordagem que no o objetivo centraldeste estudo.5

    Essa tese ser analisada no item 1.56

    Cf. Gonzlez Porta. Curso de Histria da Filosofia II.- PUC.SP. 1o

    sem. 1998.7

    Como por exemplo nas experincias de Pavlov (Cassirer, 1944, p.60).

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    dizer que a linguagem primria, o mito ou a religio sejam puramente racionais. Mas ao defini-lo como umanimal symbolicumse caracteriza sua diferena fundamental, de ser um produtor de signos e smbolos na suarelao com o mundo (1944, p.50). Pode-se comparar essa definio de Cassirer a duas outras concepesclssicas do homem. Aristteles definiu o homem como animal poltico e Marx, em A Ideologia Alem, ocaracterizou como um homo faber, homem construtor de coisas. Na realidade, essas definies no soexcludentes, mas esto relacionadas, sendo que a de Cassirer enfatiza uma caracterstica mais primria. Oque garante que o homem seja racional, construtor de coisas, e poltico a sua condio de criar smbolos. O

    sistema de smbolos e a condio para ordenao do pensamento e da ao, seja essa ao desencadeada pelavontade ou pela necessidade.8

    Pregnncia simblica e simblica natural

    Segundo Cassirer, o sujeito no tem acesso a um dado sensvel puro, como prope o sen sualismo. Odado sensvel sempre carregado de sentido pela percepo que j originariamente simblica. Ou seja, atese da pregnncia simblica de Cassirer nega a tese do sensualismo que afirma que o dado sensvel um dadofenomenolgico puro. Na experincia sensvel, por mais elementar que seja, nunca existe um mero dadosensvel, mas toda experincia contm sempre um dado sensvel com significado. Para Cassirer, os sujeitos

    no recebem os puros dados sensveis e os transformam, mas antes os mesmos j aparecem impregnados desentido; ou seja, o dado sensvel surge j fundido com o significado. Sua definio que

    por pregnncia simblica h de entender-se o modo como uma vivncia perceptual, isto , considerada como vivncia sensvelentranha ao mesmo tempo um determinado significado no intuitivo que representado concreta e imediatamente por ela.(1929a, p.238)

    A pregnncia simblica a condio de possibilidade de toda forma simblica, pois ela evidencia ocarter simblico originrio da nossa percepo. Isso remete a outra tese de Cassirer que a simblicanatural, ou seja, que a capacidade da conscincia representar simbolicamente um fenmeno originrioprprio da sua essncia.

    Assim, tem-se que: 1) A capacidade de representar originria no ser humano; representaosimblica s existe porque existe a capacidade inata de representar, ou seja, a simblica natural. 2) Dessemodo, toda simblica artificial pressupe a simblica natural, pois esta sua condio de possibilidade. 3)Toda percepo j constituda simbolicamente, isto , atravs de smbolos, pela pregnncia simblica. 4)Quando se perde a capacidade de representar o mundo simbolicamente se perde tambm a capacidade deorden-lo.

    Dessa forma, Cassirer fundamenta sua tese e sua crtica ao sensualismo. A percepo no recebe odado sensvel puro, antes o constri simbolicamente e significativamente. Assim, um mesmo dado sensvelpode ser visto por perspectivas diferentes. Cassirer, no seu trabalho Essncia e efeito do conceito desmbolo, d como exemplo um traado de linhas que formam um desenho. Este pode ser concebido como umaobra de arte para o pensamento esttico, como uma figura mgica para o pensamento mtico, como uma funolgica para a matemtica.

    Classificao das formas simblicas

    Para Cassirer, em toda forma simblica h uma relao entre o signo e o significado, mas essa relaono se d da mesma maneira entre as formas simblicas, mas sim numa tripla graduao: expressividade,representao e significado. Vejamos cada uma delas. a) A relao de expressividade tpica do mito. Nessarelao, h uma identidade entre o signo e o significado. O signo se confunde com o significado, ambos estofundidos. Os smbolos no representam a coisa, mas se confundem com ela; o nome, a imagem, toma o lugar eos atributos da prpria coisa que designa. Esse fato est na base da experincia mgica com o mundo. b) Arelao de representao caracterstica da linguagem. H uma separao entre o signo e o significado. Onome est no lugar da coisa de forma convencional e serve para represent-la. c) J a relao de significado

    8Ver frente item 1.7.

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    tpica da cincia. H uma independncia entre o signo e o significado. Embora na relao de significado seutilizem signos, estes no permitem uma retraduo em termos de elementos sensveis. Existe uma autonomiado signo em relao ao mundo sensvel; os signos se tornam uma espcie de fices.

    Os trs tipos bsicos de relao entre o signo e o significado estabelecidos por Cassirer resolvem oproblema de se classificar trs formas simblicas que ele aborda explicitamente. A relao de expressividade tpica do mito, a de representao tpica da linguagem e a de significado, da cincia. J com respeito religio e arte, com base nas afirmaes de Cassirer, pode-se tentar posicion-las nessa relao.

    Caractersticas da produo simblica

    Retomando, em linhas gerais, o percurso desenvolvido at ento, Cassirer parte da revoluocopernicana de Kant, ou seja, da tese epistemolgica que afirma que no so os sujeitos que se conformamaos objetos, mas que so estes que se conformam s faculdades do sujeito. Porm, Cassirer no aceita alimitao da objetividade esfera da cincia. Argumenta ele que a cincia, enquanto uma produo espontneado sujeito, apenas uma forma de objetivao em meio a outras. Assim, para Cassirer, a cincia no concebida como uma forma de conhecimento privilegiada, que estaria acima de outras, mas sim no mesmopatamar de outras formas de objetivao produzidas pelos sujeitos. A cincia, juntamente com essas outras

    formas de objetivao, Cassirer denomina como formas simblicas. Para ficar mais claro, pode-se resumir asprincipais caractersticas de uma forma simblica como: 1) So construes simblicas realizadas pelossujeitos, ou seja, conforme j foi visto, toda relao dos sujeitos com o mundo se d no mbito simblico. Daque uma forma simblica uma construo simblica espontnea efetuada pelos sujeitos. 2) Tm em comum ofato de serem todas produes simblicas, isto , todas possuem uma origem simblica comum e um modo designificao embasado nos mesmos pressupostos. 3) A diferena reside no fato de cada uma construir suaprpria realidade de forma especfica, ou seja, no existe uma realidade que seja inter pretada dediferentes formas, mas sim uma realidade que construda de formas diferentes, com diferentesperspectivas e valores. 4) Portanto, so irredutveis umas s outras, isto , cada forma simblica constri suaprpria realidade de modo particular, no se coincidindo e, portanto, no se confundindo uma com outra. 5)So criadoras de totalidade ordenada, ou seja, cada uma cria seu prprio cosmos explicativo para suasinterrogaes. 6) Cada qual pretende possuir validade universal, isto , essas totalidades ordenadas no seconcebem como uma forma de interpretao em meio a outras, mas sim como a nica vlida. 7) Dascaractersticas 3, 4, 5 e 6 resultam as antinomias da cultura. Como cada forma simblica no se concebe a simesma como apenas uma forma particular em meio a outras, mas sim almejam uma validade universal, issoleva ao permanente conflito entre as formas simblicas. Cada uma quer se afirmar como a nica verdadeira epara isso deve combater as demais.

    Assim, a concluso geral desse item, at ento, que as diferentes formas simblicas no convivem deforma harmnica; pelo contrrio, j que so vises totalizantes da realidade, cabe a cada uma se intitularcomo a nica verdadeira e para isso deve combater as demais. Mas para Cassirer as formas simblicas nopodem se julgar umas s outras, j que todas, enquanto construo simblica, tm o mesmo grau de validade. 9

    Cassirer tambm alerta que a reflexo filosfica poderia escapar de uma posio restrita semelhante seconseguisse encontrar uma viso de conjunto que possibilitasse abarcar todas as formas simblicas nas suasrelaes imanentes entre si.

    Processo da cultura humana

    Conforme foi exposto, Cassirer diferencia e define o homem como um animal simblico, um ser quecria signos e smbolos e dessa forma interpreta (constri) a realidade, mesmo que nos estgios maisprimitivos no tenha conscincia dessa produo, a produo sgnica a sua condio de possibilidade paracaptao da realidade. Cassirer denomina as vrias construes ordenadoras do mundo como formas

    simblicas e afirma que todas so iguais em valor, j que entende que todas tm o mesmo grau deobjetividade. No bvia essa tese de Cassirer, j que implica que, por exemplo, o mito e a cincia so

    9Essa questo ser analisada no item 1.8

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    objetivos na mesma proporo. A resposta para tal questo encontra-se na concepo de objetividade deCassirer que, diferentemente de Kant, no concebe objetividade como intersubjetividade universal, mas simcomo construo da realidade. Nesse sentido, todas as formas simblicas so objetivas na mesma proporo,

    j que todas constroem espontaneamente sua realidade.Krois considera que a idia de liberao do homem um elemento bsico na Filosofia das Formas

    Simblicasde Cassirer. Pois o homem, enquanto animal simblico, se liberta da estreiteza de uma existnciaorgnica e consegue conservar e transmitir os contedos da cultura para outras geraes. Mas Krois adverte

    que a idia de liberao de Cassirer no deve ser entendida como uma idia de progresso. Pois esta, tal comoentendia o esclarecimento, concebia que mediante a utilizao dos mtodos racionais e cientficos aplicadosem vrios aspectos da vida humana se alcanaria uma melhoria geral, tanto social quanto moral. O que Cassirerenfatiza na sua perspectiva de liberao do homem a sua atividade, a sua possibilidade de autonomia deao. A sua Filosofia das Formas Simblicas, embora se encontre no esprito do esclarecimento, no defendeum princpio de progresso, em que as formas simblicas se sobreporiam umas s outras e o prprio mito seriasuperado e eliminado. No se atinge um estgio de pura organizao racional: o que existe um constanteconflito entre as formas simblicas e, principalmente, entre a concepo mtica e no mtica do mundo. ParaKrois, esta concepo se confirma em O Mito do Estado, obra em que Cassirer mostra que o mito nunca eliminado totalmente da vida social, porque o homem no exclusivamente um ser racional, tem potencialracional, mas primariamente simblico. O homem, enquanto animal simblico, est sujeito a vrias foras,

    emocionais, morais, artsticas etc., mas tambm tem potencialmente a capacidade de interagir com elas. Daque para Krois a concepo de histria de Cassirer assume um carter herico, pois o homem no passivo,ele pode provar sua liberdade.O homem s pode testar e provar sua liberdade empenhando-se em umaconstante luta para liberar-se a si mesmo da prpria ignorncia, barbarismo e medo. A concepo de Cassirerde histria herica. (1987, p.186)

    A liberdade do homem pressupe ele reconhecer-se como criador de seu prprio mundo. medida quese reconhece como criador consciente da sua liberdade de agir e da sua responsabilidade; mas aconteceque, adverte Cassirer, a liberdade no simplesmente uma ddiva do cu concedida gratuitamente ou algo quepertena intrinsecamente natureza humana. A liberdade deve ser conquistada, exercitada e mantida, o quepara muitos se torna um fardo e no um privilgio. Esse um dos problemas do nosso sculo: a renncia

    prpria liberdade em meio crise do conhecimento.

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    Referncias Bibliogrficas

    Obras de Ernst Cassirer

    1 1918. Kant, vida y doctrina. Trad. Wenceslao Roces. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993. Captulo III.2 1923. Filosofia de las Formas Simblicas I: el lenguaje. Trad. Armando Morones. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1998.3 1925a. Filosofia de las Formas Simblicas II: el pensamiento mitico. Trad. Armando Morones. Mxico: Fondo de Cultura Econmica,

    1998.4 1925b. Linguagem, mito e religio. Trad. Rui Reininho. Porto-Portugal: Rs-Editora Lt, [199-].5 1929a. Filosofia de las Formas Simblicas III: Fenomenologa del reconocimiento. Trad. Armando Morones. Mxico: Fondo de Cultura

    Econmica, 1998.6 1929b. Disputacin de Davos entre Ernst Cassirer y Martin Heidegger. In: HEIDDEGER, Martin. Kant y el problema de la metafisica.Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996. p. 211 a 226. (obs. 1929: realizao do debate).

    7 1932. LaFilosofia de la ilustrao. Trad. Egenio Imaz. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1997. Cap. VI.8 1942. Las ciencias de la cultura. Trad. Wenceslao Roces. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993.9 1944. An Essay on Man: An introduction to a philosophy of human culture. New Haven and London: Yale Universiy Press, 1992.10 1944. Ensaio sobre o Homem: introduo a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomas Rosa Bueno. So Paulo: Martins Fontes, 1994.11 1946. The Myth of the State. New Haven London: Yale University Press, 1973.12 1946. O Mito do Estado. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.13 1956. Esencia y efecto del concepto de smbolo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1975.14 1979. Symbol, Myth and Culture: Essays and lectures of Ernst Cassirer 1935 - 1945.Ed. VERENE, Donald Phillip. New Haven London:

    Yale University Press, 1979.15 1996. The philosophy of symbolic forms IV: the metaphysics of symbolic forms. Trad. John M. Krois. Ed. By John M. Krois e Donald P.Verene. New Haven And London: Yale Univ. Press, 1996.

    10Essa questo foi analisada no captulo 3 da referida dissertao de Mestrado (vide nota 1).

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