CASTRO & CUNHA. Quando o campo é o arquivo
-
Upload
monalisatreveri -
Category
Documents
-
view
10 -
download
2
Transcript of CASTRO & CUNHA. Quando o campo é o arquivo
CPDOC/FGV Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, 2005 1
APRESENTAÇÃO
Quando o campo é o arquivo
Celso Castro e Olívia Maria Gomes da Cunha
Este número de Estudos Históricos reúne uma seleção de trabalhos apresentados
no seminário “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias
guardadas”, realizado em 25 e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação
Getulio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS/UFRJ, com o
apoio da Associação Brasileira de Antropologia.1
O objetivo do seminário foi refletir sobre o uso de fontes arquivísticas na
pesquisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como sobre a
constituição e organização de arquivos de antropólogos, de instituições de antropologia
ou que apresentassem grande interesse para a disciplina.
Nossa motivação, tanto para o seminário quanto para esta publicação, advém da
percepção de que, cada vez com mais intensidade, antropólogos têm realizado um tipo
de trabalho de pesquisa – nos arquivos e sobre arquivos – tradicionalmente associado a
historiadores ou arquivistas. Além de utilizar arquivos como fonte de conhecimento
para a produção de suas análises, desde, pelo menos, os anos 1980, os antropólogos têm
refletido sobre a natureza de registros documentais transformados em fontes e, em
alguns casos, têm produzido e/ou organizado arquivos e coleções a partir de uma
perspectiva antropológica. Ainda assim, persiste, entre o público em geral e no mundo
acadêmico (mesmo entre os próprios antropólogos), a idéia de uma associação
privilegiada da antropologia com um modelo de pesquisa de campo consagrado desde a
clássica introdução de Malinowski a Argonautas do Pacífico ocidental, de 1922.
Apesar de vários antropólogos importantes terem feito pouca ou nenhuma
pesquisa de campo no sentido malinowskiano – Mauss e Lévi-Strauss são dois
exemplos eloqüentes –, o trabalho de campo permanece como uma marca distintiva da
disciplina aos olhos dos não-antropólogos, bem como uma espécie de ritual de
1 A homepage do seminário, que inclui a programação, os resumos e o texto completo de algumas comunicações que não foram incluídas neste número da revista, é: http://www.cpdoc.fgv.br/campo-arquivo/.
CPDOC/FGV Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, 2005 2
passagem identitário para os próprios antropólogos, como se quem não fizesse pesquisa
de campo não fosse “realmente” antropólogo.
Nos 80 anos decorridos desde a publicação de Argonautas, os “primitivos”
deixaram de ser tão “primitivos” – deixaram de ser povos sem documentos,
característica que então os diferenciava dos ocidentais. Antropólogos já não têm mais o
objetivo de acumular em arquivos e coleções específicas os registros de seus “feitos”,
conquistas e contatos com nativos e “exóticos”. Arquivos criados desde o século XIX
com tais finalidades vêm sendo objeto de contenda, recusa, crítica e novos usos por
parte de povos etnológicos e/ou populações tradicionalmente transformadas em objeto
da pesquisa antropológica. Além disso, a antropologia deixou de se interessar apenas
pelos “primitivos” e passou a se interessar também pelos povos “ocidentais”, com seus
arquivos e patrimônios documentais já constituídos. Alguns desses investimentos
resultaram numa espécie de inversão dos modelos de objetificação tradicionalmente
adotados, uma vez que antropólogos e, por conseguinte, procedimentos metodológicos e
relações estabelecidas no campo transformaram-se em fontes de novas leituras, poderes
e disputas. Os territórios dos arquivos têm sido ocupados por novos sujeitos. Ainda que
novos usos dos arquivos por parte dessas populações venham sendo observados e, por
vezes, partilhados pelos antropólogos, as implicações políticas e discursivas dessas
formas de intervenção nos permitem imaginar o arquivo como campo povoado por
sujeitos, práticas e relações suscetíveis à análise e à experimentação antropológica.
Ao pensar esse seminário, nossa intenção não era, de forma alguma, negar o
papel fundamental que a pesquisa de campo “tradicional” teve e ainda tem para a
constituição da antropologia como disciplina e como recurso de método poderoso para a
produção de etnografias. Nosso objetivo envolvia, no entanto, uma ampliação e
diversificação da forma como se pode pensar a prática antropológica, que não a deixasse
restrita à pesquisa de campo.
Há ainda muito pouca reflexão no campo da antropologia, em particular da
brasileira, sobre esse tema. Imaginamos que uma forma útil de contribuir para essa
discussão era partir da experiência concreta de antropólogos lidando com arquivos. Com
isso, não estávamos desprezando a reflexão “teórica” sobre o tema, e sim enfatizando
nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o
risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e
princípios metodológicos abstratos. Esperamos que o resultado dessa experiência, aqui
reproduzido, ajude a estimular novas discussões sobre o tema.