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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO O PUNITIVISMO COMO ESCOLHA DO ESTADO DE PERMANENTE EXCEÇÃO: UM ESTUDO SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO Mariana Hoff Amaro dos Santos RIO DE JANEIRO 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS

FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

O PUNITIVISMO COMO ESCOLHA DO ESTADO DE PERMANENTE

EXCEÇÃO:

UM ESTUDO SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Mariana Hoff Amaro dos Santos

RIO DE JANEIRO

2017

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Mariana Hoff Amaro dos Santos

O PUNITIVISMO COMO ESCOLHA DO ESTADO DE PERMANENTE EXCEÇÃO:

UM ESTUDO SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como requisito parcial para

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Eduardo Ramires Santoro

RIO DE JANEIRO

2017

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MARIANA HOFF AMARO DOS SANTOS

O PUNITIVISMO COMO ESCOLHA DO ESTADO DE PERMANENTE EXCEÇÃO:

UM ESTUDO SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como requisito parcial para

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Data de aprovação: ____/ ____/ _____

Banca Examinadora:

________________________________________________

Prof. Dr. Antonio Eduardo Ramires Santoro

________________________________________________

Membro da banca

________________________________________________

Membro da banca

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À Emília Hoff, meine Oma.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu professor e orientador Antonio Santoro, por, além de orientar este trabalho, ter

despertado em mim o pensar filosófico do Direito.

À Gloriosa Faculdade Nacional de Direito, por sua história de lutas e por me fazer

acreditar num mundo mais justo.

Aos meus pais, Amaro e Rosa, por apenas tudo. Todas as minhas conquistas serão

sempre dedicadas a vocês.

À minha Vitória, irmã amada, por enriquecer minha vida. Nossa ligação supera a

eternidade.

À minha família carioca, pelo cuidado e afeto de sempre.

À Família Hoff, pelo carinho e incentivo que ultrapassam a distância.

Às minhas muito mais que amigas Gabriella Batalha, Isabelle Menezes e Vanessa

Alessi, pelo apoio incondicional.

Às queridas Silvia Bourguignon e Yasmin Proença, pela paciência e conselhos durante

esses cinco anos de convivência diária.

A todos aqueles que colaboraram na realização deste trabalho, a minha mais sincera

gratidão!

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Quero a utopia, quero tudo e mais

Quero a felicidade nos olhos de um pai

Quero a alegria, muita gente feliz

Quero que a justiça reine em meu país

Quero a liberdade, quero o vinho e o pão

Quero ser amizade, quero amor, prazer

Quero nossa cidade sempre ensolarada

Os meninos e o povo no poder, eu quero ver

São José da Costa Rica, coração civil

Me inspire no meu sonho de amor Brasil

Se o poeta é o que sonha o que vai ser real

Bom sonhar coisas boas que o homem faz

E esperar pelos frutos no quintal

Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê

poder?

Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é

que sabe ter

Assim dizendo a minha utopia eu vou levando

a vida

Eu vou viver bem melhor

Doido para ver o meu sonho teimoso um dia se

realizar

Milton Nascimento

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar as práticas punitivistas desempenhadas pelo Estado

brasileiro que permitem a sua caraterização como um estado de exceção. Ainda, pretende-se

demonstrar em que medida a teoria do Direito Penal do Inimigo se apresenta como escolha

desse Estado de emergência. Para tanto, a primeira parte do trabalho se volta ao estudo

conceitual tanto do estado de exceção quanto do Direito Penal do Inimigo. Em seguida,

analisam-se os efeitos do poder punitivo que acarretam a exclusão de determinados indivíduos

social e penalmente através de políticas segregacionistas e encarceradoras. Por fim, após breve

exposição de princípios norteadores do Estado Constitucional de Direito, a terceira parte se

dedica ao exame da legislação infraconstitucional aplicada no contexto da exceção abordando

a presença do direito penal de autor e seus aspectos inerentes.

Palavras-chave: Estado de Exceção; Direito Penal do Inimigo; Punitivismo; Prisão.

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RESUMEN

El objetivo de este trabajo es analizar las practicas punitivistas desempeñadas por el Estado

brasilero que permiten su caracterización con un estado de excepción. Aún, se pretende

demostrar en que medida la teoría del Derecho Penal del Enemigo se presenta como escogido

de ese Estado de emergencia. Para esto, la primera parte del trabajo se vuelca al estudio

conceptual tanto del estado de excepción como del Derecho Penal del Enemigo. En seguida, se

analizan los efectos del poder punitivo que acarrean la exclusión de determinados individuos

sociales y penalmente a través de políticas segregacionistas y encarceladoras. Por fin, después

de breve exposición de principios norteados al Estado Constitucional de Derecho, la tercera

parte se dedica al examen de legislación infra constitucional aplicada en el contexto de la

excepción abordando la presencia del derecho penal de autor y sus aspectos inherentes.

Palabras-claves: Estado de Excepción; Derecho Penal del Enemigo; Punitivismo; Prisión.

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ABSTRACT

The goal of this pape ris to analyze the punitive practices performed by the Brazilian State

which allw its characterization as a state of exception. Also, I aim at demonstrating to which

amount the theory of the Penal Law of the Enemy is pesented as chosen by this emergency

State. For that, the first part of this paper focuses on the conceptual study of both the state of

exception and the Penal Law of the Enemy. After that, I analyze the effects the punitive power

which lead to the social and penal exclusion of certain individuals through segregating and

incarcerating policies. Finally, after a brief exposition of the guiding principles of the

Democratic Constitucional State, the third part of this paper is dedicated to the examining of

the sub-constitutional legislation applied to the contexto of exception addressing the presence

of the penal law of author and its inherent aspects.

Keywords: State of Exception; Penal Law of The Enemy; Punitivism; Prison.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CADH – Convenção Americana sobre Direitos Humanos

CC - Código Civil

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CP - Código Penal

CPP – Código de Processo Penal

CRFB - Constituição da República Federativa Brasileira

DUDH – Declaração Universal dos Direitos do Homem

LEP – Lei de Execução Penal

OEA - Organização dos Estados Americanos

STF - Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13

2 EMERGÊNCIA ILEGÍTIMA .............................................................................................. 16

2.1 O estado de exceção prolongada ....................................................................................... 16

2.2 A teoria do inimigo ............................................................................................................. 24

3 O PODER DE PUNIR E A PENA ........................................................................................ 30

3.1 A sociedade punitiva de Michel Foucault .......................................................................... 30

3.2 O histórico da pena de prisão ............................................................................................. 35

3.3 A efetivação do punitivismo ............................................................................................... 38

4 REFLEXOS DO INIMIGO NA REALIDADE POLÍTICO-PENAL BRASILEIRA...........48

4.1 Direito Penal na Constituição Federal ................................................................................ 50

4.1.1 Princípios constitucionais do Direito Penal ..................................................................... 51

4.1.1.1 Legalidade .................................................................................................................... 51

4.1.1.2 Intervenção mínima ...................................................................................................... 52

4.1.1.3 Lesividade (ou Ofensividade) ....................................................................................... 52

4.1.1.4 Humanidade .................................................................................................................. 53

4.1.1.5 Culpabilidade ................................................................................................................ 53

4.1.1.6 Insignificância .............................................................................................................. 54

4.1.1.7 Proporcionalidade ......................................................................................................... 54

4.1.2 Princípios Democráticos do Processo Penal .................................................................... 55

4.1.2.1 Presunção de inocência ................................................................................................. 55

4.1.2.2 Princípio acusatório ...................................................................................................... 56

4.1.2.3 Ampla Defesa e Contraditório ...................................................................................... 56

4.1.2.4 Publicidade ................................................................................................................... 58

4.1.2.5 Motivação ..................................................................................................................... 58

4.1.2.6 Princípios da jurisdição penal ....................................................................................... 58

4.1.2.6.1 Juiz natural ................................................................................................................. 58

4.1.2.6.2 Inércia ........................................................................................................................ 59

4.1.2.6.3 Imparcialidade ........................................................................................................... 59

4.1.2.7 Princípios relativos à liberdade pessoal ........................................................................ 60

4.2 Direito Penal do Inimigo na Legislação Infraconstitucional .............................................. 61

4.2.1 Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40) .......................................................................... 61

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4.2.2 Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) .................................................................................... 63

4.2.3 Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8072/90) ................................................................... 64

4.2.4 Lei antiterrorismo (Lei nº 13.260/16) .............................................................................. 65

4.2.5 Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/41)....................................................... 67

4.3 Execução da Pena e Dados Carcerários .............................................................................. 68

5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 72

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo geral compreender o exercício do poder de punir

do Estado sob o prisma do garantismo penal para, assim, criticar o punitivismo estatal, bem

como as teorias a ele inerentes, como a tese do Direito Penal do Inimigo.

Tal pesquisa ambiciona demonstrar a presença do direito penal de autor e do Estado de

exceção na legislação infraconstitucional e na política criminal do Brasil, as quais relativizam

direitos fundamentais e evidenciam a propagação dessas doutrinas na realidade jurídica

brasileira. A abordagem do estudo será delimitada pela análise das estruturas estatais que levam

à exclusão social e ao cárcere, entendendo o poder do Estado como um poder de defesa contra

“inimigos”.

É inquestionável que se apela ao Direito Penal como forma de resolução de conflitos

envolvendo criminalidade e violência em detrimento da utilização de políticas públicas que

tracem um diagnóstico da realidade fática.

A conjuntura de uma sociedade que elege um inimigo através de um processo seletivo

esbarra, na verdade, no que se entende por Direito Penal e qual seria a sua real função. Dessa

maneira, ao se pensar numa “relação jurídica” punitivista, a identificação dos sujeitos ativo e

passivo da mesma é crucial para decifrar o inimigo.

Enquanto sujeito ativo, o inimigo seria aquele que comete o crime contra o Estado, visto

aqui como vítima do delito. Tal escolha legitimaria a relativização das regras de imputação e

dos princípios fundamentais. Por outro lado, se o inimigo é o sujeito passivo, o Estado se torna

o polo ativo da relação, ou seja, autor da exclusão e do discurso jurídico-político. Ser o emissor

da linguagem, portanto, faz com que o Estado produza os mecanismos de dominação para

condenar os inimigos. É essa forma jurídica que se almeja examinar na monografia.

Nesse sentido, é possível destacar os problemas a serem enfrentados, delimitando-os

através de algumas questões. Sendo assim, a primeira questão a ser formulada é a seguinte: a

construção de um Estado através de suas diversas instituições depende de uma relação de

exclusão e aprisionamento? Como classificar a realidade político-criminal como punitivista?

Dessa maneira, a violação de Direitos Humanos e a seletividade penal são uma escolha? Em

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relação à teoria proposta por Günther Jakobs, pode-se inferir que o Estado brasileiro adota o

direito penal do inimigo como prática permanente? Essa adoção constitui, portanto, um estado

de exceção? De que maneira esse sistema penal diferenciado se demonstra no ordenamento

jurídico brasileiro e no cotidiano judiciário?

Em relação às hipóteses para as prospectivas respostas às questões formuladas, registra-

se a necessidade de analisar conceitos como Direito Penal do Inimigo, estado de exceção, direito

penal de autor, punitivismo etc. O trabalho também se debruçará no estudo da origem da prisão,

função do Direito Penal, contexto histórico e político da exclusão, realidade do sistema

carcerário.

Isto posto, o estudo tem como finalidade, não oferecer soluções para os problemas

apontados ao longo do presente trabalho, mas, tão somente, trazer à tona uma discussão nada

contingente frente aos abusos que vem sendo cometidos nas diversas esferas do poder.

Pretende-se, enfim, esmiuçar como o Estado brasileiro se apropriou de estruturas sociais

que levam à exclusão para exacerbar seu poder de punir. Para tanto, faz-se indispensável breve

explanação sobre o termo contido no título do trabalho. O dito “punitivismo” foi utilizado para

expressar o conjunto de atitudes que revela que o Estado é quase unânime em tratar o direito

penal como solução primeira (e não ultima ratio). A ideologia punitivista traduz um discurso

jurídico-político autoritário que prioriza a repressão a todo custo, o que acaba se aproximando

das teorias que regem o estado de emergência e o direito penal de autor.

De modo a rechaçar a sua possibilidade de emprego como orientação político-criminal

e de discutir as implicações do estado de exceção no Estado de direito, o presente trabalho, no

primeiro capítulo, fará estudo a partir, sobretudo, da tese de Giorgio Agamben e de como esta

se aplicaria à realidade brasileira. Em um segundo momento, entendendo que o Estado de

exceção possui uma tendência à eleição de um inimigo político, será estudada a teoria do Direito

Penal do inimigo, de Günther Jakobs, bem como as proposições do seu crítico mais aguerrido,

Eugenio Zaffaroni.

O segundo capítulo, analisará as nuances da sociedade moderna através da criminologia,

a qual permite um estudo mais apropriado das características formadoras de uma sociedade

punitiva. Para tal, cada seção do capítulo trará premissas essenciais ao desenvolvimento do

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tema por autores que formam o referencial teórico da monografia. A organização dos

subcapítulos pretende construir uma sequência lógica de entendimento da realidade

Por fim, no terceiro capítulo, buscando concretizar o propósito do presente trabalho,

algumas leis penais brasileiras que se mostram dentro da lógica da emergência punitiva serão

examinadas, como a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° 8072/90), a Lei de Drogas (Lei nº

11.343/06), a Lei Antiterrorismo (Lei nº13.260/16), além dos Códigos Penal e de Processo

Penal e de dados carcerários sobre a execução penal. Tal apuração prescinde da observação

anterior dos princípios constitucionais que regem o sistema penal e o Estado Democrático de

Direito, os quais serão mencionados na divisão correspondente.

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2 EMERGÊNCIA ILEGÍTIMA

2.1 O estado de exceção prolongada

De início, este capítulo pretende se debruçar sobre o estudo do Estado de exceção.

Cumpre analisar por qual razão é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito

brasileiro seria atualmente, um estado de exceção, podendo, também, considerar o grau de

perenidade dessa condição/característica.

A trajetória histórica do século XX permite entender por qual motivo se afirma que o

Estado Democrático de Direito está esvaziado – ou talvez nunca tenha existido em sua

plenitude. Os Estados Nacionais1 travaram inúmeras guerras, sobretudo por questões

econômicas. Como as guerras instituem um poder político excepcional e temporário, excessos

são cometidos, principalmente no que toca à flexibilização das garantias penais. Não é à toa

que durante esses períodos que ocorreram os maiores genocídios da História.

Um de seus maiores exemplos foi o nazismo alemão que dizimou milhões de indivíduos

em pouco mais de cinco anos (1939/1945) durante a Segunda Guerra Mundial. Como grande

ideológico do Terceiro Reich, destaca-se, sem dúvida, Carl Schmitt. Ele elaborou uma Teoria

do Estado enaltecendo a soberania estatal com extrema predominância, se opondo ao

liberalismo e, consequentemente, às suas liberdades individuais.

Logo, com tamanho poder, o Estado totalitário do pensamento schmittiano demonstra

quem seria o soberano justamente por sua atribuição de decidir sobre o estado de exceção,

mesmo que isso signifique um modelo para tomada de decisões em contraposição à

normatividade. Assim, Schmitt entendia que o soberano seria o detentor de todo o poder de

punir, além de ter a plena capacidade de distinguir o “bom” do “mau”, o “amigo” do “inimigo”2.

É importante repisar que o estado de exceção originado no século XX é um instituto

próprio das constituições democráticas, onde havia a previsão de suspender direitos

1 Considerou-se como Estado Nacional os Estados de Direito consolidados após a Idade Medieval, ou seja, a

partir do século XVII, inserindo-se na periodização histórica do Ocidente. 2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 159 p.

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fundamentais uma vez em situações de guerra ou estado de necessidade pública3. A proposição

de Schmitt é justamente trazer o regime jurídico da guerra para dentro do Estado, a título de

combater o inimigo do povo.

Dessa maneira, a teoria de Schmitt se tornou um paradigma ao tratar de estado de

exceção e ele foi um dos maiores legitimadores do poder de Hitler à época. Tanto é assim que

o filósofo italiano Giorgio Agamben entende que o Terceiro Reich poderia ser considerado,

juridicamente, um estado de exceção que durou doze anos.

Logo não é por acaso que o século XX seja marcado por governos ditatoriais não só na

Alemanha, como também na Itália, na Espanha e até no Brasil, com o governo de Getúlio

Vargas em 19304. Contudo, frisa-se que todos esses regimes reúnem a característica de

pretensão de provisoriedade, ou seja, haveria uma intenção de cessar a exceção depois que o

inimigo fosse derrotado (SERRANO, 2016).

Entretanto, deduz-se que, com o reestabelecimento do Estado constitucional de direito

ao fim da guerra, retorna-se à normalidade jurídica e rígida quanto à proteção de direitos

fundamentais. Contudo, os Estados vêm se manifestando de forma a prolongar o contexto da

exceção, como se ainda estivessem em guerra ou como se aquela perdesse o seu caráter de

sazonalidade.

Giorgio Agamben, em sua obra “O estado de exceção”, destaca a tendência dos Estados

no século XXI a perpetuarem a política da exceção, no sentido de torná-la um paradigma de

governo, ainda que tais países estejam fundados a partir de constituições democráticas.

Agamben estabelece que:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração,

por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a

eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias

inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao

sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de

3 A Constituição de Weimar, na Alemanha, não foi revogada quando do estabelecimento do governo hitleriano.

Houve tão somente a sua suspensão. 4 Sobre esse assunto, Zaffaroni observa que “a despeito de terem exercido um poder punitivo ilimitado,

pervertido as medidas de exceção das constituições, imposto milhares de penas sem processo e submetido civis a

tribunais e comissões militares, o caráter diferencial desses regimes foi a montagem do mencionado sistema

penal subterrâneo sem precedentes quando à crueldade, complexidade, cuja analogia com a ‘solução final’ é

inegável” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 51.).

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emergência permanente (ainda que eventualmente, ano declarado no

sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados

contemporâneos. 5 (grifou-se)

O filósofo italiano também faz referência à Carl Schmitt por este ter sido um dos

primeiros (e mais tenazes) autores a discutir a teoria do estado de exceção, sobretudo em seu

livro “A ditadura” (Die Diktatur), publicado em 1921. Agamben explica que na doutrina alemã

já haveria familiaridade com esse termo (“Ausnahmezustand”)6, mas que ficou mais aparente a

sua utilização por autores de outros países, na medida que registraram, pela primeira vez, “a

transformação dos regimes democráticos em consequência da progressiva expansão dos

poderes do executivo durante as duas grandes guerras”7.

Em vista disso, o estado de exceção recebeu como sinônimo “ditadura constitucional”8,

no sentido de ser um paradigma de governo, isto é, uma forma em que “o aspecto normativo do

direito pode ser impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao

ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de

exceção permanente pretende, no entanto, ainda aplicar o direito”9.

Tomando outro modelo de análise do estado de exceção, destaca-se Walter Benjamin,

contemporâneo de Schmitt e seu profundo crítico. Na concepção de Benjamin, materializada

na 8ª tese sobre o conceito de história10, o estado de exceção seria uma regra geral. O conceito

também aparece em seu texto “Crítica da violência: crítica do poder” (Zur Kritik der Gewalt)11

porque defende que o direito se funda mediante uma violência12 e por meio de outra violência

ele se mantém estabelecido.

5 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 14 p. Tradução de Iraci D. Poleti. 6 A Alemanha, durante o período nazista, pode ser considerada um exemplo de Estado que regulamentou o

estado de exceção de maneira formal, o que não ocorre necessariamente com todos os países que adotam o

estado de exceção. 7 AGAMBEN. Op. cit. p. 18. 8 É importante mencionar que Schmitt faz uma distinção entre ditadura soberana e ditadura comissária. A

primeira seria um estado de coisas em que seria possível impor um nova Constituição e a outra, uma ditadura em

que a Constituição possa ser suspensa quanto à aplicação e efetividade, mas permaneceria em vigor. 9 AGAMBEN. Op. cit. p. 131. 10 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política -

Ensaios sobre literatura e história da cultura: Obras Escolhidas Volume 1. 3. ed. São Paulo: Brasiliense,

1987. p. 226. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 11 Idem. Crítica da violência - Crítica do poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura - Documentos

de barbárie: Escritos Escolhidos. São Paulo: Cultrix Editora da Universidade de São Paulo, 1986. 12 Em alemão, “Gewalt” é um conceito introduzido por Benjamin e que pode significar violência ou poder.

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Entretanto, a violência que conserva o direito não deixaria de ser revolucionária

(Benjamin a chama de “divina” ou “pura”) porque se coloca externamente contra os possíveis

excessos cometidos por um soberano. Schmitt, por sua vez, procura inserir a violência dentro

do contexto jurídico.

Agamben sintetiza adequadamente o embate entre os dois teóricos alemães:

O que está em jogo no debate entre Benjamin e Schmitt sobre o estado de exceção

pode, agora, ser definido mais claramente. A discussão se dá numa mesma zona de

anomia que, de um lado, deve ser mantida a todo custo em relação com o direito e, de

outro, deve ser também implacavelmente liberada dessa relação. O que está em

questão na zona de anomia é, pois, a relação entre violência e direito - em última

análise, o estatuto da violência como código da ação humana. Ao gesto de Schmitt

que, a cada vez, tenta reinscrever a violência no contexto jurídico, Benjamin responde

procurando, a cada vez, assegurar a ela - como violência pura - uma existência fora

do direito.13

A anomia referida por Agamben traduz que, no estado de exceção, ocorre uma separação

entre lei e força de lei, no sentido de que os decretos emitidos pelo soberano, os quais não são

uma lei formalmente elaborada, possuem força idêntica a uma norma. Benjamin entende que o

estado de exceção se torna regra na medida em que o intervalo entre uma lei e a sua aplicação

é galgado numa decisão com força de lei do soberano. Nesse ponto, não é mais possível

discernir a exceção da regra.

Em relação ao Brasil, a Constituição brasileira, em seus artigos 136 e 137 14, no Título

referente à defesa do Estado e das instituições democráticas, estabelece situações emergenciais

que seriam necessárias para preservar a ordem pública e a paz social uma vez ameaçadas por

fatores internos ou externos. São casos em que a lei define que o Presidente da República pode

decretar estado de defesa ou estado de sítio.

13 AGAMBEN. Op. cit. p. 92. 14 Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional,

decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem

pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades

de grandes proporções na natureza.

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional,

solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida

tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

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Mesmo durante tal período excepcional, o texto constitucional impõe limites a serem

respeitados, como o prazo máximo de duração da medida, as garantias constitucionais que

ficarão suspensas e as medidas coercitivas que vigorarão. Logo, ainda que numa conjuntura

emergencial, o constituinte originário se preocupou em manter o seu respaldo legal e,

principalmente, a sua efemeridade.

Embora haja previsão legal, o Estado brasileiro também se encontra inserido na lógica

da excepcionalidade. Isso porque o estado de exceção que se discute não é uma possibilidade

jurídica presente no ordenamento, mas uma construção política. O ideário de proteção do

Estado perdura, mas quem dita o que deve ser combatido é o poder punitivo estatal.

O próprio Agamben, que tenta formular um conceito para “estado de exceção”, se

depara com o fato de não se tratar de um direito especial, tal qual ocorre no estado de guerra.

Seria uma forma legal daquilo que não pode ter forma legal, se apresentando mais como técnica

de governo do que como uma medida excepcional. Percebe-se que a forma de governo de

exceção como ditadura é abandonada e passam a ser adotadas medidas de exceção no interior

dos regimes democráticos. Seriam ilegalidades vestidas com uma aparente legalidade

(SERRANO, 2016) porque ao mesmo tempo que o Estado precisa manter seu autoritarismo,

necessita de uma maquiagem democrática.

Não obstante o Estado ser o detentor do poder punitivo, nota-se uma constante

necessidade de arguir medidas extraordinárias para fortalecer esse poder, sustentado sobretudo

pela doutrina penal. É inevitável admitir que a referida doutrina penal está diretamente ligada à

teoria política porque o contexto político (de guerras, controle informático, concentração de

capital, potencial tecnológico) serve de base para o estado de exceção. Até porque se não fosse

de caráter político, não haveria um arcabouço estatal e mecanismos de controle para manter

essa tese.

O referido aparato administrativo se justificaria a partir da escolha de um inimigo que

precisa ser combatido. Esse é alvo do exacerbado punitivismo estatal, que visa demonstrar a

urgência na repressão do crime e no combate e aprisionamento desse indivíduo. A eleição de

uma pessoa “estranha” à sociedade que ofereceria perigo à mesma, é objeto de um estudo do

jurista Eugenio Zaffaroni.

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Zaffaroni defende que há uma contradição permanente entre a doutrina penal que elege

um inimigo, bem como o fazia o Estado absolutista, e os princípios constitucionais do Estado

de Direito. Assim, a natureza dessa escolha é insustentável dentro do Estado constitucional de

direito, porque esta só seria admitida no estado de guerra ou estado de polícia. Segundo ele, “a

história do exercício real do poder punitivo demonstra que aqueles que exerceram o poder foram

os que sempre individualizaram o inimigo”15, então o inimigo é uma “construção

tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder punitivo16”.

Como o inimigo surge, principalmente, em situações emergenciais, nas quais é

necessário combater um aparente mal que ameaça a sociedade, são utilizadas medidas de

coerção direta nesse combate, inclusive racionalizando práticas violentas (como a tortura) para

legitimar um poder de polícia desproporcional à infração cometida. O problema que se constata

é que o penalismo frequentemente apela para tais urgências justificadoras do estado de exceção.

Essa opção, conforme Zaffaroni, são obstáculos na efetuação do Estado constitucional de direito

porque são uma brecha absolutista nutrida pelo poder punitivo.

Nesse sentido, Luigi Ferrajoli17 se manifesta em consonância:

A tese que sustentarei é a de que o princípio da razão de Estado é incompatível com a

jurisdição penal entendida no contexto do Estado moderno de direito; de tal forma,

quando ela intervém – como no direito penal de emergência – para condicionar as

formas da justiça ou, pior, para orientar um concreto processo penal, não existe mais

jurisdição, porém outra coisa: arbítrio policialesco, repressão política, regressão neo-

absolutista do Estado a formas pré-modernas.

Zaffaroni observa que “para os teóricos da exceção, sempre se invoca uma necessidade

que não conhece lei nem limites. A estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que

não tem limites, porque os limites são estabelecidos por quem exerce o poder”18.

Tanto é assim que as medidas de exceção não possuem como fonte de sua legitimação

o seu conteúdo (nascem com uma aparência de direito), mas a autoridade que as pratica. Seria

o caso, por exemplo, da persecução de lideranças políticas que podem culminar na interrupção

do ciclo democrático com o impedimento do mandato de governantes democraticamente

15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 82. 16 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 83. 17 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002. 653 p. 18 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 25.

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eleitos. Essas providências costumam ter mais um perfil de ação política do que propriamente

uma ação jurídica, já que visa perseguir um inimigo, suspender seus direitos e promover o que

seria a sua morte simbólica (SERRANO, 2016).

Ferrajoli estabelece a noção de “poder desconstituinte”, que poderia ser aplicada para o

contexto brasileiro. A Constituição de 1988 possui um caráter rígido, que consiste na redação

de normas metalegais como fundamento de validade e na prevalência de direitos fundamentais

como dimensão substancial19. Essas garantias constitucionais são, da mesma forma, garantias

da democracia. O processo de desconstituição implica em tornar os princípios constitucionais

ineficazes num grau que equivaleria a sua revogação.

Como se sabe, poder constituinte é aquele que cria uma nova normalidade, outra

constituição. Por outro lado, o poder desconstituinte seria aquele que esvazia de sentido uma

constituição posta, mas mantendo a sua vigência. Por isso, “uma democracia pode ser derrubada

sem golpes de Estado formais se os princípios dela forem de fato violados ou contestados, sem

que suas violações suscitem rebeliões ou ao menos dissenso”20.

Esse conceito proposto por Ferrajoli representa as técnicas do estado de exceção, porque

resulta num poder absoluto de quem aplica a Constituição. Uma prática da exceção que merece

ser destacada é a ideia de chefe popular como “voz e expressão orgânica da vontade popular21”.

A personificação de um guia político é essencialmente antidemocrática.

No Brasil, diferentemente de outros países, essa representação foi assumida por

membros do Poder Judiciário. Muitos são tidos como combatentes do crime e dotados de um

senso de justiça superior. Essa exacerbação do guia moralmente elevado acarreta na adoção de

um papel autoritário, porque é delegado a ele um imenso poder de seleção ao interpretar a

norma. Mais uma vez, a legitimação do direito fica a cargo de uma pessoa, não do próprio

ordenamento. Em suma, o juiz passa a ser agente da exceção e não fonte do direito.

19 “A rigidez consiste na colocação da Constituição no vértice da hierarquia das fontes, e, portanto, no grau

superior de suas normas com relação a todas as outras normas do ordenamento” (FERRAJOLI, Luigi. Poderes

Selvagens: A crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014. 25 p. (Coleção Saberes críticos). Tradução

de Alexander Araujo de Souza.). 20 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 14. 21 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 29.

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As garantias, por sua vez, passam a ser vistas como obstáculos no controle do crime. O

que precisa ser evidenciado é que não se entende é que são esses preceitos fundamentais que

oferecem limites impostos. Segundo Ferrajoli22:

O inteiro edifício da democracia constitucional fica em razão disso minado à sua raiz:

pela intolerância em relação ao pluralismo político e institucional; pela desvalorização

das regras; pelos ataques à separação de poderes, às instituições de garantia, à

oposição parlamentar, aos sindicatos e à liberdade de imprensa; pela rejeição, em

síntese, do paradigma do Estado constitucional de direito como sistema de vínculos

legais impostos a qualquer poder.

O poder desconstituinte, por outro lado, se desenvolveu também em nível social e

cultural, com o desparecimento dos valores constitucionais da consciência de uma

grande parte do eleitorado: por indiferença, por falta de sentimento cívico ou pela

transformação no imaginário coletivo da própria concepção de democracia.

Testemunha-se, na verdade, a naturalização da exceção, a qual se externaliza de maneira

tão repressiva que atinge o ordenamento jurídico crucialmente, de modo que o discurso

humanista constitucional camufla a atitude autoritária estatal. Nota-se o esvaziamento dos

direitos sociais primeiramente, que termina por atingir o direito de liberdade, na contramão do

que seria o mais apropriado, isto é, a universalização cada vez maior de direitos fundamentais

para alcançar seguimentos excluídos historicamente.

Esses setores sempre conheceram a exceção. No Brasil, os pobres recebem um

tratamento diferenciado em relação ao resto da sociedade. Com a justificativa de combater o

inimigo traficante de drogas, forças militares ocupam os territórios eminentemente pobres e

instalam, chancelados pelo Judiciário e pela população, uma ordem excepcional permanente.

Esse inimigo tem, portanto, sexo, cor, idade e local definidos. Entretanto, tanto essa emergência

prolongada quanto o impedimento de presidentes democraticamente eleitos têm uma origem

incomum: condenar antes de julgar, através de processos de exceção com a aparência de

constitucionais, determinada parcela social.

Prova disso é a tese que vem ganhando mais aceitação de que alguns indivíduos

merecem tratamento diferenciado por oferecem maior perigo à sociedade. A diferenciação

aparece justamente na ruptura com a legislação ordinária e aplicável a todos os cidadãos. O

inimigo não teria “direito” a ter direitos, então possuiria um sistema penal específico (sem

garantias).

22 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 6.

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Esse inimigo é justamente aquele “estranho” que incomoda o poder e por isso se torna

suspeito e potencialmente perigoso. Logo, não decorre de uma ação cometida por ele, mas por

sua condição subjetiva de ser algo que não inspira confiança. Em contrapartida, o Estado

consegue se beneficiar dessa situação antagônica, uma vez que o combate ao “crime

organizado”, ao “terrorismo” e outros pseudoconceitos (ZAFFARONI, 2011) criados para

alimentar esse cenário habilita o poder punitivo e a sua intromissão.

2.2 A teoria do inimigo

Diante desse cenário, Günther Jakobs sintetizou esse entendimento ao elaborar uma

teoria que garantiria a atuação estatal em um modelo que apregoa ser o ideal para combater o

agente transgressor que insiste em manter-se longe das normas estatais. A referida tese,

nomeada de “Direito Penal do Inimigo”, pugna pela aplicação de normas mais severas e

desproporcionais, com a consequente eliminação dos direitos e garantias fundamentais do

indivíduo, incluindo-se as garantias processuais.

Faz-se oportuno estabelecer de pronto que Jakobs desenvolve o Direito Penal do inimigo

a partir de uma realidade punitiva que já existe, ou seja, ainda que merecedora de diversas

críticas, a sua teoria pode ser considerada importante na medida em que propõe uma formulação

acadêmica de uma política criminal escolhida por muitos países, inclusive o Brasil. Ele mesmo

afirma que “um Direito penal do inimigo implica, pelo menos, um comportamento

desenvolvido com base em regras, ao invés de uma conduta espontânea e impulsiva”23.

Jakobs inicia seu estudo definindo que seria ilusório achar que existe um direito que se

aplicaria a todas as pessoas porque considera que esse entendimento careceria de uma

autenticidade fática na sociedade. Isto posto, o Direito Penal do inimigo consiste na distinção

jurídico-penal de inimigo e cidadão.

O primeiro seria uma “não-pessoa”, condenado criminal e socialmente por sua

periculosidade e por sua condição de autor. O inimigo é aquele que oferece tamanho perigo à

segurança dos cidadãos que precisa ser tratado de forma diferente, não estando sob a proteção

23 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e críticas. 6. ed. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 22 p. Organização e Tradução: André Luís Callegari e Nereu José

Giacomolli.

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jurídica do Estado. Como bem destaca Cancio Meliá, coautor do livro “Direito Penal do

Inimigo”, o conceito de inimigo é tratado “no sentido pseudo-religioso do termo”, uma vez que

o Estado se coloca numa “cruzada contra malfeitores cruéis”24.

O combate ao inimigo aparece sobretudo na doutrina penal, já que as violações de

direitos individuais daquele que perde o seu status ocorreriam no processo penal, desde a fase

procedimental até o fim da execução da pena. Em relação a outros direitos civis como contrair

casamento, deixar testamento, entre outros, não se verifica uma preocupação em reprimir.

Ao recorrer a contratualistas como Rousseau25, Hobbes e Kant como precedentes

jusfilosóficos, Jakobs determina que o cidadão, por sua vez, seria aquele que está de acordo

com o contrato social, aquele que delegou sua liberdade a um soberano. Ele assevera que “só é

pessoa [ou cidadão] quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento

pessoal, e isso como consequência da ideia de que toda normatividade necessita de cimentação

cognitiva para poder ser real26”. Portanto, Jakobs entende que quem vai de encontro ao contrato

social, isto é, quem não apresenta comportamento garantidor o suficiente para seguir as leis,

está contra o Estado e é inimigo do mesmo. Por conseguinte, não lhe é reservada a condição de

cidadão27.

Sob esse enfoque, Hobbes introduz a hipótese de que os homens, antes de se associarem

por um pacto social, estariam em conflito permanente no estado de natureza. Pôr fim à guerra

de todos contra todos que ocorre nesse estado pré-constitucional resultaria na transferência de

independência de todos os homens a um soberano detentor pleno do poder para buscar a paz e

a segurança.

Hobbes entende que o cidadão dentro desse contexto de Estado absolutista pode vir a

delinquir sem perder esse status. Entretanto, o cidadão cometer um crime contra o próprio

24 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit. p. 71. 25 Jakobs considera o pensamento rousseauniano, mas opta por não segui-lo: “Não quero seguir a concepção de

Rousseau e de Fichte, pois na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do

inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata” (JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit. p. 26). 26 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit. p. 45. 27 “Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por

isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Essa guerra tem lugar com um

legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a

respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído” (JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel

Cancio. Op. cit. p. 49).

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Estado significaria uma rescisão do contrato, ou seja, aquele retornaria ao estado de natureza

ou guerra deixando de ser um súdito e passando a ser um inimigo. A ideia de inimigo seria

oriunda da negação radical do direito de resistência à opressão do Estado, ao qual se deve

sempre manter obediência.

Da mesma maneira, Jakobs retoma o pensamento de Kant que também elabora uma

teoria do contrato social, assim como Hobbes. Para Kant, o Estado de Direito

constitucionalmente falando teria como função primordial assegurar a justiça. Contudo, o

filósofo alemão revela seu conservadorismo jurídico, dado que não admite o direito de

resistência do povo28:

Portanto, um povo não pode oferecer qualquer resistência ao poder legislativo

soberano do Estado que fosse compatível com o direito, uma vez que uma condição

jurídica somente é possível pela submissão à sua vontade legislativa geral. Inexiste,

por conseguinte, direito de sedição (seditio), e menos ainda de rebelião (rebellio), e

menos que tudo o mais existe um direito contra o chefe do Estado como pessoa

individual (o monarca), de atacar sua pessoa ou mesmo sua vida

(monarchomachismus sub specie tyrannicidii), sob pretexto de que abusou de sua

autoridade (tyrannis). Qualquer tentativa neste sentido é alta traição (proditio

eminens) e quem quer que cometa tal traição tem que ser punido com nada mais do

que a morte, por haver tentado destruir sua pátria (parricida).29 (grifou-se)

Assim, pelo pensamento kantiano é possível inferir que, quando não se reconhece o

Estado ou a sua constituição, há uma traição e a pessoa que o faz se torna estrangeira, estranha,

inimiga.

Nessa perspectiva, Zaffaroni 30 relaciona os pensamentos de Hobbes e Kant:

(...) Neste aspecto, Kant coincide com Hobbes, negando de maneira igualmente

decidida o direito de resistência à opressão, pois a resistência ao soberano implicava

a destruição de sua autoridade e a violação do contrato, o que acarretava a perda da

garantia externa do imperativo categórico e, por conseguinte, a volta ao estado de

natureza e à guerra de todos contra todos.

Sendo assim, Jakobs se utiliza do pensamento contratualista para estabelecer que há

realmente um contrato social que faz esse vínculo entre pessoas titulares de direitos e

obrigações, mas que em relação ao inimigo não há o mesmo pacto social. É, na verdade, objeto

de coação jurídica, sobretudo a penal. Nesse sentido, ele diferencia o que seria um delinquente

de um inimigo. O delinquente mantém sua condição de pessoa e, portanto, o ordenamento

28 A liberdade, para Kant, é aquela garantida pela legalidade, ou seja, de agir de acordo com as leis. 29 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 232 p. 30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 128.

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jurídico deve ainda considerar esse criminoso, entendendo que ele pode vir a se reajustar

socialmente ou reparar o crime cometido. Destarte, a punição ocorre na medida de sua

culpabilidade pelo ato que cometeu.

Vale o registro de que o texto de Jakobs não alude que ao inimigo estaria reservada a

mesma solução do delinquente, mas que poderia haver um acordo de paz com aquele.

Depreende-se, portanto, que havendo um inimigo, há uma guerra, logo, para este, não se aplica

um Direito Penal no sentido genérico, mas um Direito Penal específico de medidas de segurança

para combater o perigo oferecido pelo inimigo. O inimigo se enquadraria dentro da lógica da

“desigualdade legal” jakobsiana, não sendo amparado por princípios como o da dignidade

humana, igualdade e liberdade.

Tal afirmativa fica evidente quando Jakobs defende que nenhum Estado se extingue

quando uma pessoa mata a outra visando interesse pecuniário. O autor do “Direito penal do

inimigo” mostra que o inimigo ameaça o Estado e é nesse sentido que o Estado de exceção se

relaciona com o direito penal do inimigo.

Jakobs repisa constantemente no termo “terroristas” aduzindo que contra eles há uma

guerra. A questão que se coloca é que como podem coexistir um Estado de Direito e um Estado

de guerra? Qual seria a definição de terrorista? Se o terrorista é tão somente aquele que ameaça

o Estado e seu grau de periculosidade é analisado a partir do juízo de quem detém o poder, logo

o terrorista é quem o Estado bem entender como tal, não há uma definição, até porque tende a

variar em cada país. Há outros termos para designar os inimigos frequentemente utilizados:

“crime organizado”, “máfia”, “facção criminosa” etc.

Na verdade, as proposições do doutrinador alemão revelam o apadrinhamento do direito

penal de autor31. Em tese, o direito penal, de acordo com os princípios que lhe concedem base

axiológica, deve regular as condutas humanas enquanto fato passível ou não de sanção penal,

ou seja, condena-se uma ação. O problema do Direito penal de autor é a tentativa de penalizar

uma pessoa não por esta ter feito algo, mas por ser algo indesejável, ou talvez por sua condição

de ser representar um delito.

31 Defende-se, no presente trabalho monográfico, o direito penal do fato.

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O doutrinador argentino Eugenio Zaffaroni foi um dos maiores contestadores da teoria

jakobsiana. Sua reação no livro “O inimigo no Direito Penal” concede um viés mais realista ao

tema. Zaffaroni entende que o Estado promove seu sistema penal procurando um inimigo para

combater. Assim, ele reitera a discussão do Estado de Direito, reafirmando seu status de Estado

policial indiscriminado (o Estado Democrático seria apenas uma formalidade)32:

Isso é o que quase todo o penalismo e boa parte da teoria política fizeram desde que a

modernidade considerou – e continua considerando – compatível um incompreensível

conceito não bélico de inimigo com o Estado constitucional de direito, sem se dar

conta que esse pretenso conceito, fora de uma hipótese de guerra real, corresponde ao

Estado absoluto, que, por sua essência, não tolera limite nem parcialização de espécie

alguma, ou seja, que inevitavelmente importa o abandono do princípio do Estado de

direito.

Como não poderia deixar de ser, Zaffaroni retoma o pensamento de Schmitt sobre o

Estado de exceção, tendo em vista que a escolha de um inimigo pressupõe um confronto

preconizado pelo Estado. Contudo, corroborando com essa reflexão, questiona-se a intensidade

dessa exceção, pois uma “guerra” que se apoia numa vontade política tende a arbitrariedades,

sobretudo quando o combate e todas as medidas emergenciais dele oriundas se prolongam por

tempo suficiente para não mais ensejar uma excepcionalidade, mas uma situação permanente33:

(...) Está-se introduzindo com isso [o inimigo introduzido no direito penal, fora do

contexto bélico] um conceito espúrio ou particular de guerra permanente e irregular,

porque se trata de um inimigo que, por atuar fora das normas que devem ser cumpridas

na guerra propriamente dita, ingressa no direito ordinário de um Estado que não está

estritamente em guerra – um detalhe que Schmitt em momento algum considerou.

Com essa ideia dos hostis como inimigo em uma guerra que, para alguns, não é guerra,

que consiste em medidas de exceção e de emergência, em uma exceção abarcada pelo

direito ordinário, em uma exceção que não é exceção, em uma ordinarização do

excepcional, (...) oculta-se sempre a admissão de uma guerra irregular e permanente,

porque é uma contradição em termos falar de inimigo sem guerra, real ou pelo menos

iminente.

Dentro dessa perspectiva, constata-se que o inimigo não diz respeito apenas ao contexto

jurídico subjetivo, mas também se reflete em todo o ordenamento, inclusive no direito

processual penal. Sobretudo no que tange à mitigação de garantias constitucionais, à adoção de

uma política criminal punitivista e à preferência ao discurso penal preventivo e cautelar, o

Estado brasileiro tem se manifestado no sentido de abarcar a teoria de Jakobs. Tal tese será

verificada em seus pormenores nos capítulos que se seguem.

32 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 159. 33 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 145.

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Entretanto, pretende-se defender que, independentemente do crime cometido e da sua

gravidade, o agente deve ser processado, condenado e punido como cidadão que violou a lei

penal. O infrator não deve ser tachado de inimigo, por mais atroz que tenha sido a sua conduta,

não deve haver esse tipo de diferenciação qualitativa de sujeitos no Estado de Direito.

Na mesma linha, Manuel Cancio Meliá, coautor do livro “Direito penal do inimigo”,

sustenta que “como Direito positivo, o Direito penal do inimigo só integra nominalmente o

sistema jurídico-penal real: ‘Direito penal do cidadão’ é um pleonasmo; ’Direito penal do

inimigo’, uma contradição em seus termos34”.

Por fim, faz-se primordial enfatizar novamente a interpretação de Zaffaroni35:

“A introdução do inimigo no direito ordinário de um Estado de Direito o destrói,

porque obscurece os limites do direito penal invocando a guerra, e os do direito

humanitário invocando a criminalidade (...) A função do direito penal de todo Estado

de direito (da doutrina penal programadora de um exercício racional do poder jurídico)

deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos

irracionais possíveis. Se o direito penal não consegue que o poder jurídico assuma

essa função, lamentavelmente terá fracassado e com ele o Estado de direito perecerá.

Nesse sentido, o direito penal é um apêndice indispensável do direito

constitucional do Estado de direito, o qual se encontra sempre em tensão dialética

com o Estado de polícia”. (grifo meu)

Em suma, convém dizer que a adoção do inimigo público não deve prosperar para que

se garanta a manutenção do Estado constitucional enquanto promotor de direitos. O mesmo tem

se colocado, contraditoriamente, na posição de vítima do delito quando escolhe manter e

exacerbar o seu poder punitivo. É preciso reiterar que a questão do inimigo é sobretudo

quantitativa, pois quanto mais poder o soberano possui, mais ele pode incentivar a existência

desse inimigo.

34 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit. p. 54. 35 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 172.

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30

3 O PODER DE PUNIR E A PENA

3.1 A sociedade punitiva de Michel Foucault

Foucault investiga as maneiras de classificar uma sociedade de acordo com o modo de

lidar com as pessoas que esta pretende descartar por não terem-na permitido exercer o seu

controle ou que, a meu ver, não se encaixaram nos moldes de poder impostos e, por conseguinte,

infringiram suas leis. Uma técnica social muito utilizada para conter esse indivíduo desviante

seria através da exclusão, a qual o filósofo francês alerta ser “o efeito representativo geral de

várias estratégias e táticas de poder, que a própria noção de exclusão não pode atingir por si

só36”. Foucault tenta ir além, porque entende o excluir mais profundo e enraizado do que se

imagina, como se fosse uma característica inerente do poder (primeiro os desviantes são

rejeitados para depois nomeá-los dessa forma).

Além disso, se utilizando do exemplo de um hospital psiquiátrico (instituição que se

ocupa da expulsão do louco), Foucault observa que a relação de poder existente no interior

desse hospital reverbera para o exterior na condição de discurso científico construindo uma

racionalidade aceita pela sociedade, que toma a loucura como seu objeto. Esse saber leva a crer,

para os “não loucos”, que uma clínica psiquiátrica é a instituição mais indicada para cuidar do

louco. O que talvez não se perceba é que esse conhecimento é um poder político que depende

da existência do hospital para se manter e que a relação de autoridade construída pode ser

encaixada perfeitamente em outros mecanismos sociais.

Um deles, incontestavelmente, seria a prisão. Ela é o ambiente institucional por meio do

qual se dá a expulsão do “inimigo criminoso”. A relação objeto do crime se materializa no

processo criminal, sendo o juiz o detentor do saber-poder na geração do discurso científico (e

jurídico). A sentença condenatória teria, portanto, o condão de sustentar a prisão. A manutenção

da mesma passa a ser mantida pelo discurso produzido pelo diretor e funcionários do presídio

que atestam o comportamento dos internos.

Na mesma linha de Rusche e Kirchheimer37, Foucault destaca haver quatro táticas

punitivas, dentre elas: o exílio (proibir a presença de um indivíduo), o ressarcimento

36 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2015. 5 p. 37 Autores cujo estudo será analisado em seguida.

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(indenização), a marcação (física, corporal) e o encarceramento. Entretanto, Foucault se

distancia daqueles autores porque o objeto de seu estudo não é relacionar as punições a modelos

políticos, econômicos e filosóficos que justifiquem seu uso pelo Estado, mas entender o sistema

penal como o reflexo das relações de poder ativas. Seria compreender a natureza das lutas

travadas contra formas de poder.

Foucault admite a ideia de que haveria uma guerra civil, não no sentido que se conhece,

mas como uma delinquência política. Retoma-se o pensamento contratualista de Rousseau e

Hobbes para explicar que uma guerra de todos contra todos numa realidade de pacto social não

seria uma guerra civil, isto é, uma retomada do “monstro” externo ao Estado. De certo, a noção

de guerra de todos contra todos se presta, na teoria hobbesiana, a alavancar os fundamentos do

poder do soberano. Foucault, contudo, considera que:

A guerra civil é o estado permanente a partir do qual é possível e é preciso

compreender diversas dessas táticas de luta, entre as quais os sistemas penais são

precisamente um exemplo privilegiado. A guerra civil é a matriz de todas as lutas pelo

poder, de todas as estratégias do poder e, por conseguinte, também a matriz de todas

as lutas a propósito do poder e contra ele.

Assim, a guerra civil abordada por Foucault é aquela que, dentro de um contexto de

poder já constituído, se insurge contra ele numa relação de antítese38. Não seria, pois, um

retorno ao estado de natureza. Essa guerra ataca o poder vigente ao mesmo tempo que

estabelece outro se apropriando de suas formas. Na visão foucaultiana, haveria uma inversão

nas relações de poder, porque aquele que antes estava destinado a escapar de um julgamento é

submetido ao tribunal.

Outrossim, os teóricos contratualistas, a partir da concepção de pacto social, propõem

que o criminoso seria um inimigo social, justamente por resgatar, ainda que de forma breve, a

guerra de todos contra todos. Ao cometer um crime, o delinquente romperia com o contrato

social, então a sua infração não teria sido um ato contra um sujeito passivo individual, mas uma

atitude que poria em xeque toda a sociedade39. Foucault questiona, porém, que essa conjectura

esbarra na ilogicidade de haver uma sociedade com níveis de criminalidade tão altos a ponto de

ter um número vultuoso de inimigos.

38 “A guerra civil não é nem anterior nem exterior ao poder” (FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 30.). 39 Essa percepção será retomada por Günther Jakobs nos anos de 1980 para formular a teoria do Direito Penal do

Inimigo.

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Isto posto, Foucault se propõe a examinar a natureza do surgimento do inimigo público,

começando pelo estudo da delinquência feita em meados do século XVIII pelos fisiocratas. A

análise relata uma crítica econômica à vagabundagem e mendicância da época, devido à

condição improdutiva que cumpriam. A desocupação do ponto de vista da produção era

reputada como causa primária do crime. “Os criminosos aparecem como inimigos sociais em

virtude do poder violento que exercem sobre a população e de sua posição no processo de

produção como recusa ao trabalho40”. A solução proposta pelos fisiocratas era a escravização

do vagabundo, ou seja, a retirada de sua liberdade para combater a ociosidade.

Em suma, o primeiro critério de definição de inimigo público foi a produção. Por

conseguinte, qualquer pessoa que se colocasse contrariamente a essa lógica seria hostil à

sociedade. Esse parâmetro, conforme verifica Foucault, pode ser aplicado também a outros

grupos que anos mais tarde serão questionados pela burguesia na Revolução Francesa por sua

recusa em trabalhar: membros do clero e da nobreza41.

Na continuação do estudo, Foucault se dedica a analisar a relação entre a prática penal

que define um inimigo social e as táticas punitivas que se encarregavam da exclusão. Nesse

ponto, é possível perceber que há uma diferença entre o punir e a punição, entre o penal e o

penitenciário. A punição seria um mecanismo de defesa da sociedade, não tendo um caráter

reparatório. Por isso, cada sociedade deveria estabelecer o gradiente de suas penas, entendendo-

as como medida de proteção, além de impedir o aparecimento de novos inimigos.

Da mesma forma, observa-se que a prisão não era ainda utilizada como pena, era apenas

um mecanismo de controle sobre o acusado. Posteriormente, a sua adoção como forma principal

de punição parece ser justificada pela introdução da noção temporal no capitalismo e, por

consequência, no sistema penal42. A propósito, o desenvolvimento do capitalismo redesenhou

a realidade, uma vez que as classes sociais (atreladas a classes profissionais) se consolidaram

em unidades organizadas, ao passo que não mais se combatiam desocupados ou marginais, mas

o proletariado.

40 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 46. 41 “O que é essa regra de autodefesa campesina, senão uma espécie de convocação à insurreição? ”

(FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 48). 42 “(...) já não se pune por meio do corpo, dos bens, mas pelo tempo por viver. O tempo que resta para viver é

aquilo de que a sociedade vai apropriar-se para punir o indivíduo” (FOUCAULT, Michel. Op. cit. p.66).

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Diante da necessidade de controle das classes populares, o aparato repressivo do Estado,

que se resumia às forças armadas e justiça, também teve que ser reformulado. Foram criadas

agências paraestatais para gerenciar a atividade policial e “manter a ordem”. Era uma delegação

administrativa que desempenhava o papel coercitivo e influenciava o sistema penal, o qual se

tornou um sistema eminentemente penitenciário. Eis o que Foucault denomina de sociedade

punitiva43.

Dentro dessa sociedade, a burguesia se valeria ora de ilegalismo44 de privilégios, ora de

ilegalismo popular, isto é, de estratégias políticas, para criar um modelo de delinquência

vantajoso na manutenção das relações de produção. O ilegalismo popular passa a ser intolerável

para a classe burguesa, isso porque ele representaria uma ameaça à autoridade política. A

burguesia, então, se apropria desse instituto para exercer sua vigilância, por meio do discurso

do inimigo público e da prisão45. Aqui se encontra a origem da instauração do sistema

penitenciário.

Da mesma maneira, é inegável a relevância da moralidade constante no discurso

burguês. Eleger um indivíduo que, por determinadas características, representa um perigo para

a sociedade nada mais é do que elaborar uma criminologia baseada numa transcrição

“psicossociológica” do delinquente dentro do sistema penal. Uma questão ainda a ser

considerada é que a burguesia não apenas cria um discurso direcionado à promoção negativa

do inimigo, destinando-o a perder tempo de sua vida na prisão, como usa a mesma relação

temporal para controlar o tempo dos trabalhadores. A sociedade industrial detém não só os

meios de produção, mas o tempo dos indivíduos que emprega (paga-se um salário em troca do

tempo de trabalho). Dado que é a classe dominante que estabelece a rotina dos operários e sua

carga de trabalho, ela passa a dispor do corpo e da vida dos proletários, o que Foucault chamou

de “forma-salário”. Similar a essa, o sistema de punições também teria a sua “forma”

correspondente, a forma-prisão”.

43 “Em suma, estamos diante de algo que chamo de sociedade punitiva, ou seja, uma sociedade na qual o aparato

estatal judiciário desempenha, ademais, funções corretivas e penitenciárias” (FOUCAULT, Michel. Op. cit.

p.129). 44 Neologismo criado por Michel Foucault para designar uma prática contrária a uma lei formal, mas sem perder

o sentido de norma, não sendo, portanto, sinônimo de ilegalidade. O exemplo dado por Foucault são os acordos

privados entre artesãos e comerciantes (cada grupo possuiria o seu ilegalismo) para melhor gerir o negócio, ou

seja, relações de mercado que escapam à ordem estabelecida. A acepção de regra se mantem, mas como um

modelo de gestão de irregularidades. 45 “O par vigiar-punir instaura-se como relação de poder indispensável à fixação dos indivíduos no aparato de

produção, à constituição das forças produtivas (...)” (FOUCAULT, Michel. Op. cit. p.180).

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É nesse quadro da economia política do século XIX que Foucault, enfim, particulariza

a “forma jurídico-social prisão” para entender o sistema de poder em que esta funciona e como

esta se generalizou. O poder não é algo que se possui como se fosse um bem. Sua noção é

pouco tangível, posto que ele não é estático, é exercido (ou não) e passa. Está em constante

ação, tanto que uma relação de poder nunca é cogente e perpétua. No tocante ao poder punitivo,

aquele presente na sociedade e que se manifesta reiteradamente por intermédio dos mecanismos

estatais, é, segundo Foucault, um sistema mais complexo do que se imagina. “Por causa disso,

na prática, nem o controle nem a destruição do aparato estatal podem bastar para causar a

transformação ou o desaparecimento de certo tipo de poder, aquele dentro do qual ele

funcionou46”. Tal afirmação se deve ao fato de, muito mais do que um método punitivo e

institucional, a prisão é um poder de construção de uma verdade. É uma estrutura estatal que

retransmite um saber, de maneira semelhante ao hospital psiquiátrico.

3.2 O histórico da pena de prisão

Antes de prosseguir o estudo e buscar entender qual a relação entre exclusão social e

prisão, se faz necessário traçar a origem histórica das prisões enquanto pena atribuída aos

condenados, inclusive para pormenorizar o tema já abordado por Foucault. Para tanto,

compartilha-se do pensamento de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, cuja análise se pauta pela

criminologia crítica.

A história da prisão como modelo de sanção penal tem início no século XVI, tendo em

vista que as penas concedidas na Idade Média se restringiam a castigos corporais (mutilações,

pena de morte) e fianças, aplicadas de acordo com a classe social do condenado. Na prática, a

fiança, a qual funcionava como uma compensação pecuniária (seria uma espécie de

indenização) era reservada aos ricos, enquanto os castigos físicos, aos pobres.

Na Baixa Idade Média, com o crescimento de criminosos oriundos de classes menos

favorecidas, a pena de morte se tornou uma maneira de eliminar os indivíduos considerados

perigosos. Se a pena atribuída fosse a mutilação, o sentenciado ficava marcado para sempre

pelo crime cometido, tanto fisicamente quanto socialmente (outras pessoas sabiam que houve

uma condenação).

46 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 209.

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A partir da expansão do mercantilismo, juntamente com a corrida colonial em busca de

metais preciosos, os métodos de punição se modificaram no sentido de priorizarem a exploração

do trabalho dos prisioneiros, mormente a necessidade de mão-de-obra. A demanda por mais

trabalhadores também corroborou para o quadro, bem como as iniciativas de empregar os ditos

“vagabundos” em alguma obra pública. Ainda, leis que visavam eliminar a mendicância foram

criadas nesse período, considerando, principalmente, a crescente escassez de mão-de obra.

Percebe-se não só uma mudança de postura em relação aos mendigos, mas uma mudança

na maneira de tratar os mais pobres no final do século XVI. Foi nessa época a criação de casas

de correção, instituições voltadas ao recolhimento de moradores de rua, desempregados e

ladrões. Era uma maneira de “limpar” as cidades e dar uma destinação útil a esses indivíduos.

Como asseveram Rusche e Kirchheimer47, “a essência da casa de correção era uma combinação

de princípios das casas de assistência aos pobres, oficinas de trabalho e instituições penais”. E

ainda: “seu objetivo principal era transformar a força de trabalho dos indesejáveis, tornando-a

socialmente útil”.

Por outro lado, outro método de punição utilizado no referido período eram as galés.

Elas seriam uma maneira eficaz de obter trabalhadores com custos módicos, o que era muito

significativo num tempo de escassez de mão-de-obra e de expansão marítima. Ser condenação

às galés consistia em perder a liberdade por anos para realizar trabalhos forçados neste ínterim.

Em resumo, era mais como uma punição física perpétua.48

É importante que se destaque que, concomitantemente aos meios de punição apontados,

também existiam as prisões. Até o século XVIII, estas eram destinadas a pessoas antes do

julgamento e durante o seu curso. Na verdade, a real origem da prisão da maneira como se

concebe na modernidade foram as casas de correção. Logo, entende-se que o encarceramento

nas instituições correcionais, nesse momento, não estava atrelado a uma ideia de ressocialização

do recluso, mas à necessidade de exploração da sua força de trabalho dentro da lógica de

desenvolver o capitalismo. De acordo com Rusche e Kirchheimer49, “de todas as motivações

da nova ênfase no encarceramento como método de punição, a mais importante era o lucro,

47 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. 69

p. 48 Outra forma de punir os condenados, também explorando sua força de trabalho era a deportação dos mesmos

às colônias, para que povoassem condenação 49 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit. p. 103.

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tanto no sentido restrito de fazer produtiva a própria instituição quanto no sentido amplo de

tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do Estado”.

O aperfeiçoamento do capitalismo levou a burguesia, detentora de poder econômico,

mas não do político, a tentar limitar o poder dos soberanos através das leis, idealizadas,

sobretudo, pelos pensadores liberais da época, o que também se refletiu no âmbito penal. A

necessidade de criar parâmetros legais para as penas, relacionando-as aos crimes cometidos

surge, principalmente, com o iluminista italiano Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas). Ele

inaugura a noção de proporcionalidade da punição atribuída com a gravidade do delito.

Beccaria defendia, principalmente, que os crimes de ordem patrimonial fossem punidos.

Caso o autor do crime de furto, por exemplo, não tivesse como pagar fiança para reparar o dano

cometido, a violação deveria ser paga com sua liberdade (o que ocorria geralmente com pessoas

de classes menos favorecidas). Em suma, a ofensa à propriedade era grave de tal forma que o

encarceramento do infrator seria a maneira mais eficaz de proteger o bem jurídico, ou seja, a

liberdade e a propriedade teriam valores equivalentes.

Parece correto concluir, portanto, que o Iluminismo penal como alicerce filosófico das

leis do século XVIII leva a inferir que o próprio capitalismo ditaria o modo de agir perante os

criminosos, independentemente da época. Na medida em que as normas eram (e sempre foram)

editadas pela classe dominante econômica, a maneira de exercer o poder de punir e tratar da

destinação dos pobres e da mendicância tende a variar de acordo com a atividade mais lucrativa.

Um exemplo seria a decadência das casas de correção. Uma vez que as referidas instituições

não mais apresentaram uma boa fonte de lucro, as mesmas caíram em decadência.

“O cárcere tornou-se a principal forma de punição no mundo ocidental no exato

momento em que o fundamento econômico da casa de correção foi destruído pelas mudanças

industriais”, segundo Rusche e Kirchheimer50. Aliado a esse fato, o excedente de mão-de-obra

tão visado outrora resultou no aumento da pobreza, o que colaborou para índices de

criminalidade crescentes no fim do século XVIII e no início do seguinte. Em decorrência do

acréscimo no número de condenados, as prisões, antes reservadas a acusados no curso de seus

50 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit. p. 146.

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processos, ficaram superlotadas porque seu uso se designou para a execução penal sem,

contudo, passar por uma reforma na política criminal para adaptar à nova realidade.

Outra questão a ser considerada é que, depois que as penitenciárias foram eleitas para

abrigar os encarcerados, percebem-se oscilações da opinião pública no que tange à

determinação da finalidade da prisão. Em certos momentos, o trabalho no cárcere serviu como

forma de punição e até tortura, já que o pensamento dominante entendia que “apenas” a perda

da liberdade não seria suficiente. Essa visão se modificou ao final do século XIX e foi

introduzida a concepção de reabilitação do condenado51, além de haver uma preocupação na

proporção entre o crime e a pena, para, inclusive, evitar prisões com duração ínfima.

Tal mudança também pode ser atribuída ao equilíbrio econômico dos países europeus,

cenário que se manteve até 1914 e contribuiu para o decréscimo da criminalidade. Durante as

grandes guerras, o paradigma sofre outra alternância, os casos prescreviam e os já condenados

eram recrutados para o exército. Entretanto, o fascismo resgata a noção repressiva no combate

ao crime e na supressão de garantias fundamentais, principalmente porque as prisões voltaram

a ter superpopulação com a crise econômica no entre guerras. Observa-se um retorno de penas

cruéis e do tratamento hostil ao criminoso52. Conforme lecionam Rusche e Kirchheimer53:

Contra o pano de fundo de uma versão caricaturada dos métodos humanitários de

Weimar, o nacional-socialismo projetou um novo sistema, no qual os elementos de

uma doutrina racista, biologista determinista, foram associados aos princípios

retaliatórios da teoria penal alemã clássica. As garantias da lei substantiva e

processual, em nome das quais os teóricos lutaram contra os reformadores, tinham

sido completamente destruídas.

Sendo assim, diante do exposto, o sistema penal se revela inserido inevitavelmente na

realidade social (econômica e política). Por isso que mister se fez essa breve análise histórica

das prisões, para entender que as taxas de criminalidade crescentes não são produto de métodos

de punição brandos ou de um poder de punir pouco eficiente. A prática de crimes encontra-se

ligada às condições de vida oferecidas pelo Estado à população, restando claro que “na medida

51 A doutrina clássica da Criminologia foi deixada de lado para dar lugar às teses modernas do direito penal,

sobretudo na sua abordagem sociológica, a qual rechaçou o caráter meramente retributivo da pena. 52 Foucault, em referência aos autores, defende que é preciso “abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a

penalidade é antes de tudo (e não exclusivamente) uma maneira de reprimir os delitos e que nesse papel, de

acordo com as formas sociais, os sistemas políticos ou as crenças, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-se

para a expiação ou procurar obter uma reparação, aplicar-se em perseguir o individuo ou em atribuir

responsabilidades coletivas” (FOUCAULT, Michel. Op. cit. p.24). 53 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit. p. 248.

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em que a consciência não está numa posição de compreender, e consequentemente de agir sobre

a necessidade de relacionar um programa penal progressista e o progresso em geral, qualquer

projeto de reforma penal continuará caminhando sobre incertezas, e os inevitáveis fracassos

serão mais uma vez atribuídos à fraqueza inerente à natureza humana e não ao sistema social54”.

A punição severa e um tratamento cruel aos criminosos pode ser aplicada inúmeras vezes, mas

“enquanto a sociedade não estiver apta a resolver seus problemas sociais, a repressão, o

caminho aparentemente mais fácil, será sempre bem aceita”.

3.3 A efetivação do punitivismo

A análise de Foucault sobre punição e estrutura social é pautada no lapso temporal entre

o fim da Idade Média (e começo do Antigo Regime) até o século XIX. Para o estudo do direito

penal moderno, bem como de suas implicações na sociedade, serão explorados as vertentes de

Loic Wacquant, David Garland e Jack Young. Conforme defende Garland, “mudanças em

políticas, sentenças, punições, teorias criminológicas, filosofia penal, políticas penais,

segurança privada, prevenção do crime e tratamento das vítimas, assim por diante, podem ser

mais bem apreendidas se forem vistas como elementos que interagem no campo estrutural do

controle do crime e da justiça criminal55”.

Seguindo as considerações de Foucault, Wacquant acredita que o poder seria não apenas

uma “hipótese repressiva”, como uma fonte fertilizadora que está em constante movimento.

Todavia, seu estudo se foca na utilização desse poder na criminalização da miséria e na

expansão do sentimento generalizado de insegurança que permeia a sociedade neoliberal

(estadunidense)56 dos séculos XX e XXI, ideia que ajudará na análise do poder de punir que se

almeja.

54 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit. p. 282. 55 GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de

Janeiro: Revan, 2008. 36 p. 56 “De onde vem esta curiosa maneira de pensar e de agir em relação à ‘segurança’ que, entre as ‘funções básicas

do Estado’ identificadas por Mas Weber – a elaboração de leis, a imposição de ordem pública, a defesa armada

contra as agressões externas e a administração das ‘necessidades higiênicas, educativas, sociais e culturais’ de

seus membros – concede uma prioridade sem precedentes às missões de polícia e de justiça, e exibe com

estardalhaço a capacidade das autoridades de submeter as categorias e os territórios indóceis à norma comum?”

(WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. ed.

Rio de Janeiro: Revan, 2007. 11 p.)

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O contexto principal do texto que se segue é a sociedade do pós-guerra na tentativa de

se recompor e as repercussões criminais dela oriundas. Jock Young investiga os sintomas da

criminalidade e seu aumento a partir dos anos 60, período em que a sociedade acabara de se

reorganizar a partir do fim da 2ª guerra mundial. Young infere que a modernidade recente como

um tempo de intensas mudanças, talvez tão abundantes que a sociedade tentaria dar conta, à sua

maneira, de tais transformações. Young trata bastante das diferenças entre os indivíduos,

exacerbadas por um desejo de inclusão do diverso numa época de quebra da hegemonia da

sociedade dos “anos dourados”. Essa inclusão, na verdade, se relaciona não só do ponto de vista

cultural (cultura negra, homossexual, entre outras), mas também de uma perspectiva de

igualdade de direitos (o movimento feminista, por exemplo), ligada intimamente com uma

realidade de desigualdade social.

Young se debruça, então, na análise da exclusão social buscando múltiplos

entendimentos, não apenas baseados em níveis de violência e criminalidade. Young (2002)

infere como possíveis causas que, a contar dos anos 1980, as mudanças maciças do mercado de

trabalho e o aumento do desemprego estrutural (devido à expansão do mercado de trabalho

secundário no pós fordismo) seguidas da acentuação do individualismo que quebra o paradigma

da comunidade resultam num processo de exclusão. Isso porque trata-se de uma “exclusão

decorrente das tentativas de controlar a criminalidade resultante das circunstâncias

transformadas e da natureza excludente do próprio comportamento antissocial57”. Dessa

maneira, conclui que58:

A dinâmica fundamental de exclusão resulta de forças de mercado primário de

trabalho e dos valores de mercado, o que contribui para gerar um clima de

individualismo. Tal situação afeta tanto as causas da criminalidade (através da

privação relativa e do individualismo) quanto as reações contra o crime (pela

precariedade econômica e a insegurança ontológica). As exclusões ocorrem na

superfície desse processo primário são uma tentativa de lidar com o problema da

criminalidade e da desordem por ela engendrada. Baseiam-se frequentemente numa

percepção equivocada, mas são uma percepção equivocada do real e não um problema

imaginário. A própria criminalidade é uma exclusão, como o são as tentativas de

controla-la através de barreiras, encarceramento e estigmatização. Tais processo

frequentemente exacerbam o problema numa dialético de exclusão: mas as mudanças

que ocorrem no florescente aparato de controle do crime são, no longo prazo, uma

resposta a esta condição.

Sob esse enfoque, depreende-se que Young procura entender a exclusão pela falta de

inclusão. Em primeiro lugar, tenta separar a justificativa da criminalidade na dicotomia “direita

57 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade

recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 23 p. 58 YOUNG, Jock. Op. cit. p. 49.

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x esquerda”, afirmando que “ambos os modelos de déficit, o preferido pela direita (positivismo

individual) e o preferido pela esquerda (positivismo social), são defeituosos. O primeiro vê que

a fonte da desordem é a falta de inclusão na cultura da sociedade, e para o segundo trata-se de

uma falta de inclusão na economia59”. Em seguida, comprova que o crime “não é resultado de

uma falta de cultura, mas da adesão a uma cultura de sucesso e individualismo (...) não é a

privação material per se, nem a falta de oportunidade que dá lugar ao crime, mas a privação no

contexto da cultura do ‘sonho americano’, em que se exorta a meritocracia aberta a todos60”.

A criminalidade, então, seria oriunda do anseio frustrado do excluído em alcançar os

bens de consumo divulgados pela ampla propaganda. Nesse sentido, Young indica que uma

cidade pode ser vista como uma metáfora da modernidade recente, justamente por suas

contradições espaciais (centro vs periferia) e sociais. O aumento na taxa de delinquência

alimenta a cultura do medo, de forma que certas áreas urbanas devem ser evitadas, o que

culmina na criação de zonas proibidas, aumento do policiamento e privatização de lugares

públicos. Assim, a própria cidade exclui e filtra para perpetuar seu estado vigilante.

Em que pese o argumento sociológico de Young do período em referência contribua

para o melhor entendimento das mudanças na lógica da exclusão, convém direcionar o estudo

para as questões econômica e política que envolvem a marginalização da pobreza e

encarceramento progressivo.

O Estado penal-previdenciário dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha reunia uma

estrutura de penas proporcionais com compromisso de reabilitar o condenado, com medidas de

correção que negavam o caráter retributivo da punição. Esse modelo majoritário, que perdurou

no século XX até (e principalmente) os anos 1970, fazia parte do plano do Estado de bem-estar

do pós-guerra. O contexto histórico para a instalação desse paradigma de Estado está ligado

com a tentativa de frear a expansão comunista. Segundo Garland, “onde outrora o princípio

condutor fora nulla poena sine crimine (‘não há pena sem crime’), no mundo do

previdenciarismo penal vigiam os axiomas não há tratamento sem diagnóstico e não há pena

sem aconselhamento especializado61”.

59 YOUNG, Jock. Op. cit. p. 123. 60 YOUNG, Jock. Op. cit. p. 125. 61 GARLAND, David. Op. cit. p. 106.

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Preponderava o entendimento de que a criminalidade tende a diminuir com o progresso

econômico e com reestruturação social. Além disso, cuidar dos criminosos era tarefa do Estado.

Sendo assim, a atuação estatal se dividia entre prevenir e punir. Os defensores dessa

criminologia correcional, também chamada de modernista, procuravam entender as condições

sociais, econômicas e psicológicas que levavam o delinquente a cometer crimes, bem como os

impactos causados pela política criminal adotada. Rejeitava-se o combate ao crime se referindo

a um perigo social.

O previdenciarismo penal, aceito pelas diferentes classes da sociedade, se desmantelou

a partir da disseminação da ideia de fracasso nas políticas criminais. A eficácia da criminologia

correcional foi questionada pois, de acordo com índices, a criminalidade não havia diminuído,

o que fez com que os críticos da teoria ganhassem força. Esse movimento também aconteceu

por um processo da sociedade como um todo, não apenas na questão punitiva. A substituição

do modelo penal-previdenciário no campo do controle do crime não se pautou em teorias

criminológicas, mas “pelo caráter da sociedade do final do século XX, por seus problemas, sua

cultura e suas tecnologias de poder62”.

Por outro lado, Jock Young investiga os sintomas da criminalidade e seu aumento a

partir dos anos 60, período em que a sociedade acabara de se reorganizar a partir do fim da 2ª

guerra mundial. Young infere que a modernidade recente como um tempo de intensas

mudanças, talvez tão abundantes que a sociedade tentaria dar conta, à sua maneira, de tais

transformações. Young trata bastante das diferenças entre os indivíduos, exacerbadas por um

desejo de inclusão do diverso numa época de quebra da hegemonia da sociedade dos “anos

dourados”. Essa inclusão, na verdade, se relaciona não só do ponto de vista cultural (cultura

negra, homossexual, entre outras), mas também de uma perspectiva de igualdade de direitos (o

movimento feminista, por exemplo), ligada intimamente com uma realidade de desigualdade

social.

O keynesianismo dos Estados Unidos criou a noção do Estado como garantidor do bem-

estar social. Essa ideia foi se modificando no sentido de tornar a assistência estatal mero

62 GARLAND, David. Op. cit. p. 171.

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exercício de compaixão (“Estado caritativo”)63. Assim, verifica-se que a necessidade de uma

proteção social do mais vulneráveis converteu-se numa gestão da pobreza por um Estado penal.

Primeiro porque o “wellfare state” se tornou um “workfare state”, isto é, as classes mais

marginalizadas acabam por receber uma ajuda mínima (e dificultada pela burocracia estatal) do

governo (caridade) para que, assim, seja estimulada a indispensabilidade do trabalho, mesmo

que desqualificado.

A desigualdade social tende a se tornar ainda mais evidente, em especial pela condição

ameaçadora imposta aos pobres de que a ausência de emprego (precário) seria combatida

repressivamente com o aparato punitivo (institucionalização da insegurança). O interessante do

plano neoliberal de negligenciar os pobres é que, paradoxalmente, o dinheiro que deixa de ser

gasto nos programas assistenciais passa a integrar o orçamento das penitenciárias.

Pode-se inferir que a política estatal de “criminalização das consequências da pobreza

patrocinada pelo Estado64” se reflete em dois arranjos distintos. O primeiro diz respeito à

reorganização dos serviços sociais para que desempenhem o papel de vigilância controladora

dos seus beneficiários. As exigências impostas aos indivíduos que gozam desses auxílios

beiram a irrazoabilidade, porque eles são obrigados a se sujeitar a empregos mal pagos e

degradantes sob o risco de perderem a caridade. Sem contar que a condição de assalariado não

garante a saída da pobreza.

Sob esse enfoque, a segunda característica seria o confinamento. Segregar ao cárcere se

faz muito eficaz para esconder os indesejáveis. Aliado a isso, incriminar os setores menos

favorecidos esbarra na questão da segregação racial do país, em conjunto com a “guerra às

drogas”65, estratégia para estigmatizar cada vez mais os guetos negros. Como bem destaca

Wacquant:

Não é, pois, a guerra às drogas per se, mas sim quando essa política é usada e o seu

emprego seletivo num quadrante restrito, localizado bem na base do espaço urbano e

social, que contribuiu para superlotar as celas estadunidenses e rapidamente

“escurecer” seus ocupantes.

63 Garland defende que “as mesmas mudanças econômicas e sociais inauguradas pelo Estado do bem-estar

acabariam por minar a efetividade e legitimidade de formas previdenciárias de governo” (GARLAND,

David. Op. cit. p. 207). 64 WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 111. 65 Wacquant se refere à guerra às drogas como “uma guerra de guerrilha à perseguição penal aos traficantes das

calçadas e aos consumidores pobres” (WACQUANT, Loïc. Op. cit. p.115).

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A política de encarceramento nos Estados Unidos foi tão eficiente em seu objetivo que

alcançou índices industriais. Em decorrência, gerou-se um mercado do cárcere, o qual necessita

da construção de estabelecimentos prisionais; de funcionários para limpeza, alimentação,

serviços médicos, transporte e segurança; ou seja, a prisão passou a ser uma empresa e a gerar

lucro.

Em contrapartida, é possível perceber uma flexibilização do aparato penal externo à

prisão para aumentar o seu alcance, tanto pela precarização do discurso jurídico revelado em

sentenças condenatórias mais extensas e genéricas, como um regime repressivo nas ruas com o

aumento do policiamento de “tolerância zero”. Wacquant identifica algumas funções que a

intensidade da punição preenche: a primeira delas seria o encarceramento para neutralizar as

frações excedentes da classe operária; o segundo degrau seria a expansão da rede policial,

judiciária e penitenciária do Estado para desempenhar uma função econômica e para disciplinar

o trabalhador assalariado e dessocializado, fazendo isso através da elevação das estratégias de

escape e resistência que empurram sobretudo jovens de sexo masculino de classe baixa para os

setores ilegais da economia. A classe superior seria um reflexo dos mecanismos estatais e penais

que tentam simbolicamente reafirmar a autoridade do Estado justamente para satisfazer as elites

políticas, colocar uma fronteira entre os cidadãos de bem e os desviantes não merecedores, estes

devem ser postos à margem de forma duradoura.

Em suma, os Estados Unidos criaram uma política criminal (“nova penologia”) austera

de contenção dos pobres, cuja dessocialização foi responsabilidade do Estado, além de se basear

no ideário da insegurança social também de sua autoria66. É como se os pobres estivessem numa

situação análoga à liberdade condicional, correndo sempre o risco desta ser abolida

repentinamente67.

A referida política se consubstanciou na Lei PRWORA68, de 1996, instituto legal que

inaugurou juridicamente a reforma do bem-estar social. Outras leis foram editadas na mesma

época, mas acredita-se que a PRWORA foi o marco da estratégia de eliminação de direitos

sociais. Suas diretrizes mais importantes eram: (1) revogar o direito à assistência como dever

66 “O encarceramento serve, antes de tudo, para regular, se não perpetuar, a pobreza e para armazenar os dejetos

humanos no mercado” (WACQUANT, Loïc. Op. cit. p.126). 67 “A imagem recorrente do criminoso deixou de ser a daquela pessoa necessitada, ociosa ou desajustada,

tornando-se mais ameaçadora – como as dos criminosos recalcitrantes, drogados e predadores – e, ao mesmo

tempo, muito mais racial” (GARLAND, David. Op. cit. p.221). 68 PRWORA significa Personal Responsibility and Work Opportunity Reconciliation Act of 1996, Lei de

Reconciliação de Responsabilidade pessoal e de Oportunidades de Trabalho em português (tradução minha).

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do Estado diminuindo, por exemplo, a ajuda às mães com filhos pequenos; (2) transferir a

responsabilidade da União pelos programas aos estados federados para que definissem os

critérios e verbas regionalmente, retirando qualquer ingerência federal; (3) tornar fixo o

montante dos auxílios sem avaliar a condição de cada indivíduo; e, por fim, (4) excluir do

registro de assistência determinadas categorias sociais, como pessoas condenadas por crimes

relacionados a entorpecentes, crianças pobres com deficiência física e residentes estrangeiros

morando a menos de seis anos no país.

Os efeitos da PRWORA não foram tão devastadores quanto se esperava. Mesmo com o

cancelamento das assistências, a taxa nacional de pobreza não se alterou nos anos subsequentes

e, com a melhora da economia, o poder de compra da renda familiar aumentou. A despeito

disso, verifica-se que a intensidade da pobreza se acentuou. As diferenças entre os níveis de

renda se dilataram e essa discrepância colaborou para a construção de uma sociedade

ideologicamente desigual. Prova disso é que o perfil dos pobres ex-beneficiários dos programas

sociais se encaixa perfeitamente no padrão dos detentos do sistema prisional. Em síntese, a lei

de 1996 cumpriu o seu papel de normatizar a pobreza69.

No que concerne à questão penal, o aprisionamento em massa demonstra algumas

práticas do sistema (principalmente nos anos 1990). De início, percebe-se uma atrofia no

Judiciário, que passou a prescrever penas muito mais longas. Outro aspecto a ser mencionado

é que as condenações não pressupunham crimes graves ou violentos, a maior parte deles, aliás,

eram delitos contra o patrimônio ou posse de drogas.

Da mesma forma, o cumprimento da pena em si não parece ser fácil. Brigas internas,

conflitos com os agentes de segurança, condições insalubres e superlotação são alguns dos

problemas enfrentados pelos internos durante a sua passagem pelo sistema carcerário. Além

disso, se antes de serem presos, os detentos já eram, em sua maioria, pobres, uma vez em

liberdade, a situação se agrava ainda mais.

69 “A polícia, os tribunais e a prisão são, se examinados mais de perto, a face sombria e severa que o Leviatã

exibe por toda parte para as categorias deserdadas e desonradas, capturadas nas cavidades inferiores do espaço

social e urbano pela desregulamentação econômica e pelo recuo dos esquemas de proteção social”

(WACQUANT, Loïc. Op. cit. p.17).

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Pessoas que cumpriam pena têm dificuldades para se recolocar no mercado de trabalho

e a marca deixada pelo cárcere permanece quase que eternamente. Retomando Foucault (2015)

e Rusche e Kirchheimer (2004) sobre a história das penas, é possível fazer uma comparação

entre os castigos físicos que tinham como objetivo marcar um indivíduo socialmente (um ladrão

que tinha a mão amputada) com as prisões. A prisão continuar a deixar uma cicatriz, ainda que

simbólica, naquele que passa por ela. Os egressos do sistema prisional ficam tatuados pela

memória e pelo reconhecimento social, já que o fim da pena privativa de liberdade não esgota

a sua punição.

Ademais, os estados federados dispenderam vultuosa quantia na construção de novos

estabelecimentos prisionais para abrigar todos os delinquentes aprisionados pela lógica “lei e

ordem”. O gasto representou uma tal porcentagem no orçamento do Estado que Wacquant

concluiu que as prisões se tornaram “o principal programa de habitação social do país70”. E

mais: prisão pode ser vista, desse ângulo, como um estoque da população excedente, de pessoas

desempregadas que, inúteis para a produção e o consumo, ficam confinadas.

Não obstante, o encarceramento em massa também gera um custo significativo para a

sua manutenção que onerou muito o poder público. A solução encontrada foi a privatização da

administração dos presídios. Como bem destaca Wacquant71:

Inimaginável há apenas 20 anos, a prisão com fins lucrativos é hoje uma componente

obrigatória da paisagem penal estadunidense. Mais do que isso. Sua presença

modificou profundamente o comportamento das administrações penitenciárias, já que

estas, por seu turno, lançaram-se numa competição desenfreada, visando a alugar

“leitos” baratos às jurisdições vizinhas, mal servidas de celas. Ademais, as empresas

de construção e de gestão de prisões não são as únicas a lucrar com a hiperinflação

carcerária estadunidense. Todos os setores de atividades suscetíveis de fornecer bens

e serviços às instituições de encarceramento estão envolvidos, do seguro à

alimentação, passando pela arquitetura, os transportes, a telefonia e as tecnologias de

identificação e vigilância.

Na verdade, criou-se uma indústria de presídios que movimenta milhões de dólares por

ano. Além disso, devido ao enorme contingente de pessoas encarceradas, outra solução para

diminuir os gastos da reclusão foi posta em prática: tornar os prisioneiros úteis através do

trabalho. De fato, representa uma mão-de-obra de baixo custo pronta a ser explorada. Contudo,

ainda se mantem a concepção de que o detento bem tratado deve estar pior que o mais pobre

70 WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 275. 71 WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 288.

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trabalhador assalariado, então o labor na prisão seria apenas uma forma de “pagar a dívida” do

condenado, já que recebe “gratuitamente” alimentação, moradia e atendimento médico. Essa

política se insere na premissa de que o preso deve detestar a prisão a ponto de nunca mais querer

voltar.

Na mesma linha, a privação dos reclusos também atinge seus direitos sociais. Eles não

podem votar (mesmo antes da condenação), não tem acesso aos benefícios garantidos pelo

sistema da compaixão estadunidense (moradia social, assistência alimentar, aposentadoria).

Wacquant72 interpreta que:

Atingidos por um tríplice estigma – ao mesmo tempo moral (eles forma colocados

fora da cidadania ao violarem a lei), de classe (eles são pobres em uma sociedade que

venera a riqueza e concebe o sucesso social como resultado unicamente do esforço

individual) e de casta (eles são majoritariamente negros, oriundos, portanto, de uma

comunidade despida de “honra étnica”) -, os detentos são o grupo pária entre os párias,

uma categoria sacrificial, que pode ser vilipendiada e humilhada impunemente, com

imensos lucros simbólicos. A política de criminalização da miséria do Estados Unidos

encontra, assim, seu prolongamento cultural em um discurso público de maldição dos

prisioneiros, do qual participam os mais altos mandatários do país, e que os torna a

encarnação do mal absoluto: a antítese viva do “sonho estadunidense”, cujo

afastamento serve de exorcismo coletivo.

Convém destacar que o mencionado estigma construiu uma situação em que o cárcere

se torna um prolongamento da vida no gueto, na favela ou na periferia. Isso porque faz parte da

ação neoliberal realocar o “pobre desocupado” nas celas.

Feita a análise da ressignificação da prisão como mecanismo de exclusão dos

dessocializados, convém atentar para o exercício real de poder de punir. É preciso, primeiro,

dissociar o entendimento de que crescer o número de crimes cometidos significa o aumento de

pessoas encarceradas. Pelo contrário, o que se verifica é que o total de prisões manteve níveis

progressivos, mais altos do que os delitos registrados, o que prova não haver simetria necessária

entre crime e punição.

Depois, questiona-se a violência utilizada pelo Estado neoliberal na aplicação do poder

punitivo. Garland faz um paralelo entre o mito do Estado soberano e seu poder de punir com o

Estado meramente repressivo, expressa na raiva gerada pela ocorrência do delito. O Estado

72 WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 312.

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passa a punir não apenas por um poder-dever, mas por uma vontade. A densidade da repressão

se acentua em tal medida que as garantias constitucionais são abaladas pela onda punitiva.

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4 REFLEXOS DO INIMIGO NA REALIDADE POLÍTICO-PENAL

BRASILEIRA

Esse capítulo tomará como objeto a estrutura punitiva brasileira. Serão abordados

aspectos legais e criminais à luz dos princípios constitucionais que orientam (ou deveriam

orientar) o ordenamento jurídico e as políticas estatais.

Convém esclarecer que a edição de novas normas não constitui o único motivo que

justifica o cenário político-criminal. O controle do crime é pulverizado, de modo que agências

e instituições também passaram a cooperar nessa tarefa73. Tomando como exemplo um processo

penal, na fase investigatória o inquérito policial fica a cargo da polícia judiciária (chefiado pelo

Delegado de Polícia). Caso a investigação resulte em indícios que ensejem o início de uma ação

penal, o Ministério Público pode oferecer denúncia, a qual, se não rejeitada, será julgada por

um juiz.

Esse caminho apresenta de pronto três entidades do poder público que emitem um saber

sobre determinado fato. Atreve-se a afirmar que cada parecer produzido influencia o outro, eles

não estão completamente independentes. Tanto é assim que muitas vezes o punitivismo

expresso pela decisão judicial já está atrelado aos atores que previamente exprimiram seu poder

punitivo74.

A gestão punitiva não está tão somente nas mãos de uma agência estatal. Uma das

abordagens mais contributivas na difusão de inimigos públicos (e no consequente julgamento

prévio de pessoas que nem figuram como rés em ações penais) são as mídias. A propaganda

dos veículos midiáticos vende o estereótipo do cidadão como vítima75, do Estado como protetor

e vigilante e dos criminosos como inimigos perigosos. A mídia passou a focar sua atenção

73 Seria uma espécie de “governamentalidade” na visão foucaultiana. 74 “O ato judicial, mormente a sentença penal, apenas consolida a série de inúmeras decisões político-criminais

que são tomadas pelos operadores jurídicos ao longo da persecução penal (fase administrativa de investigação,

processo de instrução e, posteriormente, no processo de execução penal)” (CARVALHO, Salo de. O Papel dos

Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. 60 p.). 75 “A necessidade de reduzir o sofrimento presente ou futuro da vítima funciona, hoje em dia, como uma

justificação geral para medidas de repressão penal; o imperativo político de reagir ante os sentimentos das

vítimas agora serve para reforçar os sentimentos retributivos que paulatinamente vêm informando a legislação

penal” (GARLAND, David. Op. cit. p. 316).

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obsessivamente na demonização do delinquente e a propagar o sentimento de insegurança e de

impunidade.

O mundo participa hoje de um tempo com profunda difusão de informações e, com a

globalização, houve em conjunto uma revolução tecnológica que revolucionou os meios de

comunicação. Esse avanço permitiu que correntes de pensamento autoritárias que estimulam o

fortalecimento ainda maior do poder punitivo crescessem. Esses discursos não possuem

natureza técnica, mas uma forte carga de “achismos” midiáticos e publicitários. De acordo com

Zaffaroni76:

Nesse contexto, o discurso autoritário cool latino-americano participa do simplismo

de sua matriz norte-americana, carecendo igualmente de qualquer respaldo

acadêmico, e se orgulha disso, pois esta publicidade popularesca denigre

constantemente a opinião técnica jurídica e criminológica, obrigado os operadores

políticos a assumir idêntica postura de desprezo.

Ainda, vende-se a ilusão de que criar novas leis penais mais repressoras aumentaria a

segurança urbana, o que legitima uma conduta autoritária da polícia, bem como incitando

medidas violência de repressão de delitos. O autoritarismo do século XXI não escolhe um

inimigo, estes aparecem sucessivamente a partir de uma imposição dos meios de comunicação,

que reforçam o perfil desse inimigo com produções cinematográficas. A política adquire um

cenário espetacularizado e grosseiro, na medida em que as mudanças de inimigo ocorrem mais

rapidamente do que os discursos acadêmicos conseguiriam acompanhar, então é uma escolha

vazia e rasteira.

Em suma, depreende-se que a ideologia da repressão, pelo punitivismo desmedido, visa

“ser ‘eficiente’ (eis o princípio ontológico do modelo) no combate às condutas ‘criminosas’ e

‘desviantes’, no combate no combate às condutas criminosas e desviantes, aumentando as

punições e particularmente as penas em quantidade e qualidade, logo, muitas e maiores

punições (...). Paga um preço, em verdade muito alto se em jogo estiverem os postulados

democráticos – principalmente aqueles de matriz constitucional – porque, de um lado, é preciso

ofuscar direitos e garantias individuais e, de outro, não se tem os resultados pretendidos, o que

76 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 74.

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é desalentador dado corroer a esperança de se ter um futuro melhor justo pelo caminho da

realização da Constituição77”.

4.1 DIREITO PENAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Em linha de princípio, antes de realizar a análise de leis do ordenamento jurídico

brasileiro, faz-se necessário o estudo dos princípios que regem o direito penal (material e

processual), inclusive aqueles oriundos de tratados internacionais de Direito Humanos. Isso

porque a Constituição desempenha um papel primordial na contenção do poder punitivo do

Estado e o direito penal é o único ramo do direito que lida diretamente com o cerceamento da

liberdade78, direito fundamental garantido constitucionalmente.

Por outro lado, ainda que a doutrina do direito penal do inimigo pregue a distinção entre

pessoa e “não pessoa”, foi escolhido fazer um exame apenas dos princípios penais e processuais

penais, entendendo que as garantias inerentes à pessoa, como vida, igualdade, dignidade

humana são, sobretudo, valores tutelados pelo ordenamento jurídico como um todo. Nessa

perspectiva, Bitencourt79 enuncia que

No 1º, III, da Constituição, encontramos a declaração da dignidade da pessoa humana

como fundamento sobre o qual se erige o Estado Democrático de Direito, o que

representa o inequívoco reconhecimento de todo indivíduo pelo nosso ordenamento

jurídico, como sujeito autônomo, capaz de autodeterminação e passível e ser

responsabilizado pelos seus próprios atos. (...) De maneira similar, na declaração dos

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, encontramos no art 3º, I,

da Constituição, uma clara intenção que também orienta a atividade jurisdicional em

matéria penal, qual seja, o propósito de construir uma sociedade livre e justa.

O direito penal do inimigo é incompatível com a ordem estabelecida pela Constituição

Federal de 1988, contudo, há leis infraconstitucionais que mitigam os princípios nela contidos80.

Por isso, a análise preliminar de tais princípios, que abarcam também os Direitos Humanos, se

faz indispensável81.

77 Trecho do artigo de Jacinto Coutinho, disponível em: http://emporiododireito.com.br/punitivismo-desmedido-

e-ideologico-a-posicao-de-jorg-stippel-por-jacinto-coutinho/ Acesso em 06/06/2017.

78 Com exceção da prisão civil por dívida de alimentos. 79 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

49 p. 80 Princípios são mandamentos que fundam o sistema jurídico, no sentido de lhe fornecer fundamentos basilares

e genéricos. 81 A organização dos mesmos da forma que se segue se deve apenas ao melhor arranjo do estudo.

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4.1.1 Princípios constitucionais do direito penal

Ferrajoli trata desses princípios como sendo “princípios da pena”. Bittencourt, por sua

vez, os denomina de “princípios limitadores do poder punitivo estatal”. Nilo Batista classifica

alguns princípios como os mandamentos básicos do Direito Penal, por entender que “embora

reconhecidos ou assimilados pelo direito penal, (...) não deixam de ter um sentido programático,

e aspiram ser a plataforma mínima sobre a qual possa elaborar-se o direito penal de um estado

de direito democrático82”. São eles: legalidade (ou reserva legal), intervenção mínima;

lesividade; humanidade e culpabilidade. Ainda, como outras garantias, também serão

consideradas em separado a insignificância e a proporcionalidade.

4.1.1.1 Legalidade

Consignado no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal83, no art. 1º do Código

Penal84, bem como na Declaração Universal dos Direitos do Homem85 e na Convenção

Americana sobre Direitos Humanos86, o princípio da legalidade estipula que não há crime sem

que haja previsão legal anterior, ou seja, denota a proibição em criar tipos penais com base em

costumes ou analogia87. Sendo assim, a legalidade também pode ser chamada de reserva legal,

porque só a lei pode dispor sobre matéria penal.

Ainda, tal princípio chancela a segurança jurídica, uma vez que há a certeza de não ser

punido por crime não previsto em lei. Da mesma forma, o legislador deve determinar uma

conduta punível sem que esta contenha termos vagos e imprecisos (princípio da taxatividade),

de modo a proteger o cidadão contra arbitrariedades do poder punitivo. Considera-se também

a irretroatividade da lei penal como função do princípio da legalidade, pois, como a lei precede

82 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 61 p. 83 Art. 5º. XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. 84 Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. 85 Artigo 11, II - Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituiam

delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que,

no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. 86 Artigo 9 - Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas,

não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a

aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de

pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado. 87 A analogia que favorece o acusado, conhecida como in bonam partem, é admitida no direito penal brasileiro.

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o crime, ninguém será condenado de acordo com lei posterior ao delito cometido, a menos que

esta seja benéfica ao réu88.

4.1.1.2 Intervenção mínima

A intervenção mínima não possui previsão expressa na Magna Carta, porém se constitui

implicitamente como um princípio. Também conhecida como ultima ratio, impõe que o Direito

Penal deve ser utilizado quando os outros ramos do Direito (Civil ou Administrativo, por

exemplo) não forem suficientes para reparar a lesão a um bem jurídico. Assim, o Direito Penal

adquire um caráter subsidiário, porque primeiramente tenta-se resolver um conflito por meios

extrapenais, para depois, em último caso, acionar aquele.

Logo, restam ao Direito Penal as situações extremamente graves, sobretudo pelo fato

dele tutelar alguns bens jurídicos (fragmentariedade), aqueles amais importantes. Por fim,

convém mencionar o ensinamento de Nilo Batista, que entende que “o texto constitucional

seleciona situações a erem necessariamente tratadas pelo legislador penal, naqueles casos de

bens essenciais à vida, à saúde e ao bem-estar do povo: chama-se a isso ‘imposição

constitucional da tutela penal89’”.

4.1.1.3 Lesividade (ou Ofensividade)

Esse mandamento designa que não existe crime sem lesão ao bem jurídico. Essa lesão

se relaciona não só à sua efetivação material, como também ao perigo concreto de dano a um

bem jurídico. Bitencourt (2014) ressalta que a lesividade se direciona especificamente ao

legislador, por proibir a edição de lei que tipifique crime de ação que não lesa nem coloca em

risco concreto, e ao juiz, porque condiciona a interpretação legal para vedar a incriminação de

um indivíduo por quaisquer condutas alheias que não ensejam a violação ao bem jurídico. Como

exemplo, não são puníveis os atos preparatórios, desejos internos de uma pessoa, condições

existenciais de um indivíduo (proibição do direito penal de autor).

88 Art 5º. XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu 89 BATISTA, Nilo. Op. cit. p. 90.

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4.1.1.4 Humanidade

O princípio da humanidade dialoga com o valor da dignidade humana, já que sua

previsão constitucional90 impõe que as penas precisam se adequar à condição da pessoa

humana, não podendo ser cruel, indigna e absurda (consta também na DUDH91 e na CADH92).

Na verdade, a humanidade é um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito. Como

ensina Bitencourt, esse princípio “sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções

que (...) lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados93”.

Implica também a humanidade no caráter não retributivo da pena, não a concebendo

como um castigo ou compensação pelo mal causado no crime, mas como uma possibilidade de

ressocialização do condenado.

4.1.1.5 Culpabilidade

De forma genérica, a culpabilidade aponta que “não há crime sem culpa”, ou seja,

ninguém deve ser punido por um crime se não for por ele responsável. Entretanto, essa

responsabilidade adquire sentidos diferentes. Em primeiro lugar, a culpabilidade coíbe a

responsabilização penal objetiva, isto é, a mera subsunção entre conduta e resultado sem

considerar as condições que levaram ao agente a cometer tal ação (elementos subjetivos da

vinculação).

90 Art 5º. III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o

sexo do apenado;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período

de amamentação; 91 Artigo 5º -Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 92 Artigo 5º, II - Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou

degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao

ser humano. 93 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 70.

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Por outro lado, a culpabilidade também se explicita na pessoalidade da pena (art. 5º,

XLV da CRFB94 e art. 5, 2 da CADH95), a qual determina que a pena não transcende a pessoa

do condenado e não pode ter efeitos a outros indivíduos. Por último, o princípio também pode

significar a medida da pena (art. 59 do CP), uma vez que o juiz, ao aplicar a sanção, deve

considerar a culpabilidade como limite a partir da gravidade do injusto.

Ademais, existe o princípio da co-culpabilidade como decorrência da responsabilidade

penal. Toma-se a realidade social do réu como critério para aferir a reprovabilidade do ato. Caso

o Estado não tenha lhe garantido assistência, considera-se que o Estado também seria

responsável pela conduta, diminuindo a pena do réu. Em suma, seria considerar desigualmente

o indivíduo que sempre conviveu com a desigualdade.

4.1.1.6 Insignificância

Para haver crime, é necessário que uma conduta com determinado resultado se encaixe

no disposto em lei, constituindo, então, um fato típico. Contudo, é indispensável que a

consequência dessa ação gere uma lesão expressiva ao bem jurídico. Isso porque o princípio da

insignificância ou bagatela exige que haja tipicidade material no fato. Assim, mesmo que

formalmente o ato constitua um ilícito, caso não possua relevância e amplitude ao atingir o bem

jurídico, não há crime.

4.1.1.7 Proporcionalidade

Mesmo não constando expressamente no texto constitucional, a proporcionalidade é um

princípio que atinge todos os três poderes do Estado, na medida em que impõe que todo ato

estatal tenha uma finalidade política sempre influenciada pelos valores constitucionais. Em

relação às penas, preceitua que estas devem ter um tempo razoável e que corresponda

proporcionalmente ao dano causado.

94 Art. 5º. XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a

decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o

limite do valor do patrimônio transferido. 95 Artigo 5, n. 3 - A pena não pode passar da pessoa do delinquente.

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4.1.2 Princípios Democráticos do Processo Penal

4.1.2.1 Presunção de inocência

A Constituição Federal assegura expressamente que “ninguém será considerado culpado

até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória96”. A presunção de inocência, dessa

maneira, pode ser considerada como “princípio reitor do processo penal”97, por ser fundamental

na proteção da dignidade da pessoa humana, já que ampara o tratamento dado ao acusado

durante todo o processo. Ela confere para o direito processual penal brasileiro a estrutura que

tem e é imanente aos demais princípios processuais constitucionais.

Também chamado de princípio da não culpabilidade ou estado de inocência98, a

presunção de inocência pode ter algumas acepções diferentes. É, sobretudo, uma garantia

política própria do sistema acusatório, como também uma regra de julgamento, pois se no

momento da sentença houver dúvida, deve-se decidir a favor do réu (“in dubio pro reo”).

Presume-se que uma pessoa é inocente até que prove sua culpa, logo o ônus da prova de

culpabilidade é da acusação. Se não provado o sujeito deve ser considerado inocente ou não

culpado e, assim, absolvido.

Outro aspecto do princípio é que ele não impede que medidas cautelares aconteçam ao

longo do processo, mas veda que haja execução provisória ou antecipada da pena. Decisão

recente do STF alterou o entendimento quanto à execução provisória, estabelecendo que seria

possível iniciar o cumprimento de pena após a decisão condenatória de segunda instância99. Tal

escolha viola claramente o princípio da presunção de inocência, uma vez que não tendo

transitado em julgado a sentença ainda haveria a possiblidade de exame de recursos nos

Tribunais Superiores que mudassem o entendimento firmado na decisão.

96 Art. 5º, LVII, CFRB. 97 LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 143p. 98 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. 99 A mudança de entendimento ocorreu quando do julgamento do HC 126.292, em outubro de 2016.

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4.1.2.2 Princípio acusatório

O princípio acusatório não seria propriamente um princípio, mas a regra de um modelo

democrático constitucional. Uma denominação melhor seria sistema acusatório, porque este faz

parte deum projeto estatal com regras imanentes. A presunção de inocência, a ampla defesa e o

contraditório, a iniciativa exclusiva do Ministério Público para propor ação penal, a

publicidade, a motivação são exemplos de garantias que fazem arte desse sistema.

As características mais marcantes do sistema acusatório são a igualdade de

oportunidades entre acusação e defesa e a atuação do juiz como mero espectador no processo

(terceiro imparcial). E mais, as funções de julgar e acusar são destinadas a atores diferentes,

bem como a iniciativa probatória fica reservada às partes, não devendo o juiz realiza-la de

ofício.

Embora a Constituição Federal possua como valor o modelo acusatório, o Brasil possui

um sistema processual penal formalmente acusatório com aspectos inquisitórios, uma vez que

a gestão da prova é realizada de maneira suplementar pelo juiz frequentemente.

4.1.2.3 Ampla Defesa e Contraditório

As garantias da ampla defesa e do contraditório são corolários do sistema acusatório e

estão expressos na Carta Magna no inciso LV, do art. 5º100. Nesse contexto, o contraditório não

permite apenas que uma parte possa reagir perante manifestações da outra parte ou do juiz, mas

significa uma verdadeira busca da isonomia entre as partes para que essa garantia atinja sua

finalidade plenamente. Segundo Badaró101, “mais do que uma escolha de política processual, o

método dialético [de contrapor opiniões] é uma garantia epistemológica na pesquisa da

verdade”.

O maior problema de violação do contraditório ocorre na produção de provas. O

contraditório deve estar em todos os momentos da prova, desde o pedido da produção da

mesma, de participar da produção, até participar da valoração da prova. Mesmo que seja o juiz

100 Art 5º, LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o

contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 101 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit. p. 17p.

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quem valora uma prova, as partes podem participar dialeticamente da argumentação racional

que auxilia o julgador a interpretar corretamente a prova e no seu convencimento.

Na mesma linha, o contraditório não deve se confundir com defesa penal. O direito de

(ampla) defesa se manifesta de outras maneiras que não apenas através do contraditório, embora

estejam umbilicalmente ligados. Convém separar os direitos inerentes à autodefesa, a qual todo

acusado tem direito de realizar de antemão dos direitos que se relacionam com a defesa técnica,

que também é uma garantia do mesmo de ser assistido por uma. A Convenção Americana de

Direitos Humanos esmiúça, em seu artigo 8º, n. 2, as variadas implicações que carrega o

princípio da ampla defesa. Vale colacionar o seu teor:

Artigo 8. Garantias judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência

enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa

tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se

não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de

sua defesa;

d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um

defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu

defensor;

e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo

Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender

ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o

comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar

luz sobre os fatos

g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;

e

h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido

a novo processo pelos mesmos fatos.

5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os

interesses da justiça. (grifou-se)

Conclui-se, portanto, que a ampla defesa e o contraditório formam um verdadeiro

sistema de garantias de defesa. A CADH pormenorizou cada direito do réu, como escolher a

própria defesa, estar na audiência, ouvir as provas que estão sendo produzidas contra ele,

auxiliar na defesa técnica etc. Vale o registro de que o réu também tem direito ao silêncio. A

CADH vai além e inclui o direito de não confessar, o que não seria direito de mentir. Na

verdade, seria o direito de não falar a verdade, de não produzir provas contra si mesmo.

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4.1.2.4 Publicidade

A publicidade constitui uma regra geral de que todos os atos públicos devem ser

públicos, salvo nos casos que o segredo seja necessário para preservar a intimidade das partes

ou o interesse social. A publicidade dos atos processuais se coaduna com o dever de

transparência que deve reger um Estado Democrático, uma vez que não divulgar medidas é uma

atitude própria de um Estado de exceção. Por fim, como afirma Ferrajoli102, “existe um nexo

indissolúvel entre publicidade democracia no processo”.

4.1.2.5 Motivação

O princípio da motivação, expresso no art. 93, IX da CRFB103, arbitra que todas as

decisões judiciais devem ser motivadas. Motivar não significa necessariamente fundamentar o

raciocínio que levou um juiz a decidir de determinada forma, mas explicar os fundamentos que

o levaram a concluir para conferir segurança jurídica, tanto ao processo quanto ao sistema

jurídico como um todo. Como conclui Gustavo Badaró, “a motivação é uma garantia de controle

democrático sobre a administração da justiça”104. Ademais, a motivação não tem por objeto

apenas as sentenças, mas quaisquer decisões interlocutórias, principalmente aquelas que

resultam em restrição de direitos fundamentais.

4.1.2.6 Princípios da jurisdição penal

Autores como Ferrajoli, Aury Lopes Junior, Gustavo Badaró, Antonio Santoro utilizam

essa terminologia, podendo variar para “garantias do juízo”, “garantias da jurisdição”,

“garantias orgânicas”. São elas: o juiz natural, a imparcialidade e a inércia da jurisdição.

4.1.2.6.1 Juiz natural

O princípio do juiz natural105 garante que não haja tribunais de exceção, de forma que

qualquer cidadão que seja réu de ação penal será processado e julgado por juiz e tribunal

102 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 493. 103 Art. 93, IX, CRFB - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas

todas as decisões, sob pena de nulidade (...). 104 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit. p. 24. 105 CRFB. Art 5º, XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII - ninguém será processado nem

sentenciado senão pela autoridade competente.

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competentes para tal. Os tribunais formados ex post factum, ou seja, depois da ocorrência do

ato, são considerados de exceção, por isso que o julgador deve ser previamente constituído por

lei. Ademais, a garantia do juiz natural não veda as regras de jurisdição de competência nem a

organização judiciária de justiças especializadas.

4.1.2.6.2 Inércia

A inércia da jurisdição se expressa no sentido de não permitir a atuação de ofício do

juiz. Sendo inerte, o juiz não pode tomar iniciativa, ele deve agir mediante petição, ou seja,

queixa-crime ou denúncia oferecida pelo Ministério Público, dependendo se a ação penal for

privada ou pública, respectivamente. Logo, depreende-se que o juiz não acusa o réu e jamais

iniciará o processo criminal.

4.1.2.6.3 Imparcialidade

A imparcialidade é a equidistância do juiz aos interesses das partes. Mesmo não estando

prevista expressamente na Constituição Federal, passou a fazer parte do ordenamento jurídico

brasileiro quando houve a internalização do Pacto de San Jose da Costa Rica, que prevê que o

direito a ser julgado por um juiz imparcial106.

De acordo com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH)107, a imparcialidade

se divide em subjetiva e objetiva. A primeira decorre do fato de o juiz não ter formado seu

convencimento previamente. Caso ele antecipe seu entendimento sobre o mérito, considera-se

que o juiz se torna parcial sob o ponto de vista objetivo porque se vinculou a uma das teses.

Cabe ao julgador fornecer elementos fáticos ao longo do processo que comprovem às partes

que ele manteve sua imparcialidade.

A imparcialidade subjetiva, por seu turno, deriva do vínculo da pessoa que exerce

jurisdição juiz com as partes de uma forma predominantemente pessoal e se encontra

106 Artigo 8, n. 1 - Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo

razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na

apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou

obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 107 Jurisprudência consolidada a partir do julgamento do caso “Piersack vs. Bélgica”.

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assegurada pelas regras do impedimento, suspeição e incompatibilidade. Assim, ela pode ser

presumida, devendo as partes demonstrar que há um vínculo pessoal.

4.1.2.7 Princípios relativos à liberdade pessoal

Essas garantias estão, essencialmente, no art. 7º da CADH. Torna-se imperioso tratar

desses princípios porque há uma grande desproporção na quantidade de prisões realizadas no

Brasil, o que tende a expressar um desprezo pela provisionalidade e pelos princípios que

protegem a liberdade pessoal. Essas prisões são, principalmente, de natureza preventiva ou

provisória. São medidas, portanto, não oriundas de ato motivado do juiz no curso de um

processo legal.

Dentre os direitos contidos na CADH e na CRFB, destacam-se os seguintes direitos: a

não ser submetido à prisão ilegal ou arbitrária 108; a ser informado de seus direitos 109; de ser

informado da acusação formulada contra a pessoa detida; à assistência de um advogado e da

presença da família; à identificação dos responsáveis por seu interrogatório 110; o direito de só

ser preso nas condições indicadas nas constituições e leis dos Estados111; do preso ser conduzido

sem demora à presença de uma autoridade autorizada a exercer funções judiciais 112; a um

julgamento em um prazo razoável ou ser posta em liberdade enquanto tramita o processo 113;

de requerer sua liberdade a um juiz 114 e, por fim, direito ao habeas corpus 115.

108 CRFB. Art 5º, LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária. 109 CRFB. Art 5º, LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados

imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada 110 CRFB. Art 5º, LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu

interrogatório policial 111 CADH. Art 7, 2 - Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições

previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas

promulgadas. 112 CADH. Art 7,5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra

autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável

ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a

garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. 113CRFB. Art 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do

processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 114 CADH. Art 7,6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a

fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão

ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser

privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a

legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela

própria pessoa ou por outra pessoa. 115 CRFB. Art 5º, LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de

sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder

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Convém mencionar, igualmente, que a prisão processual deve manter seu caráter

excepcional no processo penal. Sendo assim, responder a um processo criminal em liberdade

precisa ser a regra116, inclusive se o acusado tiver confessado o crime (a confissão não autoriza

o início do cumprimento de pena).

Além disso, a prisão é sempre jurisdicional, ou seja, só pode ser decretada por um juiz,

o que significa dizer que a prisão em flagrante não é cautelar. Tanto é assim que a prisão em

flagrante deve ser comunicada ao juiz em vinte e quatro horas para que seja convertida em

prisão preventiva. Ela só pode ser decretada se for realmente necessária e para o ser é

fundamental que exista motivo de manutenção do estado das coisas. Assim, a prisão provisória

só se justifica quando a liberdade do sujeito coloca em risco alguma coisa.

4.2 Direito Penal do Inimigo na Legislação Infraconstitucional

Nesse ponto, serão analisados alguns dispositivos legais pertencentes ao Código Penal,

ao Código de Processo Penal e às leis penais extravagantes, de forma a retratar a adoção do

Direito Penal de Inimigo.

4.2.1 Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40)

Dentre os inúmeros crimes tipificados no Código Penal brasileiro, faz-se imprescindível

tratar dos delitos que compõem o Título II do mesmo, intitulado “Dos crimes contra o

patrimônio” porque são os tipos penais que, reunidos, compõem junto com o tráfico de drogas

o maior número de condenações criminais no Brasil.

Essa parte do Código contém crimes contra o patrimônio privado, uma vez que os crimes

que violam a Administração Pública constam em outro capítulo. Além disso, a maioria dos

delitos contra o patrimônio privado são cometidos sem o uso de violência117, o que traduz que

116 CADH. Art 7, 1 - Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

CRFB. Art 5º, LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória,

com ou sem fiança. 117 Apenas os crimes contidos nos artigos 155 a 160 do Código Penal empregam violência ou grave ameaça no

cometimento.

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boa parte das pessoas que cumpre pena em regime fechado118 no país cometeram lesões que se

resumem à “subtração”, isto é, apropriação indevida de bens.

Sem desqualificar o bem jurídico propriedade, infere-se que não há razoabilidade nas

penas de tais crimes, posto que são muito severas para o dano que causam quando comparados

aos crimes contra a vida. A pena do roubo simples119 varia de quatro a dez anos e multa. A pena

do homicídio simples120, por sua vez, está entre seis a vinte anos. Assim, uma pessoa que rouba

pode cumprir o mesmo período temporal que alguém que matou outrem. É necessário perceber

que o bem jurídico vida deveria muito mais valorizado do que a propriedade.

Ademais, seguindo a natureza desses crimes, o dano de lesar o patrimônio público é

mais gravoso do que o patrimônio privado. Usurpar o erário significa um prejuízo a toda a

coletividade pois pode prejudicar a efetividade dos serviços que o Estado deve prover. Não há

índices significativos de pessoas presas por crimes como corrupção passiva, peculato, entre

outros121, porque esses crimes não são historicamente alvos do sistema penal.

Ainda que atualmente os crimes conhecidos como “colarinho branco” estejam em voga,

percebe-se a seletividade penal inclusive nesses casos, tanto na lei quanto no processo. Para

exemplificar, o crime de corrupção passiva possui pena mínima menor que a do roubo (dois

anos), o que corrobora com a lógica de penalizar determinadas condutas de certos agentes. Em

relação ao processo, os juízes super-heróis utilizam seu poderio para condenar membros da

classe política, mas tal comportamento não é geral, mas contra os políticos eleitos como

inimigo, em geral de esquerda. O estado de exceção aparece nesses momentos em que um juiz

se torna um soldado combatente aplaudido pela sociedade.

118 O regime inicial de cumprimento de pena desses crimes acaba sendo o fechado por conta da reincidência,

assim como a progressão de regime fica prejudicada. 119 CP. Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a

pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de

quatro a dez anos, e multa. 120 CP. Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. 121 Percentualmente, os dados do DEPEN não apontam para condenações que representem 1% do total de

sentenças condenatórias.

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4.2.2 Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06)

Vendida pelos Estados Unidos a partir dos anos 1990, a guerra às drogas começou a

ganhar força após a derrota ao inimigo anterior, o comunista, sendo necessária, portanto, para

justificar o aparato punitivo e manter a repressão elevada. Young122 assertivamente afirma que:

No crime, o governo ou os órgãos e instituições incumbidos de fazer respeitar as leis

são ativos na comparação: assim, temos ‘uma guerra contra as drogas’, dirigida por

um ‘czar das drogas’. A essencialização dos ‘barões da droga’ como epítome do mal

e dos ‘viciados’ como incorporação da degeneração permite à campanha concentrar-

se agressiva e justificadamente em seu alvo. Quem (...) deixaria de se mobilizar contra

um inimigo [tão] bom como este?

No Brasil, o cenário não é diferente. A Lei nº 11.343 institui, em seu artigo 33, o crime

de tráfico de drogas ilícitas, tipo responsável por preencher vultuoso contingente carcerário. No

caput do referido dispositivo, são descritas dezoito condutas distintas, ou seja, há a mesma pena

para dezoito ações porque, em tese, ofendem o bem jurídico tutelado com a mesma intensidade

(possuem o mesmo potencial lesivo). Para melhor analisar, enumeram-se os verbos:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,

expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,

prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que

gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500

(quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

As condutas de “adquirir”, “guardar”, “ter em depósito”, “transportar” e “trazer

consigo” também estão presentes no artigo 28 da mesma Lei, o qual regula o consumo pessoal

de entorpecentes, punível com penas alternativas. O problema é que quem define se a

quantidade apreendida se destina ao consumo ou ao tráfico é o juiz (§2º do artigo 28), ou seja,

depende da concepção arbitrária do julgador, não houve uma regulamentação oficial de

diferenciação, o que pode levar a análises equivocadas e até mesmo estereotipadas.

Outra questão a ser abordada é que tais condutas correspondem tanto a atos

preparatórios quanto de exaurimento, ainda mais se relacionadas com o artigo 35 da Lei, que

prevê o crime de associação para o tráfico, sem distinguir participação de coautoria.

Conclui-se que a mencionada legislação não quer tão somente combater a ação, mas

combater os atores destas. Contudo, observando o perfil dos indivíduos presos por tráfico de

122 YOUNG, Jock. Op. cit. p. 173.

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entorpecentes, nota-se uma profunda intenção de criminalizar a pobreza, uma vez que a maioria

dos condenados são negros, jovens e pobres, o que demonstra que o traficante varejista é o alvo

da política criminal do Estado. Os índices correspondentes às mulheres são ainda mais

expressivos porque metade das mulheres presas no Brasil foi com fulcro na Lei em comento.

4.2.3 Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° 8072/90)

Pretende-se utilizar a Lei dos Crimes Hediondos para demonstrar o compromisso do

Poder Legislativo na mesma empreitada punitivista, ainda que se reconheça a extensa

responsabilidade do Poder Judiciário no aprisionamento massivo de jovens negros no Brasil.

A edição da Lei nº 8.072/90 se derivou de um projeto de iniciativa popular incentivado

pela escritora Gloria Perez após o assassinato brutal de sua filha, o que demonstra que o

legislador, movido pelo apelo midiático, tem ânsia em contentar a sociedade punitiva123. Além

de incentivar o superencarceramento, a referida lei dificultou o cumprimento da pena, por ter

enrijecido os mecanismos punitivos.

Em primeiro lugar, atenta-se não para a escolha do legislador em classificar

expressamente determinado crime como sendo ou não hediondo, mas para aqueles que ele

considerou equiparados: tortura, tráfico de drogas e terrorismo. A equiparação se origina na

Constituição Federal (art. 5º, XLIII) que definiu quais crimes seriam inafiançáveis e

insuscetíveis de graça, anistia ou indulto. Foi incluído o crime de tortura pelo compromisso

assumido pelo Brasil na efetivação dos Direitos Humanos na conjuntura pós-ditadura militar.

Por outro lado, a equiparação dos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e o

terrorismo entram na lógica punitivista de caça ao inimigo. Isso porque os crimes hediondos,

além do já estipulado na Constituição, devem ter seu cumprimento de pena iniciado em regime

fechado e ter progressão de regime mais lenta124. São determinações que violam direitos

fundamentais como a individualização da pena e lesividade, tanto é assim que o STF entendeu

que definir o regime inicial de cumprimento é inconstitucional. Contudo, segundo Salo de

Carvalho, tal julgamento ocorreu mais de quinze anos depois do início de vigência da lei, o que

123 Salo de Carvalho define essa política como um “populismo punitivo”. 124 A progressão ocorre após cumprimento de 2/5 da pena se o réu for primário e de 3/5 se o réu for reincidente.

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comprova que o Judiciário também se faz presente no endurecimento da política criminal do

neoliberalismo.

4.2.4 Lei antiterrorismo (Lei nº 13.260/16)

A recente Lei nº 13.260/16 regulamenta o disposto no inciso XLIII do artigo 5º da

Constituição Federal e disciplina o crime de terrorismo. Pode-se concluir que a entrada em

vigor dessa legislação termina por traçar o perfil punitivista do Brasil. Em que pese a lei

apresentar uma definição de terrorismo, não o faz descrevendo um tipo penal, funcionaria

apenas como uma explicação. Vejamos:

Art. 2o O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos

neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia

e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou

generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade

pública.

O legislador não explica, todavia, o que seria “terror social ou generalizado” nem o

“perigo” em que a prática de tal crime pode resultar. Não fica claro, ainda, se o tipo seria de

perigo abstrato ou concreto. O problema se agrava ao ler o parágrafo 1º do artigo 2º, o artigo 5º

e o artigo 10:

§ 1o São atos de terrorismo:

I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos,

gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios

capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II – (VETADO);

III - (VETADO);

IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa

ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de

modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos,

estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios

esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos

essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares,

instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições

bancárias e sua rede de atendimento;

V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou

à violência.

Art. 5o Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de

consumar tal delito:

Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.

Art. 10. Mesmo antes de iniciada a execução do crime de terrorismo, na hipótese do

art. 5o desta Lei, aplicam-se as disposições do art. 15 do Decreto-Lei no 2.848, de 7

de dezembro de 1940 - Código Penal.

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Mais uma vez se observa a postura do legislador em minuciar diversas condutas para

uma única pena e, para afirmar de forma redundante e derradeira que o terrorista é o inimigo,

que os atos preparatórios de terrorismo são puníveis, característica presente em estados de

exceção. Ainda, diante de tantas condutas que já constituem execução do ato delituoso, não é

possível compreender quais atos seriam preparatórios do terrorismo. O tipo não se demonstra

de outra forma senão flagrantemente inconstitucional e o mais preocupante é que em 2017

houve oito condenações pelo crime no país125.

É imprescindível criticar, da mesma maneira, o artigo 12 da Lei nº 13260/16 que

estabelece que

O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do

delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em vinte e quatro horas, havendo

indícios suficientes de crime previsto nesta Lei, poderá decretar, no curso da

investigação ou da ação penal, medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do

investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam

instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos.

Dessa vez o sistema acusatório foi violado porque o juiz pode agir de ofício declarando

medidas durante a investigação criminal.

Por último, o parágrafo 2º da legislação dispõe que ela não se aplica

À conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos

sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por

propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou

apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais,

sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.

Apesar de não serem criminalizadas como crime de terrorismo, as manifestações

políticas recebem tratamento de inimigo das agências estatais repressoras similar ao terrorista.

Foi o que ocorreu nas manifestações de junho de 2013, pleito contra o aumento no valor das

passagens de ônibus. Motivo aparentemente singelo ensejou reações violentas do poder público.

Conforme leciona Antonio Santoro126:

125 Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/04/pela-primeira-vez-justica-brasileira-

condena-reus-pela-nova-lei-de-terrorismo/ 126 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro. Uso do Sistema Penal do Inimigo para controle das

manifestações de 2013 In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 29, n. 2, p. 385-418, jul/dez

2013. 28p.

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Muitos movimentos foram realizados pelos manifestantes no sentido de demonstrar

que o objetivo não era o conflito, mas a gestão da violência pelo governo do Estado

do Rio de Janeiro já havia criado a “guerra ao inimigo” e confiscou para si o conflito

que a priori era com o município (pleito pela redução das tarifas do transporte público)

e o governo federal (pleitos contra corrupção, contra a falta de representatividade

popular na democracia representativa em crise institucional, contra os gastos públicos

desmesurados e em áreas alheias ao interesse primordial da população, contra as

escusas relações entre grandes corporações privadas parasitárias do poder público,

que participam diretamente com verbas para campanhas políticas, entre outros),

demonstrando que estava em jogo, na realidade, a própria estrutura de manutenção de

poder.

Na época, a atuação do Governador do Rio de Janeiro foi no sentido de criminalizar os

“vândalos”, “arruaceiros”, “alcunha indefinida, que permite seja aplicada contra qualquer

manifestante e, portanto, serve ao propósito de escolher não apenas politicamente aquele a

quem a ordem jurídica deixará de render sua proteção, mas sobretudo permite uma escolha

circunstanciada e arbitrária127”. As mesmas configurações voltaram a aparecer em

manifestações seguintes, independentemente do ente federativo contra quem se protestava,

utilizando o subterfúgio de combater os “destruidores de patrimônio público”.

4.2.4 Código de Processo Penal

Considerando que o presente trabalho se refere ao estudo da pena de prisão, pretende-

se tratar da medida cautelar de prisão preventiva nesta seção. Prevista no artigo 313 do Código

de Processo Penal, a prisão preventiva é admissível, ou seja, crimes que a lei admite que o juiz

aprecie os requisitos para sua decretação para (1) crimes dolosos apenados com pena superior

a 4 anos; (2) crimes dolosos para o sujeito que já tenha uma condenação em outro crime doloso

anterior transitada em julgado; e (3) crimes de violência doméstica contra mulheres, crianças,

idosos, deficiente físico128. Uma vez verificada a sua admissibilidade, são analisados os seus

requisitos (faz-se uma leitura invertida dos arts 313 e 312 do CPP).

Os requisitos são a prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (fumus

comissi delicti), a garantia da ordem pública, (ou) da ordem econômica, (ou) conveniência da

instrução criminal, (ou) para assegurar a aplicação da lei penal (periculum libertatis). Mesmo

que preenchidos os requisitos, a prisão pode não ser decretada, porque pode haver outra medida

cautelar diversa da prisão que assegure um desses requisitos.

127 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro. Op. cit. p. 29. 128 Cabe mencionar que não há prisão preventiva nos casos em que a pena do crime nunca será privativa de

liberdade.

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Sendo exceção à regra da liberdade, a prisão processual preventiva (e a prisão em

flagrante convertida) precisa ser demonstrada como única alternativa cabível, inclusive dentre

as outras medidas cautelares. Entretanto, mesmo que a sua decretação precise estar

fundamentada pelo juiz, demonstrar a necessidade da medida perpassa por aspectos muito

subjetivos, que acabam por ser muito discricionárias e até demonstram julgamentos

previamente concebidos.

Não é por acaso que quase metade dos presos no Brasil seja oriunda dessa medida.

Ademais, por não ter um prazo específico, o indiciado pode ficar preso preventivamente até o

trânsito em julgado da sentença, mesmo que esta seja absolutória129.

4.2.5 Execução da Pena e Dados Carcerários

A nova ordem advinda da Constituição de 1988, mesmo estabelecendo princípios que

restringem o poder de punir, não evitou que novos tipos penais fossem criados e que o modo

de execução das penas fosse abrandado. Tais fatores, de fato, corroboram com os índices de

encarceramento.

Segundo dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) 130, ao final do ano

de 2014, a população carcerária do Brasil contava com um total de 622.202 presos, o que

significa uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes131. Ademais, 40% da

soma de presos é composta de prisões provisórias (250 mil pessoas aproximadamente). Esse

número de pessoas aguardando julgamento denota que no país se prende para processar, em vez

do contrário, processar para prender (caso necessário).

Para demonstrar que o Brasil criminaliza a sua juventude negra e pobre, o relatório de

2014 faz uma avaliação socioeconômica dos detentos: 60% são negros ou pardos, enquanto

brancos totalizam 30%. A faixa etária de 18 até 29 anos de idade reúne 55% da população no

129 As audiências de custódia têm contribuído para que as prisões em flagrante não se convertam necessariamente

em preventiva, mas o cenário dos presídios brasileiros repletos de pessoas sem julgamento ainda é muito

gritante. 130 DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional. INFOPEN - Dezembro de 2014: Levantamento Nacional de

Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. 131 Em 2004, o total era de 336.358, o que demonstra que a população prisional brasileira dobrou em 10 anos.

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sistema prisional e o grau de escolaridade da maioria (75%) é até o ensino fundamental

completo.

Atenta-se para o fato de o racismo, herança da realidade escravagista brasileira,

contaminar a prática e o discurso penal. Segundo Salo de Carvalho132, “não por outra razão é a

juventude negra a vítima preferencial da seletividade criminalizante das agências penais”. Tal

conjuntura não aparece, por óbvio, explícita na legislação, mas é possível perceber a partir dos

dados de encarceramento, “exteriorizando uma espécie de naturalização de práticas racistas

pelos poderes constituídos que se reflete no direcionamento das instituições punitivas”.

Considerando os tipos penais, os dados mostram que 46% das pessoas sentenciadas ao

cárcere cometeram crimes contra o patrimônio e 28% das sentenças versam sobre os crimes da

Lei de Drogas, ou seja, quase 75% da população encarcerada respondeu por crimes não

violentos.

Em relação à situação dos estabelecimentos prisionais, os dados são críticos em

demonstrar que o disposto na LEP (Lei de Execução Penal) não é aplicado. Prova disso é que

o Brasil já foi denunciado para a OEA (Organização dos Estados Americanos) e responde

processos na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Em 2016, uma medida

cautelar foi protocolada na CIDH pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

requerendo providências para garantir a vida e a integridade pessoal das pessoas privadas de

liberdade do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. O diagnóstico não era surpreendente:

superlotação; deficiências na infraestrutura; falta de acesso à água, ventilação e iluminação

adequadas; carência de tratamento médicos etc.

Para concluir, o direito brasileiro, apesar do ideário liberal em sua fundamentação,

mantem políticas criminais baseadas num punitivismo exacerbado. Tanto é assim que o modelo

disciplinar de isolamento “cumpre funções (reais) distintas do discurso oficial que o legitima”.

132 CARVALHO, Salo de. O ENCARCERAMENTO SELETIVO DA JUVENTUDE NEGRA

BRASILEIRA: A DECISIVA CONTRIBUIÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. Revista da Faculdade de Direito

da Ufmg, Belo Horizonte, n. 67, p.623-652, 27 jun. 2016. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. 629 p.

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5 CONCLUSÃO

O presente trabalho acadêmico teve como finalidade analisar, sob a ótica do garantismo

penal, as nuances do poder de punir do Estado brasileiro enunciadas por teorias que tentam

legitimar o autoritarismo penal.

O contexto do estudo foi delineado a partir da análise do estado de exceção, entendendo

que o mesmo pode se aliar a outras medidas que não necessariamente penais, mas que a sua

aproximação com o punitivismo é inevitável. Assim, tomando como ponto de partida o Estado

nazista, cuja ordem jurídica excepcional percebeu-se legitimada por determinações do partido

nazifascista, não se apresentando desde logo como democrática.

Diante disso, ao examinar o Estado brasileiro, atestou-se outro formato para o estado de

exceção. No caso do Brasil, nota-se uma eliminação de direitos pelas próprias instituições

democráticas. Seriam leis que possuem uma aparência de democracia, uma vez que são

chanceladas pelos três Poderes, mas que se ocupam em mitigar direitos fundamentais. Por se

manifestar internamente, isto é, dentro do próprio sistema legal, foi constatado que não se

verifica o caráter emergencial no modelo de exceção brasileiro, pois são medidas permanentes

que não atuam com a temporariedade, aspecto mais relevante do estado de exceção.

Sob o ponto de vista penal, essa possibilidade contribuiu para a construção de uma

política criminal segregadora que elege um inimigo a ser combatido pelo Estado. Ou seja, é

uma ameaça da qual o Estado precisa se defender, mas que ele mesmo a criou.

A partir dessa perspectiva, o estudo do Direito Penal do Inimigo se fez necessário, por

ser uma tese que sintetiza o entendimento de que alguns indivíduos mereceriam tratamento

legal diferenciado por oferecem maior perigo à sociedade. Logo, a repressão estatal restaria

justificada pelo pretexto de defender aqueles que o Estado visa proteger.

Como visto, a referida teoria defende o direito penal de autor no combate ao inimigo,

além de propor a aplicação de normas mais severas e desproporcionais, com a derradeira

eliminação dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sobretudo no processo penal. A

consequência imediata da adoção dessa teoria seria o esvaziamento do Estado Constitucional

de Direito.

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Embora tenham sido levantados alguns aspectos jurídicos atinentes à Teoria do Estado,

buscou-se relacionar as práticas punitivistas com o Estado pseudodemocrático traçando os

efeitos do poder punitivo exacerbado, o qual apela ao Direito Penal como forma principal de

resolução de conflitos.

Dessa maneira, tornou-se imprescindível o estudo do punir, tanto dos seus discursos

legitimadores, quanto das formas que foi adquirindo ao longo dos séculos. Conforme

evidenciado durante o trabalho, a sociedade punitiva reuniu como maior expressão repressiva

a punição através da pena. Tal forma de punir adquiriu diferentes contornos, passando por

castigos físicos, pena de morte, indenização, até chegar, a partir do século XIX, à pena de prisão

como modelo adotado até hoje para a segregação final dos excluídos socialmente.

Cabe salientar que, ainda que o encarceramento seja uma medida que afeta

primordialmente a liberdade do condenado, parece correto concluir que, na verdade, a pena de

prisão poderia ser uma reunião dos outros meios punitivos. A prisão marca o condenado, pois

o egresso do sistema criminal tende a viver com o estigma de ter tido uma condenação penal.

Ademais, as prisões brasileiras oferecem condições físicas e sanitárias indignas para abrigar

indivíduos que ficarão ali por anos.

Além disso, segregar ao cárcere, de acordo com a lei brasileira, está endereçado a

determinadas pessoas, como foi visto no último capítulo deste trabalho. Leis como a dos Crimes

Hediondos, de Drogas e Antiterrorismo se mostram como ferramentas da cultura da emergência

perene brasileira. Também os Códigos Penal e Processual Penal cumprem esse papel de

privilegiar o Direito Penal do “antes”.

Em síntese, a lógica da seletividade penal em detrimento de direitos humanos vai de

encontro com o que se concebe como Estado Constitucional de Direito, uma vez que não pode

haver sistema penal alheio a garantias fundamentais dentro de um arranjo verdadeiramente

democrático. Tornar-se necessário estabelecer, portanto, que o Estado possui o poder de punir

que, ainda que se demonstre com tamanha fúria, não constitui um dever. Sendo uma faculdade,

não deve ser desmensurado e precisa atender a limites estabelecidos.

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