Causos de quem chega à cidade modelo

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Causos de quem chega à cidade modelo Antonio Carlos Senkovski

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Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau em Bacharelado em Comunicação, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Positivo, realizado sob orientação da Professora Doutora Elza Aparecida de Oliveira Filha.

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À Marizete e Antonio, pela vida, e a Eduardo e Gabriel por completarem seu sentido

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Aos mestres da infância Rozeli, Paulo, Lorete, Lenice e Mari-zete, que me fizeram ver nas letras não mais somente simples desenhos de marcas da televisão. A Ornildes, Olete, Bia e Loreci, da língua portuguesa, pelo alerta insistente de que as redações do ensino fundamental e médio não se encaixavam em nenhum padrão.Aos mestres do Curso de Jornalismo da Universidade Posi-tivo pela nova visão de mundo - especialmente a Elza A. de Oliveira, pela paciência, a Marcelo Lima, pelo companhei-rismo, a Emerson de Castro, pela confiança e a Pedro Elói Rech pela dúvida.A Darci Frigo, Hilma de Lourdes Santos, Juliana Avanci e Clarice Metzner, pessoas entrevistadas que pelo tempo não tiveram todas as suas histórias contadas neste livro, mas que trazem contribuições fundamentais para a formação humana do autor destas linhas.Aos amigos de infância, de faculdade e de trabalho, que são sempre o conforto nos momentos difíceis e nos fáceis, quando as discussões intermináveis levam não a uma conclusão sobre os temas universais, mas a boas risadas.

Agradecimentos

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O capital é um produto coletivo e só pela ação unida de muitos membros e ainda,

como último recurso, é só pela ação unida de todos os membros da sociedade que ele

pode ser movimentado. O capital é, portanto, não um poder pessoal, mas um poder social.

Karl Marx e Friedrich Engels

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Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau em Bacharelado em Comunicação, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Positivo, realizado sob orientação da Professo-ra Doutora Elza Aparecida de Oliveira Filha.

Capa, projeto gráfico e diagramaçãoAntonio Carlos Senkovski

RevisãoElza Aparecida de Oliveira Filha

Fotografias- Antonio Carlos Senkovski- Banco de Imagens Itaipu Binacional- Banco de Imagens Stock.xchng

Causos de quem chega à cidade modelo

ANTONIO CARLOS SENKOVSKI

Curitiba, 2010

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Índice

1. De Santa Izabel do Oeste à cidade de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais

2. Anedotas de sítio

3. A vida e a terra

4. Encontro de infâncias

5. Queimada

6. As mudanças de Hilma

7. A escola e o atletismo

8. A tarefa de casa

9. O seminário

10. As cercas do urbano

11. A horta

12. Algumas questões urbanas

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13. Os desafios da luta nas palavras de Hilma

14. A propriedade e os desafios, nas palavras de Darci Frigo

15. Um fim que é o começo

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1. De Santa Izabel do Oeste à cidade de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais

A construção de um texto pelo modo intimista, de um inter-locutor falando com seu leitor, não parece a mais adequada para contar uma história que não é de uma pessoa só. Quem escreve estas linhas compartilha de uma história coletiva, de uma ten-dência que se concretiza a cada dia no povo que deixa pra trás os pequenos e enchem os grandes centros urbanos de gente e de problemas.

Este autor, personagem real, conta agora sua história por es-tas linhas de modo a não deixar o texto por demais enfadonho. Anos atrás não sabia ao certo o que significava enfadonho, mui-to menos ir para a cidade. Ouvia a voz da sua formação, que tentava ser burguesa, e ouvia: o trabalho dignifica o homem. Era a síntese de um pensamento cujo peso não contabilizava na bagagem física, mas que era a base motivadora do “desenlace” com sua terra.

Ao fazer a mala e partir rumo ao desconhecido, pode-se dizer que o motor e o ronco do ônibus alimentavam os ânimos de

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esperança. Já pensava no sucesso que ainda não tinha, numa ló-gica bastante egocêntrica, e que deveria não esquecer dos conse-lhos quase que catequéticos de ter humildade de sobra, soberba jamais. Era o início da contradição. Esquecia-se que o próprio pensamento em curso já era atitude de soberba, adquirida, em parte, por estar 2 metros acima do nível do asfalto, no assento confortável do ônibus indo para a capital do estado.

Mas o sujeito não está sozinho, até porque mais 41 passagei-ros vêm ao lado do aspirante a escritor. E apenas são percebidas as sensações não individualizadas quando se chega ao coração da cidade de Curitiba. Com as ruas rumo ao infinito, o asfalto junta céu e gelo pelas nuvens geladas. Afinal de contas, há gente além do ônibus, muita gente.

Os ânimos apagados de uma capital adormecida não deixam o desânimo se aproximar do recém-chegado, afinal, no fim da-quela viagem é depositado o sonho da nova vida. Assim foi, nos últimos anos, para milhões de pessoas em muitas outras grandes cidades do Brasil.

Sem perceber, no caso de quem chega do interior do Paraná, já se faz um passeio turístico logo de cara. Passa por lojas de carros, que nas vitrines não fazem fumaça; pela tão bem cuidada Av. Silva Jardim, na qual não se vê muito mais que um acidental pacote de bala jogado no chão; e finalmente pela rodoferrovi-ária, na qual sempre se encontra um conhecido de algum rin-cão paranaense comendo o barato e saboroso “doguinho” com “vina”, e descobrindo que o “pingado” trata-se, na verdade, de um “café com leiTe”, e não de alguma bebida servida em gotas.

Só nessa empreitada de cruzar a cidade, já cresceu o tamanho das casas, que ganham a altura do céu, cresceu o medo, cresceu a alma e, sem perceber, cresceu a cidade, porque a partir deste

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encontro há um habitante a mais para disputar o espaço urba-no. A disputa demora um pouco para aparecer, pelo menos até que o sujeito vá atrás de moradia.

Por hora, Curitiba é uma maravilha de lugar, igual a que se vê na televisão pelo sinal captado com antenas parabólicas, visto que o sinal normal não chega por falta de lucratividade que teriam repetidoras de sinal nesses lugares escondidos que abrigam os “aventureiros”. Capital ecológica, capital social, capital sorriso... sorriso? Para muitos, essa é a primeira parte questionada, afinal os curitibanos são, no que toca ao humor, no mínimo normais, em sua maioria. Mas então, por que é que se fala em capital sorriso?

São problemas que, como se perceberá ao longo do texto, demoram um pouco mais para fazer sentido a quem chega em uma cidade com predominância de um discurso simbólico. Tem-se a intenção aqui de justamente fazer com que haja en-tendimento dos problemas urbanos em uma esfera maior, sim-bólica e concreta.

Depois de alguns anos da viagem mítica ao desconhecido, é possível ao projeto de escritor, junto com o projeto de livro, escrever o texto na perspectiva de um geógrafo chamado Milton Santos. Ele faz uma divisão, quando explica a globalização:

O mundo como nos fazem vê-lo

O mundo como ele é O mundo como

ele pode ser

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Conferidas as três partes do quadro da página anterior, cabe um esclarecimento. No caso deste livro, houve uma “adapta-ção”, e a palavra “globalização”, em um exercício audacioso, foi trocada por “mundo”, representado pela esfera de cidade.

À época da “odisseia” ao espaço urbano, o mundo como nos fazem vê-lo parecia mais cândido que o próprio conceito de candura. Como o personagem principal do livro do filósofo Voltaire, “Cândido ou o otimismo”.

O livro está disponível aqui, em outros sites e em quase todas as bibliotecas (quase todas porque no tempo de estudante do ensino médio era difícil achar Voltaire na prateleira, mas se você não for tão cândido e “voltaire” ao balcão mais vezes, talvez já tenham devolvido o exemplar).

Era cândido até nas piadas, mas isso foi antes de conhecer Voltaire como Voltaire, e não como “voltar” falado de um jeito engraçado. Voltaire conta a história de Cândido, um persona-gem acomodado com as peripécias que a vida lhe apronta. Mes-mo assim, para o sujeito, o mundo é maravilhoso do jeito que é. E assim era o mundo para quem partia dos confins de onde alguém perdeu as meias, pois as botas já eram história a essas alturas (“piada” retirada do conhecimento popular da região Su-doeste do Paraná).

Voltando, agora do jeito certo, para o autor destas cansativas linhas – nunca é demais exercitar a humildade –, havia gente preocupada com os problemas sociais (que se resumiam ao uni-verso televisivo retratado no Jornal Nacional), todos gostariam de ajudar na construção de um novo mundo e o modo como escrevia textos, na sua auto-concepção, seria capaz de arrancar lágrimas do sujeito mais duro na queda. Hoje se conforma, este, com as lágrimas de desgosto do avaliador por ter que ler tão

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supérfluas palavras depois de passar quatro anos ensinando ao aluno como se escreve corretamente.

Decepções com texto à parte, as coisas mudam rapidamente quando se cai na selva urbana criada por seres humanos. Não há medo do curupira, do lobisomem, negrinho do pastoreio... são coisas que ficaram lá no meio da selva, no meio do mato de verdade. O risco de topar com uma onça (sabe-se lá de onde ti-ram essa de que onças comem crianças no Sudoeste) não existe; aqui os problemas são mais concretos, no meio do concreto, e da lua cheia resta não mais que saudades por trás da sombra que aparece à noite em meio à poluição.

Resta então contemplar as maravilhas urbanas, obras, pré-dios e tudo o que for desconhecido. Pra início de conversa, pensa o autor sentado na Rua XV, não é lá tão evidente aquela primeira característica que ouvia pela antena parabólica: “cidade sorriso”. O povo a caminhar pelo calçadão não chegava a ser uma referência em sorriso. Tinha uma “estátua-viva” “parada” (onde mais é preciso colocar aspas em parada quando se trata de estátuas?) que pregava susto em quem passava que era até engraçada. Fora isso o povo era sério, assim como era quem trabalhava o dia todo lá de onde vinha. A diferença era a pressa, o tanto de gente, “coisa pavorosa”.

Mas na continuação da análise de quem andou pela Rua XV naquele dia apoteótico, em uma das primeiras viagens pela ci-dade recém conhecida, em um dado momento, lá pela altura

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da Confeitaria das Famílias, percebeu que começou a pesar a “sacolaiada”. A bagagem trazia a sina de um aventureiro, que de corajoso não tinha muita coisa. Era mais pesada e fazia doer os dedos pelo que não tinha peso. Pode-se questionar aqui qual é a importância de saber o que o sujeito trouxe dentro das malas, e um retirante famoso tem a explicação para esse anseio do “es-critor”:

Para ouvir, clique aqui

Pau de Arara

Composição: Luiz Gonzaga e Guio de Moraes

Interpretação:Luiz Gonzaga

Quando eu vim do sertão,seu môço, do meu BodocóA malota era um sacoe o cadeado era um nóSó trazia a coragem e a caraViajando num pau-de-araraEu penei, mas aqui cheguei (bis)Trouxe um triângulo, no matolãoTrouxe um gonguê, no matolãoTrouxe um zabumba dentro do matolãoXóte, maracatu e baiãoTudo isso eu trouxe no meu matolão

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Mesmo com as malas diferentes da de Gonzaga, o “retiran-te” do interior do Paraná também trazia saudade no “matolão”. Saudade do que não escutaria mais todos os dias pela rádio da cidade, uma cuia e 1 Kg de erva mate, além da bomba, suficien-te para passar as primeiras semanas longe de casa.

A ida à Rua XV teve o poder de desvendar ao retirante da cidade pequena que as praças e locais de “convivência” de Curi-tiba não são como as que se tem na memória, a começar pelos pássaros. Não havia corruíra[1], nem pardal... só tinha pombo, herança de um tempo que de certa forma não passou na capital e faz a cidade manter um tom provinciano.

Conceitualmente falando, encontra-se uma cidade muito diferente da que se vê na televisão. Há vários livros que expli-cam essa tendência provocada por determinados governos, da década de 70 a 90, além de debates que organizações não-go-vernamentais fazem sobre o assunto. Mas como saber disso se o conhecimento local se resume à Silva Jardim que não tem lixo, à rodoviária com seu doguinho com pingado, à Rua XV com atrações a perder de vista e os programas de TV que via pela televisão?

De fato, não são todos os “retirantes” que têm contato com um dos livros que tratam da temática, ou que um dia vão pensar na Curitiba amada como um lugar contraditório. E dependen-do da trajetória, não se vai muito mais longe do que até onde a vista alcança, seja do ponto de vista físico ou intelectual. Este livro, que já não sabe mais se pode ser chamado assim por não ter papel para se agarrar, é mais um elemento que tenta exercitar um equilíbrio entre histórias de vida e informação sobre a cida-de de verdade. Em um mundo virtual, que não é de mentira, mas que tem uma verdade mais que filtrada, nada melhor que

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trazer aos leitores uma história de “verdade” sobre a cidade de mentira, na qual centenas de pessoas chegam todos os dias para depositar seus sonhos. Eis a trajetória de algumas pessoas que compartilham da sina aventureira da mudança de “sítio”.

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2. Anedotas de sítio

Preta se espreguiçava como se quisesse mostrar o quanto estava satisfeita. Deitada de bruços, somente a cabeça se arris-cava a levantar um pouco acima do nível do corpo. A gengiva cor de rosa ficava à mostra enquanto escancarava a mordedura em um bocejo. O resto do jantar ainda estava nos dentes.

– Pretinha, venha aqui! Olha, que linda... vamos, vamos, o moço quer tirar uma foto.

Preta continuava inerte, na posição de quem dizia, sem abrir a boca, que quem quisesse passar teria que erguer a pata – ou melhor, o pé.

Para ela, as noites em um dos tubos por onde passam ôni-bus no Terminal do Campo Comprido nunca foram solitá-rias.Quando não era com gente, Dona Marlene falava com a companheira. As palmas entusiasmadas batidas enquanto a chamava pelo nome mostravam que ela fazia questão de exibir a companheira canina a todos.

Leia a história da entrevista de Marlene Aparecida de Moura no blog Quinto Jornalismo

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Marlene Aparecida de Moura é exímia na arte de fazer ami-gos. Cobradora de ônibus, é impossível vê-la em um momen-to que não esteja conversando com alguém. Se o movimento está fraco e pouca gente passa pela catraca para pegar o ônibus, Preta faz o papel de ouvinte. Às vezes responde em linguagem não-verbal, às vezes faz cara de indiferença – mas sempre é uma festa.

Desse jeito, as duas confidentes passam o tempo juntas. Preta sabe bem mais de Marlene do que Marlene de Preta. Em linguagem de cães, a senhora simpática é a garantia de alimento.Em linguagem de humanos, Preta remete ao passa-do, às lembranças da Colônia Família Rezende, município de Londrina e ao mundo mais tranquilo de outrora.

No entanto, não são todas as pessoas que olham Preta com a mesma ternura de Marlene. Na cidade, cada coisa tem seu “lugar”, e um cão não “deveria” estar ali.

Há quem olhe para o bicho desconfiado. Tem gente que faz a volta. Outros miram o animal com cara de quem está prestes a comer um bife de fígado mal passado. Por falta de opção, o negócio é encarar, fazer da situação um banquete. Foi o que fez uma passageira, erguendo as patas – digo, as pernas. Passou por cima da cadela e da conversa pra dizer:

– Como ela engordou, né Maarrlene?– Olhe, essa também veio do interior.– Vou pegar esse porque tô atrasada.Até amanhã. Se cuide,

menina! Depois dos breves diálogos, ficam as duas confidentes

olhando o tempo passar. É sempre assim, a cada pausa ficam distantes.Voltam ao mundo das recordações. Preta não com-partilha muito as histórias, embora sempre pareça que vá lar-

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gar os latidos e começar um diálogo corrente com sua “dona”. Talvez seja tímida, e não fale na frente de estranhos.

A chuva aperta. Preta sai em disparada rumo ao interior do terminal de ônibus. Parece que finalmente havia acordado depois de ter passado horas bocejando perto da passagem da catraca. A dona lamenta, e finalmente começa sua história. Mesmo sendo anedota de gente, a mulher lembra a toda hora dos causos com animais – todos de verdade. Talvez isso expli-que em parte o apego e as confidências a Preta, que não quis dar entrevista.

Os anos 60Marlene não gosta que saibam da idade. Avisa que nasceu

na década de 60, em um lugar tranquilo, no interior do mu-nicípio de Londrina. Ela e mais oito irmãs dividiam os pais, Vitor José Bueno e Rita Catarina Bueno.

Nesse período, o Brasil vivia um momento de euforia de-senvolvimentista. A cultura norte-americana do consumismo disseminava um otimismo fora do comum mundo a fora. Ocorria a disputa de modelos econômicos com a Rússia, na chamada Guerra-fria.

Nos anos 60, a população urbana brasileira crescia no mes-mo ritmo dos “cinco anos em cinco” de Juscelino Kubitschek. Brasília, a capital construída no meio do país no final dos anos 50, sintetiza todo um pensamento de como as cidades passam a ser pensadas a partir desse momento.

No Paraná, entre os anos 40 e 50, a população urbana cresceu 5,8% ao ano. Nos anos 60, o índice anual subiu para 9,5%, enquanto o crescimento da população rural variou me-nos de 1%. Veja os dados na página a seguir.

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Nessa época, Marlene não sabia de crescimento urbano, presidente da república ou catracas de tubos do transporte co-letivo. Mal conhecia a cidade, tinha tudo o que precisava bem ao alcance das mãos.

De manhã, acordava cedo e rumava ao meio da roça para construir seus brinquedos. Uma espiga de milho, com uma ajei-tadinha nos “cabelos” da ponta, se transformava numa Barbie do sertão. Não tinha o mesmo aspecto físico das bonecas com-pradas, mas mesmo sem ter curva alguma no corpo, a boneca de milho tinha naturalmente um aspecto mais “saudável”.

Para fazer os homenzinhos, que seriam os namorados da es-piga, se usava abóboras de pescoço. Faziam-se roupas e coloca-vam-se botões para parecerem olhos, sem esquecer de nomear cada nova obra de arte. Os bonecos e bonecas de Marlene não eram reproduções fiéis do ser humano, mas se pareciam com a idéia simples de gente que tinha no rincão onde cresceu.

Para ver o estudo sobre população

urbana, clique aqui

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Gente, pra menina crescida entre os animais, era definida como algo parecido a não ter medo de pular na lama junto com os porcos, livre para gritar, andar, correr... O rio era o clube de campo e as árvores o trampolim da “piscina” com água corrente.

Bem antes de conhecer Preta, tinha conversas diárias com vaca, cabrito, bode, galinha, gato...até com árvores discutia. Mas seu afeto mais pitoresco era por uma porquinha, cujo nome era Mica. Todos os dias, quando ia pra lavoura, Mica ia junto, “ajudava” na plantação e às vezes até dormia dentro de casa.

Como era de se esperar, Mica tinha um apreço especial pe-los brinquedos das meninas. Não se tem notícia, em outro lu-gar, que um animal de estimação tenha comido os brinquedos de crianças, mas nesta história sim. Marlene não era a menina mais feliz por isso, mesmo tudo estando ao alcance das mãos.

– Bingo!– Oi?– Lembrei do Bingo. – A senhora joga bingo?– Não, era o nome de um cachorro que a gente tinha. Todo

dia ia pra roça. Ele tinha ciúme da Mica.– O que aconteceu com a Mica?– Ah, ela ficou grande demais e aí nós fize...– E o Bingo?– Não sei, ficou lá. Mas era um companheiro aquele

cachorro!Marlene se lembra somente de uma passagem difícil em se

tratando de animais. Foi um “duelo” entre um cavalo e o pai, que fora pego “desaprevenido”.

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Todos os dias, Vitor pegava algumas bonecas, ou melhor, espigas de milho, e tratava os animais. Havia muitos no sítio, e todos gostavam da brincadeira. Um dos bichos era o cavalo em questão, sem passagem pela polícia e com nenhum histó-rico de antecedentes criminais.

Mas um dia o equino deu de implicar e assim que o tra-tador, pai de Marlene, chegou perto, o bicho desatou uma mordida na cabeça dele. Não se sabe o porquê de o bagual manso querer experimentar outro tipo de alimento, mudar de dieta, mas por sorte não aconteceu nada além do susto. No duelo no qual não houve luta, o homem saiu vitorioso, levou sorte de não ter sido vítima de uma tragédia. Apesar do susto e das duas chacoalhadas que levou com as pernas no ar, no final ficou tudo bem.

O coletivo que não é ônibusHavia muita coisa coletiva na roça. Tudo era motivo para

despertar a curiosidade dos vizinhos, mas não só isso. Quando as plantas estavam maduras – feijão, milho e arroz – todos da região se reuniam em uma lavoura e não paravam até que tudo estivesse colhido. Não havia aparato potente e eficiente na colheita, apenas o “debulhador” – máquina antiga movida a óleo que separava a palha e a sujeira dos cereais.

Haja fio no facão e foice para cortar 3 mil sacas de milho e jogar dentro do debulhador. Era mais ou menos a quantia que se colhia na propriedade de seu Vitor e dona Rita. Cami-nhões saiam lotados de grãos. O dinheiro da venda era trocado por mercadorias do armazém. Peixe salgado, farinha em sacos, açúcar branco, sal e outras iguarias que não podiam ser produ-zidas por ali. Assim foi-se.

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Já para temperar a noite, a única iluminação era um lam-pião a gás, também comprado no armazém. Sem geladeira, para conservar a carne, por exemplo, o porco era cortado e frito na própria gordura. A dieta não era das mais sau-dáveis, mas era o único jeito de guardar por algum tempo o alimento. É possível pensar que com essa dieta Marlene pelo menos tinha sua “vingança” pelas “bonecas” comidas por Mica. O sentimento coletivo era sem dúvida comparti-lhado pelas oito irmãs.

A história do

boi

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A luz do lampião fazia sombra, as mãos pareciam enormes na parede. Era sempre nas noites escuras que o medo ficava mais forte. Não se via mais que 10 metros ao redor da luzinha amarela.

Os barulhos dos sapos pareciam tambores batendo no rit-mo de uma goteira, junto com os grilos, formavam um cenário de pânico para as garotas sentadas ao redor do fogão à lenha. Pela fresta da porta sentiam o vento, e viam a quase apagada luz das estrelas que vinha de fora.

Apesar de haver pontos de luz no céu, ela não chegava no chão. A menina Marlene tentava vencer a incapacidade de ver no escuro. Olhava pra longe pela abertura na porta espremen-do os olhos e os dentes pra enxergar melhor.

“De repente aparecia uma coisa que brilhava forte, um fogo num negócio parecido com uma tocha, fazia uma listra, ia bem rápido, parava e depois ia devagar. Falavam pra gente que era o boitatá. Deus me livre sair quando aquela luz aparecia lá fora. Tinha vezes que era uma bola, ficava andando, andando. A gente sempre via”.

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À “selva” de pedra

Não se sabe se pela dieta um tanto pesada ou por outra coisa, seu Vitor ficou doente do estômago. Teve úlcera. Mais ou menos na época do Milagre Econômico, proposto pelo go-verno da Ditadura Militar (no poder desde o Golpe de 1º de Abril de 1964), a família Bueno se mudou para capital do Paraná em busca de tratamento para o patriarca. 23 de julho de 1975 foi a data da chegada a Curitiba.

A infra-estrutura menos desenvolvida disponível aos mo-radores das cidades menores é um dos fatores que desencade-aram, e desencadeiam até hoje, o movimento para as grandes cidades. O chamado êxodo rural era política oficial do regime militar, no poder na época que Marlene se mudou com a famí-lia. Em decorrência da priorização do latifúndio, milhões de trabalhadores rurais deixaram o campo, forçados a abandonar as pequenas propriedades. Embora a questão do modelo de agricultura envolva outros aspectos, que serão vistos posterior-mente nas histórias, vários problemas urbanos têm sua origem no crescimento desordenado das cidades, causados em parte por esse movimento histórico no Brasil.

Quando chegaram, se sentiram como crianças fora da lama. O asfalto não conseguia, a princípio, ser furado pelas raízes das meninas, acostumadas a viver escarafunchando no barro. Era um mundo de novidades. As irmãs e ela ficaram mais de um mês para conseguir atualizar os documentos, as vacinas e as ideias.

Até hoje o desenvolvimento da capital é bastante des-proporcional em relação à maioria dos municípios do inte-rior. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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(IBGE) apontam que apenas 29, dos 398 municípios do Pa-raná (sem contar a capital), possuem índice de pobreza abaixo dos 31,71% medidos na área curitibana. No interior do es-tado, 369 cidades têm incidência de pobreza maior do que a medida em Curitiba (confira a lista completa no blog).

Na capital já não tinha mais rio para pescar e a luz era mais forte. O boitatá não conseguia vencer o brilho da cidade. Ape-sar de não ter onde pescar, Marlene logo arrumou emprego no qual se fazia latas de sardinha. Via muita lata, mas nenhum peixe. Era empregadada Metalúrgica Matarazzo, que tinha fá-brica em Curitiba.

Aprendeu na pele o que representou o momento em que os produtos da natureza foram transformados em mercadorias e passaram a ser produzidos em fábricas, em série. Henry Ford fazia mais uma vítima quase um século depois de ter convo-cado multidões para se fazerem presentes nas fábricas pela in-venção do seu método de produção segmentado, no qual cada pessoa faz uma única tarefa.

Clique aqui para verTempos Modernosde CharlieChaplin

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Não demorou muito para a primeira cena do filme “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin, fazer sentido para nossa “retirante” do campo. Logo encontrou muita gente que havia pouco tempo tinha enfrentado a mesma odisseia, com os mesmos tropeços da falta de documentos, vacinas atrasadas e encantada com o novo. Era como um rebanho de gente entrando na cidade.

Ao lado da metalúrgica, em uma construção civil, foi onde encontrou o marido, João Maria de Moura. Em 30 de novembro de 1977 se casaram e já foram morar em uma casa própria. Em 1980 nasceu a primeira filha, Claudinéia, e em 1983 nasceu Elisângela Giseli de Moura. Marlene dei-xou o emprego da metalúrgica quando teve a primeira filha e só voltou a trabalhar em 1987, na mesma empresa de ônibus que está até hoje.

– A senhora gosta de morar na cidade?– Olha, dá saudade da infância e das brincadeiras, mas não

tenho o que reclamar daqui. Sempre tive casa e um carrinho pra passear, nunca passei necessidade.

– O ônibus sempre atrasa nesse horário?– É, daqui a pouco chega um monte um atrás do outro,

sempre assim.– Vou indo, Dona Marlene. Obrigado por tudo!– Vai com Deus. Boa sorte nos estudos.– Tchau.....– Preeeetáá!

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Apesar de pequeno, o som do grilo se sobrepõe nas ma-drugadas. Ele apita como um termômetro da tranquilidade e, embora algumas vezes possa ser incômodo, tudo vai bem enquanto é ele que se ouve nos despertares eventuais de uma noite de sono. Mas não foi o grilo que fez Darci Frigo acor-dar na madrugada de 29 de novembro de 1999. Foi um som que não se apaga da memória como se faz com o barulho de um inseto. O “pisão” do despertar repentino é uma lembran-ça que ainda traz no peito o sufoco, ao ser acordado pelo soar insistente do telefone.

Do outro lado da linha, o comunicado do susto que ou-tras pessoas levaram. Elas não puderam ouvir os grilos a noite toda. Quem acordou os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi a fumaça que re-tirava lágrimas dos fortes, a força de uma raiva que não era humana. Eram homens a serviço do Estado, uma ação de

3. A vida e a terra

Para ler a história da entrevista de Darci Frigo no blog Quinto Jornalismo, clique aqui.

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“reintegração de posse” de uma praça pública.Não houve muito tempo do telefonema até a chegada do

advogado à Praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cí-vico. O dia ainda era um projeto e em outros lugares ainda havia silêncio. A praça, um marco para a cidade, é onde fi-cam concentrados os Três Poderes do estado do Paraná. O lugar onde se fazem as leis, onde se ordena como serão os investimentos, quem vai ter direito de quê em cada pedaço de chão das cidades.

Como na polis grega, em Curitiba há um local destinado ao exercício da democracia na região central, um espaço pú-blico. Foi a diferenciação entre o público e o privado entre os gregos que deu sustentação a todo o desenvolvimento históri-co da sociedade moderna. E também foi essa diferenciação a causadora de inúmeros problemas sociais.

Como um movimento de luta para a resolução de proble-mas como a desigualdade no acesso à terra, o maior movimen-to social do país, o MST, decidiu organizar um acampamento bem no centro dos Três Poderes da capital, Curitiba, em 1999. O protesto era para dar fim à violação dos direitos humanos dos trabalhadores rurais que lutavam pela falta de cumpri-mento do direito do acesso à terra, garantido por lei. Só que o papel branco não costuma ter pés sujos de terra – apesar de ter nascido dela.

A advogada Patrícia Caldas estava junto com Frigo, eles se juntaram a dezenas de advogados e jornalistas impedidos de entrar no acampamento por um contingente de cerca de mil policiais. Os coturnos dos policiais traziam a lembrança de um galope, cuja mala de garupa levava de um lado a defesa da propriedade e de outro a luta pela democratização do acesso

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à terra – um verdadeiro embate. Frigo e os que estavam ali pareciam querer puxar a sacola da garupa do lombo do potro para deixá-la ali, no lugar da cidade de onde deveria emanar a voz do povo.

Os escudos e pedaços de madeira pintados lixados e pin-tados de preto dos policiais, no entanto, lembravam de um detalhe importante, representado no cenário cujos gritos e movimentações tinham o efeito de colocar quem visse a cena dentro de uma tomada de guerra. Não era permitido passar, os militantes teriam mesmo que ir embora. Os policiais já ha-viam prendido integrantes do MST e os primeiros ônibus co-meçavam a sair.

Ao tentar conter a partida, Frigo foi algemado e impedido de realizar seu trabalho, já que estava no manifesto na con-dição de advogado. O trajeto entre a viatura e a delegacia foi suficiente para que a imprensa fosse atrás da história dos advo-gados que tinham sido presos. Chegando lá encontrou vários militantes presos durante a desocupação. Mas o pior foi quan-do soube da armação feita para tentar legitimar a prisão.

Leia a notícia sobre a prisão de Darci Frigo

PM expulsa sem-terra do Centro Cívico

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Durante a confusão, Frigo viu de longe um dos soldados tropeçar no meio-fio e se machucar.

– Ele tropeçou?– Ele tropeçou no meio-fio e virou o pé. Quebrou a perna.

Então o secretário de Segurança e a polícia deram essa versão, disseram que eu agredi o policial.

A recordação do medo que sentiu a partir desse novembro de 1999, surge na fala pausada e com volume às vezes exagera-damente baixo. Nota-se também que o semblante geralmente falacioso nas conversas informais pelos trocadilhos e piadas - muitas vezes lembrados pelos companheiros de trabalho por terem pouco potencial humorístico - são trocadas pelo olhar perdido. Um olhar que busca registros na memória não tão distante, mas cheia de histórias. O silêncio faz uma pausa, mas logo ela é interrompida pelo roncar do mate. Já sem água na cuia, é hora de revirar a erva, encher o chimarrão e trocar de companheiro. Deixemos Frigo, por hora, sentado na varanda dos “desassossegos”.

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Desassossegos

Composição: João Chagas Leite

Meus desassossegos sentam na varanda,pra matear saudade nesta solidão,cada por de sol, dói feito uma brasa,queimando lembranças,no meu coração.

Vem a noite aos poucos, alumiar o rancho,com estrelas frias, que se vão depois.Nada é mais triste, neste mundo louco,que matear com a ausência, de quem já se foi.

Que desgosto o mate, cevado de mágoas,pra quem não se basta, pra viver tão só.A insônia no catre, vara a madrugada,neste fim de mundo, que nem Deus tem dó.

Meus desassossegos sentam na varanda,pra matear saudade nesta solidão,cada por de sol, dói feito uma brasa,queimando lembranças,no meu coração.

Então me pergunto neste desatino,se este é meu destino, ou Deus se enganou?Todo desencanto para um só campeiro,que de tanto amor se desconsolou.

Para ouvir, clique aqui

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Amanda tem os olhos de quem reivindica a companhia ex-clusiva da sua “Má”. As marcas do sono são evidentes, mesmo que os problemas ainda não sejam tão amplos para a menina de três anos. O modo como encaixar três bonecas em uma mochila que cabem duas ocupam a mente da menina, e me-xem com a paciência de Hilma.

– Deixa eu pegar você no colo. Olha, acho que vou levar você lá com a Mariana. Quer ir lá com a Mariana? Logo a mãe chega.

– Nããããoooô!– Vai deixar a gente escrever?A menina dá um aceno com a cabeça e olha com a visão

um pouco suja para a boneca que não cabe dentro da mochila. Hilma de Lourdes Santos fica balançada pelo sentimento de Amanda e pega o brinquedo para executar a tarefa impossível. Lembrava da boneca de milho que tinha e fazia o contraponto

4. Encontro de infâncias

Leia a história da entrevista de Hilma Aparecida de Lourdes no blog Quinto Jornalismo.

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de como havia sido a sua infância.– Hoje as crianças têm mais coisas, mas elas não são felizes

como a gente era.No bairro de Hilma, não há quem não conheça a líder co-

munitária. Uma das primeiras moradoras da região, sua casa parece segurar a ladeira. Ela pende para cima como se quisesse agarrar o declive de onde escorrem os últimos vestígios de uma água suja, escura. É o último sinal de um período difícil en-frentado desde o início da ocupação. Isso porque recentemen-te os moradores do bairro afastado de Almirante Tamandaré, Região Metropolitana de Curitiba, conseguiram ligação à rede de esgoto.

Aos poucos os olhos de Marina vão se fechando. O assun-to é chato para uma criança que está ansiosa para ver uma boneca dentro de uma mochila. Ela quer ir para a escola. E isso vai acontecer no ano que vem, o consolo da menina que vai fechando os olhos enquanto a voz de Hilma vai ganhando o céu a cada nova postura lembrada na trajetória de luta que começou na década de 80.

– Ela tá doida pra ir pra escola, tem dois ônibus aqui que pega as crianças. Ela está com saudade da mãe. A mãe dela mo-rava comigo antes, aí casou e se mudou. Só que faz alguns meses o marido dela morreu, então voltou a morar aqui comigo.

A mãe estava em uma consulta médica, e Hilma ficou du-rante a tarde em casa. Pela manhã, tinha ido fazer alguns exa-mes e obteve folga do gabinete do deputado federal no qual trabalha com serviços gerais há mais de 10 anos. Como um QG da mobilização social, é só alguém descobrir que Hilma está em casa para que logo apareça o primeiro companheiro de luta para atualizar as novidades.

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Na saída da escola, o sinal de que o lugar está cheio de esperança. O piá sentado em cima da tampa de uma galeria da rede de esgoto em instalação bate em santinhos com a mão em forma de concha como se soubesse o que provavelmente terá que fazer quando chegar a sua hora de lutar pelos direitos dos moradores: bater na cara da política e torcer para que os integrantes dela não escondam o rosto, que assumam o com-promisso com a população.

Hilma olha para o menino da porta da casa que segura a ladeira para o rapazinho, parece lembrar de como driblou a fome. Os olhos dela mostram sem querer que vale a pena deixar os confortos da vida fácil pela luta pelos direitos das pessoas.

Apesar de haver passagens difíceis, não há pausas para secar os olhos, que no máximo ficavam marejados. Ao se conversar com esta mulher de olhos fundos, a impressão é de que a fala

Clique aquipara ler a

história dogaroto no

blog QuintoJornalismo

Foto: Antonio Carlos Senkovski

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dela reúne a esperança de uma criança sentada em cima da tampa recém construída pela Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e o olhar crítico de quem consegue ter uma visão ampla dos problemas da sociedade. Reforma Urbana, Direito à Cidade, Planejamento Urbano e outros aspectos do direito à moradia são tratados com destreza.

O volume de voz aumenta quando a pergunta é sobre a luta, Hilma parece ganhar o céu, mesmo que a mente dela esteja falando bem perto do chão. O fato parece justificar a pouca altura de Hilma, menos de um metro e meio. Ela quer estar junto, ela quer ficar perto da amiga íntima que melhor conhece no mundo: a terra.

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A fumaça podia ser vista do alto do morro. A canhada ti-nha sido coberta por uma fumaça escura, a mesma que sai pela queima do palheiro. O fogo pipocava seco, feio, era uma mistura do vento de sempre da “coxilha” e um cheiro infer-nal. Costumeiramente esse ar de queimada causa incômodo aos viventes que passam por perto, assim como incomoda se aproximar de um “chapeludo” qualquer com o gosto nada cheiroso de acender fumo no meio da palha. Mas a proporção do gás em todo o horizonte era infinitamente maior do que a do cigarrinho. Quem passasse por ali naquele momento teria saudade de um abraço e do pigarro dos adeptos do palheiro.

O fogo não era pela palha de milho estar muito seca nem como tecnologia utilizada para refazer a plantação. Tinha ou-tro propósito. O causador era um menino cuja maior diver-

5. Queimada

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são era ver o irmão mais velho espumando de raiva. As fugas no meio do mato são motivos de riso quando a lembrança sobressai à fumaça do cotidiano e dá um sopro na brasa do esquecimento.

Honorino e Edith Frigo tinham o trabalho da roça e o trabalho de educar oito crianças – quatro meninos e quatro meninas. E entre as desavenças estavam os surtos do meni-no incendiário. Não adiantava dizer que “piá que brinca com fogo mija na cama”.

– Quando meu pai e minha mãe saiam, nós não nos acertávamos muito bem (risos). Então, quando ele fica-va com o comando da casa não tinha muito acordo entre nós. Eu brincava de colocar fogo em resto de derrubada do mato, essas canas de milho. Meu irmão não gostava e aí dava uns quiproquós.

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Darci Frigo é o quarto de oito irmãos. Com uma família grande, não era só pelo irmão mais velho que às vezes exercita-va o que mais tarde se revelaria um talento ao atletismo. Não tem histórico algum de sopapos dos pais, na roça sempre tem muito lugar para correr.

A colônia da qual veio Frigo, no município de Capinzal, em Santa Catarina, é um lugar essencialmente de coloniza-dores alemães, como era o caso dos avôs maternos de Darci. Quem vê os trocadilhos do advogado no seu trabalho sequer imagina as passagens nunca esquecidas, mesmo que o tempo vá queimando os detalhes e deixando a memória esfumaçada. Mas tem coisas que não embaçam.

– Meu avô, quando vinha da roça, ele ficava fazendo per-gunta, respondia pra ele uma coisa e aí ele dizia que era outra e ficava tirando sarro até a gente ficar meio irritado assim com ele, então ele daaava risada.

Difícil de enxergar ficava mesmo nas noites do sertão. Como uma das poucas coisas que se fazia necessário comprar na venda, o gás era essencial para que se pudesse pelo menos idealizar as sombras em meio aos gritos dos sapos, grilos e outros animais de hábitos noturnos. Mas quando não era a fumaça do milho, o que ficava nas narinas era o cheiro de que-rosene, não muito agradável dentro de uma casa fechada pelo frio dos invernos. Vez ou outra a escuridão vencida pelo lam-pião ficava impregnada na parede, era preciso fazer o mutirão da limpeza da madeira defumada pelo fogo do petróleo.

O combustível que chegava à casa do menino Frigo era um produto que traduzia um momento político vivido pelo mundo da década de 70. Os Estados Unidos triplicaram o preço do barril de petróleo e assim como as paredes da casa de

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Honorino e Edith, as coisas estavam ficando sujas.Depois da Segunda Guerra Mundial, em meados da déca-

da de 40, houve uma grande mobilização mundial para esta-belecer um organismo que mediasse as relações de conflitos e garantisse os direitos humanos no mundo. A Organização das Nações Unidas (ONU) simboliza um maior interesse, so-bretudo da Europa, ao desenvolvimento de uma nova ordem mundial com preocupação maior de um desenvolvimento com certo pé no bem-estar social. O movimento esteve em curso, na verdade, desde a reformulação econômica a partir da Crise de 1929 proposta por Keynes. A Europa tem ainda, a seu favor, um histórico de acumulação de riquezas desde as grandes navegações, o que permite reerguer os países de ma-neira relativamente rápida.

Mas a Crise do Petróleo, da década de 70, apresentou um novo panorama na economia. Pontuando rapidamente o mo-delo econômico adotado pelos governos até este momento, pode-se dizer que o crescimento sempre foi proporcional à inflação. Se houvesse maior crescimento econômico, aumen-tavam os preços. Se o crescimento diminuísse, a inflação di-minuía. Mas nesse momento, com a crise do petróleo, o fato é que os países enfrentaram recessão com aumento de inflação, pondo abaixo a eficácia da “social democracia”. Começa então um movimento da construção de um modelo que vai aos pou-cos se concretizando, que é a retomada do liberalismo clássico, aquele do começo, pregado nas revoluções. Mas agora ele vem adaptado às novas realidades do mercado e a globalização da economia.

Enquanto isso, na esfera nacional, a ditadura militar, no poder desde o Golpe de 1964, consegue retardar os efeitos da

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crise com seu “milagre econômico”. A política de desenvol-vimento estrutural, com construção de barragens, rodovias, portos e outras obras de infra-estrutura, fornece base a um movimento bastante conhecido, o êxodo rural. Isso vai desa-guar em uma nova maneira de como se pensa o campo, com a chamada revolução verde, e como se vê as cidades e suas favelas cada vez maiores.

Dos oito filhos de Honorino e Edith, apenas um continua trabalhando no campo. O sítio é o mesmo no qual o menino Darci cresceu, mas as coisas por lá mudaram muito. Não há assim tanta gente pra se incomodar com a fumaça da palha de milho pipocando, na volta ao sítio. Os versos dos artistas caipiras Humberto e Marçal nunca fizeram tanto sentido:

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Velha Porteira

Composição: Humberto e Marçal

Ao passar pela velha porteira Senti minha terra mais perto de mim De emoção eu estava chorando Porque minha angústia tinha chegava ao fim Eu confesso que era meu sonho Rever a fazenda onde me criei Não via chegar o momento de abraçar de novo Meu querido povo que um dia eu deixei Que surpresa cruel me aguardava Ao ver a fazenda como transformou Quase todos dali se mudaram E a velha colônia deserta ficou Os amigos que ali permanecem Transformaram tanto que nem conheci E ele nem me conheceram e nem perceberam Que os anos passaram e eu envelheci E você minha velha porteira Também não está como outrora deixei Seus morões pelo tempo ruído No solo caído também encontrei Já não ouço as suas batidas Seu triste rangido lembranças me trás Porteira na realidade, você é a saudade Do tempo da infância que não volta mais(...)

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A panela amassada e impregnada pelo picumã do fogão à lenha estava esquecida pela primeira vez em anos na hora do almoço. A colher de pau não tinha mexido o arroz e o feijão; o leite era abundante na fazenda, mas a família não tinha acesso a ele. Era do dono da terra. Já era a terceira morada de Hilma, dos pais e dos até então três irmãs e um irmão – mais tarde a mãe teve mais duas filhas. No entanto, era a primeira vez que passavam uma refeição em branco.

A fome no campo era uma política da ditadura, e era o que, em muitos casos, obrigava as pessoas a abandonarem o sítio e buscar as migalhas na cidade. Sentada junto com os irmãos, Hilma lembrava da outra casa na qual tinha morado até então. De Santo Antonio do Paraíso até Ortigueira, no Paraná, eram 200 quilômetros e um abismo de metros de altura entre a far-

6. As mudanças de Hilma

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tura e a miséria na qual se encontrava.– A irmã minha caçula estava com 3 anos e pouco, e nós

que com toda nossa pobreza nunca tinha ficado sem leite em casa, ali a gente ficou. E a gente assim, sabe, não tinha como comprar mesmo. O leite que tinha ali na fazenda, o fazendei-ro vendia pra outro. A gente não tinha acesso, nós passamos muita miséria em 83, 84.

Isso aconteceu porque o pai de Hilma trabalhava em uma fazenda nesses anos, e em troca tinha uma área para plantar. Quando chegou já havia passado mais da metade do mês de outubro, a data para plantar tinha acabado - nem a lua ajudava a resolver o prazo. No caso dessa história, é possível voltar os olhos sobre como a diferenciação de público e privado, pen-sada primeiramente lá na civilização grega, foi interpretada de forma a beneficiar uma classe social, a burguesia.

Isso aconteceu a partir do século XVII, nas revoluções euro-peias que ficaram conhecidas como Revoluções Burguesas. As mais famosas são as que acontecem na Inglaterra, em 1688, e na França, em 1789. Há também o processo de independência dos Estados Unidos da América, que começa em 1775. Esses conflitos são frutos de um movimento filosófico proposto por vários intelectuais, como Voltaire, Descartes, Bacon e Locke, e foi chamado de iluminismo, por trazer luz ao mundo das “trevas”, o mundo da Idade Média (476 d.c a 1453 d.c).

Nesse novo mundo, as ideias dos gregos foram “remasteri-zadas”, mas de acordo com os propósitos da classe recém lan-çada como a nova dominadora, a dos burgueses. Os burgueses eram os comerciantes que circulavam mercadorias por todo o mundo nessa época. As revoluções feitas por eles tinham como objetivo conquistar liberdade, igualdade e fraternidade.

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Entretanto, tudo era almejado para eles mesmos, só que isso não era uma premissa tão divulgada nos primeiros jornais de propagação dessas novas ideias, pois o apoio popular era es-sencial ao sucesso das revoluções. Além disso, o processo de mudança não estava consolidado, a crítica ao ideal burguês foi feita verdadeiramente anos mais tarde, pelo filósofo Karl Marx em sua ampla análise do sistema de exploração capitalista, já no século XIX.

Lá atrás, nos séculos XVII, XVIII, os burgueses consegui-ram derrubar os reis do trono em muitos países, talvez o maior mérito da classe. Depois, claro, derrubaram é os trabalhadores

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do cavalo e começaram o movimento da massa de camponeses se deslocando para a cidade para trabalharem nas fábricas. Ver-dadeiras manadas, matilhas, varas, tropas... só que de gente.

O movimento da família Santos, por exemplo, é uma mos-tra do que vem acontecendo nos último séculos, desde o sur-gimento do capitalismo. Hilma não nasceu no século XVII, nem pensar, tem uma idade bem menor do que essa: nasceu dois anos antes do golpe militar de 64. Mas ela tem a consci-ência desse processo do êxodo rural desde o início da moder-nidade e trata do assunto com clareza. No entanto, não foi sempre assim.

Nas aulas da escolinha rural de Santo Antonio do Paraí-so, as salas multi-seriadas eram o que havia de mais novo na pedagogia dos anos 70. Não era uma grande distância que separava as crianças da escola, eram várias unidades escolares espalhadas por todo canto. Mas a proximidade do prédio não representava necessariamente aos pequenos estarem perto de um pensamento crítico.

A educação, durante a Ditadura Militar, incutia nos seus alunos uma moralidade cívica e patriótica muito difícil de cau-sar qualquer questionamento. Tanto que Hilma só descobriu a existência de porões na ditadura anos mais tarde, quando se transformou em uma militante do direito à moradia.

Hoje ela alerta que não terminou o segundo grau ainda, mas dá detalhes de como funciona a lógica da propriedade , e que a liberdade e igualdade dos burgueses pregam o direito de ter e acumular capital antes do direito das pessoas. Hilma traz no discurso a crítica da teoria marxista ao sistema capitalista, a história de uma militante que aprendeu filosofia, economia e todo o resto na prática.

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A escola acrítica não é só exclusividade de regimes auto-ritários como é o caso da Ditadura Militar, período em que Hilma se formou no primário. Isso se explica na teoria mar-xista, presente no discurso de Hilma. A sociedade, de acordo com o olhar de Karl Marx, se dá a partir de duas esferas: infra-estrutura e super-estrutura. O nome é pouco usual, não é em toda a esquina que se conhece um “Karl”, mas é mais fácil do que parece.

A super-estrutura, para nosso amigo Karl, é tudo aquilo que atua na manutenção do sistema, como a escola, a igreja, a mídia... São estas instituições que mantém a ordem burguesa, nelas se aprendem os ideais de liberdade e igualdade assim como foram concebidos no início dessa sociedade que se cha-ma de moderna. A escola, por exemplo, guarda em si vários traços do ideal de ser humano iluminista, embora o momento histórico tenha mudado muito nos últimos séculos.

Já a infra-estrutura traz as relações concretas da sociedade, é onde acontece a luta de classes. Na concepção desta filosofia, existem duas classes sociais em conflito, a burguesia e o prole-tariado. Os burgueses, aqueles mesmos que fizeram as revolu-ções, são donos dos meios de produção, por isso pagam salário aos proletários e vivem do lucro - a diferença entre o custo de produção e a venda do produto.

Hilma é uma integrante da classe proletária. Vive de salário e mora em um local que muitas teorias que tentam explicar o desenvolvimento urbano chamam de cidades-dormitório. Durante o dia, esses lugares ficam vazios, a maior parte da população se desloca para onde estão instaladas as fábricas, escritórios, canteiros de obras... Da mesma forma, à noite esses locais, que durante o dia são lotados e configuram um

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verdadeiro caos, viram lugares praticamente desertos, se trans-formando em reduto de tráfico de drogas e prostituição, em muitos casos.

Pode-se dizer que a busca insaciável do lucro gera grande parte dos problemas sociais, porque cria espaços da burguesia e espaços de proletários. Há uma análise a respeito disso feita por um dos intelectuais do direito mais respeitados na Améri-ca Latina, chamado Miguel Baldez. Ele diz que os burgueses não precisam de trabalhadores com direitos universais, basta ter garantido a estes meio direito. Isso porque o proletário pre-cisa consumir para que o capital circule. Assim que os direitos humanos do proletariado atrapalharem os interesses da explo-ração, ampliação de riquezas e obtenção de lucro, cortam-se esses direitos.

Com isso, podemos entender porque o companheiro Karl explicou a história como sendo resultado da luta de classes. Talvez Hilma não conheça Baldez e não chame Marx de “Karl” - talvez tenha mais educação do que quem grava estas linhas no papel -, mas ela sabe da luta de classes, sabe como é impor-tante mobilizar o povo em meio a tanta adversidade.

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Não era sempre que a temperatura do sítio da família Frigo estava quente por causa das palhas de milho queimadas. Prin-cipalmente na hora de ir à escola, às vezes o que predominava era o frio. Aos que veem pela televisão, a geada parece ser o fenômeno natural mais próximo da perfeição. A água forma gotículas moldadas pela gravidade num balé clássico dos mais bem arquitetados para os olhos. Mas para quem pisa no gelo, este é o maior motivo para os dentes quererem sair da boca pelo tremelicar do queixo.

No caso da escola do menino Darci, a distância não era tão companheira. Eram cinco quilômetros, às vezes cortado no lombo do cavalo, mas na maioria dos dias a pé. Cortando o chão, a imaginação se perdia nos dois quilômetros nos quais não havia um morador sequer por perto. Quem já morou no

7. A escola e o atletismo

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mato sabe das histórias das visagens – almas penadas. Pode ser que o termo no interior de Santa Catarina fosse outro, mas o medo do metafísico é universal, ainda mais em crianças.

A infância costuma dar às calças uma iminência muito maior pela tragédia dos sustos. Os medos são maiores, as dis-tâncias da mesma forma, as pedras um obstáculo enorme e a terra toda parece segurar as patas de quem precisa ir mais depressa, mas não vê os metros passarem. Não que Frigo fosse assim, ele venceu as centenas de vezes nas quais foi à escola e está aí hoje, firme e forte. Um bom tanto pelo trecho feito todos os dias à escola. Praticamente um treinamento de atle-tismo. Claro, registra-se que na hora de contar histórias, cada

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um seleciona um recorte da realidade.Mas a escola dele, apesar de mais penosa de ser encontra-

da entre as pedras e estradas intermináveis, não trouxe voos enormes às questões do mundo. Pela conversa articulada nos momentos cujo foco é a crítica, tem-se a certeza, hoje, de que Frigo não fala muito sobre o colégio de criança pelo conhe-cimento que veio depois: ele superou em grande parte o que aprendeu na escola tradicional.

Lembra, entretanto, de outro agente da super-estrutura. Sabe exatamente até o timbre da voz do apresentador do rá-dio-jornal da Rádio Guaíba:

– Aqui fala o correspondente Renner, editado pelo De-partamento de Jornalismo da Rádio Guaíba, com notícias do Correio do Povo e da Folha da Manhã, da Associated Press Brasil. Aí começava: Porto Alegre... notícias de Brasília e pá e pá e pá! Eu escutava as notícias quando tinha uns 8, 9, 10 anos. Ficava sabendo o que estava acontecendo fora.

Mas fora. Dentro do país a censura era tão bem arquitetada pelos militares que mesmo sendo um ouvinte assíduo do jor-nal, o menino sequer sabia da existência de tortura, persegui-ção, desaparecimentos, nada disso. Para quem, como o autor deste texto, que nasceu no ano das primeiras eleições diretas para presidente depois de 25 anos de indicações misteriosas ao cargo, esse é um fato que no mínimo causa surpresa.

Pois o piá Darci, sentado em frente ao rádio, esperando o dia escurecer ou clarear, que hoje olha fixo ao mesmo ponto no ar quando quer lembrar do passado, não sabia dos porões da ditadura. Quase ninguém sabia. Os efeitos de uma propa-ganda bem feita do governo desenvolvimentista, preocupado com a infra-estrutura do país eram muito fortes perante o si-

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lêncio imposto a qualquer manifestação que pregasse crítica aos militares. Demorou um tempo até que Frigo descobrisse como eram as regras do jogo.

Mas não do jogo de futebol, desse sabia desde criança, quando chutava pedra nos potreiros e campos improvisados nos quais o desnível era o obstáculo maior. Era fácil confundir a bola de meia com o pedregulho. O adversário até dava pra driblar, zagueiro sempre é fácil de enganar. Pra quem desvia rochas, o que é desviar uma pessoa? Mas havia um elemen-to do jogo simplesmente invencível: os espinhos. Era ganhar uma bola no natal e em duas horas estava feito o furo. Menos uma na conta da história.

O avô era orgulhoso com Geisel, presidente gaúcho, de Bento Gonçalves - este um dos principais líderes da Revolução Farroupilha que tentou separar o Rio Grande do Sul do res-tante do Brasil entre 1835 e 1845. Hoje, para quem ler isso, é bem possível que uma das reações seja: “mas que barbaridade”! Pensando bem, mais provável que seja: “caraca, que carinha mais loque, fiquei de cara”! Mas, por incrível que pareça, na época, tudo confabulava e propagandeava a favor dos homens fardados do governo.

A realidade cotidiana, no entanto, não era bem assim. As doenças no campo matavam muitas crianças por falta de aten-dimento. Só havia médico na cidade, e esse era o principal motivo que levava as pessoas de Capinzal à área urbana. O detalhe é o fato de que nem sempre havia recursos para pagar corrida de taxi, ou buscar outra alternativa de transporte, e às vezes por descaso das famílias mesmo, muitos tombaram nessa situação.

Frigo fala da morte, na infância, como algo não muito pre-

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sente. Não muito. Duas crianças, filhos de um dos vizinhos, foram vítimas da falta de atendimento médico. Um deles mor-reu de crupe, inflamação das vias respiratórias, e o outro de tétano depois de um acidente com prego no pé, o mesmo do futebol, perto de um chiqueiro de porcos.

– Mas na infância eu não tive presença da violência, da morte na minha vida. Essa era uma coisa de certa forma dis-tante.

Ele sofreu de problemas sérios de saúde, foi acometido pela chamada tosse comprida e pelo crupe, revela que nesta feita quase que fica “estendido na terra vermelha”. As idas à cidade, porém, propiciaram ao menino ainda um outro fato causador de espanto aos leitores nascidos em tempos de democracia: o primeiro contato com uma televisão. De modo inusitado, o aparelho estava em um local cujo ofício certamente não se encontra todos os dias.

O estabelecimento no qual se encontrava a tevê era nada menos que um conglomerado de bar, churrascaria e consul-tório de dentista prático – não necessariamente nesta ordem. Não se sabe até que ponto uma atividade interferia na outra, mas a impressão é de que enquanto se servia costela não havia possibilidade de um procedimento minucioso na boca do vi-vente que se submetia aos serviços da empresa. A não ser que uma ripa pudesse ser usada na hora de extrair dente, ou que o dente fosse uma iguaria quando estava sendo temperada a carne, enfim...

O que importa é a televisão, e ela marcou profundamente a memória do garoto. Mas ela em si, porque o programa não fez lá grande sucesso:

– Você lembra o que estava passando na TV?

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– Nem sei se estava ligada. Não lembro, mas eu sei que eu vi a televisão. Acho que estava passando alguma coisa, mas era meio da tarde, não sei se era um horário com alguma coisa importante.

O que será que Frigo viu na televisão do dentista prático?

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Até falar com Karl com a gente, Hilma, como em parte já se sabe, sofreu peripécias da vida, em grande parte por opções de po-líticas públicas da Ditadura Militar. Mas da infância, talvez nada seja lembrado com mais orgulho do que o episódio da inaugura-ção do conhecimento. Lá onde foram feitas as primeiras ligações neurônicas a partir da lógica, de uma pedagogia de ensino.

A menina, ainda com as janelas dos dentes que faltam quando se bate a idade dos 6 ou 7 anos, sentou na cadeira e viu na sua frente um homem. Na vida real era seu tio, na peça teatral armada para ensinar a arte da leitura a partir de um universo que não era dali, era professor.

A confusão de ideias se fez quase instantaneamente. Em pou-co tempo, a tarefa de casa:

– Traga-me amanhã números de 1 a 10 no seu caderno.

8. A tarefa de casa

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Os olhos não transbordaram o medo naquela hora pelo orgu-lho. Em casa, o misto de vergonha com frustração por não saber gravar os números no caderno logo desabrocharam. A mãe, até hoje não leitora de letras, pegou a mão da filha e revelou sua habi-lidade: os números. Foram algumas horas dedicadas à atividade, mas Hilma teve, no outro dia, sua tarefa de casa entregue. Os números feitos com uma ajudinha materna.

A ligação com a mãe é uma das coisas com poder de marejar os olhos de Hilma. A sua pouca altura é evidente, desde mui-to cedo a mãe percebeu e se preocupou em não deixar as outras crianças virem nisso empecilho para qualquer coisa. A menina cresceu sem o estigma de ser mais baixa que os outros, demorou um tempo para descobrir que se tratava de um problema tido na infância de desregulamento na quantidade de hormônios.

– Antigamente todo mundo achava que as coisas eram obra de Deus e que não se podia fazer nada, hoje a gente sabe que tudo a gente pode tratar.

Correndo pelo pomar, Hilma sempre foi tratada da mesma forma que as outras crianças, e nunca soube por piada da dife-rença na estatura. Só havia duas atividades em que a mãe dela interferia e não deixava a menina meter o dedo:

– Eu lembro que duas coisas que ela não permitia que eu fi-zesse, de jeito nenhum, pois tinha medo que eu caísse dentro, era torrar café e fazer sabão.

São duas coisas que não fazem ser difícil se virar hoje, mesmo sem ter tido a experiência de participar na infância, apesar da “decepção” que Hilma confessa. A infância, se por um lado foi sofrida, por outro foi muito feliz. Hilma se arisca no diagnóstico e diz que o fato de haver tanto vazio por todo o lado hoje é culpa do consumismo. Antigamente,

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segundo ela, não havia isso tão presente. Hoje em dia é presente pra tudo. Presente de dia dos namora-

dos, presente do dia dos pais, exigem estar presente. Mas estar no lugar não significa somente estar. Nisso ela tem razão. Já experi-mentou chegar na casa da namorada, no dia dos namorados, sem um presente? É no mínimo uma prática suicida.

O consumismo faz, inclusive, aumentar o número de suicídios. Em um mundo onde se faz o que quer e depois se paga o preço, é difícil suportar. Tudo confabula a favor de uma lógica comercial, que culmina na aniquilação dos mais fracos, via de regra.

Hilma nunca mais precisou que alguém pegasse em sua mão para que aprendesse alguma coisa. Já na década de 80, quando se mudou para a cidade grande, arrumou um emprego na casa de uma família para cuidar da casa e de uma criança. O trabalho não durou muito por conta de uma enfermidade que acometeu a patroa. Esta pediu demissão na fábrica na qual trabalhava e voltou para o aconchego do lar. Hilma então foi para o lugar da patroa, trabalhar pela primeira e última vez em uma fábrica.

Ao entrar na função de operária, logo foi descoberta como militante de um partido político, o Partido dos Trabalhadores. Isto, por si só, foi motivo para demissão por “justa” causa. Isso não pararia o trabalho de Hilma, que havia começado, sem que ela soubesse, anos antes.

Numa salinha da catequese lá do município de Grandes Rios, no Paraná, os estudantes prestavam atenção na fala pouco usual na pregação da igreja. Era uma aula com um discurso inflamado de quem descobria na veia o sangue que estava ali para questionar. Hilma tinha 14 anos na época, encontrou na “profissão” de professora do catecismo o sub-

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terfúgio para ser “subversiva” em tempo de ditadura.Quatro anos depois, a tendência à militância se confirmou. Já

com 18, Hilma passou a trabalhar intensamente na Pastoral da Juventude. Para entender um pouco as pastorais, pode-se recorrer a uma exposição acentuada, recentemente, na mídia, pela morte de uma das fundadoras da Pastoral da Criança no Haiti, Zilda Arns.

Pastoral da Terra, Pastoral da Criança, Pastoral da Juventude... todas são originadas a partir de uma corrente, dentro da Igreja Católica, cujo principal disseminador no Brasil foi o Frei Leonar-do Boff, nos anos 70. Ele foi muito criticado pelos setores con-

Reprodução

Leia a notícia publicada no portal G1 sobre a morte de Zilda Arns, que ocorreu no dia 12 de janeiro de 2010.

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servadores da igreja e da sociedade por ser um dos idealizadores da Teologia da Libertação. Nessa visão, a pobreza é considerada um “pecado estrutural”, e o trabalho de formação, feito especial-mente pelas pastorais, coloca os sujeitos excluídos em um caráter de emancipação. O resultado é a visão, entre os mais pobres, da possibilidade de construção de uma sociedade com menos desi-gualdade e um apelo à solidariedade.

Nos anos 80, as coisas estavam um tanto complicadas no Bra-sil. A economia não estava em seu momento mais primoroso e o povo começava a se mobilizar por um processo de redemocratiza-ção. Em grande parte isso se deve à teologia da libertação. Foi esse pensamento o responsável por levar Hilma, por exemplo, à luta pela terra, depois especificamente à luta pelo espaço urbano.

– Como a senhora explicaria a teologia da libertação? – Citando um exemplo: nos grupos de jovens que se dava na

área rural, não se falava apenas na questão de fé, na questão de rezar. Mas você fazia um trabalho sobre a questão de cidadania, a gente começou a discutir o que eram os direitos, a questão da Constituição, em 88. Grande parte da luta pela democracia foi levantada nas comunidades eclesiais de base.

Nessa época, ela foi mais uma vez vítima do êxodo rural. Um dos fatores que propiciaram a intensificação desse pro-cesso, desde a década de 60, foi a chamada revolução ver-de. Como uma promessa de fim do problema da fome no mundo, as pesquisas com sementes mudaram o panorama da agricultura mundial. Produtos químicos passaram a ser utilizados e de fato a produção aumentou.

No entanto, os países essencialmente agrícolas, subdesen-volvidos, não produzem alimentos para os países pobres, e sim para os desenvolvidos. Além disso, o modelo de agricul-

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tura familiar não foi mais compatível devido aos altos custos de produtos químicos.

Com o tempo, os pequenos agricultores foram perdendo es-paço. Não são poucas as músicas da cultura caipira que trazem em seu gérmen a sina do êxodo rural. A crítica se estende ainda à revolução verde como um modo de países desenvolvidos aprovei-tarem tecnologias de guerra para a agricultura.

Um caso clássico é a venda como herbicida do 2-4-D, que se misturado ao 2,4,5-T vira o famoso agente laranja. Ele foi utili-zado largamente na guerra do Vietnã pelos Estados Unidos para desfolhar as árvores e enxergar os guerrilheiros no meio da mata. A estimativa é que tenham sido derramados entre 50 e 80 mi-lhões de litros do produto, que tem efeito no local por 40 anos. Há estudos, inclusive, que mostram a interferência do produto químico na má formação de crianças no Vietnã. Um dos elemen-tos é até hoje utilizado na agricultura da “revolução verde”.

Hilma acabou caindo na cidade de Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba, no final da década de 80, para traba-lhar na casa de uma família. O marido e a esposa eram emprega-dos em uma fábrica, mas por problemas de saúde, a dona da casa teve que sair do emprego. No lugar dela, na linha de produção, entrou Hilma, mas não por muito tempo, como citado acima. A voz da militância política tinha levado a moça recém chegada do campo à filiação em um partido político. Ainda em formação no país, o Partido dos Trabalhadores era visto como uma ala radical e “perigosa” para a sociedade.

Isso foi motivo suficiente para que Hilma ser desligada da empresa. Sem emprego, se mudou para Curitiba e passou a tra-balhar em outra residência. Só que era preciso dormir no local do trabalho. A impossibilidade de conciliar emprego e militância

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influenciou na decisão de sair. Foi para outra casa, na qual ficou um tempo sem carteira registrada, mas logo surgiu uma oportu-nidade na qual não precisava dormir no local e tinha a com cartei-ra registrada. Depois passou a trabalhar como diarista e foi assim durante um tempo, até um pouco depois da metade da década de 90, quando entrou no gabinete de um deputado federal, para prestar serviços gerais onde está trabalhando até hoje.

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Há lembranças de dias em que não importa se estivesse chovendo ou fazendo sol. É sempre brilhante o céu daquela lembrança. No caso da caixa da memória do menino Frigo, o dia em que o padre foi à escola é um desses em que o efeito da tecla deletar não existe. Basta soprar a poeira e está lá, nítido como em um dia sem nuvens.

Na volta da escola, em seu exercício diário de praticante do atletismo da roça, modalidade saltos à distância com pedras, vinha matutando de que aquela seria a futura morada. Seria para onde levaria sua mala de cultura e de roupas.

As fotos do seminário, mostradas pelo Frei Adelino Frigo, um parente distante, ficaram marcadas. Era um lugar grande, silencioso, era para onde ele queria ir. Disse à família do seu desejo e a deliberação da visita do missionário na escola já es-

9. O seminário

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tava colocada como certa.Na comunidade do interior na qual Frigo nasceu, não ha-

via tantas opções para quem queria fazer algo diferente. A for-mação na escola que fazia calos no pé dava subsídio aos que pretendiam chegar até o ginásio. Além disso, só se fosse para outro lugar, para a cidade. Ou então, o seminário era a alterna-tiva em uma comunidade essencialmente católica, e vista com muito agrado por todos.

Vencidas as bolas furadas, o menino deixou para trás o campo de futebol de barranco e foi para o seminário. Eram 12 anos que separavam o início da vida e a partida da casa dos pais. Apesar da pouca idade, não foi muito difícil tomar a decisão, era uma coisa bem amadurecida, desde os 7 anos.

Entre sair de casa tendo a impressão de que as coisas se-riam fáceis e o contato com a realidade, houve uma “pequena”

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diferença. Na roça, o tom da cigarra mostra o quanto se é livre, mesmo que às vezes seja preciso correr de madrugada para desentupir o cano de água que vinha do pé da serra. Um modo de encarar a vida bastante claro nos dias cheios de ati-vidades, mas preguiçosos para passar. À noite, na penumbra do lampião, as sombras do mato limitam um bom tanto, mas é só esperar um clarão de lua para se perceber o tamanho da liberdade.

A penumbra dos corredores do seminário limitava um bom tanto a imaginação. Saiu o mundo da vastidão e começou uma vida rígida, com horários, cronogramas... era um mundo de novidades. Estudo, trabalho e lazer. Frigo nunca tinha saído de casa, agora era chamado rigorosamente para levantar, to-mar café e todas as atividades. Seriam 11 anos nos seminários dos Capuchinhos.

Na turma de mais ou menos 30 seminaristas, a maioria era de filhos de agricultores. Mesmo assim, era um universo dife-rente. Foi preciso se desdobrar para se adaptar à nova perspec-tiva. Não conhecia nenhum dos garotos, somente o padre que tinha ido “pescá-lo” na escola. A única certeza que tinha era a confiança que poderia ser depositada na instituição religiosa.

Já nos primeiros dias, um exercício até então inédito: uma roda de pessoas conversando sobre temas variados. Nesse ponto é interessante analisar o fenômeno da transfor-mação humana. Sim, porque quem olha o desembaraço de Frigo em uma roda de reunião sequer imagina o episódio constrangedor a respeito do assunto nesse primeiro contato com as mesas-redondas.

A fala do menino engasgou feito canto de galo com gripe. A paralisia das cordas vocais poderia ser comparada às gotas da

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geada nas árvores do caminho da escola nas manhãs mais que frias no inverno. Frigo havia entrado em uma gelada.

O suor frio continuou a escorrer por um tempo e foi então que aconteceu uma das descobertas mais difíceis, aquela que fez os exercícios de superação do trauma serem mais intensos. Ele passou a fazer várias atividades propostas pelo seminário para desinibição. Teatro, música, oratória. Hoje, nota-se a re-tórica socrática no discurso de quem teve na filosofia a supera-ção de um medo, comum aos que vêm do campo.

Pela conversa bem estruturada em uma mesa de debate, não se tem dúvida da superação desse medo. Agora, sobre as aulas de teatro... Para quem ouve a expressão de surpresa de Frigo (“nuhóósS”) quando uma coisa não vai muito bem, não há como deixar o sentimento de curiosidade de lado. Algumas cenas são idealizadas na mente do interlocutor, e a pergunta ao inconsciente é inevitável: “Como será que Frigo dançaria uma marca? Na troca de lado do mate, se apaga a nuvem que leva a mente a outro lugar por um instante e pragmaticamente se volta ao foco com a tradicional balançada de leve na cabeça.

– Jogava bola no seminário também? – Sim, sim. Sempre joguei futebol.– Nunca aconteceu nenhum acidente?– Não, nunca tive. Mas engraçado que eu fui pra Irati e lá

teve atletismo também, então eu gostava de corrida, de salto. Fui campeão de salto triplo.

Talvez isso responda a pergunta da marca, afinal bons dan-çarinos precisam dar bons saltos. Mas o principal salto acon-teceu mesmo quando Frigo conheceu uma parte nebulosa da história de seu país. Os presidentes militares não eram só aquilo que seu avô exaltava de Geisel, anos antes. Tinha muita

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gente desaparecida, torturada, presa e morta pela ditadura.Padres que passaram a ser muito próximos, pela história,

começaram a ser companheiros dos alunos do seminário. Frei Beto, Frei Tito, nomes admirados por alguns dos garo-tos. Ficaram conhecidas as histórias de luta dos religiosos, quando Frigo estava no segundo grau. Até então, mesmo ouvindo rádio na infância, não tinha um contato concreto com essa realidade.

Com uma curiosidade muito mais nobre de quem fica imaginando Frigo dançando uma marca, ele foi atrás de literatura sobre o assunto. O jornal passou a ser um meio de informação questionável, porque não trazia as notícias que integravam os assuntos presentes nos livros lidos pelos adolescentes seminaristas.

– Em 82 começamos a ir atrás de literatura e foi aí que foi o marco, que vou conhecer os escritores da Teologia da Liber-tação. Eu conheci um livro de um padre italiano que se chama Arthur Paoli e que viveu na Itália e no Brasil. Ele estava aqui em Foz do Iguaçu. É aí que a gente vai encontrar então uma explicação, uma proposta que pelo menos vai poder, ao mes-mo tempo, aliar a opção religiosa com uma inserção política, que é toda a proposta da Teologia da Libertação.

Hoje, um livro de Paoli custa R$ 5, em um site que vende volumes “usados”.

Clique aqui para verificar as ofertas

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Claro, não se trata do valor financeiro, mesmo que o preço seja exageradamente baixo considerando que o livro está “em bom estado, com páginas amareladas”. O fato é que talvez o preço represente, em parte, a mudança no caráter da mobili-zação da década de 80 para a que acontece hoje.

A conjuntura política de 82 era mais que um motivador, constituía-se como uma necessidade. A miséria crescia pela in-flação descontrolada. O povo assistia gradativamente o salário perder seu valor e a situação ficar desesperadora. A Ditadura Militar vai cedendo aos poucos, já estava em tempo de entre-gar a batata quente a outros.

As universidades tinham - e mantém até hoje - um papel de vanguarda na sociedade. Foi pela mobilização dos estudantes e dos trabalhadores, em uma parceria inédita, que o movimento das Diretas Já ganhou força. A luta pelas diretas aconteceu em 83 e 84, e só se concretizou pela ampla participação popular e pelas articulações feitas pelas lideranças políticas da época. Entre os destaques estão Tancredo Neves, Leonel Brizola, Mário Co-vas e o atual presidente da república Luis Inácio Lula da Silva.

Essa consciência, dos apoiadores das diretas é despertada principalmente nas pessoas que têm curiosidade, enquanto frequentam os bancos universitários. O modelo tradicional da academia, no entanto, não costuma permitir isso tão facil-mente com seu rigor ao método de pesquisa.

Quando se constrói conhecimento para as próximas gera-ções de estudantes, existe uma amarra chamada racionalidade. Todas as estruturas modernas, da infra-estrutura e da superes-trutura, estão baseadas no discurso da razão. A tendência, nos bancos universitários, é considerar inferior o conhecimento que está além disso.

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O que foi feito pelos jovens curiosos do seminário pode ser chamado de dialética. A partir dessa lógica, o conhecimento surge da desconstrução. É quase como “filosofar com o marte-lo”. A dialética propõe que a partir de um conjunto de ideias que explicam alguma coisa (tese) se crie uma anti-tese, ou seja, que se desconstrua aquilo que parece certo. Ao final desse exercício, chega-se a um novo saber, a síntese.

A busca da formação além do seminário forneceu a Frigo o subsídio para que questionasse as estruturas da sociedade na criação de uma nova síntese. Esta foi expressa no seu en-gajamento, em Ponta Grossa, com o Centro de Defesa dos Direitos Humanos.

– Participei da fundação do centro, era um grupo da Pas-toral Universitária que tinha lá na universidade, e é com esse grupo que eu vou descobrir a possibilidade de fazer uma mili-tância para além dos muros da igreja.

O surgimento da sensibilidade para as questões sociais, cla-ro, vinha da infância. A formação cristã tinha ajudado muito para essa visão da necessidade de ajudar as pessoas.

Desse momento em diante, Frigo passou a ser militante dos direitos humanos. O conhecimento de lideranças de mo-vimentos sociais e de outros integrantes da luta foi aconte-cendo em um fluxo contínuo. Presenciou inclusive momentos históricos para a organização social.

Além do surgimento do Partido dos Trabalhadores, já men-cionado na história de Hilma, na década de 80 surge o que hoje é o maior movimento social do país e um dos maiores do mundo: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Inicialmente, a organização acontece no Oeste do Paraná, uma região marcada por conflitos fundiários até hoje.

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Um dos primeiros trabalhos de Frigo na defesa de direitos humanos se deu pela história de um grupo de 12 meninos, que saíram da Vila Rombini, de Ponta Grossa, para trabalhar em Cerro Azul, em uma fazenda da Copedi Agro-florestal. A empresa que fazia o projeto de reflorestamento com plantio de pinus na área era a Cap Florestal, que pertencia a Luciano Pizzatto, candidato a deputado federal na eleição deste ano (2010). Ele não se elegeu (leia mais).

Na declaração de bens apresentada à Justiça Eleitoral este ano, Pizzatto inclusive coloca, em meio aos seus quase R$ 6,5 milhões em bens, duas propriedades rurais com reflorestamento. Entre 88 e 89, nesse mesmo registro, consta a passagem pelo cargo de Di-retor de Parques Nacionais e Reservas do Brasil.

Os meninos tinham sido contratados para fazer um trabalho duro: roçar a fazenda em Cerro Azul. Mas ao longo do tempo eles descobriram que não estavam ali na condição de pessoas livres. O capataz armado e as ameaças impossibilitavam o desli-gamento dos rapazes, e foi o que motivou as mães deles denun-ciarem a situação ao Centro de Defesa de Direitos Humanos.

No mesmo ano, em 84, Frigo conheceu, trabalhando pela entidade, um assentamento de atingidos pela construção da bar-ragem da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em Arapoti. Junto com o povo desse local, foi ao encontro do Movimento Nacional de Di-reitos Humanos, em Joinvile-SC. Neste espaço, passou a perceber a variedade de movimentos e de bandeiras de luta.

Para ler um pouco da história do MST no próprio site do movimento, clique aqui.

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Um ano depois, participou do primeiro Congresso Na-cional do MST, em Curitiba. Circulou entre as lideranças, mas não lembra de ter conhecido nenhum dos nomes mais importantes.

Apontando pela janela, a lembrança exata do prédio que tem uma cor destacada no meio de tantos edifícios gastos pelo tempo. É para a fachada cor de rosa que os braço e o corpo apontam depois de aberta a janela da sala de reuniões da Terra de Direitos, organização da qual é um dos fundadores.

– Ali, naquele prédio rosa que tem na esquina, aquele que se vê lá, olha, rosinha, ali era a sede do Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo (Cefuria). Quando eu vim pro congresso, me pediram pra eu ficar ali um dia e pouco, porque

Para ler o livro “Expropriados Terra e Água: o conflito de Itaipu”, escrito por Guiomar Inez Germani, clique aqui.

Foto: Banco deImagens Itaipu

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era o primeiro dia, e precisava ficar alguém ali pra atender o telefone porque era a sede do movimento, a secretaria do MST funcionava ali em uma salinha. E daí eu me lembro que fiquei pra dar informação para as pessoas sobre o congresso.

Nesse mesmo tempo veio o pedido para auxiliar em uma mediação de conflito. Seria a primeira atividade de uma traje-tória marcada essencialmente na luta pela democratização do acesso à terra rural. Frigo ainda estava no seminário, e teve a missão de falar com o bispo da região de uma área que sofreria despejo. Era uma área do Rio Cavernoso, a mesma em que vi-via a família de Antonio Tavares, trabalhador sem-terra morto em manifestação no dia 2 de maio de 2000.

O pedido feito por Frigo foi para que o bispo falasse com um general do exército para tentar evitar que as forças armadas fizessem o despejo das famílias que tinham ocupado a área. Talvez ainda não houvesse a dimensão do que isso representou em sua história, mas hoje se tem certeza do marco da volta às origens, seu interesse pelas questões agrárias não nasceu por acaso.

– Até tinha envolvimento com outras questões de direitos humanos lá em Ponta Grossa, ia visitar presídio, ia pra de-legacia, mas isso pra mim era sempre um mundo mínimo e estreito pra minha vida.

Para ler sobre os 10 anos do assassinato do agricultor Antonio Tavares, clique aqui.

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Sentadas, as amigas que dividiam as despesas de aluguel, luz e água, trocavam as novidades junto com uma visitante ilustre, a mãe de uma delas. Quem visitava as duas moradoras de um apartamento alugado no Centro de Curitiba era a mes-ma mulher que havia pego na mão de Hilma para ensinar os números, mesmo sem saber das letras.

A menina Hilma já era mulher, trabalhava em vários lares curitibanos como diarista. Mas antes disso, era militante do movimento social. Ao lembrar desse tempo, cita que não era fácil participar das atividades de formação em um primeiro momento.

A iniciação como militante tinha acontecido lá no interior, enquanto passava por dificuldades financeiras. Não só ela, cla-ro. Para chegar nos locais dos encontros, muitas vezes precisa-

10. As cercas do urbano

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va enfrentar mais de 30 quilômetros em cima de trator. Todo mundo dormia no salão da igreja e, pela falta de dinheiro, não era sempre possível comprar pão na padaria. O jeito era improvisar, levar mandioca, batata, o que tivesse em casa para preparar as refeições.

Na cidade era diferente, teve contato com uma luta mais difícil. Ao mesmo tempo em que as distâncias ficaram meno-res, a mobilização também era menor. As atividades de for-mação eram intensas, não foram poucos os finais de semana dedicados a esse tipo de tarefa.

No momento em que as três conversavam no apartamen-to, Hilma apontava para uma dúvida. Ela tinha recebido uma proposta de ajudar em uma ocupação na Grande Cachoei-ra, área pertencente ao município de Almirante Tamandaré. Compartilhou a proposta com a mãe e com a amiga e nova-mente um incentivo materno contou pontos na hora de fazer a tarefa de casa. A mãe disse:

– Gente, agora, se eu fosse vocês duas, encarava. Porque se der alguma coisa, é uma conquista de vocês, se não der nada, vocês não estão perdendo nada, vocês não estão comprando nada e é a chance de vocês terem um canto de vocês.

Em 18 de novembro de 1995, no início da era Lerner à frente do governo do Paraná, Hilma ocupa a área na qual vive até hoje. No início, uma pequena barraca de lona. Com o tempo foi ganhando o aspecto de casa. A luta para que aquela não fosse só mais uma área de despejo foi longa, seguiu até pouco tempo.

Hilma ressalta de modo insistente a necessidade de fazer outra casa para os visitantes. É modesta. A casa, apesar de pe-quena, é muito bem organizada. Com seus guardanapos de

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pano estendidos pelas prateleiras e o fogão com suas chapinhas de metal brilhando, somente o chão parece pedir uma tinta. O tempo corroeu algumas ripas. Mas olhando de baixo, a gente percebe que na verdade é a casa que segura a ladeira.

Parte do sucesso da ocupação no bairro Cachoeira se deve a uma enchente no ano de 1995 . Como a área é grande e dá op-ções para que se construa longe do rio, várias pessoas saíram de terrenos de risco e vieram parar na ocupação recém iniciada.

O dono possuía a área havia 35 anos. Era uma propriedade rural entre duas cidades, Curitiba e Almirante Tamandaré, um vazio urbano. Ele pagava o Imposto sobre a Propriedade Ter-ritorial Rural (ITR), único “investimento” que podia fazer. A partir da ocupação, ele entrou na justiça.

– Na realidade, ele não queria tirar o pessoal daqui, ele precisava de uma indenização por parte do poder público, que foi o que aconteceu depois, porque ele não ia construir nada, com nós aqui em cima ele ia receber alguma coisa, se tivesse sem nada, seria mais difícil.

Um dos elementos envolvidos na negociação da área era a questão ambiental. No entanto, do outro lado do manancial há vários motéis. Esse argumento foi utilizado pelos morado-res para alegar a possibilidade de permanência deles no local. O desmembramento de uma área de 3 mil metros quadrados para a construção de um módulo do projeto Piá Ambiental já havia sido feita sob suspeitas de ilegalidade, outro motivo que dava subsídio aos moradores.

Em outubro de 1995, Hilma participou pela primeira vez de um encontro do Movimento Nacional de Luta por Mo-radia (MNLM). Já saiu de lá consolidando a sua posição na comunidade, uma liderança. Não foi somente pelo desejo de

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lutar pela moradia, foi também pela necessidade.No início da ocupação, a situação econômica era um tanto

quanto desfavorável. O Plano Real havia arrochado as rédeas da economia e os mais pobres estavam sofrendo para pagar os juros elevadíssimos na tentativa de conter a inflação. As cerca de 80 famílias recém chegadas na ocupação estavam entre es-sas pessoas em condição de extrema pobreza.

Leia uma análise sobre os impactos do Plano Real na pobreza feita pelo IPEA.

Nessa época, muita gente era contratada para proteger o patrimônio dos ricos. A maioria das famílias tinha sustento no salário ganho pelos homens trabalhando como seguranças ou vigilantes. Quando os homens iam proteger a propriedade dos outros, a mantenedora da “ordem pública” aparecia na ocupação, a polícia. As mulheres estavam sozinhas em casa, vulneráveis. Nessas condições, vinham as ameaças de violên-cia, despejo e ocorria extorsão.

Foi nesse período que Hilma começou, junto com a po-pulação, a denunciar a situação à imprensa. A mobilização se fortaleceu, afinal de contas as primeiras ruas tinham sido feitas pelas pessoas munidas apenas de enxadadas. A rede de luz foi uma conquista e as necessidades não paravam de aumentar.

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A comunidade não tinha acesso à rede de água. Isso estava gerando um problema sério principalmente para as crianças. Havia fila no Hospital Pequeno Príncipe por doenças causadas pela água contaminada. Em 96, cerca de 50 moradores ocupa-ram a Prefeitura de Almirante Tamandaré. Ele permaneceram no local até o comprometimento da instalação de uma tornei-ra comunitária.

Mesmo assim, apenas um posto de abastecimento era pou-co. A luta na cidade, em uma primeira análise, está relacionada a uma necessidade que surge no meio do caminho. As intem-péries é que vão guiando a urgência das lutas paralelas do aces-so à terra. Conquistado este direito, a impressão é de que o poder da cerca contamina o imaginário dos bravos lutadores.

Cercada uma porção de terreno, a luta coletiva é muito mais fácil de acontecer se ela interfere na esfera da vida priva-da. Uma criança doente pela falta de água encanada, uma rua sem asfalto cuja poeira atrapalha a respiração - as lutas passam a ser mais reativas do que preventivas.

Todas as casas, no bairro de Hilma, têm cerca. No limite pelas tábuas e arame farpado pregadas está impregnado o sig-nificado da dificuldade maior da luta urbana. A sociedade é hostil, as pessoas são formadas com base no medo. É necessá-rio proteger o patrimônio. Se deixarmos uma casa aberta, ela será roubada, com toda certeza. Isso não acontece por acaso, são os elementos da superestrutura funcionando, não há como fugir disso.

Na terra rural, entre as casas não há cercas. Mas há uma grande, a que delimita um espaço para os sem-terra. Pode-mos dizer que os moldes das reformas, tanto urbana quanto agrária, seguem a mesma lógica da propriedade burguesa. Isso

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contraria a análise de que reforma é um projeto de regime de poder alternativo, muito pelo contrário. As reformas do contexto atual são projetos para aumentar a competitividade e fluxo de capital, seja no campo, seja na cidade, não para serem propostas revolucionárias no sentido amplo da palavra.

Foto: Antonio C. Senkovski

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Em uma manhã qualquer de um final de semana chuvo-so, Frigo surge do meio de um quintal onde não se imagina como foi possível fazer crescer tantas plantas em um local de dimensões tão restritas. Não é a toa que ele relata o seu re-torno às questões da terra. Além da militância da defesa do direito à vida, o ativista tem uma pequena amostra em casa da biodiversidade do planeta. Das cores das orquídeas, aponta a novidade com cuidado. A flor recém nascida é motivo para um momento de pequena euforia.

Frigo e a esposa moram em Curitiba, em uma casa com mais plantas do que gente. Tereza Cristina, a esposa, Gabriel e André são os habitantes humanos da casa. Há ainda um cão cujo o nome foi simplesmente apagado da memória de quem escreve, embora a temperatura do focinho ainda possa ser sen-

11. A horta

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tida na perna descoberta. Os pássaros não chegam a ter nome, mas também têm espaço na espera incessante de quem deixou o “purungo” com um buraco para que seja a casa de um sa-biá.

Além de sabiás, há ainda palmeiras para os gorjeios tristes da saudade. Sentado na rede da varanda, tendo em frente a imensidão de um jardim, o assunto já não é só das lembranças. Apesar disso, as palavras remetem sempre ao que já foi, impos-sível negar as origens. Filosofar com o martelo não significa apagar a memória, mas sim encaixá-la em novos voos sobre a consciência humana.

Nessa construção que foi surgindo aos poucos pela nova visão de mundo desde que saiu de casa, o ápice aconteceu em 1985. Frigo veio para Curitiba, ainda como seminarista, o Centro de Direitos Humanos veio junto para a capital. A ten-tativa de manter a relação dos grupos de Ponta Grossa e Curi-tiba, aliada à construção de uma prespectiva de mundo a cada dia que passava, fez alguns colegas e ele a cogitarem a ideia de sair do seminário. Aliar as duas coisas estava sendo difícil, os limites institucionais da igreja dificultavam a militância.

Arranjou então um trabalho na Pastoral de Favelas, o que durou pouquíssimo tempo. Logo fez uma visita à Comis-são Pastoral da Terra (CPT), onde encontrou pastor Werner Fulks, um influente líder da luta pela terra até hoje no Brasil. Atualmente é um dos conselheiros da Terra de Direitos, or-ganização de direitos humanos da qual Darci Frigo é um dos fundadores.

O pedido de Fulks foi para que Frigo voltasse à CPT em janeiro. Disse que provavelmente encontraria algum trabalho a ele, o que efetivamente aconteceu em janeiro de 1986. A

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principal função, no início, era ajudar na organização dos sin-dicatos. Era um momento de extrema mobilização, dois anos antes da Constituinte, o país passava pelo processo de rede-mocratização, de luta por eleições diretas. É um período que os admiradores das histórias de quem hoje conta, sentado em uma rede na frente de um jardim, gostariam de ter vivido.

O trabalho na CPT seguiu até 2002. Os desafios foram se ampliando. No primeiro ano, o martelo ficou batendo na ideia de que precisava fazer um curso universitário. Tinha fei-to filosofia no seminário, mas não era regular. Depois de um ano trabalhando pela Região Metropolitana de Curitiba, se inscreveu no vestibular para o curso de Direito, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Tão logo aconteceu isso, tornou-se secretário executivo da CPT. Enquanto fazia faculdade, foi se inteirando dos conflitos no Paraná, uma preparação para a responsabilidade que assu-miria no início dos anos 90. Passou a ser coordenador da enti-dade, uma das referências no estado sobre a luta pela terra.

A formatura da faculdade aconteceu em 1991. Curiosa-mente, o exame da Ordem dos Advogados do Brasil não exis-tia, bastava colar grau e o registro na OAB era automático. Foi uma das últimas turmas que funcionou desta forma.

O que mais chama a atenção ao analisar o trajeto percor-rido por um militante é que geralmente não se pode dizer que do período “X” ao período “Y” o personagem fez a ati-vidade “A”. As articulações em diversos espaços fazem ideias amadurecerem e se transformarem em elementos importantes na vida, às vezes, anos mais tarde.

Um caso típico dessa multifuncionalidade está em um in-cômodo que passa a povoar a mente de Frigo em 87. Nes-

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se período, ele se aproximou da articulação de advogados do movimento social, centralizados em grande parte pelo Cen-tro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo (Cefuria). Essa aproximação vai influenciar, em grande parte, o futuro da sua atuação:

– Não advogando, eu nunca fui especificamente para a área técnica de advogar, mas sempre desenvolvi o trabalho de asses-soria jurídica de articulação para os movimentos.

Mais uma dessas tantas varandas abertas ao longo do cami-nho, a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) foi uma articulação que atendeu uma necessidade em especial. Em 1994 começa o governo Lerner e a repressão aos movimentos sociais aumenta consideravelmente.

A situação de conflito, por uma atuação policial mais vio-lenta, demanda um trabalho maior na esfera jurídica, com o objetivo de diminuir os efeitos da política truculenta. Lerner ficou conhecido, inclusive, como o arquiteto da violência pelo tempo em que permaneceu à frente do Palácio Iguaçu, de 1994 a 2002. O título inspirou um documentário:

Veja o documentário noblog Quinto Jornalismo

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Foi nessa época em que aquele telefonema, lá do começo, interrompeu o sono de Frigo. Os conflitos se intensificam a partir de 1997, até que ocorre a prisão do nosso personagem, em 1999. Depois, as ameaças começaram, talvez uma das épo-cas mais difíceis. Frigo chegou a ter durante um período, no início de 2000, proteção policial e não se mensura a tortura psicológica que representa a ameaça.

Ainda em 2000, ocorreu o assassinato do agricultor Anto-nio Tavares, um dos tantos trabalhadores tombados nessa luta. Na hora em que se rememora os casos que mais marcaram sua trajetória, uma das lembranças de Frigo, capazes de transmi-tir um quase esquecimento da resistência ao pranto adquirida pelos calos dos anos, é a da morte do agricultor Diniz Bento da Silva, o Teixeirinha. O assassinato aconteceu em Campo Bonito-PR, no dia 8 de março de 1993.

– Você era próximo dele? – Não era próximo, mas tinha conhecido ele como lide-

rança do movimento. Foi uma coisa tão bárbara assim, soube que eles prenderam o filho, que tinha 13 anos, o Marcos. Eles [os policiais] levaram o garoto para procurar o pai no cativeiro. Então, uma situação assim de extremos absolutos. O Teixeirinha se entregou e os policiais humilharam ele. De-pois, executaram e montaram uma farsa, disseram que ele tinha reagido e isso ficou sempre como um fato dado, nun-ca foi investigado, nunca se apurou definitivamente. Ele foi executado com cinco tiros. Esse fato dessa violência me mar-cou muito do ponto de vista pessoal.

A versão da polícia parece mais absurda quando se sabe dos detalhes dos disparos feitos contra o agricultor. Teixeirinha foi as-sassinado com 2 tiros nos joelhos, 1 no abdômen e 2 na cabeça.

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No dia 5 de outubro de 2004, a CPT publicou uma notícia em que traz a informação da condenação do estado do Paraná em segunda instância. A decisão mantinha a condenação do julgamento de 2002, e a pena previa o pagamento de inde-nização ao filho e à viúva de Teixeirinha. Porém, ainda cabia recurso.

Leia a notícia que traz as informações pesquisadaspara se escrever este trecho.

Depois de 17 anos da execução de Teixeirinha, nem o filho e nem a mulher estão mais vivos para lutar pelo reconheci-mento da justiça de que o estado do Paraná assassinou o agri-cultor. Em 2007, Lúcia Maico da Silva morreu de enfisema pulmonar, aos 75 anos. Marcos, o filho levado para ir atrás do pai quando tinha 13 anos, também faleceu em 2007, em um acidente de trânsito, deixando esposa e um filho.

Quase 10 anos depois da morte de Teixeirinha, Antonio Tavares sofreu da mesma tentativa de encobrir os fatos, mui-tas vezes, desenvolvida pelo Estado (leia mais). Neste caso, os advogados acompanharam mais de perto a situação. Foram cerca de 20 estudantes de Direito ou profissionais já formados e comprometidos com as causas sociais.

– Como foi a participação?– Todo mundo foi pra rua, lá pra BR, foram ajudar e acom-

panhar a questão dos presos, as pessoas que estavam desapa-

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recidas, violência, enfim. Depois começaram a organizar as ações, acompanhar os inquéritos, teve uma participação mui-to grande.

A morte de Antonio aconteceu pela tentativa de volta do MST para uma manifestação em Curitiba. Depois do acam-pamento na Praça Nossa Senhora da Salete, em 2000, a polícia montou um cerco na capital para evitar novas manifestações. Quando os ônibus estavam chegando à cidade, foram aborda-dos pela polícia. Nessa ação é que Tavares foi morto.

O governo Lerner e seu aparato publicitário chegou a dar a versão de que Antonio Tavares tinha morrido em um acidente de trânsito na BR 116, a quilômetros do local do crime. Darci Frigo lembra que o setor de comunicação do estado se profis-sionalizou nesse período para ser sempre o primeiro a dar uma versão do ocorrido nas situações de conflito.

O que aconteceu na BR 277 em maio de 2000 foi uma mostra do que acontecia cotidianamente nas ações de despejo. O governo fazia e depois soltava a versão de que haviam sido apreendidas armas, tentando colar o rótulo de criminosos nos movimentos sociais.

– Até você tirar eles da cadeia e mostrar ao poder público que era uma versão da realidade que tinha sido diferenciada, que a polícia tinha violado os direitos dos trabalhadores, sem-pre passava horas, dias, meses ou anos. Sem contar que, às vezes, a reparação da versão mentirosa não acontece.

Compreender um pouco dessas histórias é necessário para entender o que motivou a percepção da necessidade de criação de uma organização que atuasse com assessoria jurídica sobre o aspecto dos direitos humanos. A Terra de Direitos, local no qual Frigo trabalha hoje, teve em seu processo de formação,

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em 2002, esse caldo político. A Rede de Advogados Populares era um instrumento importante, mas não conseguia atender sozinha às demandas.

Nesse período, Frigo saiu então da CPT e passou a ser um dos coordenadores da Terra de Direitos. A organização ganha fôlego com o passar dos anos, e hoje trabalha dividida em qua-tro grandes eixos de atuação:

- Biodiversidade e Soberania Alimentar- Justiciabilidade dos Direitos Humanos- Política e Cultura dos Direitos Humanos- Terra, Território e Equidade Socio-EspacialAntes disso, houve ainda um episódio que sem dúvida me-

rece registro. Em um dia comum de trabalho – o que por si só já não é convencional – a secretária da CPT transfere uma ligação e diz que quem quer falar com ele era uma empregada da casa da viúva de Robert Kennedy, irmão de John F. Kenne-dy, ex-presidente dos Estados Unidos.

Como era de se esperar, em um primeiro momento, não foi tão fácil acreditar na ligação. O histórico de bom humor talvez lhe tenha dado a primeira impressão de que se tratava de uma piada. Mas na verdade, depois de um ano difícil pelas ameaças sofridas, era o reconhecimento do trabalho em defesa dos direitos humanos.

Frigo ganhou o Prêmio Robert F. Kennedy, depois de ter sido eleito entre 30 indicações de todo o mundo. A premiação reconhece a pessoa que mais se destacou na defesa dos direitos humanos no ano.

Na ligação, foi convocado a comparecer em 20 de novem-bro de 2001, data de aniversário do ex-senador Robert Ken-nedy, ao Congresso Norte-Americano. A comemoração é uma

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tradição que reúne toda a família anualmente no local para a entrega da premiação.

A ida aos Estados Unidos foi um pouco depois do atentado terrorista ao Word Trate Center, em 11 de setembro. O Con-gresso estava fechado, foi um período conturbado e a soleni-dade quase foi cancelada. Acabou acontecendo e constitui-se um momento importante para um ânimo à luta. Frigo lembra que naquele período foi possível reforçar e legitimar toda uma luta que tinha acontecido.

– Porque eu recebi o prêmio, mas o mais importante era que legitimava todos os movimentos sociais, no Brasil e no Paraná.

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12. Algumas questões urbanas

Em Curitiba, pode-se dizer que as ocupações urbanas têm um número mais expressivo a partir da década de 1980. Das 46 existentes até a década de 70, elas passam a ser 87 no ano de 1987, ou seja, o número quase dobra em menos de uma déca-da. Isso nos permite confirmar a teoria de que a formação das comunidades eclesiais de base, citadas por Hilma, interferiram de alguma forma no fortalecimento da luta por moradia.

Apesar disso, o movimento por terra urbana se consolida no início dos anos 90, já que dobra novamente o número de ocupações urbanas em Curitiba. O movimento do êxodo ru-ral não acaba com o fim da ditadura, a agricultura como um negócio, não mais como uma forma de vida, empurra uma massa de trabalhadores para a cidade.

Foi o que aconteceu com Hilma e milhares de pessoas que

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Evolução das ocupações irregulares - Curitiba

19791987199620002005

4687167301341

Ano n. de ocupações6067

11929337785733362267

n. de domicílios

se mudaram para os grandes centros nessa época. As várias faces dessa luta não estavam bem definidas, como a própria liderança do Movimento Nacional de Luta por Moradia con-firma, ao dizer que aprendeu sobre moradia na prática, no dia-a-dia. As necessidades aparecem em manobras políticas muitas vezes improváveis.

A trajetória de nossa personagem representa em grande parte uma mudança observada nos movimentos sociais da dé-cada de 80 e da década de 90. Além de conseguir o acesso aos direitos humanos, havia ainda a necessidade de se conquistar a previsão dos direitos. A Constituição de 88, mesmo com todas as ressalvas de críticos às origens do direito que são as mesmas origens da propriedade, foi o auge do debate sobre a conquista de direitos aos cidadãos.

Vários mecanismos foram criados para aquela que passaria a ser uma “carta magna” das leis do país. Um desses aparatos previs-tos para possibilitar a desapropriação e realocação foi a obrigação de que toda propriedade deve cumprir sua função social. Isso está escrito no artigo 5, inciso XXIII, e no artigo 170, inciso III da Constituição Brasileira e do Estatuto da Cidade. Apesar de pare-cer complicado, é mais fácil de achar do que passagem na bíblia.

Fonte: Ippuc

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Há ainda o alerta: “Os interesses proprietários devem estar conectados aos interesses extra-proprietários” – daqueles que não têm propriedade. O jurista Luiz Edson Fachin tem a aná-lise de que isso torna o direito de propriedade não absoluto, ou seja, só terá protegido esse direito em ação de reintegração de posse se a propriedade cumprir sua função social.

Se formos analisar as condições do terreno em que Hilma mora desde 1995, vamos perceber que ele passou vazio por mais de 30 anos. Há inúmeras áreas como essa que servem exclusivamente ao fenômeno da especulação imobiliária.

É como comprar algo por um preço baixo e esperar o valor ser maior para então vender e obter lucro. Isso representa uma mudança na estrutura de como se enxerga o capitalismo. Bas-ta lembrar da explicação trazida anteriormente sobre o que é lucro, nos moldes clássicos.

Um integrante da classe burguesa tem os meios de produ-ção. Ele paga o salário aos proletários, que não possuem meios de produção, para que eles realizem uma determinada tarefa. A diferença entre o custo de produção, incluindo o salário, e o preço final da venda é o lucro.

Mas no caso da especulação imobiliária, no caso dos terre-nos urbanos, não se trata da geração de lucro a partir de um produto industrializado. É a terra transformada em mercado-

Para acessar a Constituição, basta entrar no site do Palácio do Planalto. Clique aqui.

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ria. Sem que tenha sido cumprida qualquer função social por muito anos, uma terra tem valor agregado simplesmente por estar ali, parada.

A terra, no entanto, não ganha valor sozinha. Os governos têm total controle sobre isso. Um caso emblemático de Curiti-ba foi a construção de uma via rápida com uma capacidade de fluxo muito além da necessidade ligando o Centro a uma área com várias dessas áreas vazias.

Trata-se da Rua Pedro Viriato Parigot de Souza e sua para-lela, Monsenhor Ivo Zanlorenzi. Hoje, o entorno dessas duas ruas é um dos locais nos quais há mais prédios de alto padrão aquisitivo sendo construído, no bairro que se convencionou chamar, pelo mercado imobiliário, de Ecoville.

Vale ressaltar aqui que essas obras governamentais são exe-cutadas com dinheiro público. Os contribuintes de toda ci-dade, inclusive das áreas que necessitam de acesso a serviços básicos, ajudaram na construção de duas ruas para servir como alavanca para o preço dos terrenos de proprietários privados que não estavam cumprindo sua função social, na maioria dos casos. Veja no mapa da próxima página como está dividido o valor da terra na cidade de Curitiba.

Esse é um dos motivos pelos quais as bandeiras de luta do movimento por moradia estão se transformando. Hilma ressal-ta, por exemplo, que a luta habitacional não se concentra mais em ocupar áreas afastadas, sem acesso aos serviços básicos.

Observando o mapa das ocupações urbanas da pág. 100 é possível identificar que em Curitiba as maiores ocupações estão nos extremos da cidade. O acesso ao lazer, ao trabalho, à educação e à saúde fica prejudicado a essas pessoas. Segundo Hilma, isso caracteriza uma outra política pública, uma polí-

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tica de separar classes sociais.O movimento social começa inclusive a perceber isso, e

muda o foco da luta por moradia. Não se pretende iniciar no-vas ocupações em espaços distantes de onde está a infra-estru-tura. O Centro de Curitiba, por exemplo, tem vários imóveis desocupados, alguns há décadas.

A mais recente conquista nesse espaço foi um prédio na Rua José Loureiro, bem na região central, pertencente ao Ins-tituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Movimento Na-cional de Luta por moradia tinha feito planos para transfor-mar o prédio na sede da organização. No entanto, para que a construção seja transformada em uma Zona de Habitação de Interesse Social (ZHEIS), que vá atender famílias com renda de 0 a 3 salários mínimos, é preciso haver uma mudança na lei. Esse é um processo que exige coragem do poder legislativo, porque os moradores do prédio, com um rendimento de nível médio, não admitem que moradores de baixa renda passem a ser seus vizinhos.

Do oitavo andar pra cima, o prédio é privado, mas eles não têm garagem, porque o espaço para carros era do INSS. Com a possibilidade remota de terem que tirar seus veículos de lá, os moradores atuais se revoltaram. O argumento utilizado foi algo do tipo: aonde é que já se viu sem-teto agora ter carro?

– Ué, os sem-teto hoje eles podem não ter um teto, mas boa parte tem carro sim! E se ele vender o carro, ele não con-segue financiar a casa. Porque eles acham tanta coisa, um carro é tão fácil de financiar, qualquer desempregado financia um dito de um carro, mas uma casa não, não tem condição. Você até financia o material, mas não lá no banco. Você pode ir nes-sas lojas de materiais de construção, só que você não consegue

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financiar material pra construir uma casa inteira de uma vez.Há um livro muito estudado sobre esse aspecto do segre-

gacionismo urbano que é do professor Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná. Chama-se Curitiba e o mito da cidade modelo. A análise feita pelo professor é trazida também por Hilma enquanto ela fala sobre as atuais lutas que desempenha no espaço urbano.

Segundo a militante, em Curitiba há um apartheid propor-cionado pelas políticas de urbanização, responsável também por esse imaginário de que sem-teto não pode dividir espaço com quem mora na área central. O livro fala sobre a propa-ganda muito forte em cima da capital paranaense nas décadas de 70 e 80, principalmente no governo Lerner. A influência dessa política deu vários prêmios ao governante, e é inclusive o que vai dar sustentação a uma campanha do político e a elei-ção para governador em duas gestões, nos anos de 1990.

As intervenções urbanas no transporte público e em alter-nativas como as linhas de bi-articulados em canaletas exclu-sivas, além de uma preocupação estética maior no território urbano, trouxeram à capital o título de cidade modelo já na primeira gestão de Jaime Lerner (1971 a 1975). Um rígido direcionamento foi colocado no Plano Diretor de Curitiba.

Por definição, o Plano Diretor é um instrumento de ges-tão para a transformação positiva da cidade e seu território. Na determinação dessas direções do documento, são levantadas pautas para ação pública e privada com objetivo de garantir as funções sociais da cidade, reconhecido mesmo a partir da Cons-tituição. Hoje a regulamentação das diretrizes gerais se dá pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que prevê o Plano Diretor como um dos instrumentos em geral de política urbana.

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Na prática, as coisas com o Plano Diretor acontecem um pouco diferente. O processo de urbanização é direcionado pe-los governos municipais e a prioridade geralmente é dada a investimentos de revitalização ou embelezamento das cidades. Assim, a cidade fica atraente em espaços de interesse do capital financeiro, e não tanto nas zonas mais afastadas. É possível perceber essa política hoje em vários locais de Curitiba.

Por exemplo: a Rua Riachuelo, no Centro. Ela foi conhe-cida durante décadas como dormitório de moradores de rua, local de tráfico de drogas e de prostituição. A intervenção re-cente da Prefeitura mostra como o planejamento urbano mui-tas vezes encara esses problemas.

Em vez de políticas para resolver a situação, joga-se tinta e cimento em uma fachada corroída pelo tempo. Com maior iluminação, pretende-se acabar com a prostituição e o tráfico.

Os moradores de rua passam a não mais dormir no local. As pessoas que trafegam pela rua não veem mais os problemas na Riachuelo, e as coisas estão, aparentemente, resolvidas.

Tudo isso para explicar que, seja qual for o tema da reivin-dicação, há uma infinidade de políticas públicas sendo cons-truídas, há mudanças nos governos e as “varandas” na luta são consequência desse processo. Apesar da abrangência enorme do desafio de Hilma, ela também tem necessidade de moradia.

Veja a notícia publicada no siteda Prefeitura Municipal de Curitiba sobre a revitalização.

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Mesmo assim, soube durante todos esses anos conciliar o processo de luta para regularização fundiária de sua casa e participou de inúmeras atividades de formação. Ela ficou por dentro de processos de ocupação em outros bairros. Um fato que aconteceu recentemente, por exemplo, entra no assunto quando se fala em habitação de interesse social.

Perto da casa de Hilma, as moradias são bem mais juntas que nos outros lugares. A impressão é que os vizinhos não guardam segredos um do outro. Quando termina o horário de aula, to-dos se unem em uma multidão no caminho de volta para casa. A rua estreita e cheia de curvas fica dividida entre gente e carros, geralmente em um ritmo acelerado e amedrontador.

A integração das pessoas acontece de forma natural. Meni-nos e meninas voltam conversando e rindo da vida, desviando, vez ou outra, da poça de barro. É um elemento cultural da comunidade, a integração.

No ano passado, a prefeitura concedeu a uma empresa a licença ambiental para que fosse construído um condomí-nio fechado do outro lado de onde fica a casa dos meninos puladores de poças d’água. A contrapartida era que fossem construídas nesse empreendimento algumas habitações de in-teresse social.

Essas casas foram feitas antes do condomínio, tinham sime-tria, bem pintadas, feitas no capricho. Os moradores ficaram contentes a princípio, mas o que aconteceu depois? As casas foram separadas das outras, com um muro. Os moradores das casas de “interesse social” feitas pela construtora foram segre-gados dos moradores do condomínio.

A integração, agregada culturalmente aos valores dos mo-radores, foi cortada de suas vidas a partir de um muro. O

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fato é lembrando com bastante decepção, pois a reserva de habitação de interesse social nos empreendimentos foi uma conquista, mas é utilizada de modo a disseminar a cultura do apartheid de classes.

No entanto, Hilma ressalta que não há como negar um avanço considerável na preocupação do governo federal com a diminuição das desigualdades na cidade. Em 2003, foi criado o Ministério das Cidades, com o objetivo de combater as de-sigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte.

Especificamente sobre a conquista do espaço da casa em que mora, não se trata de uma história que se consegue resumir em poucas frases sem excluir uma enormidade de detalhes. Foram 11 anos de briga na justiça. Com o passar do tempo, cerca de 3 mil pessoas constituem a área de ocupação.

Em 2006, chegou a sair o pedido de reintegração de posse ao proprietário. A população se uniu para evitar o despejo, afinal, já eram mais de 10 anos de luta. O governo estadual se recusou a cumprir a ação, e o proprietário tentou até uma intervenção federal para que fosse feito o despejo.

Como o estado do Paraná não poderia fazer a desapro-priação de uma área que era do município, o diálogo entre o Palácio Iguaçu e a Prefeitura de Almirante Tamandaré foi a alternativa política encontrada. Mas o que aconteceu em 2007 foi apenas um passo para a regularização fundiária. A área foi desapropriada e passou a ser considerada pública, mas ainda não está como manda o figurino.

Recentemente a ligação de esgoto foi a demonstração de mais uma das conquistas pela mobilização popular. Agora,

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Hilma garante que vai procurar estabelecer diálogo com os moradores para que seja feito o asfalto na região.

– A proposta da prefeitura para que asfaltem é que 70% dos moradores de uma rua têm que aderir e você paga 70% pra que eles façam.

A integrante do MNLM, depois de horas de entrevista, não parece cansada. Ela ressalta com a voz cada vez mais firme a dificuldade que as cercas nas áreas conquistadas vão colocando na mobilização com o passar dos anos.

– É difícil mobilizar o povo, Hilma?– Agora é. Não foi, mas agora é. Porque agora as pessoas

estão dentro da casa delas. Hoje, queira ou não, o custo de vida, as pessoas estão tendo um nível de vida melhor. Mas a gente já trabalhou aqui com muita... fome mesmo, porque as pessoas não tinham. O salário não dava. Hoje se tem um po-der de compra. Se você for andar aí, as pessoas, às vezes, têm carro – só não tem a entrada pra carro. Nem sempre eles têm uma casa boa, porque hoje é mais difícil você conseguir finan-ciamento pra construir uma casa maior do que você obter um financiamento pra comprar um carro. Não sai financiamento para quem está em uma área que não é regularizada.

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A principal bandeira de luta nos movimentos por moradia é a da Reforma Urbana. Com ela, pretendemos fazer a inclu-são e integração das pessoas da nossa na cidade. Na cidade pela qual a gente luta vai ter política pública e toda infra-estrutura à volta de onde as pessoas estão. Você não tem que achar que para ter uma casa tem que ir embora lá pras Cochinchinas não. A Reforma Urbana que nós queremos, a que nós defendemos e trabalhamos no Fórum Nacional da Reforma Urbana, é a da inclusão social. A do direito à cidade realmente.

É por isso que hoje nós discutimos o número enorme de imóveis vazios no Centro da Cidade. A gente quer esses imó-veis vazios pra habitação de interesse social. É a inclusão da população mais pobre à cidade, ao centro da cidade. Porque hoje nós sabemos que nós fomos muito usados, durante esses

13. Os desafios da luta nas palavras de Hilma

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anos todos pra valorizar a terra como mercadoria, que é o que nós vemos principalmente nas grandes cidades.

Nós somos empurrados para a região metropolitana e os grandes centros ficam vazios. Na região da Cidade Industrial de Curitiba, tem 1 milhão de metros de terra ali pra ser vendi-da, de 600 a 2 mil metros. Então, é um absurdo, já não é mais no Centro da Cidade, é a terra como mercadoria inclusive nas áreas afastadas.

A moradia é um direito humano, um direito constitucio-nal. Já estava prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Para nós, em um processo de Reforma Urbana, a moradia tem que estar incluída próximo do centro da cidade. Ali já está toda a infra-estrutura, desde o saneamento, da água, da luz, da rede de esgoto, do asfalto, tudo. No Centro de Curi-tiba o que pode não ter muito, o que falta – se colocar muita gente e a gente tem consciência disso – é escola. Agora, isso tem que achar uma maneira de fazer, porque há tantos imóveis vazios que podem ser transformados em equipamentos públi-cos para o atendimento da população.

Nessa questão, é fundamental trazer a questão da terra. Ela não nos pertence, nós pertencemos a ela, e ela tem que deixar de ser mercadoria. Enquanto ela for vista como um grande fruto do capital, vai ser isso que acontece. Então, tanto na cidade quanto na área rural, é necessário mudar a visão que se tem sobre a terra.

Outra dificuldade para quem faz algum tipo de luta na sociedade é o preconceito. Somos taxados de baderneiros, de agitadores. Tentam inverter essa imagem quando a gente bus-ca política pública, que nós somos baderneiros. E na realidade, nós estamos construindo políticas públicas. Hoje a gente está

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nos conselhos, a gente está formalizando os planos de habita-ção, então você está formando o direcionamento político. Mas os interesses individuais, eles são muito mais considerados que os coletivos.

O caminho para o avanço, na minha opinião, é por meio da informação. Nem sempre os grandes veículos de comuni-cação, os veículos comandados pelo imperialismo e pela con-centração da mídia, eles não falam coisas a nosso favor. Eles mostram uma imagem distorcida. Mesmo quando eles con-tam alguma verdade que a gente foi fazer, eles tentam mudar a imagem nossa, do militante, a imagem daquele movimento.

Leia toda a conversa com Hilma no blog Quinto Jornalismo

Foto: Antonio C. Senkovski

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Eles criam, eles têm a opinião deles de defender só o indivi-dual mesmo. E isso é muito ruim, criminaliza os movimentos sociais.

Mas a comunicação é ao mesmo tempo o grande veículo capaz mobilizar e conscientizar a população. Então, se ela é um grande caminho pra conscientizar a população, o que nós temos que fazer? É mudar a forma de ver a comunicação. A gente tem que passar a fazer parte da comunicação, a fazer esse controle social da comunicação, e não achar que esses grandes veículos estão falando só a verdade, porque nós sabemos que não. É preciso combater a concentração e rebater o que eles dizem.

O que nós queremos, com o controle social, é participar, é fazer parte. Com a internet, com os blogs, com essa série de coisas que estão aí, é ainda mais fácil você fazer isso. O que nós temos que fazer é usar esses meios alternativos ao nosso favor. Então, por isso a gente tem que aprender a fazer comunicação, a escrever um texto de jornal mesmo sem ser jornalista, a dar nossa opinião e espalhar pelos blogs, sites...

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A coisa mais difícil que eu vejo na luta pela reforma agrária é o fato de que a propriedade da terra continua sendo uma fonte de poder intocável, de poder econômico, de poder polí-tico, poder patriarcal. Ela tem uma reserva simbólica também de ideologias e de forças políticas que se articulam a partir dela, contra a possibilidade de os camponeses acessarem a re-forma agrária.

A cultura patrimonialista proporciona que a defesa da pro-priedade venha antes da defesa da vida, eu aprendi isso na prática. Tanto o Estado como o poder econômico possuem ainda, como núcleo central, a proteção o direito de proprieda-de. Então, direito à vida, direito ao trabalho, direito à saúde, à educação... todos esses direitos sociais, mais o direito à demo-cratização do direito de propriedade, ficam secundarizados.

14. A propriedade e os desafios, nas palavras de Darci Frigo

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Esse foi um aprendizado. Eu acho que o direito de proprieda-de, ele se opõe aos direitos humanos como um todo, enquanto direito absoluto de propriedade.

Os direitos humanos em um conceito universal, você não consegue efetivá-los, você só consegue efetivar secundariamen-te, parcialmente, residualmente. Nós temos aqui um impasse, independente de a gente pensar no futuro, se vai ser uma so-ciedade nos moldes de uma sociedade socialista, que supere o capitalismo, mas alguma coisa a gente tem que lutar pra supe-rar essa sociedade que é embasada na propriedade absoluta.

A propriedade é, na verdade, mais do que uma coisa em si, ela é relação. Ela que estabelece que quem é dono pode dizer como os outros vão se comportar. Ela é que determina que o proprietário possa estabelecer relações de trabalho que tenham exploração, super exploração, trabalho escravo, seja lá o que for. Ela dá status, ela dá todas as condições para que você, na sociedade, seja isso e não aquilo.

Sobre a visão que se tem da propriedade, eu diria que os pobres têm, no seu imaginário, mesmo vivendo da miséria e às vezes da penúria, a mesma ideologia patrimonialista que os grandes proprietários têm. Isso apareceu claramente nas pri-meiras eleições do Lula. Os pobres diziam: não, mas se o Lula ganhar ele vai tomar a casa das pessoas. Aí a gente perguntava: você tem casa? Não, eu alugo. Mas então vai tomar o quê?

Quer dizer, a pessoa nem tinha o direito material pra ela defender, mas assumia a ideologia do outro. Acho que nesse sentido a ideologia do patrimonialismo, da propriedade, ela é incutida nas pessoas pela classe dominante e é isso que leva as pessoas, às vezes, a rejeitarem as ações dos movimentos sociais como o MST, como os movimentos de moradia, que impede

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que as pessoas vejam claramente os seus direitos econômicos. Se o direito de propriedade fosse democratizado, melhoraria muito a vida de todos. Mas elas acham que não. É a classe do-minante que incute essa visão, uma visão invertida do mundo, uma visão do mundo inversa.

Nós vamos ter, daqui pra frente, desafios diferentes. Os movimentos sociais, como eles se colocaram nas décadas de 80, 90 e mesmo na primeira década do ano 2000, eu acredito que nós não vamos ter essa mesma atuação desses anos. Hoje são movimentos de resistência especialmente as comunidades

Leia toda a conversa com Frigo no blog Quinto Jornalismo

Foto: Antonio C. Senkovski

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tradicionais, como os quilombolas, os indígenas... e continua a luta pela reforma agrária. Nós vamos continuar atuando nes-ses campos, tanto em assessoria jurídica ainda, mas com temas sempre novos. Além disso, a questão ambiental vai ganhar for-ça nos próximos anos.

A pauta do judiciário vai marcar nossa atuação nos pró-ximos 10 anos fortemente, porque vai ser um campo que a gente vai investir, porque sempre houve um privilégio às ações do Estado a partir do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Agora a gente vai ter um equilíbrio que vai dar um reforço na atuação da Terra de Direitos, por exemplo, nesse tema.

Sobre a reforma agrária especificamente, você pode se dis-tanciar de uma reforma agrária naquele conceito tradicional. Mas do ponto de vista das lutas de comunidades tradicionais, os quilombolas, os indígenas e outros locais, populações que estão descobrindo suas identidades, essas populações vão se apropriar do território. Eles vão resistir no território de forma diferenciada, de tal modo que eu vejo no futuro uma varieda-de de resistências e lutas por terras e por território.

Talvez a luta por território vá ser mais forte daqui pra frente nesses grupos que vão resistir ao avanço do agronegócio, ao avanço das monoculturas. E isso seja de agrocombustíveis, seja de árvores, seja dessa onda de mercantilização das lutas am-bientais através dos RED’s (crédito de carbono) ou de outros mecanismos que estão sendo criados internacionalmente pra poder se apropriar das nossas florestas.

Agora, eu acho que o que mudou, nesses últimos anos, foi o reconhecimento do censo agropecuário – esse último que foi feito – do papel do camponês na produção de alimentos, nunca tinha sido reconhecido. Ganhou uma força porque não

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era uma questão que a gente podia imaginar.A questão do campo não é uma questão linear. A gente tem

as forças econômicas do agronegócio, as transnacionais que vão marcar os conflitos que vão ter outra ordem de grandeza e tudo mais. Vai continuar o enfrentamento do movimento social com as empresas, mas eu arrisco dizer que a agricultura familiar vai ganhar à medida que ela produza alimentos.

A partir desse olhar, não se tem uma visão linear assim que a reforma agrária está crescendo ou o camponês está desapare-cendo. Esse é um debate do final do século XIX, já havia esse debate que os camponeses iam acabar. No século XX esse de-bate se arrastou o tempo inteiro e os camponeses vão se repro-duzindo, então não existe uma regra. Há uma exclusão? Há. Mas os camponeses continuam encontrando “n” formas de se reproduzir e nosso trabalho vai ser fortalecer a luta deles.

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Pode soar estranho em um primeiro momento, mas esta conclusão não tem por objetivo encerrar este trabalho. Uma das conclusões a que se chega, depois de conferir algumas tra-jetórias de vida, é que no campo dos direitos humanos não há um ponto final. O que se tem, mesmo que a história chegue próxima do que se define por um “fim”, são as perspectivas de novas lutas.

Este trabalho não teve como período de realização o ano de 2010, como pode parecer metodologicamente falando. Ele guarda uma história de 21 anos do autor somados aos milha-res de anos de história da humanidade, mesmo que o contato com essa história seja praticamente nulo, dada a grandeza des-ta. Cabe, no entanto, ressaltar o motivo deste livro começar pelo primeiro contato do autor com a cidade e terminar com

15. Um fim que é o começo

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o mesmo caráter de saudosismo.Antes de mais nada, as horas dedicadas a preparar o material

em questão para que olhos do leitor percorressem o caminho de cada linha tiveram a missão de proporcionar um exercício dialético ao autor. Da lembrança da primeira despedida até o dia em que se grafam as palavras na brancura deste papel, se passaram quatro anos de um incômodo terrível.

Há sempre o embate e a ação do mundo como nos fazem vê-lo, do mundo como ele é e do mundo como ele pode ser. A tese do mundo novo, no início dos quatro anos de univer-sidade, era capaz de convencer a qualquer um das belezas da nova morada. Não sentia falta do doce amargo do amor, nem da prenda que ficou pra trás.

A cada nova tomada de ônibus nas madrugadas tímidas da capital sorriso para ir à faculdade, foi possível começar a criação de uma anti-tese, na qual o martelo foi pesando cada vez menos na missão de bater nas ideias pré-definidas – preva-lecia a força. O motivo dos meninos e meninas que deixam o interior do estado para encherem as cidades grandes é o mes-mo desde o início da sociedade moderna. O que muda são os destinos.

Dona Marlene, Hilma e Frigo partiram para outras cida-des motivados pela política de desenvolvimento desigual entre cidades e colônias do interior. No século XX, assistiu-se a mu-dança de um patamar de 10% da população brasileira viven-do nas cidades para quase 90% na primeira década do século XXI. É um inchaço sem precedentes na história mundial.

Não é à toa que a fumaça não deixa ver a lua e que os per-sonagens da nossa história busquem, cada um a seu jeito, um modo de lembrar a infância. O mate consumido enquanto se

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conversa é uma prova da gratidão ao primeiro índio que cevou seu mate no romper da aurora. As lembranças enquanto se coloca uma boneca dentro de uma mochila da mesma forma, e há ainda os chamamentos de Dona Marlene à fiel escudeira, Preta.

Passamos, durante esta leitura, pelo mato queimado por um garoto sapeca, pela panela vazia da mãe de Hilma e pela mordida do cavalo na cabeça do pai de Dona Marlene. Cada um dos nossos personagens tem sua própria história, e são o que são hoje pelo caminho percorrido desde a infância. Não é possível fazer um recorte do advogado, da empregada de ser-viços gerais ou da cobradora de ônibus sem analisar que por trás de cada um deles há, antes de tudo, um ser humano com história.

As necessidades de cada um, as decisões e como cada passo foi dado durante um pequeno fragmento da vida deles, por este livro, tiveram importância para que no momento das en-trevistas a versão dada tenha sido a contada aqui, e não outra. O que não se pode esquecer é que a história de quem escreveu também influenciou na decisão de manter ou cortar passa-gens, por isso, as entrevistas de Frigo e Hilma encontram-se na íntegra no www.quintojornalismo.com.br. Haverá ainda a inclusão, neste produto que não é definitivo, de outras histó-rias. O propósito é que com a leitura da entrevista crua seja possível analisar o poder que o produtor de informação tem na mão ao escrever qualquer tipo de texto.

Duas entrevistas foram feitas, além das que deram susten-tação à história contada até aqui. Uma com Juliana Avanci, advogada da Terra de Direitos, e outra com Clarice Metzer, assistente social do Ministério Público do Paraná.

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O projeto Quinto Jornalismo teve em si, neste ano, a missão de transmitir um pouco de transparência aos leitores. Mas por mais que a abertura tenha acontecido no site e os comentários nos posts tenham influenciado de alguma forma na produção, a palavra final foi de quem escreveu, selecionou, cortou.

Por isso este não é um livro pronto. Trata-se de um frag-mento, no meio de tantos outros, que constituem a história da humanidade. Não fossem os tombados nas lutas citados aqui, não fossem os padres terem “capturado” o menino incendiá-rio, não fosse a mãe de Hilma ter segurado em sua mão, nada do que está escrito aqui teria sentido. Nada teria sido escrito.

A gratuidade da vida é que dá subsídio para que os acon-tecimentos sejam relatados. A falta de definição do futuro faz do passado uma grande piada, porque nas lembranças, os fatos parecem pedras de um quebra-cabeça. A doença do pai faz com que a menina se mude para a cidade, onde conhece o marido e tem duas filhas.

Em meio às histórias das pessoas, mistura-se o desejo de algumas coisas que nascem sem que se tenha uma explicação própria para o porquê. Qual motivo levou Frigo e Hilma para a militância política? Por que Marlene gosta tanto da cidade em que vive? Apesar de terem sido chutadas algumas respos-tas, são apenas sugestões faladas por eles e reescritas por este autor.

Da indefinição para muitas questões apontadas por este pequeno recorte de uma realidade, registra-se a gratidão por uma definição. Ao longo da apuração destas histórias, algumas dificuldades acometeram o autor das linhas. Parte delas são responsáveis inclusive por esta versão do livro estar saindo à luz somente agora.

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Do suor frio concentrado nos pés durante a pesquisa dos assassinatos e dos risos saídos pelas histórias pitorescas de cada um dos personagens veio a certeza de que a escolha feita há 4 anos, em Santa Izabel do Oeste (não se sabe o porquê do Oes-te, já que fica no Sudoeste do Paraná), foi mais do que certa. A síntese de agora se materializa na vontade sem explicação de mudar o mundo ao final desta fase da empreitada em um curso de jornalismo. Afinal, o desejo maior, dentro desse con-texto que torna possível ao autor olhar para trás e ver feliz a gratuidade da vida, é somente um: estar do lado das vítimas.

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