CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

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2021 Renato Brasileiro de Lima COMENTADO Mais de 200 Súmulas Criminais do STF e STJ comentadas 6 ª Edição revista atualizada ampliada CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

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2021

Renato Brasileiro de Lima

COMENTADOMais de 200 Súmulas Criminais do STF e STJ comentadas

6ªEdição

revistaatualizadaampliada

CÓDIGO DEPROCESSO

PENAL

Código de ProCesso Penal

Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, decreta a seguinte Lei:

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LIVRO I

DO PROCESSO EM GERAL1-2

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art . 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código,3 ressalvados:4-6

I - os tratados, as convenções e regras de direito internacional;7

II - as prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos mi-nistros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade (Constituição, arts. 86, 89, §2º, e 100);8

III - os processos da competência da Justiça Militar;9

IV - os processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, nº 17);10

V - os processos por crimes de imprensa.11 (vide ADPF n. 130)

Parágrafo único. Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nos. IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dis-puserem de modo diverso.12

1. Processo penal e o Estado Democráticode Direito: quando o Estado, por intermédiodo Poder Legislativo, elabora as leis penais, co-minando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito depunir os infratores num plano abstrato e, parao particular, o dever de se abster de praticar ainfração penal. No entanto, a partir do momen-to em que alguém pratica a conduta delituosaprevista no tipo penal, este direito de punirdesce do plano abstrato e se transforma no juspuniendi in concreto. O Estado, que até entãotinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir o

suposto autor do fato delituoso. Surge, então, a pretensão punitiva, a ser compreendida como o poder do Estado de exigir de quem cometeum delito a submissão à sanção penal. Atravésda pretensão punitiva, o Estado procura tornar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor dodelito, que está obrigado a sujeitar-se à sançãopenal, o cumprimento dessa obrigação, queconsiste em sofrer as consequências do crimee se concretiza no dever de abster-se ele dequalquer resistência contra os órgãos estatais aque cumpre executar a pena. Todavia, esta pre-tensão punitiva não pode ser voluntariamenteresolvida sem um processo, não podendo nem

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o Estado impor a sanção penal, nem o infratorsujeitar-se à pena. Em outras palavras, essapretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Estado ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção semque haja um processo regular, assegurando-se,assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei,e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais(nulla poena sine judicio). Aliás, até mesmonas hipóteses de infrações de menor potencialofensivo, em que se admite a transação penal,com a imediata aplicação de penas restritivasde direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Utiliza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional para a resolução da causa, sendo admitida a solução consensual em infra-ções de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principalmente, do autor do fatoque pretende evitar os dissabores do processoe o risco da condenação. É daí que sobressai aimportância do processo penal, pois funcionacomo instrumento do qual se vale o Estadopara a imposição de sanção penal ao possí-vel autor do fato delituoso. Mas o Estado nãopode punir de qualquer maneira. Com efeito,considerando-se que, da aplicação do direitopenal pode resultar a privação da liberdade delocomoção do agente, entre outras penas, nãose pode descurar do necessário e indispensável respeito a direitos e liberdades individuais quetão caro custaram para serem reconhecidos eque, em verdade, condicionam a legitimidadeda atuação do próprio aparato estatal em umEstado Democrático de Direito. Na medidaem que a liberdade de locomoção do cidadãofunciona como um dos dogmas do Estado deDireito, é intuitivo que a própria ConstituiçãoFederal estabeleça regras de observância obriga-tória em um processo penal. É a boa aplicação(ou não) desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir acivilização da barbárie. De fato, como adverteNorberto Bobbio, a proteção do cidadão noâmbito dos processos estatais é justamente oque diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Na dicção do autor ((Asideologias e o poder em crise. Tradução de JoãoFerreira; revisão técnica Gilson César Cardoso.

4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 96-97), “a diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, en-tre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem dei-xar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de di-reito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A consequência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”. É esse, pois, o grande dilema do processo penal: de um lado,o necessário e indispensável respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de umsistema criminal mais operante e eficiente. Nalinha do ensinamento de Antônio Scarance Fer-nandes, o vocábulo eficiência aqui empregado “é usado de forma ampla, sendo afastada, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número decondenações. Será eficiente o procedimentoque, em tempo razoável, permita atingir umresultado justo, seja possibilitando aos órgãosda persecução penal agir para fazer atuar odireito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal”. (Sigilo no processopenal: eficiência e garantismo. CoordenaçãoAntônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.10). Há de se buscar, portanto, um ponto deequilíbrio entre a exigência de se assegurar aoinvestigado e ao acusado a aplicação das garan-tias fundamentais do devido processo legal e anecessidade de maior efetividade do sistemapersecutório para a segurança da coletividade.É dentro desse dilema existencial do processopenal – efetividade da coerção penal versusobservância dos direitos fundamentais – que se buscará, ao longo da presente obra, um pontode equilíbrio no estudo do processo penal, pois

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somente assim serão evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem.2. Sistemas processuais penais: historica-mente, sempre existiram dois sistemas ou mo-delos processuais, quais sejam, o acusatório eo inquisitório. Também houve uma tentativa de fundir os dois sistemas, dando origem ao sistema misto. Nos dias de hoje, não existem sistemas acusatórios ou inquisitórios “puros”. Na verdade, ora o processo penal é predominante-mente acusatório, ora apresenta características peculiares dos sistemas inquisitoriais. Quandoo nosso Código de Processo Penal entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1942, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, carac-terizada pelo inquérito policial, era inquisitório. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, de-fender e julgar (art. 129, I), estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princí-pio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório. É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem constitucional. Dito de outro modo, não se pode admitir que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Código de Processo Penal. Pelo contrário. São as leis que devem ser interpretadas à luz dos direitos, garantias e princípios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988.2.1. Sistema inquisitório: adotado pelo Di-reito canônico a partir do século XIII, o siste-ma inquisitório posteriormente se propagou por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Tem como característica principal o fato de as fun-ções de acusar, defender e julgar encontrarem--se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor. Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, in-variavelmente, sua imparcialidade. De fato, há

uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao re-sultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Em virtude dessa concentração de poderes nas mãos do juiz, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicá-vel. No processo inquisitório, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse. Trabalha o sistema inquisitório, assim, com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma com-pleta e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes ins-trutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso. No sistema inquisitório, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca da verdade material, admitia--se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas for-mas não lhe eram essenciais. Pode se concebero processo inquisitivo com as formas orais e pú-blicas. Como se percebe, há uma nítida conexão entre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, aí chamado de inqui-sidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo. Em síntese, podemos afirmar que se trata de um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concreti-

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zar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contraditório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direi-tos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução proces-sual. Por essas características, fica evidente que o processo inquisitório é incompatível com osdireitos e garantias individuais, violando osmais elementares princípios processuais penais. Sem a presença de um julgador equidistantedas partes, não há falar em imparcialidade, doque resulta evidente violação à ConstituiçãoFederal e à própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8º, n. 1).2.2. Sistema acusatório: de maneira distinta, o sistema acusatório caracteriza-se pela presen-ça de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambasse sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui, há uma separação das fun-ções de acusar, defender e julgar. O processocaracteriza-se, assim, como legítimo actumtrium personarum. Nesse sentido: PRADO,Geraldo. Sistema acusatório: a conformidadeconstitucional das leis processuais penais. 3ª ed.Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p.114. Historicamente, o processo acusatóriotem como suas características a oralidade e apublicidade, nele se aplicando o princípio dapresunção de inocência. Logo, a regra era queo acusado permanecesse solto durante o pro-cesso. Não obstante, em várias fases do DireitoRomano, o sistema acusatório foi escrito e sigi-loso. Quanto à iniciativa probatória, o juiz nãoera dotado do poder de determinar de ofício aprodução de provas, já que estas deveriam serfornecidas pelas partes, prevalecendo o examedireto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se umaposição de passividade do juiz quanto à recons-trução dos fatos. Com o objetivo de preservarsua imparcialidade, o magistrado deve deixar a atividade probatória para as partes. Ainda quese admita que o juiz tenha poderes instrutórios, essa iniciativa deve ser possível apenas no curso do processo, em caráter excepcional, como

atividade subsidiária da atuação das partes. No sistema acusatório, a gestão das provas é função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversa-mente do sistema inquisitório, o sistema acu-satório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhecimento dos direitos funda-mentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo. Segundo Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518), são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução. O sistema acusa-tório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entra em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro. Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de dedu-zir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, por-tanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais e do Ministério Público. Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitório do acusatório

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é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do con-traditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova. Para mais detalhes acerca do sistema acusatório, remetemos o leitor aos comentários ao art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19.2.3. Sistema misto ou francês: após se dis-seminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitório passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o denominado sistema misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction Crimi-nelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês. É chamado de sistema misto porquanto o processo se desdobra em duas fases distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitório, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o ór-gão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade.3. Lei processual penal no espaço (princí-pio da territorialidade): enquanto à lei penal aplica-se o princípio da territorialidade (CP, art. 5º) e da extraterritorialidade incondicionada e condicionada (CP, art. 7º), o Código de Proces-so Penal adota o princípio da territorialidade ou da lex fori. E isso por um motivo óbvio: a atividade jurisdicional é um dos aspectos da soberania nacional, logo, não pode ser exercida além das fronteiras do respectivo Estado. Assim, mesmo que um ato processual tenha que ser praticado no exterior, v.g., citação, intimação, interrogatório, oitiva de testemunha, etc., a lei processual penal a ser aplicada é a do país onde tais atos venham a ser realizados. Na mesma linha, aplica-se a lei processual brasileira aos atos referentes às relações jurisdicionais com au-

toridades estrangeiras que devam ser praticados em nosso país, tais como os de cumprimento de carta rogatória (CPP, arts. 783 e seguintes), homologação de sentença estrangeira (CPP, arts. 787 e seguintes), etc. Todavia, há situações em que a lei processual penal de um Estado pode ser aplicada fora de seus limites territoriais: a) aplicação da lei processual penal de um Estado em território nullius; b) quando houver autori-zação do Estado onde deva ser praticado o ato processual; c) em caso de guerra, em território ocupado. Confirmando a adoção do princípio da territorialidade, o art. 1º do CPP dispõe que o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, pelo Código de Processo Penal, res-salvados: I - os tratados, as convenções e regras de direito internacional; II - as prerrogativasconstitucionais do Presidente da República, dos ministros de Estado, nos crimes conexos comos do Presidente da República, e dos ministrosdo Supremo Tribunal Federal, nos crimes deresponsabilidade; III - os processos da compe-tência da Justiça Militar; IV - os processos dacompetência do tribunal especial; V - os proces-sos por crimes de imprensa. Portanto, como sepercebe, a regra é que todo e qualquer processo penal que surgir no território nacional deva ser solucionado consoante as regras do Código deProcesso Penal (locus regit actum). Há, todavia,exceções.4. Tribunal Penal Internacional: além dasressalvas listadas nos incisos do art. 1º do CPP,especial atenção também deve ser dispensadaao art. 5º, §4º, da Constituição Federal, queprevê que “o Brasil se submete à jurisdição deTribunal Penal Internacional a cuja criação te-nha manifestado adesão”. Tem-se aí mais umahipótese de não aplicação da lei processualpenal brasileira aos crimes praticados no país,nas restritas situações em que o Estado brasi-leiro reconhecer a necessidade do exercício dajurisdição penal internacional. Com as inúme-ras violações de direitos humanos ocorridas apartir das primeiras décadas do século XX,notadamente com as duas grandes guerrasmundiais, surgiu a ideia de um ius puniendi emnível global, buscando a instituição de umamoderna Justiça Penal Internacional. Comoanota Mazzuoli (O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2009, p. 20-21), essa

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expressão Justiça Penal Internacional pode ser compreendida como “o aparato jurídico e o conjunto de normas instituídas pelo Direito Internacional, voltados à persecução e à repres-são dos crimes perpetrados contra o próprio Direito Internacional, cuja ilicitude está previs-ta nas normas ou princípios do ordenamento jurídico internacional e cuja gravidade é de tal ordem e de tal dimensão, em decorrência do horror e da barbárie que determinam ou pela vastidão do perigo que provocam no mundo, que passam a interessar a toda a sociedade dos Estados concomitantemente”. Um sensível in-cremento ao movimento de internacionalização e proteção dos direitos humanos teve início com os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio. Por meio do Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945, e em evidente reação às barbáries do Holocausto, foi criado pelas nações vencedoras o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, com o objetivo de processar e julgar os crimi-nosos de guerra do Eixo europeu, acusados decolaboração direta com o regime nazista. Tam-bém foi criado o Tribunal Militar Internacional de Tóquio, com a finalidade precípua de julgaros crimes de guerra e os crimes contra a huma-nidade perpetrados pelas autoridades políticase militares do Japão Imperial. Algum tempodepois, em virtude de deliberações do Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois tribunais internacionais de caráter não-permanente tam-bém foram criados: o primeiro, com sede naHolanda, para julgar as barbáries cometidos no território da antiga Iugoslávia; o segundo, se-diado na Tanzânia, para processar e julgar asviolações de direitos humanos perpetradas emRuanda. Várias críticas recaíram sobre essestribunais, dentre elas a de que tais tribunaisteriam sido criados por resoluções do Conselho de Segurança da ONU, e não por tratados in-ternacionais multilaterais, como se deu com oTribunal Penal Internacional. Outra crítica erano sentido de que a criação desses tribunais após a prática dos fatos delituosos (ex post facto), com o objetivo único e exclusivo de julgá-los, confi-guraria flagrante violação ao princípio do juiznatural. Surgiu daí a necessidade de criação deuma instância penal internacional, de caráterpermanente e imparcial, instituída para proces-sar e julgar os acusados pela prática dos crimes mais graves que afetassem a comunidade inter-nacional no seu conjunto. Assim é que, em julho

de 1998, foi aprovado na Conferência Diplomá-tica de Plenipotenciários das Nações Unidas o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Interna-cional, constituindo um tribunal internacional com jurisdição criminal permanente sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, dotado de personalidade jurídica própria, com sede na Haia (Holanda). No âmbito internacional, o Tribunal Penal Internacional entrou em vigor em data de 1º de julho de 2002, data esta que corresponde ao primeiro dia do mês seguinte ao termo do período de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratifi-cação, nos termos do art. 126, §1º, do Estatuto do Tribunal. O governo brasileiro assinou o tratado internacional do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional em 7 de fevereiro de 2000, sendo o mesmo posteriormente apro-vado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002, e promulgado pelo Presidente da Repú-blica através do Decreto n. 4.388, de 25 de se-tembro de 2002. A carta de ratificação brasilei-ra foi depositada em data de 20 de junho de 2002, razão pela qual, em virtude da regra constante do art. 126, n. 2, do Dec. 4.388/2002, tem-se que o Estatuto de Roma entrou em vigor no Brasil em data de 1º de setembro de 2002. Em 8 de dezembro de 2004, entrou em vigor a Emenda Constitucional n. 45, reconhecendo formalmente a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, por intermédio do acréscimo do §4º ao art. 5º da Magna Carta, segundo o qualO Brasil se submete à jurisdição de TribunalPenal Internacional a cuja criação tenha mani-festado adesão. Como observa Mazzuoli (op. cit.p. 45), a jurisdição do Tribunal não é estrangei-ra, mas sim internacional, podendo afetar todo e qualquer Estado-parte da Organização dasNações Unidas. Não se confunde com a chama-da jurisdição universal, que consiste na possi-bilidade de o Poder Judiciário de determinadopaís julgar crimes de guerra ou crimes contra ahumanidade cometidos em territórios alheios,tal qual ocorre nos casos de extraterritorialida-de da lei penal brasileira admitidos expressa-mente pelo art. 7º, incisos I e II, do CódigoPenal. Como se percebe pela leitura do art. 1ºdo Decreto n. 4.388/02, o Tribunal Penal Inter-nacional será complementar às jurisdições penais nacionais, sendo chamado a intervir somente se

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e quando a justiça repressiva interna não funcio-nar. Adotou-se, pois, o denominado princípio da complementariedade. Daí a observação de Flávia Piovesan (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 223-224), que, após acentuar a responsabilidade primária dos Estados nacio-nais quanto ao julgamento de transgressões aos direitos humanos, assinala as condições em que se legitima o exercício, sempre em caráter sub-sidiário, da jurisdição pelo Tribunal Penal In-ternacional: “Surge o Tribunal Penal Interna-cional como aparato complementar às cortes nacionais, com o objetivo de assegurar o fim da impunidade para os mais graves crimes inter-nacionais, considerando que, por vezes, na ocorrência de tais crimes, as instituições nacio-nais se mostram falhas ou omissas na realização da justiça. Afirma-se, desse modo, a responsa-bilidade primária do Estado com relação ao julgamento de violações de direitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsa-bilidade subsidiária. Vale dizer, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e comple-mentar à do Estado, ficando, pois, condiciona-da à incapacidade ou à omissão do sistema ju-dicial interno. O Estado tem, assim, o dever de exercer sua jurisdição penal contra os respon-sáveis por crimes internacionais, tendo a comu-nidade internacional a responsabilidade subsi-diária. Como enuncia o art. 1º do Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicio-nada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. Dessa forma, o Estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade e do prin-cípio da cooperação.” Esse caráter complemen-tar do Tribunal Penal Internacional pode ser extraído do art. 17 do Estatuto. Segundo o re-ferido dispositivo (art. 17, §1º), o Tribunal de-cidirá sobre a não admissibilidade de um caso se: a) o caso for objeto de inquérito ou de pro-cedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade parao fazer; b) o caso tiver sido objeto de inquéritopor um Estado com jurisdição sobre ele e talEstado tenha decidido não dar seguimento aoprocedimento criminal contra a pessoa em

causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer; c) a pessoa em causa já tiver sido julga-da pela conduta a que se refere a denúncia, enão puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3º do artigo 20; d) ocaso não for suficientemente grave para justifi-car a ulterior intervenção do Tribunal. Poroutro lado, segundo o art. 17, §2º, do Estatuto,a fim de determinar se há ou não vontade deagir num determinado caso, o Tribunal, tendoem consideração as garantias de um processoequitativo reconhecidas pelo direito internacio-nal, verificará a existência de uma ou mais dasseguintes circunstâncias: a) o processo ter sidoinstaurado ou estar pendente ou a decisão tersido proferida no Estado com o propósito desubtrair a pessoa em causa à sua responsabili-dade criminal por crimes da competência doTribunal, nos termos do disposto no artigo 5º;b) ter havido demora injustificada no processa-mento, a qual, dadas as circunstâncias, se mos-tra incompatível com a intenção de fazer res-ponder a pessoa em causa perante a justiça; c)o processo não ter sido ou não estar sendoconduzido de maneira independente ou impar-cial, e ter estado ou estar sendo conduzido deuma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoaem causa perante a justiça. Por fim, de acordocom o art. 17, §3º, do Estatuto, a fim de deter-minar se há incapacidade de agir num determi-nado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva ad-ministração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer compa-recer o acusado, de reunir os meios de prova edepoimentos necessários ou não estará, poroutros motivos, em condições de concluir oprocesso. Quanto à competência do TPI, dispõe o art. 5º do Estatuto que está restrita aos crimes mais graves, que afetam a comunidade interna-cional no seu conjunto. Detém o Tribunal com-petência para o processo e julgamento dos se-guintes crimes: a) crime de genocídio; b) crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d)crime de agressão. Registre-se que o Tribunalsomente é dotado de competência em relaçãoaos crimes cometidos após a sua instituição, ou seja, depois de 1º de julho de 2002, data em que seu Estatuto entrou em vigor internacional.

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Ademais, nos termos de seu art. 11, §2º, se um estado se tornar parte depois da entrada em vigor do Estatuto, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação a crimes come-tidos depois da entrada em vigor do Estatuto relativamente a esse Estado, a menos que este tenha feito uma declaração específica em sen-tido contrário. Desde a vigência do Estatuto de Roma para o Brasil em 1º de setembro de 2002, faz-se necessária a regulamentação dos tipos penais criados pelo Estatuto de Roma e ainda não previstos em nosso ordenamento jurídico interno. De fato, com exceção do crime de ge-nocídio, já tipificado em lei própria (Lei n. 2.889/56), os crimes de guerra, contra a huma-nidade e de agressão ainda não estão previstos em nossa legislação e demandam regulamenta-ção legal. Na visão da 3ª Seção do STJ (REsp 1.798.903/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 25/09/2019, DJe 30/10/2019), é necessária a edição de lei em sentido formal para a tipificação do crime contra a humani-dade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo em se tratando de Tratado internalizado, sob pena de violação ao princípio da legalidade (CF, art. 5º, XXXIX). Por mais que o conceito de crime contra a humanidade encontre-se positivado no art. 7º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, internalizado por meio do Decreto n. 4.388/2002, ainda não há, no Brasil, lei que tipifique os crimes contra a humanidade, embora esteja em tramitação o Projeto de Lei n. 4.038/2008. Tendo-se pre-sente a perspectiva da autoria dos crimes sub-metidos à competência jurisdicional do Tribu-nal Penal Internacional, convém destacar que o Estatuto de Roma submete à jurisdição dessaAlta Corte judiciária qualquer pessoa que hajaincidido na prática de crimes de genocídio, deguerra, contra a humanidade ou de agressão,independentemente de sua qualidade oficial(Art. 27). Ao assim dispor, o Estatuto de Romaproclama a absoluta irrelevância da qualidadeoficial do autor dos crimes submetidos, porreferida convenção multilateral, à esfera de ju-risdição e competência do Tribunal Penal In-ternacional. Isso significa, portanto, em face do que estabelece o Estatuto de Roma em seu Ar-tigo 27, que a condição política de Chefe deEstado não se qualifica como causa excludenteda responsabilidade penal do agente nem fator

que legitime a redução da pena cominada aos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão. Nesse ponto, enquanto parte da doutrina sustenta a tese do caráter absoluto da soberania estatal, parte considerável da doutrina prefere conferir dimensão relativa à noção de soberania do Estado, justificando a cláusula convencional do Estatuto (art. 27) a partir da ideia de prevalência dos direitos hu-manos, positivada no art. 4º, II, da Magna Carta. Quanto à discussão, Carlos Eduardo Adriano Japiassú (O Direito Penal Internacional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2009, p. 115-116) pondera que “os crimes de competênciado Tribunal Penal Internacional, de maneirageral, são cometidos por indivíduos que exer-cem determinada função estatal. Desta forma,a regra do Artigo 27 do Estatuto de Romabusca evitar que aqueles se utilizem dos privi-légios e das imunidades que lhes são conferidos pelos ordenamentos internos como escudo para impedir a responsabilização em face dos crimes internacionais. Por fim, entende-se que o prin-cípio da prevalência dos direitos humanos,insculpido no Artigo 4º, II, da ConstituiçãoFederal, ‘permite implicitamente que haja res-trições às imunidades usualmente concedidasa funcionários no exercício de sua atividadefuncional em casos de violações a direitos hu-manos, não colidindo, por conseguinte, com oartigo 27 do Estatuto de Roma’.” Do ponto devista pessoal, a jurisdição do Tribunal PenalInternacional não alcança pessoas menores de18 (dezoito) anos (vide art. 26 do Estatuto). Por fim, ressalte-se que o pedido de entrega (‘sur-render’) não se confunde com a demanda ex-tradicional. Com efeito, o próprio Estatuto deRoma estabelece, em seu texto, clara distinçãoentre os referidos institutos – o da entrega(“surrender”/”remise”) e o da extradição -, fa-zendo-o, de modo preciso, nos seguintes ter-mos: “Artigo 102 Termos Usados Para os finsdo presente Estatuto: a) Por ‘entrega’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado aoTribunal, nos termos do presente Estatuto. b)Por ‘extradição’, entende-se a entrega de umapessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.” Vê-se, daí, que, embora aentrega de determinada pessoa constitua resul-tado comum a ambos os institutos, considerado o contexto da cooperação internacional na re-

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pressão aos delitos, há, dentre outros, um ele-mento de relevo que os diferencia no plano conceitual, eis que a extradição somente pode ter por autor um Estado soberano, e não orga-nismos internacionais, ainda que revestidos de personalidade jurídica de direito internacional público, como o Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma, Artigo 4º, n. 1).5. Crimes eleitorais: apesar de os incisos doart. 1º do Código de Processo Penal não fazerem expressa referência aos processos criminais dacompetência da Justiça Eleitoral, isso se justifica pelo fato de, à época da elaboração do CPP, estar em vigor a Constituição de 1937, que não tratavada Justiça Eleitoral, e muito menos dos crimeseleitorais, já que, vigia, então, um regime de ex-ceção. Todavia, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 121 que Lei complementardisporá sobre a organização e competênciados tribunais, dos juízes de direito e das juntaseleitorais. Destarte, embora editado como lei or-dinária, o Código Eleitoral (Lei n. 4.737/65) foi recepcionado pela Constituição Federal comoLei complementar, mas tão somente no quetange à organização judiciária e competênciaeleitoral, tal qual prevê a Carta Magna (CF, art. 121, caput). Portanto, no tocante à definição doscrimes eleitorais, as normas postas no CódigoEleitoral mantêm o status de lei ordinária. Acompetência criminal da Justiça Eleitoral éfixada em razão da matéria, cabendo a ela oprocesso e julgamento dos crimes eleitorais.Mas o que se deve entender por crimes eleito-rais? Somente podem ser considerados crimeseleitorais os previstos no Código Eleitoral (v.g., crimes contra a honra, praticados durante apropaganda eleitoral, denunciação caluniosacom finalidade eleitoral – art. 326-A do Código Eleitoral , incluído pela Lei n. 13.834/19) e osque a lei, eventual e expressamente, defina como eleitorais. Todos eles referem-se a atentados aoprocesso eleitoral, que vai desde o alistamentodo eleitor (ex: falsificação de título de eleitorpara fins eleitorais – art. 348 do Código Elei-toral) até a diplomação dos eleitos. Crime quenão esteja no Código Eleitoral ou que não tenha a expressa definição legal como eleitoral, salvoo caso de conexão, jamais será de competênciada Justiça Eleitoral. A motivação política oumesmo eleitoral não é suficiente para definir acompetência da Justiça Especial de que estamos

tratando. Da mesma forma, a existência de cam-panha eleitoral é irrelevante, pois, de per si, não é suficiente para caracterizar os crimes eleitorais à falta de tipificação legal no Código Eleitoral ou em leis eleitorais extravagantes. Assim, por exemplo, a prática de um homicídio, ainda que no período que antecede as eleições, e mesmo que por motivos político-eleitorais, será julgado pelo Júri comum, porquanto tal delito não é elencado como crime eleitoral.6. Outras exceções: o art. 1º do CPP faz men-ção expressa apenas às ressalvas listadas em seus incisos. Todavia, face a existência de diversasleis especiais, editadas após a vigência do CPP(1º de janeiro de 1942), com previsão expres-sa de procedimento distinto, conclui-se que,por força do princípio da especialidade, a taisinfrações será aplicável a respectiva legislação,aplicando-se o Código de Processo Penal apenas subsidiariamente (CPP, art. 1º, parágrafo único). Vários exemplos podem ser lembrados: 1) Oscrimes da competência originária dos Tribunais possuem procedimento específico previsto naLei n. 8.038/90; 2) As infrações de menor poten-cial ofensivo, assim compreendidas as contra-venções penais e crimes cuja pena máxima não seja superior a 02 (dois) anos, cumulada ou não com multa, submetidos ou não a procedimento especial, ressalvadas as hipóteses de violênciadoméstica e familiar contra a mulher, devem ser processadas e julgadas pelos Juizados Especiais Criminais, pelo menos em regra, com proce-dimento regulamentado pela Lei n. 9.099/95;3) Os crimes falimentares também possuemprocedimento especial disciplinado na Lei n.11.101/05 (arts. 183 a 188); 4) O Estatuto doIdoso (Lei n. 10.741/03, art. 94) também possui dispositivos expressos acerca do procedimento a ser aplicado aos crimes ali previstos; 5) ALei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) tam-bém estabelece dispositivos processuais penaisespecíficos quanto às hipóteses de violênciadoméstica e familiar contra a mulher; 6) A Leide drogas (Lei n. 11.343/06) traz em seu bojoum capítulo inteiro dedicado ao procedimento penal, prevendo expressamente a possibilidade de aplicação, subsidiária, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (art. 48, caput).7. Tratados, convenções e regras de direito internacional: Chefes de Governo estrangei-ro ou de Estado estrangeiro, suas famílias e

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membros das comitivas, embaixadores e suas famílias, funcionários estrangeiros do corpo diplomático e suas família, assim como fun-cionários de organizações internacionais em serviço (ONU, OEA, etc.) gozam de imunidade diplomática, que consiste na prerrogativa de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil (Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo Decreto Legislativo 103/1964, e promulgada pelo Decre-to nº 56.435, de 08/06/1965). Como se percebe, por conta de tratados ou convenções que o Bra-sil haja firmado, ou mesmo em virtude de regras de Direito Internacional, a lei processual penal deixa de ser aplicada aos crimes praticados por tais agentes no território nacional, criando-se, assim, verdadeiro obstáculo processual à aplica-ção da lei processual penal brasileira. Destarte, tais pessoas não podem ser presas e nem julga-das pela autoridade do país onde exercem suas funções, seja qual for o crime praticado (CPP, art. 1º, inciso I). Em caso de falecimento de um diplomata, os membros de sua família “conti-nuarão no gozo dos privilégios e imunidades a que têm direito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o território do Estado acreditado” (art. 39, §3º, da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas). Admite--se renúncia expressa à garantia da imunidadepelo Estado acreditante, ou seja, aquele queenvia o Chefe de Estado ou representante. Talimunidade não é extensiva aos empregadosparticulares dos agentes diplomáticos. Quantoao cônsul, este só goza de imunidade em relação aos crimes funcionais (Convenção de Viena de 1963 sobre Relações Consulares – Decreto n.61.078, de 26/07/1967). Esse o motivo pelo qual, ao apreciar habeas corpus referente a crime depedofilia supostamente praticado pelo Cônsulde Israel no Rio de Janeiro, posicionou-se aSuprema Corte pela inexistência de obstáculoà prisão preventiva, nos termos do art. 41 daConvenção de Viena, pois os fatos imputadosao paciente não guardavam pertinência com odesempenho das funções consulares.

Ø Jurisprudência selecionada:

STF: “(...) Prisão preventiva. Fundamentos. Acusado que exercia as funções de Cônsul de Israel no Rio de Janeiro. Crime previsto no art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). Pena de reclusão, cujo início deve se dar em estabelecimento

de segurança máxima ou média (regime fechado). Circunstância que, somada ao disposto no art. 61, II, ‘h’, do Código Penal, enfatiza o caráter grave do crime, o que é realçado pela existência de diversos diplomas protetivos da infância subscritos pelo Brasil: Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), Convenção dos Direitos da Criança (1989), 45ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Declaração pelo Direito da Criança à sobrevivência, à proteção e ao desenvolvimento, Convenção de Nova York sobre os direitos da criança e Convenção Interamericana sobre tráfico internacional de menores. Inexistência de obstáculo à prisão preventiva, nos termos do que dispõe o art. 41 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Atos imputados ao paciente que não guardam pertinência com o desempenho de funções consulares. Necessidade da prisão preventiva para garantiar a aplicação da lei penal. Ordem indeferida”. (STF, 1ª Turma, HC 81.158/RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 19/12/2002).

STJ: “(...) A competência internacional é regulada ou pelo direito internacional ou pelas regras internas de determinado país acerca da matéria, tendo por fontes os costumes, os tratados normativos e outras regras de direito internacional. Em matéria penal adota-se, em regra, o princípio da territorialidade, desenvolvendo-se na justiça pátria o processo e os respectivos inciden-tes, não se podendo olvidar, outrossim, de eventuais tratados ou outras normas internacionais a que o país tenha aderido, nos termos dos artigos 1º do Código de Processo Penal e 5º, caput, do Código Penal. Doutrina. No caso dos autos, inexiste qualquer ilegalidade na quebra do sigilo bancário dos acusados, uma vez que a medida foi realizada para a obtenção de provas em investigação em curso nos Estados Unidos da América, tendo sido implementada de acordo com as normas do ordenamento jurídico lá vigente, sendo certo que a documentação referente ao resultado da medida invasiva foi posteriormente compartilhada com o Brasil por meio de acordo existente entre os países. (...)”. (STJ, 5ª Turma, HC 231.633/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 25/11/2014, DJe 3/12/2014).

8. Prerrogativas constitucionais do Presi-dente da República e de outras autorida-des: refere-se o inciso II do art. 1º do CPP àsprerrogativas constitucionais do Presidente daRepública e de outras autoridades, em relaçãoaos crimes de responsabilidade. A denominada Justiça Política (ou Jurisdição Extraordinária)corresponde à atividade jurisdicional exercidapor órgãos políticos, alheios ao Poder Judiciário,apresentando como objetivo precípuo o afas-tamento do agente público que comete crimesde responsabilidade de suas funções. A títulode exemplo, de acordo com o art. 52, incisos I

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e II, da Constituição Federal, compete privati-vamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da Repúblicanos crimes de responsabilidade, assim comoos Ministros de Estado e os Comandantes daMarinha, do Exército e da Aeronáutica nos cri-mes da mesma natureza conexos com aqueles,bem como os Ministros do Supremo TribunalFederal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do MinistérioPúblico, o Procurador-Geral da República e oAdvogado-Geral da União nos crimes de res-ponsabilidade, observando-se, em relação aoPresidente da República e aos Ministros de Es-tado, a competência da Câmara dos Deputados para a admissibilidade e a formalização da acu-sação (CF, art. 51, I; CF, art. 86; Lei n. 1.079/50, art. 20 e seguintes). Por sua vez, compete a umTribunal Especial, composto por cinco De-putados, escolhidos pela Assembleia, e cincoDesembargadores, sorteados pelo Presidentedo Tribunal de Justiça, que também o presidirá (Lei n. 1.079/50, art. 78, §3º), processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, o Governador, o Vice-Governador, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos comaqueles, assim como o Procurador-Geral deJustiça e o Procurador-Geral do Estado. Nocaso de crimes de responsabilidade praticadospor Prefeitos Municipais (infrações político--administrativas), que são os tipificados noart. 4º do Decreto-lei n. 201/67, a competênciapara julgamento é da Câmara Municipal. Oprocesso pressupõe que o Prefeito Municipalesteja no exercício do mandato, na medida emque a única sanção prevista é a cassação domandato. Conquanto a Constituição Federale a legislação ordinária acima referida (Lei n.1.079/50 e Decreto-lei n. 201/67) se refiram àprática de crimes de responsabilidade, atribuin-do ao Senado Federal, ao Tribunal Especial e àCâmara Municipal o exercício dessa atividadejurisdicional atípica, tecnicamente não há falar em crime, mas sim no julgamento de umainfração político-administrativa. Aliás, segun-do Pacelli (op. cit. p. 188), “mesmo quando aConstituição atribui a órgãos do Judiciário acompetência para o julgamento de crimes deresponsabilidade (art. 105, I, a, por exemplo),não se estará exercendo outro tipo de jurisdição que não seja a de natureza política, diante da na-tureza igualmente política das infrações”. Nesse

cenário, é indispensável diferenciarmos crimes de responsabilidade em sentido amplo de cri-mes de responsabilidade em sentido estrito. Crimes de responsabilidade em sentido amplo são aqueles cuja qualidade de funcionário pú-blico (CP, art. 327) funciona como elementar do delito. É o que ocorre com os crimes praticados por funcionários públicos contra a administra-ção pública (CP, arts. 312 a 326). Esses crimes de responsabilidade em sentido amplo estão inseridos naquilo que a Constituição Federal denomina de crimes comuns ou infrações penais comuns. Por seu turno, crimes de responsabili-dade em sentido estrito são aqueles que somente podem ser praticados por determinados agentes políticos. Prevalece o entendimento de que não têm natureza jurídica de infração penal, mas sim de infração político-administrativa, passível de sanções político-administrativas, aplicadas por órgãos jurisdicionais políticos (normalmente órgãos mistos, compostos por parlamentares ou por parlamentares e magistrados). A título de exemplo, de acordo com o art. 2º da Lei n. 1.079/50, os crimes definidos nesta Lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da Repú-blica ou ministros de Estado, contra os minis-tros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Além disso, “a imposição da pena referida no artigo anterior (art. 2º) não exclui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal” (Lei n. 1.079/50, art. 3º).Como desses crimes de res-ponsabilidade não decorre sanção criminal, não podem ser qualificados como infrações penais, figurando, pois, como infrações políticas da alçada do Direito Constitucional.9. Processos da competência da JustiçaMilitar (da União ou dos Estados): outra res-salva feita pelo art. 1º do CPP diz respeito aosprocessos da competência da Justiça Militar. De acordo com o art. 124 da Constituição Federal, à Justiça Militar da União compete processar ejulgar os crimes militares definidos em lei. Lado outro, segundo o art. 125, §4º, da Carta Magna, compete à Justiça Militar estadual processar ejulgar os militares dos Estados, nos crimes mili-

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tares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a compe-tência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A inaplicabilidade do Código de Processo Penal no âmbito da Justiça Militar justifica-se pelo fato de ser aplicável, na Justiça Castrense, o Código Penal Militar (Decreto--Lei n. 1.001/69) e o Código de Processo PenalMilitar (Decreto-Lei n. 1.002/69). Entretanto,é importante destacar que o próprio estatutoprocessual penal militar prevê a possibilidade de os casos omissos serem supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicávelao caso concreto e sem prejuízo da índole doprocesso penal militar (CPPM, art. 3º, alínea“a”). Para mais detalhes acerca da competênciada Justiça Militar, remetemos o leitor ao nossoManual de Processo Penal e ao nosso Manualde Competência Criminal, ambos editados pelaJuspodivm.10. Processos da competência do tribunal especial: o art. 1º, inciso IV, do CPP, faz menção aos processos da competência do tribunal espe-cial (Constituição, art. 122, n. 17). Os artigoscitados referem-se à Constituição de 1937, sen-do que esse tribunal especial a que faz mençãoo inciso IV é o antigo Tribunal de SegurançaNacional, que já não existe mais, visto que foiextinto pela Constituição de 1946. O art. 122, n. 17 da Carta de 1937 previa que “os crimes queatentarem contra a existência, a segurança e aintegridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular serão submetidos a processo e julgamento perante tribunal especial, na for-ma que a lei instituir”. Hoje, os crimes contraa segurança nacional estão definidos na Lei n.7.170/83. Apesar de o art. 30 da Lei n. 7.170/83 dispor que os crimes nela previstos são da com-

petência da Justiça Militar, referido dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, porquanto, segundo o art. 109, inciso IV, compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes políticos, com recurso ordinário para o Supremo (CF, art. 102, II, “b”).11. Crimes de imprensa: outra ressalva cons-tante do art. 1º do CPP diz respeito aos processos penais por crimes de imprensa. Referidos delitos estavam previstos na Lei n.5.250/67. Dizemosque estavam previstos na Lei n. 5.250/67 porque,no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 130 (Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 30/04/2009), o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido ali formula-do para o efeito de declarar como não recepcio-nado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67. Como decidiu a própria Suprema Corte, a não recepção da Leide Imprensa não impede o curso regular dosprocessos fundamentados nos dispositivos le-gais da referida lei, nem tampouco a instauração de novos processos, aplicando-se lhes, contudo, as normas da legislação comum, notadamente, o Código Civil, o Código Penal, o Código deProcesso Civil e o Código de Processo Penal.12. Aplicação subsidiária do Código deProcesso Penal: quando houver previsãolegal de procedimento diverso pela legisla-ção especial, tal rito procedimental deve seraplicado em detrimento daquele estabelecido no Código de Processo Penal (princípio daespecialidade). É o que ocorre, a título deexemplo, com os crimes de tráfico de drogas, que contam com um procedimento especialregulamentado pela Lei n. 11.343/06. Isso, no entanto, não impede a aplicação subsidiáriado Código de Processo Penal, sempre quenão houver dispositivo especial em sentidodiverso.

Art. 2º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.1-4

1. Lei processual penal no tempo: a legis-lação processual penal tem sofrido inúmerasalterações nos últimos anos. Diante da sucessão de leis no tempo, apresenta-se de vital impor-tância o estudo do direito intertemporal.

2. Direito intertemporal e normas de Direi-to Penal: no âmbito do Direito Penal, o temanão apresenta maiores controvérsias. Afinal,por força da Constituição Federal (art. 5º, XL),a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar

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o réu. Logo, cuidando-se de norma penal maisgravosa, vige o princípio da irretroatividade.Para mais detalhes acerca do assunto, consultar comentários à súmula n. 711 do STF (“A leipenal mais grave aplica-se ao crime continua-do ou ao crime permanente, se a sua vigênciaé anterior à cessação da continuidade ou dapermanência”).3. Direito intertemporal e normas de Di-reito Processual Penal: de acordo com o art.2º do CPP, que consagra o denominado princí-pio tempus regit actum, “a lei processual penalaplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da vali-dade dos atos realizados sob a vigência da leianterior”. Incide no processo penal o princípioda aplicabilidade imediata, no sentido de quea norma processual aplica-se tão logo entreem vigor, sem prejuízo da validade dos atos jápraticados anteriormente. O fundamento daaplicação imediata da lei processual é que sepresume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos interesses da Justiça, sal-vaguardar melhor o direito das partes, garantir defesa mais ampla ao acusado, etc. Portanto,ao contrário da lei penal, que leva em conta omomento da prática delituosa (tempus delicti),a aplicação imediata da lei processual leva emconsideração o momento da prática do atoprocessual (tempus regit actum). Do princípiotempus regit actum derivam dois efeitos: a) osatos processuais praticados sob a vigência da lei anterior são considerados válidos; b) as normas processuais têm aplicação imediata, regulandoo desenrolar restante do processo. Apesar deo art. 2º do CPP não estabelecer qualquer dis-tinção entre as normas processuais, doutrina ejurisprudência têm trabalhado crescentemente com uma subdivisão dessas regras: a) normasgenuinamente processuais: são aquelas quecuidam de procedimentos, atos processuais,técnicas do processo. A elas se aplica o art. 2ºdo CPP; b) normas processuais materiais oumistas: são aquelas que abrigam naturezas di-versas, de caráter penal e de caráter processualpenal. Normas penais são aquelas que cuidamdo crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir doEstado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais sãoaquelas que versam sobre o processo desde oseu início até o final da execução ou extinção

da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna. Não há consenso na doutrina acerca do conceito de normas processuais materiais ou mistas. Uma primeira corrente sustenta que normas processuais materiais ou mistas são aquelas que, apesar de disciplinadas em diplomas processuais penais, dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva, tais comoaquelas relativas ao direito de queixa, ao derepresentação, à prescrição e à decadência, aoperdão, à perempção, etc. Uma segunda corren-te, de caráter ampliativo, sustenta que normasprocessuais materiais são aquelas que estabe-lecem condições de procedibilidade, meios deprova, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos nodireito de liberdade do agente –, ou seja, todasas normas que tenham por conteúdo matériaque seja direito ou garantia constitucional docidadão. Independentemente da corrente que se queira adotar, é certo que às normas processuais materiais se aplica o mesmo critério do direitopenal, isto é, tratando-se de norma benéfica ao agente, mesmo depois de sua revogação, refe-rida lei continuará a regular os fatos ocorridosdurante a sua vigência (ultratividade da lei pro-cessual penal mista mais benéfica); na hipótese de novatio legis in mellius, referida norma serádotada de caráter retroativo, a ela se conferindo o poder de retroagir no tempo, a fim de regularos fatos ocorridos anteriormente a sua vigência. São inúmeros os exemplos de normas proces-suais materiais que têm se sucedido no tempo.Vejamos alguns deles.3.1. Lei n. 9.099/95 e seu caráter (ir) retro-ativo: consoante disposto no art. 90 da Lei n. 9.099/95, as disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais não seriam aplicáveis aos processos penais cuja instrução já estivesse iniciada. Discutiu-se, à época, se seria possível que o art. 90 da Lei n. 9.099/95 restringisse a aplicação da referida lei aos processos penais cuja instrução já estivesse em curso. Sem dúvi-da alguma, trata-se a Lei n. 9.099/95 de norma processual híbrida ou mista, porquanto reúne dispositivos de natureza genuinamente proces-

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sual e de natureza material. De fato, no tocante ao procedimento sumaríssimo ali previsto, fica evidente que se aplica o art. 2º do CPP, já que se trata de norma genuinamente processual. Não obstante, não se pode perder de vista que a Lei n. 9.099/95 também introduziu no orde-namento jurídico institutos despenalizadores que produzem nítidos reflexos no exercício do jus puniendi, tais como a composição civil dos danos, a transação penal, a exigência de representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa e a suspensão condicional do processo. A título de exemplo, basta pensar que o cumprimento das condições fixadas na proposta de suspensão condicional do processo acarreta a extinção da punibilidade (Lei n. 9.099/95, art. 89, §5º). Na mesma linha, a composição civil dos danos é causa de renúncia ao direito de queixa ou representação (Lei n. 9.099/95, art. 74, parágrafo único), ensejando a extinção da punibilidade. Diante dessa natureza mista da Lei n. 9.099/95, o Supremo Tribunal Federal acabou por concluir que as normas de direito penal nela inseridas que tenham con-teúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL, da Constituição federal. Assim, conferiu interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réu contidas na citada lei. Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode querer emprestar caráter retroativo ao art. 90-A da Lei n. 9.099/95. Explica-se: por força da Lei n. 9.839/99, foi in-serido o art. 90-A à Lei n. 9.099/95, que passou a dispor: “As disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”. Ao suprimir a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juiza-dos no âmbito da Justiça Militar, fica evidente que a Lei n. 9.839/99 tem natureza processual material, ou seja, cuida-se de norma que, em-bora disciplinada em diploma processual penal, produz reflexos no ius libertatis do agente, pois priva o agente do gozo de institutos despena-lizadores como a composição civil dos danos, a transação penal, a representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa e a suspensão condicional do processo. Como consequência, o critério de direito intertemporal a ser aplicado não é o da aplicação imediata da norma proces-sual (tempus regit actum), constante do art. 2º

do CPP, mas sim o critério da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Assim, como a lei tem natureza nitidamente gravosa, pois priva o autor de crime militar da incidência dos ins-titutos despenalizadores da Lei dos Juizados, háde se concluir que o art. 90-A só se aplica aoscrimes militares cometidos a partir do dia 28de setembro de 1999, data da vigência da Lei n. 9.839/99.

Ø Jurisprudência selecionada:

STF: “(...) O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de ins-trução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Inter-pretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei”. (STF, Pleno, ADI 1.719-9, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 18/06/2007, DJe 72 02/08/2007).

STF: “(...) O Supremo Tribunal Federal firmou entendi-mento no sentido da aplicação aos crimes de lesões corporais leves e lesões corporais culposas de com-petência da Justiça Militar (CPM, art. 209 e 210) da lei em tela, que exige a representação do ofendido para a instauração de processo-crime. Deixando o ofendido de ofertar a representação, operou-se a decadência a ensejar a extinção da punibilidade. A Lei nº 9.839, de 27.09.99, que acrescentou o art. 90-A à Lei nº 9.099/95, e afastou a aplicação das suas disposições no âmbito da Justiça Militar, embora consubstancie disposição processual, seus efeitos são de direito material, na me-dida em que afasta a aplicação de normas despenali-zadoras de caráter preponderantemente penal. Sendo manifestamente prejudicial ao paciente, uma vez que afasta causa extintiva da punibilidade pelo decurso de prazo fixado em lei, não pode incidir no caso dos autos. Habeas corpus deferido”. (STF, 1ª Turma, HC 79.390/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 19/10/1999, DJ 19/11/1999).

STJ: “(...) O entendimento do Superior Tribunal é o de que a Lei nº 9.839/99 – que acrescentou o art. 90-A à Lei nº 9.099/95, cujas disposições, a partir daí, não se aplicam mais no âmbito da Justiça Militar – somente deve alcançar os processos que tenham por objeto o julgamento de delitos praticados após a sua entrada em vigor. Essa é a hipótese dos autos, uma vez que o fato ocorreu em 28.1.05, após o advento da Leinº 9.839/99. Agravo regimental improvido”. (STJ, 6ªTurma, AgRg no HC 60.081/SP, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 26/05/2008).