Celso Azar - Nietzsche, Maquiavel e Montaigne

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  Nietzsche e o conceito renascentista de virtude: os exemplos de Montaigne e Maquiavel Celso Martins Azar Filho

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Ensaio filosófico.

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  • Nietzsche e o conceito renascentista de virtude:

    os exemplos de Montaigne e Maquiavel

    Celso Martins Azar Filho

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    Foi Nietzsche o principal responsvel pela popularizao da idia de uma 'virtude imoral' no

    Renascimento1. Esta noo , porm, se apresentada sem mais explicaes, o resultado de uma leitura

    equivocada da obra nietzscheana que, por seu lado, descansa em uma simplificao estratgica operada

    pelo prprio filsofo alemo ao tentar reunir em um s conceito a multiplicidade dos diversos elementos

    que formam a virtude renascentista.

    Em primeiro lugar, quis-se ler na clebre definio da virtude 'im Renaissance-Stil' como

    'moralinfreie Tugend' uma afirmao sobre a imoralidade ou amoralidade da virtude renascentista. Ora,

    antes de mais nada, a expresso 'virtude imoral' ou 'amoral' constitui uma contradio em termos: j a

    ferocidade do guerreiro homrico, por exemplo, ao ser designada com o nome de virtude, aponta para um

    processo de moralizao o qual, ainda se incipiente, como o fora tambm na origem da virtus romana ou

    de qualquer outra noo arcaica semelhante, tem a funo precpua de tornar mais eficaz a prpria

    capacidade guerreira.

    Caracterizar a a*rethv homrica como instintiva e natural sem mais muito embora esta seja uma

    maneira at certo ponto vlida para descrev-la por contraste, por exemplo, com o socratismo (como fez

    Nietzsche) simplific-la. A inibio moral esteve presente desde a poca primitiva e arcaica2, e

    evidente que h em Homero uma tica implcita3 -- mesmo porque talvez a grande diferena do homem

    para o animal consista em nunca aquele abandonar-se simplesmente ao instinto. Se a referncia a este

    perodo exige o escrpulo de grafar o nome tica com aspas isto no se deve de maneira nenhuma a uma

    pretensa amoralidade da cultura grega anterior a Scrates, mas ao fato daquele termo designar usualmente

    a reflexo sistemtica sobre a moral (cujo nascimento os historiadores em geral concordam em relacionar

    a Aristteles). O conceito de virtude homrico , e no poderia deixar de ser em alguma medida, tico,

    pois trata-se de algo inerente constituio mesma da idia de virtude em geral. No h uma distino

    estanque entre uma noo guerreira arcaica de virtude e outra posterior, mais elaborada do ponto de vista

    moral: ou seja, no h a uma diferena de natureza, mas apenas de grau. O que h, portanto, so

    divergncias entre ticas possveis e, conseqentemente, entre maneiras de conceber a virtude. Assim

    afirmava Agostinho, e com razo, que uma bravura comum a cristos e pagos no existia4; isso no

    significa, porm, que uma destas concepes seja moral e a outra no. Da mesma forma, a virtude blica

    no faz parte de uma pr-histria da moral, mas representa em si uma moral particular bastante ntida: a

    da honra. Que o elemento tico devesse ser introduzido na fora pura e simples para facilitar a prpria

    1 Parece ser bastante representativo, entre outros, o aforisma que recebeu o nmero 317 na edio Krner de Der

    Wille zur Macht (pgs. 220-221). 2 Cf. SNELL, B. Die Entdeckung des Geistes. Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1975, cap. X. 3 Cf. JAEGER, W. Paideia. Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1987, pg. 23 (trad. de J. Xirau e W. Roces). 4 Citado por Walter Baurmann (Vertu Die Bedeutungen des Wortes in der franzsischen Renaissance. Berlin,

    Dr. Emil Ebering, 1939, pg. 20 e seq.).

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    vitria na guerra5 era um fato j reconhecido por Homero ele mesmo. Prova-o, entre outras indicaes

    disseminadas por sua obra, a figura de Fnix e os ideais espirituais dos quais ele o guardio e

    transmissor6: em seu projeto de educar Aquiles, e no na prpria pessoa deste, encarna-se o elevado

    conceito homrico de nobreza que rene aristocracia das armas e do esprito, pois s esta combinao faz

    o heri7. E esta composio de mpeto guerreiro e sabedoria no ideal moral homrico representa um eco

    da religio pr-histrica indo-europia cuja influncia se far sentir atravs da Idade Mdia at o

    Renascimento8: fora e justia, coragem e bondade, ousadia e sensatez, so apenas alguns dos extremos,

    muitas vezes contraditrios, que tecem o carter virtuoso a esta complexidade que se refere o

    testemunho nietzscheano. Note-se, porm, que o herosmo da Ilada ou da Odissia no pressupe o estar

    isento de toda falta moral e nem que se leve em considerao o prximo como fim9; e isto mostra de

    que maneira a tica homrica , como qualquer outra, singular; mas, mais que isso, torna evidente a

    dificuldade de a partir de nossa prpria compreenso de moral avaliar a outras; e tambm a moral

    socrtica seria hoje, apesar de sua aparente e to proclamada proximidade, dificilmente aceita.

    Nietzsche sabia muito bem que o homem um ser moral pois deve, de uma forma ou de outra,

    avaliar suas aes e, significativamente, no disse, no fragmento que se tomou acima como exemplo,

    'sem moral', mas 'sem moralina', o que, evitando nos perder em digresses acerca do pensamento

    nietzscheano, pode-se afirmar serem expresses bem diferentes. De todo modo esta definio algo brusca

    da virtude da Renascena reduz a uma frmula nica a qual possua uma funo particular dentro da

    filosofia do pensador da vontade de potncia, e para tanto foi cunhada uma noo difcil e

    perigosamente fixvel de uma vez por todas. Segundo Walter Baurmann, Nietzsche teria identificado

    inadvertidamente o conceito renascentista de virtude virt de Maquiavel e, desta forma, glorificado,

    romantizado e alterado a ambas10. Deixando de lado o exame do cabimento desta impresso, podemos

    utiliz-la como ponte para uma breve anlise das idias de Maquiavel e de Montaigne sobre a virtude

    cuja importncia facilmente perceptvel para todo estudante de histria da filosofia em sua relao

    geral com o pensamento renascentista.

    * * *

    A virtude maquiavlica por reivindicar para si, como campo de sua constituio e ao, a poltica

    domnio prprio de teorizao onde as questes morais e religiosas adquirem um colorido especial ,

    5 Cf. Ibidem, pg. 13. 6 Cf. JAEGER, op. cit., pg. 24. 7 Cf. CURTIUS, E.R. La littrature europenne et le Moyen ge latin. Paris, PUF, 1991, pgs. 282-283 (trad. de J.

    Brjoux). 8 Cf. Ibidem, pgs. 278-299. Como marca Georges Dumzil (Les dieux souverains des Indo-Europens. Paris,

    Gallimard, 1986, pg. 159) mesmo entre os romanos, para os quais a virtus era definida pela fora do homem, a dupla Romulus-Numa (fora-justia) tinha uma funo constitutiva na representao da virtude.

    9 SNELL, op. cit., pg. 218. 10 Op. cit., pg. 23.

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    isola-se voluntariamente da moral e da religio em si mesmas. O que estava em contradio direta com a

    tradio medieval para a qual o ethos poltico, o moral e o religioso construam uma unidade. Por razes e

    fatores histricos como, por exemplo, o peso da questo da Reforma no estado francs em virtude das

    guerras de religio, e seu efeito colateral de manter unidas a virtude crist com a poltica; ou a

    continuidade e o parentesco com a Antiguidade e sua virtus politica prpria que desfrutou a cultura

    italiana, por se sentir e ser mais que nenhuma outra sua herdeira os quais no vale a pena aqui esmiuar,

    o sentido francs de virtude, permanecendo mais prximo, em um primeiro momento, da disposio

    tradicional medieval, entrar em choque com o sentido italiano. A inrcia da vertu politique francesa faz

    com que esta se torne o oponente natural da virt italiana. Este combate ideolgico, entre os dois pases

    onde o Renascimento teve um efeito mais rpido e profundo, em torno de um dos conceitos renascentistas

    mais significativos, muito importante para a compreenso da prpria filosofia renascentista como um

    todo.

    No de se admirar, portanto, que a Frana venha a ser ento a terra do anti-maquiavelismo11. A

    tradio poltica de inspirao crist ainda prevalece, em certa medida, sobre o renascimento das

    concepes antigas, reagindo contra estas. A obra montaigniana, contudo, pode ser vista como uma

    espcie de ponta de lana e aliada da penetrao da influncia italiana no meio literrio francs o que

    no significa dizer que o ensasta no partilhe certas convices caras espiritualidade francesa e

    contrrias quela influncia. E justamente o confronto das idias montaignianas e maquiavlicas acerca

    da virtude pode, alm de caracterizar a posio dos Ensaios neste contexto, ajudar-nos a compreender a

    dimenso social ou poltica da vertu ensastica.

    Se o humanismo constitui-se, basicamente, como um programa filosfico voltado para a formao

    do homem, de se notar como os humanistas associam a poltica pedagogia. Precisamente por isso a

    noo de virtude tornar-se- o conceito central e fundamental da meditao poltica renascentista.

    Maquiavel e Montaigne, de acordo com a linha mestra filosfica do humanismo renascentista, so, em

    primeiro lugar, educadores12, embora cada um a seu modo. Os humanistas ocupam-se em formar os

    homens e o Homem, e principalmente o Prncipe, modelo da humanidade perfeita que, atravs da

    responsabilidade suprema do governo da nao (baseado no governo de si mesmo), estabelece, segundo a

    mstica antiga, medieval e renascentista, o prprio alicerce do mundo, servindo de conexo entre o cu e a

    terra. A nota original do pensamento poltico destes dois filsofos, e talvez aquilo que mais os aproxime,

    a recusa desta mstica e a afirmao de uma poltica sem iluses religiosas ou moralistas.

    11 Ibidem pg. 40; NICOLA, Alexandre. Le Machiavlisme de Montaigne (III). Bulletin de la Societ des Amis de

    Montaigne (BSAM), Paris, srie 3, n. 9, 1959, pgs. 22 e seq. 12 Cf. Discursos sobre a primeira dcada de Tito Lvio II, introduo; III, 1 e 31 (MACHIAVEL, Niccol. Opere.

    Ed. de Mario Bonfatini. Milo, Riccardo Ricciardi ed., 1954, pgs. 220, 313-314 e 391 as citaes de Maquiavel seguiro aqui

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    Os estudiosos dos Ensaios no deixaram de notar o tom por vezes maquiavlico da viso poltica

    montaigniana e marcou-se com certa freqncia o primeiro ensaio do terceiro livro como contendo peas

    tpicas desta concordncia13. E nada mais natural, pois, neste captulo, seu autor mostra como, nas

    questes que concernem conservao e salvao dos Estados, principalmente na poca conturbada em

    que viveu (e por muito tempo envolvido pessoalmente com os afazeres polticos de seu pas), so difceis

    de separar, e mesmo de distinguir, o vcio da virtude e o bem do mal, exigindo muitas vezes a situao at

    um certo pacto entre ambos. A base filosfica, porm, de tal posio, no se refere apenas a um tempo de

    crise, mas sempre vlida para a compreenso do homem, da natureza e da harmonia universal:

    [B] O nosso edifcio, ou pblico, ou privado, est cheio de imperfeies. Mas no h

    nada de intil na natureza; nem a inutilidade mesma. Nada se introduziu neste universo que

    nele no ocupe lugar oportuno. Nosso ser cimentado com qualidades malss: a ambio, o

    cime, a inveja, a vingana, a superstio, o desespero, habitam em ns em to natural

    possesso que se reconhece sua imagem tambm nos animais. E ainda a crueldade, vcio to

    desnaturado: (...).

    Quem suprimisse no homem as sementes de tais propriedades, destruiria as condies

    fundamentais de nossa vida. Da mesma forma, h, em todo governo, ofcios necessrios, no

    apenas abjetos, mas ainda viciosos: os vcios acham neles o seu posto e empregam-se em

    costurar nossos laos sociais, como os venenos em conservar nossa sade. Se eles se tornam

    desculpveis (porquanto nos so necessrios, e a necessidade comum apaga sua natureza

    real), preciso que deixemos o desempenho desses papis para os cidados mais vigorosos e

    menos receosos que sacrificam a prpria honra e a prpria conscincia, como aqueles outros

    antigos sacrificaram sua vida pela salvao de seus pases; ns outros, mais fracos,

    encarreguemo-nos de papis mais fceis e menos arriscados. O bem pblico requer que se

    traia, que se minta [C] e que se massacre: [B] abandonemos esse encargo a indivduos mais

    obedientes e mais flexveis14. a paginao desta edio de sua obra); alm disso, O Prncipe , obviamente, uma espcie de cartilha. E os Ensaios so, entre outras coisas, um projeto educativo, tanto de seus leitores, como de seu autor.

    13 Cf. SANDERS, S.G. Montaigne et les ides politiques de Machiavel. BSAM, srie 5, ns. 18-19, 1976; TETEL, Marcel. Montaigne and Machiavelli Ethics, Politics and Humanism. Rivista di Letterature Moderne e Comparate, Milo, fasc. 1, vol. 29, 1976, pgs. 169-170; NICOLA. Le machiavlisme de Montaigne (I). BSAM, srie 3, n. 4, 1957, pg. 16 e seq.; TRVES, Nicole. Beyond "l'utile" and "l'honnte": on some pioneering aspects of Machiavelli and Montaigne. BSAM, srie 6, ns. 15-16, 1983.

    14 Nostre bastiment, et public et priv, est plain d'imperfection. Mais il n'y a rien d'inutile en nature; non pas l'inutilit mesmes; rien ne s'est inger en cet univers, Qui n'y tienne place opportune. Nostre estre est siment de qualitez maladives; l'ambition, la jalousie, l'envie, la vengeance, la superstition, le desespoir, logent en nous d'une si naturelle possession que l'image s'en reconnoist aussi aux bestes; voire et la cruaut, vice si desnatur: (...). Desquelles qualitez qui osteroit les semences en l'homme, destruiroit les fondamentalles conditions de nostre vie. De mesme, en toute police, il y a des offices necessaires, non seulement abjects, mais encore vitieux: les vices y trouvent leur rang et s'employent la cousture de

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    Ainda retornaremos s idias aqui expressas; no momento, contudo, devemos atentar ao que diz o

    ensasta no fim desta citao onde, paralela a uma viso poltica que chamaramos realista, j

    encontramos a defesa de uma postura de relativa independncia pessoal. Esta passagem comea a

    assinalar a diferena crucial, no entre a poltica de Maquiavel e a de Montaigne, mas, como veremos,

    entre suas filosofias. curioso que precisamente este ensaio, no qual fcil reconhecer, como faro

    tantos estudiosos, opinies semelhantes s maquiavlicas, seja aquele em que o ensasta v se afastar mais

    claramente do mesmo Maquiavel. E, para entender como isto se passa, o exame e a comparao dos

    respectivos conceitos de virtude constitui excelente meio.

    Em muito concordam a virt maquiavlica e a vertu montaigniana15: de sada, e de acordo com o

    genuno esprito humanista, nenhuma das duas poderia suportar uma viso maniquesta do mundo. Seus

    diversos e por vezes contraditrios sentidos fazem de cada uma delas um todo conceitual complexo onde

    as oposies tradicionais de valores e suas bases so relativizadas ou mesmo recusadas: bem e mal, vcio

    e virtude, corpo e alma, Deus e homem, homem e animal, razo e sensao, indivduo e sociedade, arte e

    natureza, so elementos, s para dar alguns exemplos, de paradigmas, referncias e avatares morais

    reestruturados em si mesmos e em suas relaes no interior da noo de virtude que vigora na obra destes

    pensadores, e cuja imagem filosfica e literria tem servido no raramente de smbolo do pensamento

    renascentista. atravs desta reestruturao que a recuperao do conceito antigo de virtude por eles

    operado desemboca, na verdade, em uma nova idia de virtude, a qual no se reduz a uma mera

    reformulao, mas lana os fundamentos da poltica e da tica modernas: a vontade, comum a ambos, de

    restaurar a grandeza de alma antiga em um tempo que lhes parecia decadente, cria um novo mundo de

    idias16.

    Todavia, a par destas similitudes, uma diferena bsica perpassa a meditao destes autores sobre a

    virtude. Tal diferena constitui uma divergncia de princpio frente ao prprio objetivo e alcance de suas

    investigaes filosficas17. Maquiavel est preocupado nica e exclusivamente com a poltica e as

    questes do exerccio do poder ou do estabelecimento do Estado. O problema da ao em geral s tem

    sentido para ele se referido esfera poltica e todas as consideraes de natureza privada so postas de

    nostre liaison, comme les venins la conservation de nostre sant. S'ils deviennent excusables, d'autant qu'ils nous font besoing et que la necessit commune efface leur vraye qualit, il faut laisser jouer cette partie aux citoyens plus vigoreux et moins craintifs qui sacrifierent leur vie pour le salut de leur pays; nous autres, plus foibles, prenons des rolles et plus aisez et moins hazardeux. Le bien public requiert qu'on trahisse et qu'on mente et qu'on massacre; resignons cette commission gens plus obeissans et plus soupples (Ensaios III, 1, 790-791: a edio de referncia para as citaes dos Ensaios no presente artigo a de Pierre Villey Paris, PUF, 1988).

    15 Cf. TETEL, op. cit., pg. 181. 16 No s com relao virtude, mas tambm em outros pontos concordam as filosofias montaigniana e

    maquiavlica: como sobre o fluxo incessante do ser, ou acerca da importncia da meditao sobre a fortuna, etc. Alm disso, ambos descobriram novos campos do saber. Cf. TRVES. op. cit., pg. 45 e seq.

    17 TETEL, op. cit., pg. 175; TRVES, op. cit., pg. 51.

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    lado como irrelevantes. Montaigne, porm, est preocupado tambm, e principalmente, com o homem e

    com a humanidade em geral sem definir um domnio especfico de pensamento ou ao que lhe fosse

    preferencial. Para o ensasta os limites do 'moy' so os limites do mundo e vice-versa ao 'eu' existindo

    em funo do mundo, ponto de vista que limita o ngulo de viso maquiavlico, o autor dos Ensaios

    acrescenta a perspectiva do universo existindo em funo do 'eu'.

    Esta divergncia de pontos de partida e de orientao entre Maquiavel e Montaigne origina uma

    disparidade fundamental entre as noes de virtude concebidas por um e outro. Pois, se o ensasta

    reconhece como inevitvel que seja necessrio por vezes ao poltico, por exigncia do bem pblico,

    submeter o honesto ao til, isso no significa perder de uma vez por todas a direo da honestidade; e se

    Montaigne deve escolher entre a poltica e a moral, ele ficar com esta ltima18. E se a nica sada para

    tanto for evitar tomar a frente dos afazeres polticos, ele escolher deixar a vida pblica: todo o ensaio Do

    til e do Honesto trata precisamente disto. Para Maquiavel, ao contrrio, por fora das prprias

    caractersticas e intenes de sua filosofia, a moral e a virtude devem submeter-se poltica, j que s tm

    sentido em relao a esta. No que a poltica montaigniana no exija, em certa medida, algo parecido: a

    filosofia dos Ensaios, porm, no centrada exclusivamente nas questes polticas como o a obra

    maquiavlica. Da que Montaigne e Maquiavel concordando quanto ao fundo dos problemas referentes

    razo de Estado e principalmente com relao necessidade do mal para a salvao e conservao

    daquele acabem por tomar direes diferentes. Vejamos, por exemplo um texto montaigniano bastante

    significativo:

    [B] A justia em si, natural e universal, regra-se de outra forma, e mais nobremente,

    que essa outra justia [C] especial, nacional, [B] subordinada necessidade de nossos

    governos. [C] "No possumos nenhum modelo firme e claro de um verdadeiro direito e de

    uma justia perfeita: usamos em seu lugar uma sombra e uma imagem". [B] de tal maneira

    que o sbio Dndamis, ouvindo narrar as vidas de Scrates, de Pitgoras, de Digenes,

    julgou-os grandes personagens em toda outra coisa, porm escravizados demais pela

    reverncia das leis; pois para as autorizar e secundar, a verdadeira virtude tem muito que

    renunciar do seu vigor original; e no somente por sua permisso muitas aes viciosas so

    praticadas, mas ainda por sua persuaso: [C] "Crimes so cometidos por instigao dos

    senatus-consultos e dos plebiscitos". [B] Eu sigo a linguagem comum, que faz diferena entre

    18 Notemos que Maquiavel, dentro do prprio campo poltico, em dado momento recomenda algo semelhante ao

    dizer que, se para fazer o mal, prefervel no ser rei: Sono questi modi crudelissimi e nimici d'ogni vivere non solamente cristiano ma umano, e debbegli qualunque uomo fugire, e volere piuttosto vivere privato che re com tanta rovina degli uomini (MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira dcada de Tito-Lvio I, 26, pg. 442).

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    as coisas teis e as honestas; a tal ponto que algumas aes naturais, no apenas teis, mas

    necessrias, ela as chama desonestas e sujas19.

    Maquiavel com certeza concordaria integralmente com estas palavras20. a partir deste texto que

    devemos interpretar a afirmao decisiva que faz o ensasta logo adiante: (...) o direito da virtude deve

    prevalecer sobre o direito de nossa obrigao21. O que significa ser o direito da virtude que tem voz na

    filosofia montaigniana: e mesmo quando, em circunstncias excepcionais, se obrigado a fazer o mal

    para o bem pblico a virtude quem triunfa ainda que seja uma virtude que, em geral, assusta o homem

    comum. Para Maquiavel, ao contrrio, a virtude um instrumento que s vale pelos seus resultados, e por

    seus efeitos polticos22.

    A virt maquiavlica no apenas se mostra na poltica, como a definida. E isto significa que

    virtudes como a justia, a probidade, a modstia e muitas outras devem ser abandonadas se no podem ser

    capitalizadas politicamente. E mais: que esta virtude tem necessidade do vcio e com ele em parte se

    confunde. Para Montaigne, entretanto, mesmo que o vcio possa originar-se da virtude e esta do vcio, e

    que a ligao entre ambos seja uma realidade humana irrecusvel, isso no suficiente para confundi-los,

    igual-los ou relativiz-los totalmente at um indiferentismo moral niilista. No porque mesmo dos

    vcios possa ser formada uma contextura poltica estvel23 que estes passaro a serem virtudes. Existem

    ms aes e maldades portentosas e insignes que mostram vigor e fora de alma tanto quanto erro e

    desregramento24: mas no por isso que confundiremos bem e mal. No decorre da, contudo, e isto que

    se deve marcar, uma rejeio em bloco da viso maquiavlica: o ensasta sabe bem da propriedade das

    concluses desta no plano dos negcios de Estado. O autor dos Ensaios no advoga em momento nenhum

    19 La justice en soy, naturelle et universelle, est autrement reigle, et plus noblement, que n'est cette autre justice speciale, nationale, contrainte au besoing de nos polices. < Veri juris germanoeque justitiae solidam et expressam effigiem nullam tenemus; umbra et imaginibus utimur >; si que le sage Dandamys, oyant reciter les vies de Socrates, Pythagoras, Diogenes, les jugea grands personnages en toute autre chose, mais trop asservis la reverence des loix, pour lesquelles auctoriser et seconder, la vraye vertu a beaucoup se desmettre de as vigueur originelle; et non seulement par leur permission plusieurs actions vitieuses ont lieu, mais encore leur suasion: < Ex senatusconsultis plebisquescitis scelera exercentur. > Je suy le langage commun, qui faict difference entre les choses utiles et honnestes; si que d'aucunes actions naturelles, non seulemente utiles, mais necessaires, ils les nomme deshonnetes et sales (Ensaios III, 1, 796 a primeira frase latina de Ccero, De Officiis III, 17, e a segunda de Sneca, Cartas, XCV; Dndamis um sbio indiano de quem fala Plutarco na Vida de Alexandre).

    20 No entanto, o importante aqui, o padro pelo qual se medem aes e intenes, no a razo de Estado, e mesmo se a necessidade e a utilidade do mal so afirmadas, isso no basta para transform-lo no honesto. Mas mais que isso e Maquiavel discordaria aqui, e s aqui, de Montaigne o fundamental no est em saber se as leis ajudam ou no a manter certo governo estvel, porm no juzo de que aes viciosas possam ter lugar sob sua gide; alm disso, a nfase no valor da virtude no se volta, nem para sua utilidade em conservar, nem para sua capacidade de estabelecer, atravs de revoluo ou conjurao, um novo Estado, mas aponta para um valor que esta possui em si mesma, para um valor e uma importncia prprios. Assim, a diferena entre Maquiavel e Montaigne no est tanto no contedo, mas na perspectiva.

    21 Ensaios III, 1, 801c. 22 Cf. MANSFIELD, Harvey C. Machiavelli's Virtue. Chicago - Londres, The University of Chicago Press, 1996,

    pg. 17 e seq. 23 Ensaios III, 9, 956b. 24 Ibidem

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    a espcie de ingenuidade moral to em voga entre os humanistas franceses ingenuidade, alis,

    freqentemente imbuda de uma certa m-f (pois o que mais til na vida pblica do que a fama de

    honesto ? E ainda mais se indevida) que nem Maquiavel nem Montaigne, mesmo ao preo da m-fama,

    quiseram esposar. Ambos sabiam muito bem que uma virtude ingnua e desajeitada mais prejudicial

    que boa, e principalmente no campo poltico: no basta ser bom, dizia Maquiavel, preciso ser hbil

    porque, tudo bem considerado, ele [o prncipe] achar qualquer coisa que parece virtude, e segui-la ser

    sua runa, e qualquer outra que parece vcio, mas seguindo-a encontrar segurana e bem-estar25; e

    Montaigne adverte-nos, em um texto que deve ser lido e relido, contra a impotncia e o risco gerados pelo

    enfrentamento dos affaires du monde com o nico auxlio de uma virtude excessivamente pura e

    inocente26.

    No entanto, nos Ensaios, a idia da ao eficaz no responde apenas critrios polticos; e a

    virtude, o honesto e a boa ao devem satisfao a outras medidas que no a mera utilidade:

    [B] O Prncipe, quando uma urgente circunstncia e algum impetuoso e inopinado

    acidente do mister de seu estado o fazem quebrar a sua palavra e sua f, ou de outro modo o

    lanam fora de seu dever ordinrio, deve atribuir esta necessidade a uma vergastada do

    flagelo divino: vcio no , pois ele abandonou sua razo a uma mais universal e potente

    razo, mas certamente uma infelicidade. De maneira que, a algum que me perguntou:

    'Qual o remdio ?' 'Nenhum remdio', respondi; 'se ele foi verdadeiramente torturado entre

    estes dois extremos [C] ("mas que se guarde de procurar pretextos para o seu perjrio"), [B]

    faz-lo era necessrio; mas se ele o fez sem pesar, se no lhe foi doloroso faz-lo, sinal de

    que sua conscincia est em maus termos'.

    [C] Quando se achasse algum [Prncipe] de to delicada conscincia, que nenhuma

    cura lhe parecesse digna de to penoso remdio, eu nem por isso o estimaria menos. Ele no

    poderia perder-se mais excusvel e decentemente. Ns no podemos tudo. De qualquer

    maneira, freqentemente nos necessrio, entregar a proteo do nosso navio, como ltima

    ncora, pura direo do cu. Para qual necessidade ele se reserva, mais justa do que essa ?

    Que h menos possvel para ele [o Prncipe] fazer do que aquilo que ser feito no pode seno

    custa da sua f e da sua honra, coisas que talvez lhe devem ser mais caras que sua prpria

    salvao, sim, e mesmo que a salvao do seu povo ? Quando ele de braos cruzados,

    25 (...); perch, se si considerr bene tutto, si toverr qualche cosa che parr virt, e seguindola sarebbe la ruina

    sua, e qualcuna altra che parr vizio, e seguindola ne riesce la securit e il bene essere suo (O Prncipe XV, pg. 334-336). Este pragmatismo relativista como parti-pris poltico o que aparenta acima de tudo estes pensadores.

    26 Ensaios III, 9, 991-992bc.

  • 10

    simplesmente chamar a Deus em seu auxlio, no dever esperar que a divina bondade exista

    no para recusar o favor de sua extraordinria mo a uma mo pura e justa ?

    [B] Perigosos so tais exemplos, raras e doentias excees nossas regras naturais.

    preciso ceder, mas com grande moderao e circunspeco: nenhuma utilidade privada

    digna de que por ela faamos tal violncia nossa conscincia; a pblica, bem, logo que ela

    muito manifesta e muito importante27.

    Vemos aqui como se estabelece uma luta entre exigncias contrrias, algo to comum nos Ensaios e

    que, alis, forma o ensaio ele mesmo, como mtodo de investigao filosfica capaz de lidar com tais

    oposies, harmonizando-as. No possvel decidir de uma vez por todas entre necessidades que

    respondem ordens diversas de valores: o prncipe deve agir segundo uma razo mais universal e potente

    que a sua prpria a razo de Estado; esta, no entanto, superada em importncia e poder por uma ordem

    celeste e divina da qual se pode esperar ajuda se, desprezando a prpria salvao e at a de seu povo, o

    governante se lhe mantm fiel. Note-se que nada afirmado sobre tal razo superior de um ponto de vista

    gnoseolgico: apenas a f, e o sentimento interior do que correto, so a invocados. Esta atitude est em

    paralelo com o realismo poltico expresso e corroborado na mesma passagem. No fundo, ambas posies

    tm seu mbito particular de validade de acordo com as circunstncias em causa. Por um lado, Montaigne

    concorda com Maquiavel: as questes polticas possuem uma especificidade que no pode ser desprezada;

    o Estado parece ser um organismo para o qual s o crescimento interessa, sendo a alternativa a

    decadncia, a runa e a escravido pelos outros Estados; da que as relaes entre Estados, ou no interior

    de sua mquina, sejam consideradas por alguns como impermeveis a toda tica. Se Montaigne, ao

    separar a moral e a poltica como Maquiavel, decide afastar-se da segunda para preservar a primeira,

    porque concordava com este28: o ensasta ataca o maquiavelismo poltico to comum em sua poca, mas

    27 Le Prince, quand une urgente circonstance et quelque impetueux et inopin accident du besoing de son estat luy

    faict gauchir sa parolle et sa foy, ou autrement le jette hors de son devoir ordinaire, doibt attribuer cette necessit un coup de la verge divine: vice, n'est-ce pas, car il a quitt sa raison une plus universelle et puissante raison, mais certes c'est mal'heur. De maniere qu' quelqu'un qui me demandoit: Quel remede ? Nul remede, fis je: s'il fut veritablement gein entre ces deux extremes (< sed videat ne quaeratur latebra perjurio>), il le falloit faire; mais s'il le fit sans regret, s'il ne luy greva de le faire, c'est signe que sa conscience est en mauvais termes.

    Quand il s'en trouveroit quelqu'un de si tendre conscience, qui nulle guarison ne semblast digne d'un si poisant remede, je ne l'en estimeroy pas moins. Il ne se sauroit perdre plus excusablement et decemment. Nous ne pouvons pas tout. Ainsi comme ainsi nous faut il souvent, comme la derniere anchre, remettre la protection de nostre vaisseau la pure conduitte du ciel. A quelle plus juste necessit se reserve il ? Que luy est il moins possible faire que ce qu'il ne peut faire qu'aux despens de as foy et de son honneur, choses qui `a l'aventure luy doivent estre plus cheres que son propre salut, ouy, et que le salut de son peuple ? Quand, les bras croisez, il appellera Dieu simplement son aide, n'aura il pas a esperer que la divine bont n'est pour refuser faveur de sa main extraordinaire une main pure et juste ?

    Ce sont dangereux exemples, rares et maladifves exceptions nos reigles naturelles. Il y faut ceder, mais avec grande moderation et circonspection: aucune utilit prive n'est digne pour laquelle nous faions cet effort nostre conscience; la publique, bien, lors qu'elle est et tres-apparente et tres-importante (Ensaios III, 1, 799-800bc; a citao latina de Ccero De Officiis III, 29).

    28 MICHEL, Pierre. La Botie, Montaigne et Machiavel. BSAM, srie 3, n. 21, 1962, pg. 60.

  • 11

    sabe que o autor de O Prncipe, como ele prprio, descreve uma situao de fato e tenta fazer o melhor

    possvel a partir dela29. Porm, por outro lado, da mesma forma que a viso filosoficamente mais ampla

    da educao, da Institution, ensastica no deve ser confundida com o gnero de preparao poltica

    preconizado por Machiavel, seus objetivos so bastante diferentes, e a inteno bsica dos Ensaios de

    auto-aperfeioamento no se identifica ao fim de auto-engrandecimento maquiavlico (nica direo

    possvel em um mundo onde as alternativas so a vitria ou a queda).

    De todo modo, tratava-se, para ambos, de cultivar uma virtude multifacetada formada por idias e

    concepes opostas e que podem ser reduzidas, esquematicamente, a dois componentes contrastantes:

    fora e bondade. Maquiavel parece se perguntar nos Discursos30: como conciliar em um s homem

    bondade e maldade ? Ambio e honestidade ? Violncia e generosidade ? E Montaigne personifica,

    como faz comumente31, no final do ensaio Do til e do Honesto, seu ideal em Epaminondas que reunia

    (...) s mais violentas aes humanas a bondade e a humanidade, e mesmo da mais delicada que se pode

    achar na escola da Filosofia32. Se, em cada um destes pensadores, esta sntese permanece algo desigual,

    j que o primeiro trata mais de dominar e o segundo de harmonia, o fundo de suas elaboraes da noo

    de virtude concorda.

    Tanto para o ctico renascentista, quanto para o estadista italiano, bem como no conceito

    renascentista em geral, a virtude revolucionria. Isto no significa que ela seja imoral, conquanto muitas

    vezes parea amoral no s pelo fato de constituir-se como reunio de elementos e tendncias bastante

    diversas, cujas diferentes composies circunstanciais podem tornar-se contrrias entre si, de acordo com

    o predomnio de uma ou outra de suas partes e inclinaes em cada uma delas, mas ainda por aparecer,

    nos seus diferentes arranjos, sempre em si mesma como algo contraditria por fora de sua prpria

    natureza33. Maquiavel e Montaigne tm cada um sua moral e, se divergem em certas coisas, concordam

    em outras, como em um ponto crucial, caracterstico do conceito de virtude em voga nas construes

    filosficas renascentistas: a combinao da capacidade de agir da melhor maneira possvel com o fundo

    moral que lhe distingue e anima; na unio do que chamamos bom, qualquer que seja o seu sentido, com

    o bem; na vinculao, na verdadeira virtude, da fora, beleza, prazer e bondade.

    ___________

    29 E por isso que a obra de Montaigne, reforando a posio de Maquiavel, est de acordo com o esprito da

    filosofia poltica moderna no repdio do paradigma clssico como irrealista ou intil: cf., por exemplo, Ensaios III, 9, 957b; SANDERS, op. cit., pgs. 85 (nota 2) e 97.

    30 MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira dcada de Tito-Lvio I, 18, pg. 142. 31 Esta uma das caractersticas principais da tica estetizante montaigniana: a imagem torna palpvel o ideal,

    congregando exigncias contrrias de maneira inexeqvel pura fundamentao lgica. 32 Ensaios III, 1, 801b. 33 Cf. HARVEY, op. cit., pg. 7.