CASTRO, L. R. O Que a Política Tem a Ver Com a Transformação de Si - Considerações Sobre a...

31
793 Lucia Rabello de Castro* Amana Rocha Mattos* Análise Social, vol. XLIV (193), 2009, 793-823 O que é que a política tem a ver com a transformação de si? Considerações sobre a acção política a partir da juventude Neste artigo discutimos como é que as práticas e o campo da acção política podem ser um modo de subjectivação para os jovens na actualidade. Por meio da análise de 19 entrevistas com jovens brasileiros do Rio de Janeiro, em que se investigou a sua militância nas escolas, universidades e partidos políticos, determinámos três aspectos centrais que qualificam o processo de construção de si pela via da política: o enfrentamento do desconhecido, a valorização da acção no presente e a gestão dos conflitos entre o público e o privado, que exigem o trabalho de totalização do campo das identificações. Palavras-chave: juventude; política; subjectivação; participação. What does politics have to do with self-transformation? Considerations on political action from the standpoint of youth In this paper we discuss how the practices and the scope of political action can be a mode of subjectivation for young people today. By means of the analysis of 19 interviews with Brazilian youngsters of Rio de Janeiro, where their militancy in schools, colleges, and political parties was investigated, we could determine three central aspects which qualify the process of self construction through political activism: the facing of unknown outcomes, the relevance of action in the present, and the conflicts between public and private spheres, which demand totalizing the field of identifications. Keywords: youth; politics; subjectivation; participation. INTRODUÇÃO O campo da política permaneceu distante da experiência juvenil, que, até à idade da maioridade civil, se construiu sobretudo no âmbito dos espaços privados ou pré-políticos, da casa e da escola. Os estudos brasileiros que em * Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Pasteur 250 – Urca, Rio de Janeiro CEP 22290 902, Brasil. e-mail: [email protected] e [email protected].

description

Artigo completo.

Transcript of CASTRO, L. R. O Que a Política Tem a Ver Com a Transformação de Si - Considerações Sobre a...

  • 793

    Lucia Rabello de Castro*Amana Rocha Mattos*

    Anlise Social, vol. XLIV (193), 2009, 793-823

    O que que a poltica tem a ver coma transformao de si? Consideraessobre a aco poltica a partir da juventude

    Neste artigo discutimos como que as prticas e o campo da aco poltica podem serum modo de subjectivao para os jovens na actualidade. Por meio da anlise de 19entrevistas com jovens brasileiros do Rio de Janeiro, em que se investigou a suamilitncia nas escolas, universidades e partidos polticos, determinmos trs aspectoscentrais que qualificam o processo de construo de si pela via da poltica: oenfrentamento do desconhecido, a valorizao da aco no presente e a gesto dosconflitos entre o pblico e o privado, que exigem o trabalho de totalizao do campodas identificaes.

    Palavras-chave: juventude; poltica; subjectivao; participao.

    What does politics have to do with self-transformation?Considerations on political action from the standpoint of youthIn this paper we discuss how the practices and the scope of political action can bea mode of subjectivation for young people today. By means of the analysis of 19interviews with Brazilian youngsters of Rio de Janeiro, where their militancy inschools, colleges, and political parties was investigated, we could determine threecentral aspects which qualify the process of self construction through politicalactivism: the facing of unknown outcomes, the relevance of action in the present,and the conflicts between public and private spheres, which demand totalizing the fieldof identifications.

    Keywords: youth; politics; subjectivation; participation.

    INTRODUO

    O campo da poltica permaneceu distante da experincia juvenil, que, at idade da maioridade civil, se construiu sobretudo no mbito dos espaosprivados ou pr-polticos, da casa e da escola. Os estudos brasileiros que em

    * Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Pasteur 250 Urca, Rio de Janeiro CEP 22290 902, Brasil. e-mail: [email protected] [email protected].

  • 794

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    momentos anteriores analisaram a aco poltica dos jovens debruaram-sesobre a sua actuao como estudante, principalmente universitrio, e nesselugar o jovem foi considerado actor poltico legtimo nos espaos pblicosconstitudos (Foracchi, 1965 e 1972; Ianni, 1968). A aco poltica dos jovensenvolvidos em movimentos estudantis, iniciada com a maioridade, posicionou--os como interlocutores vlidos no campo das disputas societrias.

    A importncia dos novos movimentos sociais (Halcli, 2000), assim comoa reconfigurao dos espaos pblicos com o avivamento de lutas e tensesna esteira das grandes transformaes econmicas e sociais das ltimasdcadas, actualizaram as foras e conflitos que configuram o campo dapoltica. No que se refere mais especificamente juventude, a condioestudantil, importante balizador da identidade jovem, dada a centralidade domundo do trabalho na definio das posies dos sujeitos na sociedade, viu--se modulada por outros modos de subjectivao juvenil propiciados pelacultura do consumo e pelos valores e crenas por ela propagados (Costa,2004). Os modos de construo da subjectividade juvenil no mundo contem-porneo sobrepem reduzida via oferecida pelo estudo continuado outraspossibilidades de identificao e sociabilidades, tais como aquelas encontra-das nos grupos de pares que encenam estilos de vida e identidades provis-rias. Neste sentido, a condio do jovem, no apenas como estudante, tor-nou-se visvel, carregando consigo diferentes injunes e demandas face aosoutros grupos sociais. Nos ltimos anos temos visto uma crescentemobilizao e organizao de grupos juvenis, seja a reboque de uma induogovernamental para que esse segmento levante as suas bandeiras (Novaeset al., 2006), no intuito de influir e subsidiar as polticas pblicas, seja porconta de uma percepo mais aguada dos jovens a respeito de direitosespecficos (IBASE/POLIS, 2007) a serem conquistados ou preservados nocontexto da nova ordenao jurdica estabelecida pela promulgao do Esta-tuto da Criana e do Adolescente em 1990.

    Podemos ento perguntar como que as novas formas de associao eorganizao juvenil, assim como as novas percepes dos jovens a respeitoda sua posio na sociedade, modificam a maneira de se aproximarem evislumbrarem o campo da poltica. Diante de mltiplas possibilidades deconstruo de si e das suas trajectrias de vida, dadas as incertezas queemolduram o agir no mundo contemporneo, como ser que os jovensconstroem hoje o campo da poltica, entendido como a arena de antagonis-mos e lutas onde se disputam projectos e valores da vida em comum(Mouffe, 2005)? De que formas o campo da poltica pode atrair os jovense convoc-los, configurando-se tanto como uma arena de prticas comotambm um modo de os jovens se constiturem como sujeitos? As nossasperguntas vo na direco de inquirir o campo das lutas que so travadas naesfera pblica a respeito de que mundo quer construir o campo que se

  • 795

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    denomina poltica (Mouffe, 1993). Queremos entender se esse campo pode,em algum momento da trajectria dos jovens, ganhar um sentido especial einterpel-los quando, ento, a construo de si mesmo converge e se sus-tenta nas prticas do agir poltico1. Nesse sentido, importa examinar de queforma, frente aos reposicionamentos do lugar dos jovens no mundo contem-porneo, se produz um desejo pela poltica quando um campo objectivadode prticas sociais interpela o sujeito como algo que enforma a sua verdade2.Assim, neste trabalho pretendemos examinar como que o campo da po-ltica pode oferecer dispositivos de subjectivao para os jovens de hoje,situando-se como um modo, entre outros, de produo da subjectividadejuvenil.

    Verifica-se, sem dvida, que os jovens se sentem convocados por umapluralidade de solicitaes: de estudo e profissionalizao (CEPAL, 2004), detrabalho (Korman, 2007), de realizao de si (Mattos e Castro, 2008), deexperimentao de si e do mundo (Pais, 2001; Ronsini, 2007), de participa-o (Forbrig, 2005; Vulbeau, 2001). Tais demandas organizam-se em pr-ticas e discursos que ampliam os modos pelos quais os jovens constroemas aces e narrativas sobre si mesmos, na busca de se individualizarem ede se produzirem como sujeitos singulares. Neste trabalho analisaremos tam-bm a forma como a poltica se pode constituir como um espao de prticase discursos que incide sobre a prpria transformao adolescente do jovem,ajudando-o na passagem de uma identificao limitada famlia e aos conhe-cidos para uma identificao geral no social.

    Os jovens so considerados aqui como pertencendo a uma categoriasocial determinada pelas condies histricas e culturais em que vivem;ocupam um lugar especfico na estrutura social e geracional que privilegiaformas particulares da experincia social (Mannheim, 1967). Neste sentido,entendemos que a construo de uma identidade juvenil se estrutura emestreita relao com as condies sociais mais amplas que qualificam aexperincia das novas geraes e atravs da diversidade introduzida poroutras variveis, tais como o gnero, a raa, a classe social e o local demorada, que diversificam a experincia geracional. Portanto, a experincia de

    1 Aqui queremos sinalizar a importncia da passagem adolescente, ou seja, do processode ressignificao dos vnculos primrios que se d na adolescncia, posicionando o jovemfrente s mltiplas demandas de pertena do mundo de hoje, de cuja elaborao psquica,modulada pelos contextos culturais e histricos nos quais o jovem se encontra, depende aformao dos novos vnculos sociais fora da famlia (Rassial, 1997).

    2 Quando falamos da verdade do sujeito referimo-nos ao aspecto estruturante quedeterminados acontecimentos podem ocasionar na vida dos sujeitos, possibilitando uma adesoincondicional. Nesta linha, Alain Badiou (2007, p. 93) resgata o tema da verdade como aconvico declarada ao evento que pe em movimento a subjectivao. Ao afirmar que averdade militante, ou no , Badiou assinala que a fidelidade ao acontecimento instaura asua verdade na medida em que o seu endereamento para, e a todos, ou seja, universal.

  • 796

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    ser jovem hoje resulta, simultaneamente, do cruzamento de uma certahomogeneidade de condies culturais e histricas que organizam o processode subjectivao dos indivduos de uma determinada faixa etria e daheterogeneidade dos contextos particulares que pluralizam os modos comotal processo ocorre. Alm disso, como nos lembram Rattansi e Phoenix(1997), a identidade juvenil est atravessada por uma pluralidade de discur-sos com referncia s mltiplas posies que os indivduos ocupam, algunsdeles contraditrios entre si. O que parece importante ento o modo comoos jovens mesclam elementos de vrias posies subjectivas e as integramno processo de construo das suas prprias identidades.

    SUBJECTIVAO POLTICA: DESMANCHO IDENTITRIOSOB A GIDE DA IGUALDADE

    O processo de subjectivao poltica no se inaugura na maioridade civil,quando a lei autoriza, e, no Brasil, obriga, os jovens ao voto. Entendemoseste processo como uma construo a partir de deslocamentos subjectivosdesencadeados por enfrentamentos ocorridos tanto nos espaos privados dafamlia como na escola, na rua e na cidade. A operao adolescente as-sinala, na juventude inicial, o processo gradual da ancoragem de si numraio mais amplo e diverso de prticas sociais e discursos, evidenciando tantouma busca de novas identificaes como a ressignificao das experinciasanteriores que cada jovem carrega consigo. Mas antes mesmo de tal opera-o assumem relevncia no processo de subjectivao poltica as possibili-dades anteriores de participao do indivduo nas decises que envolvemtanto a sua vida como, de maneira crescente, a sua em conjuno com ados outros. So situaes que requerem a construo de colectivos em quese visa acordar o que as pessoas querem construir juntas e onde se querchegar na aco conjunta. Na escola, por exemplo, as crianas tm deenfrentar situaes que as colocam diante de colegas bastante diferentes emtermos de opinies, hbitos, valores, como tambm de aparncia fsica.Nesses momentos, elas tm de aprender a negociar e a dialogar, assim comoa viver e a lidar com conflitos e tenses inerentes convivncia social, emprol de tarefas e objectivos comuns. Frequentemente, tais conflitos e tensesso considerados mais como perturbaes da ordem vigente e impedimentosao trabalho escolar do que como experincias de aprendizagem. No entanto,a escola oferece s crianas oportunidades mpares de subjectivao poltica.Aqui so confrontadas e provocadas pelas dificuldades que emergem nasrelaes entre iguais (os seus pares), ao mesmo tempo que tm de lidar como difcil exerccio da participao em colectivos hierarquizados (Xavier,2008), atendendo posio subalterna em que se encontram face aos pro-fessores e adultos em geral.

  • 797

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    O processo de subjectivao poltica no deve ser visto como uma apren-dizagem de capacidades sociais e cognitivas que visam o eficiente estabeleci-mento de acordos e o manejo dos conflitos. No se trata de uma capacitaoem que o indivduo adquire atitudes para viver melhor com os outros.Referimo-nos ao processo em que os sujeitos se dispem a serem afectadospor situaes, nem sempre previsveis, da convivncia, dele esperando umsentido para as suas experincias e uma forma de as poderem comunicar aosoutros. Concomitantemente, so tambm relevantes os recursos institucionaisde que os indivduos dispem para expressar sentimentos, desejos e opiniesfrente aos outros (Castro, 2007). Deixar-se afectar gera deslocamentos in-ternos ao eu (tenses) que podem constituir-se como dispositivo deautoconhecimento e de conhecimento dos outros. As identificaes colecti-vas forjadas na construo de causas e objectivos a serem descobertos ecompartilhados no entremeio dos conflitos e choques das vontades indivi-duais constituem uma parte fundamental deste processo. Critchley (2007,p. 119), reflectindo justamente sobre o processo de formao de uma von-tade comum, quem aponta a importncia de um momento metapoltico paraa aco poltica que no depende da astcia da razo, mas da experinciatica de responsabilidade frente ao outro, fundada na possibilidade de sedeixar mobilizar radicalmente pelo outro e que, dividindo e desdobrando o eu,jaz no cerne da subjectividade humana.

    Ao pensar o processo de subjectivao poltica como algo distinto do quese convencionou chamar comportamento poltico (que se expressa novoto, por exemplo), o seu mbito inflecte-se para os espaos consideradoscomo no convencionalmente polticos, como a escola, abarcando prticase actores no convencionais, assim como o que no est institudo formal-mente. Quem nos ajuda a pensar a poltica fora do seu enquadramentoconvencional Rancire (1996), que distingue o modo prprio da raciona-lidade poltica como aquele que estabelece divises no mundo comum, apon-tando para outras formas de ser e agir emuladas pelo valor universal daigualdade. Este autor distingue a poltica da polcia, sendo esta ltimaentendida como sinnimo de governana, ou seja, como o conjunto deprocessos pelos quais se operam a agregao e o consentimento das colec-tividades, a organizao dos poderes e a gesto das populaes, a distribuiodos lugares e das funes e os sistemas de legitimao dessa distribuio(1996a, p. 372); por sua vez, a poltica, em sentido estrito, consideradacomo a perturbao da ordem vigente pela dissenso, cuja proposta veri-ficar as condies da suposio de que todos so iguais, questionando adistribuio posta dos espaos privados e pblicos, daquilo que convmtratar-se a, de quem deve estar nesses lugares, quem pode ou no pertencer comunidade poltica. Nessa perspectiva, o sujeito poltico (entendido comoem acto, e no como uma entidade) aquele que opera uma desclassifi-cao da realidade, porque introduz um litgio sobre algo que deveria ser

  • 798

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    tornado visvel e levado em conta, mas no o . A subjectivao polticaconsiste, portanto, na formao de um eu, no como um si mesmo, mascomo uma relao de um si para um outro (Rancire, 1995, p. 66), em queo que est em jogo uma disputa sobre a igualdade, produzindo contestaessobre a ordem identitria vigente. A lgica da emancipao conduz inexora-velmente a um desmancho identitrio, criao de um espao entre, emque se articulam identificaes que ainda no esto postas e que, sob ongulo do status quo, pareceriam equivocadas, pois levam desordem nasclassificaes identitrias existentes.

    Concordando com este autor, mas situando-nos na perspectiva da cons-truo subjectiva, propomo-nos pensar o processo de subjectivao polticacomo o gradual alargamento do campo de identificaes, as quais criamdisjunes e tenses internas, alterando caminhos identitrios previsveis edados. A lgica do outro (Rancire, 1995) aplicar-se-ia trajectria indi-vidual por meio da abertura a identificaes improvveis, pois introduzi-riam articulaes no antecipadas, tendo em vista as disputas sobre a questoda igualdade. Tal processo faz implodir as demarcaes etrias que determi-nam que as crianas e os jovens no possam participar politicamente nasociedade antes da maioridade, j que a vigncia da poltica se daria a partirda insero de qualquer um no mundo da linguagem e do outro. A subjecti-vao poltica relaciona-se, portanto, na experincia individual, com as vicis-situdes do campo identificatrio, ou seja, de como acontecem e so resol-vidas, na trajectria de cada um, as questes emergentes da relao entre oeu e o outro vistas sob a gide da emancipao. No caso das crianase dos jovens, por exemplo, tal processo estaria em curso nas situaes emque lhes requerido que ajam em conjunto com os outros, vivendo, traba-lhando e relacionando-se com os demais na produo de um mundo emcomum, ou quando irrompem questes referentes justia, igualdade e aoque vai mal, cuja resoluo feita sem recurso ao poder dos adultos ou normatividade vigente.

    Assim, subjectivar-se politicamente implica romper determinaes a res-peito de quem est ou quem no est credenciado para ser um sujeitopoltico, pois na contestao da ordem identitria jurdico-social que omomento de subjectivao poltica se realiza. Do mesmo modo, a repartioentre o que constitui o mundo pblico e o mundo privado, o que deveimplicar todos e o que deve ser deixado de lado, tambm colocada emquesto, pois justamente em torno das disputas acerca dos credenciamen-tos que se esboam os novos espaos de negociao e controvrsia. Aquiloque se considera como importante para todos, o mundo pblico, passa a serdisputado na medida em que outros valores, interesses e questes que noesto colocados se tornam causa e objecto das lutas (Costa, 1997).

    Neste sentido, interessante notar que a viso habermasiana de umaesfera comum, distinta da privada, coincide com a postulao de uma an-

  • 799

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    terioridade da ltima em relao primeira no curso da vida individual(Dbert, Habermas e Winkler, 1987). Os indivduos estariam aptos a ingres-sar na vida pblica aps um perodo preparatrio necessrio para assumiremesta posio. Ou seja, o espao pblico, distinto do privado, estaria aberto aco dos indivduos no momento da sua maioridade, a qual determina,assim, um antes e um depois na possibilidade de aco pblica. Ao demar-car-se uma fronteira unvoca que separa o mundo comum do privado,estabelecem-se igualmente as prerrogativas distintas de quem detm, ou no,a capacidade do agir poltico. Defendemos tal posio em conjunto comoutros autores que questionam se tal diviso no estaria a excluir do mundopblico a pluralidade e a particularidade (Mouffe, 2002; Young, 2000) ouvalores alternativos necessrios convivncia comum (Boling, 1991; Honig,1996).

    Analisaremos, a seguir, a forma como a poltica pode contribuir para astransformaes dos jovens, na medida em que, para muitos deles, a cons-truo de si mesmos converge para o campo das disputas e lutas acerca daprpria transformao societria e dos valores e princpios que deveriamguiar a convivncia comum e os seus destinos. Essa busca dos jovensenraza-se nas situaes e prticas em que esto inseridos, seja a escola, paraos mais novos, seja outras instituies e associaes que passam a frequen-tar, medida que se tornam mais velhos.

    TRANSFORMAO DE SI, TRANSFORMAO SOCIETRIA:O QUE OS JOVENS TM A DIZER

    Na seco que se segue vamos analisar os depoimentos de 19 jovens3 deambos os sexos entre os 16 e os 25 anos, colhidos por meio de entrevistassemiestruturadas, a respeito da sua insero em movimentos de militncianas escolas, universidades ou em partidos polticos.4 O objectivo das entre-vistas foi inquirir como que os jovens se colocavam em relao s suasescolhas de participarem em algum movimento, instituio ou associaocujos objectivos se relacionassem com a mudana social. Para chegarmosaos 19 entrevistados procurmos entrar em contacto com grmios de colgiospblicos e particulares, associaes do movimento estudantil e partidos pol-

    3 Todos os nomes neste trabalho so fictcios.4 O projecto de pesquisa que deu origem ao presente trabalho, Subjectivao poltica na

    infncia e juventude: participao, reconhecimento e contextos institucionais (apoiado pelaFundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro e pelo Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), incluiu tambm nesta etapa entrevistas a jovensmilitantes que trabalhavam em ONGs e instituies ligadas a aces sociais com jovens, numtotal de 32 entrevistas.

  • 800

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    ticos que tivessem alas voltadas para a militncia juvenil. O critrio para seremincludos foi a disponibilidade para uma entrevista sobre a sua militncia.Muitas vezes o nosso jovem de primeiro contacto na instituio foi o jovementrevistado. Outras vezes tivemos de procurar contactos com jovens cujosconhecidos estavam envolvidos em algum movimento ou colectivo. Procur-mos misturar participantes cujo envolvimento com a militncia fosse recente,com alguns outros em que esta fosse j de mais longa data.

    Quatro desses jovens pertenciam a associaes estudantis (UBES, AMES,UEE, UJS5), quatro pertenciam a directrios estudantis universitrios (CAs,DCEs6), quatro a grmios estudantis nas escolas e sete a partidos polticos(PT, PSDB, PSOL, PDT7). Com excepo de uma, as entrevistas foramindividuais; a nica que foi realizada com trs jovens simultaneamente ocor-reu com os jovens de um partido poltico, porque os trs desejaram serentrevistados, e aconteceu estarem todos no local no momento em quesurgiu o convite para a entrevista. Todas as entrevistas foram realizadas noslocais escolhidos pelos prprios jovens, em geral nas escolas (para osgremistas), nas universidades e associaes estudantis ou na sede dos partidospolticos. O roteiro das entrevistas incluiu perguntas sobre a forma como osjovens retratavam a sua trajectria de actuao nos grupos a que pertenciam,desde as suas motivaes at aos encontros que foram significativos para oingresso nesses grupos, como descreviam as inflexes da sua vida pessoal,como analisavam a sua actuao nos grupos e as dificuldades e frustraes dea estarem. Fizeram-se tambm perguntas sobre as suas ideias acerca datransformao da sociedade, por que projectos e regimes polticos tinhampreferncia, qual a sua viso sobre a democracia e representatividade poltica,como viam as possibilidades de actuao poltica hoje e no futuro e queconsideraes podiam fazer sobre a juventude como um todo.

    De um modo geral, os jovens entrevistados so provenientes das classesmdias (mdia e baixa), ainda que este aspecto no tenha sido particularmentetematizado na entrevista. No entanto, julgando pelas oportunidades educacio-nais que tiveram, a sua origem social, local de morada e nvel educacional dospais, os jovens entrevistados podem ser considerados como tendo podidousufruir, em maior ou menor grau, de um tempo longo de estudos (at, pelomenos, ao nvel secundrio) sem que a presso pela sobrevivncia os tenhaforado a assumir precocemente o lugar de trabalhadores. Considerar esseaspecto importante para a nossa anlise, pois a participao poltica pode

    5 UBES: Unio Brasileira dos Estudantes Secundaristas; AMES: Associao Municipal dosEstudantes Secundaristas; UEE: Unio Estadual dos Estudantes; UJS: Unio da JuventudeSocialista.

    6 CA: Centro Acadmico; DCE: Directrio Central dos Estudantes.7 PT: Partido dos Trabalhadores; PSDB: Partido da Social-Democracia Brasileira; PSOL:

    Partido Socialismo e Liberdade; PDT: Partido Democrtico Trabalhista.

  • 801

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    ser particularmente difcil para aqueles que esto pressionados pela demandade ganharem a sua sobrevivncia ou contriburem para a da famlia. Noentanto, algumas pesquisas tm mostrado (IBASE/POLIS, 2007, p. 38) quedesde a dcada de 70 mudou significativamente a composio dos actoressociais juvenis no mbito dos movimentos juvenis, de jovens da classe mdiapara a dos sectores populares. Neste sentido, parece possvel afirmar que aparticipao social e poltica dos jovens nos diversos mbitos e modali-dades se tem constitudo como outro momento e oportunidade, assimcomo o trabalho e a escola, para que o jovem possa aprender, conhecer-se,afirmar o que quer e ampliar os seus horizontes sociais e culturais.

    Cabe ressaltar tambm que a opo de reunirmos, neste mesmo universode anlise, membros de grmios, do movimento estudantil e dos partidospolticos enfatiza o carcter de participao em organizaes claramenteinstitucionalizadas, que convivem com hierarquias na sua estrutura e pos-suem uma forte ligao com projectos polticos mais amplos. Mesmo que aparticipao em grmios estudantis possa parecer mais prxima do quotidia-no de um jovem do que a pertena a um partido poltico, a opo de se sergremista no pareceu ser uma escolha mais fcil, como nos foi mostradopelos entrevistados. Sobretudo, as trajectrias de muitos jovens activistas empartidos polticos, neste e noutros trabalhos (Souza, 1984; Martins Filho,1987), iniciam-se nos grmios estudantis das escolas, havendo, portanto,uma certa soluo de continuidade em tais escolhas. Essas caractersticasdistinguem esses grupos de militantes de outros, tambm entrevistados nesteprojecto, cuja aposta os conduziu ao envolvimento em ONGs, movimentossociais ou associaes locais, organismos muito menos institucionalizados,com vnculos mais horizontalizados e que no possuem uma clara vinculaocom o tema da poltica institucional.

    Trs dimenses analticas significativas puderam ser extradas das entre-vistas, tendo em vista a questo colocada anteriormente, a saber: de queforma a compreenso de si prprio e do seu lugar no mundo atravessa hojeo campo da construo de uma aco poltica em determinados colectivos,tais como grmios, associaes estudantis ou partidos polticos, ou aindacomo que a construo de si no encalo das identificaes extrafamiliaresencontra sentido nas prticas do agir poltico, que se enreda em crenas eprojectos de transformao societria.

    FLARTANDO COM O DESCONHECIDO: IDENTIFICAESTORTUOSAS COM O CAMPO DA POLTICA

    Discutimos neste tpico o modo como a aproximao dos jovens aomundo da poltica se processa de modo hesitante, e mesmo ambivalente,dando origem a uma construo narrativa retrospectiva que tendeu a realar

  • 802

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    estes movimentos de aproximao e distanciamento em relao poltica atculminarem na adeso a um tipo de aco. Portanto, mais do que a tentativade identificar factores pontuais que teriam causado essa escolha, interessou--nos a construo do entrelaamento entre o subjectivo e as condiesobjectivas da vida de cada jovem, quando, ento, o que era percebido comoexterior passa a ser considerado como parte da prpria vida do jovem. importante ressaltar tambm que a natureza da metodologia do presentetrabalho favoreceu a investigao das noes de poltica, participao emotivao. Tanto nas perguntas das entrevistas semiestruturadas comonas respostas dadas pelos jovens, esses sentidos puderam ser trabalhados,repensados e ressignificados sem a rigidez usual dos questionrios de per-guntas fechadas. Na anlise das narrativas pudemos constatar como ossentidos para as perguntas so parte de um processo de elaborao dosprprios entrevistados, que utilizaram a situao da entrevista como meca-nismo de autoconhecimento. Por outro lado, a anlise que fizemos das suasnarrativas no tem a pretenso de delimitar factores determinantes, ou com-portamentos que correspondam a um padro nas trajectrias juvenis, mas deassinalar como acontecem os caminhos da aco poltica na vida de cadajovem e a tenso resultante das escolhas identificatrias que lanam osjovens num campo que ainda para eles desconhecido. Neste sentido, apresente pesquisa lana luz sobre aspectos biogrficos, debruando-se sobreas transformaes subjectivas relacionadas com a adeso aco poltica, aocontrrio do que tm feito outras pesquisas brasileiras orientadas para an-lises amplas, atravs do recurso a bases de dados quantitativas sobre aparticipao social e poltica de jovens, como as de Venturi e Bokany (2004),Castro e Vasconcelos (2009) e Krischke (2005).

    Os entrevistados trouxeram histrias de vida bem diferentes, assim comovariados foram tambm os seus caminhos at chegarem aos grupos a quepertencem. Nessas trajectrias individuais algumas pessoas surgem como fi-guras significativas no envolvimento poltico dos entrevistados, favorecendo aampliao das identificaes do jovem com grupos sociais mais amplos, almdo seu crculo familiar. Esse outro, que assume o papel de mediador, apa-receu em muitas entrevistas na figura de um amigo ou de um professor queindicava caminhos quando estavam em questo diferentes pontos de vista eopinies. Assim, a aproximao do jovem ao campo das lutas mais colectivas,mais amplas, fora de seu crculo familiar, pode ser facilitada pela sua identi-ficao com algum que assuma caractersticas que transitam entre o familiare o extrafamiliar (como amigos, colegas, professores, etc.):

    Eu estudava em outro colgio, eu era representante de turma desde aquinta srie [...] e nesta turma eu conheci um rapaz que fazia movimento deoposio [...] eu entrei pr movimento e conseguimos reactivar o grmio[Luciana, presidente de um grmio e militante do PT].

  • 803

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    A aproximao de Luciana a esse rapaz no foi meramente ideolgica.Apesar de a jovem no nos dar muitos detalhes, ao falar posteriormente dasua entrada no Partido dos Trabalhadores, afirma que o seu envolvimento sedeu atravs dos seus conhecidos, amigos, e s a partir dessa aproximaoafectiva ela pde encantar-se com a ideologia do PT. Outro entrevistado,Leonardo, ao contar o seu longo processo de entrada no movimento estu-dantil, deixa-nos entrever a importncia de identificaes mediadoras na suahistria que lhe despertaram o desejo pela poltica. Ele tambm sinaliza comoa aproximao ao mundo da poltica estudantil se deu de maneira fortuita eexperimental. No se tratou de uma adeso planeada, linear e racional, masde um somatrio de contingncias que o levaram, enfim, a tomar a decisode uma escolha por um movimento organizado:

    Quando eu morava em Petrpolis ainda, eu conheci um professor que erade um partido poltico... A ele me chamou para uma reunio. A eu fui paraa reunio... Achei legal... Me filiei quele partido, na poca, quer dizer, quaseme filiei, mas no tinha ficha. A, depois o partido no se reuniu mais... Aeu mudei de colgio, n, a esqueci o professor e o professor esqueceu de mim[...] A conheci um cara da minha sala que queria montar o grmio, que erada UJS e dessa coisa da chapa para montar o grmio, e tal. A eu topei, euentrei na chapa do grmio e a ganhamos a eleio do grmio, fiz parte dogrmio. A, depois, isso em Petrpolis, n, a eu mudei de colgio de novo.A, no ano seguinte eu estava no 2. ano do ensino mdio, a montei umachapa de grmio, a eu e o pessoal ganhamos a eleio do grmio. A eu fuipara uma entidade... a Associao Petropolitana de Estudantes [Leonardo,integrante da UJS e da UEE, itlicos nossos].

    O convite do professor e a quase filiao num partido so citados peloentrevistado como o incio do seu percurso poltico. No entanto, a ficha deinscrio no estava disponvel, o partido no se voltou a reunir e houvemudanas de colgio e encontros fortuitos: tudo isso torna este percursoerrtico, como se as contingncias pudessem levar o jovem a outros desti-nos. A expresso de que houve esquecimentos tanto da parte do jovem comodo professor ressalta o desmentido paradoxal que a trajectria do jovemfornece. Ou seja, na verdade, o aluno no se esqueceu totalmente do profes-sor, que reaparece na narrativa como presena importante na sua histria,como ponto de inflexo para o que aconteceu depois, e para a sua entrada paraa associao de estudantes; mas, por outro lado, o esquecimento foi real, namedida em que no determinou o curso dos acontecimentos, que poderia tersido outro caso no houvesse outras contingncias favorveis.

    A ideia de uma consciencializao prvia adeso a um movimentoorganizado, resultante de uma clareza ideolgica em relao a um projecto

  • 804

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    poltico definido, no parece encontrar respaldo nos depoimentos dos entre-vistados. As identificaes com os amigos, colegas ou professores falam--nos da importncia da identificao com o outro que pertence a um mundodiferente e que acena para o jovem como portador de algo que merece serconhecido.

    O que queremos evidenciar que nas narrativas dos jovens, expressocom maior ou menor clareza, o ingresso no movimento organizado d-se pormeio de uma experimentao e de um exerccio incerto na busca de algo(uma nova experincia, a participao num outro grupo, o conhecimento depessoas diferentes que fazem coisas diferentes) e tambm no desejo de algoque seja transformador na sua vida, ainda que os jovens no consigamantecipar como pode essa ser modificada. Neste sentido, os seus actos soexperimentais e, como diria Arendt (1995), assaltam o indivduo, tomam-nosem uma antecipao clara da finalidade da sua aco. O agir na direco dodesconhecido significa a aposta em descobrir o sentido e a eficcia da suaaco no depois, a aco a precipitar, aos poucos, os acontecimentos.

    Para o jovem Francisco, a entrada no grmio estudantil aconteceu devez, efectivamente, aps a brincadeira de uma amiga que precipitou os seusmovimentos de lenta aproximao agremiao:

    Eu meio que era da galera do grmio antes de me... de entrar de vez. que eu sempre falei com todo mundo e sempre tive muita facilidade deconhecer as pessoas e fazer amigos: conhecia o pessoal da gesto antiga,conhecia o pessoal da gesto nova. A uma amiga me zoou: por que vocno entra pra chapa logo e faz parte do grmio de vez? e eu j tava pensandonisso mesmo, ento decidi entrar. porque eu j ajudava sempre, jparticipava, mas no podia votar na questo dos gastos, por exemplo. Essascoisas mais importantes eu acabava no participando porque isso responsabilidade das pessoas do grmio mesmo. A eu resolvi entrar e opessoal me deu a maior fora porque eles sabiam que eu ia ajudar de verdade[Francisco, integrante de um grmio].

    Francisco hesita, pondera, participa sem se comprometer de facto, atdecidir entrar de vez num grupo que, apesar de no lhe ser totalmentedesconhecido, tinha uma prtica diferente. A sua hesitao inicial perante asugesto da amiga, bem como as suas ponderaes, sinalizam a ambivalnciacom que se aproxima desta experincia, desejada, mas talvez temida, e,finalmente, a sua deciso de entrar no grmio exterioriza o desejo que incitado.

    Assim, o resgate das trajectrias cujos desenlaces se realizam na adesoa uma causa mostra o momento ambivalente e incerto, no mbito docontexto ampliado das identificaes a um outro que lhe acena com um

  • 805

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    mundo ao qual o jovem ainda no pertence, ainda que flarte com ele. No-tamos na ambivalncia das identificaes com esse outro em geral umamigo, colega ou professor as aproximaes e as distncias, o desejo eo no-desejo de ir alm do que se conhece e poder experimentar situaesinditas. Da o carcter tentativo da aco, que procura experimentar antesde um comprometimento mais formalizado.

    Nesta linha de argumentao, analisamos como a famlia, nas mltiplasreferncias que os jovens lhe fazem, pode aparecer com um possvel, masno necessrio, elemento favorecedor das escolhas pela actuao poltica. Aoanalisarmos cuidadosamente as respostas, percebemos que os caminhosnarrativos construdos para falarem dessas experincias so mltiplos e tra-zem contedos e significados muito diversos. Os relatos dos jovens emrelao s histrias dos pais so muitas vezes ambivalentes, mostrando quera figura do pai ou da me imaginariamente marcada pela actuao poltica,quer uma imagem em que o envolvimento poltico dos pais visto comonegativo, inadequado ou obsoleto, o que no favorece o jovem para encon-trar o seu prprio caminho na poltica:

    Eu tenho um lado emotivo muito forte. Eu acho que eu lido compoltica de forma muito emotiva, choro muito, a eu tenho que sair paraconversar com meus amigos, tomar um sorvete... sabe? A situao muito complicada, porque meu pai, que eu falei anteriormente, muitofrustrado com poltica e tudo mais, e hoje em dia no faz mais nada. Eutento no ficar frustrada [Luciana, presidente de um grmio e militantedo PT, itlicos nossos].

    No seu depoimento, Luciana associa imediatamente a sua escolha figurado pai, ex-militante, mas faz tambm questo de dizer que tenta ser diferentedo pai, como se tivesse de se distanciar da sua trajectria para evitar umdestino semelhante.

    Num outro exemplo, Joo conta como o pai lutou contra a ditadura nomovimento estudantil na sua juventude para relacionar esse facto com a suaprpria trajectria, em que s foi levado a participar nas lutas estudantisquando foi expulso por um coronel do colgio onde estudava. Neste instante,Joo deixa-nos perceber como tal situao disruptiva promoveu a ressigni-ficao na sua vida das lutas polticas do pai, mobilizando a sua emoofrente ao acontecimento (a expulso do colgio) na direco de umenvolvimento poltico:

    Antes eu j participava do movimento estudantil na escola, no 2. grau.Foi bem legal quando eu entrei, foi curioso. Meu pai j fez parte do movimentoestudantil na dcada de 60 contra a ditadura. Ele foi presidente do DCE. Eu

  • 806

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    fui expulso da escola por causa de trote no 2. grau e nunca tive muitaparticipao poltica, era novo. Fiz at campanha para o Lula antigamente,mas muito naquela coisa do oba-oba, na graa, do que propriamente algumtipo de engajamento. S que a quando eu fui expulso, na poca, a direcoda escola era um coronel. A resolvi me engajar, participar e da foi [Joo,integrante da UBES, itlicos nossos].

    Ao relatarem a sua prpria histria, os jovens avaliam as escolhas quefizeram e podem ver mais criticamente o que os une e o que os separa dasexperincias dos pais. A famlia, como espao das identificaes primrias,pode tornar mais prximo o campo da poltica para alguns, uma vez que esse um campo distante das prticas culturais em que as crianas e os jovensesto usualmente inseridos. Se a famlia tornar mais prximo, acessvel einteligvel esse campo, provvel que a aproximao poltica se torne maisfcil (no sentido de menos rdua, menos alheia). No entanto, isso no querdizer que os pais que actuaram politicamente favoream necessariamente aactuao poltica dos filhos, pois a experincia dos pais pode continuar a serconsiderada como sendo deles, e no a do prprio jovem. Nesse sentido, aexperincia dos pais, para se tornar algo passvel de ser tomado como umaidentificao positiva para o aqui e agora dos jovens, tem de serressignificada, sinalizando algo significativo situao actual do jovem,para dessa maneira poder mediar o passado dos pais com a actualidade dascircunstncias em que o jovem vive.

    Por outro lado, a famlia muitas vezes referida como no tendo inte-resse algum pelo campo da poltica e at mesmo como uma entidade bas-tante crtica em relao actuao poltica que os jovens empreendem.Nesses casos, os jovens precisam de afirmar a escolha pela militncia comouma postura vlida, que importante para eles, ainda que a famlia insistaem que esse tipo de aco no leva a nada, ou significa perda de tempoimportante, como o caso dos dois jovens abaixo:

    A princpio eu no tive [apoio da famlia], minha me era uma das pessoasque dizia que no ia levar a nada, que grmio estudantil era s baderna, entreoutras coisas que aquele senso comum que a sociedade impe. S que aolongo do tempo eu fui conseguindo provar pra minha famlia que no dessaforma, que eu tenho um ideal de transformao [...] at porque sou um alunoque estudo, vou cursar um curso acadmico e viso tambm a minhaemancipao [Davi, membro da AMES, itlicos nossos].

    No, minha famlia no tem nada a ver com poltica. Minha me nogosta, meu pai no gosta. Minha me no gosta que eu faa movimentoestudantil, t sempre reclamando, porque geralmente eu perco algumas

  • 807

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    aulas, s vezes no me alimento direito, passo o dia todo correndo. Ento meio complicado [Rafaela, membro de um grmio, itlicos nossos].

    O exerccio das actividades polticas, ao ser visto negativamente pelosfamiliares, exige por parte dos jovens a justificao do seu envolvimento (emrelao aos pais e a si mesmos) e a defesa das suas ideias e dos seusposicionamentos num momento das suas vidas marcado ainda por tantasindefinies. Assim, compreendemos a abordagem aqui desenvolvida comodistinta da oferecida pelas teorias de socializao poltica. Para autores comoFlanagan (Watts e Flanagan, 2007; Flanagan e Gally, 1995; Flanagan et al.,2003), por exemplo, que sustentam a ideia de uma socializao poltica dacriana e do jovem atravs da formao escolar, os comportamentos, opi-nies e valores polticos assumidos correspondem s etapas do desenvolvi-mento psicolgico da criana e do jovem. Os valores compartilhados pelafamlia, a maneira como a escola estimula discusses e actividades colectivasrelacionadas com a prtica democrtica, so considerados essenciais para aformao de um sujeito poltico. Contrariamente a esse processo linear, asentrevistas mostraram que necessrio um distanciamento em relao aosfamiliares, no que concerne a assuntos polticos, para que o jovem tomecomo sua a tarefa de uma definio dos seus prprios caminhos e escolhas.Mais: a identificao com os professores, como mediao com o campo dapoltica, marcada pela contingncia, ou seja, ela no determina de antemoa probabilidade ou uma propenso do jovem para se aproximar da poltica,mas pode apenas, retrospectivamente, ganhar sentido e valor na construonarrativa da sua adeso a esse campo. Assim, a experincia com o campoda poltica pode dar-se em situaes em que a escola no cumpre esse papelou a famlia no parece interessar-se por essa temtica. Assumindo hoje ospares uma funo fraterna (Kehl, 2000), no sentido de apoiarem e orien-tarem escolhas identificatrias, a aproximao ao campo da poltica ganhaoutras mediaes, como as dos amigos e colegas, que representam para osjovens o lugar do igual com quem podem identificar-se pelo facto de esta-belecerem uma horizontalidade nas relaes, ao contrrio das identificaesverticais, como aquelas relacionadas com um adulto, um dolo ou um lder(Kehl, 2000).

    Assim, na reconstruo das diversas tramas narrativas sobre a adeso aocampo poltico dos jovens entrevistados ressalta mais a indeterminao dessemovimento, gerado pelo desejo de experimentar o novo, ainda que issoprovoque angstias em relao quilo com que se ir deparar. A experinciado outro, principalmente de algum de fora do circuito familiar, pode favo-recer a aco concreta da adeso ao campo poltico, o qual, inicialmente,parece ocorrer de modo tentativo e precrio.

  • 808

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    A ACO NO PRESENTE, OU BUSCANDO A CONSISTNCIA DE SER

    A busca de outros vnculos fora do ambiente familiar, ampliando oscircuitos sociais e a insero dos jovens em grupos de movimentos explici-tamente polticos, aponta para uma dimenso de extraordinria importnciaque o sentido da aco no tempo presente, no momento actual das suasvidas. A identificao com o campo da poltica ancora-se na possibilidade deagir no presente; a sensao de ser til e de poder ser um agente transfor-mador da sociedade relaciona-se com as possibilidades de aco que osjovens vislumbram nos movimentos polticos organizados. A poltica permitea reverso do tempo de agir depois, to omnipresente na vida dos jovens,que adiam para o futuro uma srie de decises e realizaes, para o agiragora. Se a busca de outras identificaes move os jovens na direco datransformao social, tais identificaes encontram lugar na aco poltica,que lhes permite, ao mesmo tempo, trabalhar pela transformao do mundoe tambm conhecerem-se a si mesmos, agindo. Essa seria uma das princi-pais potncias identificatrias geradas no campo da aco poltica: agir etransformar(-se).

    Muitos jovens relacionaram o seu desejo de mudarem a realidade e omundo que os cerca com o seu envolvimento na poltica. Para que essasmudanas ocorram, a aco valorizada: aco como prtica, no presente. a poltica que oferece aos jovens possibilidades de aco, conferindo-lhesa posio de actores sociais, responsveis pelo mundo comum. Mais do quediscutirem ideias, os entrevistados falaram do desejo de contriburem parauma mudana e de que as suas aces tivessem uma repercusso e umaeficcia. o que resume Davi, um dos membros da AMES, quando afirma:Quero transformar como protagonista.

    O mundo da poltica traz a possibilidade de um fazer prtico: planear erealizar reunies, campeonatos, manifestaes, ir a congressos, convencerpessoas, viajar, gritar palavras de ordem, aces directamente ligadas aoobjectivo recorrentemente trazido por esses jovens de transformarem arealidade.

    Os entrevistados falam tambm dos estudos e da escola, ou da univer-sidade, como algo importante nas suas vidas actuais. Tais actividades estorelacionadas, principalmente, com uma perspectiva futura, para dar contadas suas responsabilidades enquanto adultos. A entrada no mercado detrabalho, a constituio de uma famlia, a independncia econmica, sopassos ainda no dados ou, ao menos, no consolidados. Estes investimentosque certamente os ocupam no trazem, no entanto, a vibrao que as suasnarrativas contm ao relatarem a possibilidade de agirem agora, a qual osposiciona como interlocutores reais no mundo em que vivem, podendo,com isso, fazer alguma diferena na sociedade. Neste sentido, esta possibi-

  • 809

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    lidade de agirem no agora adquire uma enorme relevncia na vida dosjovens, o que nos remete para a questo dos valores professados e dos ideaisda juventude brasileira.

    Ainda so escassos os estudos sobre os valores dos jovens brasileiros,e um deles, realizado recentemente atravs da pesquisa Perfis da JuventudeBrasileira (Abramo e Branco, 2005), aponta que 57% dos jovens entrevis-tados, numa amostra nacional de 3501 jovens, responderam que os jovensacreditam que podem mudar muito o mundo. Mesmo que seja difcil avaliarcom preciso o significado de tal expresso para estes jovens, outro dadoobtido pode elucidar-nos: de uma subamostra de 1150 jovens, 55% respon-dem que um dos valores mais importantes numa sociedade ideal seria asolidariedade. Portanto, o desejo de mudar o mundo, a cidade, ou a escola,e de criar uma sociedade solidria parece estar no horizonte de valores dosjovens brasileiros, assumindo estes ento um papel de actuao concreta.

    Davi, no depoimento acima citado, fala-nos dessa vontade de participarcomo um actor principal, efectivamente responsvel pelas modificaes quesurgirem da sua interveno. Francisco, por sua vez, ressalta o prazer daaco prtica:

    Comigo assim, se pra fazer, vamos fazer logo, no tem muito o quediscutir, no. O que tiver de ser feito a gente combina, assim, combinaenquanto est fazendo mesmo. Durante, no antes. Antes perda de tempo,eu fico louco pra fazer logo, botar logo a mo na massa! [Francisco, membrode um grmio].

    Muitos foram os exemplos dados pelos jovens que se envolvem na or-ganizao de torneios, competies e festas nas escolas, de como umaactividade trivial como a mobilizao para uma competio desportiva podeadquirir fortes contornos polticos, relacionando-se com o colectivo maisamplo, as hierarquias escolares (relaes entre direco, professores, gr-mio, alunos) e as mudanas no status quo. O agir para produzir transforma-es no status quo, seja na escola, seja na sociedade, alia-se possibilidadede introduzir um ponto de vista singular o do jovem na produo dasociedade.

    A jovem Mariana, ao falar da sua participao poltica, manifesta a emo-o de se ver envolvida numa luta colectiva que abarca um grupo grande dasociedade, como o dos alunos da escola pblica:

    Tem certos tipos de coisas que te fazem, p legal eu estar aqui porqueparticipei de um processo da histria. Por exemplo, a questo do passe livreem 1999 foi uma parada e assim que... P a gente colocou 5000 alunos nasruas e a gente luta at hoje pelo passe-livre [Mariana, militante do PT, itlicosnossos].

  • 810

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    O processo da histria de que fala Mariana tem o sabor de um movi-mento importante no qual ela se sente participante. Importncia que con-siderada no somente do ponto de vista da quantidade de pessoas envolvidas(5000 alunos na manifestao), mas tambm da fora histrica que faz valernovas ideias, novos valores e, portanto, novos destinos para a sociedade.

    Para Alexandre, assim como para vrios dos nossos entrevistados, ointeresse pela poltica emerge no dia a dia da escola, como se ali, naqueleambiente, despertasse neles o desejo de mudar alguma coisa. A escola citada por quase todos os entrevistados como um ambiente propcio des-coberta do imperativo de agir em prol de mudanas sociais. Para Alexandre,por exemplo, a experincia nas aulas com os seus professores estimulouaquilo a que ele chama um olhar mais crtico, de modo que olhar o mundo sua volta assume um sentido performativo, pois o olhar crtico equivale prpria aco de transformao tanto de si mesmo como do mundo, quepassa a ser percebido de forma diferente:

    Eu comecei a ter um olhar mais crtico pra estar debatendo, n, saber maisa fundo o que realmente est acontecendo em muitos casos e [a escola] meajudou bastante, ento foi assim que eu fui pro Movimento Estudantil[Alexandre, militante do PSOL].

    Ao contar-nos a sua experincia inicial no grmio da escola, Marianatambm nos fala da vontade de fazer alguma coisa com os amigos, quesurge por estarem reunidos no espao escolar:

    [...] surgiu um sentimento entre eu e os meus amigos de que j que a gentepassava o dia inteiro na escola, a gente podia aproveitar e fazer alguma coisa.E a o grupo procurou se informar melhor e decidimos montar o grmio naescola [...] foi uma fase muito boa, porque eu sa do meu mundo, assim. Sade Nova Iguau, sabe? [Mariana, militante do PT, itlicos nossos.]

    A jovem revela algumas motivaes significativas para a sua entrada napoltica. Remete para a possibilidade de concretizar algo colectivamente nogrmio por meio de uma aco no presente. Interessante tambm a alusoda jovem ao facto de poder sair de seu mundo por meio da acopoltica: o mundo que considerava o seu era aquele j conhecido, o do seubairro, o da sua cidade. O mundo da poltica era o mundo do outro,desconhecido, que no lhe pertencia, mas que foi tornado seu por fora dasua aco.

    Poder agir no agora faz com que os jovens se percebam como actoresna construo do mundo, e no apenas como espectadores, posicionando--os numa situao de paridade em relao aos adultos. A experincia subjec-

  • 811

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    tiva deixa de ser etrea e percebida to-s interiormente para ganhar pesoe densidade pela aco. Tal como explicitam os entrevistados, pela acoeles so: influem nas decises, participam em momentos histricos deci-sivos, contribuem para que a histria possa ter outros rumos, e assim pordiante. Tal dinmica de construo de si tambm pode ser encontrada nosdiversos modos de participao social de jovens brasileiros que encontramna msica e nas actividades artsticas um meio de evidenciar e tornar p-blicas as expresses colectivas, como demonstraram os estudos de Morgadoe Sanches (2007), Lodi e Souza (2004) e Vianna (2003).

    Se os jovens abraam a aco poltica, porque encontram no agir apotncia de transformar o mundo, assim como de alcanar a sua condiode actor (e, portanto, operar uma transformao que os envolve simultanea-mente a si e realidade). Um ponto importante reside na maneira comoconstroem os imperativos do agir, ou o que os convoca e os torna enredadosna aco. As desigualdades sociais encontradas no pas parecem interpelaros jovens participao, despertando o sentimento de responsabilidade pelomundo que os cerca, intimando-os a fazer algo de concreto, a botar a mona massa, como disse um entrevistado. Para Luciana, por exemplo, essesentimento de responsabilizao foi definitivo quando ela pensou em sair doMovimento Estudantil por causa das dificuldades encontradas:

    ... eu ia passar na rua, olhar um mendigo e pensar: responsabilidademinha!. [...] Voc viver com uma culpa muito complicado. Ento, no mais fcil, mas muito melhor voc transformar aquilo, n? [Luciana,presidente de um grmio e militante do PT, itlicos nossos].

    Neste fragmento de entrevista, a viso da pobreza ressignificada, inse-rindo-se no registo da injustia que invoca a responsabilidade da jovem e quea interpela como agente de mudana. Essa percepo alia-se ao facto depoder reposicionar a sua existncia e a sua aco, relacionando-a com osistema mais amplo no qual est inserida, ao mesmo tempo que a suabiografia individual se imbrica, inexoravelmente, na histria colectiva. Nesteponto, a nossa anlise distancia-se da proposta por Ianni (1968) num textoclssico sobre a participao poltica da juventude brasileira quando afirmaque os jovens adquirem a conscincia (revolucionria) da opresso quandorelacionam a situao de alienao (a sua ou a de qualquer jovem) comosujeitos potencialmente produtivos, embora excludos, como resultado dascontradies do sistema capitalista. Neste sentido, ao totalizarem a sua ex-perincia de alienao como determinao de estruturas econmicas maisamplas, ganham conscincia da opresso. Na anlise que apresentamosdefendemos que a experincia de alienao do outro que decisiva para

  • 812

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    a interpelao e consciencializao do jovem. Neste sentido, seguimos no-vamente Critchley (2007, p. 87), que defende que a conscincia emerge noprocesso de dilaceramento do sujeito frente s demandas do outro, das quaisele no pode dar conta plenamente. , pois, frente ao outro infinitamentedemandante , cuja resposta se organiza como uma responsabilidade dian-te da injustia, que se pode construir uma aco poltica.

    A responsabilizao e a culpa frente s injustias sociais parecem mo-bilizar o jovem em direces que at ento aparentavam estar afastadas dosseus pensamentos, como aquela de agir para modificar o mundo ao seuredor, deslocando-o da posio de espectador. A aco poltica aparece aquicomo auto-realizao, fornecendo ao jovem uma consistncia singular condio de jovem, em geral pouco afeita s questes que atingem a vida emcomum. Desta forma, ele pode perceber o mundo no como algo externo,imposto s suas aces, mas como o produto do que faz, do que deixa defazer e do que no pode fazer (Castro, 2008).

    No entanto, nem sempre a aco dos jovens leva aos resultados preten-didos. A maioria dos entrevistados fala das frustraes a respeito do que noconseguem alcanar, mesmo com todo o investimento psquico que realizamnas actividades do campo da poltica. Ressaltamos que para os jovens aaco assume uma dimenso supervalorizada, j que ela, justamente, quelhes confere expresso singular como sujeitos no mundo comum. Agir sig-nifica no apenas fazer, mas tambm ser. Assim, a aco poltica vistapelos jovens como uma via para se sentirem reais (Winnicott, 1961), comouma forma de contrariarem o sentimento recorrente de que as suas vidascarecem de consistncia, uma vez que tudo nelas remete ou para o passado,quando eram ainda crianas, ou para um futuro incerto, para um tempo emque se tornaro adultos. O sentimento de frustrao torna mais agudos osconflitos entre a vida pessoal, cujos projectos so muitas vezes adiados, eas escolhas da aco poltica. A opo pela poltica no lhes parece fcil,uma vez que nem sempre as suas aces geram resultados altura das suasexpectativas.

    ENTRE O PRIVADO E O PBLICO: TOTALIZANDO O CAMPODAS IDENTIFICAES

    A dimenso analtica que se segue ocupa-se da forma como os jovenslidam com as mltiplas solicitaes que incidem sobre as suas vidas: asdecorrentes da sua identificao com o campo da poltica, assim comoaquelas relacionadas com a vida familiar, profissional e social.

    Os jovens entrevistados relatam que acabam por dedicar grande parte doseu dia s actividades militantes da poltica, o que lhes custa caro, por tal

  • 813

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    opo significar perdas em relao vida pessoal. Frente aos dilemas apre-sentados recorrentemente pelos jovens, pareceu-nos importante averiguar deque forma resolvem tais conflitos, que solues encontram frente a visesconcorrentes e, at mesmo contraditrias, de si mesmos e da realidadesocial. Noutras palavras, pareceu-nos importante saber como que os inves-timentos psquicos na vida pblica e nos projectos colectivos podem encon-trar sustentao, a despeito das perdas e dos conflitos engendrados por taisescolhas.

    Os entrevistados falaram, sobretudo, das crticas que sofrem por partedos familiares, de amigos e de namorado/as, as quais incidem sobre a repar-tio do tempo entre a vida privada e a aco militante, muitas vezes emdetrimento da primeira. As crticas referem-se ao dispndio de tempo eenergia em actividades militantes, visto como muito superior ao que deveriaser a ocupao natural e legtima de um jovem. Em comparao com oinvestimento na militncia, as relaes pessoais de amizade ou afecto, oestudo ou o trabalho deixam de constituir a questo central da vida do jovem.Assim, na viso desses outros, o jovem militante estaria a perder o seu tempo,a gastar as suas foras com algo que no vai dar em nada. A ilegitimidadeda opo pela poltica muitas vezes tambm sentida pelo prprio jovem, queexpressa os seus conflitos internos ao fazer tais escolhas:

    E o grmio, o grmio ocupa tempo... Ento s vezes eu tenho que faltar aula para ir ao grmio, resolver coisas para o grmio [...] Eu consigoconciliar. Mas uma coisa que pesa... [Caio, membro de um grmio].

    Caio fala claramente do tempo que as actividades ligadas militnciaocupam na sua rotina. Deslocamentos e reunies so encargos que ele temde conciliar. Conciliar com o qu? Com outros interesses individuais quetambm parecem importantes, por isso mesmo o desabafo, mas umacoisa que pesa..., que expressa a tenso e o conflito a serem administradospela sua opo pela poltica e que lhe so cobrados no apenas pelos amigos,mas por ele mesmo. Num outro exemplo, Leonardo queixa-se de ser su-gado pelo movimento estudantil:

    A coisa mais terrvel ter que perder aula... No semestre passado, napoca do Congresso da UNE, foi... terrvel! [...] Muita gente reclamatambm que no tem tempo para a vida pessoal. O Movimento Estudantilsuga o tempo demais [...] Desde quando voc entra no MovimentoEstudantil, voc entra com muito gs, mas depois dessa euforia toda, vocvai se organizando [Leonardo, integrante da UJS e da UEE].

    Neste depoimento introduzido um aspecto importante: a ideia de quecom o tempo se vai aprendendo a lidar melhor com os conflitos decorrentes

  • 814

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    de demandas mltiplas e, s vezes, antitticas. No entanto, no apenas otempo que pode ser aliado dos jovens, mas fundamental a abertura parapoder ressignificar os valores e modos de vida. A resoluo de tais conflitosvai depender de como cada um vai articular a sua opo pela militncia como seu projecto de vida pessoal. Assim, a militncia deixa de ser algo a maisque toma o tempo e pesa, para ser encarada como parte essencial do queo jovem faz. o que mostra o depoimento de Joo:

    Eu praticamente abdiquei de uma vida normal [devido ao MovimentoEstudantil], de uma vida que se espera de uma pessoa da minha idade, declasse mdia: que estude, que faa o 2. grau, que depois v para a faculdade,que termine cedo e comece a trabalhar. Ento, [o Movimento] se confundemuito com minha vida, mas no reclamo no, eu gosto [Joo, membro daUBES].

    O traado de uma vida normal foi deixado para trs por este jovem,como algo tpico da vida dos jovens da sua idade. Mas interessante ob-servar, justamente, que a soluo para o impasse reside no facto de amilitncia passar a se confundir muito com a vida e, portanto, a separaoentre lutar pela sobrevivncia individual e lutar pela transformao socialpode misturar-se. A mistura de que fala Joo possvel porque taisdemandas assumem valores equivalentes do ponto de vista subjectivo e umano nem anterior nem mais importante do que a outra. As identificaescom o campo da poltica, assim como as relativas ao trabalho e ao amor,encontram todas lugar no conjunto de movimentos identificatrios do jo-vem.

    Para outro jovem, a soluo passou por se deixar levar pelos efeitos daaco poltica:

    [Dedico] bastante tempo, uma coisa que eu gosto, desfiz at meunamoro por causa disso, seis anos [...] Minha ex-namorada nunca gostou depoltica. Mas uma cachaa difcil de largar, vicia mesmo [Paulo, militanteda Juventude do PSDB].

    Aqui Paulo relata como o rompimento com a namorada preserva a relaocom a poltica, como se a ltima fosse aquilo mesmo de que ele no podeprescindir. Conciliar as mltiplas solicitaes, organizar-se para dar conta detudo, abdicar da vida normal e, sobretudo, totalizar o campo das identifi-caes recontextualizando-as na singularidade da sua trajectria so algumasdas estratgias para que o jovem possa sustentar a opo pela aco poltica.Tudo isso se opera no sem conflitos, dilemas e autocrtica. Em algunsmomentos, os jovens questionam-se sobre a validade da militncia, tamanhas

  • 815

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    so as dificuldades por eles encontradas. o que aparece num outro mo-mento da entrevista de Leonardo:

    Ento, em alguns momentos, voc sente, p, ser que eu poderia fazermais, ser que eu fao o suficiente.... E isso remete a outra discusso, tipose eu fao isso ser que vai ter alguma implicao no futuro, ou eu s percotempo da minha vida, ser que eu estaria mais feliz se eu estivesse em outrolugar? [Leonardo, membro da UJS e da UEE].

    Para o entrevistado, no entanto, o resultado desses questionamentos positivo, pois, segundo as suas prprias palavras, eu acabo me convencen-do da importncia de participar do Movimento. Esse exerccio de questio-namento parece fundamental para sustentar a convico das escolhas dosjovens pela aco poltica.

    Outro jovem, Francisco, d-nos a ntida percepo de como esses dom-nios da vida privada e da aco poltica esto imbricados, ainda que no semuma certa ambiguidade. Perguntado sobre qual seria a importncia do grmiona sua vida, ele responde:

    Ah, a minha famlia vem primeiro. Eu venho primeiro... eu no deixo deviver minha vida pelo grmio, ta ligado? S que o grmio faz parte da minhavida tambm n? Se eu me esforo e deixo de fazer coisas para trabalhar nogrmio, no s por ele em si, mas tambm porque tem meus amigos, queesto l comigo e com eles eu no posso faltar, no gosto de dar furo, sabe?[Francisco, membro de um grmio, itlicos nossos.]

    Francisco afirma que a sua vida vem em primeiro lugar; entretanto,durante toda a entrevista, ao falar do grmio no qual participa, exalta a alegriade estar nesse espao juntamente com os seus amigos, pondo em prticaideias do grupo e dos estudantes da escola. nesse momento que o grmioe a sua prpria vida se confundem, pois, se a sua vida vem primeiro, e ogrmio a sua vida, ento grmio, vida, famlia, amigos, esto todos nomesmo grau de importncia. No entanto, o grmio a sua vida porque lque esto os amigos. Assim, os espaos de sociabilidade e prazer fundem--se com os espaos de discusso colectiva e de luta. Outra entrevistada,Luciana, transmite uma opinio mais incisiva a respeito da prioridade damilitncia na sua vida, afirmando que na sua trajectria ela foi naturalmentedando prioridade militncia:

    Eu gosto muito, sempre me diverti muito, eu fiz muitos amigos, fiz a partepartidria com a parte divertida, sabe? Acho que isto importante [...]E normalmente a sociedade pe prioridade na sua vida particular. Eu

  • 816

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    naturalmente botei minha prioridade na poltica, e no foi um dia que eucheguei e falei hoje eu vou priorizar poltica. No, eu naturalmente fao apoltica uma prioridade mesmo... [Luciana, presidente de um grmio emilitante do PT, itlicos nossos].

    Para ela existe a clareza, que no compartilhada por outros militantes,de uma prioridade que deve ser dada num certo momento escolha daaco poltica. Mesmo assim, tal prioridade no resultado de uma escolharacional e planeada, mas algo que aconteceu na sua vida, opo que traduza sua prpria forma de ser, pelo facto de a poltica se ter tornado a suaprpria identidade. Por outro lado, tal opo resulta tambm em prazer ediverso.

    O prazer aliado poltica evidenciado por muitos entrevistados:

    Me d mais prazer estar no Movimento Estudantil do que fazer vriasoutras coisas. lgico que difcil conciliar s vezes com namorada, muitascoisas... E, alm disso, tem que conciliar com a prpria faculdade, com osprprios estudos; tem que conciliar isso com o trabalho, mas o que me dmais prazer, assim, o Movimento Estudantil [Vicente, membro deDirectrio Acadmico e de Directrio Central dos Estudantes, itlicosnossos].

    Tanto Luciana como Vicente falam claramente da realizao pessoalobtida no Movimento Estudantil. Usando termos como divertir-se e terprazer, os jovens caracterizam a sua actuao poltica com qualificaesque, usualmente, esto circunscritas vida privada ou ao convvio socialdescomprometido. O que estes depoimentos nos fazem pensar que oexerccio da poltica no sentido como uma obrigao assumida apenasintelectualmente, mas como uma actividade que permite aliar o compromissoe o envolvimento com a alegria e a diverso. Aqui invocamos o trabalho deRuby (1996) sobre o entusiasmo, como a emoo fundamental que articulaas ressonncias subjectivas dos acontecimentos com a vida social. O entu-siasmo, segundo esse autor, necessrio ao campo da aco poltica, poisd sustentao impulsividade decisiva na direo de uma aspirao totalidade (Ruby, 1996, p. 10). Assim, o entusiasmo e o prazer da convi-vncia representam, na economia psquica, a argamassa que ampara a acomilitante.

    Ao identificar a poltica com algo que lhes d prazer, muitos jovens falamde como a sua militncia ganha outro significado ao aproxim-la de vivnciascomo a amizade, o divertimento e a fruio. Tal soluo busca sintetizar eintegrar o trabalho e o compromisso com a diverso e o prazer. A poltica,para esses jovens, vivida como espao de convivncia, sociabilidade, des-

  • 817

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    coberta de si e do outro. Esses tm sido tambm alguns resultados que tmaparecido em pesquisas sobre a participao poltica de jovens em estudosinternacionais (Pleyers, 2005; Mxel, 1994; Ion e Ravon, 1998), o que apontatambm para modos distintos de viver e de fazer poltica no mundo contem-porneo. O que os entrevistados aqui, e os jovens de outras pesquisas tmmostrado, que, ao aproximarem-se do campo da poltica, esse serreinventado na esteira de valores como a sociabilidade, a festa e a expe-rimentao. Num pas como o Brasil, a participao dos jovens na acopoltica enreda-se certamente nos valores expressivos to presentes nessacultura (Barboza Filho, 2003), mas indica tambm um modo de tornar equi-valente, em termos de investimento e gratificao psquicos, o campo davida pessoal e o dos projectos colectivos.

    Numa entrevista, Jos e Beatriz falam sobre o seu envolvimento nasactividades polticas8. Falam de uma dedicao intensa, por amor, uma vezque no remunerada, que pulsa nas veias de ambos:

    Jos L [em outra actividade] eu trabalho, aqui uma actividadeque no tem remunerao, aqui a gente faz por amor mesmo.

    Beatriz Pe amor nisso [...] Porque a gente se dedica. de amormesmo, de corao. Tem gente at que brinca, vocs dormem no par-tido? [...] tudo com amor, com o pulsar, t aqui dentro, t na veia[Jos e Beatriz, militantes da Juventude do PSDB].

    Este trecho da entrevista faz-nos pensar nas motivaes que trouxeramesses dois jovens para a poltica e que os fazem manter-se nela. Vemos umagrande entrega s actividades realizadas, num envolvimento que s se jus-tifica se o que est a ser feito assume um sentido maior. A oposio marcadapelos entrevistados entre trabalho remunerado e militncia diz-nos muitoa respeito da tenso que se estabelece na vida desses jovens. Envolver-se napoltica significa, para eles, dedicar-se a uma actividade que lhes toma muitotempo e no contribui para aspectos fundamentais da vida privada, como aremunerao. Beatriz fala dessa escolha como algo que estaria pulsando: taqui dentro, t na veia.

    Apesar das frustraes, todos os entrevistados pareciam seguros emrelao sua opo pela militncia:

    [O Movimento] foi uma coisa com que eu me identifiquei. Foi muitaidentificao, sabe? Ento, no me prejudica em nada... Hum, claro que me

    8 Excepcionalmente, esta entrevista foi realizada em simultneo com trs militantesjovens do partido.

  • 818

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    prejudica em algumas coisas, tipo: fico doente, fico rouca... soconsequncias, n? [Luciana, presidente de um grmio e militante do PT.]

    Compreendemos que as solues encontradas pelos jovens entrevistadospem em questo a dicotomia entre vida privada e a vida pblica, que postulaque a actuao na vida pblica requer uma segunda natureza, racional eargumentativa (Habermas, 1984), prpria de uma subjectividade pblica.Assim, modalidades subjectivas distintas deveriam reger a convivncia davida em comum, por um lado, e a convivialidade da vida privada, por outro.Parece que tal gesto da experincia de si e dos outros posta em questoao longo da nossa anlise. A construo de si parece colocar-se como ofulcro de aces privadas e pblicas, pelo que os dispositivos da vida co-lectiva por exemplo, as aces polticas em partidos, associaes estu-dantis, etc. constituem-se como recursos de auto-realizao e autoconhe-cimento. Por outro lado, as questes pblicas so inflectidas pelo modocomo os indivduos hoje as assumem no enquadramento especfico das suastrajectrias de vida. Um dos aspectos importantes que ressaltam na partici-pao poltica dos jovens que os afectos, as emoes e as amizades, longede serem elementos secundrios ou sem importncia, so centrais na acopoltica, uma vez que no se percebe a adeso s causas colectivas comoum sacrifcio ou uma renncia ( vida privada e aos prazeres), mascomo um lugar onde essa aco pode e deve combinar emoo e prazer comtrabalho e compromisso. Para os jovens, as causas e os projectos colectivosdevem ser pessoais, no sentido de que devem sensibiliz-los, mais do queconvenc-los. Neste sentido, os ideais de uma vida pblica e dos investimen-tos nos projectos colectivos devem representar o apelo de uma vida boa,mais do que o de uma vida correcta. A poltica privatiza-se quando desvelapara o indivduo uma srie de questes e problemas que at ento no faziamparte do seu repertrio de aces e escolhas, criando um horizonte novo queenlaa a sua histria com a do seu grupo social; pblica porque evidenciaum campo de aco colectivo em que tm de ser discutidas e resolvidas asmatrias que merecem o interesse de todos. A aco poltica sustenta-se,apesar das frustraes e custos pessoais, porque pode competir com outrosinvestimentos psquicos ao longo de um processo em que se totaliza ocampo das identificaes, permitindo a confluncia entre o que de todose o que prprio de cada um.

    CONCLUSO

    O campo da poltica constri-se pela aco dos sujeitos humanos. apartir das escolhas dos indivduos que o campo da poltica se organiza e se

  • 819

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    consolida, sinalizando a relevncia de se tomar a subjectividade como aspec-to crucial para se compreender a aco militante no mundo pblico em favorde causas comuns. Por que motivo uns, e no outros, se envolvem na acopoltica, por que razo alguns jovens, e no todos eles, se mobilizam em prolda transformao da sociedade, algo que concerne aos estudos situados naconfluncia das vrias disciplinas que se ocupam da subjectividade, da cul-tura e da sociedade. Neste trabalho procuramos perceber como que oprocesso de transformao de si, pelo qual os indivduos buscam construiroutros vnculos no campo social, pode operar em favor da mobilizaosubjectiva pela transformao societria e da construo de vnculosidentificativos com o campo do agir poltico.

    Pelo que analismos nas aproximaes dos jovens com o campo dapoltica no parece prevalecer um desdobramento linear da aco, favorecidopor uma preparao anterior para este tipo de aco. As identificaes coma poltica so construdas tentativamente, precipitando aos poucos os jo-vens neste tipo de aco. H sempre pontos de retorno, inflexo e de avano,que sugerem mltiplos destinos at que se consolide uma adeso mais for-malizada. A tenso que emerge do enfrentamento do que no se conhecearticula-se com a figura fantasmtica de um outro relativo ao prpriojovem, representando o que ele ainda no e o que ele ainda no sabe de si.

    Pensar a identificao do jovem com a poltica uma questo que podeser trilhada por diferentes caminhos tericos. Numa leitura mais convencio-nal, para compartilhar o universo da poltica, seja ele institucionalizado ouno, o jovem precisaria de passar por uma socializao poltica, isto , porum processo sequencial no qual alguns elementos seriam determinantes parao sucesso (ou para o fracasso) da identificao com o campo da poltica.Esse argumento pressupe um grupo de factores que poderia explicar, emesmo prever, determinados comportamentos polticos dos jovens, tornan-do possvel, inclusive, uma pedagogia para a formao poltica dos sujei-tos. Neste trabalho apresentamos outra leitura possvel, discutindo, inicial-mente, o conceito de subjectivao poltica. Esse considera que o polticopode acontecer fora dos dispositivos convencionais da aco poltica e podeincluir outros actores, alm dos que estariam legitimamente reconhecidospara tal. Alm disso, a militncia da aco poltica sustenta-se pela fidelidade experincia de descoberta de uma verdade, e no pela perspectiva decumprimento de realizao de um objectivo claramente definido e realizvel.Coloca-se como aquilo que Badiou (2007, p. 102) qualifica como esperan-a, que se constitui na fidelidade vivenciada, fidelidade fidelidade, querompe com a expectativa de um resultado a alcanar.

    O campo da aco poltica, ao contrrio de outros, como o do estudo,por exemplo, oferece aos jovens possibilidades mpares para a construo deuma inteligibilidade da sua prpria aco no mundo. A construo de si pode

  • 820

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    realizar-se de facto, e no apenas como uma promessa etrea ou uma ex-pectativa remota a realizar-se num tempo ulterior. Aqui o que fica claro oesforo que os jovens fazem para sustentar a aco poltica, uma vez queessa desvia o jovem de um script identitrio normalizado. Ao afastarem-sedas expectativas do que deveriam fazer normalmente, os jovens militantesenfrentam no apenas a hostilidade, mas tambm a desconfiana e a dvidaem relao s suas escolhas, como se essas os estivessem a conduzir paraum destino inalcanvel ou absurdo frente s exigncias a que deveriamatender. Novamente, vemos como a opo pela aco poltica lana o jovemno abismo ao afast-lo da trajectria de vida institucionalizada, circunscritaa parmetros previsveis dos movimentos identificatrios. Por outro lado, aescolha desse caminho no poupa os jovens aos conflitos que tm de serenfrentados quotidianamente e para os quais so encontradas solues diver-sas, todas elas, sem dvida, com considerveis custos psquicos.

    Vimos que a militncia poltica no deve abdicar do prazer e dos valores,como a camaradagem, os afectos e as emoes. Mais do que isso: ela torna--se to importante quanto as demais actividades e, de maneira geral, osjovens transitam entre as posies pblicas e privadas sem precisarem de sedespir daquilo que cada uma delas contm de especfico. O espao pbli-co, ento, no se sustenta, do ponto de vista psquico, como espao detroca racional e de legitimao de actuaes e papis, mas como espaode conhecimento de si, do outro e de auto-realizao. Assim, do ponto devista subjectivo, vivncias pblicas e privadas misturam-se, alimentando-sereciprocamente, o que nos faz questionar se os valores da vida pblica nodeveriam deixar-se afectar por aqueles constitutivos da vida privada, como,por exemplo, o cuidado com o outro, os afectos, a humildade (Boling,1991), de modo que a vida pblica possa ser revitalizada e transformada nassuas prticas. Nesse sentido, a diviso entre a persona pblica e a vidaprivada, se que algum dia produziu alguma forma de subjectivao favo-rvel aco poltica, j no parece dar hoje conta das questes actuais, umavez que a escolha da aco poltica tem de ser sustentada psiquicamentefrente s perdas, frustraes e conflitos que ela engendra e motivar o escru-tnio da vida pessoal luz das questes colectivas.

  • 821

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    BIBLIOGRAFIA

    ABRAMO, H., e BRANCO, P. (2005), Retratos da Juventude Brasileira Anlises de UmaPesquisa Nacional, So Paulo, Instituto da Cidadania/Fundao Perseu Abramo.

    ARENDT, H. (1995), A Condio Humana, 7. ed., Rio de Janeiro, Forense.BADIOU, A. (2007), Saint Paul La foundation de luniversalisme, Paris, PUF.BARBOZA FILHO, R. (2003), Sentimento de democracia. Lua Nova, 59, pp. 5-49.BOLING, P. (1991), The democratic potential of mothering. Political Theory, 19 (4),

    pp. 606-625.CASTRO, L. R. (2007), Political participation in the school context: youths experiences in

    collective action. Children, Youth and Environments, 17 (2), pp. 93-111.CASTRO, L. R. (2008), Participao poltica e juventude: do mal-estar responsabilizao

    pelo destino comum. Revista Sociologia Poltica, 16 (30), pp. 253-268.CASTRO, M., e VASCONCELOS, A. (2009), Juventude e participao poltica na contempora-

    neidade: explorando dados e questionando interpretaes. In M. Abramovay, E. Andradee L. Esteves (orgs.), Juventudes: Outros Olhares sobre a Diversidade, Braslia, Unesco/MEC, pp. 81-118.

    CEPAL (2004), La Juventud em Iberoamrica. Tendncias y Urgncias, Santiago do Chile,Comsin Econmica para Amrica Latina y Caribe (CEPAL).

    COSTA, J. F. (2004), O Vestgio e a Aura, Rio de Janeiro, Garamond.COSTA, S. (1997), Contextos de construo do espao pblico no Brasil. Novos Estudos

    Cebrap, 47, pp. 179-192.CRITCHLEY, S. (2007), Infinitely Demanding: Ethics of Commitment, Politics of Resistence,

    Londres, Verso.DBERT, R., HABERMAS, J., e NUNNER-WINKER, G. (1987), The development of the self. In

    J. Broughton, Critical Theories of Psychological Development, Nova Yorque, Plenum,pp. 275-299.

    FLANAGAN, C., e GALLY, L. (1995), Reframing the meaning of political in research withadolescents. Perspectives on Political Science, 24 (1), pp. 34-41.

    FLANAGAN, C., et al. (2003), Social class and adolescents beliefs about justice in differentsocial orders. Journal of Social Issues, 59 (4), pp. 711-732.

    FORACCHI, M. (1965), O Estudante e a Transformao da Sociedade Brasileira, So Paulo,Editora Nacional.

    FORACCHI, M. (1972), A Juventude na Sociedade Moderna, So Paulo, Editora da Universidadede So Paulo.

    FORBRIG, J. (ed.) (2005), Revisiting Youth Political Participation, Estrasburgo, Council ofEurope Publishing.

    HABERMAS, J. (1984), Mudana Estrutural na Esfera Pblica, Rio de Janeiro, Tempo Bra-sileiro.

    HALCLI, A. (2000), Social movements. In G. Browning, A. Halcli e F. Webster (eds.),Understanding Contemporary Society Theories of the Present, Londres, Sage, pp. 463--475.

    HONIG, B. (1996), Difference, dilemmas and the politics of home. In S. Benhabib (ed.),Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political, Princeton,Princeton University Press, pp. 257-277.

    IANNI, O. (1968), O jovem radical. In S. Brito (org.), Sociologia da Juventude I, Rio deJaneiro, Zahar.

    ION, J., e RAVON, B. (1998), Causes publiques, affranchissement des appartenances etengagement personnel. Lien social et politiques RIAC, 39, pp. 59-71.

    IBASE/POLIS (2007), Juventude e Integrao Sul-americana: Caracterizao de SituaesTipo e Organizaes Juvenis. Brasil Relatrio Nacional, Rio de Janeiro.

  • 822

    Lucia Rabello de Castro, Amana Rocha Mattos

    KEHL, R. (2000), A fratria rf. In R. Kehl (org.), Funo Fraterna, Rio de Janeiro, RelumeDumar, pp. 207-244.

    KORMAN, S. (2007), Juventude e Projeto Profissional: a Construo Subjetiva do Trabalho.Tese de doutoramento, Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Universidade Federal doRio de Janeiro.

    KRISCHKE, P. (2005), Questes sobre juventude, cultura poltica e participao democrtica.In H. Abramo e P. Branco (orgs.), Retratos da Juventude Brasileira: Anlises de UmaPesquisa Nacional, So Paulo, Instituto da Cidadania, pp. 323-350.

    LODI, C., e SOUZA, S. (2004), Juventude, cultura hip-hop e poltica. In L. R. Castro e J.Correa (orgs.), Juventude Contempornea: Perspectivas Nacionais e Internacionais, Riode Janeiro, Nau/Faperj, pp. 135-160.

    MANNHEIM, K. (1967), Diagnstico de Nosso Tempo, Rio de Janeiro, Zahar.MARTINS FILHO, J. (1987), Movimento Estudantil e Ditadura Militar (1964-1968), Campinas,

    Papirus.MATTOS, A., e CASTRO, L. R. DE (2008), Ser livre para consumir ou consumir para ser livre?

    Descaminhos e invenes de jovens cariocas. Psicologia em Revista, 14 (1), pp. 151-170.MORGADO, M. A., e SANCHES, M. (2007), Realidades juvenis em Cuiab, MT: escolarizao,

    trabalho e esferas de participao. In M. A. Morgado, M. Sanches e M. Oliveira (orgs.),Realidades Juvenis em Mato Grosso: Escola, Socializao e Trabalho, Cuiab,Univesidade Federal de Mato Grosso, pp. 17-42.

    MOUFFE, C. (1993), The Return of the Political, Londres, Verso.MOUFFE, C. (2002), Which public sphere for a democratic society? Theoria, June, pp. 55-

    -66.MOUFFE, C. (2005), On the Political, Londres, Routledge.MUXEL, A. (1994), La formation des choix politiques dans le temps de la jeunesse. In

    Identit politique, Paris, PUF, pp. 70-93.NOVAES, R., et al. (orgs.) (2006), Poltica Nacional da Juventude Diretrizes e Perspectivas,

    So Paulo, Conselho Nacional da Juventude/Fundao Friedrich Ebert.PAIS, J. M. (2001), Ganchos, Tachos e Biscates Jovens, Trabalho e Cultura, Porto, mbar.PLEYERS, G. (2005), Young people and alter-globalization: from dissilusionment to a new

    culture of political participation. In J. Forbrig (ed.), Revisiting Youth PoliticalParticipation, Estrasburgo, Council of Europe Publishing, pp. 133-144.

    RANCIRE, J. (1995), Politics, identification and subjectivization. In J. Rajchman (ed.), TheIdentity in Question, Londres, Routledge, pp. 63-70.

    RANCIRE, J. (1996), O dissenso. In A. Novais (org.), A Crise da Razo, So Paulo,Companhia das Letras, pp. 367-382.

    RASSIAL, J.-J. (1997), A Passagem Adolescente Da Famlia ao Lao Social, Porto Alegre,Artes e Ofcios.

    RATTANSI, A., e PHOENIX, A. (1997), Rethinking youth identities: modernist andpostmodernist frameworks. In J. Bynner, L. Chisholm e A. Furlong (eds.), Youth,Citizenship and Social Change in a European Context, Aldershot, Ashgate, pp. 121-149.

    RONSINI, V. (2007), Mercadores de Sentido Consumo de Mdia e Identidades Juvenis,Porto Alegre, Sulina.

    RUBY, C. (1996), LEnthousiasme Essai sur le sentiment en politique, Paris, Hatier.SOUZA, LUIZ A. (1984), A JUC: Os Estudantes Catlicos e a Poltica, Petrpolis, Vozes.XAVIER, M. F. (2008), A Participao de Crianas no Espao Pblico: Atualizando a Leitura

    sobre Infncia e Educao em Hannah Arendt. Dissertao de mestrado, Rio de Janeiro,Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    YOUNG, I. M. (2000), Inclusion and Democracy, Oxford, Oxford University Press.VENTURI, G., e BOKANY, V. (2005), Maiorias adaptadas, minorias progressistas. In H. Abramo

    e P. Branco (orgs.), Retratos da Juventude Brasileira: Anlises de Uma Pesquisa Nacio-nal, So Paulo, Instituto da Cidadania, pp. 351-368.

  • 823

    Aco poltica, juventude e a transformao de si

    VIANNA, H. (2003), Galeras Cariocas: Territrios de Conflitos e Encontros Culturais, Rio deJaneiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    VULBEAU, A. (2001), La jeunesse comme ressource. Exprimentation et exprience danslespace public, Paris, rs.

    WINNICOTT, D. (1961), O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago.WATTS, R., e FLANAGAN, C. (2007), Pushing the envelope on youth civic engagement: a

    developmental and liberation psychology perspective. Journal of CommunityPsychology, 35 (6), pp. 779-792.